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o Paralelo 15
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o trabalho doantropólogo
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEI
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o trabalho do antropólogoé o exercício da interacáo daspartes e do todo de um conjunto deensaios que se articulam paraestabelecer um livro formado dedez capítulos distribuidos em trespartes.Na pnrneira, "O conhecimentoantropológico", revela-se umatemática que acompanha o autordesde o inicio de suaspreocupacóes intelectuais, comoestudante de filosofía: da formacáodo conhecimento em geral,gnosiológico, até a epistemologiada antropologia.A segunda parte, "TradicóesIntelectuais", está voltada para aidentiñcacáo das raízes dasantropologias. notadamente asdenominadas "periféricas",comparando-as com as "centrais"ou metropolitanas.Com a terceira parte, "Eticidade eMoralidade". o autor volta-se parao "discurso prático", quando otrabalho do antropólogo procuracircunscrever-se as quest6es deeticidade e de moralidade, vistascomo espacos sócio-culturais do"dever"e do "bern-viver".É uma obra em que RobertoCardosode Oliveira revela apotencialidade da reflexáoelucidativa aliada ao domínio dapesquisa antropológica com vistasaconstrucáo da teoria social.
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PROJETO EDITORIAL: Franck Soudant; PREPARAcAO DOS ÜRIGINAlS: Paralelo 15; REVISAOFINAL: Unesp; CAPA: Marilda Barbieri, sobre ilustracóes dejesus Caetano Fanário(capa) e Anízio Guedes Pereira (contra-capa), artistas Tükúna.
ISBN85-86315-15-X
Ficha catalográfica
Cardoso de Oliveira, RobertoOtrabalho do antropólogo. 2. ed. I Roberto Cardoso de
Oliveira. Brasilia: Paralelo 15; Sao Paulo Editora UNES?, 2000.220p.Inclui bibliografia eÍndice analítico.
1. Antropología, 2. Teoria social. 3. Epistemologia. I. Cardosode Oliveira, Roberto. Il. Título.
CDU 070.17070.44001.5
SUMARIO
Nota de agradecimento
Prólogo
Primeira Parte: O conbecimento antropológico
Capítulo 1
O trabalbo do antropólogo: olbar, outnr, escrever
Capítulo 2
O movimento dos conceitos naantropologia
Capítulo 3
A antropologia ea "crise" dos modelos explicativos
Capítulo 4
O lugar- eem lugar- do método
Capítulo 5
A dupla interpretarao naantropologia
Segunda Parte: Tradiciies intelectuais
Capítulo 6
Antropologiasperiféricas versus antropologias centrais
Capítulo 7
A etnicidade comoJatorde estilo
5
9
11
17
37
53
73
®
107
135
o traba/óodo al1tropó/ogo
Capítulo 8
Relativismo culturalejiloso/iasperiféricas
Terceira Parte: Etiddade emoralidade
Capítulo 9
Etniczdade, eticidade eglobalizap20
Capítulo 10
Sobre odiálogo intolerante
Bibliogrqfta citada
Índice analítico
6
157
169
189
199
209
Para o amigo e colega
Luiz de Castro Paria
en,
ver
ba
ref
di
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su
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nú
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NOTA DE AGRADECIMENTO
Os ensaios gue constituem o volume foram escritos entre os anos 1992e 1997, período em gue estive vinculado ao CNPg na condicáo de Pesquisador Bolsista l/A (processo 30406/88-8), desde minha aposentadoria naUnicamp. Continuei na mesma universidade na funcáo honorífica de Professor TitularConvidado durante todo o período em gue redigi os ensaios. Apartir de agosto de 1995, ainda gue mantendo os mesmos elos acadérni
cos e afetivos com meus colegas do Departamento de Antropologia daUnicamp, integrei-me no corpo docente da Universidade de Brasília, precisamente no seu Centro de Pesguisa e Pós-Graduacáo sobre a AméricaLatina e o Caribe - CEPPAC, na condicáo de Professor Titular Visitante,onde permane<;o até o presente. A todas essas instituicóes sou profundamente grato por me haverem assegurado condicóes de trabalho excepcionais, sem as guais nao teria sido possível redigir os aludidos ensaios. Énecessário ainda esclarecer gue muitos deles foram originalmente conferencias ministradas em eventos realizados fora da Unicamp e da UnBgue, por sua vez, nao opuseram gualguer dificuldade para minha participacáo nos mesmos, o gue me deixa em débito para com ambas instituicóes - nao me cabendo; 'nesta oportunidade, outra atitude senáo a deexpressar meus agradecimentos.
Para nao elaborar urna relácáo demasiadamente extensa, nao mencionarei nomes, limitando-me a registrar minha profunda gratidáo aos colegas do Departamento de Antropologia/Unicamp e do CEPPAC/UnB,bem como aos seus funcionários, pelo apoio gue me dispensaram, sern-
~
pre com simpatia e calor humano. Finalmente devo agradecer aParalelo15, na pessoa do editor Franck Soudant, a eficiencia e a rapidez com gueassumiu a publicacáo do presente volume, bem como a Editora Unespgue se associou ao empreendimento.
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PRÓLOGO
A idéia de reunir este conjunto de ensaios ocorreu quando verifiqueique, de maneira bastante espontánea, refletiam as tres dimensóes de meutrabalho atual e que, por sua vez, articulavam-se entre si, revelando umnúcleo de interesses desdobrado em dez resultados parciais. Foi como verem meu próprio trabalho a efetivacáo do famoso círculo hermenéutico,
da interacáo dialética entre as partes e o todo: os ensaios, as totalidadesparciais em que se encaixam para, finalmente, aglutinarem-se no livro que,por razáo óbvia, intitulei O trabalbo do antropólogo, inspirado no título doprirneiro ensaio.
Foi assim que surgiram as tres partes que sustentam a arquitetura dovolume: a primeira, "O conhecimento antropológico"; a segunda, "Tradicóes intelectuais"; e, a terceira, "Eticidade e rnoralidade",
Na primeira, revela-se uma temática que me acompanha desde o iníciode minhas preocupacóes intelectuais, melhor diria, desde o tempo de estudante de filosafia: a constituicáo do conhecimento, ou melhor, do conhe
cimento em geral, gnosiológico; posteriormente, já me enderecando paraas ciencias humanas, o conhecimento científico, especificamente a epistemologia das ciencias sociais e, de um modo todo particular - desde queme reconheco como antropólogo -, o conhecimento produzido peloexercício da antropologia social e cultural. Os cinco capítulos em que sedecomp6e a primeira parte sao testemunhos eloqüentes desse interessesobre a epistemología de minha disciplina. Porém, uma epistemologia intimamente enraizada na prática da antropologia e em uma tentativa
tde
passar uma experiencia de pesquisa e de reflexáo para os mais jovens,
especialmente para o estudante nao só de antropología, mas também deciencias sociais. Nesse sentido, sempre tive por meta rnovirnentar-me - e,
comigo, meus alunos - nos intersticios que separam as disciplinas sociais.Esse pensamento de fronteira interdisciplinar sempre pareceu-me de grandefecundidade, no sentido de abrir o espirito para horizontes mais amplos.E nessa preccupacáo de comunicar-me com o alunado, encontrei estimulo para reproduzir - as vezes reiterando, com certo exagero, minhas idéiase meus argumentos - aquilo que eu chamaria, na falta de melhor termo,o summus do que considero ser o mais significativo de rninha própria experiencia. Um grande esforco de espremer e de comprimir - literalmente
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o trabalho do antropólogo
falando -, mais de acordo com o segundo sentido do verbete "sumo",do Diaonário Caidas Allfefe, do que com o primeiro, em que o termo significa "ápice" ou "excelencia" - como 9 radical latino sugere. Vejo, assim,como conteúdo dos ensaios, o resultado de um desempenho profissionalfundado na busca de transferir ao estudante a experiencia de um pensamento disciplinado pela academia; tare fa que considero ser o principaltrabalho de um professor. Nesse sentido, só tenho a reconhecer - e aagradecer - aos meus alunos de pós-graduacáo da Unicamp, durante os
anos em que lá ensinei e onde tive a honra de receber o título de ProfessorEmérito, como também aos da USP, da UFRJ-Museu Nacional e da UnBCEPPAC, instituicóes com as quais estive ligado ultimamente na condicáo
de professor visitante, nelas lecionando em diferentes ocasióes,
É assim que no Capítulo 1 - "O trabalho do antropólogo: Olhar.Ouvir. Escrever" - procurei passar ao leitor urna reflexáo sobre o queme pareceu constituir-se nas etapas mais estratégicas da producáo do co
nhecimento antropológico. É quando procuro mostrar que a funcáo deescrever o texto é mais do que urna tentativa de exposicáo de um saber:étambém e, sobretudo, urna forma de pensar, portanto, de produzir conhecimento. Eu diria que as tres etapas indicadas no subtítulo "Olhar. Ouvir.Escrever." - como atos cognitivos que sao -, além de trazerem em siresponsabilidades intelectuais específicas, formam, pela dinámica de suainteracáo, urna unidade irredutível. Atualizar essa unidade no exercíciomesmo da construcáo do conhecimento parece-me a tarefa mais obstinada do métier do antropólogo; e, reitero, repassá-la ao aluno, o trabalhomais responsável do professor de antropologia.
O Capítulo 2 - "O movimento dos conceitos na antropologia"-,pareceu-me constituir urna boa oportunidade de mostrar como conceitosgerados em outras latitudes, sobretudo em centros metropolitanos, aportarnna América Latina e, nela, sao remodelados de conformidade com nossasespecificidades, sendo portanto recontextualizados; e nesse processo derecontexrualizacáo deixa sua marca criativa o antropólogo latino-america-'no, quando imprime urna nao desprezível originalidade nessa reapropriacáo
conceitual.Já no Capítulo 3 - "A antropología e a 'crise' dos modelos explicativos"
-, procurei oferecer urna resposta a urna questáo renitente nos corredores das universidades, como se fosse algo bastante óbvio para merecer
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Prólogo
qualquer contestacáo ou, ao menos, urna interrogacáo: a idéia de que asciencias sociais - e com elas a antropologia - estavam em crise. Procurei, em primeiro lugar, discutir o conceito de "crise" para, em seguida,argumentar que, se crise havia, nao era de caráter epistémico, mas apenas
ligada ao exercício da antropologia em tal ou qual país ou comunidadesde profissionais, onde a prática da disciplina encontrava obstáculos institucionais. No bojo desse capítulo, várias questóes sao colocadas, especialmente as que dizem respeito aconstrucáo do conhecimento e aos paradigmas que a sustentam.
Relativamente ao Capítulo 4 - "O lugar Ce emlugar) do método" , a empresa foi diferente, mas absolutamente nao dissociada da anterior,urna vez que dei continuidade areflexáo sobre a articulacáo entre explicacáo e compreensáo, como co-tensinus de um mesrno empreendimentocognitivo.
No Capítulo 5 - ''A dupla interpretacáo na antropologia" -, ao darcontinuidade areflexáo do capítulo anterior, cuidei em tornar mais clarosmeus argumentos sobre a relacáo dialética entre interpretacáo compreensiva e interpretacáo explicativa, apoiado, naturalmente, nas idéias seminaisde Karl-Otto Apel e Paul Ricoeur, entre outros autores.
A Segunda Parte, "Tradicóes Intelectuais", está voltada para a identifi
cacao das raízes das antropologias, notadamente as denominadas "periféricas", comparando-as com as "centrais" ou metropolitanas, no intuito deelucidá-las reciprocamente - tal como entendo o papel da comparacáo,
É um trabalho de epistemologia histórica, como assim o definiu um colega da U nicamp, filósofo do CLE e rtferee do meu manuscrito que seriapublicado com o título "Razáo e afetividade: O pensamento de L. LéryBruhl".' A epistemologia histórica que realizei com Mauss? e com Rivers'
segue a mesma orientacáo, Já presentemente, depois do Seminário sobre"Estilos de Antropologia", que organizei na Unicamp em 1990 e publica-
Campinas: Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciéncia/Cl.Ey Unicamp,1991.
2 R. Cardoso de Oliveira, MareelMaJlSS, Sao Paulo, Ática, 1979.
3 R. Cardoso de Oliveira, A antropologia deRivers, Campinas, Editora da Unicamp, 1991.
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o trabalbo do antropólogo
do posteriormente com o mesmo título," meus interesses concentraramse nas antropologias periféricas, mais do que nas metropolitanas, como as"escolas" francesa, británica e norte-americana. Sao, portanto, as tradicóes
intelectuais que vérn se formando nas regi6es do planeta para onde aquelas antropologias "centrais" foram transplantadas e que, hoje, constituemo principal foco de minhas preocupacóes de caráter epistemológico e
histórico.Assim, o Capítulo 6 - ''Antropologias periféricas versus antropologias
centrais" - é bem um trabalho escrito sob aquele escopo. Com ele, oleitor verá, procurei relativizar o sentido do termo versus, tal como fiz noCapítulo 3 com o termo crise, pondo em discussáo a aplicabilidade decada um no terreno em que pisava, portanto em contextos em que essestermos mudavam de sentido em decorréncia de minha interpreracáo sobre as situacóes que eles pretendiam classificar. Se o sentido de crise epistémica - tinha urna significacáo positiva, como procurei mostrar,versus igualmente tinha a mesma significac;:ao positiva: nesse caso, o de apontarpara urna tensáo entre antropologías periféricas e centrais, bastante bemabsorvida pela matriz disciplinar da antropologia - urna expressáo, aliás,
que comparece na maioria dos capítulos do presente volume e que foiexplorada amplamente no meu livro Sobre opensamento antropológico.5
E se meu interesse se circunscrevia mais nas antropologías que vicejamna América Latina, nela nao se esgota, como mostra o Capítulo 7, ''Aetnicidade como fator de estilo", no qual procuro investigar as condicóeshistóricas de emergencia da antropologia gue se faz na Espanha, especificamente na Catalunha, identificando o processo de etnizacáo da disciplina,marcada pela ideologia da catalanidade. Claro que o interesse em ampliar oprisma da cornparacáo elucidativa nao se restringe ao meu próprio trabalho, mas se desdobra em pesquisas de colegas e de estudantes, como o deGuilhermo R. Ruben, no estudo da antropologia canadense de expressáo
francesa quebequense; nos dos ex-alunos, hoje doutores, Celso Azzan Jr.,
Prólogo
também no Quebec; de Marta Topel, em Jerusalém; de Leonardo Figoli,na Argentina; ou de Stephen Baines, na Austrália - todos conduzidos pordiferentes preocupacóes teóricas, porém igualmente atentos aguestao estilística como via de acesso as antropologias periféricas.
Já o Capítulo 8 - "Relativismo cultural e filosofias periféricas" - éurna incursao em urna área que só me permiti penetrar por verificar que otema sobre o qual a coletánea organizada por um colega, Marcelo Dascal,"singrava águas vizinhas as que eu estava habituado a navegar! Entendi,assim, que comentá-Io seria estar colocando também em perspectiva otrabalho de duas disciplinas: a filosofia e a antropologia. O encontro dasdisciplinas em urna área de fronteira - como sói ser o estudo de herancasperiféricas de tradicóes intelectuais eurocéntricas - só poderia ser benéfico a ambas. É quando a via estilística de investigacáo talvez possa se mostrar igualmente fecunda.
Com a Terceira Parte, "Eticidade e Moralidade", encerra-se o volume,pass ando para urna linguagem que, sem deixar de ser académica, volta-separa o que se poderia chamar de "discurso prático", quando o trabalhodo antropólogo procura circunscrever-se as quest6es de eticidade e demoralidade, vistas como espac;:os sócio-culturais do "dever" e do "bernviver"; de obediencia a normas instituídas por consensos, historicamenteaferíveis, e de comprometimento com a elevacáo da gualidade de vida doOutro - sujeito-objeto por excelencia da investigacáo antropológica. Essediscurso prático é exercitado precisamente no exame das possibilidadesda "ética discursiva", apeliana-habermasiana na forrnulacáo de idéias quevenham a contribuir na elucidacáo da natureza do diálogo interétnico, apontando para suas distorcóes - a cornunicacáo distorcida - e para a sd
posta, e portanto equivocada, crenca na incomensurabilidade das culturas,ou seja, de campos semánticos diferentes e absolutamente impenetráveis.Este é o tema central do Capítulo 9 - "Etnicidade, eticidade e globalizacáo".
O Capítulo 10 - "Sobre o diálogo intolerante" - é, a rigor, urnacontinuacáo do anterior, já agora centrado na distincáo entre a tolerancia,
4
5
R. Cardoso de Oliveira e Guilhermo Raul Ruben, Estilos de antropologia, Campinas,Editora da Unicamp, 1995.
R. Cardoso de Oliveira, Sobreopensamento antropológico, Rio de ]aneiro, Tempo Brasileiro, 1988; 2" ed., 1997.
14
6 Marcelo Dascal, Cultllralrelatiuun: andpbilosopl¿y: Nortb and utin .Amenca»perspectives,Leiden, E.J. Brill, 1991.
15
Brasilia, 4 de janeiro de 1988.
o trabalho do antropólogo
tomada como rnanifestacáo de caridade, e a tolerancia entendida comoato de justica. Esse segundo sentido é o que deveria preponderar na orientacáo do diálogo interétnico, particularmente quando exercitado pelo pólodominante da relacáo interétnica. A temática dessa última parte do volume_ nao passo deixar de informar ao leitor especialmente interessado
tern sua fonte maior em um livro que recentemente veio a lume,' no qual,em tres dos ensaios, exploro a teoria da ética do discurso em conexao
com a antropologia.Nao poderia concluir este Prólogo sem pedir ao leitor urna certa tole
rancia - e aqui em seu sentido de caridade - as repeticóes de idéias e deargumentos que proliferarn nos ensaios, urna vez que escritos autonomamente, nao estavarn previstos para serem editados como capítulos de umlivro. Como sempre, alterar os ensaios para escoimá-Ios de repeticóes,pareceu-me retirar dos textos seus respectivos contextos, procedimentoque lhes tiraria igualmente o significado do lugar e do momento de suaproducáo. Claro que procurei retirar tuda aquilo que considerei excessivo_ na forma e no conteúdo - desde que nao resultasse em urna des ca
racrerizacáo do texto original.
A primeira versáo deste texto foi para uma "Aula Inaugural", do ano académico de1994, relativa aos cursos do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. A presente versáo, que agora se publica, devidamente revista e ampliada, foi elaborada para uma conferencia na Fundacño JoaquimNabuco, em Recife, em 24 de maio do mesmo ano, em seu Instituto de Tropicologia.Essa versáo foi publicada pela Revista deAntropologia, vol. 39, n~ 1, 1996, pp. 13-37.
C1aude Lévi-Strauss, Regarder, Ecouter; Lire.2
o TRABALHO DO ANTROPÓLOGO:OLHAR, OUVIR, ESCREVER
Capítulo 1
Parecen-me que abordar um terna freqüentemente visitado e revisitadopor membros de nossa comunidade profissional nao seria de todo impertinente, posta que sempre valerá pelo menos como urna espécie dedepoimento de alguém que, há várias décadas, vem com ele se preocu
pando como parte de seu métierde docente e de pesquisador; e, como tal,embora dirija-me especialmente aos rneus pares, gostaria de alcancar também o estudante ou o estudioso interessado genericamente em ciencias
sociais, urna vez que a especificidade do trabalho antropológico - pelomenos como o vejo e como procurarei mostrar - em nada é incompatívelcom o trabalho conduzido por colegas de outras disciplinas sociais, particularmente quando, no exercício de sua atividade, articulam a pesquisa empírica com a interpretacáo de seus resultados,' Nesse sentido, o subtítulo"escolhido - é necessário esclarecer - nada tem a ver com o recente livro deClaude Lévi-Strauss,? ainda que, nesse título, eu possa ter me inspirado, aosubstituir apenas o jire pelo écrire, o "ler" pelo "escrever". Porém, aqui, aocontrário dos ensaios de antropologia estética de Lévi-Strauss, trato de questionar algumas daquelas que se poderiam chamar as principais "faculdades do entendirnento" sócio-cultural que, acredito, sejam inerentes ao modode conhecer das ciencias sociais, Naturalmente, é preciso dizer que ~falar, nesse contexto, de faculdades do entendimento - nao estou mais
INTRODu<;:ÁO
IRCO
R. Cardoso de Oliveira, Ensaios antropológicos sobre morale ética, Rio de [aneiro, TempoBrasileiro, 1996.
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16 17
RobertoCarnoso de Oliveira
do que parafraseando, e com muita liberdade, o significado filosófico daexpressáo "faculdades da alma", como Leibniz assim entendia a percepcáo e o pensamento. Pois sem percepcáo e pensamento, como enráo podemos conhecer? De meu lado, ou do ponto de vista de minha disciplina_ a antropologia -, quero apenas enfatizar o caráter constitutivo doolhar, do ouvir e do escrever, na elaboracáo do conhecimento própriodas disciplinas sociais, isto é, daquelas que convergem para a elaboracáodo que Giddens, muito apropriadamente, chama "teoria social", parasintetizar, com a associacáo desses dois termos, o amplo espectro cognitivo que envolve as disciplinas que denominamos ciencias sociais.' Ressaltar rapidamente, porquanto nao pretendo mais do que aflorar alguns problemas que comumente passam despercebidos, nao apenas para o jovempesquisador, mas, muitas vezes, para o profissional maduro, quando naose debruca para as questóes epistemológicas que condicionam a investigac;:ao empírica tanto quanto a construcáo do texto, resultante da pesqttisa.Desejo, assim, chamar a atencáo para tres maneiras - melhor diria, tresetapas - de apreensáo dos fenómenos sociais, tematizando-as - o que
significa dizer: questionando-as - como algo merecedor de nossa reflexáo no exercício da pesquisa e da producáo de conhecimento. Tentareimostrar como o albar, o ouvire o escreuer podem ser questionados em simesmos, embora, em um primeiro momento, possam nos parecer taofamiliares e, por isso, tao triviais, a ponto de sentirme-nos dispensados deproblematizá-Ios; todavia, em um segundo momento - marcado pornossa insercáo nas ciencias sociais -, essas "faculdades" ou, melhor di
zendo, esses atos cognitivos delas decorrentes assumem um sentido todoparticular, de natureza epistérnica, urna vez que é com tais atos que logramos construir nosso saber. Assim, procurarei indicar que enquanto noolhar e no ouvir "disciplinados" - a saber, disciplinados pela disciplina- realiza-se nossa percepfao, será no escrever que o nosso pensamento exercitar-se-á da forma mais cabal, como produtor de um discurso que sejatao criativo como próprio das ciencias voltadas a construcáo da teoriasocial.
3 CE. Anthony Giddens, "Hermeneutics and social theory", in Gary Schapiro e AlanSica (orgs.), Hermenentics: Questions amiprospects.
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o trabalbodo antropo/ógo: o/har, omnr, escreuer
o üLHAR
Talvez a primeira experiencia do pesquisador de campo - ou IZO campo - esteja na dornesticacáo teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do
momento em que nos sentimos preparados para a investigacáo empírica,o objeto, sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado·pelo próprio modo de visualizá-Io. Seja qual for esse objeto, ele nao esca
pa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora denossa maneira de ver a realidade. Esse esquema conceitual- disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário académico, daí o termo disciplina para as matérias que estudamos -, funciona como urna espécie deprisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo derefracáo - se me é permitida a imagem. É certo que isso nao é exclusivodo olhar, urna vez que está presente em todo processo de conhecimento,envolvendo, portante, todos os atos cognitivos, que mencionei, em seuconjunto. Contudo, é certamente no olhar que essa refracáo pode ser me
lhor compreendida. A própria imagem ótica - refracáo - chama a atencáo para isso.
Imaginemos um antropólogo no início de urna pesquisa junto a umdeterminado grupo indígen.a e entrando em urna maloca, urna moradiade urna ou mais dezenas de indivíduos, sem ainda conhecer urna palavrado idioma nativo. Essa moradia de tao amplas proporcóes e de estilo taopeculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigosTükúna, do alto rio Solimóes, no Amazonas, teriam o seu interior imedi
atamente vasculhado pelo "olhar etnográfico", por meio do qual toda ateoria que a disciplina dispóe relativamente as residencias indígenas passarit a
ser ínstrumentalizada pelo pesquisador, isro é, por ele referida. Nesse sentido,o interior da maloca nao seria visto com ingenuidade, como urna mera
curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibilizado pela teoria disponível. Ao basear-se nessa teoria, o observador bempreparado, como etnólogo, iria olhá-Ia como objeto de investigacáo pre-
-c viamente construído por ele, pelo menos em urna primeira prefiguracáo:
passará, entáo, a contar os fogos - pequenas cozinhas primitivas -, cujosresíduos de cinza e carváo iráo indicar que, em torno de cada um, estiveramreunidos nao apenas indivíduos, porém pessoas, portanto seres sociais, membros de um único "grupo doméstico"; o que Ihe dará a inforrnacáo sub-
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RobertoCardoso de O/itJeira
sidiária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o númerode fogos, estaría abrigada urna certa porcáo de grupos domésticos, for
mados por urna ou mais famílias elementares e, eventualmente, de indivíduos "agregados" - originários de outro grupo tribal. Conhecerá, igualmente, o número total de moradores _ ou quase - contando as redes
dependuradas nos mouroes da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observará, também, as características arquitetónicas da maloca,classificando-a segundo urna tipologia de alcance planetário sobre estilosde residencias, ensinada pela literatura etnológica existente.
Ao se tomar, ainda, os mesrnos Tükúna, mas em sua feicáo moderna,o etnólogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas diferenciavam-se radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes
que, no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados. Verificariaque as amplas malocas, entao dotadas de uma cobertura em forma desemi-arco descendo suas laterais até ao solo e fechando a casa a toda equalquer entrada de ar - e do olhar externo _, salvo por portas removíveis, acham-se agora totalmente remodeladas. A maloca já se apresentaarnplamente aberra, constituída por uma cobertura de duas águas, sem
paredes - ou com paredes precárias _, e, internamente, impendo-se aoolhar externo, véern-se redes penduradas nos rnouróes, com seus respectivos mosquiteiros - um elemento da cultura material indígena desconhecido antes do contato interétnico e desnecessário para as casas antigas,
uma vez que seu fecramento impedia a entrada de qualquer tipo de inseto.Nesse sentido,- para esse etnólogo moderno, já tendo ao seu alcance umadocurnentacáo histórica, a primeira coriclusáo será sobre a existencia de
uma mudanc;:a cultural de tal monta que, se, de um lado, facilitou a construcáo das casas indígenas, uma vez que a antiga residencia exigia um grande dispendio de trabalho, dada sua complexidade arquitetónica, por outro, afetou as relac;:oes de trabalho, por nao ser mais necessária a mobilizac;:ao de todo o di para a edificac;:ao da maloca, ao mesmo tempo em quetornava o grupo residencial mais vulneráve1 aos insetos, posto que os rnosquiteiros somente poderiam ser úteis nas redes, ficando a familia a rnercédesses insetos durante todo odia. Observava-se, assirn, literalmente, o queo saudoso Herberr Baldus chamava de uma espécie de "natureza marta"da aculruracáo, Como torná-la viva, seriáo pela penerracño na natureza dasrelac;:6es sociais?
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o traba/ho doantropológo: otbar; onuir, escreier
Retomemos nos so exemplo para vermos que para dar-se conta danatureza das relacóes sociais mantidas entre as pessoas da unidade residencial - e delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas deuma mesma aldeia ou "grupo local" -, o olhar por si só nao seria suficiente. Como alcanc;:ar, apenas pelo olhar, o significado dessas relacóes
sociais sem conhecerrnos a nomenclatura do parentesco, por meio da qualpoderemos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes dassociedades ágrafas e sem o qual nao nos será possível prosseguir em nossacaminhada? O domínio das teorias de parentesco pelo pesquisador tornase, entáo, indispensável. Para"_se chegar, entretanto, aestrutura dessas relacóes sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de outro recurso de obrencáo dos dados. Vamos nos deter um pouco no ouvir.
o OUVIR
Creio necessário mencionar que o exemplo indígena - tomado comoilustracáo do olhar etnográfico - nao pode ser considerado incapaz degerar analogias com outras situacóes de pesquisa, com outros objetos concretos de investigacáo. O sociólogo ou o politólogo, por certo, terá exemplos tanto ou mais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria social préestrutura o nosso olhar e'sofistica a nossa capacidade de observacáo, Julguei, entretanto, que exemplos bem simples sao geralmente os mais inteligíveis, e como a antropologia é minha disciplina, continuarei a valer-me deseus ensinamentos e de minha própria experiencia, na esperanc;:a de proporcionar uma boa nocáo dessas etapas aparentemente corriqueiras dainvestigacáo científica. Portanto, se o olhar possui uma significacáo especí
fica para um cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade.Evidentemente tanto o ouvir como o olhar nao podem ser tomados
como faculdades totalmente independentes no exercício da investigacáo,
Ambas complernentam-se e servem para o pesquisador como duas muletas - que nao nos percamos com essa metáfora tao negativa - que lhepermitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimentoo A metáfora, propositalmente utilizada, permite lembrar que a caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpetode conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participa das mesmasprecondic;:6es desse último, na medida em que está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe parec;:am insignificantes, isto é, que nao fac;:am
21
Roberto Cerdoso de O/¡"eiro
nenhum sentido no corplls teórico de sua disciplina ou para o paradigmano interior do qual o pesquisador foi treinado. Nao quero discutir aqui aquestáo dos paradigmas; pude fazé-lo em meu livro Sobre o pensamentoantropológico e nao penso ser indispensável aborda-la aqui. Bastaria entendermos que as disciplinas e seus paradigmas sao condicionantes tanto de
nosso olhar como de nosso ouvir.
Imaginemos urna entrevista por meio da qual o pesquisador pode obterinforrnacóes nao alcancáveis pela estrita observacáo, Sabemos que autores
como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observacáo de rituais
para estudarrnos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compreender urna religiáo, devemos primeiro concentrar atencáo mais nos ritos
que nas crencas"." O que significa dizer que a religiáo podía ser mais rigorosamente observável na conduta ritual por ser essa "o elemento mais estável eduradouro", se a compararmos com as crencas, Porém, isso nao quer dizer
que mesmo essa conduta, sem as idéias que a sustentam, jamais poderia serinteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do olhar e doouvir - suas músicas e seus cantos -, faltava-lhe a plena cornpreensáo
de seu sentido para o povo que o realizava e sua significafao para o antropólogo que o observava em toda sua exterioridade," Por isso, a obtencáo de
explicacóes fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigadapermitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de "modelo nativo", rnatéria-prima para o entendimento antropológico. Tais explicacóes
nativas só poderiam ser obtidas por meio da entrevista, portanto, de umouvir todo especial. Contudo, para isso, há de se saber ouvir.
Se, aparentemente, a entrevista tende a ser encarada como .algo semmaiores dificuldades, salvo, naturalmente, a limiracáo lingüística - isto é,
o fraco domínio do idioma nativo pelo etnólogo -, ela torna-se muito
mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade está na di-
4 Cf. Radcliffe-Brown, "Religiáo e sociedade", in Estreno» e¡unroo no sociedade primitii«;p.194.
o trabo/ha do ontropo/~f!,o: olbar; omvr, e..tcreuer
ferenca entre "idiomas culturais", a saber, entre o mundo do pesquisadore o do nativo, esse mundo estranho no qual desejamos penetrar. De resto,há de se entender o nosso mundo, o do pesquisador, como sendo Ocidental, constituído minimamente pela sobreposicáo de duas subculturas: a
brasileira, pelo menos no caso da maioria do público leitor; e a antropoló
gica, no caso particular daqueles que foram treinados para se tornarernprofissionais da disciplina. E é o confronto entre esses dois mundos queconstituí o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, em um con
texto essencialmente problemático que tern lugar o nosso ouvir. Comopoderemos, entáo, questionar as possibilidades da entrevista nessas condicóes tao delicadas?
Penso que esse questionamento corneca com a pergunta sobre qual anatureza da relacáo entre entrevistador e entrevistado. Sabemos que háuma longa e arraigada tradicáo, na literatura etnológica, sobre a relacáo
"pesquisador/informante". Se tomarmos a clássica obra de Malinowskicomo referencia, vemos como essa rradicáo se consolida e, praticamente,trivializa-se na realizacáo da entrevista. No ato de ouvir o "informante", o
etnólogo exerce um poderextraordinário sobre o mesmo, ainda que pretenda posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pretende o objetivismo mais radical. Esse poder, subjacente as relacóes hu
manas - que autores como Foucault jamais se cansaram de denunciar -,já na relacáo pesquisador/informante desempenhará urna funcáo profun
damente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas feitas em buscade respostas pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz - comou sem autoritarismo -, criam um campo ilusório de interacáo, A rigor,nao há verdadeira interacáo entre nativo e pesquisador, porquanto na Ütilizacáo daquele como informante, o etnólogo nao cria condicóes de efeti
vo diálogo. A relacáo nao é dialógica. Ao passo que transformando esseinformante em "interlocutor", urna nova modalidade de relacionamento
pode - e deve - ter lugar,"
5 Aqui Faco urna distincáo entre "sentido" e "significacáo", O primeiro termo consagra-se ao horizonte semántico do "nativo" - como no exemplo de que estou mevalendo -, enquanto o segundo termo serve para designar o horizonte do antropólogo - que é constituido por sua disciplina. Essa distincáo apóia-se em E. D. HirschJr.- Vo/id¡ry in Interpretation , apédice 1 - que, por sua vez, apóia-se na lógica fregeana.
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6 Esse é um tema que tenho explorado seguidamente em diferentes publicacóes. Indicaria especialmente a conferencia, intitulada "A antropologia e a 'crise' dos modelosexplicativos", reproduzida neste volume como seu capitulo 3.
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G trabalbo doantropo/~~o: olbar, ouuir, escreier
o ESCREVER
Se o olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivosmais preliminares no trabalho de campo - atividade que os antropólogos designam pela expressáo inglesa fie/dwork -, é, seguramente, no atode escrever, portanto na configuracáo final do produto desse trabalho,que a questáodo conhécimentbtorna-se tanto ou mais crítica. Um i~teres
sante livro de Clifford Geertz - Trabalbos e indas: oantropólogo como autoroferece importantes pistas para o desenvolvimento desse terna." Geertzparte da idéia de separar e, naturalmente, avaliar duas etapas bem distintasna investigacáo empírica: a primeira, que procura qualificar como a doantropólogo "estando lá" - being there -, isto é, vivendo a situacáo de
estar no campo; e a segunda, que seguiria aessa, corresponderia a experiencia de viver, melhor dizendo, trabalhar "estando aqui" - being bere -, asaber, bem instalado em seu gabinete urbano, gozando o convívio comseus colegas e usufruindo tudo o que as instituicóes universitárias e depesquisa podem oferecer. Nesses termos, o olhar e o ouvir seriam parteda primeira etapa, enquanto o escrever seria parte da segunda.
Devemos entender, assim, por escrever o ato exercitado por excelencia no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante,sobretudo quando o compararrnos com o que se escreve no campo, sejaao fazermos nosso diário, seja nas anotacóes que rabiscamos em nossas
cadernetas, E se tomarmos ainda Geertz por referencia, vemos que namaneira pela qual ele encaminha suas ref1ex6es, é o escrever "estando aqui",portanto fora da situacáo de campo, que cumpre sua mais alta funcáo
cognitiva. Por que? Devido ao fato de iniciarmos propriamente no ga~
nete o processo de rextualizacáo dos fenómenos sócio-culturais observados "estando lá". Já as condícóes de textualizacáo, isto é, de trazer os fatos
observados - vistos e ouvidos - para o plano do discurso, nao deixamde ser muito particulares e exercem, por sua vez, um papel definitivo tantono processo de cornunicacáo interpares - isto é, no seio da comunidade
profissional -, como no de conhecimento propriamente dito. Mesmo
o titulo da edicáo original é tV'orks and aves: Tbe antbropologis: as antbor. Há urna tradu<;ao espanhola, publicada ern Barcelona.
7
Roberto Cardoso de Gliveira
Essa relacáo dialógica - cujas conseqüéncias epistemológicas, todavia,
nao cabem aqui desenvolver - guarda pelo menos uma grande superioridade sobre os procedimentos tradicionais de entrevista. Faz com que os ho-.,rizontes semánticos em confronto - o do pesquisador e o do nativo _1'
abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal confronto em umverdadeiro "encontro etnográfico". Cria um espac;:o semántico partilhado porambos interlocutores, grac;:as ao qual pode ocorrer aquela "fusáo de horizon
tes" - como os hermeneutas chamariam esse espac;:o -, desde que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvido, encetando .formalmente um diálogo entre "iguais", sem receio de estar,assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu própriodiscurso. Mesmo porque, acreditar ser possível a neutralidade idealizada pelosdefensores da objetividade absoluta, é apenas viver em uma doce ilusáo, Aotrocare m idéias e inforrnacóes entre si, etnólogo e nativo, ambos igualmen-te guindados a interlocutores, abrem-se a um diálogo em tudo e por tudosuperior, metodologicamente falando, aantiga relacáo pesquisador/informante.o ouvir ganha em qualidade e altera uma relacáo, qual estrada de máo única;em uma outra de rnáo dupla, portanto, uma verdadeira interacáo,
Tal inreracáo na realizacáo de uma etnografia, envolve, em regra, aquilo .que os antropólogos chamam de "observacáo participante", o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pelasociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitacáo senáo ótirna
pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de modo a naoimpedir a necessária interacáo. Mas essa observacáo participante nem sempre tem sido considerada como geradora de conhecimento efetivo, sendo-lhe freqüentemente atribuída a funcáo de geradora de hipóteses, a seremtestadas por procedimentos nomológicos - esses sim, explicativos porexcelencia, capazes de assegurar um conhecimento proposicional e positivo da realidade estudada. No meu entender, há um certo equívoco nareducáo da observacáo participante e na ernpatia que ela gera a um meroprocesso de construcáo de hipóteses. Entendo que tal modalidade de ob- .servacáo realiza um inegável ato cognitivo, desde que a compreensáo Verstehen - que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de "excedente de sentido", isto é as significac;:6es - por conseguinte,os dados - que escapam a quaisquer metodologias de pretensáonomológica. Voltarei ao tema da observacáo participante na coriclusáo.
:.1:
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Roberto Cerdoso de O/iveira
porque há urna relacáo dialética entre o comunicar e o conhecer, poisambos partilham de uma mesma condicáo: a que é dada pela linguagem.Embora a linguagem, como tema de reflexáo, seja importante em si mesma, nesse movimento que poderíamos chamar "guinada lingüística" ou /inguistics turn -, que perpassa atualmente tanto a filosofia como as
ciencia sociais, o aspecto que desejo tratar aqui, mesmo se muito sucintamente, é o da disciplina e de seu próprio idioma, por meio dos quais osque exercitam a antropologia - ou outra ciencia social - pensam e co
municam-se. Alguém já escreveu que o homem nao pensa sozinho, em-:um monólogo solitário, mas o faz socialmente, no interior de uma "co
munidade de cornunicacáo" e "de argumentacáo"." Ele está, portanto,
.contido no espa<;:o interno de um horizonte socialmente construído - ode sua própria sociedade e de sua comunidade profissional. Desculpan- f <-
do-me pela imprecisáo da analogia, diria que ele se pensa no interior deuma "representacáo coletiva": expressáo essa, afinal, bem familiar ao cien-
tista social e que, de certo modo, dá uma idéia aproximada daquilo queentendo por "idioma" de uma disciplina. Como podemos interpretar isso
em conexáo com os exemplos etnográficos?Diria inicialmente que a textualizacáo da cultura, ou de nossas observa
cóes sobre ela, é um empreendimento bastante complexo. Exige o despo
jo de alguns hábitos no escrever, válidos para diversos generos de escritamas que para a construcáo de um discurso disciplinado por aquilo que sepoderia chamar de "(meta)teoria social" nem sempre parecem adequados. É, portanto, um discurso que se funda em uma atitude toda particularque poderíamos definir como antropológica OÚ sociológica. Para Geertz,por exemplo, poder-se-ia entender toda etnografia - ou sociografia, sepreferirem - nao apenas como tecnicamente difícil, uma vez que colocamos vidas alheias em "nossos" textos, mas, sobretudo, por esse trabalhoser "moral, política e epistemologicamente delicado"." Embora Geertznao desenvolva essa afirrnacáo, como seria de se desejar, sempre podemos fazé-lo a partir de um conjunto de questóes.
o irabalbo doantropológo: olbar; otlv;r, escrcuer
Penso, nesse sentido, na questáo da autonomia do autor/pesquisador noexercício de seu métier. Quais as implicacóes dessa autonomia na conversáodos dados observados - portanto, da vida tribal, para ficarmos comnossos exemplos - no discurso da disciplina? Temos de admitir que maisdo que uma traducáo da "cultura nativa" na "cultura antropológica"
isto é, no idioma de minha disciplina -, realizamos uma interpretacdo que,
por sua vez, está balizada pelas categorias ou pelos conceitos básicos constitutivos da disciplina. Porém, essa autonomia epistérnica nao está de modo
algum desvinculada dos dados - quer de sua aparencia externa, propici-,/ ada pelo olhar; quer de seus significados íntimos ou do "modelo nativo",- proporcionados pelo ouvir. Está fundada nesses dados, com relacáo aos
quais tem de prestar contas em algum momento do escrever. O que significa dizer que há de se permitir sempre o controle dos dados pela comunidade de pares, isto é, pela cornunidadé profissional. Portanto, sistemaconceitual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já emuma primeira instancia, construídos pelo observador desde o momentode sua descricáo,'? guardam entre si uma relacáo dialética. Sao inter-in
fluenciáveis. O momento do escrever, marcado por uma interpretacáo dee no gabinete, faz com que aqueles dados sofram uma nova "refracáo",uma vez que todo o processo de escrever, ou de inscreuer as observacóesno discurso da disciplina, está contaminado pelo contexto do being here a saber, pelas conversas de corredor ou de restaurante, pelos debates realizados em congressos, pela atividade docente, pela pesquisa de bibliotecaou /ibrary fie/dwork, como, jocosamente, se costuma charná-la, entre muitasoutras atividades, enfim pelo ambiente académico,
Examinemos um pouco mais de perto esse processo de textualizacáo,tao diferente do trabalho de campo. No dizer de Geertz, seria perguntar oque acontece com a realidade observada no campo quando ela é embar
cada para fora? - 'What happens to rea/ity Ivhen it is shipped abroad?" - Essapergunta tem sido constante na chamada "antropologia pos-moderna",
8
9
Cf. Karl-Otto Apel, "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendentalde las ciencias sociales", in La transformaeán de lafilosofia, tomo n.Clifford Geertz, Works and lives: The anthropologist as autbor; p. 130.
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1O Meyer Portes, já nos anos 1950, chamava esse processo - quase primitivo de investigacáo etnográfica no ámbito da amropologia social - "allaD'tiea/ desaiption". Cf. M.Portes, "Analysis and description in social anthropology", in Tbe advancement of saence,
vol. X, pp.190-201.
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I
:(
Roberto Cardoso de Olil1eira
movirnento que vem conquistando lugar na disciplina, a partir dos anos1960, e que, malgrado seus muitos equívocos - sendo, talvez, o principal,a identificacáo que faz da objetividade com a sua modalidade perversa, ooijetivismo - conta a seu favor o fato de trazer a questáo do texto etnográ-fico como tema de reflexáo sistemática, como algo que nao pode sertomado tacitamente, como tende a ocorrer em nossa comunidade profissional." Apesar de Geertz ser considerado como o grande inspirador des-se movimento, que reúne um extenso grupo de antropólogos, seus mern-bros nao participam de uma posicáo unívoca eventualmente ditada pelo
mesrre.F A rigor, a grande idéia que os une, afora o fato de possuíremuma orientacáo de base hermenéutica, inspirada em pensadores comoDilthey, Heidegger, Gadamer ou Ricoeur, essa idéia é a de se colocaremcontra o que consideram ser o modo tradicional de se fazer antropologia re isso, ao que parece, com o intuito de rejuvenescerem a antropologiacultural norte-americana, órfá de um grande teórico desde Franz Boas.
Quais os pontos que poderíamos assinalar como condutores aquestáocentral do texto etnográfico? Texto, aliás, que bern poderia ser sociogfáfico,se pudermos estender, por analogia, para aqueles mesmos resultados aque chegam os cientistas sociais, nao importando sua vinculacáo disciplinar.Talvez o que torne o texto etnográfico mais singular, quando o comparamoscom outros devotados a teoria social, seja a articulacáo que busca entre o
, trabalho de campo e a coristrucáo do texto. George Marcus e DickCushman,':' chegam a considerar que a etnografia poderia ser definidacomo "a representacáo do trabalho de campo em textos"." Todavia, issotern vários complicadores, como eles mesmos reconhecem. Tentarei indicar alguns, seguindo esses mesmos autores, além de outras que, como eles -
11 Cf. meu artigo, HA categoria de (des)ordern e a pós-rnodernidade da antropologia", inAmlárioAntropológico, nO 86, 1988, pp.57-73; tarnbérn no livro Sobre openJammto antropológico, Capítilo 4.
12 . Para urna boa idéia sobre a variedade de posicóes no interior do rnovimento herrnenéutico, vale consultar o volume U:7riting culture: Tbe poetics andpolitit: of ethnograp/!J.James Clifford e George E. Marcus (orgs.).
13 Cf. George E. Marcus e Dick Cushrnan, "Ethnographies as textes", in .Annua!Reviewof Anthropology, na 11, 1982, pp. 25-69.
14 Idem, p. 27.
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o trabalbo doal1tropo/ógo: olhar, 01/11;'; escreuer
e, de certo modo, muitos de nós, atualmente - refletem sobre a peculiaridade do escrever um texto que seja contralável pelo leitor e isso na medidaem que distinguimos tal texto da narrativa meramente literária. Já mencionei,momentos atrás, o diário e a caderneta de campo como modos de escreverque se diferenciam claramente do texto etnográfico final. Poderia acrescentar,seguindo os rnesmos autores, que também os artigos e as teses académicasdevem ser consideradas como "versóes escritas intermediárias", uma vez
que, na elaboracáo da monografia - essa sim, o texto final -, exigenciasespecíficas devem ou deveriam ser feitas, Mencionarei simplesmente algumas, preocupado em nao me alongar muito nestas consideracóes,
Desde logo, cabe uma distincáo entre as monografias c1ássicas e as
modernas. Enquanto as primeiras foram concebidas de conformidadecom uma "estrutura narrativa normativa" que se pode aferir a partir deuma disposicáo de capítulos quase canónica - território, economia, organizacáo social e parentesco, religiáo, mitologia, cultura e personalidade,
entre outros -, as segundas priorizam um tema, por meio do qual toda asociedade ou cultura passa a ser descrita, analisada e interpretada. Umbom exemplo de monografias desse segundo tipo é a de Victor Turner,
, '''Cisma e continuidade em uma sociedade africana", que manifesta com
muita felicidade as possibilidades de uma apreensáo holística, porém concentrada em um único grande tema, capaz de proporcionar uma idéiadessa sociedade como entidade extraordinariamente viva. Essa visáo holística, todavia, nao significa retratar a totalidade de uma cultura, mas somente ter em conta que a cultura, sendo totalizadora, mesmo que parcialmente descrita, sempre deve ser tomada por referencia.
Um terceiro tipo seria o das chamadas "monografias experimentais"ou pós-modernas, como defendidas por Marcus e Cushman, mas que,neste momento, nao gostaria de trata-las sem um exame crítico preliminarque me parece indispensável, pois iria envolver precisamente minhas restricóes ao que considero como característica dessas monografias: o desprezo que seus autores demonstram em relacáo anecessidade de controle.dos dados etnográficos, tema, aliás, sobre o qual tenho me referido por¡diversas vezes, quando procuro mostrar que alguns desenvolvimentos da..antropologia pós-moderna resultam em uma perversáo do próprio para-'digma hermenéutico. Essas monografias chegam a ser quase intimistas,
\ ¡ impondo ao leitor a constante presenc;:a do autor no texto. É um tema
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CONCLUSAO
o trabalho doantropológo: olbar; osnir; escreuer
Examinados o olhar, o ouvir e o escrever, a que conclusóes podemoschegar? Como procurei mostrar desde o início, essas "faculdades" doespírito térn características bem precisas quando exercitadas na órbita dasciencias sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia. Se o olhar eo ouvir constituem a nossa percepcáo da realidade focalizada na pesquisaempírica, o escre~er passaa,ser parte quase indissociável do nosso pensa-
31
George E. Marcus e Dick Cushman, "Ethnographíes as textes", p. 37.16
É importante também reavivar um outro aspecto do processo de construcáo do texto: apesar das críticas, o terceiro tipo de monografia trazurna inegável contribuicáo para a teoria social. Marcus e Cushman observam, relativamente ainfluencia de Geertz na antropologia, que, com ele,
a etnografia tornou-se um meio de falar sobre teoría, filosofia e epistemolo-'
gia simultaneamente no cumprimento de sua tarefa tradicional de interpretardiferentes modos de vida."
Evidentemente que, ao elevar a producáo do texto em nível de reflexáo
sobre o escrever, a disciplina está orientando sua caminhada para as instancias meta-teóricas que poucos alcancaram. Talvez o exemplo mais conhecido, entre os antropólogos vivos, seja o de Lévi-Strauss no ámbito doestruturalismo, de reduzida eficácia na pesquisa etnográfica. Com Geertz esua antropologia interpretativa, verifica-se o surgimento de urna práticameta-teórica em processo de padronizacño, em que pesem alguns escorregóes de seu s adeptos para o intimismo, como mencionado há pouco.Entendo que para se elaborar o bom texto etnográfico, deve-se pensar as !
condicóes de sua producáo a partir das etapas iniciais da obtencáo dos ¡
dados - o olhar e o ouvir -, o que nao quer dizer que ele deva emara-. nhar-se na subjetividade do autor/pesquisador. Antes, o que está em jogo
/ é a "intersubjetividade" - esta de caráter epistémico -, gracas aqual se
articulam, em um mesmo horizonte teórico, os membros de sua comunidadeprofissional. E é o reconhecimento dessa intersubjetividade que torna oantropólogo moderno um cientista social menos ingenuo. Tenho para mimque talvez seja essa urna das mais fortes contribuicóes do paradigma hermenéutico para a disciplina. e
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15 De urna perspectiva crítica, ainda que simpática a essas monografias experimentais,leja-se o artigo da antropóloga Teresa Caldeira, intitulado "A presenc;:a do autor e após-modernidade da antropología", em Notos Estados, Cebrap, n" 21, ju!. 1988, pp.133-157. Já de urna perspectiva menos favorável, cf., por exemplo, o artigo-resenhade Wilson Trajano Fi1ho, "Que barulho é esse, o dos pós-modernos" e o de CarlosFausto, "A antropologia xamanística de Michael Taussig e as desventuras da etnografia", ambos publicados no .AnuárioAntropológico, n" 86, 1988, respectivamente as pp.133-151 e pp. 183-198; e o de Mariza Peirano, "O encontro etnográfico e o diálogoteórico", inserido em sua coletánea de ensaios Uma antropologja /10 plural, como seuCapítulo 4. Para urna apreciacáo mais genérica dessa antropologia pos-moderna, naqual se procura apontar tanto seus aspectos positivos - no que se refere a contribuic;:ao do paradigma hermenéutico para o enriquecimento da matriz disciplinar da antropologia -, como os aspectos negativos daquilo que considero ser o "desenvolvimento perverso" desse paradigma, conferir rneu artigo - versáo final de conferenciasproferidas em 1986 - indicado na nota 11.
RobertoCerdoso de Oliteira
sobre o qual tem havido muita controvérsia, mas nao penso que seja aquio melhor lugar para aprofundá-lo."
Porém, o fato de se escrever na primeira pessoa do singular - comoparecem recomendar os defensores desse terceiro tipo de monografia nao significa, necessariamente, que o texto deva ser intimista. Deve significar, simplesmente - e quanto a isso creio que todos os pesquisadorespodem estar de acordo -, que o autor nao deve se esconder sistematica
mente sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente eonisciente, valendo-se da primeira pessoa do plural: nás. É claro que sernpre haverá situacóes em que esse náspode ou deve ser evocado pelo autor.
Nao deve, contudo, ser o padráo na retórica do texto. Isso me pareceimportante porque com o crescente reconhecimento da pluralidade devozes que cornpóern a cena de investigacáo etnográfica, essas vozes térn
de ser distinguidas e jamais caladas pelo tom imperial e muitas vezes autoritário de um autor esquivo, escondido no interior dessa primeira pessoado plural. No meu entendirnento, a chamada antropologia polifónica na qual teoricamente se oferece espa<;o para as vozes de todos os atores·.do cenário etnográfico - remete, sobretudo, para a responsabilidade es- l .•_
pecífica da voz do antropólogo, autor do discurso próprio da disciplina, '~c_:que nao pode ficar obscurecido ou substituído pelas transcricóes das falas
dos entrevistados. Mesmo porque, sabemos, um born repórter pode usartais transcricóes com muito mais arte.
'(
:1
I
Roberto Cardoso de Oliveira
mento, urna vez que o ato de escrever é simultaneo ao ato de pensar.Quero chamar a atencáo sobre isso, de modo a tornar claro que - pelomenos no meu modo de ver - é no processo de redacáo de um textoque nosso pensamento caminha, encontrando solucóes que dificilmenteapareceráo antes da rextualizacáo dos dados provenientes da observacáosistemática. Assim sendo, seria um equívoco imaginar que, primeiro, chegamos a conclusóes relativas a esses mesmos dados, para, em seguida,podermos inscrever essas conclusóes no texto. Portanto, dissociando-se opensar do escrever. Pelo menos minha experiencia indica que o ato deescrever e o de pensar sao de tal forma solidários entre si que, juntos,formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que, nessecaso, o texto nao espera que seu autor tenha primeiro todas as respostaspara, só entáo, poder ser iniciado. Entendo que na elaboracáo de urna boanarrativa, o pesquisador, de posse de suas observacóes devidamente or-.ganizadas, inicia o processo de textualizacáo - urna vez que essa nao éapenas urna forma escrita de simples exposicáo, pois há também a formaoral -, concomitante ao processo de producáo do conhecimento, Naoobstante, sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo,esse atotende a ser repetido quantas vezes for necessário; portanto, ele é escrito ereescrito repetidamente, nao apenas para aperfeicoar o texto do ponto de';vista formal, quanto para melhorar a veracidade das descricóes e da narra
tiva, aprofundar a análise e consolidar argumentos.Isso, por si só, nao caracteriza o olhar, o ouvir e o escrever antropoló
gicos, pois está presente em toda e quaIquer escrita no interior das cienciassociais. Coritudo, no que tange a antropologia, como procurei mostrar,esses atos estáo previamente comprometidos com o próprio Iiorizonteda disciplina, em que olhar, ouvir e escrever estáo desde sempre sintonizados com o sistema de idéias e valores que sao próprios da disciplina. O quadroconceitual da antropologia abriga, nesse sentido, idéias e valores de difícilseparacáo, Louis Dumont, esse excelente antropólogo francés, chama issode "idéia-valor"," unindo assim, em urna única expressáo, idéias que possuem urna carga vaIorativa extremamente grande. Ao trazer essa questáo
16 Cf. Louis Dumont, "La valeur chez les modernes et chez les autres", in Essais sur/'individualúme: Uneperspective antbropologique SIIr I'idéologie moderne, Capítulo 7. Há uma
traducáo brasileira.
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o trabalbo doantropológo: albar; omdr, escreuer
para a prática da disciplina, diríamos que pelo menos duas dessas "idéiasvalor" marcam o fazer antropológico: "a observacáo participante" e a"relativizacáo". Entre nós, Roberto Da Matta chamou a atencáo sobre arelativizacáo em seu livro Relativizando: Uma introdiciio ti antropologia socia!,1?mostrando em que medida o relativizar é constituinte do próprio conhecimento antropológico. PessoaImente, entendo por relativizar urna atitudeepisrérnica, eminentemente antropológica, gra<;as aqual o pesquisador logra escapar da ameaca do etnocentrismo - essa forma habitual de ver 0_
mundo que circunda o leigo, cuja maneira de olhar e de ouvir nao foramdisciplinadas pela antropologia. E se poderia estender isso ao escrever, namedida em que, para falarmos com Crapanzano, lB "o escrever etnografiaé urna continuacáo do confronto" intercultural, portante entre pesquisa
dor e pesquisado. Por conseguinte, urna continuidade do olhar e do ouvirno escrever, esse último igualmente marcado pela atitude relativista."
17 Editado pela Vozes, em 1981, o volurne é uma boa introducáo aantropologia socialque recomendo ao leitor interessado na disciplina, precisamente por nao se tratar deum manual, porém de um livro de reflexáo sobre o fazer antropológico, apoiada narica experiencia de pesquisa do autor. Já em uma direcáo um pouco diferente, posicionando-se contra certos exageros ami-relativistas, Clifford Geertz escreve seu ''Antianti-relarivisrno", traduzido p~ra o portugués na Revista Brasileira deCiincias Sociais, vol.
3, nn 8, out. 1988, pp. 5-19, que vale a pena consultar.
18 Cf. Vincent Crapanzano, "On the writing of ethnography", in DialecticalAntbropology,nO 2,1977, pp. 69-73. Muitas vezes, por razóes estilísticas - observa Crapanzano"isola-se o ato de escrever, e seu produto final [o texto], da própria confrontacáo,Qualquer que seja a razáo para essa dissociacáo, permanece o fato de que a confrontacáo nao termina antes da etnografia mas, se se pode dizer ao fim de rudo, é que elatermina coma etnografía" [p, 70].
19 Eu Faco uma disrincáo entre "atitude relativista" - que considero ser inerente apostura antropológica - e "relativismo", urna ideología científica. Esse relativismo, porseu caráter radical e absolutista, nao consegue visualizar adequadarnente questóes demoralidade e de eticidade, sobrepondo, por exernplo, bábito a norma morale justificando esta por aquele. Tive a ocasiáo de tratar desse tema mais detalhadarnente ern rneu"Etnicidad y las possibilidades de la ética planetária", in Antropológicas: Revista deDifilSióndel Instituto de Investigaciones Antropológicas, México: UNAM, nO 8, out 1993, pp. 20-33;urna segunda versáo foi publicada na Re/lista Brasileira deCiéncia.r Soaais, ANPOCS, ano9, nO 24, 1994, pp. 110-121, com o tÍtulo "Antropologia e rnoralidade", inserida nacoletánea Ensaios antropológicos sobre moraleética, de Roberto Cardoso de Oliveira e LuísR. Cardoso de Oliveira, Capítulo 3.
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..
RobertoCerdoso de Oliveira
Urna outra idéia-valor a ser destacada como constituinte do ofícioantropológico é a "observacáo participante", que já mencionei momentosatrás. Permito-me dizer que talvez seja e1a a responsáve1 pela caracterizacáo do trabalho de campo antropológico, distinguindo-a, enquanto disciplina, de suas irrnás nas ciencias sociais. Apesar dessa observacáo partici
pante ter alcancado sua forma mais consolidada na investigacáo etnológica, junto a populacóes ágrafas e de pequena escala, isso nao significa queela nao acorra no exercício da pesquisa com segmentos urbanos ou ruraisda sociedade a que pertence o próprio antropólogo. Dessa observacáo
participante, sobre a qual muito ainda se poderia dizer, nao acrescentareimais do que urnas poucas palavras; apenas para chamar a atencáo para
uma modalidade de observacáo que ganhou, ao longo do desenvolvi
mento da disciplina, um status elevado na hierarquia das idéias-valor que amarcam emblematicamente. Nesse sentido, os atos de olhar e de ouvirsao, a rigor, funcóes de um genero de observacáo muito peculiar - isto é,
peculiar a antropologia -, por meio da qual o pesquisador busca interpretar - ou compreender - a sociedade e a cultura do outro "de, dentro", em sua verdadeira interioridade. Ao tentar penetrar em form~s devida que lhe sao estranhas, a vivencia que delas passa a ter cumpre urnafuncáo estratégica no ato de elaboracáo do texto, urna vez que essa viven
cia - só assegurada pela observacáo participante "estando lá" - passa a
ser evocada durante toda a interpretacáo do material etnográfico no processo de sua inscricáo no discurso da disciplina. Costumo dizer aos meus
alunos que os dados contidos no diário e nas cadernetas de campo ganham em inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador; o
que equivale dizer, que a memória constitui provavelmente o élementomais rico na redacáo de um texto, contendo ela mesma urna massa dedados cuja significacáo é melhor alcancável quando o pesquisador a traz
de volta do passado, tornando-a presente no ato d'e escrever. Seria urnaespécie de presentificacáo do passado, com tuda que isso possairnplicardo ponto de vista hermenéutico, ou, em outras palavras, com toda a influ- ,éncia que o "estando aqui" pode trazer para a cornpreensáo - Versteben- e interpretacáo dos dados entáo obtidos no campo.
Paremos por aqui. Em resumo, vimos, por intermédio da experiencia
. antropológica, como a disciplina condiciona as possibilidades de observa~ \. cáo e de texrualizacáo sempre de conformidade com um horizonte que
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o irabalbo do ontropológo: olbar, ouuir, escreuer
lhe é próprio. E, por analogia, poder-se-is dizer que isso ocorre tambémem outras ciencias sociais, em maior ou em menor grau. Isso significa queo olhar, o ouvir e o escrever devem ser sempre tematizadas ou, em outraspalavras, questionados enquanto etapas de constituicáo do conhecimentopela pesquisa empírica - essa última vista como o programa prioritáriodas ciencias sociais. Trazer esse tema aconsideracáo, parecen-me, enfim,apropriado porque entendo que talvez venha a contribuir ao estímulo dereflexóes de caráter interdisciplinar, urna vez que os diferentes atas cognitivos examinados nao sao estranhos as demais ciencias sociais. O que torna
qualquer experiencia antropológica - e nao apenas a minha - objeto deinteresses que transcendem a disciplina. E foi com esse intuito que escolhio presente tópico - e me darei por satisfeito se houver conseguido trans
formar atos aparentemente tao banais, como os aqui examinados, emtemas de reflexáo e de questionamento.
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Capítulo 2
o MOVIMENTO DOS CONCEITOSNA ANTROPOLOGIN
INTRODu<;ÁO
Quando se pensa a antropologia na América Latina, é comum pensá
la em termos nacionais - seja como antropologia brasileira, argentina oumexicana - e, quando muito, em termos regionais - como andina oucomo amazónica -, ainda que sempre restrita a espa<;:os bem definidos,ou seja, demarcados por critérios nacionais ou regionais, Ainda que pensála em termos universais - isto é, como urna disciplina em escala planetá
ria - possa ter lugar em um ou outro lugar da academia latino-americana,isso parece-me mais excepcional do que recorrente. Imaginei, assim, quepoderíamos examinar algumas características que cercam nossa disciplinae que, de alguma forma, possam oferecer-lhe uma identidade própria,talvez um estilo, sem que devamos nacionalizá-Ia e, com isso, retirar-lhesua universalidade, que, para muitos de nós, é condicáo necessária parauma disciplina que se pretenda científica.
Como se ve, estou tratando de um tema que, nao sendo novo noámbito da disciplina, nem por isso pode ser considerado como suficientemente reconhecido em nossa comunidade profissional como merecedorde maior aten <;:ao. De minha parte, tenho me debrucado sobre o tema desdeo final dos anos 1970, quando refletia sobre a obra de Maree! Mauss e davainício a urna tentativa de desconstrucáo do conceito de antropologia, valehdo-me, para tal fim, da construcáo de sua "matriz disciplinar'? tentando,
Este ensaio foi inicialmente publicado pela Revista de Antropologia (vol. 36, 1993,pp. 13-31) como urna reelaboracáo do texto em espanhol destinado ao Seminário"Entre el acontecimiento y la significación: el discurso sobre la cultura en el NuevoMundo", realizado em Trujillo, Espanha, em dezembro de 1992.
2 A matriz disciplinar está constituída por um conjunto de paradigmas sirnultanearnente ativos e inseridos em um sistema de relacóes bastante tenso, e é responsável pelaidentidade da antropología, assim como por sua persistencia, ao longo deste século(cE R. Cardoso de Oliveira, Sobreopens(1/11ento antropológico, Capítulo 1: "Tempo e tradicáo: Interpretando a antropologia'').
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Roberto Cardo.ro de Oliveira
paralelamente, situar a disciplina naqueles espac;:os que chamei de "perifériCOS".3 Espacos esses no interior dos quais venho procurando apreender aantropologia em sua singularidade, sem perder de vista sua pretendidauniversalidade que se expressa na mencionada matriz disciplinar. Assim senda, a estratégia que procurarei seguir aqui será a de examinar, a partir de urnaperspectiva comparativa, a dinámica de certos conceitos que, originários forada América Latina, para ela emigraram e nela sofreram transforrnacóesque os adequaram as novas realidades que haveriam de dar conta. ufo
sensu, esse movimento de conceitos pode ser entendido, ern urna primeirainstancia de reflexáo, como movimento do centro para a periferia.
Entretanto, nunca será demais lembrar que tomo por periférico aqueleespaco que nao se identifica com o espac;:o metropolitano - leia-se: Inglaterra, Franca e Estados Unidos -, de onde emergiram os paradigmas dadisciplina no final do século passado e em princípios des te, e que des sespaíses propagaram-se para outras latitudes. Periférico, no caso, nao se identifica tampouco com a nocáo política de periferia como estigmatizante deum lugar habitualmente ocupado pelo chamado Terceiro Mundo. Assim,as "antropologias periféricas" - como eu as entendo - podem existirem qualquer dos "mundos", até mesmo no mundo europeu, desde quesejam assim identificadas em países que nao tenham testemunhado a emergencia da disciplina em seu territorio e, dessa maneira, nao tenham ocupado urna posicáo hegemónica no desenvolvimento de novos paradigmas.
3 A nocáo de periferia e sua aplicacáo na caracterizacáo das rnanifestacóes da antropologia fora dos centros metropolitanos nao térn ocorrido sem muita reflexáo e crítica,como mostram diferentes debates internacionais. Destaco, por exernplo, aqueJes queforam publicados sob os títulos de Indigenolls Antbropology in Non-H7estern Cosntries (editado por Hussein Fahim pela Carolina Academic Press, 1982) e "The Shaping ofNational Anthropologies" (editado por Tomas Gerholm e Ulf Hannerz, em Etbnos,12, 1982). Por razóes que apresento ern outro lugar (R. Cardoso de Oliveira, Sobre oPensamento Antropológico, Capítulo 7, "Por urna etnografía das antropologías periféricas"; o mesmo texto, com poucas alreracóes, também em A antropologia na AméricaLAtina, coordenado por George Zarur, com o título "Identidade e diferenca entreantropologias periféricas"), preferí utilizar a expressáo "antropología periférica" emlugar de antropologia "indígena", "nacional", "náo-ocidental" etc., com todos os riscos que isso poderia acarretar em funcáo de sua ambigüidade. Espero que mais adiante tal ambigüidade se desfaca.
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o 1110I';"lento dos conceitos na antropologia
Trata-se, portanto, de urna categoria eminentemente histórica e que reflete,em sua plena acepcáo, a ontogénese do campo da antropologia acrescidode sua estruturacáo atuaI. Para nós, antropólogos, isso se torna bastantesignificativo a medida que podemos trazer a disciplina - entendida comouma subcultura ocidental - para um horizonte que nos é muito familiar:o das relacóes entre culturas ou, mais precisamente, entre "idiomas culturais". Pretendo, assim, abordar urnas poucas idéias que nos ajudem a corn
preender que nao obstante a pretendida universalidade da antropologiacomo disciplina científica, manifestada - volto a dizer - no conjunto deparadigmas articulados em sua matriz disciplinar, persisrern diferencas ouparticularidades significativas quando exercitada fora dos centros metropolitanos, onde, ao que parece, nao se observaria a mesma pretensño auniversalidade.
Porém, se essas diferencas que se verificam na periferia podem e devem ser consideradas mediante urna análise estilística, o mesmo já nao sepode dizer em relacáo as antropologias centrais, porquanto essas antropologias nao teriam suas diferencas explicadas em termos estilísticos, já que,de alguma maneira, estáo enraizadas em seus paradigmas originais, todosmarcados por urna pretensáo auniversalidade. o mesmo nao acorre com
-as antropologias periféricas:'voltadas, em regra, para as singularidades deseus contextos sócio-culturais, habitualmente transformados em objetosquase exclusivos de investigacáo, Entre nós, por exemplo, contam-se nosdedos as pesquisas que ultrapassam nossas fronteiras... Seriam, contudo,essas antropologias substancialmente diferentes a ponto de dissolver aunidade da disciplina, tornando irreconhecível na periferia sua própria matrizdisciplinar? Toca-se, aqui, no paradoxo clássico da persistencia do mesmosob as mudancas que nele tém lugar. Em outras palavras, como pode aantropologia amoldar-se as novas condicóes que encontrou em outrospaíses sem que, todavia, deixasse de ser o que é?
o ANTROPÓLOGO E O "OUTRO INTERNOn
Comecaria com urna afirrnacáo quase banal em nossa disciplina: parao antropólogo que exercita a cornparacáo, nao existe um terceiro lugar,neutro, de onde ele possa falar. Pois essa afirmacáo tao trivial está embutida na natureza da disciplina em sua transplantacáo para América Latinae, pode-se acrescentar, até mesmo para qualquer das latitudes em que nao
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Roberto Cardoso de Oliveira
estejam abrigados os centros metropolitanos -, portanto, ali onde se submete as deterrninacóes de uma nova realidade. Pois a história da disciplina
deixa consignado que, desde seus primórdios, sempre focalizou o homem de outras culturas - e, isso,-a partir de sua própria cultura, ou seja,
daiiiliOp61ogia-éümüculwra; ~ertamente urna cultura artificial, ela mes
ma constituinte do sujeito cognoscitivo. Se esse processo sempre ocorreu
na história da: disciplina, nem sempre - ou raramente - foi assumidopelos antropólogos e tematizado por eles como questáo relevante. Comoadmitir, entáo, que uma disciplina essencialmente antietnocéntrica pudessesequer conviver com essa dirnensáo de um saber que, a rigor, nao seria
senáo sua própria nega¡;:ao? Como eludir uma tal ameaca, capaz de invia
bilizar seu próprio estatuto epistemológico? Como conciliar na prática pois teoricamente é bem mais fácil - a inevitabilidade de uma posturacomprometida com determinada Weltanscha1iung, inscrita nas condicóes ori
ginárias da própria disciplina, com sua vo cacáo eminentemente
relativizadora e, muitas vezes, ingenuamente neutra? Esse parece ser o desafio que a disciplina tem enfrentado em toda sua história e que, todavia,
continua enfrentando. A res posta a esse desafio nao tem sido uma, nemduas, mas várias, conforme as modalidades de sua atualizacáo nos contextos mais diferentes em que fez do "outro" objeto de investigacáo.
Tomemos a antropologia européia em seu conjunto, independentemente de uma possível diferenciacáo interna que nela poderíamos observar entre as centrais e as periféricas. O certo é que essa antropologia sempre fez do "outro" um ser distante, na maioria das vezes transoceánico, O"outro interno" - se assim posso referir-me ao horriern europeu comoportador de uma subcultura local ou regional, seja na Alemanha, na Itália
ou na Espanha -, foi o objeto de urna quase ciencia, o folclore, muitasvezes antecessor direto da própria antropologia. Esse seria o caso de países como a Espanha." O binomio em língua alerná VolkskundeVolkerkunde ilustra perfeitamente essa separacáo entre duas disciplinas aparentadas, é certo, mas nao idénticas, Se o primeiro termo remete a investiga
<;:ao interna, ao folclore, o segundo abre o horizonte do pesquisador para a
4 Refiro-me aquí, especialmente, ao caso da antropologia catalá, Entre outros, consultese: Luis Calvo Calvo, El "arxtud'elnografia ifoldorede calalunya"y la anlropología catalana,
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o mommento dos conceitos na anlropologia
exploracáo de terras longínquas e exóticas. Sao duas óticas que encontramguarida em duas disciplinas distintas, pelo menos em um determinado momento da construcáo da antropologia moderna, momento este que talvezpudéssemos datá-Io, sem maior rigor, nas duas primeiras décadas deste século. Mas se agora invoco essa questáo é para relacioná-la com a históriabem mais recente de dois conceitos aparentados, a rigor, também eles umbinomio, a saber: colonialismo - colonialismo interno, que marcam, quase deforma emblemática, a história das relacóes entre a Europa e a América
Latina. Sao conceitos bem típicos, respectivamente do mundo do colonizador e o do colonizado: o primeiro, próprio do mundo europeu; o segundo,próprio do mundo latino-americano. O exótico, ou simplesmente o diferente, que sempre ocupou o horizonte do antropólogo, do passado, tornase bastante relativizado quando o foco da investigacáo comeca a apreendernao mais exclusivamente tal ou qual etnia para estudo intensivo de carátermonográfico - as famosas etnografías c1ássicas, as quais, diga-se a propósito,tanto deve nossa disciplina -, senáo também seu entorno, seja ele a sociedadecolonial, seja a sociedade nacional, praticante - a seu turno - de um certocolonialismo interno - como bem se observa nas sociedades latino-americanas,' É assim que o colonialismo, como conceito abrangente, passa a enfatizar o relacionamento sistemático entre o colonizador e o colonizado, ampliando, desse modo, o foco de investigacáo nao mais circunscrito as etniascolonizadas, mas voltado agora para uma realidade mais inclusiva, que sepoderia denominar, por exemplo, "situacáo colonial" - para ficarmos comesse utilíssimo conceito formulado nos anos 1950 por George Balandier.'
5 A genealogia do conceito de "colonialismo interno" pode ser tracada, talvez, a partirde autores como Gunnar Myrdal e C. Wright Milis, alcancando sua formulacáo latinoamericana mais consistente com Pablo Casanova, em seu artigo de 1963, "Sociedadplural, colonialismo interno y desarrollo" (América Latina, año 6, n" 3) ou em seu livroSociología delaexplotación, no Capítulo "El colonialismo interno", Rodolfo Stavenhagen,com "Siete tesis equivocadas sobre América Latina" (Política Independiente, n" 1, maiode 1965) acrescenta considcracóes interessantes ateoria dualista de J. Larnbert, mostrando a necessidade de criticá-la do ponto de vista do colonialismo interno. Inspiradonesses autores, tive a oportunidade de tratar o problema em meu '~ nocáo de 'colonialismo interno' na etnología", reeditado como o Capítulo 6 de meu livro A sociologiado Brasilindígena.
6 Cf. G. Balandier, Sociologíe acluel/e de l'AfriqueNoire.
41
Roberto Cardoso de Oliueira
A agregacáo do adjetivo "interno" a nocáo de colonialismo cria, arigor, um novo conceito, urna vez que se retém, por um lado, parte dascaracterísticas das relacóes coloniais, como as de dorninacáo política e deexploracáo económica do colonizador sobre a populacáo colonizada; poroutro, acrescenta urna dimensáo inteiramente nova. Essa dirnensáo envol
ve o que se poderia denominar um novo "sujeito epistémico". E se estivéssemos interessados em discernir alguma coisa parecida com urna "categoria teórica" como característica da antropologia latino-americana, aquiloque vai se impor com mais vigor é precisamente a dimensáo do sujeitocognoscitivo. Nao mais um estrangeiro, alguém que observe de um pontode vista - ou horizonte - constituído no exterior, porém, agora, ummembro de urna sociedade colonizada em sua origem - depois transformada em urna nova nacáo -, um observador eticamente contrafeitode um processo de colonizacáo dos povos aborígenes situados no interiordessa mesma nacáo. Portanto, do ponto de vista desse observador internode urna sociedade que reproduz mecanismos de dorninacáo e de explora
cáo herdados historicamente, o que subsiste nao poderá ser apenas'o deslocamento de um conceito metropolitano - e colonial-, sem repercussoes na própria constituicáo desse ponto de vista. Tratar-se-ia, antes, deum ponto de vista diferente, significativamente reformulado, no qual ainsercáo do observador - isto é, do antropólogo como cidadáo de um
país fracionado em diferentes etnias - acaba por ocupar um lugar comoprofissional da disciplina na etnia dominante, cujo desconforto ético só é
diluído se passar a atuar - seja na academia, seja fora dela - comointérprete e defensor daquelas minorias étnicas.
A IDEOLOGIA INDIGENISTA E A "CONSTRUC;:ÁO DA NAc;:AO"
Diante dessa nova realidade na qual se insere o antropólogo e, com ele,a própria disciplina, o que passa a se impor a reflexáo é, precisamente, o
movimento que o conceito faz em seu deslocamento da Europa para aAmérica Latina. Dizíamos que o papel do antropólogo, como cientista ecidadáo, passa a ter um valor agregado no exercício de sua profissáo, legitima
dor de seu desempenho visto como urna totalidade. Equivale a dizer que aprática de sua profissáo passa a incorporar urna prática política, quandonao em seu comportamento, certamente em sua reflexáo teórica. Isso denenhum modo significa banalizar a disciplina mediante urna sorte de ati-
42
o movimento dos tonceitos na antropofogia
vismo político, primário e dogmático. Nesse sentido, só o domínio diligente da disciplina pode evitar tal ameaca, Ainda assim, nunca será portemor dessa arneaca que o antropólogo latino-americano abrirá máo derealizar sua cidadania e sua profissáo, concebidas ambas como as duasfaces de urna mesma rnoeda. Pelo menos a história da disciplina já demonstrou isso no estudo que tem feito das relacóes interétnicas. Muito sepoderia dizer a esse respeito, mas ternos que nos cingir aquestáo específica
que desejamos abordar: o que haveria de realmente novo nesse sujeitoepistémico? Parece-me que, a diferenca do antropólogo europeu, naAmérica Latina o profissional tem um outro compromisso, igualmenteético, ainda que nem sempre transparente para si mesmo ou para sua comunidade de pares: sua participacáo na empreitada cívica da construcáoda nacáo, ou nation building. Mariza Peirano, ao que me consta, foi a primeira antropóloga a avaliar o lugar do tema no desenvolvimento da antropologia no Brasil." Embora a participacáo na construcáo da nacáo nao sejamonopólio do antropólogo latino-americano - e Peirano mostra isso _,8
entendo que, na América Latina, essa participacáo assume contornos bas
tante específicos. Refiro-me aespecificidade de urna prática antropológica, bem como a seu horizonte teórico, identificáveis em vários países latino-americanos como indigeniríno. E é sobre esse indigenismo que restringirei as consideracóes a seguir.
Diria que o indigenismo como ideologia, em que pesem seus muitosequívocos, esteve presente no exercício da disciplina praticamente em todos os países latino-americanos possuidores de ponderáveis populacóes
indígenas. O México, a Guatemala e os países andinos da América do Sulsempre tiveram como tema - e objeto - primordial das investigac,:o~s
antropológicas a presenc,:a de populacóes indígenas em seu território. OBrasil, ainda que detentor de urna populacáo indígena demograficamente
7 Em sua tese doutoral, "The anthropology of anthropology: The brazilian case", defendida na Universidade de Harvard, em 1981, Mariza Peirano mostra a idéia de nation
building como vetor importante na construcáo da antropologia brasileira moderna.
8 Sobre a presen<;a da ideologia da "construcáo da nacáo" também nas nacóes européias, Peirano adverte tratar-se de "urn parámetro e sin toma importante para a caracterizacáo das ciencias soeiais onde quer que elas surjam"Cf. M. Peirano, Uma antropofagia noplural.- Trés experündas contemporáneas, p. 237.
43
Roberto Cerdoso de Ol¡veira
pouco expressiva, conseguiu construir um indigenismo extremamente forte,capaz de contaminar todas as pesquisas de etnologia desde que a disciplinalogrou consolidar-se no país, a partir dos anos 1930. Curt Nimuendaju,nosso "personagem conceitual" por excelencia - para usarmos, aqui,essa rica nocáo deleuziana -, ilustra um claro comprometimento do pesquisador com a defesa dos índios. Todavia, essa contarninacáo ideológica
deu-se na maioria dos países latino-americanos, em grau variável, já que oindigenismo teórico e prático jamais deixou de apresentar suas particularidades regionais. Contudo, o que conta em nosso argumento é a politiza<;:ao sistemática do antropólogo nos termos da ampla e generalizada ideologia indigenista, nao obstante a riqueza de matizes a singularizar sua adocáo nos diferentes países do continente.
Penso nao ser necessário dese rever essa ideologia indigenista, mesmoque nos limitássemos a seu núcleo, mas apenas definí-la grosso modo comoum pensamento e uma acáo pautados por um compromisso com a causaindígena - o que nao exclui os próprios erros de interpretacáo dessamesma causa... Entretanto, tal definicáo acarreta um segundo problema,com seu inevitável corolário: como interpretar essa causa indígena? Tratarse-ia de dar ouvidos aos povos indígenas, concedendo-lhes - por inter-.médio de suas liderancas - voz ativa na elaboracáo da política indigenista?Ou de ouvir, em primeiro lugar ou exclusivamente, os interesses do Estado que, nos países latino-americanos, nunca se configura como multiétnico?Em outro lugar? tive a oportunidade de apontar para aquilo que chamode "crise do indigenismo oficial", expressando com isso o atual divórcioentre as liderancas indígenas, cada vez mais conscientes dos direitos deseus pOYOS, e o Estado, autor e gerenciador da política indigenista, tradicionalmente impermeável as reivindicacóes dessas liderancas. Em vista disso,tern-se observado atualmente, no Brasil por exemplo, uma separacáo nítida entre o indigenismo oficial e um indigenismo "alternativo", elaboradoainda que superficialmente por algumas organizacóes náo-governarnentais
- as ONGs -, mas que, eventualmente, pode convergir em alguns pontos com a própria Funai, quando esta, excepcionalmente, é dirigida poruma adrninistracáo mais esclarecida... Como uma terceira perspectiva a
9 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, A cnse doindigenismo, especialmente pp. 56-58.
44
o movimento dosconceitos na antropofogia
considerar - frente as perspectivas da Funai e das ONGs - está, naturalmente, a que se observa nas tentativas de forrnulacáo de uma políticaindígena propriamente dita criada no seio do movimento indígena e elaborada em seus diferentes congressos e assembléias indígenas. Porém, independentemente das características observáveis nos diferentes países da América Latina, penso que é importante registrar a forre atuacáo da ideo logia
indigenista, cujas diferentes gradacóes nao sao suficientes para obscurecersua presen<;:a na prática da disciplina em nossos países. Embora caiba reconhecer aqui a diferenca entre política indígena - dos índios - e políti
ca indigenista - do Estado -, o que estou chamando de indigenismorepresenta uma idéia mais ampla, ativada sempre que se manifesta entre osantropólogos o compromisso com o destino dos POYOS indígenas.
A "FRICC;;ÁO INTERÉTNlCA" E O "ETNODESENVOLVIMENTO"
Ao enfatizar o indigenismo como formador de uma perspectiva extremamente importante na construcáo da antropologia nos países latinoamericanos, nao estou reduzindo a disciplina a um exercício teórico ouprático voltado exclusivamente para as populacñes indígenas. A antropologia moderna em nossos países inclina-se hoje - e muitas vezes de forma bastante original - sobre a própria sociedade a que pertence o antropólogo, portanto, sobre a sociedade nacional. Para penetrar nesse outrotipo de fazer antropológico, estaríamos nos desviando um pouco de nosso tema. Contudo, gostaría de destacar ainda que vejo nos esrudos indígenas - aos quais a antropologia, sob a denominacáo de etnologia, devotou em nossos países, ou na maior parte deles, seu exercício mais intensopara a forrnacáo da disciplina - o marcador de uma especificidade qu~,
acredito, nao se observa tao claramente nos estudos dedicados a sociedade nacional, seja em seu s segmentos rurais, seja nos urbanos. De certamaneira - salvo melhor juízo - esse tipo de antropologia pouco sediferencia daquilo que se observa em outras latitudes, inclusive nas antropologias centrais, ainda que a pretensáo a universalidade destas últimassempre pode distingui-Ias das antropologias periféricas, como já aludí.
Dito isso, gostaria de mencionar pelo menos dois conceitos elaborados no interior da comunidade de profissionais latino-americanos da disciplina e que bem exprimem aquele deslocamento conceitual. Refiro-meaos conceitos de "friccáo interétnica" e de "etnodesenvolvimento". Como
45
Roberto Cerdoso deOlilJeira
Um número razoável de publicacóes - entre livros, artigos, disserta
cóes e teses - valeu-se desse conceito, revelando sua utilidade, quer no
Brasil, quer em outros países latino-americanos." A formulacáo do con-
Chamamos "friccáo interétnica" o con tato entre grupos tribais e segmentosda sociedade brasileira, caracterizado por seus aspectos competitivos e, no maisdas vezes, conflituais, assurnindo esse con tato proporcóes "totais", isto é,envolvendo toda a conduta tribal e nao-tribal que passa a ser moldada pelasituafao defricfao interétnica.
o f1JOlJimenlo dosconceitos na anlropologia
Bonfil Batalla, "La teoria del control cultural en el estudio de procesos étnicos"; amonografia de Miguel A. Bartolomé e Alicia M. Barrabas, "La resistencia Maya:Relaciones inter-étnicas en el orientede la Península de Yucatán"; ou o conjunto deensaios intitulado Procesos de contacto interétnico, de M. R. Catullo el alii.
ceito significava, em primeiro lugar, urna atitude crítica frente a aborda
gens correntes na época no Brasil, como aquelas que focalizavam os proces sos de "aculturacáo" ou de "mudanca social", inspirados, respectiva
mente, nas teorias funcionalistas norte-americanas ou británicas, Em se
gundo lugar, significava um deslocamento do foco das relacóes de equili
brio e das representacóes de consenso para as relacóes de confliro e para
as representacóes de dissenso, Em terceiro lugar, ainda que de maneira
incompleta, propunha que se observasse mais sistematicamente a socieda
de nacional em sua interacáo com as etnias indígenas, como elemento de
deterrninacáo da dinámica do contato interétnico. Com isso, apropriávamo
nos da nocáo de situacáo colonial, apresentada por Balandier, para
rransforrná-Ia em conceito adequado para desvendar a realidade das rela
cóes entre índios e alienígenas, que se mostraria especialmente fecundo
para dar conta de situacóes de contato entre segmentos nacionais e grupos
tribais existentes em território brasileiro, com possibilidade de ser útil quando
aplicado em outras regióes da América Latina.
Já com relacáo ao conceito de etnodesenvolvimento - formulado de
maneira bastante consistente por Rodolfo Stavenhagen, em seqüéncia da
"Reunión de Expertos sobre Etnodesarrolo y Etnocidio en América La
tina" promovida pela Unesco e pela Flacso, em San José de Costa Rica,
em dezembro de 1981 - cabe destacar que esse conceito nao era apenas
um desdobramento do conceito de desenvolvimento, corrente na literatu
ra económica e política produzida na Europa e nas Américas, mas quase
um contra-conceito, urna vez que implicava urna crítica substantiva as reo
rias desenvolvimentistas, bastante em yoga nos países de nosso hemisfério.
Com es se conceito, propunha-se urna natureza de desenvolvimento "a~
ternativo", que respeitasse os interesses dos POYOS ou das populacóes étni
cas, alvo dos chamados "programas de desenvolvimento". Stavenhagen
apresenta um elenco de seis consideranda para justificar a adocáo do concei
to como instrumento capaz de atender a especificidade dos pOYOS do
Terceiro Mundo diante da questáo do progresso e da modernizacáo:Em AméricaLatina, pp. 85-90. O conceitode friccáo interétnica, por sua vez,guardaum grande parentesco com o de "regióes de refúgio", desenvolvido por GonzaloAguirre Beltrán, especialmente ern seu livro Regiones de refugio.
Alérn de cercade urnadezenade tesese de livros escritos no Brasil, orientadospelocanceita defticfoO interétnica - ou pelo de identidade étnica gue lhe é correlato-, cabemencionar a repercussáo do conceito em países como México e Argentina, comoindicam, por exemplo - egue eu tenha conhecimento -, o ensaio de Guillermo
procurarei mostrar, esses conceitos sao solidários da nocáo de colonialis
mo e, conseqüentemente, da nocáo de colonialismo interno. Cabe esclare
cer, nao obstante, que esse último conceito nao tern limitada sua aplicacáo
apenas as etnias indígenas, urna vez que também pode ser considerado
como elucidativo de muitas das investigacóes sobre a sociedade rural, em
sua feicáo camponesa, como mostram, por exemplo, os estudos levados
a cabo pela equipe de antropólogos do Programa de Pós-graduacáo em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Río
de Janeiro, a partir de 1968, sobre as regióes Nordeste e Centro-Oeste do
Brasil, ou as investigacóes que tiveram lugar na Universidade de Brasília,
depois de 1972, com a criacáo de um Programa equivalente, para ficar
mos com dais bons exemplos ilustrativos do alcance desse conceito e desua fecundidade no exercício da pesquisa.
Comecernos pelo conceito de friccáo interétnica. Esse conceito - que
tive oportunidade de propor em 1962, quando elaborei o projeto "Estu
do de áreas de friccáo interétnica do Brasil",'? para o entáo Centro Latino
Americano de Pesquisas em Ciencias Sociais, órgáo associado a Unesco e
com sede no Río de Janeiro - teve sua origem em urna reflexáo sobre a
nocáo de "situacáo colonial", a que já me referi, na forma como foi de
senvolvida por Balandier. Escrevi entáo:
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10
46 47
°movimento dosconceitos na antropologia
mento, execucáo e avaliacáo" destacado por Stavenhagen. Tal comunidade asseguraria a possibilidade das relacóes interétnicas serem efetivadasem termos simétricos, ao menos no que diz respeito aos processos decisórios de planejamento, execucáo e avalia¡;:ao, e no nível das liderancaslocais, portanto étnicas, em diálogo com técnicos e administradoresalienígenas. Essas relacóes simétricas, e por isso mais democráticas, redun
dariam na substitui¡;:ao gradativa do "informante nativo" pela figura do
interlocutor, igualmente nativo. Se bem que urna tal comunidade de argurnentacáo nao seja de tao fácil realizacáo concreta - mesmo quando en
volve pares, a exemplo das comunidades de cientistas, como ensina opróprio Apel;" só o fato de te-la como alvo já imprimiria a indispensável
moralidade aos programas de etnodesenvolvimento, sempre que envol
vessem qualquer acáo externa em sua prornocáo.
CONCLUSAO
Essas consideracóes conduzem a urna breve conclusáo. Em lugar de
nos preocuparmos com eventuais categorias teóricas que poderiam ter
sido elaboradas pelas antropologias praticadas na América Latina, os conceitos que examinamos nao sao mais do que categorias sociológicas e históricas que nao devem sinalizar nada mais do que a fixacáo de um léxico da
disciplina, pouco afetando sua sintaxe - se assim posso expressar-me, valendo-me de um parámetro lingüístico -, sintaxe essa responsável pela grama- ..ticalidade de sua matriz disciplinar. Tal gramaticalidade - para continuar recorrendo a metáforas lingüísticas - asseguraria a pretensáo da disciplina auniversalidade, isto é, viabilizando sua producáo e consumo em nível planetário, mercé de conceitos tais como estrutura, cultura,funrao etc., verdad¿iros conceitos eminentes da disciplina - para valerme-nos, aqui, de urnafeliz expressáo durkheimiana; porém, a rigor, eles sao mais universalizáveisdo que universais, posto que sua significacáo,ou carga semántica, dependeria
do sistema conceitual ou do paradigma em que estivessem ínseridos;"
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de las ciencias sociales" e "El a priori de la comunidad de comunicación y losfundameentos de la ética", ambos em La transformación de lafilosofia, tomo lI.
Cf. nota 14 deste Capítulo.Como os termos estnauraefllnfao, ou outros que poderíamos acrescentar, recobre mconceitos diferentes, isto é, no estruturalismo francés estrutura eJimfao significam algo
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16
12 Cf. Rodolfo Stavenhagen, "Etnodesenvolvimento: Urna dirnensáo ignorada no pensamento desenvolvimentista", pp. 11-44.
13 Cf. R. Cardoso de Oliveira, "O saber, a ética e a acáo social", em Manusaito: &vistaInternacional de Filosofia, pp. 7-22; e "Prácticas interétnicas y moralidad: Por unindigenismo (auto)crítico", pp. 9-25. Esses artigos foram inseridos no volume Ensaiosantropológicos sobre morale ética, Capítulos 1 e 2.
14 Cf. Karl-Otto Apel, "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendental
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Roberto Cardoso de Oliveira
1. que as estratégias de desenvolvimento sejam destinadas prioritariamenteao atendimento das necessidades básicas da populacáo e para a melhoriade seu padráo de vida, e nao a reproducáo dos padróes de consumo das
nacóes industrializadas, propugnados, exclusivamente, pelo crescimentoeconómico;
2. que a visáo seja endógena, orientada assim para as necessidades do país
mais do que para o sistema internacional;
3. que nao se rejeite a priori as tradicóes culturais, mas que se procure
aproveitá-Ias;
4. que se respeite o ponto de vista ecológico;
5. que seja auto-sustentável, respeitando, sempre que possível, os recursos
locais, sejam eles naturais, técnicos ou humanos;
6. que seja um desenvolvimento participante, jamais tecnocrático, abrindose a participacáo das populacóes em todas as etapas de planejamento,execucáo e avaliacáo.'!
Em minha leitura do texto de Stavenhagen, entre os vários comentários que poderiam ser feitos, gostaria de destacar apenas o que se refere aum aspecto do conceito de etnodesenvolvimento, que, embora nao explícito, parece-me constituir um de seus pontos mais sólidos: refiro-me aquestao ética. Em outras oportunidades.I' pude elaborar essa questáo de:
modo mais extenso; urna elaboracáo a qual nao é necessário retornar por
ser dispensável aargumentacáo a seguir. Diria, entretanto, que a eticidadeimplícita no conceito de etnodesenvolvimento reporta-se especificamenteao sexto considerandum, que enfatiza o caráter participante das populacóesalvo de programas de desenvolvimento. Isso porque entendo essa participacáo como condicáo mínima para a rnanifestacáo de urna "comunidadede comunicacáo e de argumenta¡;:ao",14 criada no processo de "planeja-
1;
Roberto Cardoso de Oliveira
conceitos esses que cumpririam, de certa forma, o papel de "categoriasdo entendimento sociológico", responsáveis por aquilo que o mesmoDurkheirnchamava de "ossatura da inteligencia"; ou, com suas própriaspalavras, "elles [as categorias] sontcomme i'ossature de l'infelligence" - conforme escreveu em seu celebrado livro Les formes élémenfaires de la IJie religieuse.Em que pese o sabor kantiano e anacrónico desta formulacáo, ela nos
ajuda a distinguir ordens distintas de conceitos: distingo aqui, para efeitodas presentes consideracóes, o "conceito eminente" ou categoria teórica,do conceito heurístico, carregado de historicidade e instrumento da investiga<,:ao empírica. Poder-se-ia dizer, assim, que os conceitos de que tratamos aqui sao sempre deste segundo tipo, daí porque evitarmos charná-los
de categorias. Nao obstante, sao novos conceitos gerados para desernpenhar um papel estratégico no fazer da disciplina e no trato de novas questoes teóricas que surgiram na prática da disciplina na América Latina. Masaqui cabe urna reflexáo sobre a persistencia do poder - ou da hegemonia- das antropologias centrais, poi s há de se admitir que a dinámica daantropologia moderna tende a conferir, hoje em dia, a um tal status "metropolitano" - retomemos o problema -, um significado exclusivamente histórico, bem mais do que urna indiscutível realidade. A grandeexpansáo da disciplina nas diversas latitudes do planeta - por forca, éverdade, da funcáo pedagógica dessas mes mas antropologias centráis
praticamente está levando a antropologia a um processo de "descentralizacáo", ou "desrnetropolizacáo", face a sua crescente rnodernizacáo e atua-
bem diferente do que os mesmos termos significam no estrutural-funcionalismo anglosaxáo, do mesmo modo quecJlltJlra nessa rnesma tradicáo tern um conteúdo sernántico diferente se a confrontarrnos com o paradigma hermenéutico, no qual os termosalernáes J:0¡lúlr e BildJlng expressam, respectivamente, e com bastante fe1icidade, essas
diferencas - d. R. Cardoso de Oliveira, Sobreopensamento antropológico, Capítulo 5, "Oque é isso que chamamos de antropologia brasileira?". Todavia, pensados esses conceitos no interior de paradigmas constituintes da matriz disciplinar da moderna antropologia social, podemos avaliar a possibilidade de eles serem mutuamente traduzíveis.A meu ver, estabelecida a lógica dessa traducáo, teríamos satisfeita urna condicáomínima para se poder falar de urna antropologia planetária. Relativamente aquestáoda caracterizacáo da antropologia que fazemos no Brasil com o recurso dessesmegaconceitos expressivos que sao da matriz disciplinar, d. o Capítulo 6 deste volume.
50
o movímento dosconceitos na antropologia
Iizacáo em vários países da América Latina. Aqueles centros de onde surgiram as primeiras tentativas de construcáo da antropologia - ou de suainvencáo nos finais do século passado - nao detérn mais o monopólioda disciplina e, muitas vezes, insinuarn certa rigidez em suas posturas teóricas que o contato com as antropologias periféricas só pode ajudar asuperar! Isso significa que o mundo académico e científico reduziu-se bastante, estando metrópoles e periferias - prefiro usar ambas no plural cada vez mais próximas. E isso corrobora afirrnacóes, que tenho feito emdiferentes ocasióes, de que as chamadas antropologias periféricas nao devem ser entendidas como produtoras de resultados menos confiáveis...
Mas qual o verdadeiro lugar que urna antropologia periférica, como aque fazemos na América Latina, ocupa no interior de urna matriz disciplinar, ou, em outras palavras, em urna disciplina que possa ser validada emnível planetário? 1ndependente de classificar as antropologias que ternosclesenvolvido entre nós com o adjetivo de "periféricas" tal nao exclui quetanto essas como as centrais nao vivam a tensáo entre paradigmas, urna tensáoinerente a dinámica da matriz disciplinar. Como dissemos no início dessasconsideracóes, se nao for pela pretensáo auniversalidade, trace mareante das
antropologias centrais, será pelo caráter particularizador das antropologiasperiféricas - até mesmo daquelas situadas na Europa - e para cuja apreensáo a nocáo de estilo parece-me muito útil. Nao penso ser necessário
desenvolver amplamente aqui o que entendo por urna estilística da antropologia. Pude fazé-lo em outra ocasiáo." Todavia, diria apenas que a nocáo de estilo remete a urna individuacáo ou especificidade da disciplina
quando esta se singulariza em outros espacos. No caso do Brasil e dol México, como se tentou mostrar, os conceitos de colonialismo interno, de
friccáo interétniea e de etnodesenvolvimento, cada um de per se, apontamadimensao política das relacóes interétnicas, o que significa dizer que mesmoque os estudos étnicos objetivem a cornpreensáo ou a explicacáo de tal ou
17 Em outubro de 1990, tive a oportunidade de organizar um semináriosobre "Estilosde antropologia", na Universidade Estadual de Carnpinas - Unicarnp, durante o qualprocurei colocar algumas idéias que contribuíssern para o encaminhamento da questao, mediante a apresentacáo de um texto que charnei "Notas sobre urna estilística daantropología". O conjunto de trabalhos do Seminario foi publicado em Estilos deAn
tropología (Roberto Cardoso de Oliveira e Guilhermo R. Ruben, eds.).
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Roberto Carnoso de OlizJeira
qual povo indígena, é o contexto nacional envolvente que se impóe comrnuita forca no horizonte da disciplina e, por via de conseqiiéncia, na construcáo do ponto de vista do pesquisador. A preocupacáo, explicita ou nao,desse antropólogo está, por isso mesmo, permanentemente voltada parao lugar que ocupa, de onde fala, para as responsabilidades éticas de suacidadania, particularmente quando investiga povos e culturas indígenas situados em seu país. Talvez esteja aqui, na irnposicáo quase compulsivadessa dimensáo politica, a peculiaridade de um dos estilos mais mareantesda antropologia na América Latina.
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Capítulo 3
A ANTROPOLOGIA E A "CRISE"DOS MODELOS EXPLICATIVOS
o tema que estou me propondo a examinar aqui - ern decorrénciada temática deste Seminario' - embora me pare<;:a oportuno, dada aatualidade dos problemas que gera, é, em si mesmo, equivocado devidoao caráter polissérnico do termo "crise". Por essa razáo, cornecaria minhas consideracóes sobre o conceito de crise, pelo menos na forma pelaqual tem sido utilizado na antropologia. Posteriormente, procurarei distinguir "modelo explicativo" - que estou entendendo aqui como equivalente aparadigma - de teoria. Finalmente' concluirei por uma tentativa deavaliacáo da vocacáo explicativa de alguns paradigmas constitutivos de nossadisciplina frenteái5cárátercompreensivoinerente ao próprio métierdó antropólógo:-Minha ~xpectativaé de que possarnos, juntos, aprofundar o exame do tema que me foi proposto, uma vez que as idéias que apresentareinao devem ser tomadas senáo como pontos de referencia capazes deorientar o debate, porérn jamais lirnitá-lo.
*A nocáo de crise passou a participar do horizonte das ciencias sociais- e nao apenas da antropologia - nessas últimas décadas, a partir docelebrado livro de Thomas Kuhn, A estruturn das rei)o7iifik;-'á'e~iíftcas, cujaprimeira edicáo remonta ao inicio dos anos 1960. Tratava-se entáo ~e
uma crise de paradigmas, em que, na visáo de Kuhn, a história das ciencias
Conferencia realizada na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, em 19 de novernbro de 1993. no ambito do Seminário "Ciencia e Sociedade: A Crise dos Modelos". Foi publicada na revista USP Estud»: .Auansados (vol. 9, n" 25.1995. pp. 213-228)e. em urna versáo castelhana moclificada, foi destinada ao Seminário "La AntropologíaLatinoamericana y la Crisis de los Modelos Explicativos", realizado em Bogotá. em1995. como conferencia de abertura, e posteriormente publicada em MangJlare: RevistadelDepartamento deAntropología da Universidad Naaonal deColombia (n"'11-12, 1996, pp.09-23). com o título "La antropología latinoamericana y la 'crisis' de los modelosexplicativos: Paracligmas y teorías".
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Roberto Cardoso de Oliveira
paradigmáticas - isto é, das hardsaences - constituía-se de urna sucessáo
de crises semente superadas pela substituicáo do paradigma, vigente na
ciencia normal, por um novo paradigma que seria o resultado de urnaespécie de revolucáo científica. Muito se escreveu em decorréncia da posi
cáo desse historiador da ciencia, originalmente físico, que, a rigor, procura
va renovar a história da ciencia trazendo ao debate argumentos até mes
mo de forte apelo sociológico - como o do paradigma assentar-se em
comunidades de profissionais, idéia, aliás, já antecipada por seu compatri
ota Charles Pierce, há pelo menos um século.
Nao vejo necessidade de evocar aqui todos os elementos que consti
tuem o conceito kuhniano de crise e de paradigma, urna vez que sao bas
tante conhecidos de todos nós, senáo apenas associá-los para qualificar
um tipo de crise que poderíamos chamar crise epistérnica - e que, com
relacáo a sua aplicacáo as ciencias sociais, pelo menos dois livros que eu
gostaria de assinalar possuem especial importancia para ilustrar o nível a
que chegou o debate em torno de suas idéias: trata-se do volume Paradigms& reiolsaions: Applications and appraisals if TbomasKuhnsphilosopqy if saence,de 1980, no qual vários autores discutern a utilizacáo da abordagem kuhniana
nas ciencias sociais e nas humanidades; e o pequeno livro de Barry Barnes,
T S. Kuhn and social saences, de 1982, por meio do qual o autor realiza urna
avaliacáo dos conceitos de paradigma e de ciencia normal, a par de mos
trar seus possíveis desenvolvimentos no campo das ciencias sociais.
. Porém a antropologia, como disciplina autónoma, já com alguma an
terioridade preocupava-se com a idéia de urna eventual crise que, segundo
alguns membros da comunidade de antropólogos, avizinhava-se diante do
previsível desaparecimento de seu objeto de estudo. Seria legítima essa preo
cupacáo, ou sequer cabia levá-la a sério? Claude Lévi-Strauss soube levá-la a
sério para, entáo, exorcizá-la. Todos se lembram bem de seu artigo, publica
do originalmente no Courrier de l'Unesco, em novembro de 1961, e traduzi
do logo no ano seguinte para a Revista de Antropologia (vol. 10, nm 1-2, 1962),sob o título de "A crise moderna da antropología". Nesse curto mas interes
sante artigo, Lévi-Strauss procura mostrar que em nenhuma hipótese o eres
cente processo de depopulacáo das etnias indígenas do planeta, ou mesmo
a incorporacáo dos POyOS ditos primitivos em grandes civilizacóes sobretudo a civilizacáo européia -, podem por em risco o futuro da
disciplina, urna vez que ela nao se define por seu objeto concreto - no
54
A antropolotJa e a "aise" dosmodelos explicativos
caso, as sociedades aborígenes -, mas pelo olhar que deita sobre a ques
tao da diferenra. Questáo essa sempre presente onde quer que identidadesétnicas se defrontem. Lévi-Strauss conclui seu artigo dizendo que
enquar1to as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas.para outros hornens, haverá lugar para urna reflexáo sobre essas diferencas,que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropologia.2
Ou, como diria MerIeau-Ponty fazendo eco ao pensamento de LéviSrrauss:
A etnologia nao é urna especialidade definida por um objeto particular, associedades "primitivas"; é urna maneira de pensar, aquela que se impóe quando o objeto é [o] "outro", e exige que nós nos transformemos.'
o argumento elaborado por Lévi-Strauss serve para convencer-nos
assim imagino - de que pelo menos o propalado desaparecimento daqueles
que tém sido o foco privilegiado da pesquisa antropológica - os POyOSaborígenes - nao pode ser responsável por um eventual desaparecimen
to da disciplina por falta de objeto... Contudo, a maior importancia do
argumento está na transposicáo do problema do plano dos objetos concretosao plano das modalidades de ambecimento de qualquer objeto empiricamente
observáveI. Passa-se, assim, ao plano epistemológico - loms , aliás, ondesei:ravam atualmente as polémicas mais interessantes e, certamente, mais pro
veitosas para o próprio desenvolvimento de nossa disciplina. Gostaria, aqui,
de circunscrever a problemática da crise da antropologia, ou de como ela
é percebida nas comunidades de profissionais da disciplina, nao mais nos
centros metropolitanos - onde a antropologia teve a sua origem e se disseminou para a periferia -, mas para países onde foi obrigada a adaptar-se
a novas condicóes de existencia, tais como a precariedade institucional
falta de bibliotecas, ausencia de tradicáo universitária, limitacáo orcarnen-
2 Claude Lévi-Strauss, ''A crise moderna da antropología", Revista deAntropologia , op.cit, p. 26.
3 Maurice Merleau-Ponty, "De Matlss aClaude Lé/lioStrauss"; inSignes, Gallimard, 1960, p.150. O artigo entre colchetes é meu e exprime minha interpretacáo do texto de MerleauPonty.
55
¡
Roberto Carnoso de Oliveira
tária etc. etc. -, em que pese esses países terem servido - este é o termo- de campo de pesquisa para antropólogos provenientes daqueles centros. Essa adaptacáo, a que tenho chamada de "estilo", oferece areflexáo
algo que considero muito importante para o progresso da disciplina entrenós, do Brasil e dos países congéneres, Trata-se da investigacáo compara
da entre antropologias periféricas, de maneira a propiciar o alargamentodo horizonte da disciplina nas áreas nao metropolitanas, gra<;:as aapreen
sao de seus diferentes estilos, a par de proporcionar a oportunidade de
um saudável intercambio entre suas respectivas comunidades de profissionais. Limitar-me-ei aqui a mencionar pelo menos um país congénere, o
México, onde a quesráo da crise nao deixou de ter sua repercussáo, e que
nos servirá de parámetro por meio do qual sempre poderemos elucidar,pelo exercício da cornparacáo, aspectos importantes da antropologia que
se faz no Brasil e em outros países da América Latina.O colega Esteban Krotz, antropólogo da Universidade Autónoma de
Yucatan, organizou um simpósio na Cidade do México, em 1990, devotado a urna reflexáo sobre "o conceito de crise na historiografia das ciencias
antropológicas", com cerca de urna dezena de participantes. Cinco apre
sentaram textos que foram finalmente publicados em um opúsculo de .pouco menos de 50 páginas.4 Todavia, a pequena extensáo da coletánea
nao desmerece a qualidade dos trabalhos postes a disposicáo do leitor,que indicam um conjunto de tópicos que mereceram a atencáo dos antro
pólogos mexicanos e que, em sua maioria, nao nos sao estranhos. Vamos
nos valer aqui de pelo menos urna das contribuicóes do seminario, precisamente a de seu organizador, urna vez que nos oferece um quadro interessante das diferentes percepcóes da crise no espa<;:o ocupado pela disci
plina no México. Com seu texto, "Crise da antropologia e dos antropólogos", Krotz procura estabelecer, portanto, urna distincáo entre os diferen
tes sentidos que essa crise pode ter em seu país. Mostra que vários tipos de
crise podem ser identificadas no México. Entre os atores intelectuais quefalam da crise mexicana, distingue, inicialmente, tres que, em sua opiniáo, nao .
estariarn suficientemente familiarizados com a disciplina para sobre ela se
manifestarem: sao literatos, como Octavio Paz; colegas de outras discipli-
A antropologia ea "crise" dos modelos explicalilJos
nas, portanto sem forrnacáo em antropologia; e funcionários de algumamaneira ligados aárea de aplicacáo da disciplina e que, no México - sabe
mos nós - desempenham papel significativo no financiamento do trabalho antropológico, certamente em escala muito mais avancada do que acorre
nos demais países latino-americanos. Com efeito, o Estado ocupa umespaco extraordinariamente amplo na sociedade mexicana e pouca coisa se
faz sem seu apoio. Há, ainda, aqueles que possuem maior familiaridade com
a antropologia, mas cuja posicáo pessoal critica contamina sua avaliacáo da
disciplina: em regra, Sao pessoas envolvidas em seus trabalhos de tese, cujaforrnacáo, nem sempre adequada, gera frustracáo e ansiedade bastante per
turbadora do juízo crítico. Há, finalmente, os profissionais da disciplina,entre os quais identifica trés tipos de atores, cujas avaliacóes sobre a antro
pologia devem, a meu ver, ser levadas a sério. Krotz assirn os descreve:
a) quando se esgotam, após intenso esforco, debates sem perspectiva desolucáo, situacáo que levaao esgotamento os próprios antropólogos (exemplo: a discussño sobre o carnpesinato durante os anos 1970); b) quando sesentem desarmados frente a problemas sociais e culturais relativamente novos e/ou politicamente relevantes (exemplo: os novos movimentos sociais);c) quando verificam na literatura especializadaestrangeira elou em instituicóes nacionais fenómenos .que interpretados posteriormente como rupturasde geracáo ou como meros modismos, parecem tornar tao profundamenteobsoletos sucessos científicos recentes que póern ern dúvida o potencial dadisciplina por inreira."
O ponto de vista esbocado por Krotz - amedida que leva em contaos distintos atores sociais que habitam o campo da antropologia, seja em
seu centro, seja em suas proximidades - permite distinguir igualment~
urna certa variedade de representacóes dessa mesma crise, ampliando, assim, o próprio horizonte da análise de um fenómeno bem mais complexo
do que poderia parecer inicialmente. Apesar da realidade mexicana ser
substancialmente diferente da brasileira, ainda que as antropologias quevigoram nos dais países tenham indiscutíveis similaridades, o certo é que
esse quadro elaborado por Krotz lanca urna boa luz sobre consideracóes
que sempre podemos fazer a propósito da celebrada crise que, para alguns,
1I.
4 Cf. Esteban K.rotz (org.),El concepto "crisis" enla histon'ogrqfia delasciencias antropológicas.
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5 EstebanKrotz, "Crise da antropología e dosantropólogos", p. 11.
57
Roberto Cerdoso de Oliveiru
sonda a disciplina entre nós. Entretanto, ao reconhecer a importancia dadistincáo feita por Krotz em relacáo a comunidade mexicana de antropólogos em sua percepcáo da crise da disciplina, cabe reconhecer igualmenteque nao fica claro se a crise está situada em um eventual esgotamento doparadigma, seja ele qual for, ou se estamos frente a urna inadequacáo ou aurna superacáo de teorias relativas as realidades ou aos problemas investigados. Essa é urna questáo que gostaria de examinar agora, especificamen
te em relacáo ao exercício da antropologia em nosso país.
*Tenho para mim que muito do que se diz no Brasil sobre a crise naantropologia segue de perto o que Krotz observou no México. Os atoresintelectuais dívidem-se claramente entre os que estariam relativamente familiarizados com a disciplina, sem jamais te-la praticado - entre essesestariam colegas de outras disciplinas das ciencias sociais ou das humanidades, interessados pela antropologia -, e aqueles que nela militam profissionalmente. Nao possuo nenhuma evidencia de que esses últimos tenham se impressionado com qualquer arneaca de crise. Se, eventualmente,um ou outro membro da comunidade preocupou-se com a questáo, issoseria um caso isolado, mesmo porque aqueles interessados em discutir adisciplina em nível epistemológico, isto é, procurando dar conta dos paradigmas que a compóern - ou que compuseram a antropologia ao longode sua história -, praticamente térn considerado a nocáo de crise comourna idéia pouco fecunda para a apreensáo da disciplina, pelo menos em sua
atualidade. Siruo-me entre esses últimos - e meus trabalhos, particularmente os que estáo enfeixados em meu livro Sobre opensamento- antropológico -, sempre procuraram conduzir urna reflexáo sobre a disciplina abstendo-se de qualquer énfase maior em suas eventuais crises, passadas oupresentes, simplesmente - e aqui está o argumento - porque mesmo asturbulencias que a antropología sofreu em passado recente nao foram demolde a contaminá-Ia no nível epistémico, Para ilustrar sucintamente isso,
lembraria pelo menos duas crises que tiveram lugar no país: urna que tocouprofundamente a comunidade universitária - refiro-me as conseqüéncias do
regime autoritário no interior do corpo docente de inúmeras universidades-, e outra especificamente prejudicial a etnologia indígena, a transformac;ao da Funai no maior obstáculo a pesquisa etnográfica, dificultando, quando nao impedindo, o exercício do trabalho de campo junto as populacóes
58
A ufltrupologia e a "crise" dos modelos explicatÍl)os
indígenas por ela tuteladas, a muitos jovens etnólogos. Apesar disso, nao sepode dizer que a antropologia entrou em qualquer tipo de crise disciplinarou metadisciplinar.
Entendo, portante, que aquilo que poderíamos chamar crise - volto adizer, no plano epistemológico, e nao na estrutura da organizacáo do trabalho científico, na qual se incluiriam as crises institucionais - só se observaria nos termos em que Kuhn a coloca, a saber, quando um paradigmasucede ao outro no processo histórico de transforrnacáo da ciencia; ou,melhor, das ciencias duras, ou bardsaences. Dispenso-me de um aprofundamento específico sobre o pensamento kuhniano a esse respeito, pois suasidéias térn sido bastante divulgadas mesmo no meio das srft saences, como onosso. Diría apenas - e aqui reproduzo idéias que venho repisando já háalgum tempo - que a antropología moderna está constituida por um elencode paradigmas simultáneos, ou, para usar urna expressáo de George StockingJr., trata-se de um "equilíbrio poli-paradigmático"." Todavia, menos doque tomar em conta a antropologia como um todo, isto é, os seus diferentes ramos, tenho focalizado a antropologia social - ou mesmo cultural,em sua acepcáo moderna -, o que confere as minhas preocupacóes umteor bastante diferente daquelas questionadas por esse competente historiador da antropologia. Cinjo-me, assim - como térn demonstrado meusescritos desde 1984, quando ministrei a conferencia da XIV Reuniáo Bra
sileira de Antropologia -, a procurar equacionar os paradigmas que cornpóern, em sua justaposicáo e simultaneidade, a "matriz disciplinar" da
antropologia.' Voltarei ao tema mais adiante para dar conta de como penso hoje essa questáo, agora relacionada com a chamada crise da disciplina.
Neste momento, creio que será oportuno ilustrarmos com um borhexemplo a relacáo que tem lugar no interior da disciplina em que paradigmas e teorias convivem em urna interacáo continua. Penso que podemosexemplificar essa relacáo entre paradigmas e teorias na instancia do paren-
6 Cf. George W.Stocking]r., ''f\nthropology in crisis?A view from berween generations",in Crisisin aflthrupology. Viewfivm SpriflgH1J~ 1980, p. 419.
7 A conferencia ern gue a matriz disciplinar da antropología foi esbocada pela primeiravez, intitulei "Ternpo e tradicáo: Interpretando a antropología", tendo sido publicadanoAfluárioAfltropológico-84, posteriormente inserida em Sobre oPensamento Aruropologico.
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;1
Roberto Cerdoso de Dfiveira
tesco, certamente a mais clássica que podemos identificar na antropologia,responsável mesmo pelo amadurecimento da disciplina ao longo de todoum século. Qualquer professor de antropologia sabe que as teorias deparentesco desempenharam historicamente um papel fundamental na formacáo de sua disciplina, posto que foi precisamente nessa instancia empírica
que logrou seus sucessos mais sólidos, seja como núcleo de muitas das melhores monografias, que se tornaram exemplares para a sua consolidacáo,seja como urna das instancias mais susceptível de formalizacáo, portanto
capaz de proporcionar a antropologia abordagens de caráter nomológico. Seja como for, as teorias de parentesco - muitas vezes tao injustamentedesprezadas hoje em dia no ensino da disciplina - sao parte indispensável na .
forrnacáo do antropólogo, pois, por rneio delas, o estudante sempre conseguirá um acesso bem mais seguro no domínio da antropologia,"
Vejamos o que essas teorias expóern sobre a natureza de nossa discipli
na. Sabemos que houve tempo em que se conflitavam duas teorias deparentesco: urna, denominada de descendinaa, de inspiracáo anglo-saxonica,proporcionadora de relacóes perpendiculares, facilmente demonstráveisem um diagrama de parentesco; outra, de alianfa, tributária da tradicáo francesa - de Mauss a Lévi-Strauss -, baseada na idéia de reciprocidade emarcada por relacóes expressas horizontalmente em nível de um diagrama
no qual o matrimonio constitui nódulos analiticamente privilegiados. Teorias tao diferenciadas em sua concepcáo, em lugar de levarem a disciplinaa crise, foram, ao contrário, responsáveis por urna dinarnizacáo da antro
pologia de tal magnitude a ponto de se tornarem complementares, articulando-se, portanto, entre si, como mostram diferentes autores, como LouisDumont - especialmente em seu livro IntrodHction ti deuxthéories d'anthropohgie
8 Considere-se, por exernplo, que as teorías de redes - nelworkf- que há décadas atrásforam desenvolvidas pela Escala de Manchester, podem ser consideradas como urnatransposicáo dos instrumentos de análise de relacóes primarias, interpessoais, de sociedades ditas simples, para sociedades complexas, particularmente as urbanizadas.Ambas as teorias - de parentesco e de redes - cobrem instancias praticamenteequivalentes do ponto de vista teórico-metodológico. No primeiro capítulo de meulivro Enigmas esofufoes. valí-me da oposicáo complementar das teorias de descendenciae de alianca para mostrar como se dá a articulacáo entre teorias a despeito da diferencaexistente entre seus respectivos paradigmas.
60
A antropofogia e a "crise" dos n¡ode/os explicatil'Os
sociale, de 1971 - e Ira R. Buchler e Henry A. Selby - com o livro Kinshipnndsocial organiZfltion: An introduaion to tbeory andmetbod, de 1968. Sao autores que, apesar de se situarem em tradicóes diferentes e específicas Dumont, no estruturalismo francés; Buchler e Selby, no empirismo anglosaxáo -, chegaram praticamente as mesmas conclusóes no que diz respeito a articulacáo entre teorias respectivamente originárias de paradigmasque, historicamente, sempre estiveram em oposicáo. A "crise" que eventualmente essas teorias poderiam ter causado foi rapidamente sanada porurna descoberta óbvia de que nenhuma delas daria conta sozinha da realidade do parentesco e que somente com a articulacáo complementar deambas a disciplina poderia finalmente deslindar a complexidade do fenómeno.
Isso nos ensina que as crises em nível teórico sao sa~áveis ou pela eliminacáo de urna por outra, ou pela articulacáo das mes mas, como no exemplo mencionado, ou, ainda, pela convivencia pacífica de teorias contrárias,porém náo-contraditórias, das quais, aliás, a antropologia conhece inúme
ros casos. Essas últimas, gra<;:as as quais a antropologia conseguiu consolidar-se como disciplina respeitável no reino das ciencias soeiais, sao majoritariamente do tipo a que Merton chamou de middle range tbeones - ou"teorias de médio alcance" ~ e que nao sao outra coisa para nós do quedescricóes analíticas, com pretensóes explicativas, contidas nas monogra
fias produzidas sobre tal ou qual sociedade ou cultura. Apesar de muitasdelas ou todas serem passíveis de restricóes e de críticas, particularmentequando constroem modelos diferentes sobre urna mesma sociedade ecultura, isso nao significa que essas teorias nao convivam de algum modocompulsoriamente, urna vez que urna nao dispóe de forca suficiente ...!....de argumentos - para eliminar a outra. A literatura etnológica está repletade exemplos dessa ordern, Sern nenhuma ironia, poderíamos chamar issode o afável convívio académico entre monografias.
Essas teorias, a diferenca dos paradigmas - que mais seriam metateorias - constituem interpretacóes de realidades concretas. Seja focalizando sistemas sócio-culturais globais, como as monografias clássicas concernen
tes a tal ou qual POyO; seja procurando descrever e analisar sistemas parciais,tais como o parentesco, a mitologia, a religiáo etc etc; seja, ainda, porintermédio da investigacáo intensiva de um determinado tema ou proble
ma, buscando dar conta, holísticamente, de um POYO ou de um grupo
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Roberto Cardoso de Oliveira
social específico - como nas modernas monografias etnológicas." A quase totalidade da producáo antropológica está orientada - queiram ounao os seus autores - para a construcáo de "teorías de médio alcance"contidas em monografias competentemente elaboradas. As "grandes teorias" sao raras, poi s ultrapassam instancias empíricas específicas para atingirem níveis de generalidade planetária. Prefiro mencionar, nesse sentido,apenas urna, ralvez a mais conhecida hoje em dia, aquela construída porLévi-Strauss para dar conta do parentesco: seu livro clássico Les structuresélémentaires de laparenté, publicado em 1949, pode ser tomado como urnaboa ilustracáo de urna grande teoria.
*Vamos agora nos deter um pouco sobre a nocáo de paradigma e desua utilidade na antropologia. Procurarei ser bastante sucinto, pois tenhotratado disso com bastante freqíiéncia. Contudo, há de se dizer que meuconceito de paradigma origina-se em sua versáo kuhniana, em que as idéiasde "quebra-cabeca" - ou puZX/e solving - e de "exemplaridade" sao coextensivas da concepcáo de paradigma: a primeira denotando o caráter
fechado e circular dos problemas e de suas solucóes, ambos devidamenteprevistos pelo paradigma; a segunda, indicando a natureza modelar dessassolucóes enquanto inscritas - no caso de nossa disciplina - em monografias exempiares. O caráter exemplar dessas monografias significa que" as teorias de tal ou qual sistema sócio-cultural amparam-se, em nível meta-teórico, em paradigmas facilmente identificáveis mediante a investigacáo epistemológica. A rigor, essas monografias exemplares expressam, em grauvariável, seus pressupostos paradigmáticos. Mesmo pára Kuhn, que estámais familiarizado com paradigmas constituídos por regras formalizadas,a nocáo de exemplaridade é naturalmente aceita ao se tratar de ciencias
sociais ou humanas, pouco afeitas a forrnalizacáo. Fala ainda em "matrizdisciplinar" como equivalente a paradigma. No meu entender, entretanto,cabe distingui-las como duas diferentes nocóes.
A antropofagia e ti "cnse" dos modelos e.><j>Ii(tltivos
Diria que se matriz disciplinar pode ser sinónimo de paradigma, enquanto materializa o poder matricial de um determinado conjunto de regras - o que faz sentido em ciencias marcadas por sucessáo de paradigmas ou matrizes -, já ao se tratar de conjunto de paradigmas que se dáoem simultaneidade - e nao em sucessáo -, a idéia de matriz disciplinartorna-se bastante útil, por permitir articular tais paradigmas em uma únicaestrutura, inclusiva, capaz de absorvé-los sem anular qualquer um deleso que ocorre, tipicamente, na antropologia, como tenho procurado demonstrar em outras oportunidades. lO Por isso, nao pretendo agora mostrar graficamente o que chamo de matriz disciplinar da antropologia para isso, é suficiente observar o gráfico da Figura 1 do Capítulo 7. Bastaría indicar que tal matriz é constituida por quatro paradigmas básicos,historicamente demonstráveis:1. o racionalista e estruturalista, na acepcáo lévi-straussiana, gerado no interior da tradicáo intelectualista européia continental por intermédio da Escola Francesa de Sociologia;2. o estruturaljuncionalista, cuja origem deu-se na tradicáo empirista igualmente européia, porém insular, na Escola Británica de Antropologia So
cial;3. o culturalista, igualmente abrigado na tradicáo empirista anglo-saxónica,
mas surgido na Escola Histórico-Cultural Norte-Americana; e, por fim,4. o hermenéutico, vinculado a tradicáo intelectualista européia continental,
reavivado, todavia, pelo "movimento interpretativista" norte-americano,em urna tentativa de recuperacáo tardia de urna perspectiva filosófica do
século XIX.Cabe lembrar que os tres primeiros paradigmas sao igualmente pro- ,;
duto desse mesmo século, mas como subproduto da Ilustracáo; o quartoparadigma constirui-se como reacáo a razáo iluminista. A essa reacáo é que
se tern aplicado o termo pós-moderno, como uma espécie de oposicáo achamada modernidade, inaugurada no Iluminismo, período de um quase religioso culto arazáo, O pequeno livro do pensador francés jean-Francois
Lyotard, La conditionpostmoderne, é bastante esclarecedor nesse sentido. Parajustificar o tratamento tao sintético e incompleto que estou dando aqui a
9 Só para ilustrar sobre o que enrendo a respeito de urna monografia moderna, construída por meio de urna problemática central, menciono o livro de Vieror Turner,
Scbism and(ontinlliry in an.AfricanSodery.
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10 Cf., por exemplo, o artigo mencionado na nora 7 do presente Capítulo.
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Roberto Cardoso de Olit)eira
questáo da matriz disciplinar, gostaria de lembrar que tive a oportunidade
de desenvolver extensamente urna argumentacáo sobre toda essa temática
nos quatro primeiros capítulos do livro Sobre opensamento antropológico, jámencionado. Consistentes ou nao, os argumentos estáo a disposi<,:ao doleitor interessado em aprofundar a questáo,
O certo é que nem os tres primeiros paradigmas, inspirados na epistemenaturalista - como o de ver a antropologia como um tipo de ciencia
natural -, nem o quarto paradigma, com sua crítica radical ao escoponaturalista da disciplina, levaram - ou estáo levando - a antropologia acrise. Ver com olhos críticos os "paradigmas da ordem" - como já as
sim denominei os tres primeiros - nao significa criar urna crise na antro
pologia, mesmo ao se considerar a posicáo dos mais fanáticos pós-rno
demos, como Stephen Tyler, por exemplo. Com a introducáo pelo para
digma hermeneutico de alguma desordem na matriz disciplinar _ consti
tuída, originalmente, pelos paradigmas orientados pelas ciencias naturais
-, o que se viu foi urna sorte de rejuvenescimento da disciplina, e issogracas ao aumento da tensáo entre os paradigmas circunscritos na matriz:se já havia essa tensáo entre os primeiros paradigmas, com a incIusao do
último ela aumentou em escala, dinamizando extraordinariamente a antro
pología de nossos dias. Portanto, nunca é demais insistir que a hermenéurics
nao veio para erradicar os paradigmas, hoje chamados tradicionais, mas
para conviver junto a eles, tensamente, constituindo urna matriz disciplinar
efetivamente viva e produtiva. Tenho me valido de urna expressáo de Paul
Ricoeur, IagreJfe, isto é, o enxerto, para exprimir o papel que a hermeneuticadesempenha na matriz disciplinar. Um enxerto: .
a. de modera<,:ao na autoridade do autor - com a eliminacáo de qualquerdose de autoritarismo;
b. de maior atencáo na elaboracáo da escrita - com a obrigatória tematizacáo do processo de textualizacáo das observacóes etnográficas;
c. de preocupa<,:ao com o momento histórico do próprio encontro etnográfico - com a conseqüente apreensáo da historicidade em que se véern .
envolvidos sujeito cognoscente e objeto cognoscível; e, finalmente, porémnao em último lugar,
d. um enxerto de compreensao sobre os limites da razáo científica, ou dacientificidade, da própria disciplina - o que nao quer dizer abrir máo da
razáo e de suas possibilidades de explicacáo; para ser mais claro, quero
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A antropologia e a "crise" dos modelos explicativoJ
dizer que continuo acreditando na razáo e, para fazer eco as palavras de
Habermas, diria que a modernidade ainda nao se esgotou para cornecar
mos a levar muito a sério essa pós-modernidade.
Vamos examinar de maneira tópica - o que significa dizer de modo
nao extensivo - cada um des ses novos elementos que, gra<,:as aperspectiva hermenéutica, instalaram-se no interior da matriz disciplinar como
que a alimentá-la com os melhores nutrientes. É assim que, ao se falar de
autor(idade), estamos problematizando algo que nem sempre é levadoern conta pelo pesquisador, podendo, portanto, ser facilmente transfor
mado em autoritarismo, urna vez que o poder- lembremo-nos de Foucault
- sempre presente e do lado da sociedade a que pertence o pesquisador,
raramente é por ele próprio questionado. Tomemos apenas um aspecto
desse encontro etnográfico, que me parece emblemático por sua natureza
crítica: trata-se da relacáo pesquisador - informante, em que o poder do
primeiro contamina de resto toda a entrevista. Se nao levada em conta
essa situacáo, que condiciona o encontro etnográfico, sabemos hoje que
nunca será um bom comeco para a investigacáo antropológica. A condicáo de "estar lá" - o being tbere de que nos fala Geertz" - é, por diversas
razóes, das quais essa é apenas urna, essencialmente crítica. O "estar lá"
geni, poi outro lado, urna autonomía que, a rigor, é ilusória. "Eu estive lá,
portante sou testemunha do que vi e ouvi", nao passa de urna frase plena
de significados no mínimo dúbios! Porque sob a intencáo saudável do
pesquisador responsabilizar-se pelo fato que descreve e interpreta - ou
descreyendo interpreta -, esconde-se urna segunda inrencáo - é verda
de que nem sempre consciente - de dar legitimidade a seu discurso, qu~
se que dogmatizando-o ao leitor: e isso vale tanto para os seus pares comopara o leitor comum. O "estar lá" tende a nao admitir dúvidas... Eis o seu
caráter perverso.
11 Tanto o being tbere como o being bere sao expressóes bem apropriadas, utilizadas porClifford Geertz em seu interessante l17ork.r andIiues: Tbeanthropologist asautbor. A bibliografia a respeito desse movimento que se chama "antropologia interpretativa" reúnealgumas dezenas de bons artigos publicados em revistas especializadas estrangeiras.Entre as revistas nacionais, destaco o .Antrário Antropológico (n"' 83, 84, 85, 86 e 88),pioneiro em colocar em discussáo no Brasil a questáo hermenéutica.
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Roberto Cardoso de Oliueira
Porém, isso nao quer dizer que o "estar aqui" - being bere - naocarregue em si mesmo suas contradicóes. Geertz mostra o papel do ambiente universitário, desde o prosaico corredor, onde as palavras sao muitas vezes "jogadas fora", até o gabinete de trabalho do professor, passando pelas bibliotecas, onde, aliás, fazemos urna segunda pesquisa: a libraryfieldlvork. Nao discutirei aqui todos os aspectos assinalados por Geertz,sempre bastante arguto, em que pese sua inescapável tendencia ao preciosismo verbal... Gostaria de limitar-me exclusivamente a apontar a instanciado "estar aqui", gozando as condicóes do trabalho de gabinete, comosendo em si mesmas problemáticas, urna vez que, necessariamente, conduzem-nos adinámica dos "jogos de linguagem", próprios de nossa dis
ciplina e das disciplinas congéneres, de cuja atitude crítica, ou melhor,
autocrítica, nao podemos furtar-nos,O cerro égue tanto o estar no campo como o estar no gabinete fazem
parte de um mesmo processo de busca do conhecimento. Nesse sentido,a separacáo nunca é tao nítida como parece pretender Geertz, porquesempre "levamos o gabinete" conosco quando realizamos a pesquisa decampo, bem como "trazemos o campo" conosco quando voltamos aonosso lugar de trabalho. Entendo que essa separacáo, ainda que real emtermos de topos, nao determina nenhum processo esquizofrénico na personalidade do pesquisador - autor. Lernbro-me, quando ainda fazia etnología indígena, quantas vezes em meu diário de campo iniciava verdadeiros ensaios simultaneamente a etnografia realizada. Geertz, no entanto,
está certo quando - ao separar as duas instancias que, bem articuladas,
criam o produto antropológico - acentua esse processo como ?uas faces de urna mesma moeda.
Contudo, a maior importancia que observo nesses novos elementosque passam a ser absorvidos pela matriz disciplinar - pelo menos assimespero - é o da historicidade, ou, ern outras palavras, da conscienciahistórica que passa a habitar o horizonte do pesquisador. Escusado dizerque é a obra de Gadamer, Verdade emétodo, cuja primeira edicáo alemá é de1960, a grande responsável pela renovacáo do pensamento hermenéuticoque as ciencias humanas e, particularmente, a antropologia, haveriam deincorporar, naturalmente de forma variáve!. No caso específico de nossadisciplina, o que se verificou foi o recrudeseimento de certos componentes habituais do fazer antropológico, mas que, todavia, nao chegavam a ser
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A antropofagia e a "irise" dosmodelos expficatil'Os
tematizados na órbita da disciplina e, por esse motivo, nao ganhavam odesenvolvimento que mereciam. Refiro-rne, de modo todo especial, ao
¡-aprofundamento de urna maior reflexáo a respeito da relacáo sujeito / objeto e de seu mútuo condicionamento histórico. Essa reflexáo, entretane to, está longe de se inspirar em um historicismo de origem diltheyana, mas
apenas no segundo Dilthey, o hermeneuta. Recuperada essa hermenéutica
por Gadamer - passando, naturalmente, por Heidegger, seu mestre -,dá-se um tipo muito especial de articulacáo epistérnica: a que envolve a
historia e a linguagem, como o meio, ou o ambiente, em que se edifica aesfera da intersuijetÍlJidade. Em poucas palavras, e em urna sirnplificacáo
que espero nao prejudicar a apreensáo do que pretendo passar ao leitor,
diria que história, linguagem e intersubjetividade formam urna espécie detripé sobre o qual se assentam as bases de urna reflexáo sobre questóes
tradicionais na antropología, presentes na obra de nossos clássicos comoMalinowski, Boas ou Evans-Pritchard. Talvez a questáo mais central, porser justamente a questáo nuclear na constituicáo do conhecimento,-seja a
da relacáo sujeito cognoscente - objeto cognoscível, a que já me referi.De que elementos a antropologia se enriquece com a ternatizacáo de
questóes como a da relacáo entre observador e observado, pesquisador e
pesquisado, antropólogo e informante? Primeiro, pode-se dizer, que elaganha ao se interrogar sobre a especificidade de urna relacáo em que asduas partes - observador e observado - estáo igualmente situadas emum mesmo momento histórico, o que significa que o sujeito cognoscente
na~ estáimutavelmente engessado em urna posicáo intocável pelo objetocognoscível: ele, tanto como o outro, está inserido na dinámica do encontro
etnogréifico.12 Em termos epistemológicos, diria, em primeiro lugar, que a~
objetividade concebida pelo positivismo - em que o pesquisador dariatodas as cartas - é puramente ilusória. Segundo, e ern decorréncia disso,a relacáo que se impóe entre as partes envolvidas no processo cognitivo,
de monológica passa a ser dialógica, alterando a própria prática da chamadaentrevista com a transforrnacáo do pesquisador e de seu informante eminterlocutores. Isso significa que urna relacáo caracteristicamente marcada
12 Cf. o Capítulo 1 deste volume, no qual esse tema é especialmente examinado do ponto
de vista da "entrevista".
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Roberto Cardos» de Oliveira
como urna via de máo única, passa a ser de máo dupla, conseqüéncia do
diálogo tomado agora como essencial na busca - nem sempre e dificilmente alcans;ada, é verdade - de simetria nas relacóes entre pesquisador
e pesquisado.Nao faz rnuito tempo, o .Anuário Al1tropológico-88 publicou um interes
sante artigo de Vincent Crapanzano intitulado "Diálogo", no qual o autorvinculado ao movimento interpretativista norte-americano procura discutir esse tipo de apreensáo gadameriana da realidade examinando seu lugarno interior da própria experiencia antropológica. Se na filosofia hermenéutica de Gadamer, o diálogo e, corn ele, a cornpreensáo - ou Verstehen-, sao constitutivos do homern - daí ser ela urna hermenéutica ontológica-, para a antropologia, a relacáo dialógica conduz as partes envolvidas a
, urna compreensao dupla - o que significa que o outro é igualmente esti.. mulado a nos compreender... Isso ocorre gras;as aampliacáo do próprio
'- horizonte da pesquisa, incorporando, em alguma escala, o horizonte dooutro. Trata-se da conhecida "fusáo de horizontes" de que falam os herme
neutas. Contudo, gostaria de enfatizar que em nenhum momento o antropólogo deve abdicar de um posicionamento próprio no interior de seu horizonte, isto é, no ámbito de sua disciplina, ela própria urna "cultura científica" deorigem ocidental. Portante, nessa fusáo de horizontes, o pesquisador apenas abre espas;o aperspectiva do outro, sem abdicar da sua, urna vez queo seu esforco será sempre o de traduzir o discurso do outro nos termosdo próprio discurso de sua disciplina. Há urna sorte de transferencia desentido de um horizonte para outro. Apesar da "suspeicáo da razáo" levantada pela hermenéutica gadameriana," nem por isso essa razáo estariafadada i obsolescencia... Apenas estaríamos levando em conta seu s limites.
*E aqui chegamos a última parte destas consideracóes, momento emque precisamente vamos procurar mostrar como a compreensiio hermenéuticae a explicafao nomológica podem ser articuladas, antes de se oporem irrernediavelmente - como parecem querer os mais impenitentes pós-moderpos. Corn toda a argumentacáo anterior, espero ter deixado claro ao menos
13 Recomendo a leiturado pequeno ensaio de Gadamer, "The hermeneutics of suspicion",in Hemeneutics: QlleJtionJ andprospectJ, G. Shapiro eA. Sica (orgs.).
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A antropologia e a "atse"dOJ modelos explicatit'OJ
minha posicáo de nao reconhecer qualquer crise na antropologia, muitomenos urna que se poderia denominar de epistemológica. Isso só seria
possível se o p~radig;ma hermenéutico tivesse vindo - ainda que tardiamente - para eliminar os paradigmas da ordem, comprometidos com atarefa de explicar a cultura, a sociedade, enfim, o homem, em termosnomológicos, o que significa "naturalizando-os", na maioria das vezes; ese digo na maioria das vezes, e nao sempre, é que pelo menos no desdobramento levi-straussiano do paradigma racionalista - desdobramento,portanto, nao mais naturalizante, ainda que nomológico, e, por conseguinte, igualme-nte da ordem -, o parámetro nao é mais a ciencia natural, masa lingüística, urna ciencia humana. Assim, em lugar de eliminar todos osparadigmas da ordem, observamos que a hermenéutica veio travar com
eles urna batalha nao de morte, mas de vida, revivificando-os e introduzindo na matriz disciplinar urna tensáo extremamente saudável, em nada
parecida com urna crise.A essa altura, gostaria de recorrer a dois autores filósofos, cujas refle
xóes sobre a compreensáo e a explicacáo abrem boas pistas para o traba
lho do antropólogo. Sao eles Karl-Otto Apel e Paul Ricoeur. Ambos procuram mostrar, cada um a seu modo, como o explicar e o compreenderpodem estar associados em empreendimentos cognitivos específicos. Limito-me a mencionar apenas algumas idéias desses autores, ainda que demaneira muito abreviada, mas que justificam-se a título de sugestáo paraleituras mais completas e, certamente, mais avancadas, que sempre poderáo ser levadas avante pelo leitor interessado. Proponho dois comentários
inspirados ern um des ses dois autores.O primeiro comentário toma por referencia o ensaio "Cientística, her- ~,
menéutica e crítica das ideologias", no qual Apel desenvolve a perspectivade urna "rnediacáo dialética entre a explicaféio das ciencias sociais e a compreensdo das tradicóes de sentido, própria das ciencias histórico-herrnenéuti
cas"." Embora suas reflexóes estejam orientadas substancialmente para a
14 Cf. Karl-Otto Apel, "Scientistic, hermeneutics and the critique of ideology", in T01J}ardJa tran.rformation of philoJophy, Nova York, Routledge & Kegan Paul, 1980, p.n; ou naedicáo espanhola, La transformación de lafilosofia, tomo Il, Madri, Taurus Ediciones,1985, p. 119.
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Roberto Cardoso de O!iI)eira
questáo ética - questáo essa que, dada sua relevancia, eu mesmo abordei
em outras oportunidades com base nas teses desse autor _,15 o que nos
interessa agora assinalar é que Apel, ao reconhecer a "crítica das ideolo
gias" - a mesma de que fala Habermas -, abre urna via bastante rica
para a investigacáo em ciencias sociais e, de um modo todo especial, em
antropologia. Se as ciencias naturais empírico-analíticas, admitidas habi
tualmente como ciencias, e as ciencias hermenéuticas do espírito, sociais o«
humanas, estáo, as prirneiras, orientadas pela infindável busca de oijetúidade- por meio da qua! se exercita a razáo instrumental, interventora na natu
reza - e, as segundas, pela necessidade de estabelecer sentido nas acóes
observadas - isso em conseqüéncia da obrigatória comunicabilidade
intersubjetiva com vistas a acordos -, o que se conclui é que, do ponto de
vista de nossa disciplina, tanto um quanto outro tipo de ciencia nao deixa
de desempenhar uma importante funcáo no interior da matriz disciplinar.
Os paradigmas que denominei "da ordem", comprometidos com a obje
tividade custe o que custar, podem ser considerados como guardando
urna relacáo dialética com o paradigma hermenéutico, ele próprio inexo
ravelmente comprometido com as conexóes de sentido inerentes aesfera
da intersubjetividade. Nao tomando Apel - ou Habermas - ao pé da
letra, poderíamos dizer que mediante a crítica - e nao apenas a "crítica
das ideologias" -, que permanentemente deve habitar o espa<;o da ma
triz disciplinar, o antropólogo estaría sempre visualizando os limites dos
diferentes paradigmas componentes da matriz) o que o levaria a transcendé
los na prática da investigacáo.
A transcendencia dos paradigmas, proporcionada pela admissáo tácita
de que eles encontrarn-se em permanente tensáo - chame-a dialética ou
nao -, o importante é reconhecer acrescente unidade que marca a articu
lacáo entre os paradigmas "da ordem" e o hermenéutico, a partir do
momento em que - e aqui me inspiro em Ricoeur - nao se trata de uma
15 CE. Roberto Cardoso de Oliveira, "O saber, a ética e a acáo social", in Manuscrito:&vista IntemaaonaldeFilosofia, vol. XIII, na2, out. 1990, pp.7-22; "Prácticas interétnicasy moralidad: Por un indigenismo (auto)crItico", inAménca Indígena, vol. L) n" 4, out>dez. 1990, pp. 9-25; "Antropologia e moralidade", in Rstnsta Brasileira de Ciencias 50dais/Anpocs, ano 9, na24, 1994, pp. 110-121.
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A antropo!ogia e a "aise" dos modelos o.plicatil'OS
questáo de método o que separa os primeiros do último paradigma. A expli
cacao, inscrita programaticamente nos paradigmas "da ordem", nao coli
de com a cornpreensáo constitutiva da hermenéutica. Assim nos esclarece
Ricoeur:"
Sobre o plano epistemológico, primeiramente, diria que nao há dois métodos, o método explicativo e o método compreensivo. Para falar estritamente,apenas a explicacáo é metódica. A cornpreensáo é sobretudo o momento naometódico que nas ciencias interpretativas se cornpóe com o momento metódico da explicacáo. Esse momento precede) acompanha, fecha e assim envo/ve
a explicacáo, Em compensacáo, aexplicacáo desenuotoe analíticamente a compreensáo. Esse elo dialético entre explicar e compreender tem por conseqúéncia
urna relacáo rnuito complexa e paradoxal entre ciencias humanas e ciencias danatureza."
Para melhor entendermos isso nos' termos de nossa disciplina, cabe
ainda algum esclarecimento sobre a questáo do sentido alcancado pela
compreensáo, Diria que enquanto a explicacáo dá conta das dimensóes do
real susceptíveis de tratarnento metódico - por métodos funcionais elou estruturais, por exemplo -, a compreensáo capta aquilo que Ricoeur
chama de "excedente de sentido" - surcroit de sens. Nao é difícil para nós
apreendermos, mesmo intuitivamente, o que significa esse excesso de senti
do, desde que consideremos que tudo aquilo que possui a!guma significacáo
que seja irredutível a métodos, pode ser de alguma maneira recuperado pela
via da cornpreensáo, Aliás, é por aí que nos reencontramos com a distincáo
gadameriana entre "verdade" e "método", segundo a qua] toda a "verda
de" - ou simplesmente a veracidade - nao se alcanca pelo caminho
exclusivo do método. Esse algo mais que lhe escapa nao só pode, tnas
deve ser alcancado pela via da cornpreensáo. Se tomarmos isso como um
alvo perfeitamente plausível da antropologia, estaremos admitindo que
15 Cf.Pau! Ricoeur, "Expliquer et comprendre: Sur que!ques connexions remarquab!esentre la théoriedu texte, la théoriede l'action et la théoriede l'histoire", in DII texteaI'aaion. Essais d'hmnéneutique) II. Essa referencia a Ricoeur e atemática da dialética dacornpreensáo e da explicacáo é recorrente em váriosensaios deste volume. Todavía,sugiro umaespecial atencáo ao Capítulo 4) referente aolugar"ou em lugar"do método.
16 Idem, p. 181.
71
Roberto Cardoso de Oliveira
nossa matriz disciplinar expressa com razoável fidelidade a atual pis/emedadisciplina. Quera crer que os argumentos até aqui apresentados conduzema essa assercáo, e gostaria de dizer que nao me refiro exclusivamente aantropologia que fazemos no Brasil, porém adisciplina em sua dimensáoplanetária. Todavia, nao poderia dizer o mesrno do ponto de vista deeventuais crises institucionais - que envolvem a organizacáo do trabalhocientífico ou mesmo sua própria viabilidade em países carentes de tradicáo académica ou, ainda, submetidos a regimes discricionários da liberdade intelectual. Entre nós, atualmente, a ordem institucional- em que pesem as dificuldades da conjuntura económica - é ainda favorável a empreendimentos de pesquisa e de ensino avancado, se nao na maioria dosdepartamentos de antropologia do país, ao menos em urna dezena deles,onde a disciplina já se consolidou ou está a ponto de consolidar-se. Comose ve, tenho uma visáo otimista sobre a antropologia que fazemos noBrasil. SÓ espero que o tempo nao me desminta.
Capítulo 4
o LUGAR - E EM LUGAR- DO MÉTODO
La méthode est nécessaire pourla recherche de la veriré,*
Dizer que a sociologia, como ciencia, surge como exercício de métodoé o que se pode depreender da leitura das Regras do método sociológico (1895)que completa o seu centenário. I E para compreendermos bem qual olugar do método na sociologia e em disciplinas afins, ou o porque de suanecessidade - para aludirmos a nossa epígrafe cartesiana -, náo podemos deixar de enfrentar a questáo do cientismo, particularmente em suafeicáo racionalista, que secularmente tem preocupado os cientistas sociais.Diante disso, procurarei, em primeiro lugar, nessa comemoracáo dos cemanos dessa seminal obra de Durkheim, esbocar um quadro sobre a insercáo da sociologia nascente na tradicáo do racionalismo francés. Em segundo, examinarei alguns aspectos da implantacáo da postura metódicaem uma sociologia imaginada como urna verdadeira ciencia natural dosfatos sociais. Finalmente, tentarei mostrar, dentro de urna perspectiva queentendo moderna, os limites do método, ou de como em determinadascircunstáncias da investigacáo sociológica ou ainda, mais precisamente, emsua acepcáo antropológica, o que poderia estar em seu lugar.
*A ~e-.:'tao d()~}~1ét.c>'do~e_mt're acompanhou a busca da verdade. E,
certamente nao corneca com Descartes, mas o antecipa ero séculos, se levarmos em conta o próprio pensamento grego, com o Organon de Aristóteles,ou, ainda, já na contemporaneidade de Descartes, o Novum Organum deBacon. E, na linha empirista desse último, ainda poderíamos mencionar,
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* Descartes, "Regle IV", ReglespOllr la direaion deI'espril.
Conferencia de abertura do Colóquio "Durebeir»: 100Anos d'As Regras doMétodo Sociológico", realizado no Departamento de Ciencias Sociais da Universidade Federal doParaná, em Curitiba, nos días 2 e 3 de outubro de 1995.
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Roberto Cardoso de Oliveira
entre vários outros expoentes do pensamento anglo-saxáo, o grande lógico da inducáo, por sua vez contemporáneo de Comte, o ingles John StuartMilI. Com seu A system iflogic ratiocinatiue andinduaite, precisamente em seulivro VI, Stuart Mili procura mostrar a possibilidade de aplicacáo da lógicainduciva, comprovadamente apta a dar conta dos fenómenos naturais,'agoraenderecada aos fenómenos sociais - ou "morais", na terminologia
da época. O mesmo teor empirista - característico de seus antecessores,como Hobbes, Locke ou Hume, e do próprio Bacon - é a marca dessaobsessáo pelo método, encontradica também na esteira de outra tradicáo:
- -a racionalista. Isso significa que a necessidade de urna investigacáo norteadapelo método nao é monopólio nem do pensamento empirista, nern doracionalista, urna vez que ambos o tomam como idéia organizadora, sem
. a qual nao se logrará impor ordem no mundo das coisas e dos conceitos:seja pela nitida separacáo cartesiana entre pensamento e extensáo, pela qual
se assegura a objetividade de um espirito debrucado sobre a realidadeexterna, a cornecar pela de seu próprio corpo; seja pela dornesticacáometódica de urna experiencia descontaminada da presen<;:a perturbadorado sujeito cognoscente. Intelecrualistas e empiristas, em que pese a diferenca de caminhos, confluem na mesma busca de objetividade.
Durkheim, como nao podia deixar de ser, vai se filiar a tradicáo intelectualista-racionalisra,? e tomar como fonte de inspiracáo para seu vigo=.
roso cientismo na programacáo da sociologia - perdida a jovem discipli-, na, em seu modo de ver, nas elucubracóes metafísicas de Comte ou nasgeneralizacóes mais filosóficas do que sociológicas de um Spencer - a biolo
gia, melhor dizendo, irá inspirar-se no organicismo biológico. Caberia perguntar porque nao adotou a mathesis como paradigma de sua sociologiaem lugar da biología? Afina! de contas, nao estaria o pensamento cartesiano
2 Nao é demais esclarecer que o termo racionalista - ou racionalismo - envolve umconceito menos extenso, logicamente falando, do que infelectualúfa ou infelectllalúmo,urna vez que enquanto este abrange tipicamente o pensamento filosófico europeucon tinental- do século XVI ao século XIX-, aquele restringe-se aos intelectualistasmais conhecidos como racionalistas, isto é, herdeiros diretos de Descartes - comoLeibniz ou mesmo Spinoza, por exernplo, Todavía, o binomio parece-me eloqüentepara nominar urna fradirao - conceito que uso no sentido gadameriano - erncontraste ao pensamento filosófico típico anglo-saxáo,
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~(_,,1.
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o IlIgar - eem IlIgar - dométodo
impregnado das matemáticas? Ou mesmo da física, tivesse ele tomado avia kantiana, afinal de contas tao inspiradora de sua sociología das categorias do espirito ou da "consciencia coletiva". Essa questáo nao será respondida aqui, infelizmente sequer será encaminhada, pois demandaria umrumo diferente do escolhido para as considerac;:6es que pretendo fazer.Porém, vale mencioná-Ia como problema relevante, urna vez que sua simples mencáo vai permitir-nos tematizar com mais vigor o biologismo presente na base da metodologia durkheimiana. Antes de explorarmos essadimensáo tao determinadora do método durkheimiano, cabe dizer algu
ma coisa sobre o conteúdo efetivamente racionalista de seu pensamento.Desejo recordar o caráter eminentemente conceitual desse pensamen
too A saber, o papel do intelecto nao somente na construcáo do conhecimento, mas, sobretudo, como foco e objeto de indagacáo na pesquisasociológica. Em outra oportunidade, pude discorrer um pouco sobre as"categorias do entendimento sociológico", quando procurei tracar o perfil do paradigma racionalista nas figuras de Durkheim, Lévy-Bruhl e Mauss- e, em sua feicáo atual, Lévi-Strauss e Louis Dumont.' Estava procurando, entáo, mostrar a contribuicáo racionalista amatriz disciplinar da antro
pologia social. Agora pretendo unicamente registrar o papel desempenhado pelas categorias, portanto dos conceitos eminentes, isto é, aqueles queconstituem a "ossatura da inteligencia", na sugestiva metáfora durkheimiaf!a. Isso significa que o homem nao pensa sem a ajuda de categorias. Saoelas, particularmente as eminentes, aquelas que organizam a realidade social ou nao - de modo a imprimir nela a inteligencia do espirito, a seumodo pré-formador dessa mesma realidade. Como já se observou, trata-se de urna heranca kantiana, via o criticismo de Renouvier e a lógica d~s
representacóes de Hamelin- esse último, por sinal, pouco lembrado -,heranca essa consolidada no racionalismo de Durkheim. Será pois nessatradicáo que devemos encontrar o lugar do método durkheimiano; e é na
perspectiva desse lugar que podemos ler e interpretar Les regles de la métbodesociologique.
*3 Trata-se do segundo capítulo de rneu livro Sobre o Pensamento Antropológico, original
mente publicado no .AnuárioAntropológico-81 , pp. 125-146, com a1gumas incorrecóes,
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L..'- _
Roberta Cardoso de Oliveira
Seguramente nao vejo necessidade de expor a estrutura de Les regles dela méthode sociologique, tao conhecida que é essa obra do público de cienciassociais. Gostaria de me limitar apenas áquelas passagens em que estáo bem
configuradas as questóes centrais de meu argumento: a da objetividade, rner
ce do recurso ao método, e da organicidade do todo social, de conformida
de com o apelo que faz ao paradigma biológico. Ambas as questóes mar
cam - em meu modo de ver - o discurso naturalizante de Durkheim
em seu esforco de conferir cientificidade a nova disciplina.
Seiecionei, assim, urnas poucas passagens, porém o suficiente para construir o argumento. Urna delas remete-nos a antinomia objetividade-subje
tividade, constitutiva do próprio conhecimento científico, na medida emque o primeiro termo sobrepóe-se ao segundo. Escreve Durkheim no
Capítulo que dedica as regras relativas a observacáo dos fatos sociais que,
como todos sabem, tais fatos deveriam ser considerados como "coisas":
Corn efeito,urna sensacao é tanto mais objetiva guando o objeto, ao gual dase dirige, tenha maior fixidez;pois a condicáo de toda objetividade está naexistencia de urn ponto de sinalizacáo, constante e idéntico, ao qual a tepresentacáo possa serdirigidae que permite eliminar tudo aquilo que sejavariáve/,portante subjetivo."
Isso sugere que é precisamente a variacáo o viláo da história, na medi
da em que ela implica o elemento individual, portante variável, perturbador de qualquer tentativa de generaliza<;:ao e, com ela, a de se alcancar o
conhecimento objetivo. Assim, continua Durkheim,
Quando [...] o sociólogo tenta explorar urna ordem qualquer de fatos sociais,deve se esforcar em considera-los por onde se apresemam isolados de suasrnanifestacóes individuais.l
Como lograr um conhecimento sociológico - por tanto, científicodo individual, do particular? Durkheim está muito consciente disso, por
tanto, quando afirma que
o /I/gar- eem II/gar- do método
Por fora dos atos individuais que suscitam,os hábitos coletivos se exprimemsob formas definidas, regras jurídicas,morais, ditos populares, fatos de estrutura social etc. Como essas formas existem de urna maneira permanente,[oO.] das constituem um objeto fixo, um padráo (étalon) constante que estásempre ao alcancedo observador e que nao dá lugaras irnpressóes subjetivase as observacóes pessoais.
Fica muito claro aqui o quanto a subjetividade do sujeito cognoscente
e a individuacáo - e, com ela, a variacáo - do objeto cognoscível sur
gem como quest6es que demandam sua neutralizacáo pelo método, por
algo que permita urna sorte de medida ou um parámetro de avaliacáo,
sem o qual torna-se inviável qualquer pretensáo a cientificidade.
Inspira-se Durkheim, como já mencionei, em urna ciencia natural, po
rém nao mais na física, nem mesmo na matemática,' mas na biologia. Anocáo de organismo, de sua estrutura e das funcóes que seus diferentes
órgaos desempenham váo proporcionar urna boa metáfora da sociedade, de sua organizacáo ou morfologia e de seu funcionamento ou fisiolo
gia. Dessa mesma metáfora já Auguste Comte havia se valido. Porém o
que separaria esses dois pensadores seria precisamente a prerrogativa dométodo, para Durkheim, como procedimento capaz de eliminar rudo o
que de filosófico ou de metafísico predominava na sociologia comteana,inviabilizando-a como ciencia. As próprias "regras relativas a constituicáo
dos tipos sociais", propostas no Capítulo IV de Les regles de la méthodesociologique, estáo condicionadas por um biologismo a todo instante rnanifesto. E em sua constituicáo dos tipos sociais, suscetíveis de identificacáo e
de descricáo sociológica, recorre a nocáo biológica de espécie, tornando-a espéde social. Diz'dé" .
Esta nocáo de espécie socialtem, aliás, a vantagem de nos fornecer urn meiotermo entre as duas coricepcóes contrarias da vida coletiva que tem sido,durante longo tempo, partilhado pelos espíritos:quera dizer o nominalismodos historiadores e o realismo extremo dos filósofos.'
L.
4
5
É. Durkheim, Les riglu de la méthode soeiologiql/e, estou me valendo da décima prirneiraedicáo da Presses Universitaires de France, de 1949, p. 44. O grifo é meu.
Idern, p. 45.
76
6
7
É. Durkheim, Les riglu de laméthode soeiologique, pp. 44-45.
Idem, p. 76. Esse realismo que Durkheim atribui aos filósofos sigllifica que o realexistente é o da humanidade e sao dos "atributos gerais da narureza humana quederiva toda evolucáo social" (p.77). Quanto ao nominalismo dos historiadores - sebem que nao de todos, corno adverte o próprio Durkheirn -, significa que as socie-
77
Robeno Cardase de OlüJei,.o
Para esses filósofos, por exemplo, tipos sociais como tribos, cidadesou nacóes seriam apenas "cornbinacóes provisórias e contingentes semrealidade própria"," ao mesmo tempo em que para os historiadores essesmesmos fenómenos nao poderiam ser objeto de saber científico.
E é contra essas duas modalidades de inferencia sobre o social que/ Durkheim opóe o método como a única via possível de conducáo ao
conhecimento científico. Para Durkheim a realidade social nao pode ser·,.... objeto apenas de urna
filosofia abstratae vagaou de monografiaspuramente descritivas. Porém sepode escapara essa alternativadesde que se reconheca que entre a multidáoconfusade sociedades históricase o conceitoúnico,mas ideal,de humanidade, há intermediários: sao as espéciessociais.?
E isso porque as instituicóes sociais - morais, jurídicas, económicas,entre outras - "sao infinitamente variáveis", lembra Durkheim; variacóesessas que, em verdade, jamais deixaráo de se constituir em dados suscetíveis de apreensáo pelo pensamento científico. E é precisamente aí qt:e elefaz recair urna de suas mais pertinentes críticas a Comte, mostrando que ofilósofo jamais soube reconhecer a existencia das espécies sociais, tomando - por via de conseqüéncia - o progresso das sociedades comoequivalente ao de um único POyo: a humanidade. E no esboce de suateoria das espécies sociais, Durkheim recorre naturalmente a sua conhecida classificacáo dos tipos sociais, seguindo, portanto, no limite, a orientacáodassificatória de urna morfología de inspiracáo biológica - aliás, já presente na sociología de Spencer, como o próprio Durkheim reconhece, emque pesem as duras restricóes que nao deixa de dirigir áquela classificacáo,
Haveria muitos outros argumentos durkheimianos baseados em analogías com a biología, como o que sustenta a independencia do hábito frente a suautilidade, mostrando que urna prática social- ou urna instiruicáo - podemudar de funcáo sem que seja mudada sua natureza, ao mesmo tempoque pode continuar existindo pela simples forca do hábito. E, reconhece
o lugo,.- eem lugo,.- dométodo
ainda, apoiando-se em seu forte biologísmo, que há "ainda mais sobrevivencias na sociedade do que nos organismos"; e conclui afirmando
serurnaproposicáo verdadeiratanto em sociología quanto em biologíaque oórgáo é independente da funcáo, isto é que, nao obstante permanecendo omesmo, ele pode servir a fins diferentes.10
Em surna.jráo é difícil entender a razáo da biología ocupar tao plenamente o lugar da matemática ou da física como modelo de cientificidade.Nao só pela presen¡;a intermitente, porém continua, de Comte e de Spencer,no discurso durkheimiano, como seus interlocutores mais presentes, masainda por ser a biología urna ciencia da vida, suficientemente já consolidada para servir de parámetro para urna sociología ainda em processo deconstituicáo.
Gostaria agora de voltar a atencáo para um problema que me parecedos mais interessantes no pensamento durkheimiano, urna vez que mostraurna nítida continuidade entre Les regles dela méthode soaologiqi« e a epistemo-.logía clássica, seja ela racionalista ou empirista. Refiro-me ao exorcismometódico a que subrnete as prenoiiesque povoam todo pensamento, levando-o a distorcóes inadrnissíveis a investigacáo científica. Nao só essa crítica as idéias preconcebidas, portante "nern claras nem distintas", é umelemento basilar do cartesianismo, como vai encontrar em filósofos ditosempiristas, como Bacon, o seu desenvolvimento mais típico, marcador doobjetivismo científico, Trata-se de renunciar de urna maneira de procederque está na origem mesrna de ciencias como a própria física. ApontaDurkheim que Bacon, seguindo Aristóteles, entende que muitas nocóescorno as que estáo na base da alquimia frente a química, ou da astrología.
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frente a astronomía, nao sao mais do que no/iones vulgares ou praenotiones.
Sa~. esses idola [diz Durkheim, valendo-se aqui de um termo de Bacon],espéciede fantasmas quedesfiguramo verdadeiro aspectodas coisas e que ostQIIlaITl0s, portanto, pelas coisas mesmas."
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9
dades constituem "individualidades heterogéneas, incomparáveis entre si", sendo "todageneralizac;:ao quase impossível" (ibidem).
É. Durkheim, Les regles de lo méthode sociologjque, p. 76.
Idern, p. 77.
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lOÉ. Durkheirn, Les regles delo mithode sociologique, p. 91.
11 A teoría dos ídolos ou dos erros do espírito, constante do Novlfm O"gonJlIlJ de Bacon,aponta para quatro espécies de erros, que vale a pena rememorar aqui, ainda quesucintamente:1. os ídolo tribus que, por defeito do espírito, consistern ern urna sorte de inércia ou de
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Roberto Cardoso de Oliteira o lugar - eem lugar - do método
*Vamos nos ater agora a algumas consideracóes sobre a possibilidadede urna convivencia da subjetividade e das prenocóes no interior de urna
sociologia que se pretenda moderna, - e nao necessariamente pós-moderna - a despeito da crítica durkheimiana. Minha intencáo nao é, natu
ralmente, rebater críticas do mesmo teor, pois afinal de contas elas já se
E se tem sido assim para as ciencias naturais, por urna razáo mais forte deveser o mesmo para a sociología. [oo.] Ora, é sobretudo em sociología que essasprenocóes, para retomar urna expressáo de Bacon, estáo em estado de dominar os espíritos e de se substituir as coisas.F
E pode-se dizer que isso é especialmente importante em urna discipli
na como a sociologia pelo fato de que, segundo Durkheim, ela tem tratado quase exclusivamente de conceitos, nao de coisas. E é aí que Durkheim
vai identificar urna das maiores mazelas da sociologia anterior, pois nemmesmo Comte, que já havia reconhecido o caráter de coisa dos fenóme
nossociais, conseguiu escapar de tomar as idéias - e nao as coisas
como objeto de esrudo, Exemplo disso estaria na concepcáo vulgar queComte tinha da nocáo de humanidade e de seu desenvolvimento históri
co. Podendo-se dizer o mesmo de Spencer que, mesmo abandonando oconceito de humanidade, o substitui pelo de sociedade como objeto de
ciencia, porém caindo no mesmo erro de Comte por fazer "desaparecera coisa de que fala para por em seu lugar a prenocáo"," isto é, tomando aidéia que possui de sociedade sem preliminarmente submeté-la, comocoisa social que é, a investigacáo metódica.
14 Cabe lembrar que esse statusnomológico impóe-se a Durkheim por meio das analogias que faz com as ciéncias duras de seu tempo, portante bem antes do desenvolvimen10 da lingüística estrutural, por exemplo, disciplina Joft, na qual seu herdeiro Lévi-
Strauss vai se inspirar.
81
encontram incorporadas naquilo que poderíamos considerar como o momento metódico nao apenas da sociologia, mas das ciencias sociais tomadasem seu conjunto. Nesse sentido, nao há que refutá-las, pois estáo na basede um conjunto de disciplinas bem consolidadas e marcadas pelo predomínio do método. O que me anima abordar esses dois temas é a inques
tionável retomada - a bern dizer, tardia - de um ponto de vista instituido no século passado pela crítica romintica as ciencias sociais positivas
pelo fato de haverem adotado as ciencias naturais corno referencia para- i.
digmática, entáo consideradas com as únicas capazes de conferir cientifici
dade a qualquer modalidade de conhecimento. Refiro-rne a antinomia
Natll1wissenscbaft e Geisteswissenscbaft estabelecida por Dilthey. Se bem queesse filósofo nao tenha ido além do que estou chamando - inspirado emRicoeur _ momento metódico, por sua preocupa<;ao em lograr a rnesma obje
tividade alcancada pelas ciencias naturais;' os argumentos que sustentamaquela antinomia estabeleceram vigorosamente os limites entre um e outro
tipo de ciencia.Lembremo-nos que todo o esforco metódico de Durkheim concen-
tra-se na busca da explicafño sociológica, conferindo a ela o que poderíamos chamar de status nomológico, marcado pela busca de leis ou de regras comuns as ciéncias duras;~ E, por explica<;ao, devemos entender, latosensu, o estabelecimento de conexóes causais e funcionais capazes de serem
traduzidas em proposi<;6es. Esse conhecimento proposicional passa a ser,
portante, o atestado de cientificidade da sociología ou de qualquer outra disciplina das ciencias sociais. Frente a essa forma de conceber o conhecimen
to, autores modernos como Gadamer - para citarmos um pensadorradical que aborda a questáo - opóe a nocáo de compreensño - Verstandnfs_ e de compreender _ Verstehen -, desenvolvendo, em seu notável livroVerdade e método, urna crítica de inspira<;ao heideggeriana a pretensáo dométodo científico de monopolizar a busca da verdade. Verdade que seria
alcancada supostamente pela via única da explicacáo metódica. E nessa
I80
preguica que nos leva a generalizar sem maiores cuidados;2. os idola specus, segundo os quais nos encontramos como que presos em urna caverna- alusáo ao mito da caverna de Platáo -, cingidos a inércia dos costumes e daeducacáo;
3. os idola-fori ou ídolos da prac;:a pública que concernem as palavras que falseiam nossoconceito das coisas; e .
4. os idola theatri, originários do presúgio das teorias filosóficas, no interior das quaisacabamos por ficar igualmente presos.Cf. Émile Bréhier, Historia dela Fitosofia, Tomo JI, pp. 48-49.
É. Durkheim, Les regles dela méthode sociologique, p. 18.
Idem, p. 21.
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L ,
Roberto Cardoso de Oliteira
explicacáo pela via do método - o que o nosso autor aponta como sendourna confusáo proporcionada pelos cultores da ciencia - estaria a identificae;:ao da "verdade" com a "certeza". Eis como se manifesta Gadamer, antecipando-se, em alguns anos, ao que iria formular em seu Verdade emétodo:
Metho~~~i~ca "carninho parair em busca de algo". O metódico é poderpercorrer de noVO-üc:U11illh-ü-andádo, e tal é 6 modo de pi'üEed¿i"da-denciaMas isso supóe necessariamente urna restricáo nas pretensóes de alcancar averdade. Se a verdade (Ilentas) supóe verificabilidade - em urna ou outraforma -, o critério que mede o conhecimento nao é já sua verdade, senáo suacerteza.
E Gadamer conclui seu argumento:
Por isso o autentico ethosda ciencia moderna é - desde que Descartes formulara a c1ássica regra de certeza - que ela só admite como satisfazendo ascondicóes de verdade o que satisfaz o ideal de certeza. 15
A despeito dessa afirrnacáo de Gadamer, que transcende a questáo
epistemológica propriamente dita - a medida que envolve todas as dimens6es da existencia humana e nao exclusivamente a da ciencia -, interessa chamar a atencáo para a substituicáo do ideal de verdade - que,
como tal, sempre desempenhará um papel fundamental na busca do co
nhecimento, quer como idéia diretri:v quer como idéia organizadora dessa mesma busca -, por outro ideal - o de certeza -, absolutamente dependente de métodos! Nao precisamos evocar o que todos aprendemos come sobre o método: em suma, que ele "mensura" o que pode ser por ele"mensurado", excluindo, por via de conseqiiéncia, tudo aquilo que naoesteja previsto como "mensurável" - sendo que, nada custa lembrar,sempre podemos substituir a idéia de rnensuracáo pelas de descricáo, avaliacáo ou, mesmo, explicacáo, de maneira a inscrevermos nas possibilidades de aplicacáo do método também critérios qualitativos.
Mas o que pode estar no lugar do método na busca de conhecimento?Vejam bem: nao se trata de substituir o método em tudo, mas apenassaber o que pode estar em seu lugar quando - e somente quando - deleescaparem realidades tangíveis por qualquer outra modalidade de conhe-
15 Qué esla verdad? apud Gadamer, Verdady metodo JI, p. 54.
82
~,id
o IlIgar- eem IlIgar- do método
cimento que nao seja metódica. Isso quer dizer que nao se trataria, aocontrário, de substituir a explicacáo, tornando-a apenas ilusória, simplesmente pelas possibilidades abertas grae;:as ao ato de compreender T/érsteben! Se nao sao certezas - e por que haveriam de ser? - o conhecimento obtido pela via da cornpreensáo, que tipo de conhecimento éesse? Na esteira da explicacáo ou da construcáo de proposicóes verificáveispelo exercício do método, a cornpreensáo nao teria entáo outra funcáoque a de formular hipóteses sujeitas, sempre, a confirrnacáo pelo conhecimento - verdade? -, apenas alcane;:ável pela via metódica, em um curn
primento claro do ideário cartesiano." O que procurarei mostrar aqui, adespeito da importancia do método e de suas conquistas iniludíveis naformulacáo de proposie;:6es verificáveis - e aqui prefiro restringir-me arninha disciplina, a antropologia social, para dizer que nela ternos alcancado esse mesmo desideratum, como, por exemplo, na construcáo de teoriasde parentesco -, será precisamente o teor do exorcismo feito pelo pensamento hermenéutico as limitacóes impostas pelo cientismo as dirnensóes da subjetividade e das prenoe;:6es no processo de conhecimento obtido por nossa disciplina e por outras congéneres,
Cornecemos pelas prenoe;:6es que, com Gadamer, passam a ser chamadas de preconceitos - Vorhabe, Vorsicbt e Vorgrijj, em que a reiteracáo doprefixo uor, "pré", comunica a idéia de anrecipacáo, de algo previsto, se
assim posso me exprimir. Suas reflex6es sobre o problema dos preconceitos ou prejuízos sao conduzidas de maneira bastante densa em urna dassecóes mais interessantes de seu Verdade emétodo, intitulada "Fundamentospara urna teoria da experiencia hermenéutica". Vamos dar a palavra aG~ame~ ~
16 Devo mencionar aquí, por sua posicño caudatária ao cientismo prevalecente a tantosquantos pensam o conhecirnento exclusivamente em termos Ilurninistas, o filósofoMichael Martin, em seu interessante e controvertido artigo "Understanding andparticipant observation in cultural and social anthropology", in Versteoen: Suijectit1eunderstanding in the social saences, pp. 102-133. Interessa-nos a argumentac;ao de Martinpor cingir especialmente a problemática de nossa disciplina. Nesse sentido, ver tarnbém meu artigo "A dupla interpretacáo na antropologia", Capítulo 5 deste volume, noqual trato desse tema rnais extensamente.
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'( »,
Roberto Cardoso de OlilJeira
Sóeste reconhecimento do caráteressencialmente preconcebidode toda cornpreensáo confere ao problema hermenéutico toda a agudeza de sua dimensáo."
Mas que reconhecimento é este? É precisamente aquele feito por Heidegger sobre o caráter pré-estruturado do conhecimento. Essa pré-estruturacáo do conhecimento significa o envolvimento do sujeito cognoscente
e do objeto cognoscível no contexto do "mundo da vida" - LebensJvelt- ou, em outras palavras, significa que mais do que conhecermos, nós reconhecemos, ou, ainda, só conhecemos aquilo que nós estamos (pre)paradospara conhecer. Em termos antropológicos diríamos que, no processo deendoculruracáo pessoal ou grupal, recebemos um quadro de categorias
culturais condicionadoras de nossas possibilidades de conhecimento. Há,portanto, urna sorte de socializacáo antecipada por meio da qual se viabiliza nossa pré-compreensáo. Se isso é verdadeiro - e nada indica que naoseja - entáo se resgata a nocáo de preconceito da esfera da subversáoepistérnica a que foi lancada pelo Iluminismo.
;
Urna análiseda história do conceito mostra que só na Ilustracáo adquire oconceito deprtjuízo o matiz negativo que agora possui. Em simesmo, "prejuízo" quer dizer um juízo que se forma antes de sua validacáo definitiva detodos os momentos que sao objetivamente determinantes. [...] Por isso, emfrancés [e poderíamos dizer igualmente ern portugués] "préjudice", iguala"praejuclicium", significa também simplesmenteprejuízo, desvantagem, dano.Nao obstante, essanegacáo é apenas secundária,é a conseqüéncia negativadeurna validezpositiva, o valor prejuclicial de urna pré-decisáo [...]. "Prejuízo"nao significapois em nenhurn modo juízo falso,senáo que está cpntido emseu conceito o que pode ser avaliadopositivamente ou negativamente. lB
Daí, sentir-se Gadamer autorizado a falar em prejuízo ou preconceitopositivo e negativo, legítimo e ilegítimo." A desqualificacáo de qualquer
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o h!gar - eem IlIgar - dométodo
tipo de prejuízo no processo de cognicáo foi, portanto, a heranca deixada
pelo cientismo absoluto reinante na Ilustracáo.Exorcizado o fantasma das prenocóes diante da inevitabilidade da pre
senca dos prejuízos ou dos preconceitos, urna vez que eles sao componentes constitutivos de um conhecimento antecipado, cabe verificar emque medida a questáo da subjetividade passa a sofrer urna refracáo aos
olhos da hermeneutica, por intermédio da qual suas limitacóes ou mesmoobstáculos no processo cognitivo sao igualmente eliminados. E é precisamente Gadamer que, ao enfrentar a questáo da intersubietitndade, esclarece
nos sobre o lugar que a "cornpreensáo intersubjetiva" ocupa na esfera da
cogni<;:ao, e isso de maneira inexorável! E nao apenas no que diz respeitoas ciencias sociais, mas igualmente no que toca as ciencias da natureza. Eiscomo se manifesta urna comentadora de Gadamer, Georgia Warnke, pro
fessora de filosofia da Universidade de Yale:
A virtudedeGadamer é ade ter revelado o reinoda cornpreensáo intersubjetivaque é pressuposta por qualquer "ciencia objetiva", urna vez que cientistas
- também precisam chegar a um entendimento entre si sobre o sentido de_termos, critérios para testar hipóteses e assim por diante."
Gadamer mostra ainda que a tare fa hermenéutica de elucidar o sentido
e de facilitar a comunicacáo Únsubstituível por qualquer outra modalida
de artificial de linguagem - lógica, matemática etc. - que nao seja alíngua natural, própria do domínio da compreensao intersubjetiva¿ con-
o sensual. O que significa que na esfera da comunicacáo, até mesmo naquela
em que se comunicam cientistas de qualquer campo de conhecimento, softo ou bard, eles estáo circunscritos a obediencia de acordos tácitos ou explíci,
tos, configurados em normas estandardizadas no seu próprio meio.Essas normas nao seriam nem arbitrárias e muito menos subjetivas,pois sao o resultado de urna tradicáo cientifica na qua! a experienciaacumulada em termos de cornunicacáo e de consenso entre cientistas foi
capaz de instituí-las."
17
18
19
Edicáo consultada Verdady metodo 1: Fundamentos de III/a hermenéutica filosófica, S' ed.,p.337.
Ibidem.
Na moderna história da ciencia, autores como Thomas Kuhn aproxirnam-se do pontode vista hermenéutico ao considerarem as tradicóes científicas ou os paradigmas comoverdadeiras antecipacóes do ato de conhecer. Tais paradigmas sao tambérn consisten-
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tes com a idéia wittgensteineana de "jogos de linguagem", que, pode se dizer com R.Howard, inserern-se em urna sorte de "hermenéutica analítica".
Cf. Georgia Warnke, Gadamer: Hermenentits, tradition and reason, p. 117.
Idem.
85
Roberto Cardoso de Oliveira
Isso induz ao seguinte comentário: se a esfera da subjetividade rnostrou-se, ao longo da história das ciencias - incluindo-se as ciencias sociais,
¡ como a sociologia e a antropologia social -, passível de neutralizacáopelo método, já a esfera da intersubjetividade mostrou-se capaz de seimpor com tal vigor no horizonte do conhecimento científico que nao hácomo deixar de considerá-la como um fato - por certo epistémico intransponível sem o recurso da reflexáo hermenéutica, O homem de
ciencia, tal como o homem comum, tem de conviver com a realidade dacompreensáo intersubjetiva; ou, em outras palavras, tanto o cientista comoo leigo encontram-se presos as suas dererrninacóes. Nesse sentido, seria,de certo modo, o equivalente, no dominio da atividade científica, do fenómeno da pré-estruturacáo do conhecimento descoberto pela fenomenologia heideggeriana. Se essa intersubjetividade é urna imposicáo dos fatos,entáo pode-se admitir sem rnuita dificuldade que os procedimentos nomológicos que conferem cientificidade a teoria social - e aqui sigoGiddens," em referencia a qualquer produto gerado pelas ciencias sociais- só o fazem para aqueles que persistem em ignorá-la. Estáo marcadospor um cientismo radical, comum ao horizonte neopositivista. Porém, senos detivermos apenas a questáo da intersubjetividade no campo da sociologia e da antropologia social, veremos que, com mais razáo ainda, circunscrever a producáo de conhecimento exclusivamente ao exercício do
método - como desejaria Durkheim, herdeiro da tradicáo cartesiana,com? vimos -, significaria ignorar o papel da compreensáo intersubjetivacomo preliminar, ou mesmo antecedente, a qualquer modalidade de. conhecimento dito científico. Como podemos compatibilizar essa realidadevivida pela cognicáo - quando o método mostra suas limitacóes - coma legitimacáo do conhecimento alcancado pelas disciplinas sociológicas? Eaqui inc1uo a antropologia social.
*
22 Cf. Anthony Giddens, "Hermeneutics and social theory", in Hermenestics: Questionsandprospeets, Gary Shapiro e Alan Sica (orgs.), pp. 215-230.
86
,~ o IlIgar - e em lugar - do método
Retomemos o que falei no início desta exposicáo relativamente ao mo
mento metódico, contrapondo-o ao momento nao-metódico. Nessa direcáo é que as investigacóes de Ricoeur váo revelar-se bastante sugestivas e
devem ser evocadas. Preliminarmente, gostaria de recordar que, em 1993,tive a oportunidade de participar de um seminário sobre "Ciencia e Sociedade: A Crise dos Modelos", com urna conferencia que intitulei ''A antropologia e a 'crise' dos modelos explicativos", ocasiáo em que pude mevaler de um texto de Ricoeur para equacionar a mesma questáo de método, que agora retorno." É assim que, para bem esclarecer o que sao essesdois momentos, escreve Ricoeur:
Sobre o plano epistemológico, primeiramente, diria que nao há dois méto
dos, o método explicativo e o método compreensivo. Estritarnente falando,
só a explicacáo é metódica. A cornpreensáo é, sobretudo, o momento nao
metódico que, nas ciencias interpretativas, se cornpóe com o momento me
tódico da explicacáo, Este momento precede, acompanha, fecha e assim enuolvea explicacáo. Em compensacáo, desenuoh» analiticamente a cornpreensáo,Este vínculo dialético entre explicar e compreender tern por conseqüéncia
\ urna relacáo muito complexa e paradoxal entre as ciencias humanas e as
i ciencias da natureza.",
Se, na época da conferencia, eu estava empenhado em mostrar a articulacáo entre a explicacáo e a cornpreensáo no contexto do que chamei
enxerto - ou agreffe, como já dissera o mesmo Ricoeur - da hermenéuticana matriz disciplinar da antropología," no sentido de impor urna nova
23 Essa conferencia está reproduzida como Capítulo 3 deste volume. Quanto areferén-,cia relativa a Paul Ricoeur, trata-se do ensaio "Le modele du texte: ]'action senséeconsidérée comme un texte", in D« texte " I'aetion: Essais d'bermenentique, JI. Hátambém sua versáo em ingles, "The model of the text: Meaningful action consideredas a text", in lnterpretive social saence: A reader, P. Rabinow e M. Sullivan (orgs.).
24 P. Ricoeur, "Expliquer et comprendre: Sur quelques connexions remarquables entrela théorie du texte, la théorie de l'action et la théorie de l'histoire", in Dn texte ti
I'aaion. Essais d'herméneutiqlle, ll, p. 181.
25 Esse conceito de "matriz disciplinar", tomado ern urna primeira instáncia de ThomasKuhn, que o considera equivalente a "paradigma", cuidei de diferenciá-Ios de maneiraa atribuir 300 segundo um componente - paradigmático - do primeiro; em termosconcretos, referindo-me aantropología, ternos que o convívio tenso - e historicamente demonstrável - dos paradigmas racionalista, estrutural-funcionalista, culru-
87
Roberto Cardoso de Oliveira
dinámica e, com isso, revigorá-Ia; agora, nesta oportunidade, desejo unicamente sublinhar que o método nao monopoliza - como desejariam aquelesinfluenciados pelo cientismo - a producáo de conhecimento relativo arealidade social ou cultural.
Pois bem. Se existe um tipo de conhecimento que nao se vale do método para ser alcancado, que conhecimento é esse? Tenho procurado mostrar, em diferentes oportunidades, que a possibilidade de dornesticacáo darealidade pelo método encontra seus limites naquilo que Ricoeur chamasurcroit de sens - excedente de signiJicaroo.,lsso quer dizer precisamente que ométodo, nao conseguindo abrigar sob seus parámetros toda a realidadesócio-culrural, deixa escapar algo cujo sentido ou cuja significacáo esse
método nao está (pre)determinado a dar conta, É esse excedente de signi-Jica¡;:ao que somente um momento nao-metódico pode apreender.Emminha disciplina, esse momento nao-metódico pode ser facilmente ilustrado pelo exercício da "observacáo participante", cujas informacóes delaresultantes povoam as monografias produzidas mercé do trabalho de campo. Quero chamar a atencáo para o fato de que sao exararnente essasinforrnacóes as que agem na colagem dos dados no discurso, sejam essesdados qualitativos ou quantitativos, presentes na narrativa do antropólogo,Nesse sentido, monografias exemplares como as de Malinowski, de EvansPritchard ou de Curt Nimuendaju - esse último, pelo menos para a etnología brasileira, durante milito tempo um autor de monografias exemplares -, conseguem constituir-se em relatos dotados de grande poder depersuasáo, por vezes acusados até de impressionismo literário. Sobre esseponto, aliás, haveria muito a discutir, particularmente no que diz respeitoaos problemas envolvidos na texrualizacáo da cultura ou de como inscrevé
la no discurso escrito. Pude examinar isso em outra conferencia, "O trabalho do antropólogo: Olhar, ouvir, escrever", originalmente elaborada paraa Aula Magna que ministrei na Unicamp, em 1994, publicada posteriormente na Revista de Antropologia. 16 Na presente exposicáo gostaria unica-
ralista e hermenéutico criam um campo semántico que se articula como urna matrizdisciplinar.Cf. R. Cardoso de Oliveira, op. cit., Capítulos 1-4; e, especialmente, o Capítulo 3deste volume.
26 Revista deAntropologia, vol. 39, n" 1, 1996, pp. 13-37. Cf. o Capítulo 1 des te volume.
88
o lugar - eem lugar - dométodo
mente de abordar uns poucos pontos que acredito servirem para encami
nhar mais detidamente a nossa questáo central.O primeiro ponto a ser considerado é o de que tanto as ciencias so
ciais como as ciencias naturais estilo irremediavelmente condicionadas pela
r- pré-~s_~r~':!!ll~?-~<za,¡;:~QA9fOnhe~ipe.nto_ descoberra por. Heidegger, como, vimos na argumenta¡;:ao de Gadamer e nos oportunos comentários de
Georgia Warnke, de modo a nao fazer mais sentido a tradicional e equi-, vocada hierarquizacáo entre elas, atribuindo as ciencias duras urn status
superior ao das ciencias moles." Nao seria portanto por esse caminho quese poderia chegar a urna boa avaliacáo entre essas modalidades de ciencia.O caminho que, a luz dos argumentos precedentes, poderá ser seguido,cinge-se milito mais a questáo da experimentacáo com a qual, efetiva
mente, as ciencias sociais, voltadas para a observacáo, nao teriam condi¡;:6es de enfrentar. Contudo, isso seria um 'assunto para urna outra discus
sao, porém vale, pelo menos, o registro. Ora, o caminho mais frutíferopara desenvolvermos as preocupacóes aqui apresentadas seguramente naoserá pela via da oposicáo entre tipos de ciencia, social e natural, nem mesmo por urna radicalizacáo da oposicáo entre os momentos metódico enao-metódico na investigacáo sócio-cultural, senáo por urna tentativa deelucidacáo da relacáo de complementaridade entre ambos os momentos.
Nesse sentido, as investigacóes epistemológicas de Ricoeur e de Apeltérn se mostrado extremamente úteis! Elas conduzem-nos a interessantes .Ó:
.;, y
exploracóes a respeito da construcáo do conhecimento nas disciplinas so"':"._·
ciais. Ternos, assim, urn segundo ponto a destacar, a saber, aquele que nos )permite considerar que a proposta durkheimiana que faz das "representa- \ \cóes coletivas" o alvo por excelencia da investigacáo sociológica pode sér
\. invertida no sentido de considerar as comunidades de profissionais da ....
disciplina, portanto urna comunidade inter-pares, como detentora de urnaintersubjetividade tal- urna sorte de "consciencia coletiva"? -+-, capaz de",anular qualquer subjetivismo que a crítica mais positivista possa querer
27 Embora esses termos em portugués já sejam de uso corrente, considero mais adequada a separacáo dessas ciencias, respectivamente, ero rígidas e flexíveis que considerodesignac;:5es mais adequadas por qualificarem mais positivamente as ciencias sociais,tirando-Ihes o caráter de fraqueza ou irnaturidade que o termo soft sugere. Agradece a
sugestáo de meu colega mexicano Dr. Esteban Krotz,
89
1: i
Roberto Cardoso de Oliveira
impor. Seria como passar de urna intersubjetividade constitutiva das representacóes coletivas para outra, de teor diverso, inerente acomunidade
\- a que pertence o sujeito cognoscente. A relevancia disso estaria no fato dese constatar no interior dessa comunidade de pares a instancia de elabora<;ao. de critérios de veracidade - mais do que de verdades - que seprojetam finalmente nas metodologias instituídas. Os métodos estabelecidos pela comunidade de profissionais geram um campo intersubjetivopor meio do qual os resultados das investigacóes passam a ser considerados válidos ou nao. Se sao metodologias formais, os critérios popperianosde falsificacáo sao perfeitamente adequados; se nao, outros critérios devern ser aplicados, como os que se caracterizam, por exemplo, pelo binomio "conjectura - validacáo", na forma como esse binomio expressa ofamoso conceito de "círculo hermenéutico". Oucamos, mais urna vez,Ricoeur:
Conjecturae validacáo estáo em uma relacáo circular, como,urnaabordagemsubjetiva e outra objetivado texto.Masessecírculonao é urn círculovicioso,"
•E mostrando que os procedimenros de validacáo e de invalidacáo sao de
certa maneira comparáveis ao criterio popperiano de falseabilidade, esclarece-nos que
o papelda falsificac;ao é asswnido aqui pelo conflito de interpretacóes rivais.Urna interpretacáo nao deve ser somente provável, mas mais provável queurnaoutra. Há critérios de superioridade relativaque podem ser facílmentederivadosda lógicade probabilidade subjetiva."
E Ricoeur nao nos diz, mas podemos inferir que o que ele chama "lógicade probabilidade subjetiva" está, a rigor, legitimado por acordos intersubjetivos que tém lugar no interior de comunidades de cornunicacáo e deargurnentacáo inter-pares, nos termos formulados por Apepo
28 P. Ricoeur, "Expliquer et comprendre: Sur quelques connexions remarquables entre lathéorie du textc, la théorie de l'action et la théorie de l'histoire", p. 202.
29 Idem.
30 O ponto de vista de Karl-Otto Apel está bem justificado em seu ensaio "La comunidadde comunicación como presupuesto trascendental de las ciencias sociales", in LAtransformación delafilosofia, tomo n, pp. 209-249.
90
1
O Itrgar - e em IJlgar - dométodo
Urn terceiro ponto seria o da validacáo de resultados alcancáveis pelavia nao-metódica em que o papel tradicional da cornpreensáo, como geradora de hipóteses ou conjecturas, passa a ter funcáo de indiscutiveJ valorcognitivo. É quando a inrerpretacáo explicativa, apoiada em dados obridos pela via metódica, articula-se com a interpretacáo compreensiva, naometódica, porém perfeitamente habilitada para alcancar resultados igualmente sujeitos avalidacáo hermenéutica, marcada peJo conflito de interpreta<;6es mencionado há pouco. 1sso significa que Iimitacóes ao papel dacompreensao na esfera cognitiva, atribuindo a eJa funcáo exclusiva de gerar hipóteses - em virtude das inforrnacóes que logra obter serem resultantes de empatia, como querem autores como Michael Martín," e o próprio Weber, se levarmos em conta alguns de seus comentadores _,32 naose sustentam diante dos argumentos até aqui apresentados. Nesse sentido,espero haver deixado claro que a validacáo das observacóes construidasno interior das experiencias vividas pelo pesquisador - típicamente no
exercício da pesquisa de campo - nao tiram seu caráter eminentementeinterpretativo - compreensivo; o que as distingue, por sua vez, do conhecimento interpretativo - explicativo, característico das ciencias nomológicase, ponanto, sujeito a false~bilidade popperiana.
*Creio que podemos concluir dizendo que já é tempo de deixarmos deopor sistematicamente, como vasos nao comunicantes, a compreensáo e aexplicacáo; a primeira tributária da perspectiva hermenéutica; a segunda
31 Michael Martin, "ünderstanding and participant observation in cultural and socialanthropology", op. cit.
32 Nesse sentido, vale a pena consultar o Iivro de ]udith ]anoska-BendJ, Max Webery larociologla delabistoriai.Aspeaos metodológicos deltipoideal. Na secáo intitulada "Tipo ideal elúpótesis" (pp. 97-113), a autora examina extensamente a controvérsia sobre o lugarda cornpreensáo (verstehen), na construcáo do tipo ideal, bem como sobre a naturezahipotética desse último. Embora ]anoska-BendJ esteja mais preocupada com a natureza do tipo ideal- se "hipótese", se "teoría implícita" etc. - do que com a faculdadeda cornpreensáo, o exame da controvérsia rnostra o quanto Weber está comprometidocom urna sorte de aentismoque, a rigor, o afasta de urna posicáo efetivamente herrnenéutica - no sentido que a da estamos atribuindo na esteira das reflexóes de Gadamere Ricoeur.
91
!1)j!
1\il!
Roberto Cardos» de Oliueira
caudatária das ciencias empírico-analíticas - e nao necessariamente positivistas ou, mesmo, neopositivistas, como tern sido hábito caracterizá-las
com o intuito de deslegítimá-las. Em lugar de tomarmos ambas modali-._oc dades de conhecimento como incompatíveis, o que se pretendeu defen
der aqui foi, precisamente, a compatibilidade entre os dois modos deconhecer, preservando as duas instancias em que se exercita a cognícáo: ametódica e a nao-metódica.
Durkheim mostrou-nos pioneiramente para a sociología o lugar dométodo na legitimacáo do conhecimento produzido por uma entáo novaciencia. Passado um século, essa mesma sociología - e, com ela, sua irrná
antropología - somaram expressivos resultados legítimamente alcancados gra<;:as ao uso competente de métodos. E nada indica que esses métodos tenham de ceder lugar para investigacóes que os eliminem, por deles
nao necessitarem. Ao contrário, a instancia metódica tende a continuarnutrindo a teoria social de evidencias cada vez mais dependentes do aperfeicoamento de metodologías; basta considerar, mesmo em urn rápido esuperficial sobrevóo pela história das ciencias sociais o quanto essas metodologías se sofisticaram! Por outro lado, vale também res saltar, que a recente - ainda que tardía - reapropriacáo do ponto de vista herrnenéu
tico pela epistemología das disciplinas sócio-culturais permitiu exorcizar ailusáo da objetividade radical- a saber, o objetivismo -, revelando umainstancia náo-metódica, porém provedora de conhecimentos igualmente
tangíveis, ainda que por critérios diverso~ que, por conseguinte, nao tornem a certeza como norma absoluta de verdade.
Diante do que procurei expor, o conflito entre partidários da. compreensáo hermenéutica e da explicacáo nomológíca parece-me um conflito
equivocado. Com referencia a minha disciplina, a antropología, a existen
cia desse conflito está visível em urna c9piosa bibliografia, especialmenteproduzida nos centros anglo-sax6es, em que "tradicionalistas" e "pós
modernos" esgrimem seus argumentos ad nauseam! Gostaria de ilustrarisso com urna referencia a um único autor e, com isso, finalizo minhaexposicáo, Trata-se de um professor da Universidade de New Hampshire,S. P. Reyna.P que em um artigo publicado na revista inglesa Man, com o
33 Cf. Man - Tbe}ollrnalof tb«RoyalAnlhropologicallnstilule, vol. 29, n" 3,1994, pp.555-581.
92
L ~~~~._. ._-
o IlIgar - eem lugar - dométodo
sugestivo título "Literary anthropology and the case against science", dassifica a "antropologia interpretativa" norte-americana, que se pretendeherdeira da perspectiva hermenéutica, como sendo urna "antropologíaliterária", no que se oporia logícamente a urna antropología verdadeiramente científica. A despeito do comprometimento explícito de Reyna comas ciencias empírico-analíticas, suas restricóes as críticas "pos-modernas"áquelas ciencias nao devem ser desconsideradas, uma vez que mostram
que tais críticas, a rigor, nao as atingem verdadeiramente. Isso significa quecontinua havendo um espa<;:o próprio. para os procedimentos analíticosque deveriam ser melhor conhecidos da chamada crítica pos-moderna. Ese esse autor, por seu lado, tem dificuldades em avaliar as amplas possibilidades da compreensáo hermenéutica - como procurei mostrar, seguin
do Ricoeur e Apel -, isso é um fato que nao deve impedir o exercício dodiálogo inter-pares, isro é, no interior da arnpla e diversificada comunidadede antropólogos - ou de cientistas sociais, de forma geral -, organizada- ainda que nao tao bem organizada como seria a desejar - em ámbito
internacional. Ao contrário: deve incentivar esse diálogo, sobretudo apósurna diminuicáo que espero venha a ocorrer relativamente agama de malentendidos que a radicalizacáo das respectivas posicóes marcaram o debate. Mas o importante é que já existe um diálogo, só faltando amadurecé-lo,de modo a escoimá-lo de posturas rígídas e dogmáticas. Penso que, apartir de reunióes regionais ou nacionais como esta, ou internacionais realizadas com o objetivo de alcancar entendimentos em nível planetário, asociología - que um dia foi toda durkheimiana -, abra-se mais a essedebate que a antropología vive atualmente, trazendo urna saudável tensáoasua prática de investigacáo tanto quanto aconstrucáo da teoria social.
93
T
Capítulo 5
A DUPLA INTERPRETAC;AoNA ANTROPOLOGIA 0' '~_'\ -;( __ o
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G1
Falar em interpretacáo nas ciencias sociais hoje em dia e, sobretudo, naantropologia, é urna temeridade, pois facilmente quem assim o faz podeser confundido com um defensor de urna "antropologia interpretativista",comumente chamada de "pós-moderna". É evidente que nao é isso que
-pretendo fazer nesta cornunicacáo,' cuja finalidade maior é a de dar algumrelevo a quest6es de metodologia, como também de teoria, que digamrespeito ao traba!ho antropológico. E se estou aduzindo teoria ametodologia, faco pela simples razáo de que nao vejo utilidade em tratar essa semaquela. Pensar metodologias implica necessariarnente invadir dimens6esmeta-teóricas. Por essa razáo, justifico examinar aqui aspectos preliminaresa metodologias específicas, debrucando-rne sobre aquilo que estou chamando de "dupla interpretacáo". Por isso, pretendo expor algumas idéiasque possam nos conduzir a evitar qualquer maniqueísmo que sempre assoma quando o tema é a interpretarao e, com ela, o binomio explicar
compreender. No desenvolvimento dessas idéias, espero fazer valer a própriaexperiencia ganha por nossa disciplina em sua idade já secular que - ébom esclarecer - nao mais admite ser tratada como "jovem ciencia", e,quase sempre, em sentido pejorativo. Juventude essa que !he tem custadoo descrédito em muitos contextos, notadamente naqueles em que se encontram as agencias de fomento.
Procurarei ser o mais sucinto possível, sem me alongar em consideracóes prévias relativas ao lugar da interpretacáo em nossa disciplina - ou
em outras que lhe sao congéneres -, posto que essa nocáo nos é bastantefamiliar, desde que ternos admitido facilmente que a mais singela descricáo
Este texto foi originalmente elaborado como comunicacáo amesa redonda "Discussóes Metodológicas da Antropologia Contemporánea", programada no ámbito daSemana deAntropologia, organizada pelo Departamento de Antropología do Institutode Filosofia e Ciencias Humanas da Unicarnp, Campinas, 1994; e publicado no .Anuá
rioAntropológieo-94, pp. 9-20.
95
Roberto Cardoso de O/iveira
carrega sempre um certo grau de interpretacáo, cuja avaliacáo - alguns
até poderiam dizer mensuracáo - poderá indicar uma variacáo suscetível
de ser tomada, ela mesma, como dado de pesquisa. Quero dizer com issoque a própria divergencia na interpretacáo da realidade sócio-cultural sofre pelo menos duas refracóes: uma, resultante da descricáo mesma, a
rigor, uma interpretacáo de primeiro grau; a outra, de segundo grau, umainterpretacáo da descricáo - sendo essa descricáo, ela própria, interpreta
tiva. E isso parece ser tao evidente na antropologia que, relativamente aprimeira refracáo - a da interpretacáo na descricáo - mesmo a mais
contundente antropologia positivista reconheceu isso com a expressáoanaiytical description, nos termos pelos quais essa expressáo foi formulada
desde princípios dos anos 1950 por um dos epígonos do estrutural-funcionalismo británico, Meyer Portes.'
Portanto, o que há de novo na interpretacáo? Creio que a nocáo e a
maneira pela qual tem sido usada no discurso da disciplina nao sao mais
suficientes para iluminar o nosso caminho em busca de um melhor escla
recimento da questáo, Temos de passar da nocáo ao conceito. Bé precisamente o conceito de interpretacáo que eu gostaria de explorar na oportu
nidade des te artigo. Antes, devo dizer, que distingo interpretacáo de compreensdo - Versteben -, seguindo, aqui, Paul Ricoeur, quando esse autor examina a relacáo dialética entre compreensdo e explicarao em vários de seus escri
tos.' Entretanto, se considerarmos que o conceito de interpretacáo é mais
\:
\!
\ '
1- , •
2
3
Cf. Meyer Portes, "Analysis and description in social anthropology", in Tbeadvancementrf sdenie, vol. X, 1953, pp. 190-201. ,Vale distinguir aqui o que estou chamando de inrerpretacáo de primeiro e de segundograu - ou refracóes -, da distincáo que faz um autor como Giddens entre duashermenéuticas - ou double bermeneutic -, urna relativa aprópria materia social comque trabalha o sociólogo - ela mesma produto de representacóes dos agentes sociais-, outra referente ainterpretacáo dessa rnatéria social pelo pesquisador. 1 -
Cf. A. Giddens, Neu/11I/es rf soci%gjca/metiod, p. 146; e, também.], Bleicher, Thebermeneuticimagination: Oulline rf apositioe critique rf saentism andsotiology, p. 52.Há de se distinguir ainda essa "dupla hermenéutica" daquilo que chamo de duplainrerpreracáo - como se verá adiante.
Destaco pelo menos tres deles, todos inseridos em um volume de ensaios sobre hermenéutica. Sao eles: "Qu'est-ce qu'un texte?" (1970);"Expliquer et comprendre" (1977);e "Le modele du texte: L'action sensée considerée comme un texte" (1971).Cf. Paul Ricoeur, Du text«aI'action.
96 l
A dupla inlerpretarao daantrop%gia
extenso _ logicamente falando - que os de explicat;:ao e compreensao,urna vez que os recobre, totalizando-os em urna única categoria cognitiva,
verificaremos que tanto a explicac;:ao corno a compreensao passam a ter
func;:6es de adjetivar a interpretac;:ao. É o reconhecimento de que nao há
descrit;:ao, por mais intencionalmente objetiva que seja, sem um mínimode interpretac;:ao. Está condicionada por um contexto intersubjetivo - acomunidade de profissionais da disciplina. Terí~mos, assim, a interpretaraoexplicativa e a interpretarao compreensiva. Essas duas modalidades de interpretac;:ao guardam entre si urna relacáo dialética, isto é, de mútua ou recíproca
contaminac;:ao. Para simplificar, recorro ao "arco interpretativo" de quenos fala o mesmo Ricoeur e que habita, muitas vezes inconscientemente, a
nossa prática etnográfica. E~ um extremo desse arco, exercitamos urna"compreensao ingénua, de superfície, quase urna intuicáo 'daquilo que nos é
dado apercepc;:ao. No outro extremo, realiiamos urna compreensao sábia, de
-profundidade, urna indut;:ao fortalecida pela mediat;:ao ou anterioridadeda explicarao _ nomológica -, situada no vértice do arco interpretativo.
Seja-me permitido recorrer aqui a urna ilustracáo, tirada de meu livro
O indio eomundo dos brancos, em que procurei assentar minha interpretac;:aodos Tükúna em urna análise formalizante do sistema de c1assificac;:ao rote
mico ainda vigente entre aqueles índios, portanto de indispensável examepelo pesquisador. De urna maneira muito sucinta, diria que minha preocupacáo entáo era a de identificar alguns critérios inerentes acultura tükúnatradicion.a
l_ visto que esses Indios viviam urna conjunc;:ao intercultural
secular _, critérios esses que os orientassem ern sua vida intra-tribal. A
"análise componencial" adorada, em um esforco de algebrizat;:ao do parentesco tükúna, mostrou-se suficientemente rentável para ~ermitir expli~citar esses critérios. Em número de quatro, foram eles: sexo [A), gerarao (B),
linealidade Le) metade [D).O que significa dizer que esses índios privilegiavam no processo de
interat;:ao interna avida tribal, a separac;:ao entre sexos [A), grat;:as adicotomia masculino _ feminino; a considerac;:ao da gerat;:ao (B), expressa em
Soma-se a esses ensaios um pequeno, mas interessante livro, rraducáo do originalinglés de 1976, a rigor urna série de li<;oes ministradas ern urna universidade norte-
americana.Cf. Ricoeur, Teoria dainterprelafoo: O discurso e oexassodesigniftcaFoo.
97
Roberto Cerdoso de Oliveira
um diagrama de parentesco pela relacáo dinámica das duas gera<;:6es as
cendentes e as descendentes relativamente a ego; o princípio de linealidade[C], por meio do qual se fortaleceria a patrilinearidade ern oposicáo acolateralidade; para, finalmente, reconhecer a funcáo das metades [D] anónimas - na regulamentac;ao do matrimonio exogárnico. Porém, a análise
componencial mostrar-se-la adequada no exame da terminologia de pa
rentesco. Como? Algebrizando cada termo de parentesco de maneira atransformá-los em equacóes capazes de sintetizar, termo a termo, a operacáo dos quatro critérios - ou valores - sobre a relacáo social efetiva
mente indicada pela categoria de parentesco. A quem interessar esmiucar oassunto, lembro que está tratado no livro citado, ern seu capítulo rv, "Da
ordem tribal aordern nacional". Agora, limito-me a ilustrar minha tentati
va de forrnalizacáo, recorrendo a um único exemplo.
Tomemos o termo indígena dz'au:ta?a que engloba nada menos do
que 18 posicóes demonstráveis em um sistema de parentesco, 'todas situa
das na geracáo de ego [B3] e nas duas primeiras gera<;:oes descendentes
[B4 e B5], sendo que, na primeira e na segunda das gera<;:oes ascendentes[B2 e Bl], esse termo estaria excluido. Todavia, teria sido impossívellevar
avante a análise do sistema terminológico de parentesco, sern o uso deurna notacáo algébrica que registrasse nao apenas o termo relativamente
ao critério de gerafao [B], mas também que igualmente considerasse osdernais critérios enunciados.
Repito: sexo A 1 e A2, para masculino e feminino respectivamente;
/inea/idade C1 para patrilinearidade, C2 para colateralidade; e metade D1,agnática ou a rnetade a que pertence ego, e D2, náo-agnáticaou metade
oposta, marcadora de exogamia. Quero insistir no exemplo só para suge
rir o quanto urna tentativa de forrnalizacáo pode servir para oferecer urna
descricáo analítica possivel a mais, destinada a apreender o código do paren
tesco, portanto sua gramaticalidade. A aludida palavra dz'au:ta?a sornente
poderia ser decomposta em seus componentes rnercé do recurso a urna
modalidade de tratamento algébrico dos termos de parentesco.Exemplificando: a equacáo A2B4C2D1, indica, respectivamente, o sexo
feminino, a primeira geracáo descendente, a linealidade e a rnetade agnática,
envolvendo a filha do Filho (fF) com a qual o matrimonio é vedado paraego masculino, urna vez que o sistema é totérnico, constituido por clás e
merades exogámicas; enquanto a equa<;:aoA2B5CID2 englobaria apenas a
98
r'~;,
~A duplainterpre/arao da antl"Opologia
filha da filha (ff) do mesmo ego, com a qual o matrimonio é permitido,
pesto que pertence ametade oposta de ego. Como veremos adiante, haverá equa<;:6es que englobam várias posicóes identificáveis em um diagra
ma de parentesco. As letras maiúsculas e os números que lhes sao as socia
dos permitem descrever com economia o reor das relacóes soeiais que
transcendem o parentesco propriamente dito. Buscando-se o significado
dos componentes - ou valores -, um a um, a análise tem a finalidade de
identificar categorias - equa<;:6es - que, por sua vez, nao se confundem
con1 os termos de parentesco.por conseguinte, será gra<;:as a essa modalidade de análise que as 18
posi<;:6es de parentesco cobertas pelo termo dz'au:ta?a poderáo ser, assim,
reduzidas a oito categorias diferentes contidas naquele mesmo termotükúna: por meio de reducóes progressivas ainda se pode reduzir a quatro,
desde que se coloque entre colchetes, ou que se suspenda provisoriamente
sua funcáo classificatória, o critério de sexo [A].Recorro, agora, a urnas poucas linhas entáo escritas:
Dessas guatro categorias (reduzidas assim a seus componentes B,e e D) trésdelas (caracterizadas pelo componente D2, que indica o membro da metadeoposta) estáo incluidas no vocativo too'ta?a [termo este aplicável, por sua vez,aquelas pessoas com relacáo as quais o casamento é possivel], exprirnindo,portanto, a possibilidade matrimonial; urna dessas categorias (caracterizadapelo componente Dl, que compreende membros da metade de ego) édistinguida pelos Tükúna, que negam aos individuos nela incluídos o apelativotoo'ta?a, embora continuem a se referir aos mesmos pelo termo [denotativol
dz'au:ta?a.4
A análise permite concluir, assim, que esse último termo, face aplu&
lidade de posi<;:6es que ele cobre no sistema de parentesco, tem de ser
contraposto a um segundo termo, o vocativo ou apelativo too'ta?a, de cujaurilizacáo se valem os Tükúna para identificar na vida cotidiana os seus
cónjuges potenciais, situados, todos, na metade oposta. Ternos, portanto,
as tres seguintes categorias identificadas pelo termo too 'ta?a, falando ego
masculino:
4 Roberto Cardoso de Oliveira, O indioeo mundodos brancos, p. 106.
99
Roberto Carnoso de Oliveira
A2B5C1D2 [= filha da filha (ff)].
A2B3C2D2 [= filha da irrná do Pai (fiP), filha do Irrnáo da máe (fIm)];
A2B4C2D2 [= filha da irrná (fi), filha da filha do Irrnáo do Pai (ffIP),filha do Filho da irrná do Pai (fFiP), filha da filha da irrná da máe (ffim),filha do Filho do Irrnáo da máe (fFIm)];
6 Como ilustracáo dessa reducáo.da cornpreensáo, a mera produtora de hipótese, vejase Theodore Abel, "TI1e operation called Versteben"; in Versteben: .ftlbjective understandingin the social saences, M. Truzzi (org.), pp. 40-55; e "Replay to professor Wax", pp. 8386. Escreve ele: "É um fato aceito que, na formulacño de hipóteses, comec;:amoscomalgum palpife ou infuirao. Agora isso parece muito provável que os palpites que noslevarn a certas hipóteses concernentes ao comportaroento humano, originam-se daaplicacáo da operacáo do Versteben" - p. 53. Ou, ainda, em sua réplica a um crítico-Murray L. Wax -, é ainda mais enfático quando diz que "ero minha opiniap
Versteben é a fonte principal de hipóteses em sociologia" - p. 85.
7 Cf., por exernplo, Michael Martín, "Understanding and parúcipant observaúon incultural and social anthropology", in Versteben: Jllbjecfive understandlng in tbe socialsdences, pp. 102-133. Esse epistemólogo considera que "ern qualquer caso (...) compreender [undersfanding] urna pessoa parece ser redutível a conhecer certos fatos sobreela. Chamamos a esse tipo de conhecimento de conhecimento proposicional.(...) Amesma coisa poderia ser dita sobre compreender urna comunidade. Com~reenderurna comunidade parece consistir em ter certo conhecimento proposicional sobre essacornunidade" - p. 106. Embora o autor considere curras modalidades de coropreensao, como a que tern lugar por meio da observacáo participante, a única roodalidadeque ele reconhece como sendo científica é aquela que permite uro conhecimento
factual, traduzido em proposicóes.
A dupla inferprefarao da antropologia
compreensao podem se constituir - no caso da antropologia, pelo menos _ em modalidades de interpretacáo até certo ponto complementa-
¡-.res, a primeira voltada para a identificacáo de regras e de padróes susceciveis de um tratamento proposicional; a segunda voltada para a apreensáodo campo semántico em que se movimenta urna sociedade particular; urnaapreensao, aliás, comumente feita por todos nós no exercício da "observacáo
participante" - sempre reconhecida, seja dito, como inerentementeimpressionista, precisamente por nao fornecer proposicóes nomológicas;aO passo que, para os "cientificistas" mais ardorosos, tal observa<;:ao participante nao nos poderia fornecer senáo hipóteses" a serem testadas pela viametódica de urna explicacáo absolutamente neutra. É o que nos sugeremcertos autores ciosos do caráter proposicional do discurso científico.' Enós sabemos que no trabalho típico do antropólogo, pelo menos desdeMalinowski - na forma moderna de nossa disciplina -, praticamente todasas monografias - que por sua exemplaridade consolidaram o nosso ofício - térn nos resultados dessa mesma observacáo participante - pormais variável que seja a competencia com que essa observacáo foi exercita-
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J,.'1;·t
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Cf. especialmente de Apel, "La comunidad de comunicación como presupuestoO" trascendental de las ciencias sociales", in La transformación de lafilosofa, tomo Il, pp. ..-'
209-249, como o texto que melhor esclarece esse ponto.
5
o enigma, portanto, de haver um único termo denotativo para urnapluralidade de posicóes no sistema de parentesco, sem urna identificacáo
aparente entre cónjuges possíveis, em se tratando de urna sociedade dividida em metades exogámicas, fica desfeita com a introducáo no léxico do
parentesco de um termo vocativo, como urna estratégia desse POyO indígena na elaboracáo de seu cálculo social.
Quais as implicacóes do que acabo de expor para a questáo da interpretacáo? Considere-se que já nao falo agora de níveis de interpretacáo
de primeiro ou de segundo grau - como mencionei parágrafos' atrás.Refiro-me agora a interpretarao explicativa, que surge em decorréncia de
.análises formais ou formalizantes, portanto sob o signo de procedimentos nomológicos. A essa análise, que no exemplo dado incide na instanciado parentesco em busca de sua sintaxe e, com ela, na descoberta de. umcódigo, vai se contrapor - em urna primeira apreciacáo - urna sorte de
interpretafao compreensiua, por meio da qual se procura dar conta de signiü<:a~
cóes apreensíveis por urna abordagem hermenéutica, Já se tem falado muitosobre as possibilidades da hermenéutica no trato de fenómenos sócio-cultu
rais. Por isso, limito-me aqui a apenas mencionar que menos de herrnenéu
cica e mais de interpretativismo - e sublinho o ismo - é que ternos lido eouvido. Porém, nao vejo necessidade de desenvolver consideracóes maisextensas sobre o tema da hermenéutica striao sensu, contentando-me a dizerque a aceitarmos os argumentos de Ricoeur - que se amparam, por sua vez,em escritos bastante profundos de Karl-Otto Apel _,5 a explicacáo e a
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100101
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Roberto Cardoso de OIÍ/)eira
~"¡ A dnpla interpreta,ao da antropologia
da - talvez a melhor expressáo de interpretacáo compreensiva. Portanto,
a rnaior intimidade de todos nós com essa segunda modalidade de ínterpretacáo dispensa-me de ilustra-la da maneira mais pormenorizada, como
fiz relativamente ainterpreracáo explicativa.
No entanto, gostaria de examinar muito rapidamente a concepcáo que
do tratamento hermenéutico tem um autor como CliffordGeertz," quan
do submete a urna interpretacáo compreensiva o conjunto de rituais bali
neses ern busca de seu significado, a saber, da mensagem que eles veiculamo Escreve o autor:
Tal como a poesia, que no seu sentido vasto de poiesis ("fazer") é aquilo queestá implicado, a mensagem está neste caso tao profundamente submersa no
rneio que transformá-la em urna rede de proposicóes é arriscar cometer simultaneamente ambos os crimes característicos da exegese: ver nas coisas
mais do que realmente lá está, e reduzir urna riqueza de significados concretosa uma parada monótona de generalidades.
Porém, adverte ainda Geertz, que "sejarn quais forem as dificuldades e
perigos, a tarefa exegética tem de ser levada a cabo se se quer ficai com
mais do que o mero fascínio maravilhado".?
Demonstrando, com essa advertencia, a necessidade de urna certa arti
culacáo entre a interpretacáo compreensiva e a explicativa - ou proposi
cional -, ambas, entretanto - ao que entendo -, guardando sua auto
nomia. Assim, se para a cornpreensáo da ordem balinesa - seu "Estado
teatro" ou Negara) "é necessário captar o sentido do acontecimenro"."
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CE Clifford Geertz, Negara: OEstadoteatro doséculo XIX. Nesse Iivro,ve-se que Geertzinspira-se claramente na tradicáo hermenéutica, ao dizer que "duas abordagens, doistipos de cornpreensáo, devem convergir se se quer interpretar urna cultura: urna descricáo e formas simbólicas específicas (um gesto ritual, urna estátua hierática) enquanto expressóes definidas; e urna contextualizacáo de tais formas no seio da estruturasignificante total de que fazem parte e em termos da qual obtém a sua definicáo. Nofundo, isto é, obviamente, o já conhecído círculo hermenéutico: a apreensáo dialéticadas partes que estño incluídas no todo e do todo que motiva as partes, de modo atornar visíveis simultanearnenre as partes e o todo" - p. 133.
Idem, p. 132.
Ibidem, p. 133.
102
Nern a descrícáo rigorosa de objetos e comportamentos associada aetnogra
fia tradicional, nem o tracar cuidadoso dos motivos estilísticos que é a iconografia tradicional, nem a dissecacño delicada de significados textuais que é a
filologia tradicional sao em si suficientes. Térn que se fazer convergír de um
modo tal que a irninéncia concreta do teatro representado produza a fé nele
contida.'"
E isso porque o Negara, se bem que fosse uma estrutura de acáo
sangrenta ou cerimonial -, era também "urna estrutura de pensamento.
Descrevé-lo é descrever uma constelacáo de idéias guardadas em um reli
cário" .12 Eis como Geertz caracteriza os rituais da corte de Bali:
Os cerímoniais de Estado do Bali c1ássico eram teatro metafísico: teatro concebido para exprimir urna visño da natureza fundamental da realidade e para,ao mesmo tempo, moldar as condicóes de vida existentes em consonancia
com essa realidade; isto é, teatro para apresentar urna ontologia e, ao formulála, fazé-la acontecer, torná-la real."
Em apoio a essas consideracóes, creio que vale a pena recorrer a uma
comparac;ao mais ordenada entre explicacáo e compreensáo de modo a
elucidarmos melhor o lugar que ambas ocupam relativamente a suas pos
sibilidades cognitivas. 14 Vou lancar máo de um modelo muito simples para
11 Clifford Geertz, Negara: O Estado teatro do sécuio XIX, p. 134.
12 Idem, p. 169.
13 Ibidem, p. 134.
14 É oportuno registrar que, certamente, urna boa e profunda tentativa de equacionarentre nós a questáo da explicacáo - cornpreensáo, no ámbito da história da antropo-rlogiasocial, foi realizada por Celso Azzan Júnior em Antropologia e interpreta,ao: Explicarao e compreensáo nas antropologias de Léví-Strallss e Geerti; A propósito de urna cuidadosa leitura desses dois autores, cada um deles ilustrando um e outro pólo da equacáo,CelsoAzzan consegue realizar uro exame bastante esclarecedor dessa questáo, leitmotivde seu livro - elaborado originalmente como dissertacáo académica. O ponto maisinteressantede seu trabalho é quando mostra- no que diz respeito ao interpretativismogeertziano - o quanto se toma difícil com ele realizar um programa que seja efetivamente hermenéutico; e isso, por falta de um léxico adequado, urna vez que Geertz obusca na semiologia de Peirce, o 'lue só faz afastá-lo da própria hermenéutica, Umsegundo ponto a merecer destaque, ainda relativamente ainterpretacáo hermenéutica- ou compreensiva -, é quando sugere sua associacáo a teoria da acáo de Austin,como que completando a guinada lingüística da antropologia atual. Sao pontos que
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Roberlo Cardoso de OJiveira
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A dupla inlerprelarao da antropologia
Em uma demonstracáo por diagrama, teríamos:
presente, tao operativa como efetiva em sua modalidade dialética, nos dois lados do
diagrama, na col una A e na B.
Gostaria ainda de acrescentar, antes de concluir, que estou considerando a contribuicáo de Ricoeur e do próprio Apel em termos rnuito pró
prios, relacionados com minha experiencia de membro de uma comunidade de antropólogos e nao de filósofos - é bom esclarecer. lsso querdizer que entendo os dois sentidos de interpretacáo no quadro de minhadisciplina, procurando, por conseguinte, avaliar essa dupla interpretacáona esteira de uma experiencia tambérn coletiva, registrada na já longa his
tória da antropologia. E se mencionei há pouco um procedimentonomológico -como a análise componencial -- nao foi absolutamentepor reconhecer nesse método uma contribuicáo permanente anossa dis
ciplina; ao contrário, penso que tal tipo de análise, desenvolvida nos anos1960, no ámbito da chamada etbnoscience, já deu o que podia dar, revelandosua eficácia apenas em umas poucas instancias da cultura - particularmente as etno-classificacóes; entretanto, ela serve para o argumento segundo o qual uma metodologia radicalmente objetivista pode servir, no limite, ao refinamento de uma interpretacáo - que passa por um momentometódico - para, finalmente, alcancar seu instante de profundidade narealizacáo da cornpreensáo sábia - como nos aponta o arco hermenéuticoa que já me referi. Essa compreensáo sábia pode ser entendida como omomento de apreensáo do "excedente de sentido", de que fala Ricoeur,precisamente o momento nao-metódico da investigacáo, Trata-se daquele
sentido nao apreensível por via metódica, seja da formal ou mesmoformalizante - como no estruturalismo levi-straussiano -, seja simples-
t :r :
tentar tornar mais claro o que estou chamando de dupla interpretacáo," Secolocarmos lado a lado explicarao e compreensiio, encabecando duas colunasimaginárias A e B, e associarmos a das os valores sim e nao para expressarvalidade ou a falsidade de uma ou de outra forma de cognicáo, teremos asseguintes quatro cornbinacóes:1. quando explicaiiio e compreensdo nao sao, nenhuma das duas, reconhecidas
como suscetíveis de oferecer-nos conhecimento, portanto sao falsas, podemos dizer que estamos frente a uma postura cética;2. quando na coluna A, da explicarao, temos o nao e na coluna B, na mesmalinha, temos o sim, estamos diante de uma hermenéutica tradicional, poisnegamos a validade da explicarao para reconhecer a da compreensao - portanto, uma postura romántica;3. ao relacionar novamente a explicarao e a compnensao e aduzindo o simpara aprimeira e o nao para a segunda, teremos a expressáo clara da posturanomológica e, em sua manifestacáo mais radical, positivista; finalmente4. quando relacionamos explicarao e compreensao, porém considerando ambasperfeitamente válidas em proporcionar-nos conhecimento antropológico,estamos assumindo uma postura hermenéutica moderna dialógica, ou aindadialética,16 portanto exercitando o que estou chamando de dupla interpretacáo,
nao tratarei aqui, mas se os trago é para indicar o quanto pode ser superficial aidentificacáo pura e simples do paradigma hermenéutico com a chamada antropologia"pós-rnoderna"; os argumentos de Celso Azzan servem para mostrar a complexidadeda questáo.
15 Para a elaboracáo desse modelo, inspirei-rne no pequeno livro de R. J. Howard, Tbreefaces of bermeneutics: An introduction lo curren! tbeones of tlf!derSlanding, p. 162. Para esseautor, o que estou chamando de dupla interpretacáo, como urna posicáo epistemológica comprometida com a modernizacáo da antropologia, ele denomina "herrnenéutica moderna" ou dialética para, no ámbito da filosofia, distinguí-la, especialmente,da hermenéutica tradicional ou romántica,
16 Ainda sobre o uso do termo diaJética - tao desgastado nas ciencias humanas -, cabeadvertir que ele se reporta aquí para um sentido bem específico. Segundo o mesmoHoward, que o relaciona estreitarnente com as investigacóes hermenéuticas atuais, a"hermenéutica é propícia para repensar a lógica dialética de Hegel, mas nao paraaceitar sua conclusáo sobre o espírito absoluto. Esta posicáo antiidealista da herrne-
I néutica contemporánea significa que ela aceita a contingéncia iT7?dutíveJ dasestralégias do'. proprio pensador e da reaJidade mesma" - p. 166, o grifo é meu. Um ponto que ainda
deve ser destacado, seguindo o próprio Howard, é a questáo da intenaonalidade, quenas ciencias humanas é, particularmente, da maior importancia, urna vez que está
Coluna AExplicalfao
SimSimNaoNao
Coluna BCompreensáo
Sim
NaoSimNao
Posicóes Epistemológicas
(4) Dialética(3) Nomológica
rllP.~~_(2) Romantic~-~'~
(1) Cética &~~~4I ~0
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I
RobertoCardoso de O/iveira
mente obstinada na neutralizacáo absoluta do pesquisador, acreditandovaciná-lo contra qualquer vírus subjetivista - exemplifica isso a obsessivabusca de objetividade pelos antropólogos orientados por aquilo que venhochamando de "paradigmas da ordem" .!7 Para o antropólogo esse mo-
/ mento pode ser identificado como tendo seu início verdadeiramente criativo na e durante a pesquisa de campo, especialmente quando ern sua etnografiase vale da observacáo participante; mas deve também continuar durante aprópria elaboracáo de sua narrativa, ou de textualizacáo da cultura."
Penso que a dupla interpretacáo na antropologia, na forma como aentendo, tem várias conseqüéncias:1. a primeira é a nao exclusáo de nenhuma das modalidades de interpretac;:ao, vendo-as igualmente importantes no exercício da disciplina;2. a segunda - como um desdobramento da anterior - implica na compatibilizacáo dos progressos evidentes alcancados pela disciplina Ce demonstrados pela exemplaridade das monografias antropológicas, clássicas e modernas) com a preocupacáo atual (via hermenéutica) de submeter
a disciplina a urna crítica saudável, levando-a a exorcizar o mito da objetivida de absoluta ou, sinteticamente, o seu renitente objetivismo;3. a terceira conseqüéncia estaria na rejeicáo de outra ideología que podecorroer por dentro a disciplina, isto é, o interpretativismo em sua feicáo"pos-moderna", livrando com tal rejeicáo a própria hermenéutica, a serretomada em suas origens, livre de leituras apressadas como ternos observado na história recente de nossa disciplina, especialmente nos EstadosUnidos. -
Sem dimensionar a contribuicáo da hermenéutica na epistemologia da
disciplina, ou, ainda, sem reconhecer o papel fundador do mét~do tantoquanto sua permanente atualidade na investigacáo antropológica, cria-se ocenário de um debate equivocado. E foi com o objetivo de contribuir paraevitar tais equívocos que as presentes consideracóes foram elaboradas.
17 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Sobreopensamento antropológico, especialmente Capítulos 1 e 4.
18 Para nao dizer que entre nós nao se registra urna monografia que expressa competentemente essa tensáo entre os paradigmas da ordem e o hermenéutico, gosraria demencionar o bonito livro de Alcida Rita Ramos Memorias Sanumá: Espaco e tempo emlima sociedadeyanomami.
106
Capítulo 6
ANTROPOLOGIAS PERIFÉRICASVERSUS ANTROPOLOGIAS CENTRAIS
o tema que me foi dado examinar nesta oportunidade - que me foi
sugerido por meu colega Dr. Secundo Moreno Yánez, secretário geraldeste congresso - contérn já em sua formulacáo urna inevitável interro
gac;:ao: como interpretar o termo versus?! Urna oposicáo intransponívelentre comunidades profissionais "periféricas" e "metropolitanas"? um conflito entre paradigmas exercitados em diferentes latitudes? ou urna relacáoeventualmente complementar entre perspectivas engendradas em mundosnao complementares, a se ter em mente urna visáo crítica terceiro-mundista...Gostaria, assim, de aceitar o desafio que me" oferece um tema tao complexo, cornecando por considerar - ainda que de sobrevóo - o tratamento que tem recebido nos diferentes cenários de debate internacional, selecionando uns poucos eventos que, aliás, parecem-me bem ilustrativos dedesconforto mesclado de certo sentimento de inferioridade e de muitaidiossincrasia, que térn marcado as relacóes entre as comunidades de pro
fissionais da disciplina situadas na periferia dos centros metropolitanos deonde se difundiu a chamada antropologia moderna.
Desde [á, todavia, gostaria de esclarecer sobre o que entendo pelotermo versus contido no título da conferencia: nao o vejo, de modo algum,por urna perspectiva negativa; ao contrário, interpreto a palavra "versus"como significando urna tensáo, nao social ou política, mas teórica - melhor dizendo, meta-teórica ou, seja, epistérnica. E acredito que tal tensáo '
seja extremamente fértil para o desenvolvimento da antropologia, tal comotodos desejamos. Embora as contradicóes de caráter económico, social e
político existam e nao possam ser ignoradas, creio que, mesmo reconhecendo esse estado de coisas e nao desprezando o seu componente tercei-
Este texto foi elaborado para constituir-se, em sua versáo em espanhol, em urna das"conferencias magistrales" do 49u Congreso Internacional de Americanistas, realizadoem Quito, Ecuador, de 7 a 11 de julho de 1997. Urna segunda versáo, algo reduzida,foi apresentada, tambérn como conferencia, no V Congreso Argentino de AntropologíaSocial, realizado em La Plata, Argentina, de 29 de julho a 1ude agosto de 1997.
107
Roberto Cardoso de Ofiveira
ro-mundista, nao posso deixar de constatar que há um espaco para odiálogo teórico e epistemológico em nível planetário - diálogo esse doqual nao poderemos nos furtar se desejamos, efetivamente, melhor noscapacitarmos na realizacáo de nosso ofício. Preocupado com essa relacáo
"centro/periferia", um grupo de antropólogos vem realizando no Brasilum programa de investigacóes com o objetivo de estudar comparativa
mente a singularidade das chamadas "antropologias periféricas" sob a ótica de uma abordagem estilística que contemple, simultaneamente, a voca<;:ao universalista de qualquer disciplina que se pretenda científica frente arealidade de seu exercício em contextos nacionais outros que nao sejamaqueles de onde se originaram os paradigmas fundadores da antropologia. Mais adiante, procurarei dar uma idéia desse programa e, a seguir,concluirei minha exposicáo com uma reflexáo sobre o tema, no intuito deestimular novas investigacóes que tenham por alvo as relacóes entre antropologias que, por serem tensas, nao sao, necessariamente, antagónicas,
Antes um esc1arecimento: embora eu me interesse mais por tensóes de
ordem meta-teórica ou paradigmática, nao posso deixar de reconhecerque teorias e paradigmas sao pensados e ativados por comunidades de profissionais de carne e osso - como nos ensinou Thomas Kuhn, esse competente historiador da ciencia -, ensejando, com isso, o desenvolvimentode análises extremamente agudas em que se combinam, sem se exc1uírem,duas tradicóes c1ássicas da história da ciencia, a internalista e a externalista; aque trabalha na esfera das idéias com a que procura descrever o contextohistórico-social dessas mesmas idéias, Curiosamente, nas diversas tentati
vas de interpretar a história e o presente da antropologia, ra~amente oponto de vista articulador dessas duas tradicóes pode ser implementado,o que resultou em uma preponderancia da preocupacáo quase que exclusivamente contextual, concorrendo para que o olhar político preponderasse sobre o espistemológico e tornando questóes como o colonialismo
ou a dependencia cultural temas dominantes na literatura crítica da disciplina, bem como nos encontros ou reunióes entre seus profissionais. Creioque essas reunióes merecem alguns comentários.
*Essas tres últimas décadas foram pródigas em simpósios e semináriossobre o assunto. Destaco alguns deles, uma vez que estamos limitados
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Antropofogias pertfericas versus antropofogias centrais
pelo tempo desta conferencia. Eu mesmo tive a chance de participar deseis: a primeira chance deu-se em Viena, no Burg Wartenstein, em 1967, echamou-se Reuniónpara la Integración de laEnseñanZf1 con lasInvestigaciones Antropológicas; a segunda e a terceira, deram-se no México, respectivamenteum desdobramento da reuniáo anterior intitulada 11 ReuniónparalaIntegraciónde laEnseñanza enlasInvestigaciones Antropológicas, realizada em 1968, na Cidade do México, e a 1 Reunión Técnica de Antropólogos eArqueólogos de .Américaútinay el Caribe, ocorrida na Hacienda Cocoyoc, no estado de Morelos,em 1979; a quarta e a quinta, ambas realizadas no Brasil, em 1980, no Riode Janeiro, e, em 1987, em Brasília, sendo a do Rio organizada pela Associa<;:ao Brasileira de Antropologia (ABA), com o título Rumos da Antro
pologia, enquanto a de Brasília, patrocinada pelo Instituto Panamericanode Geografia e História, pelo CNPq e pela mesma ABA, teve por título AAntropologia na América Latina. Nessa última reuniáo, pude ministraruma conferencia sobre "Identidade e diferenca entre antropologias periféricas"," ocasiáo em que examinei, grosso modo, os principais resultadosdessas reunióes e de outras - de que nao participei - mas que me pareceram extremamente importantes pelo temário geral e pela presen<;:a deseus participantes: refiro-me, especificamente, a duas delas: urna, em 1978realizada no mesmo Burg Wartenstein, com o título Indigenous Antbropologyin Non-Western Countries; outra, em 1982, proporcionada pela revista sueca
Etbnos, com o título Tbe Sbaping of NationalAntbropologies.Nao pretendo aqui reproduzir o que entáo pude dizer no evento de
Brasília, mas gostaria de retomar duas consideracóes que me parecemapropriadas nesta oportunidade. Urna diz respeito a temática das reunióesda década de 1960, praticamente circunscrita a avaliacáo do campo antro- 'pológico na América Latina, considerado, particularmente, em suas carencias institucionais, o que revelava, entáo, uma preocupacáo marcadamenteacadémica, ainda que as questóes epistemológicas se mantivessem longede serem abordadas. Outra consideracáo, que cabe agora fazer, diz respeito acrescente politizacáo do campo antropológico a partir dos anos 1970e 1980, quando a questáo da construcáo da nacáo - nation building -
2 O texto foi publicado ero George Cerqueira Leite Zarur (coord.), A antropofogia naAmérica Latina, pp. 15-30.
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Roberto Cardoso de Üliteira
corneca a tomar corpo naqueles eventos, em um reconhecimento da dimensáo política inerente as relacóes entre a comunidade de profissionaisda disciplina e os Estados nacionais. Evidentemente, as temáticas observadas em todos os eventos estiveram sempre sensíveis as relacóes entre ospaíses de centro, cujas antropologias eram tacitamente consideradas comometropolitanas em comparacáo as dos países periféricos, tomados tambémde modo tácito como "culturalmente colonizados", entendendo-se, aqui,
a própria antropología como urna subcultura ocidental. Aliás, vários entrenós, na América Latina, na África e na Ásia, muito escrevemos sobre essadependencia e sobre o urgente processo de desenvolvimento - certamente autónomo - de nossas antropologias.
Nao quero retomar agora esse último tema nos termos até entáo propostos, urna vez que já foi objeto de muitas discussóes nos cenários nacionais e internacionais. Desejo sim sublinhar as duas dirnensóes - a acadé
mica-institucional, que envolve as atividades de en sino e de pesquisa; e apolítica, na qual se colocam as questóes étnicas e nacionais, e em cujasavaliacóes as políticas estatais sao sempre objeto de crítica -, sobre asquais nao se pode deixar de examinar mais detidamente as atuais tendencias que comecarn a se esbocar nas relacóes entre as antropologias que, nafalta de melhor termo, chamaremos de "periféricas" em contraposicáo asantropologias "centrais", isto é, aquelas que surgiram em fins do séculopassado na Inglaterra, na Franca e nos Estados Unidos. Desejo enfatizar- como tenho feito repetidas vezes - que os conceitos de periferia e decentro nao possuem mais do que um significado geométrico, certamenteem n dimensóes, em que espac;:o e tempo sao igualmente levados em conta, sem, porém, implicarem um quadro valorativo, isto é de "boa" ou"má" antropologia... Minha última participacáo em eventos dessa ordemdeu-se mais recentemente, em 1994, quando a Associacáo Latino-americana de Antropologia (ALA), organizou urna reuniáo em Niterói, no Brasil, no ámbito da XIX Reuniáo Brasileira de Antropologia (ABA). O tema
desse fórum foi a "Organizacáo do 'campo antropológico' latino-americano", no qual participaram os vice-presidentes Myriam Jimeno Santoyo,Carlos Serrano, Segundo Moreno Yáñez e Roque de Barros Laraia, queapresentaram cornunicacóes sobre suas respectivas áreas de atuacáo. O
número 4 do Boletim da AlA (abril 1995) apresentou sumários dessascornunicacóes que nos serviram de ponto de partida para a organizacáo
110
Antropologiasperiféricas versus al1tropologias centrais
do fórum que acabamos de realizar na presente reuniáo, aqui em Quito, eque tive a satisfacáo de presidir. Menciono todos esses eventos para mos
trar que o empenho dos colegas latino-americanos em discutir o estadoda-arte da antropologia revela que nossa comunidade profissional naotem estado desinteressada sobre o destino da disciplina em ámbito continental, mas, pelo contrário, tern procurado realizar interessantes reflexóes
sobre diferentes aspectos do exercício da disciplina.Algumas idéias que podem ser res saltadas do conjunto desses eventos
devem servir como importante referencial nesta oportunidade. A primei
ra seria o reconhecimento de que a disciplina, na América Latina, está
inserida na categoria de "antropologia de nacóes novas", empenhada naconstrucáo da nacáo e destituída de grandes tradicóes intelectuais - ao
contrário do que ocorre nas antropologias de antigas civilizacóes como aChina, o J apáo ou a Índia. Ao mesmo tempo - e isso nao ocorreria apenasna América Latina -, a disciplina estaria eminentemente interessada em seu
próprio território ou regiáo - como a regiao andina ou a regiáo maia ou, em
menor intensidade, a regiao amazónica -, e seus antropólogos dedicamse prioritariamente aos trabalhos originários dos países de centro, devotando, em conseqüéncia, muito pouca atencáo ao que se produz no inte
rior das antropologias periféricas do continente e, sobretudo, fora dele.Quantos de nós tem familiaridade com a producáo antropológica de pa
íses da periferia européia, por exemplo, como a da Espanha ou Portugal,
da Grécia ou de países do leste europeu? Pode-se dizer que, além das
fronteiras de cada um de nossos países, pouco sabemos sequer sobre as
antropologias do nosso próprio continente e, sobretudo, das possibilid1des de suas respectivas contribuicóes ao desenvolvimento da disciplina,
sejam elas de caráter teórico ou mesmo metodológico. Contudo, há de se
reconhecer igualmente que essas características que, segundo alguns autores,
poderiam ser consideradas como marcadoras do tipo periférico, nem porisso se constituem em obstáculo insuperável com vistas a condueño de
nossas antropologías a um efetivo desenvolvimento em escala planetária.
*Com essas preocupacóes em mente, decidimos realizar um programa
de estudo sobre "estilos de antropologia", dele resultando um seminário
levado a efeito há uns poucos anos atrás, na Universidade Estadual de
111
Roberto Cerdoso de Oliveira
Campinas (Unicamp), e que serviu de ponto de partida para um conjuntode pesquisas projetadas para diferentes antropologias periféricas, tais comoas que térn lugar na Austrália, em Israel (Ierusalém), no Canadá (Quebec) ena Espanha (Catalunha).'
Antes de falar sobre essas pesquisas, gostaria de dar urna idéia geralsobre algumas conclusóes a que cheguei, pessoalmente, no aludido Seminário. Ao reunir colegas possuidores de experiencia de pesquisa e de reflexáo sobre a antropologia de seus respectivos países a par de contaremcom alguma vivencia na antropologia feita no Brasil, decidimos estabelecer um encontro que permitisse cornparacóes, se nao sistemáticas e globais,pelo menos fortuitas e tópicas, de modo a criar um clima de debate entrediferentes pontos de vista sobre a diversidade de atualizacáo de urna mesmadisciplina cada vez mais internacionalizada. Retomo a questáo inicial: comocompreender a singularidade de atualizacáo da antropologia nas chamadas "periferias" - que uso no plural, pois nao é urna, sao muitas - coma natureza universalista de qualquer disciplina que se queira científica? Nesse sentido, procurou-se mostrar que essa singularidade -, manifestadapela disciplina em seu processo de difusáo para fora dos centros em quese originou historicamente, tanto quanto sua insercáo e desenvolvirnentoem outros países - nao haveria de significar uma abdicacáo de sua pretensao universalista, urna vez que, tecnicamente, a disciplina sempre "falou" umaúnica "linguagem", talvez mudando ape:las o "tom", alguma coisa de sua"fonologia", ademais de urna ou outra contribuicáo para seu "léxico",
porém muito pouco - se é que efetivamente contribuiu - para sua"gramática". Ressalve-se, aqui, que o recurso a metáforas. provenientes deurna disciplina irrná, como a lingüística, se, de um lado, auxilia-nos para acompreensáo do problema - como suponho -, por outro, certamente,nao é suficiente do ponto de vista epistemológico, poi s deixa em abertourna importante questáo: como aplicar o conceito de estilo para caracterizar aantropologia - portanto, como algo rnais do que urna metáfora igualmenteoriginária da lingüística? Todavia, ainda valendo-rne de metáforas lingüísticas, creio que se a "gramaticalidade" da disciplina corresponde a sua
3 Os trabalhos apresentados nesse Seminario foram publicados em Roberto Cardosode Oliveira e Guilhermo Raul Ruben (orgs.), Estilosde antropologia.
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Antropologias periféricas versus antropofogias centrais
matrizdisciplinar, que tenho definido - seguindo elipticamente os passosde Thomas Kuhn - como constituída por um conjunto de paradigmasarticulados em um campo de tensáo epistémica, de maneira que nenhumparadigma supera ou anula outro paradigma, como no caso da matemática ou das ciencias físico-químicas, nas quais acorre a superacáo de umparadigma por outro. Diria que na antropologia, e imagino em várias dasciencias humanas, essa matriz disciplinar nao chega a alterar sua estruturaem quaisquer das latitudes em que se atualiza, Assim, se a concebermos como, aliás, tenho feito nesses últimos anos - como constituída de pelomenos quatro paradigmas perfeitamente ativos na modernidade da antropologia - o estruturalista levi-straussiano, o estrutural-funcionalista de inspiracáo británica, o culturalista norte-americano e o interpretativista geertziano;aos quais se poderia agregar outros, como o marxista, bu outros mais, demenor expressáo na história moderna da antropologia, sem que isso afeteo teor de meu argumento -, o fato é que as vicissitudes da matriz, vistana ordem planetária da disciplina, afetariam mais a sua dinámica internaportanto, gerando rnudancas na matriz - do que determinando mudancas em sua estrutura - isto é, mudanca da matriz. Portanto, a permanenciaativa de uma estrutura constituída por um sistema de paradigmas em tensainteracáo, significa - voltando as metáforas - que a "gramática" dadisciplina nao se altera ou, pelo menos, nao tem se alterado substancialmente. Em meu entendimento, o único paradigma novo - quer dizer,surgido nesta rnetade de século e que se expressa na chamada antropologia interpretativista - nao é mais do que urna recuperacáo tardia de umparadigma filosófico do século passado, o hermenéutico, recuperado, porsua vez, por Dilthey das filosofias c1ássica e medieval, e modernizado polGadamer ou Ricoeur no presente século, cujo final estamos testernunhando. Pois bem: se a matriz tem permanecido praticamente a mesma, comurna ou outra alteracáo observável nas antropologias centrais, garantindoassim a universalidade da disciplina, o que se pode entender entáo por suasingularidade na periferia? É aquí que entra a nocáo de estilo.
Tomo emprestado a nocáo de estilo, na forma pela qual ela foi desenvolvida por Gilles-Gaston Granger, em seu livro Essaid'unephilosophie d'sryle,que a entende associada anocáo de redundáncia - nao mais como merasmetáforas lingüísticas, mas como conceitos operacionais. Nao vejo necessidade em deter-me no exame desses conceitos - urna tarefa que realizei
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rRobertoCardoso de Ofiveira
,Antropofogiasperiféricas tersus antropofogias centrais
Dizia que o Programa sobre Estilos de Antropologias vem dandoresultados bastante promissores. Tentarei destacar alguns, ainda que obtidos em pesquisas nao necessariamente limitadas aAmérica Latina, em queo olhar dos colegas esteve orientado a partir de nosso continente, poistodos partiram de urna perspectiva engendrada no Brasil e condicionadapor urna antropologia enraizada no país. Como nao existe um lugar neutro de onde se pode observar a realidade, todos os estudos enfeixadosnesse programa devotado aconstrucáo de urna estilística envolvem, portanto, pontos de vista constituídos no quadro social, político e intelectuallatino-americano. Foi o caso, por exemplo, de tres das recentes pesquisasdo programa: urna primeira sobre a Austrália, realizada por nosso colegada Universidade de Brasilia, Stephen Baynes; outra efetuada em Jerusalém,por Marta Francisca Topel, e apresentada como tese de doutoramento naUnicamp; e a terceira feita em Barcelona, por mim, como professor-visitante da Universidade Aurónoma de Barcelona." A antropologia - oumelhor, a etnografia indígena - produzida na Austrália, a antropologiajudaica de Jerusalém - pois há que diferenciá-la da palestina -, bemcomo a catalá, que, de certo modo, mantém sua particularidade quando aconfrontamos com a castelhana, especialmente quando esrudamos o processo histórico de sua forrnacáo, todas essas antropologias foram observadas a partir de um lugar perfeitamente definido: a América Latina, maisespecificamente o Brasil. Isso confere a investigacáo urna característica quesó podemos equacionar em termos de estilo, pois compreender o outrosignifica um passo a mais do que simplesmente explicá-lo; é tambémapreendé-Io por meio de seus elementos ou instancias empíricas nao suscetíveis de explicacáo analítica, ou seja, o que se apreende é o "excedentede sentido" - ou o surcroit de sens, para usar urna expressáo originária dahermenéutica de Paul Ricoeur, para quem esse excesso de significa<;:ao éalcancado gra<;:as ao momento nao-metódico da investigacáo -, que, paramim, é precisamente o momento em que se transcende a própria matrizdisciplinar, isto é, ultrapassando-a sem negá-la. É o momento em que se
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em outro lugar, em minhas "Notas sobre urna estilística da antropologia",apresentadas no aludido simpósio sobre estilos de antropologia -, masapenas mostrar a possibilidade aberta pela utilizacáo dos mesmos em direcáo a urna estilística. Nesse sentido, redundancia passa a ser um conceitocomplementar a estilo na medida em que exprime algo no discurso quenao acrescenta nada amensagem, salvo o efeito de prolongá-la. Ao contrário do uso que os lingüistas fazem da redundancia, quando a tornamcomo perda de inforrnacáo relativamente a inforrnacáo máxima autori
zada pela língua - e aqui tomo a antropología como urna "linguagem"científica -, para mim - e aqui, talvez, me distancie um pouco de Granger-, a redundancia é a expressáo de um estado-de-coisas, é o resultado de
urna análise realizada por meio da matriz disciplinar, portanto na linguagem da antropologia, em que qualquer outro acréscimo de inforrnacáoseria inoperante relativamente a urna possível ampliacáo de nossa capacidade de cognicáo empírico-analítica; em outras palavras, essa capacidadeestá virtualmente oferecida pela potencialidade analítica da matriz disciplinar.
Isso nao é tudo. A antropologia, que aufere todas as suas pontencialidades de explicafao mediante a atualizacáo de sua matriz disciplinar, lancase simultaneamente a aventura da compreensdo; a rigor, urna aventura náo
metódica, profundamente individualizante, cujas conseqüéncias, impressas
no discurso antropológico resultante, só podemos considerar como Jatordeestilo. É, portanto, nesse sentido, que podemos considerar os elementosindividualizantes nas antropologías periféricas que lhes conferem particularidades que, por mais mareantes que sejam, nao nos autoriza¡n a c!assificálas com o epíteto de nacionais. Assim, nao há necessidade de buscarrnosnacionalizar nossas antropologias para alcancarrnos maior autonomia ou,mesmo, independencia frente as antropologias centráis. Tal busca pareceme fundada em um falso problema. Para as antropologias periféricas e,evidentemente, também, para as metropolitanas, o objetivo das diferentescomunidades profissionais está em dominar cada vez mais a matriz disciplinar, sua dinámica gerada pela tensáo inter-paradigmática, bem como osresultados que alcanca, ou tern alcancado, nas diferentes latitudes do planeta.
*
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4 o primeiro resultado de minhas investigacóes em Barcelona foi publicado na revistaMana: EstadosdeAntropofogiaSocia/, com O título "Identidade catalá e ideologia étnica",
pp. 9-47.
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Roberto Cerdoso de O/iveira
inaugura o estilo próprio de tal ou qual antropologia, particularizando-a
sem que ela perca sua vocacáo universalista assegurada pela matriz discipli
nar - urna matriz alicerc;:ada sob urna pluralidade de métodos bem comopor um conjunto articulado ou articulável de paradigmas. Várias questóes
podem ser levantadas sobre a natureza do conhecimento obtido pela viametódica quando o comparamos com o conhecimento gerado pela in terpretacáo compreensiva. Examinei-as em outras oportunidade." quandosegui muito de perto as contribuicóes de Ricoeur e de Apel sobre o tema;por isso, permito-me deixar de examiná-las agora, dizendo apenas que,
independentemente do fato da interpretacáo compreensiva ter ou naovalor apenas hipotético - posto que ela nao está autorizada a formular
"leis", regras, ou generalizacóes mais ambiciosas alcancadas pela explica
cáo -, o certo é que um debate como esse, mesmo que o levássemos aefeito nesta oportunidade, nao alteraria o sentido de nossa argurnentacáo,
pois o que desejo trazer a consideracáo dos colegas é urna linha de inves
tigar;:oes que, no meu entender, tern dado interessantes resultados.Trata-se, todavia, de um conjunto de estudos que objetiva' desenvol
ver-se no ámbito da América Latina, procurando, por meio das antropologias praticadas nos seus diferentes países, avaliar, por um lado, as possibilidades de desenvolvimento das mesmas; por outro, despertar um interés
se recíproco entre elas de maneira a incentivar um diálogo horizontal, sem queisso diminua a necessidade da manutencáo de uro maduro con tato com as
antropologías centrais e que seja mais do que um monólogo, mas a verticalizacáo do mesmo diálogo. Como dizia - acerca do Seminário sobre
Estilos -, colegas latino-americanos presentes no evento trouxeram, além
da boa vivencia na comunidade de antropólogos brasileiros, urna boadose de inforrnacóes sobre a disciplina em seus países. Se, da Venezuela,
tivemos a participacáo de Hebe Vessuri, com seu trabalho "Estilos nacionaisde antropología? Reflexóes a partir da sociología da ciencia", e da Argentina, a de Leonardo Figoli, com sua exposicáo "A antropología na Argentinae a construcáo da nacáo", tivemos também do Quebec, com Robert Crépeau,urna interessante exposicáo sobre "A antropología indígena brasileira vista
5 Consultar especialmente os capítulos 4 e 5 deste volurne, ande essa temática foi examinada com rnaior profundidade,
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.Antropoiogiasperiféricas versus antrop%gias centrais
do Quebec", ero que o autor nao deixa de compará-la com a antropolo
gia quebequense, e ainda urna segunda cornunicacáo sobre a antropologia
canadense de expressáo francesa, intitulada "O 'tio materno' e a antropo
logia quebequense", apresentada por Guilhermo Ruben, meu colega daUnicamp. Já considerávamos en tao, em nosso programa de pesquisas, oQuebec como parte da América Latina. Vale dizer que talvez tenha sido
essa regiao da América do Norte aguela gue mais atraiu a atencáo denos sos colegas, urna vez que sobre ela fixaram suas investigacóes nao somente Ruben, como também Celso AzzanJr., entáo doutorando da Unicarnp, ambos devotados ao estudo da disciplina antropológica no Canadáde língua francesa. E para nao dizer gue o nosso interesse sobre a América
Latina excluiria outras manifestacóes entre aguelas gue estamos denomi
nando antropologias periféricas, cuidamos de realizar urna investigacáo
comparada entre duas das mais desenvolvidas dessas antropologias: precisamente a quebequense e a catalá, respectivamente estudadas por
Guilhermo Ruben e por mimo O livro resultante encontra-se em elaborac;:ao e pensamos intitulá-Io As aventuras da etnicidade: antropofogia e ideofogiaétnica. O objetivo do estudo foi o exame do processo de formacáo daantropología em contextos sócio-culturais minados pela etnicidade, emque se pode observar nitidamente o papel de ideologias étnicas na conforrnacáo da disciplina. Os nacionalismos quebeguense e cataláo estáo de tal
forma enraizados nas respectivas sociedades gue contarninaram a forma
r;:ao histórica de suas antropologias, submetendo-as a um nítido processo deetnizafao. Todavia, cabe esclarecer, gue, na modernidade atual das discipli
nas, pouco se pode observar sobre o dominio da ideo logia étnica em suasrespectivas atualizacóes no Quebec ou na Catalunha. Nao se pode, todavia, ignorar gue essa etnizacáo, constatada na forrnacáo da disciplina, tenha
deixado suas marcas, passíveis de observacáo táo-somente por meio deurna concepcáo estilística da antropologia.
Pois bem. Se, por um lado, esse fato mostra a forca do contexto social,político e cultural na adaptacáo da disciplina na periferia de seus centros dedifusáo, penetrando-a de novos elementos dinamizadores da matriz disci
plinar, por outro, como estive procurando mostrar, os elementos dinamizadores nao concorreram para qualquer rnudanca da estrutura matricial,
que pode, assim, manter a mesmagestaft. A disciplina, nos contextos nacio
nais do Quebec e da Catalunha - como já indiquei, aliás -, pouco se
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Antropologias periféricas uersu: antropologias centrais
encontradi<;as nas nacóes novas da América Latina, essas nao devem serdesprezadas quanto as suas presencas - de algum modo aferível - nainstala<;aoda disciplina entre nós. Minha experiencia brasileira nao me permite sequer pensar qua! o grau de influencia que as antigas civilizacóes
americanas - como a Inca, a Asteca ou a Maia ' - podem ter exercidona antropologia que se pratica nos países andinos, no México ou na América Central. Como também me é difícil avaliar a importancia nesses e emoutros países do papel desempenhado por seus cronistas, viajantes e missionários quinhentistas e seiscentistas no estabelecirnento de temas ou naconstrucáo de abordagens de investigacáo, eventualmente ainda relevantesna atualidade da disciplina na América Latina. Já minha visáo da antropologia que fazemos no Brasil sugere descontinuidades óbvias. Talvez o fatoda disciplina ser entre nós, membros da comunidade profissional brasileira, uma atividade preponderantemente universitária, ela - pelo menosdurante esses últimos quarenta anos - abastecen-se de idéias e de padróes
de cornportamento provenientes do centros académicos europeus e norte-americanos. Certarnente, a influencia francesa, extremamente forte e hegem6nica nos anos 1940 e 1950, foi progressivamente substituída pelaanglo-americana nas décadas seguintes, em que pese a importante influencia do estruturalismo levi-straussiano em toda esta metade de século. Apresen<;a de etnólogos de língua alemá, pelo menos desde os anos 1930,nao foi suficiente para deixar sua marca na antropologia que fazemos hojeo Jáas "raízes", de que nos fala Krotz em um texto anterior," pouco nos dizem
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Roberto Cardoso de OlilJeira
diferencia do tipo metropolitano de antropologia, seja no que diz respeitoao caráter universal de sua producáo, seja no que tange asua qualidade eprodutividade. Mas a eficiencia das antropologias exercitadas em Montreal ou ern Barcelona nao encobre a forca de suas respectivas tradicóes quecontém, afora do processo de ernizacáo já examinado, outros elementosde ordem cultural que sao muito próprios a cada uma dessas antropologias. Esse é um fator ao qual nao se tem dado muita atencáo, como bemobserva nosso colega mexicano, o antropólogo Esteban Krotz. Nao é aprimeira vez que a leitura de trabalhos seus me foram de grande utilidade.Recentemente, em uma reuniáo organizada por Myriam Jimeno, em Bogotá, sobre o tema "La antropologia latinoamericana: crisis de los modelos explicativos"," pude valer-me das análises de Krotz sobre a antropologia que se realiza na América Latina e sobre seus comentários a respeito dealgumas de minhas próprias idéias veiculadas em meu livro Sobre opensamento antropológico. Embora o recorte epistemológico que venho adotandoem minhas análises nao coincida com sua perspectiva - mais próxima dahistória e da sociologia da ciencia -, considero-as mais complementaresdo que conflituosas: defendemos, igualmente, que o trabalho a ser desenvolvido na América Latina só pode ser coletivo. Estou certo que nOSSQSrespectivos recortes, por diferentes que possam ser, haveráo de contribuirpara a intensificacáo e o refinamento des se diálogo horizontal que ambosdefendemos, de forma que, inspirado em uma ou outra de suas consideracóes que considero mais pertinentes para o prosseguimento desse diálogo, retomo a seguir o tema das tradicóes,
*Ainda que nao se possa comparar o papel exercido pelas tradicóes
letradas de grandes civilizacóes, como as da China, do japáo ou da Índia, naconformacáo da antropologia nesses países, com as "pequenas tradicóes",
6 O título de sua exposicáo foi "La generación de teoría antropológica en AméricaLatina: Silenciamentos, tensiones intrínsecas y puntos de partida", c¡ue se seguiu aminha conferencia, "La antropología latinoamericana y la 'crisis' de los modelos explicativos: Paradigmas y teorías", ambas publicadas na revista colombiana Maguare, n'"11-12,1996. Quanto aminha conferencia, da está inserida, em sua versáo em portugués, neste volurne como seu capítulo 3.
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No capítulo 8 deste volume, a propósito de um interessante livro organizado por rneücolega do Centro de Lógica, Epistemología e História da Ciencia (CLE), da Unicamp,o filósofo Marcelo Dascal, intitulado CulturalRt/ativisnr and Philosophy: Nortb andLatinAmerican Perspectioes, faco consideracóes a respeito da relacáo entre tradicóes culturais - eurocénrricas e autótones das Américas - no ámbito da filosofía c¡ue,de certarnaneira, tem a1guma utilidade para nossa cornparacáo entre antropologias centrais eperiféricas. A diferenca estaria no fato de ambas modalidades de antropologia estaremvinculadas a urna mesma raiz, européia; ao passo c¡ueas filosofías dos Nahuatl ou dosTrique nada teriam a ver com o pensamento ocidental. Nesse caso, a comparacáo teriaa funcáo de urna elucidacáo recíproca entre modalidades de pensameruo.
Cf. Esteban Krotz, "Antropología y antropólogos en México: Elementos de balancepara construir perspectivas", in Lourdes Arizpe e Carlos Serrano (Compiladores),Balance de la Antropología enAmérica Latinay el Caribe, pp. 361-380.
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Roberto Cardase deO/iveira
quando procuramos resgatá-Ias em nossa prática profissional da disciplina. Contudo, se as raízes no Brasil nao possuem a mesma profundidade
histórica - e pré-histórica - que aquel as observadas no México, tal naosignifica que elas nao existam. É só tomarmos ern consideracáo a tradicáo
ensaísta brasileira, instituída desde o século passado, pelo menos. Porém,dizer que essa tradicáo tem ou teve o poder de marcar sua presenc;a namatriz disciplinar é algo que jamais ocorreu. Essa tradicáo ensaística cons
titui-se, a rigor, em fator de estilo. Se, no Brasil, tal tradicáo pode ser obser
vada facilmente em autores como Gilberto Freyre, ontem, ou RobertoDa Marta, hoje, marcando nao o estilo brasi1eiro, mas um dos estilos de
antropología que no Brasil se pratica, posso imaginar - e isso vale apenas
como hipótese de trabalho - que em países como o México, suas várias
rradicóes, nao importando o grau de profundidade que possuam, podem
ser consideradas igualmente como fator de estilo." Continuo a acreditar
que o melhor caminho para investigar a particularidade da antropologiaque se faz no México também seja o da estilística; e gostaria que tal inves
tigac;ao fosse realizada por meio de urna pesquisa comparada, 'nao para
lograr urna teoria geral da antropologia latino-americana - tal comparacáo só nos tornaria "colecionadores de borboletas", para me valer aquí da
feliz expressáo de Leach -, mas para tirarmos proveito da comparacáocomo um instrumento de elucidacáo recíproca das respectivas antropologias, submetidas a um cuidadoso escrutinio. Considere-se, ainda, que urna
estilística, menos do que pretender substituir outras modalidades de estu
do das antropologias periféricas, nada mais é do que um acréscimo, urnaénfase especial no discurso da antropologia, portante, um recurso a mais
destinado a ampliar nossa capacidade de cornpreender as particularidadesde urna disciplina nos novas ambientes sócio-culturais que a encerram.
O que fazer para lograrmos a consolidacáo da disciplina nos países lati
no-americanos ande ela, por diferentes motivos, ainda encontra obstáculospara o seu desenvolvimento? Claro que nao tenho a pretensáo de ter a
Antrop%giasperiféricas uersns antrop%gias centrais
soluc;ao para esse problema, muito menos urna receita... Mesmo porque,
como há urna extrema diversidade nos diferentes contextos latino-americanos em que se insere a disciplina, é impossível urna solucáo geral e é imprová
vel que qualquer um entre nós, de forma individual, tenha a pretensáo de
conhecer a antropologia em escala continental, de modo a poder sugerir solu
<;:oes, ainda que tópicas. Tome-se, como exemplo, o problema institucionalenvolvendo a relacáo da disciplina, isto é, da pesquisa e de seu ensino, com os
Estados nacionais. Esta é urna questáo, entre muitas outras, que só poderá serenfrentada pelos antropólogos de cada país; e, fazendo minhas as palavras deGuilhermo Bonfil, quando se refere ao que ironicamente chama de "casamento" entre o Estado mexicano e a antropologia, reproduzo sua fala:
Sin embargo, el maridaje con el Estado persiste, Heno de conflictos,insatisfacciones y frustraciones. O Josantropólogos proponemos nuevasbases de la relación conjugal (o el divorcio), o será el Estado quien lo haga.Más nos vale participar en esto con nuestra propia decisión.lO
E como a presen<;:a do Estado é, em regra, sempre muito forte em nossos
países - ainda que jamais na mesma proporcáo daquela que se observa
no México -, o comentário de Bonfil é mais do que oportuno. Incita-nosa tomarmos nossas próprias iniciativas, enquanto comunidade profissio
nal, diante de questóes cruciais como esta, que contextualiza decisivamentenossa disciplina. É precisamente o momento em que se articulam, no processo de investigacáo, as perspectivas externas e internas, a análise institu
cional e a análise do discurso, a interpreracáo sociológica e a estilística.Por tudo isso, em lugar de solucóes, gostaria apenas de apontar para
um conjunto de indicadores que acredito de alguma utilidade no exame
comparado e nos diagnósticos das antropologias que fazemos em nossospaíses. Alguns des ses indicadores, que aqui relaciono sem nenhuma preten
sao de esgotá-Ios, podem ser os seguintes:1. a concentracdo dasinvestigafoes noterritorio nacional, que, no caso das antropo
logias periféricas, parece ser um trace característico, pelo menos para aAmérica Latina;
9 Recenternente, pude explorar urna modalidade específica de tradicáo na antropologia catalá - que podemos definir como etnicidade - ern um ensaio intitulado"Etnicidade como fator de estilo", publicado nos Cedernos de Histári« e Fi/osofia daCiencia, Série 3, vol. 5, número Especial, 1995, pp. 145-171, e aqui republicado como
Capítulo 7.
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10 Guillermo Bonfil Batalla, "Problemas conjugales?: Una hipótese sobre las relacionesdel Estado y la antropologia social en México", in G,c.L.Zarur (org.), A antrop%giana América Latina, p. 99.
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RobertoCardoso de Oliteira
2. as debilidades institucionais, particularmente nas esferas universitárias e científicas, com carencias de boas bibliotecas, ausencia de implantacáo ou implantacáo deficiente do estatuto de "dedicacáo exclusiva" e suas conse
qüéncias salariais, além de poucos recursos para financiamento de pesqui
sas, etc.;3. a dependéncia do exterior para a jonnarao profissional auancada, dependenciaque, em alguns países, é extremamente elevada enquanto, em outros, pode
ser bem mais reduzida, porém nao está ausente;4. o mercado de frabalho aquémda demanda e cujas características próprias váodesde urna pobreza franciscana, com reduzida oferta de cargos nas universidades ou fora delas, até urna razoável oferta, como se pode observar
em pouquíssimos países do continente;5. a ausénaa de periódicos de circularao internacional, pelo menos nas regióes
latino-americanas, onde - ao que parece - só recentemente o idiomaportugués corneca a ter mais leitores de língua castelhana, fato que, por sua
vez, nao explica a deficiente circulacáo desses mesmos periódicos na
Hispano-América; e, finalmente, '6. o perfil meta-teorice da antropologia em nossos países, em verdade, um perfilque pode ir desde o eventual predomínio de um ou outro dos paradigmas fundadores da disciplina, até a arualizacáo crítica da matriz disciplinar- como a ternos definido -, a saber, como articulacáo simultanea, tensae interdependente de paradigmas originários historicamente na Inglaterra,Franca e Estados Unidos da América e ainda presentes na modernidade dadisciplina; isso merece urna consideracáo adicional: ern vários lugares, tenho
questionado a idéia de que mesmo nas antropologias metropolitanas os paradigmas que conformam a matriz disciplinar sejam, hoje, absolutamenteautónomos, como foram, ou procuraram ser, desde o final do século
passado até meados deste; o fato que efetivamente se observa, na atualidade da disciplina, é que, mesmo naquelas antropologias, seus respectivosparadigmas originais já estáo em intensa interacáo com os demais, igualmente abrigados na mesma matriz disciplinar; o que ocorre, todavia, é queessa interacáo tem características diferentes daquela que tem lugar nas antropologias periféricas: nessas, ela é mais fácil, poi s as comunidades profissionais da disciplina estáo despojadas de compromissos epistemológicoshistóricos, o que resulta em um diálogo mais fluente, com urna carga menorde preconceito teórico, expressáo que uso aqui no sentido gadameriano ou
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Antropofogiasperiféricas uerstts antropofogias centrais
hermeneutico.Procurarei ilustrar brevemente a aplicacáo desse conjunto de indicado
res com a antropologia que se pratica no Brasil. Nao darei números, nenhuma estatística, para nao sobrecarregar a exposicáo, Procurarei fazeralgumas consideracóes sobre cada um des ses indicadores, de maneira a
fornecer urna idéia sobre o que haveria de específico no "caso brasileiro",se confrontado com outras antropologias periféricas.
1. Efetivamente, observa-se, no Brasil, urna concentracáo desmesura
da nos temas nacionais e no enderecarnento da pesquisa nos limites doterritório nacional. Isso vem de longe e se justifica amplamente, visto que atéos anos 1940 - se assim posso arbitrar - a massa dos estudos sobre o paísesteve a cargo de pesquisadores e/ou viajantes e cronistas estrangeiros. Umbom indicador disso foi o celebrado Manual bibliogreifico deestados brasileiros, de1949, organizado por Rubens Borba de Moraes, um importante historiador brasileiro, entáo sub-diretor dos Servicos Bibliotecários da ONU, e
William Berrien, professor da Universidade de Harvard. Nessa bibliografia,observa-se a absoluta preponderancia de autores estrangeiros sobre os autores nacionais, revelando, nitidamente, que os estudos relativos ao país eramhegemonicamente realizados por brasilianistas europeus e norte-americanos.Diante disso, é claro que havia necessidade de se reverter essa relacáo, demaneira a fazer com que o Brasil fosse também investigado por seus própriosintelectuais. E isso era verdadeiro para o conjunto das ciencias sociais, para ahistória e para a literatura. Nesse sentido, cerca de duas décadas depois, essarelacáo comecaria a se inverter, em direcáo ao predomínio das obras escritas
por nacionais. E, atualmente, nao é exagero dizer que os brasilianistas tornaram-se absolutamente minoritários. Explico isso com o forte desenvolvimen-'to dos cursos de pós-graduacáo que, a partir de meados dos anos 1960,
cornecaram a produzir pesquisadores em ciencias sociais e em história, cujas
teses de mestrado, inicialmente, e, depois, as de doutorado, tiveram significativo reflexo no movimento editorial, urna vez que grande parte dessas tesesfoi publicada por editoras universitárias e comerciais. Hoje, o que se podedizer, é que - pelo menos na área da antropologia - nao se justifica mais aexclusiva atencáo a realidade nacional, podendo os antropólogos voltaremseu interesse também para além fronteiras. Digo os antropólogos porque acaracterística mais mareante de nossa disciplina é tratar com a alteridade,com a diversidade cultural, com a variacáo de forma de vida, objetivo que
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Roberto Cerdoso de Oliveira
só logramos alcanc;:ar em nossas próprias sociedades quando transformamos - por meio de recursos de método - o familiar em exótico, conseguindo, com isso, estranhar suficientemente tudo aquilo que nos é próximo, de maneira a poder alcanc;:ar urna distancia mínima que nos habilite ao
questionamento típico do olhar etnográfico. Entendo que o momentopresente corneca a ser extremamente favorável para programarmos pesquisas no exterior simultaneamente aos estudos que devemos continuar afazer dentro do território nacional. E isso corneca a ser facilitado pelaestrutura de ensino e pesquisa avanc;:ada que vem se esbocando no país,com possibilidade de consolidacáo futura. Refiro-rne, específicamente, ao
papel das agencias nacionais de apoio a pesquisa e ao ensino de pós-graduacáo. Isso nos leva ao segundo indicador mencionado.
2. Quanto a questáo da debilidade institucional encontradica nas antro
pologias periféricas, dela nao escapa a antropologia que fazemos no Brasil. Se é verdade que contamos com algumas agencias de financiarnentogovernamental, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, melhor conhecido por sua antiga sigla CÑPq; ou aFinanciadora de Pesquisas Científica e Tecnológicas (Finep); ou ainda aCoordenacáo do Aperfeic;:oamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),é igualmente verdade que elas cobrem apenas urna parte da demanda pórfinanciamento da pesquisa científica e de ensino avanc;:ado. Além dessas, háde se considerar as agencias estaduais, desvinculadas do sistema federal. Amais prestigiosa é a Fundacáo para o Amparo a Pesquisa do Estado deSao Paulo (Fapesp), que, há décadas, dá suporte financeíro as atividadesde ensino e pesquisa no estado de Sao Paulo, apoiando, sobretudo, suastres universidade estaduais: a USP, a Unicamp e a Unesp. Todas essas agencias funcionam há quase meio século, o que dá ao sistema urna razoávelcontinuidade que, no caso da América Latina, é um dado até certo pontosurpreendente! Nesse sentido, nao é exagero dizer que as universidadespaulistas, bem como os institutos estaduais de pesquisa, ou ainda as melhores de suas instituicóes particulares de nível superior, estáo bastante amparadas em cornparacáo com os demais estados da federacáo. Em al
guns, como os estados do Río de Janeiro, do Río Grande do Sul, de SantaCatarina, do Paraná ou do próprio Distrito Federal, em Brasilia, em que seinstalaram fundacóes formalmente análogas, tal fato nao vem tendo omesmo sucesso - salvo engano - que o alcancado por Sao Paulo. Isso
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Alltrupologias penJéncas »ers«: antropolo/i,Ías tentrais
faz com que se observe um grande desequilibrio na distribuicáo de recursos em escala nacional, ficando praticamente todo o ónus desse desequilí
brio para as agencias federais, como a Capes, o CNPq ou a Finep _ que,ainda assim, colaboram com as instituic;:6es científicas e de ensino superiorpaulistas. Com excecáo da Finep - que também, mas residual.mente, opera
na forrnacáo de quadros científicos académicos - as outras agencias de financiamento vém atuando principalmente na con cessao de bolsas de estudo e
de pesquisa, com prejuízo para o fomento da pesquisa propriamente díta, asaber, a satisfacáo da demanda por yerbas operacionais de investigac;:ao.Arualmente, o governo federal criou o Pronex - sigla do Programa Nacional de Centros de Excelencia -, vinculado diretamente ao :MinistériodeCiencia e Tecnologia, por meio do qual se espera que grupos de investigadores de alto nível possam obter os recursos de que necessitsm para a realizacáo de projetos específicos e de alta relevancia científica OU tecnológica.
A antropologia social e cultural vem se socorrendo de todas essas agencias, incluindo o Pronex, disputando seu lugar frente as ciencias exatas enaturais. Essa é urna competic;:ao por recursos que, aliás, envolve todo ocampo de pesquisa e de ensino avanc;:ado, e em que nao só o Pronex é
mobilizado, mas também as demais agencias de flnanciamento, como osprogramas integrados do CNPq ou da Fapesp, para ilustrarmos com asmais solicitadas agencias de fomento da pesquisa. Diante da relativa escassez de yerbas para projetos de pesquisa, térn surgido novas estratégiaspara a obtencáo de recursos. Minha própria experiencia de trabalho, nosquatro principais programas de pós-graduacáo do país - o Museu Nacional, da Universidade Federal do Río de Janeiro (UFRJ); a Universidade deBrasilia (UnB); a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Univer"
sidade de Sao Paulo (USP) -, tem indicado como adequado para a realizac;:ao de pesquisas em nossa disciplina o recurso achamada bolsa "sanduí.che". É urna bolsa de estudo concedida pela Capes e pelo CNPq destinadaa estudantes pós-graduados que estejarn no final de curso, quando já tenhamsido aprovados na maior parte das disciplinas curriculares e tenham obtidoaceitacáo de seu projeto de pesquisa, quer para dissertacáo de mestrado,
quer para tese de doutorado. Em ambos os casos, o estudante candidatase a urna bolsa que lhe permita, seja obter alguns créditos-disciplina emoutras instituicóes, nacionais ou estrangeiras, ou, por meio de sua aceitacáonessas universidades na qualidade de "aluno especial", possa fazer a pes-
125
~
, :
Roberto Cardoso de Olioeira
quisa para cuja realizacáo teve seu projeto aprovado na universidade deorigem. Isso nos leva ao exame do terceiro indicador: a dependencia do
exterior para a formacáo avancada.3. Como avaliar essa dependencia da antropologia que se faz no Brasil?
O que eu poderia dizer, grosso modo, é que, desde o evento do primeiro
doutor ern antropologia formado nos Estados Unidos - o falecido antropólogo Eduardo Galváo, PhD pela Universidade Colúmbia em 1952 -,muitos outros, tanto lá como na Europa, graduaram-se. Em verdade, nao sepoderia dizer que o doutorado no exterior, por mais prestigioso que fosse,como os de Colúmbia, de Harvard ou da Universidade de Paris, nunca foi oúnico doutoramento disponível para o estudante brasileiro. O doutorado
oferecido pela USP, desde os anos 1940, e inspirado no modelo europeucontinental- francés e alernáo -, supria a demanda de urna elite, sobrerudo a paulista, assim como o mestrado oferecido pela entáo Escola Livre
de Sociologia e Politica, institui¡;:ao particular de ensino superior. Sornentecom a reforma universitária federal, ocorrida em meados dos anos 1960,é que a pós-gradua¡;:ao teve condi¡;:6es para desenvolver-se surpreendentemente. Para ficarmos só com os mestrados e doutorados ern antropologia, há de se registrar o do Museu Nacional, criado em 1968; o da Unicamp, em 1971; o da UnB, ern 1972; e o da USP, reformulado para'omodelo de inspiracáo norte-americana - isto é, cursos organizados pordisciplina-créditos _, em 1971. Como já mencionei, tal fato haveria de serefletir, urna década depois, no aumento substancial da producáo de ensaios emonografias antropológicas. Como resultado desse incremento na forrnacáode quadros em antropologias - e, certamente, corn menor intensidade, emsociologia e em ciencia política -, comecou a haver urna rerracáo naoferta de bolsas para doutoramento no exterior, posto que para mestrado, em regra, as únicas bolsas eram destinadas a universidades brasileiras,
desde que possuidoras de status A concedido pela Capes. Mas é bomdeixar claro que isso nao significa que o sistema de pós-gradua¡;:aobrasileiroconsidere-se auto-suficiente; diante da escassez de recursos, foi necessário estimular os doutoramentos nacionais, sem deixar de conceder um número maisreduzido de bolsas aos candidatos que demonstrassem ser indispensávelpara sua forrnacáo avan¡;:ada o ingresso ern um doutorado fora do Brasil.Mas, a rigor, pelo menos em nossa disciplina, a dependencia do exterior
vem diminuindo sensivelmente nesses últimos dez ou quinze anos.
126,¡.
Antropologíaspenféricas versus antropologías centrais
4. Com relacáo ao mercado de trabalho, gostaria de limitar-me a urnaspoucas consideracóes de caráter genérico. Diria, inicialmente, que o mercado caminha para urna hierarquizacáo crescente. Significa que as universidades de maior prestígio estáo praticamente restritas a contratacáo de doutores; dificilmente um possuidor de título de mestre por elas será contratado. Ao mesmo tempo, as demais universidades do país, possuidoras decursos de ciencias sociais, quer em nível de pós-graduacáo (stn'cto e latoSeflsu), quer unicamente em nível de gradua¡;:ao, buscam docentes ao menospossuidores do título de mestre. Tudo isso porque há, atualmente, entrenós, urna obsessáo por cursos pós-graduados - e grande parte dos reitores de universidades as margens dos grandes centros nacionais procuram qualificar suas instituicóes da melhor maneira possível, urna vez queisso significa aumento de recursos financeiros. A grande arnbicáo dessesdirigentes universitários da área federal é conseguir prestígio académicoque os leve a dialogar com o Ministério da Educacáo com maiores chances de obtencáo desses recursos.
Mas entendo que o mercado de trabalho para antropólogos, no Brasil,ainda que quase restrito ao ámbito das universidades, nao está esgotado. Ogrande número de concursos realizados em diferentes universidades, sobretudo nas federais, onde~ pelo menos em antropo logia - registra-seurn número muito pequeno de candidatos, sejam eles mes tres ou doutores. Depois da reforma constitucional de 1988, somente se pode ingressarern urna universidade estadual ou federal por meio de concurso público;portanto, esses concursos sao conhecidos por seus editais, exigidos por lei.E o que vemos é a pequena migracáo de mestres e doutores para universidades de poueo prestígio académico e/ou que estejam distantes das ci~
dades onde residem. A forte migracáo interna que se observa nos EstadosUnidos, por exemplo, nao se dá no Brasil. Isso faz com que nao ocorraurna boa distribuicáo nacional dos egressos dos cursos de pós-gradua<;ao
mais credenciados. Por outro lado, contudo, é interessante observar que amaioria dos estudantes latino-americanos que obtém seus títulos pós-graduados no Brasil, em lugar de retornar aos seus países de origem, tendema permanecer entre nós, concorrendo com seus colegas brasileiros. Aindaque exista um dispositivo legal que impede a estrangeiros fazer concursopara ingresso nos quadros permanentes das universidades, isso praticamente só ocorre na área federal, urna vez que em estados da federacáo,
127
[I!
Roberto Cardoso deOliveira
como Sao Paulo, tal dispositivo nao é levado em conta, Como tampoucoé levado em consideracáo a diferenciacáo entre nacionais e estrangeirospara a obtencáo de bolsas de estudo ou de pesquisa. Embora eu naopossa oferecer números, posso dizer que é bastante expressiva a quantidade de estudantes estrangeiros, latino-americanos, como clientes do sistemade fomento da pesquisa e do ensino avancado brasileiro.
5. A ausencia ou a reduzida presenc;:a de periódicos de circulacáo nacional em antropologia no Brasil é um fato. De antropologia, nao mais doque tres periódicos sao de circulacáo nacional, ainda que de modo deficiente, em razáo da pequena tiragem e das dificuldades de distribuicáo, Amais antiga é a Revista de Antropologia, publicada pelo Departamento deAntropologia da Universidade de Sao Paulo: criada em 1953, foi totalmente reforrnulada, modernizada e ampliada em número de páginas apartir de 1991, após o falecimento de Egon Schaden, seu fundador; emseguida, ternos o .Anuário Antropológico, do Departamento de Antropologiada Universidade de Brasília, proposto por mim, em 1976, quatro anosdepois de minha chegada na UnB, proveniente do Museu Nacional.finalmente, ternos, agora, urna nova revista, Mana: Estados de Antropologia Social,criada em 1995, pela nova geracáo de antropólogos do Museu Nacionalda Universidade Federal do Río de Janeiro. Contudo, durante muitos anos,o periódico de maior prestigio foi a Revista do Miae« Paulist», :uja novasérie data de 1947, e teve como seu grande mentor o antropólogo Herbert Baldus, que a dirigiu até 1967, entrando em declinio após seu falecimento. Porérn, os antropólogos brasileiros nao dispóern apenas de revistas exclusivamente de antropologia, pois contam ainda com várias outrasde ciencias sociais, como a editada pela Associacáo Nacional de Pós-gra
duacáo em Ciencias Sociais (Anpocs), além de urna dezena do mesmogenero, porém vinculadas a universidades. Há, enfim, outras mais, do tipomiscelánea - como a Revista da USP ou NovosEstudos/Cebrap - em queartigos de antropologia comparecem ocasionalmente.
A divulgacáo desses periódicos é deficiente, nao só em nível nacional,como, notadarnente, em escala internacional, no ámbiro da América Latina.'!
11 Por exemplo, em relacáo ao México, cf Esteban Krotz, "La generación de recriaantropológica en América Latina: Silenciamentos, tensiones intrínsecas y puntos departida", p. 33.
128
"
Antropologias periféncas versus antropologias centrais
Se isso já ocorre na Hispano-América, com os textos escritos em espanhol, é muito maior a dificuldade de divulgacáo dos escritos em portugues. Todos os colegas que possuem alguma experiencia de atividades noBrasil devem concordar sobre a receptividade do idioma castelhano nocampo intelectual brasileiro; a recíproca nao é verdadeira. Os cerca de 150milhóes de falantes do portugués no Brasil nao sao suficientes para despertar o interesse dos hispano-americanos em, pelo menos, se esforcarernpara ler o que escrevemos - salvo, como sempre, as excecóes de praxe ...Há, no entanto, indicios de mudanca, como um crescente interesse deaprendizado da língua portuguesa pelos países do Mercosul, por razóesóbvias... Se isso ocorrer, tenho a esperanca de que resultados mais animadores chegaráo para a antropologia que praticamos no Brasil. Urna coisa,todavia, eu gostaria de firmar: entendo, pessoalmente, que a internacionalizacáo dessa antropologia será tanto mais importante para nós quamornais ela for lida nos espac;:os latino-americanos; para mim, pelo menos, ofeedback mais desejado será aquele que virá da comunidade de antropólogos da América Latina. E isso porque estou seguro que pode remos aprendermuito com a experiencia que a disciplina vem recebendo no continente,posto que, sob a variacáo insofismável dessa experiencia entre nós, é lícitoesperar que um conjunto de questóes comuns, de um modo ou de outro,repercutam na dinámica da matriz disciplinar.
6. Em um ensaio escrito há alguns anos, intitulado "O que é isso quechamamos de Antropologia Brasileira?"," procurei elaborar um esquemacapaz de reproduzir a estrutura da matriz disciplinar que, no meu modode ver, apontasse para suas dimensóes mais ativas do ponto de vista damodernidade da disciplina.':' Ao mostrar preliminarmente o quanto a tradicáo de estados etnológicos relativos aopovos indígenas se eomportava diante dasegunda tradicáo importante entre nós, aquela referente aos estados sobre asociedade nacional, e tomando como variáveis relevantes os estudos culturalistasdiferenciados dos estruturalistas, eheguei a esbocar uro quadro deseritivo
12 Publicado primeiramente no AnllórioAntropológico, n' 85, pp. 227-246; republicado emSobre opmsamenfo antropoló¡jco, pp. 109·141.
13 CE figura 1, p. ,do texto "O que é isso que chamamos de Antropología Brasíleira?",em Sobre o PensamentoAntropoló¡jco.
129
"I I
Roberto Cerdoso de Q/iveiro
no qual pudemos localizar, em cada um dos quatro espa<;:os criados noámbito de urna coordenada cartesiana, o seguinte quadro: no primeiroespa<;:o, em que se cruzam a tradicáo de estudos etnológicos com a perspectiva culturalista, localizamos dois de nossos maiores etnólogos; CurtNimuendaju, respondendo ao que chamei de período "heróico" daetnologia, e Darcy Ribeiro, respondendo igualmente ao período "carismático" - imediatamente posterior ao primeiro. Ainda considerando aperspectiva culturalista, porém relativamente aos estudos sobre a sociedade nacional, entendi que Gilberto Freyre era um legítimo representante doperíodo "heróico", enquanto que o brasilianista Charles Wagley - porforca de sua influencia na implantacáo dos estudos de comunidade noBrasil - expressaria adequadamente o período "carismático". É indispensável esclarecer que por heroico entendo o período em que a disciplinaainda nao estava institucionalizada no país, ao passo que por carismáticoentendo o período em que, estimulando o processo de institucionalizacáoda antropologia, destacam-se profissionais de grande influencia, capaz demobilizar o campo intelectual dos que se devotam adisciplina. Ji no quetange ao cruzamento das duas tradicóes - a relativa aos estudos etnológicos cruzada com a de estudos sobre a sociedade nacional -, com a perspectiva estruturalista comum, seja a de raiz anglo-saxonica, seja a de raizfrancesa, ternos de nos restringir ao período carismático, posto que talperspectiva é bem posterior aimplantacáo dos estudos culturalistas entrenós. Pudemos registrar, assim, a influencia de Florestan Fernandes nos estudos de etnologia indígena - considerando-se, aqui, sua fase etnológica,gra<;:as a suas monografias sobre os Tupinambá - e a influencia do sociólogo norte-americano Donald Pierson - nao por acaso representantedo período carismático -, dada sua influencia decisiva na organizacáo daEscola Livre de Sociologia e Política, onde, aliás, estudaram Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro. Vale dizer, nesse sentido, que a vertente sóciocultural da antropologia - hoje preferentemente denominada antropologia social - é bastante solidária da sociologia, daí porque nao é de seestranhar que autores, como Florestan Fernandes, Charles Wagley, RogerBastide - e o próprio Claude Lévi-Strauss, quando ensinou na USP, nosanos 1930, como professor de sociologia - estiveram sempre na fronteira das duas disciplinas. Além do mais, há um dado que nao deve ser desconsiderado: o fato de nao existir no Brasil cursos de gradua<;:ao em an-
130
rAntropologiospenftricos IJerJIIS ontrop%gios centrais
tropologia, mas cursos de ciencias sociais, ficando a forrnacáo específicaern antropologia em cursos de pós-graduacáo, em níveis de mestrado edoutorado. A disciplina sociologia é, assim, ministrada no Brasil duranteos quatro anos que leva em média a graduacáo em ciencias sociais, com
urna ligeira preponderancia pedagógica sobre a antropologia e a cienciapolítica. O resultado disso, mesmo na forrnacáo pós-graduada do antro
pólogo, é que o jovem mestre ou doutor transita com facilidade nas disciplinas que constituíram seu currículo de gradua<;:ao. Os "estudos de cornunidade" foram, assim, indistintamente realizados por sociólogos e antropólogos nos anos 1940 e 1950, tempo em que tiveram bastante prestígionos meios universitários brasileiros, cornecando seu declínio nos anos 1960.
*Como vejo atualmente as potencialidades da matriz disciplinar na an
tropologia que fazemos no Brasil? Para mostrar o rumo que a disciplinatem tomado no seio da comunidade de seus profissionais, gostaria de mevaler do mesmo recurso de que me vali em outra ocasiáo, quando mequestionaram sobre o que chamamos de antropologia brasileira. Retomo agorapara consideracáo dois conceitos importantes, demarcadores do exercíciode nossa disciplina, ou dois ':mega-conceitos", como diria Clifford Geertz:mltura e estrutura. Ao tomá-los, verificamos que há urna evidente polissemia, somente esclarecida quando procuramos relacioná-los com o paradigma no qual estáo inseridos. É assim que se pode constatar - tomandoos termos cultura e estrutura no ámbito de tradicóes lingüísticas específicas-, que, na tradicáo alerná, observa-se dois sentidos claramente distintos:o de Kultt«, referente acultura como sistema de costumes e de elementosmateriais produzidos em seu interior; e Bildung, como expressáo "espiritual de um povo". Essas duas palavras alernás podem servir de referenciano processo de forrnacáo da antropologia nos Estados Unidos se considerarmos o papel desempenhado por Franz Boas, certamente o seu "paifundador" no final do século passado, herdeiro, por um lado, do romantisrno alernáo, e, por outro, um antropólogo determinado em dar a suadisciplina um verdadeiro statusde ciencia. Diria, portanto, que Boas podeservir como urna boa "metáfora humana" indicadora de urna certa ambigüidade no uso da nocáo de cultura. E, se quisermos elaborar urna genealogia do paradigma culturalista, encontraremos em Boas a atual duplicida-
131
Roberto Cardos» de Oliieira
de da antropologia moderna norte-americana, ora voltada para o seu tradicional culturalismo, ora aberta para o seu desdobramento, a saber, paraum novo paradigma - o interpretativista -, também preocupado coma dirnensáo cultural, porém em urna acepcáo rnuito próxima ao sentidode Bildul1g, Eu compreendo o binomio Kultur/ Bi/dung como expressáo deurna ambivalencia, cuja história estamos testemunhando nos dias que corremo Tomando-se, agora, um segundo binomio, aquele que se expressapela equacáo Strucfural/Structurale - o primeiro termo nativo da antropologia británica, o segundo igualmente nativo da antropologia francesa
-, ternos, respectivamente, a palavra estrutura como expressando o megaconceito do paradigma estrutural-funcionalista británico e o do estruturalismo de Lévi-Strauss, Ao se considerar, assim, o relacionamento dessesquatro conceitos que tendencialmente expressam quatro paradigmas abrigados na matriz disciplinar, podemos acompanhar o movimento que realizam no campo antropológico brasileiro. Infelizmente, nao há tempoaqui para examinarmos esse movimento dos conceitos, como pudemosfazer em outra oportunidade, quando examinamos o deslocalnento deum conjunto de conceitos da Europa para a América Latina."
Podemos contudo dizer - como conclusáo desta conferencia -, quea antropologia no Brasil tende a atualizar de forma criativa a matriz discíplinar, ao tirar da tensáo entre seus paradigmas e da dinámica de seus megaconceitos muito daquilo que poderíamos considerar como sendo próprio deurna "antropologia de ponta". E essa constatacáo é algo que se pode observar nao só no Brasil, mas em várias das antropologias periféricas, seja naAmérica Latina, seja na Europa ou no Oriente Médio - como ocorre exernplarmente na Espanha e em Israel. Apesar das dificuldades que sempre encontramos, mas que nao ignoramos - particularmente as institucionais efinanceiras -, vejo com um moderado otimismo o que está ocorrendoem nosso continente. E esse otimismo justifica-se quando constato o interessecada vez maior, na América Latina, sobre a avaliacáo da disciplina, seja ernámbito local ou regional, como demonstram vários dos textos aqui refe
ridos, como os organizados por Lourdes Arizpe e Carlos Serrano sobre o
14 Cf. R.Cardoso de Oliveira, "O movirnento dos conceitos na Antropología", in &vistadeAntropologia, vol. 36, 1993, pp. 13-31, republicado neste volume como Capítulo 2..
132
i..........
Antropologia.r penféncas versus antropologia.< centrai.r
Balance delaAntropologla enAmén'caLatinay elCaribe; o editado por EstebanKrotz, AspectosdelasAntropologlas enAménca Latina; ou, ainda, o organizado por George Cerqueira Leite Zarur, A Antropologia na Aménca Ltina ou
por Myriam jirneno, Antropologla enLatinoamérica, além de estudos restritosa países específicos, mas destinados a induzir urna reflexáo teórica com
alcance comparativo. Contarn, entre esses estudos, ointeressantíssimo li
vro de Gonzalo Aguirre Beltran, Elpensary e!quehacer antropológico enl\1.é>.:7cO ;o de Manuel M.Marsal, Histón'a de la antropología indiget1ista: México)' Perü; ode Mariza Correa, Histárin da antropologia noBrasil (1930-1960); o de Segun
do Moreno Yánez, Antropología ectlatoriana: Passado y presente; e, compiladopelo mesmo Moreno y ánez, Antropologia de! Ecuador; acrescentando-se,ainda, nesta relacáo por certo incompleta, o volume coletivo sobre Un siglo
de iniestigaaon social: Antropologia en Colombia, editado por Jaime ArochaRodríguez e Nina S. de Friedemann. Algum etnógrafo mais obstinadopoderia ver nisso uma certa dose de narcisismo inerente as comunidadesprofissionais, quando insistem ern refletir sobre si mesmas em lugar de sedevotarem exclusivamente ao estudo do outro. Eu nao vejo assirn: poiscomo se limitar a estudar alterídades sern se dar conta do próprio camposemántico em que o investigador está inserido? Ou sem se examinar detidamente o horizonte por meio do qual se fi!tram todas as imagens quenosso olhar constrói sobre o outro etnográfico? Enfim, ternos aquí urna
parte expressiva da comunídade de antropólogos dedicados aos estudosamericanistas e uma forte representac;ao dos colegas latino-americanos,aos quais gostaría que coubesse a última palavra sobre se estamos no rumocerto.
133
J
Capítulo 7
A ETNICIDADECOMO FATOR DE ESTILO*
INTRODu<;:ÁO
Há duas décadas, tive a oportunidade de publicar urna coletánea demeus primeiros ensaios sobre identidade, etnia e organizacáo social por
meio dos quais procurava dimensionar o significado, para a antropologia,de fenómenos sócio-culturais emergentes das situacóes de confronto entre diferentes etnias situadas no interior de Estados nacionais.' Fenómenos
esses que passariam a ser c!assificados como etnicidade. Menciono issopara dizer que a temática tratada naquele volume, volta - ainda que comoutra roupagem - a constituir-se, agora, no tema central do presenteartigo, aduzido da questáo da contaminacáo da disciplina por essa mesma
etnicidade, entendida como um fator de estilo.Ao considerar que nesses últimos vinte anos a teoria das relacóes in te
rétnicas enriqueceu-se sobremaneira, ampliando e aprofundando o co
nhecimento que a antropologia 'tem podido trazer para o esc!arecimentoda etnicidade, nao procurarei tratar aqui daquilo que entendo por contribuicóes ateoria das relacóes interétnicas, ou sobre o que se poderia enten
der como sendo o "vivo e o morto" da teoria na atualidade. O que pretendo desenvolver é uma reflexáo sobre a relacáo entre a etnicidade e a
disciplina antropologia, menos no exame das possibilidades dessa conheceraquela, senáo sobre o fenómeno da própria etnicidade inserir-se no processo de adaptacáo da antropologia nas áreas periféricas aos centros de ondeela, como disciplina autónoma, originou-se. Essas áreas, com a exclusáo
L
* o presente ensaio foi publicado originalmente pelo Centro de Lógica. Epistemologíae História da Ciencia - CLE/ Unicamp - em seus Cadernos deHistoria e Filosofia daCiencia, série 3. nO especial, jan.-dez. 1995, pp. 145-171.
Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade, etnia e estrutura social, rambérn foi publicadoem espanhol, em urna edicáo ampliada, com mais dois capítulos, intitulada Etnicidadyestructura social.
135
\
I
l
Iji
Roberto Cardoso de Oliveira
da Inglaterra, da Franca e dos Estados Unidos, podem incluir qualqueroutro país desde que tenha abrigado a disciplina em seu processo de difu
sao por todas as latitudes do planeta.Porém, nesta oportunidade, nao se está focalizando essa dispersáo da
disciplina em qualquer outro cenário que nao seja aquele marcado pelapresen<;a de relacóes interétnicas que se dáo no interior de Estados nacio
nais. O problema, portanto, é a forma como se manifesta a presen<;a daetnicidade na própria conforrnacáo da antropologia. Seria uma espécie dereinvencáo da disciplina em espa<;os marcados por antagonismos étnicos,
quando deles sequer a disciplina consegue ficar incólume? A esse cenário éque se aplica o termo etnicidade, a ser tomado aqui como tendo por refe
rente um espa<;o social, interno a um determinado país, onde as etniasexistentes mantérn relacóes assimétricas; sendo, nesse sentido, "essencialmente uma forma de interacáo entre grupos culturais operando dentro de
contextos sociais comuns'Y Eu ainda acrescentaria que pelo menos umadessas etnias desfrutaria de um poder emanado de um Estado, de cujaconstituicáo tal etnia participaria de forma majoritária.
UNlVERSALIDADE E
SINGULARIDADE DA DISCIPUNA
Contudo, antes de examinar um caso específico, em que a antropologia estaria envolvida ela mesma em um processo de etnizacáo, gostaria deme deter em uma preliminar: a de reconhecer que sob as eventuais alteracóes que uma determinada disciplina - no caso, a antropologia social ecultural- pode sofrer, ela nao pode fugir de sua incontornável pretensáo auniversalidade, ou, em outras palavras, para nao abdicar de sua cientificidade,da nao tem outra alternativa senáo a de reproduzir aquilo que se pode chamar_ na falta de um termo melhor e sem me rotular de "essencialista" - deessénaa disciplinar, aquilo que marca a antropologia enquanto tal. A saber, oque a torna reconhecível como antropologia - portanto sua uniuersalidade_ nao importa a particu/aridade de sua insercáo em uma ou em outralatitude, onde a questáo da etnicidade a contamina, nem mesrno na singu/aridade dessa contarninacáo em antropologias igualmente marcadas pelo
A etnicidade comoJatorde estilo
confronto étnico. Isso significa que a disciplina nao pode perder seu alcance planetário, em que pese a particularidade que ganha em absorver aetnicidade - dado o contexto interétnico em que se insere - e a singularidade determinada por sua adaptacáo em tal ou qual país anfitriáo,
E o teste desse alcance será sempre o da plena possibilidade de suainterlocu<;ao no interior da comunidade internacional de profissionais daantropologia. Nesses termos, pode-se dizer que a "linguagem falada" pelas disciplinas periféricas nao pode deixar de ser inteligível em escala planetária. Costumo valer-me aqui de uma metáfora originária da lingüística,segundo a qual a antropologia, em seu diálogo planetario, seria equivalentea uma "língua" - cuja estrutura, por exemplo, poderia ser análoga áquiloque tenho chamado de "matriz disciplinar";' sendo suas manifestacóeslocais, seu s "di aletos" e suas atualizacóes em tais ou quais comunidades
profissionais em um mesmo cenário nacional ou regional, seu "idioleto".Ter-se-ia, assim, nesse modelo exploratório, a universalidade da língua, aparticularidade do dialeto, a singularidade do idioleto. Quera crer que,pelo menos como metáfora exclusivamente válida como recurso de reflexáo sobre a disciplina, ela sirva para expressar nosso modelo, mesmo queencontre, eventualmente, resistencia entre os lingüistas.
Mas tomemos essa matriz ·disciplinar. Em outras oportunidades pudeelaborá-la extensamente, razáo pela qual vou reproduzi-la apenas em suaslinhas mes tras e limitando-me a destacar os argumentos principais. A idéiabásica que sustenta a elaboracáo da matriz é a de paradigma, em sua acep<;ao kuhniana," o que nao significa que o conceito de matriz disciplinar deque estou me valendo corresponda exatamente ao de Kuhn; e, muito menos, que as controvérsias' em torno de sua obra, no que tange ahistória diciencia, tenham maior repercussáo nas consideracóes a seguir. E isso porque estou recorrendo mais a nOfao de paradigma, do que ao seu conceitopropriamente dito. Portanto, se o conceito de Kuhn pode estar envolvidoem controvérsias, já a idéia geral nele contida - portanto, sua nocáo -
3 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Sobre opensamento al/tropológico, especialmente o Capítulo 1.
2 Abner Cohen, Ethnicity, p. Xl.
136
iL
4
5
Cf. T. Kuhn, Tbe structure ofscientijic reuolations.
Cf., por exemplo, 1. Lakatos eA. Musgrave (orgs.), Criticúm andgrolJ'tb ofkn01l'!edge.
137
r J •
Roberto Cardoso deO/iveiraA etnicidade comofator deestilo
mos de sua relevancia para a explicacáo ou a compreensáo da realidade
sócio-cultural- a presencado tempo está indicada com o termo diacronia;sua ausencia, com seu oposto sincronia. Urna explanacáo mais completasobre a elaboracáo desse modelo está detalhada em outro lugar,"
FIGURA 1
Mais importante do que localizar esses paradigmas em um modelogeométrico é examinar as possibilidades aberras pelo processo de articula
l1ao que tem lugar entre eles. Imaginemos quatro círculos, cada um corres
pondendo a um dos paradigmas mencionados, submetidos a um movimento centrípedo direcionado para um ponto central e único de intersel1ao, conforme mostra a Figura 1. Tomemos esse ponto de intersecáo
como indicador de um nódulo em que se articulam os quatro paradigmas./\. conjuncáo entre esses círculos representaria - nesse nosso exercíciometafórico - uma arriculacáo de paradigmas tendente a constituir, a seu
tempo, um único paradigma. Em outras palavras, ter-se-ia a transformal1ao de uma matriz disciplinar originária - formada por quatro paradigmas históricos - naquilo que se poderia reconhecer como sendo "o" paradigma observável sem maiores dificuldades na antropologia de nossos
días.
rl!1ti
i1
pode perfeitamente transcender o nivel de debate em que sua obra se viuenvolvida. Assim sendo, enquanto esse autor identifica paradigma commatriz disciplinar, praticamente utilizando as duas expressoes como equi
valentes, preferi distingui-Ias, na medida ern que procuro mostrar que naantropología nao tem lugar aquela sucessáo de paradigmas que se observa
nas ciéncias naturais, nos termos em que Kuhn tem podido mostrar.Entendo, ao contrário, que, na antropologia, os paradigmas existem
em simultaneidade. Se na física o paradigma newtoniano foi substituído
pelo da relatividade, ou na matemática a geometria euclidiana foi superadapela de Lobatchevski, na disciplina antropológica o paradigma racionalis
ta, o estrutural-funcionalista, o culturalista e o hermenéutico coexistem nointerior de urna única matriz. Naturalmente que a história des ses quatroparadigmas pode ser rastreada a partir das "escolas" que surgiram na segunda metade do século passado," as quais, vale acrescentar, o recente"movimento", de vocal1ao pós-moderna,7 surgido a partir dos anos 1960.
Portanto, sao fatos datados de fácil aferil1ao empírica. Fatos que se distribuem por duas das tradicóes filosóficas mais significativas na hisrória dopensamento ocidental: a intelectualista e a empirista. Dois a dois, os paradigmas se classificam em urna e em outra tradicáo: o racionalista e o her
menéutico na primeira tradicáo; o estrutural-funcionalista e o culturalistana segunda. Vejamos o que sao esses paradigmas e como articulam-se
entre si.Sucintamente, diria que os paradigmas intelectualistas - o racionalista
e o hermenéutico _ estáo enraizados, respectivamente, na Escola Francesa de Sociología e no Movimento Interpretativista norte-americano; osparadigmas empiristas, isto é, o estrutural-funcionalista e o culturalista, tém
sua origem na Escola Briranica de Antropologia Social e na Escola Norte
americana Histórico Cultural. Conforme indica o Quadro 1, a"justaposicáo desses paradigmas dá-se no interior de um espaco criado e subdividi
do por coordenadas cartesianas, urna delas representando as uadicóesintelectualista e empirista; outra, a dimensao tempo - cronos -, em ter-
tradicáo<,
tempo
SINCRONIA
DIACRONIA
INTELECTUALJSTA
Estola Francesa deSociologíaParadigma racionalista e, em
sua forma moderna, estruturalista
(1)
Antropologia InterpretativaParadigma hermenéutico
(3)
EMPIRISTA
EscolaB,itánica de AntropologiaParadigma empirista e estrutural
funcionalista.(2)
Escola Histórico-CulturalParadigma culturalista
(4)
~
6
7
A École Franpise deSociologie, a BritshSchool of SocialAnthropologJ e a AmericanHistorica!
SchoolofC"lturaIAntropologJ.
O Interpretive Mouvement.
138
'-
B Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Sobre opensamento antropológico, Capítulos 1 a 4.
139
Roberto Cardoso deOliveira
FIGURA 2
A área escura é para onde tendem a confluir os paradigmas originais numerados de 1 a 4 - no que poderá resultar em um novo paradigma.
Penso estar certo quando constato nao haver, atualmente, modalidadedo fazer antropológico em que nao se possa identificar a combinacáo dedais ou mais des ses paradigmas históricos. Tomemos dais exemplos:1. a obra de Lévi-Strauss, na qual se pode identificar facilmente a articula<;ao entre o paradigma racionalista - responsável por seu estruturalismo_ e o paradigma culturalista - esse último, em razáo da influencia daetnologia boasiana efetivada durante seu período' nova-iorq1}ino, vivido
durante a Segunda Guerra Mundial;2. o de Edmund Leach, formado no interior da tradicáo empirista e noámbito do paradigma estrutural-funcionalista británico, porém forternen
te influenciado pelo estruturalismo levi-straussiano.Todavia, observa-se também que tanto Lévi-Strauss quanto Leach guar
dam indiscutível fidelidade epistemológica aos seus paradigmas originais;fidelidad e essa perfeitamente aferível por qualquer leitor atento. Tais exernplos se repetem bastante quanto mais fa<;amos leituras diligentes de antropólogos de expressáo internacional. Esclare<;a-se que, por expressáo internacional quera realcar aqueles profissionais que participam efetivamenteda comunidade planetária da disciplina, portante que fazem parte ativa de
140
L
A etnuidade comojator deestilo
urna ampla "comunidade de cornunicacáo e de argumentacáo" YA idenrificacáo de paradigmas originais na forrnacáo de tal ou qual antropólogofaz parte da própria prática do diálogo que tem lugar no interior dessascomunidades, gra<;as aqual nos inserimos em "jogos de linguagem" específicos. A metáfora lingüística de que lancei rnáo linhas atrás, permite entender cada um des ses paradigmas como "di aletos" de urna mesma linguagem antropológica - a rigor urna única "língua" - em cujo ámbitoidentificaríamos igualmente o estilo de cada autor, responsável por seu"idioleto". Contudo, nao desejo valer-me da nocáo de estilo exclusivamente para dar conta de características individuais sinalizadoras da produ<;ao intelectual de tal ou qual escritor, como certos autores, como o historiador Peter Gay, lograram realizar. 10 Meu interesse aqui é tratar a questáoestilística relativamente aproducáo intelectual de coletividades, particularmente de comunidades de profissionais daantropologia, em prosseguimento ao que venho escrevendo sobre o assunto." Portanto, menos doque tratar do problema da individualizacáo de discursos antropológicos,trata-se de individuar ou especificar estilos inerentes a certas tradicóes comunitárias de trabalho antropológico - no que penso, aliás, estar emconsonáncia com idéias do Professor Granger." Com essa forrnulacáo, jáestamos nos introduzindo na problemática estilística propriamente dita, Enada melhor do que tomarmos um caso específico que sirva de referenciaempírica relativamente ao encaminhamento de nossa questáo central.
A FORMA<;ÁO DA ANTROPOLOGIA CATALÁ
Tive a oportunidade de tratar recenternente do cenário cultural e político cataláo do final do século passado e princípios des te,13 destacando-o 'como o contexto do qual emergem a identidade étnica historicamente
9 Cf. K.-o. Apel, "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendental delas ciencias sociales", in LA transformación delafilosoJia, tomo Il.
10 Peter Gay, O estilo na bistória.
11 Roberto Cardoso de Oliveira, Sobre opensamento antropológico; e "Notas sobre urna estilística da antropologia", in R. Cardoso de Oliveira e G. R. Ruben, Estilos deantropologia.
12 G.-G. Granger, Esstry d'une pbilosopbie du s(yle.
13 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, "Identidade catalá e ideologia étnica", in Mana:EstadosdeAntropologia Social, vol. 1, nO 1, out. 1955.
141
I
1
Roberto Cardoso de Oliveira
constituída e a ideología da catalanidade que a sustenta. Procurei, entáo,
indicar algumas das características que marcam a identidade catalá, forma
da por urna sorte de oposicáo sistemática a identidade castelhana. Pensa
dores cataláes dos finais dos oitocentos, como Josep Torras i Bages ou
Valentí Almirall, e autores dos princípios do século XX, como Enrie Prat
de la Riba, Josep Ferrater Mora ou Jaume Vicens i Vives, todos refletiramsobre essa identidade no marco dessa oposicáo, O caldo de cultura em
que subjaz dita identidade está, assim, na representacáo coletiva que o povocataláo faz das relacóes sociais, económicas e políticas que mantérn com o
povo castelhano, mediadas, por sua vez, pelo Estado espanhol. Um Esta
do dominado pelos herdeiros da Casa de Castela, tida, pelos cataláes, como
secularmente opressora. E tive ocasiáo de mostrar o quadro étnico que con
grega a populacáo imigrante, envolvida no processo de incorporacáo pelo
mercado de trabalho existente na cidade de Barcelona, capital da regía o
catalá, e local escolhido para a pesquisa. Resumidamente, diria que, se apli
cássemos o conceito de etnicidade ao sistema interétnico barcelonés, nao
alcancaríamos a mesma rentabilidade de análise com relacáo aos cataláes,
urna vez que esses estariam vivendo a condicáo de povo majoritário, por
tanto dominador das etnias imigrantes, tais como a basca, a galega ou a
andaluza - para exemplificarmos apenas com essas tres, que parecem ser as
mais expressivas no quadro étnico local. O poder político, no interior da
regiao, está instalado na Genera/itat de Cata/uf!Ya e demais órgáos administrati
vos, portanto nas máos de caraláes que vivem, internamente, a situafiio de
povo dominante. Todavia, tal siruacáo nao é suficiente para anular neles
urna consciéncia de povo dominado, externamente dominado pelo Estado
espanhol marcadamente castelhano. Essa consciencia, que abre o horizon
te cataláo para além de sua própria regiáo, vai inseri-los ao mesmo tempo
na dinámica da etnicidade. E gera um ressentimento anti-castelhano de
amplitude cósmica, alcancando todos os recantos do Vo/kgeist cataláo, A
afirrnacáo de sua identidade étnica é sistematicamente levada a efeito pela
negac;:ao da identidade castelhana. Realiza-se aqui, exemplarmente, o que a
teoria barthiana da "identidade contrastante" consideraria como nuclear." a
A etnicidade comoJator deestilo
afirrnacáo de si como negac;:ao do outro; no caso cataláo: o assumir-secomo povo em contraste agente castelhana.
A etnicidade catalá configura-se como tal no sistema de relacóes inre
rétnicas administrado pelo Estado espanhol. E é nesse sentido que se podeentender desde as posicóes mais radicais~ como ilustra no limite o caso
basco -, porém minoritárias no quadro cataláo, até as posturas mais con
dizentes com o Estado democrático, na quais a disputa se faz por via
parlamentar ou por outras modalidades de luta que nao a armada. Contudo, o seu esforco em lograr algo mais do que urna mera autonomía admi
nistrativa, como conquistou desde a queda do franquismo, nao esmoreceu. E, por via democrática, o cataláo continua a lutar por seus direitos,
ancorados em sua cultura milenar, ern seu idioma, ern seu Vo/kgeist. E foi
precisamente nessa direcáo que a intelectualidade catalá convergiu seus in
teresses, pelo menos desde fins do século passádo, Tais interesses resulta
ram em urna forma de etnizacáo dos setores mais relevantes da cultura, de
modo que desse processo quase compulsivo de etnizacáo nao escaparia aprópria antropología, pelo menos em seus primórdios.
Entendo, por conseguinte, que se pode tracar sem maiores dificuldades urna linha de desenvolvimento que vai do folclore - tomado aqui
como urna disciplina das mais antigas no campo da pesquisa cultural naCatalunha - a constituic;:ao da antropología como disciplina autónoma,no quadro da investigacño e do ensino académico na regiáo. O direito
consuetudinário, a literatura, as artes plásticas e rítmicas, o folclore cataláo
propriamente dito, foram sempre minuciosamente estudados, dentro de
um espírito obcecado pela busca das origens da nacionalidade catalá. E
isso com o intuito declarado de distinguir-se das demais etnias do território espanhol, notadarnente da populacáo castelhana. Comenta urn dos
mais argutos historiadores da antropología catalá, Lluís Calvo i Calvo, que
"para o ressurgímento da consciencia nacional [...] o folclore tem contri
buído de maneira poderosa"; e acrescenta, ainda, que "o nacionalismo
marcou o desenvolvimento do folclore até o ponto de poder afirmar que
ele tem sido um de seu s motores"." Todavia, no que tange a questáoespecífica do nacionalismo, é necessário esclarecer que o caso cataláo nao
14 Cf. F. Barth, Ethnicgroups and boundaries; e Roberto Cardoso de Oliveira, "Identidadecatalá e ideologia étnica".
142
--15 Lluís Calvo, Tomás Carreras i .Ariau o el tremp de I'etnologia catalana, p. 62.
143
Roberto Cardoso de Oliveiro
pode ser simplesmente categorizado no ambito dos fenómenos da nationbuilding, como fenómenos que emergem do seio de movimentos de construcáo de nacóes, particularmente daquelas que se localizam em nossohemisfério - nacóes novas - e com as quais partilhamos urna grandeexperiencia histórica; experiencia que se reflete até mesmo no que diz respeito a própria constituicáo da antropología brasileira" e, provavelmente,a construcáo de outras antropologias igualmente periféricas. Porém, podese dizer, relativamente ao caso cataláo, marcado pela ernicidade, que eleseria, no máximo, urna subespécie da ampla categoria de "construcáo danacáo", categoria essa em que a dorninacáo étnica, no ámbito interno dosistema societário, nao tem maior relevancia explicativa - a sermos coerentes com a nocáo de ernicidade de que estamos nos valendo: como
propóe o já mencionado Abner Cohen,
o termo etnicidade será de pouca valía se ele for estendido para denotardiferencas culturais entre sociedades isoladas, regióes autónomas ou stocks
independentes de populacóes.I'
E exemplifica:
As diferencas entre chineses e indianos, considerados em suas respectivaspátrias, sao diferencas nacionais, nao étnicas. Mas quando grupos de chinesese de indianos irnigranres interagem em urna terra estrangeira como chineses eindianos podem entáo ser referidos como grupos étnicos. is
Essa longa citacáo permite esclarecer, relativamente ao casoem foco, aduplicidade e a ambigüidade das posicóes assumidas pelos cataláes, seja naprópria Catalunha, quando agem como cultura hegemónica ~ - a partirda criacáo recente das Autonornias - como poder local administrativosobre os imigrantes de outras regióes da Espanha ou do estrangeiro; sejacom relacáo ao Estado espanhol, frente ao qual, mesmo no interior daCatalunha, mas sobretudo fora dela, devem a ele se submeter, razáo pela
qual vivem a condicáo de etnia dominada.
A etnicidade como[arar deestilo
Esclarecido esse ponto - que me parece crucial para a cornpreensáoda especificidade do caso cataláo -, retomemos a questáo do folclore ede seu papel na forrnacáo da antropologia. Um dos autores - atores maisimportantes nessa passagem do folclore a antropologia foi Tomas Carrerasi Artau, criador de muitas instiruicóes caralás, merecendo maior destaque oprestigioso Arxiu d'etnogrtifia ifolklorede CatalUfrya. 19 Em 1911, em seu artigo "Investigacóes sobre a ciencia moral e jurídica de Catalunha", pracicamente delineia um programa direcionado para a exploracáo científica douniverso cataláo por interrnédio do que ele chamou de psicologia coletiva.Urna disciplina que nao esconde as influencias da Volkerp[jclJologie de Wundt,dos estudos de Lévy-Bruhl sobre "mentalidade primitiva", ou dos de Tylorsobre a "civilizacáo primitiva" ou, ainda, os de Boas sobre a "mente dohomem primitivo". Sao influencias múltiplas, provenientes dos vários centros metropolitanos, onde já se cornecava entáo a estabelecer as bases damoderna antropologia. Diz ele:
A aplicacáo dos procedimentos de psicologia coletiva ahistória da conscienciamoral e jurídica da Catalunha; o conteúdo e hierarquia dessa consciencia, ouseja,as concepcóes científicas ou reflexivas e as concepcóes pessoais de genio;o estudo particular das fontes de investígacáo dessas diversas categorias deconcepcóes, a saber, das producóes poéticas em seus diversos géneros, daslendas e das tradicóes perpetuadas (jolk-lor'e) com a conseguinte necessáriadepuracáo, dos tratados dos teólogos e dos filósofos, das obras jurídicas elegislativas, e mui especialmente das ricas e inesgotáveis concepcóes de direitoe economía consuetudinários [oo.] tem, como resultado de toda essa investigac;:ao de conjunto, [oo.] de apontar os traeos permanentemente característicosda consciencia moral e jurídica da Catalunha, [para] revelar a fisionomía espiritual do povo cataláo e mostrar a significacáo histórica e futura deste povoem suas relacóes naturais com os dernais povos ibéricos."
16
17
18
Cf. M. Peirano,Tbeontropology of onthropology: Tbe bra'IJlion cose.
Abner Cohen, Ethnicity, p. XI.
Idern,
144 1
19
20
Cf.o interessante trabalho de L. Calvo, "L'arxiu d'etnografia i folklore de Catalunya.El projecte noucentista de renovació i institucionalització de etnografia catalana", inLluísCalvo (org.), Aportocions o la historia del'antropologio catalana i hispanico.
Todaessacitacáo está em LluísCalvo, "L'arxiud'etnografia i folklore de Catalunya. Elprojecte noucentista de renovació i institucionalització de etnografia catalana", p. 87.
145
L
¡¡
[1!¡
I!
Roberto Cardoso de Gliueira
Acredito que essa extensa citacáo se justifique, dada a ampla informa
cáo que nos oferece. Por ela, podemos verificar que o grande desideratumdesses estudos está - já desde as suas origens - na elucidacáo da identidade catalá.
O folclore aparece assim como tema de investigacáo e como discipli
na, destituída, todavía, da cientificidade que Carreras i Artau e seus con
temporáneos, afinados com o mesmo objetivo, procuravam implantar
nos mesmos estudos. O século XIX havia plantado fortemente as raízes
desses estudos, inspirados no romantismo alernáo - especialmente em
Herder - e no movimento renascentista cataláo, sua particular Renaixenca,a rigor, o renascimento da língua, da cultura e da identidade catalás,
subjugadas por séculas de dorninacáo castelhana. No boja desses fatos,
a via folclorista vai ficar profundamente influenciada pelo romantismo e aRenaixenFa. A salvaguarda ou a recuperacáo dos valores pátrios se convertemem estímulo permanente para muitos folcloristas. Nacionalismo e recuperacáo da própria identidade [sao] como eixos vertebraisdos nossos folcloristas."
Todavia, para dar a esses estudos o alcance científico de que necessi
tam, elabora-se urn guia, particularmente inspirado no já entáo celebrado
Notes and queries on anthopology, e redigido por Carreras i Artau, catedrático
da Faculdade de Filosofia e Letras, e Batista i Roca, professor auxiliar da
mesma Faculdade, ambas da Universidade de Barcelona. Intitulado Manual per a recerques d'etnograjia de Catalu'!Ya e editado em cataláo pelo .Arxiud'etnograjia i folklore de Catalunya, em 1921, escrevem seus responsáveís que
tratando-se de urna empresa coletiva que poucoa pouco vai desenvolvendoo seu pensamento, este Manual terá de ser objeto de revisáo sempre que oA1XÍ1I considere necessário condensar em forma normativa os avances obtidos durante urn período determinado, nos seus métodos de investigacáo enas novas perspectivas de trabalho.F
21 Cf Lluís Calvo, Tomas Carreras i .Artau o el tren'P de I'etnologia catalana, p. 91.
22 Cf "L'arxiu d'etnografia i folklore de Catalunya", Manualper a recerques d'etnograjia deCatalunya, p. 4.
146
,t
,A dnicidade comofator deestilo
Entretanto, se o Manual atende as necessidades de caráter metodológi
co, mais exatamente a demanda de técnicas de coleta de dados, cabe per
guntar sobre a orienta<;ao propriamente episrémica dessa tentativa de
cientifizacáo, A se julgar pela presenca do positivismo e da denominada
"Filosofia do Senso Comum", como doutrinas de significativa influencia
no século XIX, pode-se dizer que foi por meio delas que os estudos sobre
a cultura catalá postuJaram seu ingresso no campo propriamente científico
- ou, pelo menos, nos termos em que esse campo era concebido pelaintelectualidade da época. Valho-me de algumas avaliacóes do já mencionado Lluís Calvo.
Concretamente, consideramos que os postulados defendidos pela Filosofia• do Senso Comum sao urna das bases que deram alento a boa parte dos
estudos folclóricos do século XIX cataláo, - Por que áfirmamos tal coisa?Obviamente, porque durante o tempo de vivenciadessa filosofia, na Catalunha, sua transcendencia foi importante, jáque penetrou em muitos [e] distintos setores da vida catalá: desde os intelectuais [...] até a burguesia do rnomento."
Ao alcancar um desenvolvimento rnais acentuado na Escócia dos sé
culos XVIII e XIX - especialmente com Thomas Reíd (1710-1796),Dugald Steward (1753-1828) e-William Hamilton (1788-1856) _, a Filo
sofia do Senso Comum veio ao encontro da ideología da catalanidade,
contribuindo para a consolidac;:ao de urn dos pilares da identidade catalá
que se expressa em urna de suas categorias constitutivas: a de Set!), urn
termo quase imraduzível que, tal como a palavra portuguesa "saudade",
nao a compreendemos senáo pelo recurso a várias palavras. Conforme ofilósofo cataláo, Josep Ferrater Mora,
Se tentarmos buscar outras palavras que reflítam com mais ou menos precisao o que significaesse se'!),encontraremos, em primeiro lugar, os seguintes:"prudencia", "entendimenro", "discricño", "circunspec<;ao".Nenhum desses termos quer dizer propriamente o mesmo que se'!); se'!) equivale atodos. 24
23 Lluís Calvo, El '.:4rxiu d'etnograjia ifolclore de Catalunia"y la antropología catalana, p. 37.
24 J. Ferrater Mora, Lesformesdela vídacatalana i altresassaigs, p. 52.
147
I
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l ...
RJ¡berlo Cardoso de Oliveira
E rnais adiante:Como a prudencia e o entendimento, a circunspecs;ao ou a discricáo naosignificampropriamente o sef!J, porém nenhum sef!J é possívelsem prudencia,sem entendirnento, sem circunspecs;ao e sem discricáo."
Muito se poderia dizer sobre o conceito de sen), dado o lugar central
que ocupa na definicáo da persona catalá, que sempre poderá ser constatada
na extensa literatura a seu respeito. Mas é suficiente evocar, para os propósitos deste artigo, uma interessante afirrnacáo de Lluís Calvo, justificandoo uso corrente da expressáo Filosofia do Senso Comum em seu país:
Aqui se adota essa denominas;ao em detrimento da denominada "filosofíaescocesa" já que conflui mais corn o pensamento próprio cataláo daquele
momento" .
Pode-se dizer que essa filosofia escocesa veio, afinal, encaixar-se perfei
tamente em um dos alicerces da ideología da catalanidade.Destarte, caso queiramos penetrar na história das idéias catalás ern bus
ca do significado mais profundo da nocáo de se'!)', poderemos rhencionar
um dos c1ássicos mais importantes de seu pensamento filosófico, JoanLluís Vives _ nascido ern finais do século XV -, conforme ele é inter-
pretado pelo já citado Carreras i Artau.
Podem, pois, concluir que se os ideaisdo humanismo europeu proporciona
raroa Lluís Vives asasasdo seupensamento, o fundo ancestral- reelaboradopor um espírito que faz da observas;aode si e do mundo o primeiro cánonedo correto pensar -lhe dá [...1o sentido de popderas;aoe de equih'brio, oudito em urna palavra usada pelo mesmo Vives,o sef!J.27 ~
A invocacáo do se'!)' por um pensador tao antigo na história das idéias
catalás, faz-nos reconhecer a forca de urna rradicáo intelectual que certa
mente serviu de elemento modelador - ou pelo menos de base - danova disciplina que se desenhava ern principios do século XX. Isso equivale a dizer que o solo no qual se iria plantar a antropología jánele germina-
A etniadade como fator de estilo
vam idéias que acabariam por se expressar na Filosofia do Senso Comumdos séculos XVIII e XIX, de influencia decisiva para a consolidacñ., dofolclore e de sua transforrnacáo em disciplina científica.
Fiel ao propósito de estabelecer ligacóes e revelarlinhas de pensamento, melimitarei a apontar que desde Lluís Vives para cá, e gras;as ao concurso dediversos fatores históricos, se vem elaborando na Catalunha urna doutrinasistemáticado sentido comum - verdadeiraFilosofiado Seny-, pela qualse tem obtido importantes desenvolvimentos e aplicacóes, sobretudo durante o século XIX.28
E em uma demonstracáo da vitalidade dessa filosofia, Carreras i Artau
assevera que
A doutrina do sentido comum de Lluís Vives nao é episódica, nem estáreclusaao ámbito estritamente filosófico, senáo que informando toda a obravivista, fecunda os diversos domínios da vida prática."
Pode-se dizer que ela seria - com origem em uma visáo quinhentistacomo a de Vives - o condimento da ideología da catalanidade.
Todavia, se a Filosofia do Senso Comum serviu como uma escora aideología da catalanidade, urna vez que nao seria exagero admitir que arepresentacáo que o homem caraláo soube construir secularmente sobre simesmo adequava-se perfeitamenre a essa concepcáo filosófica, o rnesmonao se poderia afirmar com a mesma énfase relativamente aquestáo doconhecimento científico. Esse deveria ser - como efetivamente chegou aser, ainda que parcialmente - penetrado pela influencia do positivismo.Pelo menos essa é a percepcáo de autores cataláes aépoca. Ao tomarmosem conta posicóes de figuras significativas para o desenvolvimento da "antropología, particularmente em sua acepcáo sócio-cultural- portanro
distinta da antropología física, ou simplesmente antropología, como eracomurnente chamada -, como Carreras i Artau, podemos aquilatar a importancia do positivismo e, com ele, a emergencia do cientismo como urnanova ideología que se tomaria hegem6nica na busca do conhecimento dohomem cataláo, Em uma solenidade de sua recepcáo pública na RealA ca-
1--..
25
26
27
J. Ferrater Mora, Lesformes dela vida catalana i altres aJJaigs, pp. 53-54.
Cf. UuísCalvo, El 'Arxi« d'etnografta i folclore deCalalunia"y laantropología catalana, p. 37,
nota 2.Cf. T. Carreras i Artau, Introducció a la historia delpensamentfilosoftc a Catalunya, p. 79.
148
28
29
T. Carreras i Artau, Introducció o la historia delpensamentfilosoftc a Catalzll7)'o, pp. 79-80.
Idem, p. 81.
149
Roberto Cardoso de Oliueira A etnicidade comojalor deestilo
CONCLUSAO: DMA QUESTAO DE ESTILO
Ao tomar o "caso cataláo", minha intencáo nao foi outra senáo a depossibilitar o exame de urna situacáo em que o processo de etnizacáo das
formac;:6es discursivas observáveis na Catalunha chegasse a atingir também a própria antropologia no momento de sua constituicáo como urna
disciplina autónoma. É o momento da transic;:ao entre os dois séculos,quando tem lugar o movimento denominado noucentismo, ao qual várias
figuras proeminentes da intelectualidade catalá participaram, até mesmo, e
de forma destacada, Carreras i Artau. Fundado sobre tres princípios singelamente estabelecidos:
1. "contra o esquecimento do passado";
2. "contra o desconhecimento do estrangeiro"; e3. "contra a falta de urna base científica"."
tigac;:6es foram as que melhor teriam conduzido os "folcloristas científicos" e os primeiros etnógrafos ao tema privilegiado da psicologia doPOyO cataláo. O Manua!per a recerques d'etnogreifia de Catalunya, referido parágrafos atrás, ilustra eloqüentemente o privilegiamento do tema, quando inti
tula todo seu capítulo final ''Psicologia del poble catala". Há, assim, urna pro
cura de procedimentos que leve m o pesquisador a assenhorear-se dos recursos do método científico progressivamente. Percebe-se urna decidida intenc;:ao reformista na maneira de pesquisar, como comenta Calvo i Calvo:
Esta reforma metodológica vai estar conectada com as mudancas que a cienciaetnológica produziu nos anos 1920; o modo de etnogr'!fárínicia a sua transforma<;ao, até o ponto em que vai colocar a necessidade de estadias prolongadas naspovoacóes, °estudo intensivo de urna área ou o conhecirnento da língua indígena. Neste momento, o coleaonarpan¡ e:>..plicarvai deixar de ser prioritario."
O estudioso passa da situacáo de excursionista e de mero colecionadorde elementos do folclore, para a de pesquisador, agora dotado de recur
sos metodológicos conectados a teorias antropológicas disponíveis no início do século XX.
demia de Buenas Letras de Barcelona, em 1918, Carreras i Artau, discursandosobre a psicologia e a etnografia de urn clássico do pensamento cataláo,
Joaquim Costa, comenta haver ele tentado urna
fórmula de renovacáo filosófica da Escola Histórica Cataja, concebida segun
do urn conteúdo mais amplo que o estritamente jurídico, emoldada em urnadirecáo francamente psico-etnográfica. Como objeto concreto [...] assinaJavaa
psicología dopovo cataldo, tema esse que, no meu entender, já é hora de investircom toda parcimónia, mas com critério rigorosamente científico."
E, a rigor, o que entendia por critério rigoroso nada mais era do que opredominio de método sobre teorias vagas e abstratas. "Qualquer transforrnacáo científica nao consistia, tao somente, a criar novos pressupostosteóricos senáo também metodologias adequadas"." E, nesse sentido, combase nos escritos de Carreras i Artau - como é exemplo disso o seuexcelente compte rendu sobre os "Problemas atuais da psicologia coletiva eétnica e sua transcendencia filosófica'v" - pode-se dizer que, lá pelos anos
1920, já havia um pleno dominio das teorias antropológicas de procedencia francesa, alerná, inglesa e norte-americana no cenário científico cataláo,
E o lugar do "método de observacáo objetiva'v" estava assegurado, como
se pode depreender de sua própria familiaridade com Les regles de la mélhodesociologique, de Durkheirn."
A presenc;:a de urn certo psicologismo, em autores como Carreras iArtau, faz pensar que seria difícil conceber urna etnologia totalmente separada da psicologia; naturalmente, de urna psicologia coletiva - comogostava de sublinhar, seguindo aí seus autores favoritos, como o Wundtda Volkery.rychologie e o Lévy-Bruhl da mentalité primitive. E' nao se pode
deixar de considerar que esses mesmos autores seriam aqueles cujas inves-
30 Cf. T. Carreras i Artau, "Una excursió de psicología y etnografia hispanes. JoaquimCosta", in Discursos I/egils en la "Reai.Academia deBuenas Letras" deBarcelona, p. 9.
31 Cf. lJuís Calvo, TomasCarreras i .Artau o e/tremp dereln%gia catalana, p. 107.
32 Cf. T. Carreras i Artau, "Problemas actuales de la psicología colectiva y étnica y sutrascendencia filosófica", in "Congreso de Barcelona. Asociación Española para elProgreso de las Ciencias", 1929.
33 Idem, p. 83.
34 Ibidem, pp. 61-62.
150
L
35
36
Cf. o trabalho de lJuís Calvo, Tomas Carreras i.Artan oeltremp de!'eln%gía catalana, p. 56,nota de rodapé na 15.
Citacáo de Eugeni D'Ors, "El renovamiento de la tradición catalana", in Cala/filfa, n'"
151
-r'-"-"-"...-- _.--
Roberto Cardoso de OliveiraA etniddade comofator deestilo
40 UuísCalvo, "folclore, etnografia y etnologíaen Cataluña", in Ángel Aguirre Baztán(org), Historia dela antropología española, p. 217.
41 J. Prat eta/ii, Antropologja de los pueblos deEspaña.
42 Idem, pp. 13-32.
43 Ibídem, pp. 113-140.
44 Ibídem, pp. 77-86.
autores - galegos, bascos, andaluzes, castelhanos - que escrevem sobresuas respectivas regióes. Afinal, a coletánea é dedicada aos povos da Espanha. Mas o que parece interessante registrar é a massa de temas recorrentesentre os autores cataláes, porém tratados dentro daquilo que se poderia
c1assificar de urna antropología moderna. Urna antropologia produzidanos termos de urna matriz disciplinar, cuja tensáo entre seus paradigmas é
facilmente perceptível. Urna tensáo que, a rigor, já se poderia observarnos primórdios desee século, quando a disciplina cornecava a encontrar oseu rumo para a sua consolidacáo. Como observa Calvo i Calvo,
a mudanca do século comportou novas expectativas para a antropologia naCatalunha, jáque apareceram noves paradigmas e metodologías que foramtao-somente um dos sinais dos novíssimos modos e atitudes existenciaisque naqueles momentos ocorriarn na Europa. Os novos modelos científicosque irromperam ou se criararn nao comportaram a anulacáo ou exrincáo dos
anteriores. De fato, o que se deu foi sua coexistencia com novas formas defazer e entender o estudo do hornem e suas culturas."
Atualmente, essa mesma coexistencia pode ser observada, a se levarem conta essa pequena mostra. A diferenca estaria apenas na moderniza<;:ao dos paradigmas que se fazem presentes na matriz disciplinar, conforme mostrou o Figura 1, e cuja dinámica os conduz para urna simultanei
dade entre eles cada vez mais tensa, como mostrou a Figura 2.Há,indubitavelmente, urna preocupacáo bern difundida entre os auto
res caraláes da coletánea" em identificar as raízes da disciplina em suaregiáo. Isso ocorre desde os excelentes artigos de Joan Prat sobre "História"42 e "Iecría-Metodología"," até os de Llorenc Prats sobre "Los precedentes de los estudios etnológicos en Cataluña, folklore y etnografía" ,44
os de Ignasi Terradas Saborit sobre "La história de las estructuras y la
!
!Ji. 153
Os vetores que váo marcar a atua¡;ao "científica noucentista" foram diversos,mas um deles teve especial importancia: o conhecimento das origens étnicas, lin
gi/fsticas, antropológicas e arqueológicas da nafao ratald. O objetivo foi revelar a
diferencialitat dopovo catolao.37
Diante de todas essas considera<;6es, pode-se entender finalmente o
porque de haver sido escolhido aquele período e nao outro para o exameda etnicidade como fator de estilo na constitui<;:ao da antropologia. Pelo
menos duas razóes podem ser evocadas de imediato:1. a de poder surpreender a disciplina em seu pleno processo de emergencia; urna estratégia, aliás, adotada nas demais investiga<;6es elencadas no
projeto "Estilos de Antropología";382. a de verificar que a antropología, na atual Catalunha, ainda que abrigueem seu exercício um notável interesse sobre a etnicidade, essa nao mais
chega a conformar o ponto de vista disciplinar com a amplitude que ofizera no passado, deixando, portanto, de constituir-se em uma boa estra-
tégía de investiga<;ao.Todavia, se a primeira razáo está suficientemente amparada pelo con-
junto de argumentos até aqui expostos, a segunda razáo demanda alguns
comentários que entendo ainda caberem nesta conclusáo.Urna boa mostra da antropología ern curso na Catalunha dehoje pode
ser obtida por urna simples leitura da obra coletivaAntropologfa de lospueblosde España.39 Nessa obra, que infelizmente neste artigo nao cabe resenhar, háurn conjunto de trabalhos que sao produzidos por autores cataláes e que
incidem sobre temas relacionados com a Catalunha, tanto quanto outros
152
170-171,1911, apudUuís Calvo,Tomas Carreras i .Artau oeltremp deI'etnología catalana, p.
86, nota de rodapé n2 16.37 Uuís Calvo,Tomas Carreras i Artau o eltremp de I'etnología catalana, p. 51,nota de rodapé
n2 15. O grifo é rneu.38 Cf. Roberto Cardoso de Oliveirae Guilherme R. Ruben, Estilosdeantropologia.
39 J. Prat et alii,Antropologia de lospueblos deEspaña.
Esse movimento estava voltado para a moderniza<;ao da Catalunha e,
naturalmente, para urna renovacáo do pensamento científico, sem, porisso, aliená-lo de seu compromisso com a catalanidade. Como comenta
Calvo i Calvo,
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I\
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Roberto Cartloso de OliveiraA etnicidade como jator de estilo
Esse conjunto de trabalhos se nao cobre a totalidade de interesses quetem lugar no cenário cataJao, permite acreditar que serve de indicador deque pelo menos existe urna producáo antropológica de níve] internacional.Embora voltada para dentro, no que concerne ao objeto empírico de
estudo - no que é coerenre com o padrño latente das antropologiasperiféricas -, essa producáo nao fica a dever ao que se pratica nas antropologias mais desenvolvidas, sejam elas periféricas ou nao. Quero dizercom isso que a antropologia na Catalunha está dentre aquel as _ Como
costumo dizer - que deram certo em seu processo de recriac;:ao fora doscentros metropolitanos da disciplina.
Em que a noc;:ao de estilo pode ajudar na identificac;:ao da "aorropolo.gia catalá"> Como se víu, essa própria expressáo "antropologia catalá" é
equívoca, urna vez que, se pensarmos ern termos universalistas, melhorseria falarmos ern "antropologia na Catalunha": pois sendo urna disciplinade pretensáo planetária - como Sustenta toda a argumentac;:ao subjacente
a matriz disciplinar -, sua dimensao catala pode ser aferida exclusivamente pela via de urna estilísrica. Isto é, reconhecendo que o exercício dadisciplina na Catalunha de hoje nao é senáo a atualizac;:ao virtual da matriz
disciplinar - nos termos da Figura 1 -, pode-se verificar sem maioresdificuldades que ela nao seria nada aJém de um jato de estilo; de conformidade com a definicño que Granger dá ao ./az! de sryle. 50 E isso _ seguindoO mesmo autor - porque estaríamos nos defrontando a urn fenómenode evidente redundáncia sempre que pretendermos identificar na prática daantropologia no cenário catalao aJguma mudanc;:a na estrutura da matrizdisciplinar. Como escrevi ern outro lugar,
as eventuais mudanc;:as gue poderiam ser observadas seriam naestrutura dadisciplina - a saber, em sua matriz disciplinar _, mas nao se observariamudancn daestrutura. 51
Porém, o fato de nao se constatar "nada de novo" do ponto de vistaepistemológico na antropologia que se faz na Catalunha, nao significa que
ela nao possua um estilo que nao possa ser susceptível de identificac;:ao.
hisrória de la vida: Reflexiones sobre las formas de relacionar la histórialocal u la história general"," os de Joan J. Pujadas e Dolores ComasD'Argemir sobre "Identidad catalana y símbolos culturales" ,46 nos quais sesucedem temas como o discurso folclórico, o regionalismo, a Renaixenia, onoucentismo, a etnicidade, o nacionalismo ou o simbolismo que revelam apersistencia de um interesse voltado para o mesmo Volkgeist cataláo,
Porém, a diferenc;a das abordagens das primeiras décadas do século,em que se misturam evolucionismo, difusionismo, Kulturkreise, historicisrnoetc., agora nota-se urna heterogeneidade em torno de paradigmas já condizentes com a antropologia socio-cultural moderna, como o funcionalismo, o estruturalismo, o culturalismo e a hermenéutica geertziana, entreoutros - deixando de destacar o materialismo cultural, o sócio-biologismoou a etnoscience, que considero menos significativos para a consolidacáo dadisciplina em seu estado atua!' Há, ainda, projetos em andamento, como ode Teresa San Romám, urna antropóloga da Universidade Autónoma deBarcelona, grac;:as ao qual ficamos sabendo do refinamento de sua análisesobre processos de marginalizacáo de idos os ou de ciganos cataláés, con
forme sua interessante contribuicáo amesma coletánea, "La marginación
como dominio conceptual: Comentarios sobre un proyecto en curso't.", éurna pesquisa que, em termos teóricos, ou metodológicos, pouco distingue-se do que fazemos no Brasil. Como tambérn pode-se observar, doponto de vista especificamente epistemológico, nessa mesma e importanteuniversidade catalá, as idéias popperianas aportaram e floresceram: é oque revela o artigo de Aurora González Echevarría, "Del estatuto científico de la antropologia" que se soma ao seu livro La construcción teórica enantropología.49 Considerando que essa professora ministra os cursos de teoria e metodologia naquela universidade, pode-se admitir que, ao menosem nível do alunado, há rnuita chance de preponderar urna visáo cientificistada disciplina.
45 J. Prat et a!ii, Antropologia de lospueblos deEspan«, pp. 159-176.
46 Idem, pp. 647-652.
47 Ibídem, pp. 151-158.
48 Ibidem, pp. 177-191.
49 Cf A. GonzaJes Echevarría, LA construcción teórica en antropologia.
154
Jl
50
51Cf. G.-G. Granger, Ess'!Jd'unepbilosopbie du style.
Cf. Roberto Cardoso de 01iveira, "Notas sobre urna estilística da antropologia",p.180.
155
"1:
!~1.~
Roberto Cardoso de Oliveira
Significa apenas que a "mensagem epistemológica" que essa antropologiapoderia transmitir é redundante, urna vez que o que se estaria observandonao seria outra coisa que a atualiza~ao de urna mesma matriz disciplinar dealcance planetário. E como as investiga~6es que até agora realizei ern Barcelona e ern Bellaterra -lugar da Universitat Autonoma de Barcelona - naopermi
temque se leve avante urna análise estilística da antropología pratica
da na atualidade, estou limitando-me a examinar a questao estilística comrela~ao ao processo de forma<;:ao da disciplina na Catalunha. E é precisamente aí que se coloca a etnicidade como fator preponderante na marca~ao do estilo cataláo dessa mesma antropología. Nesse sentido, creio haver ficado suficientemente esclarecido que a ideología da catalanidade exerceu um papel decisivo na modela~ao das formas de pensar da intelectualidade catalá ern todo o período de emergencia da disciplina. E, certamen
te, essa ideología nao esteve restrita ainte//igent':(ja, poi s há fortes indicios deque teria mobilizado um público muito amplo, a se levar ern conta a tiragem de 100 mil exemplares da obra de E. Prat de la Riba e P. Muntanyola,Compendi de la doctrina catalanista, publicada ern 1894, considerada o catecismo catalao!52 Penso ainda haver mostrado o alto grau de etniza~ao daantropología que teria persistido rnesmo após haver logrado distinguir-sedo folclore corn o entáo novo norne de etnología ou etnografia, ou, ainda, como urna sorte de "psicología do povo catalao". O certo é que aadocáo das teorias antropológícas na Catalunha foi simultanea ao esforcocoletivo de reconstru~ao da identidade catalá, posto que elas viriam a consolidar urna disciplina investida da responsabilidade de fornecer respaldo
científico ao projeto político e cultural da catalanidadé. A
Capitulo 8
RELATIVISMO CULTURALE FILOSOFIAS PERIFÉRICAS
É bastante auspicioso verificar que a questáo do relativismo culturalnao é mais monopólio da antropologia como tema de investigacáo e reflexáo. O livro Cultural relativism andpbilosopf?y,l organizado por MarceloDascal, mostra que também os filósofos podem ser atraídos pelo problema e o enfrentam, naturalmente, com as armas de sua disciplina. Isso trazdesdobramentos dos mais interessantes, pois indica, para aqueles de nósdedicados a percorrer espa~os interdisciplinares e, particularmente, devotados aelucidacáo das relacóes entre centro e periferia, o quanto pode serfecundo o enfrentamento de um mesmo tema por disciplinas diferentes.
Mas se a antropologia tem se voltado tradicionalmente para o examedas diferencas entre sistemas culturais os mais diversos, mercé sobretudados recursos do método comparativo, só mais recentemente - e salvoraras excecóes - tem se debrucado sobre si própria, vendo-se ela mesmacomo disciplina, urna modalidade de cultura. É precisamente nesse pontoque antropologia e filosofia encontram-se. E em um momento em que ossistemas cognitivos, dentro dos quais filósofos e antropólogos estáo inseridos, sao submetidos a um mesmo olhar interrogativo, de prudente estranhamento - para lembrar aqui palavras de um filósofo pouco lembrado,Aníbal Sánchez Reulet - e, ao mesmo tempo, de temor em se deixarlevar, inadvertidamente, a perigosas posicóes etnocéntricas - que, no casoespecífico da filosofia, sao profundamente eurocéntricas, Na antropologia, urna disciplina essencialmente devotada ao estudo da cultura "dos
52Mencionado por J. R. Uobera, ero seu "La idea de Volkgeist en la forroació de laideologia nacionalista catalana", in Histon'a i Antropologia: a la memoria D 'AngelPalerm.
(A cura de Neus Escandell i d'Ignasi Terradas), p. 404.
156 . ~
iL
Este texto, aqui incluído coro modificacóes, foi originalmente escrito para Manuscrito:Revista Internacional deFilosofia, vol. XVI - nO 1, 1993, pp. 207-316 -, como artigoresenha do Iivro organizado por Marcelo Dascal e intitulado Culturalrelativism andpbilosopby: Nortb andLatin Americanperspective. Como um dos nossos temas nucleares éa relacáo entre "culturas antropológicas" centrais e periféricas, estender essa relacáopara "culturas filosóficas" pareceu-nos que estaríamos enriquecendo nossa reflexáo,
157
l.
Roberto Cardoso de Oliteira
outros", se esse olhar episodicamente manifestou-se em sua história, sobretudo em seus primórdios - veja-se L. Lévy-Bruhl," por exemplo -, só maisrecentemente, na segunda rnetade deste nosso século, é que tornou-se maissistemático, grac;:as ao trabalho de antropólogos como Louis Durnonr' ouClifford Geerrz,' para destacar aqui apenas dois autores que, no meu entender, com maior criatividade enfrentaram o problema. Já na filosofia,ao tomarmos o aludido volume, que em boa hora M. Dascal oferece-nos,como bom indicador - espero que nao o único - dessa tomada de consciencia do problema, vemos que a colaboracáo entre as duas disciplinas naosornen te é possível, como impóe-se caso quisermos aproveitar o que cada
urna delas pode oferecer a um empreendimento de interesse comum.Gostaria de oferecer urna visáo, mesmo sendo de sobrevóo, sobre o
que contém o volume, que nao deixasse de pousar nos pontos que serevelem suficientemente significativos para merecerem comentários. Naintroducáo do volume, Dascal assevera que
Filósofos sempre consideraram, explícitaou implicitamente,a possibilidadede existirern "standards alternativos" de pensamento, moralidade'ou racionalidade.Mas eles o fizeram, em sua maior parte, in abstracto?
Isto é, sem penetrar nas profundidades dos esquemas conceituais ·deoutras culturas, mas praticamente limitando-se a testar os limites de seuspróprios esquemas. Contudo, caberia perguntar: teriam os filósofos condicóes de penetrar nos sistemas conceituais de outras culturas, particular
mente as chamadas "culturas exóticas", nao ocidentais ou ocidentalizadas- isto é, em sua modalidade "periférica" - se¡n o concurso de seuscolegas antropólogos ou, mesmo, de lingüistas treinados na~pesquisa decampo? Como realizar urna verdadeira etnografia do pensamento sem os
~
l
2
3
4
5
Em meu livro sobre Lévy-Bruhl, RaZao e ajetividade: O pensamenra de L Ury-Bruhl,tentei mostrar esse estranhamento presente já na origem da antropologia em um dosseus principais fundadores.
Cf. L. Dumont, Essais SIIr l'individua/isme: Une perspective anthropologique sur /'idéologiemoderne, especialmente o Capítulo 6.
Cf. C. Geertz, Localknowledge: Furtber essqys in intepretive anthropology, especialmente osCapítulos 3 e 7.
Idern, p. 3.
158
L
&lativismomltllraleftlosojias perijéncas
recursos da investigac;:ao empinca, sistematlca, por meio do fie!dwork? A"observacáo participante", tao cara aos antropólogos, ainda que cerreta.
mente criticada, em seus limites, por Dascal, nem por isso pode ser tomada como procedimento metodológico cujos resultados devam ser considerados como definitivos para a análise etnológica. A antropologia naoaposta todas as suas cartas em urna única modalidade de abordagem. Arigor, a observac;:ao participante cumprirá bem o seu papel a medida em
gue puder oferecer ao pesquisador a oportunidade de exercitar a interpretacáo compreensiva - Verstehen - sobre os excedentes de significa<;:aoprovenientes dos dados empíricos a que teve acesso. Trabalhar sobre dados originarios de simples observac;:ao e entrevistas, organizando-os ern
nível de modelos - como, por exemplo, fazem os estruturalistas _, assegura ao antropólogo um conhecimento bern mais controlável do que teriacaso se limitasse exclusivamente ao caráter intimista da observac;:ao participante. Esse é, por sinal, um tópico de grande relevancia teórico-metodo_lógica para a disciplina e dele tenho tratado em diferentes ocasióes." Todavia, sempre vale reforcar a assertiva de que a antropologia "de campo" _
melhor dizendo, no campo - nao se reduz á compreensao ensejada pelaobservacáo participante, mas lanc;:a-se também, ainda que nem sempre
com a eficácia desejada, na busca da explicac;:ao nomolÓgica. A articula<;:aotensa entre a compreensao e a explicac;:ao, como modalidades de cognic;:aoigualmente legítimas, nao só pode ser encontrada ern algumas das mono
grafias mais importantes na história da disciplina, como deveria servir deorientac;:ao a tantos quantos exercitam a antropologia moderna."
Entretanto, gualquer que seja o tipo de observac;:ao empírica, nao me
parece que o filósofo esreja preparado para realizá-la. Valeria, por isso,perguntar se as outras culturas passíveis de "investigac;:aofilosófica" seriamefetivamente "exóticas" ou apenas manifestac;:oes "periféricas" de filosofías "centrais" ou metropolitanas, melhor diria: eurocentricas. Aliás, pareceque foi essa segunda alternativa que prevaleceu na organizac;:ao do volume
6 Cf. especialmente os capítulos 1,4 e 5 deste volurne,
7 Volto a indicar especificamente o capítulo 5, <CA dupla interpreta~ao", no qua! é exami
nada a questáo da complementaridade entre a interpretafao explicativa e a ú,terpretafaocompreensiva.
159
1Roberto Cardoso de Oliveira
Cultural relativism andphilosopqy. O ensaio de Mercedes de la Garza, sobre aconcepcáo do tempo e do mundo no pensamento Maya e Nahuatl," é aexcecáo que vem confirmar o que acabo de dizer. E isso nao deixa de serconsistente com o próprio subtítulo da coletánea organizada por Dascal:North andLatin American perspectives. Ele sugere de pronto que as perspectivas norte e latino-americanas, que se manifestam ao longo dos ensaios queformam o livro, estáo seguramente inseridas quase em um único "jogo de
linguagem": o grande jogo da filosofia Ocidental. Para usar urna expressao antropológica, de sabor bem redfieldiano, diria que o volume caracteriza-se mais pelo confronto entre "grande" e "pequena" tradicóes, eurocéntricas, do que entre filosofia(s) de ancestralidade ocidental e filosofias
ditas exóticas, isto é, produzidas por povos ágrafos do hemisfério - atotalidade das populacóes tribais das Américas - ou pelas civilizacóes Asteca, Maya ou Inca," Conrudo, isso em absoluto lhe tira o interesse ou diminui seu escopo. Acredito que para o leitor, seja ele antropólogo ou filósofo, o volume impóe-se como um painel bastante variado, no qual a reflexáo filosófica está sempre presente e marca todo o seu teor discursivo.
*Se, para o filósofo, os grandes tópicos abordados sempre serviráo
para baixarem um pouco das alturas de suas abstracóes ao verificaremaimportancia das contextualizacóes sócio-culturais, para o antropólogo.raramente destro no manejo das questóes epistemológicas, o livro sempreservirá de incentivo ao reconhecimento da importancia das instancias metateóricas na prática de sua disciplina. Para urna apreciacáo mais detida sobre a variedade de tratamentos - que Dascal chama de "perspectivas"_ que o assunto enseja e que certamente permitirá ao leitor identificar umcerto parentesco com muito do que venho discutindo sobre antropologias - melhor diria, disciplinas - "centráis" e "periféricas", vamos relacionar temas e seus autores presentes na coletánea. Quatro sao as partes que
8 Mercedes de la Garza, "Time and world in Mayan and Nahuatl thought", pp. 105-127.
9 "Grande Tradicáo" e "Pequena Tradicáo" sao conceitos hoje c!ássicos na antropología cultural, conforme foram formulados por Roben Redfield em seu livro Peasantsociety andclIlture, especialmente o Capítulo IIl, "The social organization of tradition".
160
.L
RelafÍlJÍJmo culmra! ejilosoJiasperiféricas
dividem O volume: a primeira, intitulada "Relativismo: Transforrnacáo oumorte?", reúne contribuicóes dos filósofos Joseph Margolis e LennGoodman, ambos norte-americanos, e dos igualmente filósofos LorenzoPeña, espanhol, e León Olivé, mexicano; a segunda parte, "Um vislumbrede variedade: Experiencias filosóficas e visóes de mundo na América Latina", com contribuicóes de Mercedes de la Garza, etno-historiadora mexicana, Robert Longacre, lingüista norte-americano, e dos filósofos Francisco Miró Quesada, peruano e Maurício Beuchot, mexicano; a terceiraparte, "Natureza, cultura e arte", conta com a participacáo dos filósofos
hispano-americanos Gonzalo Munévar, colombiano, David Sobrevilla,peruano, e do lingüista norte-americano, doublé de antropólogo, HarveySarles; finalmente, na quarta parte, "Cruzando esquemas conceituais", ternos a participacáo de dois filósofos norte-americanos, Michael Krausz eHugh Lacey, e do cientista político, igualmente norte-americano, EugeneMechan, e do filósofo brasileiro Marcelo Dascal.
Constituem um total de quinze autores, sendo onze filósofos, dois lingüistas, um etno-historiador e um politólogo. Por nacionalidade, ternossete norte-americanos, tres mexicanos, dois peruanos, um colombiano,um espanhol e um brasileiro.
Essa contagem nao é extemporánea, Em vista da temática do volumepresumir urna cornparacáo entre perspectivas norte e latino-americana em que, a rigor, a última é rnais hispano-americana, pois a contribuicáo deDascal pouco ou nada nos diz sobre a perspectiva brasileira... -, é razoável que nos perguntemos sobre urna eventual representatividade latinoamericana. Dascal reconhece o problema e oferece urna justificacáo bastante interessante - e com a qual nao se pode deixar de concordar, pelomenos aceitando-a como parte de urna possível explicacáo mais abrangente. Efetivamente, aqueles países como México e as nacóes andinas,possuidores de "grandes tradicóes" produzidas por "culturas indígenas
das terras altas", possuem igualmente urna larga experiencia de pesquisa ede reflexáo sobre a producáo intelectual de suas civilizacóes autóctones,
com o objetivo, muitas vezes, de contribuir para desvelar raízes culturaismais profundas na "construcáo da nacáo" - nation building.
1sso faz com que a idéia de urna possível originalidade no pensamentofilosófico desses países hispano-americanos torne-se um tema de interesselocal e de diligente investigacáo; o que nao acontece, conforme mostra
161
~
Roberto Can/oso de Üliueira
Dascal,'? em países como o Brasil e a Argentina. Nesses países, o querealmente ocorre é a apropriacáo da tradicáo da filosofia ocidental, tout
court. E poder-se-ia acrescentar que, mesmo nos países andinos, nao saonecessariamente os seus filósofos que pesquisam o pensamento indígena; ase julgar pelos que contribuíram ao volume organizado por Dascal, observa-se que tanto os mexicanos M. Beuchot e L. Olivé como os peruanosF. Miró Quesada e D. Sobrevilla ou o colombiano G. Munévar escrevem
inteiramente dentro do jogo lingüístico da filosofia ocidental. E, comopara confirmar essa ausencia de interesse dos filósofos profissionais portemáticas autóctones, constata-se que sao especialistas em outras disciplinas que se debrucam sobre as culturas indígenas: foi o caso da etno-histo
riadora Mercedes de la Garza, com seu trabalho ao qual já me referi, berncomo o do lingüista norte-americano R. Longacre, professor da Universidade do Texas e também membro do Summer Institute of Linguistics,preocupado, por razáo de ofício - conhecendo-se os interesses do
Summer Institute of Linguistics pela traducáo da Bíblia e pela galyaniza<;:aodos povos -, em investigar a relacáo entre idioma e visáo de mundo
entre os índios Trique do estado de Oaxaca, no México.É interessante verificar que, mutatis mutandis, aquilo que se observa em
minha disciplina _ na qual somente urna estilística poderia dar conta das
diferencas entre antropologias metropolitanas e periféricas, urna vez. que
nao se notam diferencas substantivas -, parece valer também para oexercício da filosofia nos Estados Unidos e em países da América Latina.Dascal parece-me bastante explícito nessa direcáo, quando diz que Améri-
ca do Norte e América Latina ~
estáo longe de exemplificar um par de esferas culturais radicalmente distintas.Os ingredientes dominantes para ambas provern de fontes européias; ambas
pertencem ao "Ocidente"."
Permita-me o leitor prolongar esta citacáo, pois ela resume bastantebem idéias que também se aplicam no caso de outras disciplinas e, certamente, da antropologia. Ao reconhecer a existencia de diferencas significa-
10 Marcelo Dascal, Culturalrelatioism andpbilosopby: Nortb andLatin AmericanperspectitJe, p.
6, nota na 2.
11 Idem, p. 4.
162
Relativismo cultural ejilosoftas perifén'cas
tivas entre as Américas, quer do ponto de vista cultural, quer do ponto devista económico, Dascal vai especificar que
do ponto de vista do presente livro, o gue seja talvez o contraste rnais significativo pode ser descrito como segue. Enguanto a cultura norte-americanaevoluiu de modo a tornar-se urna parte dominante da cultura Ocidental, aAmérica Latina permaneceu relativamente para trás a esse respeito. Enguantoa América do Norte tornou-se uro centro criativo de modelos de pensamento e de acáo, a América Latina permaneceu, via de regra, um consumidor ouaplicador de tais modelos. A antiga direcáo assimétrica de influencia cultural,
Metrópole =9> Colonia, gue a um tempo a Europa manteve com ambasAméricas, foi subvertida (ou pelo menos substituída por um relacionamento simétrico) no caso da América do Norte. Como para a América Latina naohouve mudanca no relacionamento, o papel de rnetrópole foi, ao menosparcialmente, assuroido pela América do Norte."
Penso que essa referencia é suficiente paradesconsiderarmos, pelo menos com relacáo a urna eventual diferenca substancial entre disciplinas me
tropolitanas e periféricas, a questáo do regionalismo. Diferencas como,por exemplo, entre o Brasil e a América hispánica ou, mesmo, dos países
hispano-americanos entre si, nao seriam muito relevantes, salvo se desejarmos ater-nos a urna estilística da filosofia. Nao apenas sobre um pretenso"estilo latino-americano" - como se fala habitualmente - mas estilos
regionalmente diferenciados na América Latina.':' Mesmo porque, eventuais variacóes de estilo - como pude observar no que tange as antropo-
12 Marcelo Dascal, Culturalrelativism andphilosopby: Nortb and Latin Americanperspeaio«p.4.
13 A esse respeito, urna instrutiva antologia, intitulada Filosofía e identidad cultural enAmérica Latina, organizada por Jorge J. E. Gracia e Iván Jaksic, o primeiro da Universidadedo Estado de Nova York, o segundo da Universidade da Califórnia, nao incluemqualquer pensador brasileiro, nem mesmo justificam isso em sua Introducáo: "El problema de la identidad filosófica latinoamericana". Preconceito ou ignorancia? Porémvale a seguinte citacáo, que se encaminha - sem dizé-lo - para a questáo estilística
que nos interessa: "[ ...] o problema da filosofia latino-americana transforma-se noproblema de se a filosofia pode ou nao adquirir o caráter de latino-americano, ou seja
se é possível que exista ou possa existir urna filosofia peculiarmente latino-americana" (p.15). A questáo do caráter e dapeculiaridade (ou do estilo) conduz-nos aquestáo estilísti
ca, da qual nem a fJ.1osofia, nem a antropologia podem fugir.
t~ 1~
Rnberto Cardoso de O/iveira RElativismo cultura! ejilosojias periféricas
Isso significa que aquilo que. se poderia chamar razáo, a saber, o critério
ou os principios postos em prática na forrnulacáo de juízos, pode serassim considerado mesmo passando de um esquema conceitual para ou
tro. E isso parece ser possível se considerarmos que um relativismo mo
derado nao puxa o tapete da raza o em sua busca de tornar comensuráveis
sistemas conceituais diferentes, como pode ocorrer no cotidiano de pesquisa etnológica - se podemos torná-la como exemplo.
Nesse sentido, qual é a nocáo de racionalidade aqual se apega Olivé?
Ela parece ficar bem mais clara quando a associamos aidéia de transformacáo (racional). Tal transforrnacáo racional é definida, assim, como sendo urna
A relevancia dessa contribuicáo estaria na forrnulacáo da tese em defesa
de um "relativismo moderado" frente a um "relativismo radical", quepoderia encaminhar-se para urna posicáo de incontrolável ceticismo namedida em que supóe a absoluta incomensurabilidade dos esquemas conceituais construídos no interior de culturas distintas.
Se tomarmos o conhecimento científico, mesmo em antropologia,
como conhecimento proposicional sobre determinada comunidade ainda que isso seja urna afirrnacáo nao imune a controvérsias _,17 vere
mos, segundo Olivé, que a tese relativista moderada defende como viávela rraducáo de pelo menos algumas proposicóes de um determinado es
quema conceitual para outro, sempre que tiver lugar em um grupo humano com urna permanencia mínima no tempo. Nesse caso, note-se, que aemergencia de "condicóes de racionalidade" é algo latente.
País para essa tese relativista moderada pode ser aduzida a idéia segundo aqua!indivíduos que usam qualquer esquema conceitual,pelo simples fato deserem capazesde usá-lo, revelamque possuem competencia para linguageme diálogo, isto é,que as vezespermitem a emergencia daguilo que chamaríamas "condicóes de pura racionalidade"."
1"\!
logias centrais e periféricas - nao significam diferencas substantivas, urnavez que essas antropologias náo escapam de se situarem no amplo espectro de urna disciplina com suas raízes fincadas profundamente no solo doOcidente _ ao menos se romarrnos por referencia, como venho toman
do, a "matriz disciplinar" como o "ser", por certo histórico, nao metafísico, da antropologia. t4 E nem mesrno - e isso é verdade pelo menos comrelacáo a minha disciplina - significam que as antropologias periféricas
sejam atualmente menos criativas ou alcancem resultados menos confiáveis. Urna conviccáo que renho manifestado em outras ocasióes,
*Muitos sao os temas tratados no corpo da coletánea organizada por
Marcelo Dascal que ofereceriam oportunidade para um exame mais deci
do, capaz de revelar toda a riqueza da questáo do relativismo cultural,quando abordada pela filosofía. A própria cornparacáo de perspectivas,como as que mencionam].]. E. Gracia e 1.]aksic,15 a saber, aquelas vincu
ladas ao "universalismo", ao "culturalismo" ou a "postura critica", levarnos-ia a urna percepcáo bastante diferenciada sobre statusda filosofia lati
no-americana, posto que mostraria o quanto a questáo da existencia deurna filosofia que se possa classificar de latino-americana pode ser polémica. Nao é necessário abordar aqui esse tema tao controverso, bastando
destacar, aguisa de ilustracáo a respeito da natureza do debate sobre filo
sofia versus contexto cultural - no sentido antropológico do termo -,alguns aspectos que de urna forma toda especial chamaram a minha atencáo e que, acredito, sejam também de inreresse de 'outros leitpres do livrode Dascal, e que nao sejam exclusivamente filósofos. Tratarei desses aspectos do relativismo como comentário a urna das contribuicóes do livro, ade L. Olivé, intitulada "Relativismo conceitual e filosofia nas Américas"."
14 Cf., especialmente, minha conferencia "Ternpo e tradicáo: Interpretando aantropologia", de 1984, que constado volume Sobre opensamento antropológico, como Capítulo 1.
15 Cf.a notan~ 13.16 No que diz respeito a urna compara<;ao entre antropologias européias, nem todas
metropolitanas _ muitas dasquais certamente "periféricas" -, vale dizerqueo temaguarda íntima relacáo como queestamos tratando aqui. Procurei dizeralguma coisa arespeito dasvicissirudes dos conceitos trasladados da Europa paraa América Latinano Capítulo 2 deste volume.
164 jL
17
18
Embora essa tese rnerecesse um exame mais deudo, cabe levá-Ia em conta na argurnentacáo, uma vez que ela é corrente entre aqueles que possuem uma visáo maiscientificista da antropología - o que nao significa necessariamente positivista -,entreestruturalistas e pós-estruturalistas dasmais variadas ancestralidades.
L. Olivé, intitulada "Relativismo conceitual e filosofia nasAméricas", p. 57.
165
Roberto Cerdoso de Oliveira
rnudanca ou abandono [de um esquema conceitual] provocado por razóesque sao inteligíveis dentro do esquema que está senda mudado ou abandonado."
Dentro de uma concepcáo arbórica de distribuicáo dos esquemas, segundo a qual esses seriam como ramos de uma árvore, a distancia maiorou menor entre esses ramos indicaria graus variáveis de comensurabilidade.Uma tal concepcáo permitiria, poi s, reconstruir o processo de transforrnacáo racional observável entre comunidades concretas - habituais ainvestigacáo etnográfica - quaisquer que sejam das: desde aquelas formadas por profissionais de urna dada disciplina - no interior da qualinteragem paradigmas em confronto - até quando esse processo envolve, no limite, comunidades culturais ou étnicas.
Esse é um ponto, aliás, que - se interessa a todos quantos perten<;ama comunidades de cientistas que possam se confrontar com sistemas conceituais diferentes -, vai interessar sobremaneira ao etnólogo que naoapenas participa das mesmas condicóes de convivencia profissional -
t
portanto entre pares, e que também térn lugar em seu diálogo com cole-gas de outras disciplinas -, como ainda esse etnólogo ve-se permanentemente envolvido no processo de traducáo de sistemas culturais ou étnicosos mais diversos, nos quais as condicóes de racionalidade nern sempre saofavoráveis.
Como reconhece Olivé, as interacóes entre antropólogos e membrosde comunidades culturais ou étnicas objeto de investigacáo podem envolver tanto "interacóes racionais" como "processos náo racionais de aprendizado"; ou, com outras palavras, mecanismos nao racionais de apreensáo
da cultura do outro - podendo-se incluir a própria empatia, a ernocáo
ou a afetividade, tao freqüentes no fieldwork, como qualquer antropólogoconcordaria.
Essas sao questóes que estáo presentes no texto de Olivé e a leitura quefaco delas espero que possa ser de molde a estimular o antropólogo aexaminá-las no exercício de seu métier. Como se ve, a questáo do relativismo cultural passa a ser antes de tudo, como reconhece Dascal, em algum
&lotitJismo cultural ejilosojias perifencas
momento de seu interessante ensaio conclusivo do volume, um "relativismo epistemológieo".2o Um tipo de relativismo que, se é necessário aoexercício da filosofia, indispensável parece ser ao trabalho do antropólogo.
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19 1. Olivé, intitulada "Relativismo conceirual e filosofía nas Américas", p. 67.
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12Marcelo Dascal, CulturalrelotitJism andphilosophy: Nortb and Latin Americanperspective,p.286.
167
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Capítulo 9
ETNICIDADE, ETICIDADEE GLOBALIZA<::Ao*
Há alguns anos atrás, fui convidado a ministrar a Primeira COliferetlciaLuiZ de Castro Paria, realizada no "Fórum de Ciencia e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro", na Praia Vermelha, ocasiáo em queescolhi o tema "Antropologia e moralidade" e pude desenvolver algumasidéias sobre as possibilidades do olhar antropológico visualizar uma éticaplanetaria.' A conferencia parece ter despertado algum interesse, manifestado por vários colegas, entre os quais o nosso presidente, Dr. joáo Pachecode Oliveira, que me convidou a dar prosseguimento nesta oportunidadeáquelas consideracóes, Penso agora retorná-las, dando a elas um novorumo, de maneira a complementá-las especialmente no que tange as relacóes entre etnicidade e eticidade frente a necessidade - como assim entendo - de nossa disciplina levá-las em conta de maneira mais sistemáticae com vistas a questáo da global!zac;:ao.
Parto, assirn, de um caminho entáo trilhado em direcáo a um questionamento sobre o lugar ocupado pelo relativismo na antropologia, comoorientacáo epistemológica, orientacáo que a deixou pouco afeita ao enfrentamento de questóes de moralidade e de eticidade. Porém, gostaria deadvertir, desde já, que, ao retomar aqui uma questáo clássica da antropologia, nao estou de modo algum colocando-me em uma posicáo anti-relativista, mas também nao me incorporo cegamente, sern nenhuma ressalva,áquela outra - "anti-anti-relativista" - preconizada por Clifford GeertzI,:
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* Conferencia de abertura da "XX Reuniáo Brasileira de Antropología", promovidapela ABA, em Salvador, Bahia, e proferida no dia 14 de Abril de 1996, no saláo nobreda reitoria da Universidade Federal da Bahía. Publicada na Rezista Brasileira deCienciasSociaiJ, ano 11, nO 32, 1996, pp. 6-17.
Conferencia intitulada "Antropologia e moralidade" , publicada na Revista Brasiteira deCiencias Soaais, ano 9, nO 24, 1994, pp. 110-121. Inserida na coletánea Ensaios antropológicos sobre morale ética, Roberto Cardoso de Oliveira e Luís R. Cardoso de Oliveira,Capítulo 3.
169
Roberto Cardoso deO/iveiraE/nicidode, eticidode eg/obalizorao
de modo tao enfático, em urna atitude perfeitamente compreensível, urnavez que em sua argumenta<;ao nao fica rnuito claro se ele distingue o relativismo _ com o sufixo ismo indicador de sua ideologiza<;ao - do olharrelativizador como postura indispensável ao exercício da observa<;ao antropológica; junte-se a isso o fato de Geertz esquivar-se de tratar de questoes cruciais para a problemática do relativismo como as de ética e demoral, limitando-se simplesmente a mencioná-Ias para deter-s
eern ques
toes cognitivas em sua crítica ao racionalismo extremado, manifestado nasconhecidas coletaneas de Wilson2 ou de Hollis e Lukes' Essas questoes eoutras mais que lhes sao correlatas, acredito poderem ser melhor matizadas, tal como a sua afirma<;ao final e peremptória segundo a qual a "únicamaneira de derrotar lo relativismo] é colocar a moralidade além da culturae o conhecimento além de ambas".' Tirante o fato de que Geertz perde a
oportunidade de distinguir a postura relativista - essa sim, merecedora dedefesa _ de relativismo qua ideologia, seus argumentos nao poderiam tersido rnais adequados e nao se pode deixar de estar de acordo corp. eles.Contudo, se retomo aqui a quesdo do relativismo em nossa disciplina épara inscreve-Ia no tratamento de um tópico muito especial, a saber, aquele que envolve questoes relacionadas corn a idéia do "bem-viver" tantoquanto com aquelas que digam respeito apretensao do cumprimento do"dever", mesmo rejeitando a idéia de que elas possam serdescontextualizadas _ como certamente gostariam os anti-relativistas maisardorosos, alvo das críticas de Geertz. Questoes de moral e de ética rérn,todavia, sido sistematicamente evitadas por nossa disciplina, exatamentepor receio de infligir seu compromisso corn o fantasma do 'relativismo.Portanto, como fantasma, só nos cabe exorcizá-Io, viabilizando aquelas questoes como sendo passíveis de reflexáo e de investiga<;ao antropológica.
Entendo assim que a nocáo de bem-viver e a nocáo de dever inserem-se,
respectivamente, no campo da moral e no campo da ética. E entendo,também, que ambos os campos inserem-se igualmente na órbita de interesses da antropologia. O primeiro implica valores, particularmente aquel
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Cf. B. R. Wilson, Rationality.Cf. M. Hollis e S. Lukes (orgs.), Rationa/ity andrelativism.Cf. C. Geertz, "Anti anti-relativismo", in Revista Brasi/eira deCienciasSociais, p. 18.
170 I~
associados a formas de vida consideradas como as melhores e, portanto,pretendidas no ámbito de urna determinada sociedade. O segundo campo- o da ética - implica normas que possuam, porém, um caráter pré-for
mativo, um comando ao qual se deve obediencia, pois segui-las é a obrigacáode todo e qualquer membro da sociedade. Nessas consideracóes sobremoral e ética, pode-se ver que estou situando-me no interior de uma "ética discursiva", de inspiracáo apeliana-habermasiana, se bem que reservando-me ao direito de dela fazer urna leitura muito particular, própria dealguém situado em urna disciplina que nao se confunde com a filosofia. Edigo isso porque minha preocupacáo nessa exposicáo é de mostrar oquanto a abordagem antropológica pode ser fecunda no trato de questóesde moralidade e de eticidade, ou, respectivamente, em língua alerná, Moralitiite Sittlichkeit. Na tradicáo hegeliana, a que de algum modo a ética discursiva
se filia, é lícito entender a moralidade como a manifestacáo de urna vontadesubjetiva do bem, enquanto eticidade seria essa mesma vontade, porémrealizada em instituicóes históricas - e culturais - reguladoras dessa mesma
vontade, como a família, a sociedade civil e o Estado. Assim entendidas,moralidade e eticidade abrem uma fresta para o olhar antropológico, pormeio do qual nao há como deixar de considerar que nossa disciplina selegitima perfeitamente em trata-las com os recursos de que dispóe. Dentro desse quadro, que nao é originariamente de nossa disciplina, procurarei responder porque penso que a antropologia nao só pode tratar detemas como esses, mas, para dizer de forma responsável, deve enfrentá
los pelas razóes que procurarei oferecer ao longo desta exposicáo,Disse que deve enfrenta-los, porém com as armas de nossa disciplina e
respondendo a um problema central que a antropologia socio-culturalcarrega em seu dorso qua se desde sua constituicáo, como disciplina autonoma. Como já mencionei, estou referindo-me aquestáo da incornensu
rabilidade das culturas, tao cara ao relativismo mais pertinaz. Muito já seescreveu sobre essa questáo, portanto só me cabe poupar o auditório deum rosário de citacóes e de referencias. Basta considerar aqui que essa idéiadas culturas serem incomensuráveis foi sempre tomada de modo tácito,praticamente como uro dogma nao sujeito a questionamento. Porém, se voltarmos o nosso olhar para certas dimensóes do relacionamento intercultutal, aduzindo novas interrogacóes, veremos que essa incomensurabilidadepode ser tanto mais problemática quanto mais envolver proferimentos de
171
Roberto Cardoso deOliveiraEtnicidade, eticidade egloba/i<:'Pféio
quais critérios - de objetividade? -, poderia ele agir - como cidadáo e
como técnico - no encontro entre culturas diferentes, sobretudo quandoas sociedades, portadoras dessas culturas guardam entre si relacóes profundamente assimétricas, caracterizadas pela dorninacáo de urna sobre aoutra. E o moralmente grave é que ele, enquanto antropólogo, é cidadáo
da sociedade dominante. Essa parece ser, por exemplo, a situacáo vivida
entre nós, tipicamente pelos antropólogos indigenistas, e que na oportunidad e de urna reuniáo como esta, em que muitos desses colegas estáo presentes, penso que mencionar o cenário indigenista é mais do que apropriado para submetermos essas consideracóes a exame.
*Ainda está muito viva em todos nós a acusacáo de a antropologia -
especificamente a antropologia aplicada e o próprio indigenismo latinoamericano - ter sido, desde os seus primórdios, um instrumento de dominacáo do colonialismo externo e interno. E o resultado disso é que a
nossa disciplina, em sua dimensáo académica, sempre fiada em um relati
vismo dogmático - perdoem-me o paradoxo -, jamais conseguiu libertar-se de constrangimentos quando sobre ela a razáo especulativa passaa ser substituída pela razáo instrumental, a saber, quando ela envolve-secom práticas de intervencáo cultura!. Como justificar tais intervencóes?Minha primeira consideracáo é dizer que, sem a aceitacáo voluntaria pelapopulacáo-alvo da intervencáo, essa é injustificáve!. Todavia, o problema
nao se encerra aqui: ele transfere-se para o sentido da expressáo "aceitacáovoluntária". E é aqui que recorro a "ética discursiva". E, assim fazendo,penso dar prosseguimento as consideracóes que fiz em 1993 por ocasiáo
da mencionada Primeira Conferéncia LuiZ de Castro Faria.Naquela oportunidade, vali-me de algumas idéias que gostaria de evo
car agora para dar consistencia a minha argumentacáo, Algo penso terdeixado firmado naquela ocasiáo que gostaria de retomar agora. Lembratia, primeiramente, a distincáo que sempre se pode fazer entre costume enorma moral, "o que significa dizer que aquilo que está na tradicáo ou nocostume nao pode ser tomado necessariamente como norrnativo't.! ou,como escreve o filósofo Ernst Tugendhat,
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juízos de valor e que, por mais complexa que possa ser a nossa forma detratar tais dimensoes, em nenhum momento devamos considerá-la imunea análise e a reflexao antropológica. Será que todas as dificuldades sao oresultado de um mal uso do método comparativo, quando a compara<;:ao
é conduzida de forma mecanica e até certo ponto ingenua?É assim que nao há como deixar de considerar que os problemas
trazidos pela antropologia comparada tradicional fazem parte do nosso
conhecimento mais corriqueiro. Por isso, é sernpre útil interrogarmo-nossobre nossos próprios hábitos intelectuais. Vale, portanto, a pergunta: comocotejar as culturas entre si, senáo pelo uso de um método comparativoque, em si mesmo, já denuncia um comprometimento corn pelo menosurna cultura _ em última análise, a cultura da própria antropologia, isto é,
da antropologia como cultura. Nao seria a cultura a "medida" de todas as
coisas? Portanto, enquanto cultura - ou se quiser, linguagem Ctlltural -, anossa disciplina engendra métodos que, muitas vezes, nao chegam a sersenáo a contrafa<;:ao de si própria. Pois a antropologia seria urna terceira
cultura a se interpor entre duas ou mais culturas postas em con\para<;:ao.
Teria apenas a distingui-la ser ela artificial- como linguagem científicadiante do fato das culturas em compara<;:ao serem entidades naturais ---, talcomo uma língua natural. Mas quais as dificuldades que urna análise comparativa encontraria? Ao que parece, se nao há muita dificuldade na cornparacáo de dados ditos objetivos - quantidade de bens produzidos, tecnolog
iassofisticadas etc. _, nao restaria sempre a imponderabilidade dos
juízos de valor a confirmar a natureza incomensurável de cada cultura? Enao teríamos de incluir aqui, nessa equa<;:ao, a pr6pria antropologia como
cultura? A isso é que qualifiquei há pouco como contrafa<;:ao ou auto-
anula<;:ao de nossa disciplina.É, portanto, diante da tradicional prática da disciplina que questóes
como essas térn sido colocadas como sendo um pe rene desafio ao antropólogo, do ponto de vista epistemológico. E é tanto mais difícil enfrentá
lo quanto mais o antropólogo estiver envolvido em programas ou políticas de a<;:ao social. Pois um antropólogo imbuído de pretensoes de examinar a consistencia de suas próprias a<;:oes em sociedades culturalmente taodiferentes, claramente detentoras de sistemas de valor próprios e singulares, corre o risco de ficar emaranhado em seu próprio relativismo. Emoutras palavras, o desafio que se impóe a esse antropólogo é o de como, por
172
5 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, "Antropologia e moralidade", p. 114.
173
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Roberto Cardoso de Oliveira
é inaceitável que se admita algo como carreta ou bom (portanto como norma) porque está jádado de anternáo no costume, sem poder preva-lo comocarreta ou born."
Admitida essa distincáo, torna-se sempre válida a indagacáo sobre ca
sos de moralidade e de eticidade, no ámbito de nossa disciplina. É aceitá
vel, por exemplo, o infanticídio que os Tapirapé praticavam até sua erradicacáo, nos anos 1950, pelas Irrnázinhas de Jesus? E é importante que sejadito, aliás, que tal erradicacáo foi conduzida habilmente, sem nenhuma
violencia, exclusivamente grac;:as a persuasáo pelo discurso, pelo diálogo;esse caso - para aqueles que tiverem interesse em melhor conhecé-Io
tive a oportunidade de analisá-lo nos termos da ética discursiva na mencionada Conferéncia Castro Faria.? Índios e missionárias tinham suas razóes
para tomarem uma e outra atitude: os Tapirapé tinham toda uma justificacáo para nao deixarem sobreviver o quarto filho, desde que ele viesse
por uma lei demográfica por eles intuída ao longo de uma experienciasecular - a aumentar uma populacáo limitada as potencialidades do ecos-,sistema regional; já as missionárias, por sua fé nos mandamentos religio-
sos, nao poderiam aceitar passivamente um costume que destruía uma
vida. Para os índios o costume se justificava, uma vez que o sacrifício dealgumas vidas valia a vida de toda uma comunidade; para as missionárias
a vida de qualquer pessoa é um bem inquestionáveI. Duas morais, duaséticas? Sim, todas perfeitamente racionais. Portante, nao é a questáo da
racionalidade que está em jogo.Diante disso, como lidar praticamente com tal situacáo? Como condu
zir a nossa acáo quando nao temos nenhum dogma a sustentá-Ia? A rigor,toda a questáo resume-se na intersecáo de dois campos semánticos dife
rentes - o indígena e o missionário -, uma questáo, aliás, equacionadapela teoria hermenéutica por meio do conceito de "fusáo de horizontes",
observável na prática dialógica discursiva. Isso quer dizer que a solucáo
das incompatibilidades culturais, até mesmo as de ordem moral surgidas
do encontro interétnico, estariam no diálogo?
Elnicidade, el/cidade eglobalizarao
Creio que para, respondermos a essas questoes, vale recorrer a urnaoutra idéia, entáo apresentada: a da distinc;:ao dos espac;:os sociais ern que
pode ser observada a atualizac;:ao de valores morais. Apel _ apoiando-se
em Groenewold - distingue tres espac;:os sociais, que denomina esferas: amicro, a meso e a JJlacro.
8Apel traz essas esferas para o campo da ética, con
siderando assirn uma micro-ética, uma meso-ética e urna mficJ1?-ética, correspondendo, a primeira, as esferas das relac;:oes face a face que se dáo no
meio familiar, tribal ou comunitário; a segunda, as relacóes sociais per
meadas pela acáo dos Estados (de direito) nacionais por meio das instituicóes e das leis por eles criadas; e a terceira, as ac;:oes sociais que por deliberacáo internacional, por intermédio de seus órgaos de representac;:ao _
como a ONU, a OIT, a OMS ou a Unesco -, devem ser reguladas poruma ética planetária. O infanticídio Tapirapé, por exemplo, que poderiaencontrar justificac;:ao em nível micro, no interior da cultura tribal, já vaiencontrar sua discriminac;:ao como crime ern nível meso, inscrito que está no
código penal, tanto quanto em nível macro, urna vez que violenta a "Cartados Direitos Humanos". Voltarei a isso mais adiante.
Estamos retomando assim um conjunto de idéias que me parecemimportantes para a argumentac;:ao que desejo desenvolver. Se, de um lado,
podemos admitir que a questao da:racionalidade das normas morais nada
tem a ver com a possibilidade da aceitac;:ao ou da rejeic;:ao das mesmas,desde que elas podem justificar-se plenamente no ambito de moralidadestao diferentes, para nao dizer opostas, como bem ilustra o caso dos Tapirapée das missionárias, por outro lado, o contexto interétnico ern que se dá a
confrontac;:ao entre essas normas está contaminado por urna indisfarc;:ávelhierarquizac;:ao de uma cultura sobre a outra, reflexo da dominac;:ao ocidentalsobre os povos indígenas. O processo de dominac;:ao _ como todos nós
sabemos - nao se dá apenas pela forca ou pelo peso das tecnologiascriadas pelo mundo industrial, dá-se também _ e é esse o ponto que me
interessa desenvolver - pela hegemonia do discurso ocidental, de raiz
I6
7
Cf. E. Tugendhat, Problemas de la ética, p. 48.
Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, "Anrropologia e moralidade", pp. 115-116.
174
1
8Cf. K.-o. Apel, "El a priori de la comunidad de comunicación y los fundamentos de laética", in La transformación de lafilosojia, tomo II; e'~ necessidade, a aparente dificuJdade e a efetiva possibilidade de urna macroética planetária da (para a) humanidade",in ReviSla de Comllnicarao eL'ngllagens, n'" 15-16 - Ética e Comllnicarao _, 1992, pp. 1126. Cf. também Roberto Cardoso de Oliveira, '~ntropoJogia e moralidade".
175
\ Roberto Cardoso de Olioeira
européia. Essa é a base da crítica que se faz atualmente aética discursivaapeliana, em urna tentativa de encontrar os seus limites. Nessa dire<;ao, umdebate muito instrutivo vem se dando ern escala internacional, tendo poralvo as comunidades de comunica<;ao e de argumenta<;ao apresentadaspor Apel como condi<;ao sine qua non da ética do discurso. Afinal de contas, o diálogo interétnico ou intercultural seria efetivamente democrático?Qual a possibilidade de urn sistema de fric<;ao interétnica constituir urnaefetiva comunidade de comunica<;ao e de argumenta<;ao que satisfaca os
pré-requisitos apelianos?Desde 1989, esse debate vem ocorrendo no ambito das relacóes Nor-
te _ Sul, e em torno da ética discursiva em confronto com a "filosofia daliberta<;ao" latino-americana. Evocar alguns aspectos desse debate pareceme importante para o rumo de minha argumenta<;ao. Os debates que vérn
tendo lugar desde entáo na Alemanha, no México, na Rússia e mesmo noBrasil _ como ern Sao Leopoldo, ern 1993 -, já geraram várias publica
<;6es, entre as quais um volume intitulado precisamente Debate em torno daética do discurso de Apel: Diálogofilosófico Norte - Sul apartirdaAméricaLatina,9organizado pelo filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel, considerado o principal teórico da filosofia da liberta<;ao. Sern entrar no méritodessa filosofía, o debate, pelo menos como ele se manifesta nesse livr~, é
extraordinariamente interessante para o noSSO propósito de questionar se bem que no horizonte empírico de nossa disciplina - a possibilida'dede se verificar faticamente o cumprimento de um dos requisitos básicosda ética do discurso: o da simetria ou igualdade de posicóes entre as partes
envolvidas no diálogo. Tanto para Apel como para-Haberma~ o que legitima o diálogo _ além dos quatro requisitos de pretensao de valide~ a saber, a
inteligibilidade, como condi<;ao dessa pretensao, mais a verdade, a veracidade ea retiddo _ é o seu caráter democrático. E para deixarmos claro o quantoesse caráter é fundamental para que se de a plena fusáo de horizontes, vale
lembrar a crítica de que foi objeto Gadamer por haver desconsiderado aquestáo democrática, quando escreveu o seu monumental Verdade e méto-
Etnicidade, eticidade egloba/izoriio
do. lO Isso levou Habermas a fazer uma de suas críticas mais pertinentes ahermenéutica gadameriana, uma vez que pós a questáo do poder no interior de qualquer comunidade de comunicacáo, na qual teria lugar a "cornpreensáo distorcida", decorrente do processo de dorninacáo; um lugar,por sinal, melhor elucidado, segundo Habermas," pela "crítica das ideologias" do que pela hermenéutica de Gadamer. No entanto, quando essadistorcáo dá-se em uma comunicarao tnteradtural, portanto entre campossemánticos teoricamente incomensuráveis, isso agrega obstáculos dos maisvariados tipos que somente a constatacáo óbvia da assimetria na relacáodialógica por si só nao esgota. Pois, como comenta um outro participantedo debate Norte - Sul em torno da ética do discurso de Apel,
aquiapareceo problemade sea éticadiscursiva - construidano horizontedacomunicacáo "intersubjetiva"- é capazde enfrentaradequadamente o horizonte da cornunicacáo "inrercomunitária" ,\2
ou, diria eu, interétnica.Ve-se, assim, que a perspectiva aberta por aquele debate permite-nos
vislumbrar a possibilidade de um proveitoso encaminhamento do problema. Como mencionei há pouco, a relacáo dialógica entre membros decomunidades culturalmente distintas introduz certas especificidades quemerecem um exame mais detido. Que o digam os indigenistas, imersosem sua prática diária precisamente nisso que se poderia chamar de confronto de horizontes semánticos diferentes; é quando o processo de fusáodesses mesmos horizontes enfrenta dificuldades próprias, a meu ver bastante mais complexas do que aquelas observáveis na fusáo de horizontesque tem lugar entre indivíduos ou grupos pertencentes a culturas ou asociedades nao hierarquicamente justapostas; particularmente quando fazem parte de uma mesma e ampla tradicáo histórica. Nesse sentido, ahermenéutica gadameriana tem mostrado sua eficácia precisamente naexegese de textos de diferentes períodos da história ocidental, com o ob
jetivo de inseri-los na inteligibilidade do leitor moderno, igualmente ocidental ou ocidentalizado; em outras palavras, tratar-se-ia de submeter os
9Cf. Enrique Dussel, "La raza n del otro. La 'interpelación' como acto-de-habla", inDebate en torno o la ética deldiscurso deApel Diálogo .filosófico Norte - S IIrdesde América
Latina, Enrique Dussel (org.), pp. 55-89.
10 H. G. Gadamer, Tratb andmethod.
11 J. Habermas, Dia/ética ebermestuti:« Para a critica da hermenéutica de Gadamer.
12 M. T. Rarnirez, "Ética de la comunicación intercomunitaria", p. 98.
176I
~177
Roberto Can/oso de O/irJeira
textos a um processo de "presentificacáo". Já a fusáo de horizontes entreculturas enraizadas em tradicóes tao diferentes - como soem ser os pavos indígenas diante das sociedades nacionais latino-americanas - tanto ahermenéutica de Gadamer quanto a ética discursiva de Apel e Habermasmais do que solucóes geram problemas, quando pensamos poder usá-lassem maiores precaucóes. Quais seriam esses problemas?
Seguindo, assim, as pistas abertas pelo debate Norte - Sul ao qual estou
me referindo, podemos identificar inicialmente alguns des ses problemas.Sem procurar debate-los nos termos em que foram explorados pelosfilósofos participantes daquele evento, urna vez que seríamos abrigados aabordar quesróes demasiadamente técnicas, tornando com isso muito langaesta exposicáo, creio que será suficiente para sustentar minha argumentacáo limitar-me a reformular aqueles problemas em termos de nossa perspectiva antropológica. Nesse sentido, estaremos tratando das relacóes interétnicas que térn lugar no interior de Estados nacionais, particularmentenos da América Latina. E se falamos em relacóes interétnicas nao custarelembrarmos algumas nocóes a elas associadas e de uso corrente ha an
tropologia desta segunda metade do século. Quero mencionar a de etniadade: urna nocáo que, desde lago, nos induz a visualizar um panorama no
qual se defrontam - melhor diria, confrontam-se - grupos étnicos nointerior de um mesmo espac,:o social e político dominado apenas por umdeles. Abner Cohen, há anos atrás, definiu etnicidade como senda "essen~
cialmente a forma de inreracáo entre grupos culturais que operam dentrode contextos sociais cornuns"." Pareceu-me entáo - e continuo valendome de sua definicáo - que ela dava bem canta da nocáo que todos nós
tínhamos do forte componente político que presidia os sistemas interétnicos,sobretudo quando as relacóes observáveis em seu interior estavam marca
das pela presenc,:a de um Estado cioso em defender a etnia dominante,isto é, aquela que esse mesrno Estado representava. Seja no Brasil, noMéxico, na Guatemala ou em muitos outros países latino-americanos, era
precisamente isso que se observava. N o Brasil - e fiquemos com essaexperiencia que nos é próxima - todo diálogo entre indios e brancos que
13 A. Cohen, "Introduction: The lesson of ethnicity", in UrbanEfhnicity, Abner Cohen(org.), p. ix.
178¡
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Etnicidade, eticidade eg/oba/izarao
produza resultados de valor legal, é feito por inrermédio da Funda<;:aoNacional do Índio, o braco indigenista do Estado brasileiro. Mesmo queesse Estado seja plenamente um Estado de direiro, democrático ao menosem suas características formais, veremos que, em um confronto entre ín
dios e brancos, a Funai, na qualidade de mediadora de um desejável diálo
go entre as partes, terá, ern primeiro lugar, de interpretar o discurso indígena a tim de torná-Io audível e inteligível ao seu interlocutor branco _ eisso nas raras vezes que esse branco está disposto a dialogar.
Imaginemos, todavía, que esse branco deseje sempre dialogar. Mesrnonesse caso, a ética discursiva apeliana que exige urna argfl!Jlmtarao racionalentre os litigantes, como característica básica de qualquer comunidade decomunicac,:ao, sempre guardaría um resíduo de ininteligibilidade, fruto dadistancia cultural entre as partes e, até mesmo, em relacáo ainstancia medi
adora: a própria Funai. Dussel mostra, por exemplo, que qualquer interpelarao - por ele c1assificada como "ato de fala" - dirigida pelo componente dominado da relacáo interétnica ao componente dominante _ esse
branco, culturalmente europeu, ocidental - nao pode cobrar do primei
ro a obediencia aos pré-requisitos de il1teligibilidade, llerdade, ueraadade e retidiio que se espera estejam presentes no exercício pleno da ética do discurso.A própria interpelac,:ao feita pelo Indio ao branco dominador _ nao ape
nas por ser parte do seguimento dominante da sociedade nacional mas,também, como dominador da linguagem do próprio discurso-, tornamuitas vezes difícil a inteligibilidade da mesma interpelac,:ao, e, com ela, sua
natural pretensáo de validade, urna vez que falta aquela condic,:ao básicapara o proferimento de um ato de fala que seja verdadeiro _ isto é, aceito
como verdadeiro pelo ouvinte alienígena; que tenha veracidade, portantoaceito com forca ilocucionária (de convicc,:ao) pelo mesmo ouvinre; e quemanifeste retidáo ou, com outras palavras, que cumpra as normas da co
munidade de argumenta<;:ao eticamente constituída, normas essas estabelecidas - e institucionalizadas - nos termos da racionalidade vigente nopólo dominante da relac,:ao interétnica. Como diz o mesmo Dussel "saoditas normas - a institucionalidade dominadora _ a causa de sua miséria", isto é, da miséria e da infelicidade do pólo dominado.
De todas as maneiras, na medida em que a dignidade da pes so a é considerada
em toda comunicas:ao racional como norma suprema, eticamente, pode nao
obedecer as normas vigentes, colocando-as em ques60 a partir de seu funda-
179
Roberto Cardoso de Olil)eiraEtnicidade, eticidade e,globa/i~.afíio
Cf.RobertoCardoso de Oliveira, "Indigenismo e rnoralidade", p. 48.18
Relativamente ao primeiro tópico, enquanto os museus argumentam que opavo em geral tem o direito de aprender sobre a história da humanidade enao apenas limitar-se ahistoria de seu próprio grupo étnico, os índios respondem que isso é uma profanacáo e uma forma de racismo. Alegam osmuseus que os indios tradicionalmente nao dño muita importáncia ao corpo,mas ao espírito; o que respondem os índios dizendo que a vida é um ciclo,originado na terra pelo nascimento e a ela retornando pela morte, ciclo esteque nao pode ser quebrado. Reivindicarn ainda os museus seus direitos emnome da ciencia:respondem os indios que as necessidadesculturáis - isto é,da cultura indígena - sao muito mais importantes do que as da ciéncia."
Como podemos verificar, relativamente a esse primeiro tópico, os di
reitos apregoados pelos museólogos confrontam-se de maneira muito
evidente com o direito indígena de autopreservacáo,
Já com relacáo ao segundo tópico, em que se advoga o retorno de artefatosindígenas aos seus lugares de origem, a saber, sua repatriacáo, os museusponderam que se isso acorrer; daqui a um século, uma nova gera<;ao nadapoderia aprender sobre seus objetos religiosos (senda, portante, responsabilidade dos museus assegurar esse aprendizado). Argumentam os índios queos objetos sagrados possuem importancia chave para a sobrevivéncia dasculturas indígenas americanas: e que esses objetos sao muito mais importantes para perpetuar suas culturas do que para o ensino de novas geracóes debrancos. Falam ainda os rnuseus que os objetos rituais nao pertencem somente a quem os faz; no que respondem os índios com o argumento dodireito do produtor original. Contra isso apelam os museus dizendo que osíndios nao sabem como conservar esses objetos; ao que discordam os índiosdizendo que os museus nao podem ir contra os valores sagrados, pois se osobjetos sao destruidos é porque eles (conforme felizexpressáo indígena) seautodevoram - e isso deve ser respeitado! E que ao contrário do que dizemos museus - que os artefatos sagrados sao estudados e interpretados deforma respeitosa -, para os índios eles só podem ser interpretados pelas
objetos indígenas. O primeiro tópico diz respeito a direitos invocados
pela comunidade dos museus, enquanto o segundo refere-se a direito rei
vindicado pelos índios. Esse conjunto de direitos é questionado segundo
os diferentes pontos de vista.
mento mesmo: desde a dignidad e negada na pessoa do pobre que interpela." A nao-normatividade da "interpela<;ao" é exigida por encontrar-se emum momento fundador ou originário de nova normatividade - ainstitucionalidade futura de ande o "interpelante" terá direitos vigentes que
agora nao tern."
14 Ou do índio, ou de qualquer outro excluído - acrescentaria eu.15 Cf.E. Dussel, "La razan del otro. La'interpelación' como acto-de-habla", p. 71.
16 Roberto Cardoso de Oliveira, "Indigenismo e moralidade", in Tempo Brasileiro (Reflexdo e Participafíio/330 Anos), 1992, pp. 41-55. Com o título "Práticas interémicas emoraJidade: Por um indigenismo (auto)crítico", foi inserido em Ensaiosantropológicos
sobre moral e ética, como seu Capítulo 2.
17 R. Hin, "Indiansand museums: A piea for cooperation",in HistoryNetus, vol. 34, n~ 7,
1979.
Isso quer dizer que na relacáo entre índios e brancos, mediada ou nao
pelo Estado _ leia-se Funai -, mesmo se formada urna comunidade
interétnica de comunica<;ao e de argumenta<;ao, e que pressuponha rela
<;oes dialógicas democráticas - pelo menos na intencáo do pólo dominan
te _, mesmo assim o diálogo estará comprometido pelas regras do discurso hegemónico. Essa situacáo estaría semente superada quando o índio interpelantepudesse por meio do diálogo contribuir efetivamente para a instituciona
lizacáo de urna normatividade inteiramente nova, fruto da interacáo dada
no interior da comunidade intercultural. Em caso contrário, persistiria urna
sorte de eomunicacáo distorcida entre índios e brancos, comprometendo
a dimensao ética do discurso argumentativo.A necessidade de assegurar as melhores condicóes possíveis para uma
comunica<;ao nao distorcida tanto mais é indispensável quanto maior for a
distancia entre os campos semanticos em interacáo dialógica. Gostaria deilustrar isso com um caso observado nos Estados Unidos - e que já tive
a ocasiao de explorar em outra oportunidade.16
Refere-se a um choque depontos de vista entre os indios norte-americanos e a "comunidade dos
museus", decidida a estabelecer um código ético regulador de sua política
de obten<;ao de elementos culturais indígenas para seu s acervos.l? A dis
cordancia entre os pontos de vista pode ser entáo registrada corn relacáoaos seguintes tópicos: o direito de coleta de restos humanos e de fazer
escavacóes arqueológicas ern território tribal; e o direito de expatria<;ao de
180181
..L
Roberto Cardoso de O/iveira
entidades religiosas tribais. E, finalmente, contra a acusacáo feíta peJos rnuseus segundo a qual os índios tendem a dizer que todos os seus artefatos saosagrados, argumentam gue nao há palavra na cultura indígena que possa sertraduzida como "religiáo", pois dizem - "pensamentos espirituais, valorese deveres estáo totalmente integrados nos aspectos sociais, políticos, culturaise artísticos da vida diaria. Essa unidade de pensamento é a religiáo indígena". t9
É claro que nesse caso específico, em que o diálogo interétnico mos
trou-se possível, vale dizer que os líderes indígenas participantes em gran
de parte já estavam socializados no mundo dos brancos - alguns deles
até mesmo graduados por universidades norte-americanas -, tivemos
um cenário em que o nivel de distorcáo do discurso pode ser considerado
como bastante tolerável. Certamente, tal nao aconteceria nas situacóes mais
comuns no Brasil e em muitos dos países latino-americanos, em que a
distancia cultural entre os interlocutores nao teria a mesma chance de ser
diminuída. Com campos semánticos tao distintos, praticamente opostos,
como o exemplo norte-americano mostra tao bem, o que esperar claque
las relacóes interétnicas em que urna das partes - a indígena - nao teria
sequer as condicóes discursivas mínimas para poder se opor ao ponto de
vista manifestado pelo branco, um ponto de vista muitas vezes ininteligível
para ele? Como falar em ética discursiva sem mostrar os seus limites? Tais
limites é o que o debate em torno da ética discursiva de Apel procura
identificar.
*Diante desse quadro, bastante desfavorável as Iiderancas indígenas para
1evarem a bom termo um diálogo com eventuais interlocutores da socie
dade dominante, restaria saber quais as reais possibilidades de emergencia
de urna ética discursiva que efetivamente leve em conta o contexto sócioeconómico em que estáo inseridos indios e brancos. A saber, um contexto
que, por sua lógica perversa, exclui os POyOS indígenas da condicáo moral
de "bern-viver" e os inclui na grande lista das minorias sociais, como os
pobres urbanos, os camponeses sem terra e toda sorte de despossuídos. E
no caso dos Indios propriamente ditos, o que nos acostumamos a chamar
Etl1icidade, etiC/dade eg/oba/izafiio
de conflito interétnico - e que eu, há trinta anos atrás, cheguei a cunhar a
expressao "fric¡;:ao interétnica" -, devo alertar agora que as palavras "con
flito" ou "fric¡;:ao" nao sao suficientes para indicar o conteúdo substantivo
das rela¡;:oes entre Indios e brancos, pois muitas vezes encobrem a natureza
específica dessas mesmas rela¡;:oes. Como lembra o já citado Dussel,
Em realidad e o eufemismo "confJito"ZIJ nao indica claramente o que saoestruturas de dominacño, exploracáo, alienacáo do outro. Na temática queestamos expando se manifesta como "exclusáo" do outro da respectivacomunidade de comunica<;ao.21
Ressaltados alguns dos problemas que envolvem a etnicidade, tanto
quanto as dificuldades que urna comunidade de comunica¡;:ao e de argu
menta¡;:ao intercultural encontra em lograr instituir novas' normas, capazes
de regular e assegurar um diálogo que seja democrático, creio que cabem
ainda algumas reflexoes no espa<;:o desta conferencia. Gostaria de retomar
a questáo crítica sobre o papel do Estado no processo de mediacáo entre
Indios e brancos. Porém, penso que é rnelhor especificarmos a instancia
em que a interven¡;:ao estatal deve ser requerida, observada e cobradadepois em seus resultados.
Refiro-me ainstancia da eticidade. Vimos, no inicio desta exposicño, a
importante distincáo aceita pela ética apeliana, relativa as tres esferas sociais
onde se arualizam valores morais: a micro, a meso e a macro-esfera. Anteriormente, eu já observara que
"enguanto na micro-esfera as normas morais possuem caráter particularista esempre podem ser observadas nas instancias mais íntimas (como as queregulam a vida sexual, por exernplo), na lllOC71J-esfera encontram-se os interesses vitais da humanidade - e as normas morais que incorporam esses interesses ganham urna dimensao universalista (como as que regulam os direítoshumanos, por exemplo). Se na primeira esfera o ideario relativista da antropologia recobre facilmente de bons argumentos a intocabilidade dos valoresmorais contidos nessas normas, nao sendo muito difícil ao antropólogoindigenista defender sua preserva<;ao, jánamocro--esfera esse rnesrno indigenista
19 C[ Roberto Cardoso de Oliveira, "Indigenismo e moralidade", pp. 48-49.
182
~L
20
21
E eu acrescentaria "fric<;:ao",se - e somente se - desvinculada do modelo da friq:aointerétnica.
C[ E. Dussel, "La razan del otro. La 'interpelación' como acto-de-habln", p. 78.
183
~
Roberto Cardoso de Olil'eira
Ira encontrar uma rnaior complexidade na defesa de cerras normasparticularistas _ como o infanticidio Tapirapé - que infringem uma éticaplanetária na qual esse mesmo infanticídio é visto de uma perspectivauniversalista, portante, como crime contra os direitos humanos. Essas normas morais universalistas, quando inscritas em conven~oes promulgadaspor órgáos internacionais, como a Organiza~ao das Nacóes Unidas, já naopodem ser ignoradas, e por várias razóes, inclusive porque essas mes masnormas universalistas acabam por trabalhar a favor do discurso indigenistaquando se trata _ e este é um caso cada vez mais comum - da defesa dodireito avida dos pavos indígenas ou do meio ambiente em que eles e todos
nós vivemos.22
E nao precisamos ir muito longe: vejam o caso dos lanonami, para
imaginarmos se eles nao estariam ainda ern pior situacáo se nao fosse a
grande pressao internacional ern sua defesa, apoiada naturalmente na Car
ta dos Direitos Humanos. Esse exemplo e muitos outros mais que poderíamos encontrar ern toda América Latina vérn sustentar a idéia segundo a
qual o processo de globaliza<;:ao ern que as sociedades humanas estáo en
volvidas, quaisquer que sejam elas, nao pode deixar de se tornar, hoje, umdos focos de atencáo prioritária da pesquisa, da reflexáo teórica e da prá-
rica antropológica.Gostaria, assim, de concluir esta exposi<;:ao corn algumas considera-
cóes sobre aquilo que entendo como sendo o lugar do Estado - naturalmente o Estado de direito - na indispensável mediacáo entre os interes
ses particularistas e os universalistas, situados respectivamente na micro-es
fera e na macro-esfera. Examinemos um pouco essa meso-esfera,.particular
mente no que diz respeito a política indigenista. Sabemos que os Estados
nacionais latino-americanos, que, de modo geral, nao térn se mostradomuito sensíveis ao multiculturalismo, como política de governo, tém, pelo
contrário, procurado dissolver as etnias indígenas no interior da sociedadenacional, sern maiores preocupa<;:6es ern respeitar suas especificidades culturais. A política assimilacionista rondoniana, de ínspiracáo positivista, e
que encontra ainda seus defensores no Brasil, ou, de igual modo, as políti
cas mexicana e peruana - entre outras - voltadas a mesticagern, saoexemplos eloqüentes de uma atitude pouco afeita a defesa da diversidade
22 Cf Roberto Cardoso de Oliveira, "Antropología e moralidade", p. 120.
184
~
Etniadade, etiddade e"Iobali?,pfoo
cultural. Porém, é curioso observar que a defesa dessa mesma diversidadevern se constituindo em uma das posicóes mais firmemente assumidas
nos foros internacionais, de modo a pressionar os Estados nacionais a
levarem a efeito o reconhecimento e o respeito as especificidades étnicas.Essa atitude, que nao deixa de se guiar por urn princípio relativista - que
tern seu lugar original na micro-esfera - passa a ser adotado ern nível
planetário como prática política nos foros internacionais! Como entender
essa aparente contradicáo? Creio que devemos interpretá-la como o resul
tado da intersecáo entre a micro-esfera, como o domínio da particularida
de, assegurada, por sua vez, pela vigencia do ponto de vista relativista,
com a macro-esfera, na qual a defesa da diversidade cultural e do respeito
aos direitos humanos passou a se constituir, notadamente nesta segunda
metade do século, em pressuposto moral e ético universalista, pois deadocáo planetária gra<;:as áqueles foros. Uma tal intersecáo, entretanto, nao
se faz na prática diretamente, mas por mediacáo da meso-esfera, na qual osEstados nacionais, de direito, por pressáo de órgáos internacionais - como
a ONU ou a OIT - sao compelidos a administrar tal conjun<;:ao entrevalores particularistas e universalistas.
Ternos, assim, atualmente, um cenário transnacional resultante do pro
cesso de globaliza<;:ao que, envolvendo todo o mundo moderno, acabou
por incorporar em sua dinámica também os POyOS indígenas, com suas
demandas pela defesa dos direitos aos territórios que habitam, a identida
de étnica que devem poder assumir livremente e aos seus modos de vida
particulares, sem os quais estariarn pondo em risco sua própria existencia.Ao mesrno tempo, tal processo - como já mencionei - imegrou esses
mesrnos POyOS no horizonte de uma ética planetária, portanto de caráteruniversalista, em que direitos e deveres preconizados pelos foros internacionais sao a eles estendidos. Mas se isso, de algum modo, pode abrirpossibilidades de intervencáo discursiva, isto é, por meio da argumenta
<;:ao persuasiva, nos valores vigentes na micro-esfera - como se viu no
caso das missionárias entre os Tapirapé -, há de se admitir que gra<;:as aessa eticidade institucionalizada no ámbito da macro-esfera, vém podendo
os POyOS indígenas - tanto quanto toda urna variedade de segmentos
sociais dominados - obter apoio internacional na defesa de seus direitosdiante de Estados nacionais freqüenternenre injustos.
Nao gostaria de encerrar esta exposicáo sem antes oferecer um bom
185
II
i,
1\
Roberto Cardos» de Ol¡"eira
exemplo de como a instancia internacional vem podendo desempenhar
um papel estratégico na sustenta~ao das reivindica~6es dos povos indíge
nas junto aos Estados nacionais. Em 1990, tive a oportunidade de partici
par da elaboracáo do Plano Qüinqüenal do Instituto Indigenista Interame
ricano _ 1991-1995 -, entáo dirigido pelo antropólogo peruano José
Matos Mar. Durante a semana que passamos na Cidade do México dedi
cados a redacáo do texto, pudemos relacionar mais de urna dezena de
documentos produzidos em organismos internacionais, sustentadores de
idéias e de recomendac;:oes aos governos do hemisfério, no sentido de
promoverem corn a maior rapidez possível a democratizac;:ao de suas
relacóes com os POyOS indígenas inseridos nos territórios nacionais. Pude
mos, assim, constatar que, nas últimas décadas, tem ocorrido significativas
mudancas no comportamento indígena, podendo-se destacar algumas
bastante auspiciosas: o aumento da capacidade de organizac;:ao étnica, per
mitindo urna atuac;:ao mais eficiente no modo de pressionar os organis
mos governamentais; o crescimento de uma tendencia que leva a afirmar
a identidade étnica bem como sua auto-estima, entendidas como núcleo
de urna proposta política em condicóes de igualdade; a existencia de urn
crescente número de etnias que, por sua própria iniciativa, empreendem o
desenvolvimento economico, como a integra<;ao no mercado nacional,
sem abandonar sua identidade e sua rradicáo cultural; a capacidade de se
vincular com diversas organizac;:oes nacionais e internacionais que apóiam
o movimento indígena; o aparecimento de lideranca própria que inclui
desde índios monolíngues até intelectuais graduados ~m universidades; o
interesse pela política, que os aproxima, com cenas reservas, a 'partidos
políticos; o reencontro corn migrantes índios localizados em cidades, o
que significa urna base de apoio que lhes facilita a vinculacáo com organis
mos estatais e organizac;:oes populares urbanas; e, finalmente, a identifica
cáo, no plano mundial, com o destino de outros POyOS indígenas com os
quais dividem problemas similares e com esses POyOS entram em en tendi-
mento."Pode-se dizer que hoje os POyOS indígenas, apesar de todas as dificul-
Etnicidade, eticidade eglobalizarao
dades que encontram a todo instante e em todo lugar, cornecam a viver
ern um novo cenário político, resultante da globaliza~ao. Se tomarmos,
como ilustracáo disso a mudanca sofrida na famosa Convencáo 107, da
Organizacáo Internacional do Trabalho (01T) , substituída pela Conven
c;:ao 169, de 27 de junho de 1989, podemos verificar o quanto progrediu
a luta indígena em defesa de seus direitos. O Instituto Indigenista Intera
mericano, no texto de seu Plano Qüinqüenal, reconhece isso e faz o se
guinte comentário:
Esta nova convencáo é uma versáo modificada da convencáo 107 que, desde1957, havia sido a norma internacional mais importante em matéria de defesados povos indios, constituida em lei nacional de 27 estados membro da OIT,entre eles, 14da América Latina. As rnodificacóes foram aprovadas depois deum extenso, minucioso e árduo debate em que, durante tres anos consecutivos, participaram as principais instiruicóes e organiza<;oes indígenas e próindígenas do mundo, junto com representantes dos governos, das organizacóes patronais e de trabalhadores, de virtualmente todos os países."
E continua o documento:
o espirito que orientou estas rnodificacóes foi o rechace explícito a referencias, enfoques ou propostas integracionistas. Em seu lugar, a nova convencáo
contém medidas que, ainda que com certas explicáveis salvaguardas, favorecem ou preservam a autonomia e a singularidade étnica dos POYOS indios. Adifercnca da convencáo 107 que só os denominava "populacóes", o 169 oschama "povos" e lhes reconhece o direito de possuir "territórios", além das"terras" que lhes reconhecia 0107.25
Entendo que muito ainda há para se conquistar no plano internacional
e, sobretudo, nos nacionais, cornecando com a assinatura de todos os
governos dessa nova convencáo em que, entre várias conquistas, está - a
meu ver - a principal: a das populacóes indígenas serem, finalmente,
reconhecidas como POliOS e, como tais, legítimos pretendentes a singulari
dade étnica e aautonomia, ainda que no ambito dos Estados nacionais. O
surgimento de um instrumento político dessa ordem só foi possível, em
23 Cf. Instituto Indigenista Interamericano - "política indigenista (1991-1995)", in
América Indígena, vol. L, 1990, pp. 80-81.
186
~
24
25
Cf. Instituto Indigenista InteramericanoAmérica Indígel1a, vol. L, 1990, pp. 82-83.
Idem.
187
- "Política indigenista (1991-1995)", in
Roberto Cardoso deQ/iveira
meu modo de ver, gra<;as apercepcáo pelas entidades internacionais, situ
adas na macro-esfera, dos graves problemas de etnicidade gerados no interior de países como os da América Latina, ainda que, atualmente, nao se
possa dizer que exista sequer um continente livre des ses mesmos problemas _ ao se considerar os movimentos de autonomia que se espalham
em todas as latitudes do planeta. Mais do que o "bom senso" cartesiano,
pode-se dizer que a etnicidade é, hoje, la cbos« du monde la mieuxpartagée! E
essa percepcáo da etnicidade explica-se, em grande medida, pela crescente
participacáo em organismos nacionais e internacionais de representantes
dos povos indígenas - tanto quanto de outros segmentos sociais
despossuídos de plena cidadania -, que passam a ter seus povos reco
nhecidos como sujeitos morais, merecedores de melhores condicóes de
existencia. O "bem-viver", como fato moral vivido por uns poucos po
vos, passa a ser admitido - ainda que formalmente - como alvo de
todos os pavos. Se isso nao é tudo, também nao é pouco, se olharmos
para trás ... O certo é que o crescimento, mesmo lento, da participacáo
gradativa de representantes étnicos nas comunidades cada vez rnais arn
plas de cornunicacáo e de argumenta<;ao - em que pesem todas as difi
culdades já apontadas para a plena efetivacáo da ética discursiva -, é algQ
que devemos levar em canta para melhor entendermos o quadro em que
se inserem atualmente as relacóes interétnicas e, sempre que possível, pres-
sionarmos por sua democratiza<;ao.
Capítulo 10
SOBRE O DIÁLOGOINTOLERANTE
A toleráncia é um fim em si mesmo. Aelirninacáo da violencia e a reducáo da
repressáo na extensáo requerida para proteger homem e anirnais da crueldade eagressao sao precondicóes para a criacáo
de urna sociedade humana.*
A oportunidade deste Seminario,' em boa hora programado pela Unes
co e realizado pela USP, vem ao encontro de preocupacóes que tenho
expressado em diferentes ocasióes, no Brasil e no exterior, por meio de
conferencias em torno de questóes nao muito habituais entre meus colegas
antropólogos. Sao questóes assaciadas a temas tais como eticidade e rno
ralidade, que cornecam a penetrar nas fronteiras de minha disciplina. Gos
taria, assim, de retomar o assunto no ponto em que o deixei, em minha
conferencia de abertura da Reuniáo Brasileira de Antropologia, em 1996,
que teve lugar em Salvador, quando abordei o tema "Etnicidade, eticidade
e globaliza<;ao", concentrando-me no exame da possibilidade - e sobre
tuda nas dificuldades - da construcáo de urna ética planetária.? A saber,
urna ética que seja válida para todos os pavos do planeta e que concorra
- sob o signo da tolerancia, acrescento agora - arealizacáo daquilo queMarcuse defendeu como "precondicóes para a criacáo de urna sociedade
humana", conforme reza a epígrafe que acabo de ler.
188
L
*
2
Cf. Herbert Marcuse, "Repressive tolerance", in Robert P. Wolf , Barrington Moore,
J r e Herbert Marcuse, A critique of puretolerante, p. 82.
Serninário Internacional "Ciencia, cientistas e a toleráncia", Unesco!USP, novernbro
1997.
o texto em referencia foi publicado pela Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, ano 11,nO 32, 1996, pp. 6-17. Urna outra versáo desse texto pude apresentar recenternenteem Oaxaca, México, em 25 de Junho de 1997, como Conferencia Inaugural do"Simposio Internacional 'Autonomías Étnicas y Estados Nacionales'", com o título"Etnicidad, eticidad y globalización", e consta como Capítulo 9 do presente volume.
189
-
Roberto Cardoso de Olil'eira
Após fazer urna breve retrospectiva da questáo desenvolvida naquela
ocasiáo, vou deter-me, portanto, naquilo que reconheco ser o nó górdio
do problema - o que nao significa, a bem da verdade, que me considereem condicóes de desatá-lo! Apenas gostaria de propor um possivel encaminhamento de urna discussáo que possa levar-nos a um consenso razoá
ve!. E para urna reflexáo coletiva, nao existe melhor oportunidade do que
a de um Seminario como o presente. Desde já, aproveito para agradecer
o convite que me foi feito pelos organizadores deste evento.Na mencionada conferencia, procurei mostrar que a ética discursiva, na
maneira como ela vem sendo formulada por Karl-Otto Apel e ]ürgen Ha
bermas, deixa um residuo de incornpreensáo na relacáo dialógica quando a
interlocucáo envolve membros de culturas absolutamente diferentes, quando,
por exemplo, ela tem lugar entre índios e nao-indios, marcada, portanto, porhorizontes teoricamente incomensuráveis. Sabemos que a ética discursiva, na
medida em que se ampara na possibilidade de urna hermenéutica - e aqui
me refiro especialmente a hermenéutica gadameriana -, opera sobre urnatradicáo histórica que, em regra, é partilhada pelos interlocutorés, ainda
que pertencentes a períodos históricos diferentes. Logo, poder-se-ia dizer,preexiste um caldo de cultura comum a sustentar a jusao deborirontes entretexto e leitor envolvidos em urna relacáo dialógica; a saber, entre o hori
zonte do texto e o do leitor. Nao vejo necessidade de recorrermos a
Hans-George Gadamer para sustentar esse argumento, pois é muito conhe
cido. Ora, quando se trata de indivíduos inseridos em culturas tao diversas,como as que podemos observar entre índios e náo-índios, a probabilidade de
ter lugar essa fusáo de horizontes entre individuos contemporáneos diminui
expressivamente, ainda que nao se possa afirmar que ela se inviabilize, poissempre se poderá encontrar empiricamente - daí a contribuicáo da an
tropologia - um nexo entre horizontes diferentes, gra<;as ao exercício da
argumentacáo racional - como, aliás, aponta a própria teoria da ética discursiva. Na conferencia aludida, procurei trazer areflexáo um elucidativo de
bate ocorrido no México, na Universidade Autónoma Metropolitana deIztapalapa, em 1991, cujos resultados foram publicados no volume Debate entorno de la ética deldiscurso de Ape/' com o subtítulo - muito a propósito
Diálogo filosófico Norte - Sur desde América Latina, organizado por EnriqueDussel, esse pensador argentino-mexicano, um especialista na filosofia ape
liana. O que me pareceu importante naquele debate foi o que considero
190
---""---
!Jobre o diálo.go ilTtolerolTte
urna abertura da discussáo sobre a significa<;ao da ética discursiva _ que
se pretende planetária - relativamente a instancias empíricas, na quais ra
ramente a filosofia como disciplina académica digna-se a examinar, o quedeixa um espaco interessante para o antropólogo Ocupar. Nesse sentido,cabe esclarecer, a "teologia da liberta<;ao", como tema recorrenre nagUeledebate, ocupa aqui, neste texto, um lugar secundário. A saber, nao será
tomada por referencia, enquanto doutrina religiosa ou ideologia política,
pela única razáo de meu interesse estar centrado nas cOl1dlfoes depossibilidadede diálogo e nao no assunto propriamente dito da relacáo dialógica.
De minha conferencia de 1996, gostaria de rerer dois conceitos que meparecem básicos na conducáo de minha argumenta<;ao: sao os conceitos
apelianos de "comunidade de comunica<;ao" e de "comunidade de argu
mentacáo". Penso que será suficiente dizer que urna cOlJilf!lldade de cOIJlll!licafaO é
urna instancia constitutiva do conhecimento presente em qualquer discursovoltado para alcancar consenso, tenha ele caráter científico ou simplesmente
produza discursos tangidos pelo "senso comum". É, portanro, urna instancia marcada pela intersubjetividade, inerente, por sua vez, a toda comuni
dade de argulllentafao - esse segundo conceiro apeliano -, comunidade
essa da qual nao escapa sequer o pensador solitario, como constata o próprio Ape!' Ve-se, portanto, que ambos os conceitos sao co-extensos. Significaque tais comunidades estáo constituídas por indivíduos de um grupo cultural
qualquer, desde que estejam inseridos em um mesmo "jogo de linguagem"
- para falarmos com Wittgenstein. Há mesmo urn ar de familia observávelentre essa nocáo wittgensteineana com os conceitos propostos por Apel.
Acrescente-se, apenas, relativamente a comunidade de comunica<;ao, que
essa é pensada por Apel em sua dupla dimensáo: como comunidade ideale como comunidade real; a primeira correspondenda apenas a possibilidade lógica de sua realizacño - e funcionaria como urna "idéia regulado
ra" -, enquanro a segunda remete asua realizacáo empírica, o que significa implicar urna comunidade constituída por indivíduos "de carne e osso".
Para ilustrar isso, tomemos como caso limite urna comunidade profissional altamente sofisticada, como, por exernplo, urna comunidade for
mada por cientistas. Apel vai dizer que a validade lógica dos argumentosformulados no interior dessa comunidade pressup6e, necessariamente, um
acordo intersubjetivo em torno de regras explícitas ou tacitamente admitidas. Isso quer dizer que, mesmo ern urna comunidade de comunica<;ao e
191
Roberto Cerdoso de Olirleira Sobre o diálogo intoleraste
de argumentac;:ao desse tipo, observa-se uma exigencia de consenso sobrenormas e regras - como, por exemplo, as da lógica formal - inerentes
aargumentac;:ao e que devem nela prevalecer. A garantia de um tal consenso está, precisamente, na existencia de uma ética que seja intersubjetivamente
válida e signifique o deuer de todos os membros da comunidade em obedecer as regras e as normas instituídas por aquele consenso. E se isso éverdadeiro para uma comunidade científica, é igualmente para qualquer
outra comunidade de comunicac;:ao e de argumentac;:ao no interior da qualse constrói todo e qualquer conhecimento. Essa é uma idéia que tu gostaria de deixar bem clara, uma vez que ocupa um lugar central nos argumen
tos que pretendo apresentar a seguir.Imaginemos uma situacáo em que membros de diferentes etnias, inse
ridas em campos semánticos diferentes, busquem estabelecer um diálogo.
E _ valha o exemplo - que esse diálogo se de entre a lideranca de um
determinado grupo indígena e representantes da Fundacáo Nacional doÍndio - Funai. Admitamos, ainda, que esses representantes estejam imbuídos dos princípios da doutrina de desenvolvimento alternativo conhecidapor "etnodesenvolvimento",' em termos da qual torna-se indispensávelnegociar com a populacáo indígena as eventuais mudancas propostas petoórgao indigenista. Tal negociacáo, para ser levada moralmente a bom ter- .mo, deveria ocorrer, portanto, no ámbito da ética discursiva. Nesse senti
do, a compatibilizac;:ao do modelo de etnodesenvolvimento com a éticado discurso nao pode merecer dúvidas. Em um texto anterior, "Práticas
interétnicas e moralidade: Por um indigenismo (autojcritico"," estendi-rnelongamente sobre o assunto, sem, contudo, chegar a abordar ab dificuldades inerentes aplena efetivacáo do diálogo interétnico, sem o qual - seja
3
4
o etnodesenvolvimento é urna alternativa ao desenvolvimentismo intervencionistae, como tal, tem sido recomendado nos foros internacionais, como o que teve lugar emSan]osé de Costa Rica, em 1981, dele tendo se originado a chamada "Declaración deSan]osé", que publicamos em editorial no AnuárioAntropológico/81, 1983, pp. 13-20.
Cf. Roberto Cardoso de Oliveira e Luís R. Cardoso de Oliveira, Ensaiosantropológicossobre morale ética, pp. 33-49, livro que recebeu esse texto, ampliado, como seu Capítulo 2. Sua forma original, porém, foi publicada em Antonio A. Arantes, Guilhermo R.Ruben e Guita G. Deberr (orgs.), Desenuohnmento e direitos humanos: A responsabi/idode
doantropólogo, pp. 55-66.
192
I
1
dito - torna-se irrealizável gualquer negociacáo, Uma negociacáo que
envolva relacóes dialógicas simétricas, em que a questáo do poder, ainda
que irremovível, possa de certo modo ser neutralizada por posturas democráticas assumidas convictamente por indigenistas devotados a persuadir o índio a aceitar as eventuais mudancas a serem introduzidas. O modelo de etnodesenvolvimento parece admitir essa situacáo sem maiores guestionamentos sobre os resultados positivos que, ao fim e ao cabo, deveráo
surgir. Porém, no meu modo de ver, entendo gue há dificuldades intrínsecas na própria estruturacáo desse diálogo, mesmo que o pólo dominanteda relacáo interétnica assuma uma postura eminentemente democrática, a
saber, quando os representantes da Funai aceitem o modelo de etnodesenvolvimento como a via mais correta orientada para a inducáo de mu
dancas no mundo indígena. É claro que essa via passa pela compreensáo
recíproca das partes envolvidas. Quanto a isso, nao parece haver dúvidas!As dúvidas que temos de examinar - volto a dizer - prendem-se aprópria estrutura desse diálogo gue, a rigor, ocorre entre indivíduos situados em campos semánticos distintos. A superacáo desse semanticalgap é
que parece se constituir no grande desafio, mesmo entre pessoas de "boafé" e preocupadas em chegar a um consenso.
Continuemos com o exernpló do diálogo Índios versus Funai. Nesse
diálogo imaginário, deve haver espac;:o para urna sorte de il1terpe/afao esse "ato de fala" , como assim é definida por Henrique Dussel - demodo gue as liderancas indígenas sempre possam dirigir-se ao órgao indigenista, pois, sem esse ato, como assegurar as condicóes mínimas necessá
rias ao cumprimento dos "requisitos de pretensáo de validez" do diálogo
recomendados pela ética discursiva? Entende-se com isso, e aqui permitome transcrever um longo trecho de minha conferencia,
que qualquer interpelacáo dirigida pelo componente dominado da relacáo
interétnica ao componente dominante - este branco, culturalmente euro
peu, ocidental- nao pode cobrar do primeiro a obediencia aos pré-requisi
tos de inteligibilidade, verdade, veracidade e retidáo que se espera estejam
presentes no exercício pleno da ética do discurso. A própria interpelacáo feita
pelo índio ao branco dominador - nao apenas por ser parte do seg
mento dominante da sociedade nacional, mas, também, como domina
dor da linguagem do próprio discurso - torna rnuitas vezes difícil a inteligi
bilidade da mesma interpelacáo e, com ela, sua natural pretensáo de validade,
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....
Roberto Cardoso de Oliveira
urna vez que falta aquela condicáo básica para o proferimento de um ato defala que seja "verdadeiro" - isto é, aceito como verdadeiro pelo ouvintealienígena; que tenha "veracidade", sendo, portanto, aceito com forc;:ailocucionária (de conviccáo) pelo mesmo ouvinte; e que manifeste "retidáo"ou, com outras palavras,que cumpra as normas da comunidad e de argumentacáo eticamente constituída, normas essasestabelecidas- e institucionalizadas - nos termos da racionalidade vigente no pólo dominante da relacáointerétnica.'
Essa institucionalidade dominadora tem sido, a rigor, se nao a causa,pelo menos um sério fator de dorninacáo política - e social - dos
POyOS indígenas, incapaz de ser eludida pelo indigenismo militante - ofi
cial ou particular -, ainda que ungido de boa fé. E para Dussel, a única
alternativa seria substituí-la por urna nova institucionalidade capaz de asse
gurar normatividade de urna interpelacáo feita pela parte dominada da
relacáo interétnica. Diz, assim, que
a náo-norrnatividade da "interpelacáo" é exigida por se encontrar em ummomento fundador ou originário da nova normatividade - a instinícionalidade futura de onde o "interpelante" terá direitos vigentes que agora naotern."
A importancia dessa nova normatividade está precisamente no fato
de, com ela, poder-se viabilizar um discurso em que nenhuma das partes,
eventualmente litigantes, veja-se impedida de comunicar-se sem embrenharse no cipoal de urna "cornunicacáo distorcida" - para usarmos esse uti
líssimo conceito habermasiano. Há, portante, a imperiosa necessidade de
transcender o discurso hegemónico, basicamente eurocéntricó, compro
metedor da dirnensáo ética de um discurso argumentativo que deveria
fluir naturalmente no interior do diálogo interétnico.
Vários caminhos poderiam ser examinados aqui. Caminhos que nos
levassem a investigar - e eventualmente propor - meios tendentes a
superar esse impasse gerado pela necessidade de urna nova normativida-
Sobre o diálogo intolerante
de. No momento, prefiro escolher apenas um, sugerido, aliás, pelo temário deste seminário: o da elucidacáo do conceito de to/eráncia e de sua
aplicabilidade no diálogo interétnico e, por via de conseqüencia, na ética
discursiva. Mas para um filósofo como Robert Paul Wolf,7 o melhor caminho para o encaminhamento - ou solucáo, como prefere Wolf _ do
problema parece estar em seu equacionamento em termos políticos e, emcerto sentido, psicológicos! Diz ele:
Urna solucáo para o problema da intolerancia,naturalmente, é enfraquecer oselos que ligam o indivíduo aos seus grupos étnicos, religiosos ou económicos."
E explica,
Somos todos irrnáos sob a pele, é a mensagem do humanista [..1 Mas operigo de dissolver lealdades paroquiais é que sem elas o homem nao podeviver.?
E dada a impossibilidade real de transformar toda urna nacáo em um
grupo primário - o que poderia teoricamente transcender ao simplesparoquiamento -, isso seria evidentemente impossível. Por isso, seria "de
sastroso enfraquecer os elos primários mesmo em nome da fraternidade"nacional. Diante disso, Wolf procura um caminho em direcáo ao "plura
lismo" como condicáo de dernocratizacáo de urna moderna sociedadeindustrial; portanto, parece-lhe suficiente urna solucáo política, na qual a
tolerancia, como "estado de espírito", cumpriria urna funcáo básica, urna
vez que a "tolerancia é verdadeiramente a virtude de urna democracia
pluralista".'? De minha parte, entendo que o encaminhamento do proble-,
ma para urna solucáo apenas política, ainda que importante, nao é sufi
ciente para armar-nos de um ponto de vista que, com maior profundida
de, possa levar a urna reflexáo preferencialmente em direcáo da moralida
de e da eticidade, em detrimento da política. Sugiro, assim, urna outradirecáo para o exame do problema da intolerancia.
5
6
Roberto Cardoso de Oliveira, "Etnicidade, eticidade e globalizacáo", pp. 11-12.
Cf. Enrique Dussel, "La razon del otro. La 'interpelación' como acto-de-habla", inDebate en tomo a la ética del discurso deApeL Diálogo filosófico Norte - Sur desde AméricaLAtina, Enrique Dussel (org.), p. 71.
194
aL
7 Cf. R. P. Wolf, "Beyond tolerance", in A critique ofpure tolerance, pp. 3-52.
8 Idem, p. 7.
9 Ibidem.
10 Ibidem, p. 23.
195
i.
Roberto Cerdoso deOliveira
Entre as várias acepcóes do termo tolerancia inscritas em dicionários,
tomaria aque1a que parece mais condizente com a problemática que esta
mos tratando. Quero me valer aqui do sentido c do termo, registrado no
Vocabulaire technique et critique de laphilosophie de André Lalande.!' O verbete
reza o seguinte: "Disposicáo do espírito, ou regra de conduta, consistente
em deixar a cada um a 1iberdade de exprimir suas opinióes, mesmo que
de1as nao participe". 12 A idéia de tolerancia assim formulada expressa urna
atitude que, sobre ser democrática, é profundamente moral! Tern-se aqui a
virtude da tolerancia que, a rigor, está longe de caracterizar o diálogo inte
rétnico. Pode-se dizer que a etnografia, nao só no Brasil, mas no mundo,
registra de forma bastante eloqüente dificu1dades que parecem ser ineren
tes ao tipo de diálogo comumente observável no interior de sistemas inte
rétnicos. Nesse sentido, nao há nenhuma novidade em reconhecermos que
existem dificu1dades nas relacóes sociais que neles térn lugar; e que engen
dram representacóes preconceituosas e profundamente discriminadoras
do outro - particularmente quando este outro mais se distancia dos pa
rámetros cu1turais do pólo dominante da sociedade global.
Mas o que nem sempre nos chama a atencáo, por carecer de espessura
social empiricamente resgatável pela etnografia, é o plano da linguagem;
ou melhor, do discurso enquanto modo de re1acionamento intercu1rural.
É verdade que o chamado linguistic turn, originário do pensamento filosó
fico contemporáneo, vem se introduzindo gradativamente na antropolo
gia e, certamente, tem contribuído para trazer ao horizonte da disciplina o
fenómeno do discurso e, particularmente - para os n<;>ssos interesses -, o
problema do discurso interétnico. E se pudéssemos atribuir umá marca a .
esse discurso, diríamos que essa seria a da intolerancia. E é essa intolerancia
que as monografias registram ad nauseam. Mas, sem querer reduzir o pro
blema da persistencia do discurso hegemonico - habitual no diálogo
interétnico - a exc1usividade de um fator de ordem psicológica, estou,
antes, procurando situá-lo além de qualquer psicologismo, para examiná
10 em termos de urna moralidade - o do compromisso com a idéia do
11 André Lalande, Vocabulaire tethniq,« el critique de la philosophie, 5' ed., París, PressesUniversitaires de France, 1947.
12 Idem, p. 1.111.
196 L
Sobre o diálo.go intolerante
bem-viver do outro - e de urna eticidade - o do compromisso com a
idéia do deverde negociar democraticamente a possibilidade de se chegar a
um consenso com o outro. Entendo - ainda va1endo-me de Lalande
que é imperioso separar da nocáo de tolerancia qualquer sentido que a
vincule a um cerro sentimento de caridade diante do outro, tratado como
um ser subalterno; pois tolerancia deve ser compreendida como respeito,
sem o qua1 a dignidade moral nao é atingida. Nesse sentido, para Lalande
- seguindo Renouvier - "o que se chama tolerancia é urna virtude da
[ustica, nao da caridade"." Desfeito esse possível equívoco, podemos formular finalmente o conceito de tolerancia como urna questáo de direito,
ademais de poder situá-lo no paramar da moralidade e da eticidade. Com
isso, a rejeicáo ao diálogo intolerante passa a ser um caso de justifa e as
relacóes interétnicas subjacentes passam a ser tratadas em um plano de
lídima moralidade e nao apenas como realidade política a ser administra
da exclusivamente pela democratizacáo daquelas relacóes. Destarre, nao se
trataria mais de urna concessáo do pólo dominante, isto é do Estado, mas
um imperatiuo moral.
Nao vejo outro rumo a tomar para melhor encaminharmos o problema criado com a constatacáo da necessidade de se institucionalizar urna
nova normatividade - como sugere Dussel - capaz de substituir o dis
curso hegemónico exercitado pelo pólo dominante do sistema interétnico.
Ao indigenista, voltado para o aperfeicoamento de práticas interétnicas e
eventualmente interessado em urna sorte de "antropologia da acáo", as
questóes aqui desenvolvidas podem ter a1gum apelo, poi s seráo sempre
capazes de conduzi-lo a repensar modalidades habituais de re1acionamen
to, comumente fadadas ao fracasso. Quanto ao papel da antropologia,
como disciplina académica, entendo caber a ela procurar - mediante a
elucidacáo do conceito de tolerancia, bem como do lugar que ocupa no
diálogo interétnico -, nao apenas a conduzir a reflexáo teórica para a
dimensáo empírica - etnográfica - de um certo genero de diálogo
reflexáo esta mais afeita as incursóes filosóficas -, mas também contri
buir indiretarnente para a formulacáo de políticas indigenistas que sejam
compatíveis com os imperativos de eticidade e de moralidade.
13 André Lalande, Vocablllaire tecbnique et critique de la pbilosopbie.
197
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índice analítico
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aculturacáo 20, 47ambientes sócio-culturais 120an tropologia
antropologias centráis
39, 45, 50, 51, 107,113, 114, 116, 163
antropologia cultural 28, 125, 136antropología interpretativa 31, 93antropologias metropolitanas 122, 162antropologia moderna sócio-culrural 154antropologias periféricas 38, 39, 45, 51,
56, 107, 108, 109, 111, 112, 114,117, 120, 121, 122, 123, 124, 132,155, 164
antropologia pos-moderna 27, 29antropologia social 33, 46, 59, 63, 75, 83,
86, 125, 128, 130, 136, 138antropologia sócio-culmral 171
conceiro de antropologia 37crise da antropología 55, 56, _58,
59, 64, 69crise na historiografia das ciencias
antropológica 56crise moderna da antropologia 54discurso da antropologia 27, 34, 68,
96,114120,141estilos nacionais de antropologia 116história da antropologia 58, 105história moderna da antropologia 113insritucionalizacáo da antropologia
130linguagem da antropologia 114modo tradicional de se fazer
antropologia 28singularidade da antropología 136teoria geraJ da antropologia latino
americana 120universalidad e da antropologia 39,
113an tropólogo
comunidade de antropólogos 54, 93, 105,116,129,133
comunidade mexicana de antropólogos 58argumenracño
argurnentacáo racional 179, 190argurnentacáo inrerculrural 183
B
bem-viver 170, 182, 188, 196Bildung 131, 132
eCatalunha
cultura catalá 143,144,146,147direitos cataláes ¡ 43etnologia catalá 153etnografía catalá 151história da consciencia moral e jurídica da
Catalunha 145história das idéias catalás 148ideologia da catalanidade 142, 147, 148,
149, 156movimento renascentista cataláo 146pensamento cataláo 148persona catalá 148psicologia do povo cataláo 150, 151, 156Rmaixensa 146, 154
cienciahistória da ciencia 54, 86, 108, 137história das ciencias paradigmáticas 53historia das ciencias sociais 92objeto de ciencia 80objeto de saber científico 78período de emergencia da disciplina 156
ciencia política 126, 131ciencias sociais
explicacáo das ciencias sociais 69interpretacño nas ciencias sociais 95
cognicáo 18, 19, 23, 24, 25, 32, 35, 67,69,85, 86, 91,92, 104, 114, 157, 159
objeto cognoscível 67, 77, 84sujeito cognoscente
64, 67, 74, 77, 84, 90sujeito cognoscitivo 40, 42valor cognitivo 91
colonialismo 41, 42, 46, 108, 173colonialismo interno 41, 46, 51
1;1.I.!
211
o /rabalho do antropólogo Índice anaJilico
conceito de colonialismo 51etnias colonizadas 41situacáo colonial 41, 46, 47
comensurabilidade 165, 166, 171compreensáo 22,24,34, 51, 64, 68, 69, 71,
81,83,84,85,86,87,91,92,93,96,97,100,102,103,104,105,112,114,139,145,159,177,190,193
interpretacáo compreensivs 91, 96, 97,100,102,116,159
interpretacáo explicativa 102método compreensívo 71, 87pré-cornpreensjr, 84
comunidade 22, 58, 90, 130, 131, 165,166, 174, 177, 180, 188, 191
comunidade científica 49, 166, 192comunidade de antropólogos
54, 93, 105, 116, 129, 133
comunidade de argumenta~¡¡o 49, 179, 191,194
comunidade de comunica~¡¡o 26, 48, 90,141, 176, 177, 179, 183, 191, 192
comunidades culturalmente distintas 177comunidade de pares 27, 43, 89, 90comunidade de profissionais 17, 25, 26,
27,28,31,37,45,55,56,89,90,97,107,108,110,111,114,119,121,122,133,137,141,191
comunidade intercultural 180
comunidade internacional de profissionais da antropologia 137
comunidade mexicana de antropólogos 58conceito 27, 37, 38, 41, 42, 45, 46, 47,49,
50, 74, 78, 80,84,96,131,132,137,191conceito apeliano 191conceiro complementar 114conceito de antropologia 37conceito de colonialismo 51conceito de crise 53, 56
conceito de crise e de paradigmakuhniano 54
conceiro de estilo 112
conceito de etnicidade 142conceito de etnodesenvolvimento 45, 48conceito de fric~ao interétnica 45, 46conceíro de "fusáo de horizontes" 174conceito habermasiano 194conceito heurístico 50conceiro de humanidade 80
conceito de interpretacáo 96conceito de matriz disciplinar 137conceito metropolitano 42conceitos operacionais 113conceito de paradigma 54, 62conceito de periferia 110conceito de prejuizo 84conceito de seny 148conceito de tolerancia 195, 197história do conceito 84mega-conceito do paradigma estrurural
funcionalisra 131, 132personagem conceirual 44relativismo conceirual 164
conhecimento 18, 19, 21, 24, 25, 32, 35,55, 66, 67, 75, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 88,89, 92, 104, 116, 135, 149, 151, 152, 159,170, 172, 191, 192
conhecimenro antropológico 33, 104conhecimento científico 76, 78, 86, 149, 165conhecimento dito científico 86conhecimento interpretativo 91conhecimento objetivo 76conhecimento proposicional 81
conjectura 90, 91crise 53,54,56,57,58,59,60,61,64,69,87
crise da antropologia 55, 56, 59crise de paradigmas 53crise disciplinar 59crise do indigenismo oficial 44crise dos modelos 87crise epistérnica 54crises institucionais 59, 72
crise meta-disciplinar 59crise moderna da antropologia 54conceito de crise 53, 56conceito de crise e de paradigma
kuhniano 54percepcáo da crise da disciplina 58
críticacrítica das ideologías 69, 70, 177
cultura 20, 26, 29, 39, 40, 49, 61, 69, 88,106, 108, 118, 131, 143, 153, 157, 162,163, 165, 170, 171, 172, 173, 175, 177,178, 179, 181, 184, 190, 191
cultura antropológica 27, 172
cultura artificial 40cultura catalá 144, 146, 147cultura científica 68
culturas exóticas 158
cultura indígena 52,161,162,180,181,182cultura nativa 27cultura norte-americana 163cultura ocidental 163cultura do outro 34, 157, 166cu ltura tri bal 17S
culturalmente europeu 193caldo de cultura 142, 190caregorias culturais 84comunidades culturais 166comunidades culturalmente distintas 177diferericas culturais entre sociedades
isoladas 144distancia cultural 179, 182diversidade cultural 123, 184, 185grupos culturais 136idiomas culturais 39incompatibilidades culturáis 174influencia cultural 163intervencáo cultural 173linguagem cultural 172outras culturas 158, 159parámetros culturáis 196processo de endoculruracáo 84raízes culrurais 161
relacionamento intercultural 17), 196relativismo cultural 157, 164, 166sistemas culturais 166subcultura ocidental 110tradicóes culturais 48, 186
culturalismo 63, 113, 129, 130, 132, 138,154, 164
culturalisrno tradicional 132paradigma culturalista 131, 140
D
descricáo 27, 82, 95, 96, 97, 98, 103desenvolvirnento
teoria desenvolvimentista 47dever 170, 182, 185, 192, 197diacronia 139dialética 26,27,70,71,87,104,105
mediacáo dialética 69relacáo diaJética 70, 96, 97
dialeto 137, 141
diálogo 3, 24, 49, 68, 93, 108, 118, 122,141, 165, 166, 174, 176, 178, 179, 180,182, 183,189,191, 192, 193, 196,197
diálogo horizontal 116, 118diálogo ínter-pares 93diálogo planetário 137comunica~ao interculrural 177
diferenc a
identidade e diferenca 109discurso
discurso durkheimiano 79discurso escrito 88discurso folclórico 154discurso interpretativo 180discurso naturalizante 76discurso ocidental 175discurso próprio da disciplina 30ética de um discurso 194
difusionismo 154
disciplinas sócio-cuIturais 92discurso 18, 24, 25, 26, 27, 65, 68, 88,
114,174, 176, 177, 179, 182, 191,192, 193, 194, 196
discurso argumentativo 194discurso científico 101discurso hegemónico 180, 194, 197discurso do nativo 24análise do discurso 121ética do discurso
176, 177, 179, 180, 192, 193dorninacño
dorninacáo política 42
E
economia 29
economía consuetudinária 145empírico
observacáo empírica 159
objeto ernpiricamente observável 55objeto empírico de estudo 155paradigmas empiristas 138pensamento empirista 74rradicáo empirista 63, 140
ensaísmotradicáo ensaisra brasileira 120
entendimento
categorias do enrendimento 50, 75entrevista 22, 23, 24, 65, 67, 159
entrevistado/entrevistador 23, 30epistemologia 18,24,28,31, 55,58,59,67,
69,71,82,87,92, lOS, 106,109,112,118,154,155,160,172
212 213
o IrahaIho do 011tropólogo Ílldice ollolítico
epistemologia clássica 79
fpis/<lJJe 72epis/elllf naturalista 64compromisso epistemológico 122crise epistérnica 54diálogo teórico e epistemológico 108estatuto epistemológico 40fidelidade epistemológica 140investiga<;ao epistemológica 62, 89mensagem epistemológica 156orientacáo epistemológica 169relativismo epistemológico 167sujeito epistémico 42, 43
Escola de Antropologia Social Británica
138Escola Francesa de Sociologia 63, 138Escola Histórico-Cultural Norte
AJnericana 63, 138Escola Livre de Sociologia e Política
126, 130estética
estética de lévi-straussiana 17estilística 9,51,108,114,115,117,120,
121, 141, 155, 156, 162, 163estilo 19,37,51, 56, 112, 113,114, 115,
116, 120, 135, 141,151, 152, 155,163
estilos de antropologia 111,114,115,120,
152estilo brasiJeiro 120estilo cataláo 156estilo latino-americano 163estilos marcantes da antropologia 52estilos nacionais de antropología 116conceito de estilo 112
estrutura 21, 76, 77, 113, 132, 193estrutura de acáo 103
estrutura no ámbito de tradicóes
lingüísticas 131estrutura da disciplina 155estrurura de ensino e pesquisa 124estrutura matricial 117estrutura da matriz disciplinar 129, 155estrutura da organizacáo do trabalho
científico 59estrutura de pensamento 103estrurura social 77
estrutural-funcíonalismo 63, 138estrurural-funcionalismo británico 96,
113,132,140mega-conceito do paradigma esrrurural
funcionalista 132paradigma esrrurural-funcionalista, 132, 140
estruturalismo 31, 140, 154estrururalismo levi-straussiano 105, 113,
119,132,140estruturalista 63, 129, 130, 159estudo
objeto de esrudo 80ética 48, 52, 70, 170, 171, 174, 175, 185,
189, 192ética apeliana 183, 190
ética discursiva 171, 173, 174, 176, 177,178, 179, 182, 188, 190, 192, 193, 195
ética do discurso176, 177, 179, 180, 192, 193,194
ética planetária 169, 175, 184, 185, 189macro-ética 175meso-ética 175micro-ética 175teoria da ética discursiva 190
eticidade 48, 169, 171, 174, 183, 185;189, 195, 196, 197
etnia 41, 42, 135, 136, 142, 144, 186,192ernia dominante 42, 178etnias indigenas 46, 47, 54, 184identidade étnica 55, 141, 142, 185, 186ideologia étnica 117singularidade étnica 187
etnicidade 117, 135, 136, 137, 142, 144,152, 154, 156, 169, 178, 183. 188,189
etnicidade catalá 1'43etno-classificacóes 105percepcáo da etnicidade 188
etniz acáo 117, 118, 136, 143, 151, 156
etno-história 161, 162etnocentrismo 33, 157
antietnocén trismo 40etnodesenvolvimento 45, 47, 48, 49, 51,
192, 193conceito de etnodesenvolvimento 45, 48modelo de ernodesenvolvimento
192, 193etnografia 24, 26, 28, 31, 33, 41,66, 106,
133, 150. 151,158, 196,197etnografía catala 151etnografía indigena 115
214
etnografia tradicional 103cenário etnográfico 30dados etnográficos 29encontró etnográfico 24, 64, 65, 67investigacáo etnográfica 30, 166material etnográfico 34pesquisa etnográfica 31, 58prática etnográfica 97observacóes etnográficas 64olhar etnográfico 19, 21, 124texto etnográfico 28, 29, 31
etnologia 45, 55,129, 130, 150,151, 156,159
etnologia boasiana 140etnologia brasileira 88etnología catalá 153ernologia indígena 58, 66, 130investigacáo etnológica 34literatura etnológica 23, 61monografia etnológica 62periodo "heroico" da etnología 130pesquisa etnológica 44, 165tradicáo de esrudos etnológicos 130
etnoscience 154evolucionismo 154experimental
monografias experimentáis 29explícacño
51, 64, 69, 71, 81, 82, 83, 87,91, 96, 97, lOO, 101, 103, 104, 105114, 116, 139, 159, 161
explicacáo analítica 115interpretacáo explicativa 91, 97, 100, 102método explicativo 71, 87modelo explicativo 53, 87, 118
F
falaato de fala 179, 193, 194linguagem falada 137
fenómenos sócio-culrurais 135fieldwork 25, 27, 66, 159, 166filologia tradicional 103filosofia 26, 31, 147, 157, 158, 160, 163,
164, 167, 171, 176, 191fiJosofia abstrata 78filosofía nas Américas 164filosofía apeliana 190filosofías ccntrais 159
filosofia clássica, 113filosofía escocesa 148filosofia nos Estados Unidos 162filosofías ditas exóticas 160filosofia latino-americana 164filosofia da libertacño 176filosofia medieval 113filosofía ocidental 160, 162filosofias periféricas 157Filosofia do Senso Comum
147, 148, 149filosofia do Sen)' 149paradigma filosófico 113pensamento filosófico 148, 161pensarne nto filosófico contemporáneo
196tradicáo da filosofia ocidental 162
folclore 40, 143, 145, 146, 149, 151, 156folclore caraláo 143discurso folclórico 154
folclorista 146folcloristas científicos 151
friccáo 183
friccáo interétnica 45, 46, 51, 176, 183conceito de friccáo interétnica 45, 46
funcionalismo 154funcionalistas norte-americanos 47funcionalistas ou británicos 47métodos funcionais 71recrias funcionalistas 47
"fusáo de horizontes" 24, 68, 174, 176,177, 178, 190
G
Geistestoissenscbaft 81globaliza<;ao 169, 184, 185, 187, 189grarnaticalidade 49, 98, 112greffe 64,87
H
hermenéutica 28, 29,31,64, 65, 66,67,68,69,70,71,83,84,85,86,87,91,92,93,100,102, lOS,106, 113, 122, 138, 174, 190
hermenéutica gadameriana 68, 177,178, 190hermenéutica geertziana 154hermenéutica moderna 104hermenéutica de Paul Ricoeur 115hermenéutica ontológica 68hermenéutica tradicional 104
215
f
o trabalho do antropó/og , Índice analítico
i!
,
abordagem hermenéutica 100ciencias hermenéuticas do espirito 70ciencias histórico-hermeneuúcas 69círculo herrnenéutico 90experiencia hermenéutica 83filosofia hermenéutica 68paradigma hermenéutico 29, 31, 64, 69, 70pensamento hermenéutico 66, 83recria da experiencia hermenéutica 83teoría hermenéutica 174
heurísticoconceito heurístico 50
hipótese 24, 54, 91, 101hipótese de trabalho 120construcáo de hipó tese 24formular hipótese 83gerar hipótese 91testar hipótese 85
história 67, 108, 118, 123,153história da humanidade 181história das relacóes entre a Europa e a
América Latina 41história ocidental 177história do pensamento ocidental 138história de seu próprio grupo étnico 181ciencias histórico-hermenéuticas 69tradicáo histórica 177, 190
hístoricidade 50, 64, 66historicismo 154
historicismo de orígem diltheyana 67paradigmas históricos 139, 140
humanidadeconceito de humanidade 80
1
ídéía-valor 32, 33, 34ídentidade 37, 135, 142, 146, 186
identidade castelhana 142identidade catalá 142, 146, 147, 156idenúdade contrastante 142idenúdade e diferenca 109
ideología 43, 106, 149, 156, 170ideologia política 191crítica das ideologias 69, 70, 177indigenismo como ideologia 43
idioleto 137, 141indígena
cultura indigena 52, 161, 162, 180,181, 182
discurso indígena 179emias indígenas 46, 47, 54, 184etnografia indígena 115ernologia indígena 58, 66, 130objetos indígenas 181pensamento indígena 162política indígena 45religiáo indígena 182
indigenismo 43, 44, 45indigenismo como ideologia 42, 43, 44, 45indigenismo latino-americano 173indigenismo militante 194indigenismo oficial 44indigenismo teórico e prático 44crise do indigenismo oficial 44discurso indigenista 184indios VerSIIf Funaí 193política indigenista 44, 45, 184. 197
ínfanticidío 174, 175, 184instítucionaliza'1ao 180institui'1ao 78intelectual
tradicóes intelecruais 63, 111, 138; 148tradicáo intelectualista-racionalista 74paradigmas intelectualistas 138
ínteligíbílídade 34, 176, 179, 193inteligibilidade do leitor moderno 177
íntelígível 21,166,179inteligencia do espirito 75inteligivel em escala planetaria 137ininteligivel 182"ossarura da inteligencia" 50, 75
ínterétnicocomunidade interétnica de ;omuníca~ao
180diálogo interétnico 135, 176, 182, 192, 194,
195,196,197dimensáo política das relacóes interétnicas
51discurso interérnico 196friccáo interémica 45, 46, 51, 176, 183teoria das relacóes interérnicas 135
interlocucáo 137, 190ínterpretacáo 17, 27, 34, 44, 90, 95, 96,
97, 100, 101, 102, 105, 106interpretacáo nas ciencias sociais 95interpreta~ao compreensiva 91, 97, 100,
102, 116, 159antropologia interpretativa 31, 93conhecimentQ interpretativo 91
216
discurso interpretativo 180dupla interpreracáo 95, 104, 105, 106
intersubjerividade 31, 67, 70, 85, 86, 89,90,97,177,191,192,
investigacño sócio-cultural 89
Jjuízos de valor 171, 172
K
Kultur 131, 132Kulturkreise 154
L
Lebenswelt 84língua
universalidade da língua 137linguagem
26,67,85, 112, 165, 179, 193, 196linguagem antropológica 141linguagem científica 114, 172jogo de linguagem 66,141,160, 191
lingüístas 114, 137, 158, 161lingüística 22, 69, 112, 137, 152
lingüística norte-americano 161estrutura no ámbiro de tradicóes
lingüísticas 131guínada lingüística 26jogo lingüístico 162metáfora lingüística 49,112, 113, 141parámetro lingüístico 49tradicóes lingüísticas 131
linguistics turn 26, 196lógica 85
lógica formal 192lógica indutiva 74lógica perversa 182lógica de probabilidade subjetiva 90lógica das representacóes de Hamelin 75possibilidade lógica 191validade lógica dos argumentos 191
M
matrimonio 60, 98, 99matrimonio exogámico 98possibilídade matrimonial 99
matriz disciplinar 37, 38, 39, 49, 51, 59,62, 63, 64, 65, 66, 69, 70, 72, 75,
87, 113, 114, 115, 116, 117, 120, 122,129, 131, 132, 137, 138, 139, 153, 155,156, 164
conceito de matriz disciplinar 137estrutura da matriz disciplinar 129, ·155
método 71,73,74,76,77,78,82,86,87,88,90,92,105,106,124,150,172
método científico 81, 151método comparativo 157, 172método compreensivo 71, 87método explicativo 71, 87métodos funcionais 71métodos de investigacáo 146método de observacño objetiva 150método da sociología 73aplicacáo do método 82exercício de método 73, 83, 86importancia do método 83limites do método 73pluralidade de métodos 116predominio do método 81prerrogativa do método 77
metodologia 24, 90, 92, 95, 150, 153, 154metodologia durkheimíana 75metodologias formáis 90metodologia radicalmente objetivista 105
mitología 29, 61modelo 61, 87,103, 137, 139, 159, 163
modelos científicos 153modelo de cientificidade 79modelo de etnodesenvolvirnento 192,
193modelo europeu 126modelo explicativo 53, 87, 118modelo exploratorio 137modelo geométrico 139modelo de inspiracáo norte-americana
126modelo nativo 22, 27modelos de pensamento e de acáo 163
moral 26, 145, 170, 171, 173, 174, 182,185, 192, 196, 197
consciencia moral 145costume e norma moral 173fato moral 188imperativo moral 197valores morais 175, 183
moralidade 49, 158, 169, 170, 171, 174,175, 189, 192, 195, 196, 197
217
o rrabalbo do antropólogo
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sociología da ciencia 116, 118sociología cornreana 77sociologia de Spencer 78
conhecimento sociológico 76descricáo sociológica 77explicacáo sociológica 81interpretacáo sociológica 121
subjetividade 76,77, 80, 83, 85, 86, 90, 171subjetividade do autor/pesquisador 31
subjetivismo 76, 89, 106sujeito 67
T
teoria 19, 31, 53, 58, 59, 60, 61, 62, 95,108, 135, 150, 154
teoria antropológica 150, 151, 156teoria barthiana 142teoria das espécies sociais 78teoría da experiencia hermenéutica 83teoria desenvolvimenrisra 47teoria funcionalista 47teoria geral da antropologia latino-
americana 120teoria grande 62teoria de médio alcance 61, 62teoria de parentesco 21, 60, 83teoria das relacócs inrerétnicas 135
teoria social 18,21,26,28,31,86,92,93diálogo teÓrico e epistemológico 108meta-teorías 61
tolerancia 189: 195, 196, 197conceito de tolerancia 195, 197intolerancia 195, 196diálogo intolerante 197
tradicáo 23, 61,64,75, 118,120, 129,130,138, 173,178
tradicáo académica 72
tradicáo alerná 131tradicáo cartesiana 86tradicáo científica 85tradicóes clássicas 108tradicóes comunitarias 141
tradicóes filosóficas 138tradicáo francesa 60tradicáo hegeliana 171tradicóes lingüísticas 131tradicáo racionalista 74tradicionalistas 92grandes tradicóes 161pequenas tradicóes 118
Tükúnacultura tükúna 97
parentesco tükúna 97interpreracáo dos Tükúna 97
uuniversalidade 37, 38, 39, 45, 49, 51, 136universidade
cornunidade universitaria 58tradjcáo universitaria 55
vvalor 32, 98, 99, 170, 182, 185
valor agregado 42valor legal 179
valores particularisras e universalistas 185valores párrios 146
valor prejudicial 84idéia-valor 32, 33, 34sistemas de valor 172valorativo 110
veracidade 32, 71, 90, 176, 179, 193, 194verdade 66, 71, 81, 82, 83, 90, 92, 176,
179,193, 194Yerstandnis 81Yerstehen 24, 34, 68, 81, 83, 96, 159Volkerkunde 40
Volkerpsychologie 145, 150Volkgeist 142, 143, 154Volkskunde 40
wWeltanschauung 40
220
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