cardoso de oliveira roberto_el trabajo del antropologo

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o Paralelo 15 edlcóo tJNEsp o trabalho do antropólogo ROBERTO CARDOSO DE OLIVEI MI D o trabalho do antropólogo é o exercício da interacáo das partes e do todo de um conjunto de ensaios que se articulam para estabelecer um livro formado de dez capítulos distribuidos em tres partes. Na pnrneira, "O conhecimento antropológico", revela-se uma temática que acompanha o autor desde o inicio de suas preocupacóes intelectuais, como estudante de filosofía: da formacáo do conhecimento em geral, gnosiológico, até a epistemologia da antropologia. A segunda parte, "Tradicóes Intelectuais", está voltada para a identiñcacáo das raízes das antropologias. notadamente as denominadas "periféricas", comparando-as com as "centrais" ou metropolitanas. Com a terceira parte, "Eticidade e Moralidade". o autor volta-se para o "discurso prático", quando o trabalho do antropólogo procura circunscrever-se as quest6es de eticidade e de moralidade, vistas como espacos sócio-culturais do "dever"e do "bern-viver". É uma obra em que Roberto Cardosode Oliveira revela a potencialidade da reflexáo elucidativa aliada ao domínio da pesquisa antropológica com vistas a construcáo da teoria social. ••• p ..

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o Paralelo 15

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o trabalho doantropólogo

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Page 3: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

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Direitos exclusivos para esta edicáo:Paralelo 15 Editores

Copyright © 1998 by Roberto Cardoso de Oliveira

Edilrao:oParalelo 15

ses Q. 06 - Bloco A- Edificio Presidente, sala30570300 500Brasilia DFFax: (61) 2235702 - Fone: (61) 321 3363 - e-maíl: [email protected]

Codilrao e dístríbuícáo: lJftESPPraca da Sé, 108- 01001 900 Sao Paulo SPFax: (JI) 2327172-Fone: (JI) 2327171

PRESIDENTE DO CONSEUlO CURADOR: Antonio Manoel dos Santos Silva; DIRETOR­PRESIDENTE: José Castilho Marques Neto; AsSESSOR-EDITORIAL: jézío Hernani BomfimGutierre; CONSEUlO EDITORIAL AcAotMICO: Antonio CeIso Wagner Zanin, Antoniode Pádua Pithon Cyrino, Benedito Antunes, Carlos Erivany Fantínatí, IsabelMaria F. R. Loureiro, Lígia M. Vettorato Trevisan, Maria Sueli Parreira deArruda,Raul Borges Guirnaráes, Roberto Kraenkel, Rosa Maria Feiteiro Cavalari; EDITORA­EXECUTlVA: Christine Róhríg; EDITORA-AssISTENTE: Maria Dolores Prades.

PROJETO EDITORIAL: Franck Soudant; PREPARAcAO DOS ÜRIGINAlS: Paralelo 15; REVISAOFINAL: Unesp; CAPA: Marilda Barbieri, sobre ilustracóes dejesus Caetano Fanário(capa) e Anízio Guedes Pereira (contra-capa), artistas Tükúna.

ISBN85-86315-15-X

Ficha catalográfica

Cardoso de Oliveira, RobertoOtrabalho do antropólogo. 2. ed. I Roberto Cardoso de

Oliveira. Brasilia: Paralelo 15; Sao Paulo Editora UNES?, 2000.220p.Inclui bibliografia eÍndice analítico.

1. Antropología, 2. Teoria social. 3. Epistemologia. I. Cardosode Oliveira, Roberto. Il. Título.

CDU 070.17070.44001.5

SUMARIO

Nota de agradecimento

Prólogo

Primeira Parte: O conbecimento antropológico

Capítulo 1

O trabalbo do antropólogo: olbar, outnr, escrever

Capítulo 2

O movimento dos conceitos naantropologia

Capítulo 3

A antropologia ea "crise" dos modelos explicativos

Capítulo 4

O lugar- eem lugar- do método

Capítulo 5

A dupla interpretarao naantropologia

Segunda Parte: Tradiciies intelectuais

Capítulo 6

Antropologiasperiféricas versus antropologias centrais

Capítulo 7

A etnicidade comoJatorde estilo

5

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11

17

37

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®

107

135

Page 4: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o traba/óodo al1tropó/ogo

Capítulo 8

Relativismo culturalejiloso/iasperiféricas

Terceira Parte: Etiddade emoralidade

Capítulo 9

Etniczdade, eticidade eglobalizap20

Capítulo 10

Sobre odiálogo intolerante

Bibliogrqfta citada

Índice analítico

6

157

169

189

199

209

Para o amigo e colega

Luiz de Castro Paria

Page 5: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

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NOTA DE AGRADECIMENTO

Os ensaios gue constituem o volume foram escritos entre os anos 1992e 1997, período em gue estive vinculado ao CNPg na condicáo de Pesqui­sador Bolsista l/A (processo 30406/88-8), desde minha aposentadoria naUnicamp. Continuei na mesma universidade na funcáo honorífica de Pro­fessor TitularConvidado durante todo o período em gue redigi os ensaios. Apartir de agosto de 1995, ainda gue mantendo os mesmos elos acadérni­

cos e afetivos com meus colegas do Departamento de Antropologia daUnicamp, integrei-me no corpo docente da Universidade de Brasília, pre­cisamente no seu Centro de Pesguisa e Pós-Graduacáo sobre a AméricaLatina e o Caribe - CEPPAC, na condicáo de Professor Titular Visitante,onde permane<;o até o presente. A todas essas instituicóes sou profunda­mente grato por me haverem assegurado condicóes de trabalho excepci­onais, sem as guais nao teria sido possível redigir os aludidos ensaios. Énecessário ainda esclarecer gue muitos deles foram originalmente confe­rencias ministradas em eventos realizados fora da Unicamp e da UnBgue, por sua vez, nao opuseram gualguer dificuldade para minha partici­pacáo nos mesmos, o gue me deixa em débito para com ambas institui­cóes - nao me cabendo; 'nesta oportunidade, outra atitude senáo a deexpressar meus agradecimentos.

Para nao elaborar urna relácáo demasiadamente extensa, nao mencio­narei nomes, limitando-me a registrar minha profunda gratidáo aos cole­gas do Departamento de Antropologia/Unicamp e do CEPPAC/UnB,bem como aos seus funcionários, pelo apoio gue me dispensaram, sern-

~

pre com simpatia e calor humano. Finalmente devo agradecer aParalelo15, na pessoa do editor Franck Soudant, a eficiencia e a rapidez com gueassumiu a publicacáo do presente volume, bem como a Editora Unespgue se associou ao empreendimento.

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Page 6: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

PRÓLOGO

A idéia de reunir este conjunto de ensaios ocorreu quando verifiqueique, de maneira bastante espontánea, refletiam as tres dimensóes de meutrabalho atual e que, por sua vez, articulavam-se entre si, revelando umnúcleo de interesses desdobrado em dez resultados parciais. Foi como verem meu próprio trabalho a efetivacáo do famoso círculo hermenéutico,

da interacáo dialética entre as partes e o todo: os ensaios, as totalidadesparciais em que se encaixam para, finalmente, aglutinarem-se no livro que,por razáo óbvia, intitulei O trabalbo do antropólogo, inspirado no título doprirneiro ensaio.

Foi assim que surgiram as tres partes que sustentam a arquitetura dovolume: a primeira, "O conhecimento antropológico"; a segunda, "Tradi­cóes intelectuais"; e, a terceira, "Eticidade e rnoralidade",

Na primeira, revela-se uma temática que me acompanha desde o iníciode minhas preocupacóes intelectuais, melhor diria, desde o tempo de estu­dante de filosafia: a constituicáo do conhecimento, ou melhor, do conhe­

cimento em geral, gnosiológico; posteriormente, já me enderecando paraas ciencias humanas, o conhecimento científico, especificamente a episte­mologia das ciencias sociais e, de um modo todo particular - desde queme reconheco como antropólogo -, o conhecimento produzido peloexercício da antropologia social e cultural. Os cinco capítulos em que sedecomp6e a primeira parte sao testemunhos eloqüentes desse interessesobre a epistemología de minha disciplina. Porém, uma epistemologia in­timamente enraizada na prática da antropologia e em uma tentativa

tde

passar uma experiencia de pesquisa e de reflexáo para os mais jovens,

especialmente para o estudante nao só de antropología, mas também deciencias sociais. Nesse sentido, sempre tive por meta rnovirnentar-me - e,

comigo, meus alunos - nos intersticios que separam as disciplinas sociais.Esse pensamento de fronteira interdisciplinar sempre pareceu-me de grandefecundidade, no sentido de abrir o espirito para horizontes mais amplos.E nessa preccupacáo de comunicar-me com o alunado, encontrei estimu­lo para reproduzir - as vezes reiterando, com certo exagero, minhas idéiase meus argumentos - aquilo que eu chamaria, na falta de melhor termo,o summus do que considero ser o mais significativo de rninha própria expe­riencia. Um grande esforco de espremer e de comprimir - literalmente

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Page 7: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o trabalho do antropólogo

falando -, mais de acordo com o segundo sentido do verbete "sumo",do Diaonário Caidas Allfefe, do que com o primeiro, em que o termo signi­fica "ápice" ou "excelencia" - como 9 radical latino sugere. Vejo, assim,como conteúdo dos ensaios, o resultado de um desempenho profissionalfundado na busca de transferir ao estudante a experiencia de um pensa­mento disciplinado pela academia; tare fa que considero ser o principaltrabalho de um professor. Nesse sentido, só tenho a reconhecer - e aagradecer - aos meus alunos de pós-graduacáo da Unicamp, durante os

anos em que lá ensinei e onde tive a honra de receber o título de ProfessorEmérito, como também aos da USP, da UFRJ-Museu Nacional e da UnB­CEPPAC, instituicóes com as quais estive ligado ultimamente na condicáo

de professor visitante, nelas lecionando em diferentes ocasióes,

É assim que no Capítulo 1 - "O trabalho do antropólogo: Olhar.Ouvir. Escrever" - procurei passar ao leitor urna reflexáo sobre o queme pareceu constituir-se nas etapas mais estratégicas da producáo do co­

nhecimento antropológico. É quando procuro mostrar que a funcáo deescrever o texto é mais do que urna tentativa de exposicáo de um saber:étambém e, sobretudo, urna forma de pensar, portanto, de produzir co­nhecimento. Eu diria que as tres etapas indicadas no subtítulo "Olhar. Ouvir.Escrever." - como atos cognitivos que sao -, além de trazerem em siresponsabilidades intelectuais específicas, formam, pela dinámica de suainteracáo, urna unidade irredutível. Atualizar essa unidade no exercíciomesmo da construcáo do conhecimento parece-me a tarefa mais obstina­da do métier do antropólogo; e, reitero, repassá-la ao aluno, o trabalhomais responsável do professor de antropologia.

O Capítulo 2 - "O movimento dos conceitos na antropologia"-,pareceu-me constituir urna boa oportunidade de mostrar como conceitosgerados em outras latitudes, sobretudo em centros metropolitanos, aportarnna América Latina e, nela, sao remodelados de conformidade com nossasespecificidades, sendo portanto recontextualizados; e nesse processo derecontexrualizacáo deixa sua marca criativa o antropólogo latino-america-'no, quando imprime urna nao desprezível originalidade nessa reapropriacáo

conceitual.Já no Capítulo 3 - "A antropología e a 'crise' dos modelos explicativos"

-, procurei oferecer urna resposta a urna questáo renitente nos corredo­res das universidades, como se fosse algo bastante óbvio para merecer

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Prólogo

qualquer contestacáo ou, ao menos, urna interrogacáo: a idéia de que asciencias sociais - e com elas a antropologia - estavam em crise. Procu­rei, em primeiro lugar, discutir o conceito de "crise" para, em seguida,argumentar que, se crise havia, nao era de caráter epistémico, mas apenas

ligada ao exercício da antropologia em tal ou qual país ou comunidadesde profissionais, onde a prática da disciplina encontrava obstáculos institu­cionais. No bojo desse capítulo, várias questóes sao colocadas, especial­mente as que dizem respeito aconstrucáo do conhecimento e aos para­digmas que a sustentam.

Relativamente ao Capítulo 4 - "O lugar Ce emlugar) do método" ­, a empresa foi diferente, mas absolutamente nao dissociada da anterior,urna vez que dei continuidade areflexáo sobre a articulacáo entre explica­cáo e compreensáo, como co-tensinus de um mesrno empreendimentocognitivo.

No Capítulo 5 - ''A dupla interpretacáo na antropologia" -, ao darcontinuidade areflexáo do capítulo anterior, cuidei em tornar mais clarosmeus argumentos sobre a relacáo dialética entre interpretacáo compreen­siva e interpretacáo explicativa, apoiado, naturalmente, nas idéias seminaisde Karl-Otto Apel e Paul Ricoeur, entre outros autores.

A Segunda Parte, "Tradicóes Intelectuais", está voltada para a identifi­

cacao das raízes das antropologias, notadamente as denominadas "perifé­ricas", comparando-as com as "centrais" ou metropolitanas, no intuito deelucidá-las reciprocamente - tal como entendo o papel da comparacáo,

É um trabalho de epistemologia histórica, como assim o definiu um cole­ga da U nicamp, filósofo do CLE e rtferee do meu manuscrito que seriapublicado com o título "Razáo e afetividade: O pensamento de L. Léry­Bruhl".' A epistemologia histórica que realizei com Mauss? e com Rivers'

segue a mesma orientacáo, Já presentemente, depois do Seminário sobre"Estilos de Antropologia", que organizei na Unicamp em 1990 e publica-

Campinas: Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciéncia/Cl.Ey Unicamp,1991.

2 R. Cardoso de Oliveira, MareelMaJlSS, Sao Paulo, Ática, 1979.

3 R. Cardoso de Oliveira, A antropologia deRivers, Campinas, Editora da Unicamp, 1991.

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Page 8: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o trabalbo do antropólogo

do posteriormente com o mesmo título," meus interesses concentraram­se nas antropologias periféricas, mais do que nas metropolitanas, como as"escolas" francesa, británica e norte-americana. Sao, portanto, as tradicóes

intelectuais que vérn se formando nas regi6es do planeta para onde aque­las antropologias "centrais" foram transplantadas e que, hoje, constituemo principal foco de minhas preocupacóes de caráter epistemológico e

histórico.Assim, o Capítulo 6 - ''Antropologias periféricas versus antropologias

centrais" - é bem um trabalho escrito sob aquele escopo. Com ele, oleitor verá, procurei relativizar o sentido do termo versus, tal como fiz noCapítulo 3 com o termo crise, pondo em discussáo a aplicabilidade decada um no terreno em que pisava, portanto em contextos em que essestermos mudavam de sentido em decorréncia de minha interpreracáo so­bre as situacóes que eles pretendiam classificar. Se o sentido de crise ­epistémica - tinha urna significacáo positiva, como procurei mostrar,versus igualmente tinha a mesma significac;:ao positiva: nesse caso, o de apontarpara urna tensáo entre antropologías periféricas e centrais, bastante bemabsorvida pela matriz disciplinar da antropologia - urna expressáo, aliás,

que comparece na maioria dos capítulos do presente volume e que foiexplorada amplamente no meu livro Sobre opensamento antropológico.5

E se meu interesse se circunscrevia mais nas antropologías que vicejamna América Latina, nela nao se esgota, como mostra o Capítulo 7, ''Aetnicidade como fator de estilo", no qual procuro investigar as condicóeshistóricas de emergencia da antropologia gue se faz na Espanha, especifi­camente na Catalunha, identificando o processo de etnizacáo da disciplina,marcada pela ideologia da catalanidade. Claro que o interesse em ampliar oprisma da cornparacáo elucidativa nao se restringe ao meu próprio traba­lho, mas se desdobra em pesquisas de colegas e de estudantes, como o deGuilhermo R. Ruben, no estudo da antropologia canadense de expressáo

francesa quebequense; nos dos ex-alunos, hoje doutores, Celso Azzan Jr.,

Prólogo

também no Quebec; de Marta Topel, em Jerusalém; de Leonardo Figoli,na Argentina; ou de Stephen Baines, na Austrália - todos conduzidos pordiferentes preocupacóes teóricas, porém igualmente atentos aguestao es­tilística como via de acesso as antropologias periféricas.

Já o Capítulo 8 - "Relativismo cultural e filosofias periféricas" - éurna incursao em urna área que só me permiti penetrar por verificar que otema sobre o qual a coletánea organizada por um colega, Marcelo Dascal,"singrava águas vizinhas as que eu estava habituado a navegar! Entendi,assim, que comentá-Io seria estar colocando também em perspectiva otrabalho de duas disciplinas: a filosofia e a antropologia. O encontro dasdisciplinas em urna área de fronteira - como sói ser o estudo de herancasperiféricas de tradicóes intelectuais eurocéntricas - só poderia ser benéfi­co a ambas. É quando a via estilística de investigacáo talvez possa se mos­trar igualmente fecunda.

Com a Terceira Parte, "Eticidade e Moralidade", encerra-se o volume,pass ando para urna linguagem que, sem deixar de ser académica, volta-separa o que se poderia chamar de "discurso prático", quando o trabalhodo antropólogo procura circunscrever-se as quest6es de eticidade e demoralidade, vistas como espac;:os sócio-culturais do "dever" e do "bern­viver"; de obediencia a normas instituídas por consensos, historicamenteaferíveis, e de comprometimento com a elevacáo da gualidade de vida doOutro - sujeito-objeto por excelencia da investigacáo antropológica. Essediscurso prático é exercitado precisamente no exame das possibilidadesda "ética discursiva", apeliana-habermasiana na forrnulacáo de idéias quevenham a contribuir na elucidacáo da natureza do diálogo interétnico, apon­tando para suas distorcóes - a cornunicacáo distorcida - e para a sd­

posta, e portanto equivocada, crenca na incomensurabilidade das culturas,ou seja, de campos semánticos diferentes e absolutamente impenetráveis.Este é o tema central do Capítulo 9 - "Etnicidade, eticidade e globaliza­cáo".

O Capítulo 10 - "Sobre o diálogo intolerante" - é, a rigor, urnacontinuacáo do anterior, já agora centrado na distincáo entre a tolerancia,

4

5

R. Cardoso de Oliveira e Guilhermo Raul Ruben, Estilos de antropologia, Campinas,Editora da Unicamp, 1995.

R. Cardoso de Oliveira, Sobreopensamento antropológico, Rio de ]aneiro, Tempo Brasilei­ro, 1988; 2" ed., 1997.

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6 Marcelo Dascal, Cultllralrelatiuun: andpbilosopl¿y: Nortb and utin .Amenca»perspectives,Leiden, E.J. Brill, 1991.

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Page 9: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Brasilia, 4 de janeiro de 1988.

o trabalho do antropólogo

tomada como rnanifestacáo de caridade, e a tolerancia entendida comoato de justica. Esse segundo sentido é o que deveria preponderar na orien­tacáo do diálogo interétnico, particularmente quando exercitado pelo pólodominante da relacáo interétnica. A temática dessa última parte do volume_ nao passo deixar de informar ao leitor especialmente interessado ­

tern sua fonte maior em um livro que recentemente veio a lume,' no qual,em tres dos ensaios, exploro a teoria da ética do discurso em conexao

com a antropologia.Nao poderia concluir este Prólogo sem pedir ao leitor urna certa tole­

rancia - e aqui em seu sentido de caridade - as repeticóes de idéias e deargumentos que proliferarn nos ensaios, urna vez que escritos autonoma­mente, nao estavarn previstos para serem editados como capítulos de umlivro. Como sempre, alterar os ensaios para escoimá-Ios de repeticóes,pareceu-me retirar dos textos seus respectivos contextos, procedimentoque lhes tiraria igualmente o significado do lugar e do momento de suaproducáo. Claro que procurei retirar tuda aquilo que considerei excessivo_ na forma e no conteúdo - desde que nao resultasse em urna des ca­

racrerizacáo do texto original.

A primeira versáo deste texto foi para uma "Aula Inaugural", do ano académico de1994, relativa aos cursos do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universida­de Estadual de Campinas - Unicamp. A presente versáo, que agora se publica, devi­damente revista e ampliada, foi elaborada para uma conferencia na Fundacño JoaquimNabuco, em Recife, em 24 de maio do mesmo ano, em seu Instituto de Tropicologia.Essa versáo foi publicada pela Revista deAntropologia, vol. 39, n~ 1, 1996, pp. 13-37.

C1aude Lévi-Strauss, Regarder, Ecouter; Lire.2

o TRABALHO DO ANTROPÓLOGO:OLHAR, OUVIR, ESCREVER

Capítulo 1

Parecen-me que abordar um terna freqüentemente visitado e revisitadopor membros de nossa comunidade profissional nao seria de todo im­pertinente, posta que sempre valerá pelo menos como urna espécie dedepoimento de alguém que, há várias décadas, vem com ele se preocu­

pando como parte de seu métierde docente e de pesquisador; e, como tal,embora dirija-me especialmente aos rneus pares, gostaria de alcancar tam­bém o estudante ou o estudioso interessado genericamente em ciencias

sociais, urna vez que a especificidade do trabalho antropológico - pelomenos como o vejo e como procurarei mostrar - em nada é incompatívelcom o trabalho conduzido por colegas de outras disciplinas sociais, particu­larmente quando, no exercício de sua atividade, articulam a pesquisa empí­rica com a interpretacáo de seus resultados,' Nesse sentido, o subtítulo"escolhido - é necessário esclarecer - nada tem a ver com o recente livro deClaude Lévi-Strauss,? ainda que, nesse título, eu possa ter me inspirado, aosubstituir apenas o jire pelo écrire, o "ler" pelo "escrever". Porém, aqui, aocontrário dos ensaios de antropologia estética de Lévi-Strauss, trato de ques­tionar algumas daquelas que se poderiam chamar as principais "faculda­des do entendirnento" sócio-cultural que, acredito, sejam inerentes ao modode conhecer das ciencias sociais, Naturalmente, é preciso dizer que ~falar, nesse contexto, de faculdades do entendimento - nao estou mais

INTRODu<;:ÁO

IRCO

R. Cardoso de Oliveira, Ensaios antropológicos sobre morale ética, Rio de [aneiro, TempoBrasileiro, 1996.

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16 17

Page 10: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

RobertoCarnoso de Oliveira

do que parafraseando, e com muita liberdade, o significado filosófico daexpressáo "faculdades da alma", como Leibniz assim entendia a percep­cáo e o pensamento. Pois sem percepcáo e pensamento, como enráo po­demos conhecer? De meu lado, ou do ponto de vista de minha disciplina_ a antropologia -, quero apenas enfatizar o caráter constitutivo doolhar, do ouvir e do escrever, na elaboracáo do conhecimento própriodas disciplinas sociais, isto é, daquelas que convergem para a elaboracáodo que Giddens, muito apropriadamente, chama "teoria social", parasintetizar, com a associacáo desses dois termos, o amplo espectro cogni­tivo que envolve as disciplinas que denominamos ciencias sociais.' Ressal­tar rapidamente, porquanto nao pretendo mais do que aflorar alguns pro­blemas que comumente passam despercebidos, nao apenas para o jovempesquisador, mas, muitas vezes, para o profissional maduro, quando naose debruca para as questóes epistemológicas que condicionam a investiga­c;:ao empírica tanto quanto a construcáo do texto, resultante da pesqttisa.Desejo, assim, chamar a atencáo para tres maneiras - melhor diria, tresetapas - de apreensáo dos fenómenos sociais, tematizando-as - o que

significa dizer: questionando-as - como algo merecedor de nossa refle­xáo no exercício da pesquisa e da producáo de conhecimento. Tentareimostrar como o albar, o ouvire o escreuer podem ser questionados em simesmos, embora, em um primeiro momento, possam nos parecer taofamiliares e, por isso, tao triviais, a ponto de sentirme-nos dispensados deproblematizá-Ios; todavia, em um segundo momento - marcado pornossa insercáo nas ciencias sociais -, essas "faculdades" ou, melhor di­

zendo, esses atos cognitivos delas decorrentes assumem um sentido todoparticular, de natureza epistérnica, urna vez que é com tais atos que logra­mos construir nosso saber. Assim, procurarei indicar que enquanto noolhar e no ouvir "disciplinados" - a saber, disciplinados pela disciplina- realiza-se nossa percepfao, será no escrever que o nosso pensamento exer­citar-se-á da forma mais cabal, como produtor de um discurso que sejatao criativo como próprio das ciencias voltadas a construcáo da teoriasocial.

3 CE. Anthony Giddens, "Hermeneutics and social theory", in Gary Schapiro e AlanSica (orgs.), Hermenentics: Questions amiprospects.

18

o trabalbodo antropo/ógo: o/har, omnr, escreuer

o üLHAR

Talvez a primeira experiencia do pesquisador de campo - ou IZO cam­po - esteja na dornesticacáo teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do

momento em que nos sentimos preparados para a investigacáo empírica,o objeto, sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado·pelo próprio modo de visualizá-Io. Seja qual for esse objeto, ele nao esca­

pa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora denossa maneira de ver a realidade. Esse esquema conceitual- disciplinada­mente apreendido durante o nosso itinerário académico, daí o termo dis­ciplina para as matérias que estudamos -, funciona como urna espécie deprisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo derefracáo - se me é permitida a imagem. É certo que isso nao é exclusivodo olhar, urna vez que está presente em todo processo de conhecimento,envolvendo, portante, todos os atos cognitivos, que mencionei, em seuconjunto. Contudo, é certamente no olhar que essa refracáo pode ser me­

lhor compreendida. A própria imagem ótica - refracáo - chama a aten­cáo para isso.

Imaginemos um antropólogo no início de urna pesquisa junto a umdeterminado grupo indígen.a e entrando em urna maloca, urna moradiade urna ou mais dezenas de indivíduos, sem ainda conhecer urna palavrado idioma nativo. Essa moradia de tao amplas proporcóes e de estilo taopeculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigosTükúna, do alto rio Solimóes, no Amazonas, teriam o seu interior imedi­

atamente vasculhado pelo "olhar etnográfico", por meio do qual toda ateoria que a disciplina dispóe relativamente as residencias indígenas passarit a

ser ínstrumentalizada pelo pesquisador, isro é, por ele referida. Nesse sentido,o interior da maloca nao seria visto com ingenuidade, como urna mera

curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibi­lizado pela teoria disponível. Ao basear-se nessa teoria, o observador bempreparado, como etnólogo, iria olhá-Ia como objeto de investigacáo pre-

-c viamente construído por ele, pelo menos em urna primeira prefiguracáo:

passará, entáo, a contar os fogos - pequenas cozinhas primitivas -, cujosresíduos de cinza e carváo iráo indicar que, em torno de cada um, estiveramreunidos nao apenas indivíduos, porém pessoas, portanto seres sociais, mem­bros de um único "grupo doméstico"; o que Ihe dará a inforrnacáo sub-

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Page 11: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

RobertoCardoso de O/itJeira

sidiária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o númerode fogos, estaría abrigada urna certa porcáo de grupos domésticos, for­

mados por urna ou mais famílias elementares e, eventualmente, de indiví­duos "agregados" - originários de outro grupo tribal. Conhecerá, igual­mente, o número total de moradores _ ou quase - contando as redes

dependuradas nos mouroes da maloca dos membros de cada grupo do­méstico. Observará, também, as características arquitetónicas da maloca,classificando-a segundo urna tipologia de alcance planetário sobre estilosde residencias, ensinada pela literatura etnológica existente.

Ao se tomar, ainda, os mesrnos Tükúna, mas em sua feicáo moderna,o etnólogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas dife­renciavam-se radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes

que, no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados. Verificariaque as amplas malocas, entao dotadas de uma cobertura em forma desemi-arco descendo suas laterais até ao solo e fechando a casa a toda equalquer entrada de ar - e do olhar externo _, salvo por portas remo­víveis, acham-se agora totalmente remodeladas. A maloca já se apresentaarnplamente aberra, constituída por uma cobertura de duas águas, sem

paredes - ou com paredes precárias _, e, internamente, impendo-se aoolhar externo, véern-se redes penduradas nos rnouróes, com seus respec­tivos mosquiteiros - um elemento da cultura material indígena desconhe­cido antes do contato interétnico e desnecessário para as casas antigas,

uma vez que seu fecramento impedia a entrada de qualquer tipo de inseto.Nesse sentido,- para esse etnólogo moderno, já tendo ao seu alcance umadocurnentacáo histórica, a primeira coriclusáo será sobre a existencia de

uma mudanc;:a cultural de tal monta que, se, de um lado, facilitou a cons­trucáo das casas indígenas, uma vez que a antiga residencia exigia um gran­de dispendio de trabalho, dada sua complexidade arquitetónica, por ou­tro, afetou as relac;:oes de trabalho, por nao ser mais necessária a mobiliza­c;:ao de todo o di para a edificac;:ao da maloca, ao mesmo tempo em quetornava o grupo residencial mais vulneráve1 aos insetos, posto que os rnos­quiteiros somente poderiam ser úteis nas redes, ficando a familia a rnercédesses insetos durante todo odia. Observava-se, assirn, literalmente, o queo saudoso Herberr Baldus chamava de uma espécie de "natureza marta"da aculruracáo, Como torná-la viva, seriáo pela penerracño na natureza dasrelac;:6es sociais?

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o traba/ho doantropológo: otbar; onuir, escreier

Retomemos nos so exemplo para vermos que para dar-se conta danatureza das relacóes sociais mantidas entre as pessoas da unidade residen­cial - e delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas deuma mesma aldeia ou "grupo local" -, o olhar por si só nao seria sufi­ciente. Como alcanc;:ar, apenas pelo olhar, o significado dessas relacóes

sociais sem conhecerrnos a nomenclatura do parentesco, por meio da qualpoderemos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes dassociedades ágrafas e sem o qual nao nos será possível prosseguir em nossacaminhada? O domínio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna­se, entáo, indispensável. Para"_se chegar, entretanto, aestrutura dessas rela­cóes sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de outro recur­so de obrencáo dos dados. Vamos nos deter um pouco no ouvir.

o OUVIR

Creio necessário mencionar que o exemplo indígena - tomado comoilustracáo do olhar etnográfico - nao pode ser considerado incapaz degerar analogias com outras situacóes de pesquisa, com outros objetos con­cretos de investigacáo. O sociólogo ou o politólogo, por certo, terá exem­plos tanto ou mais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria social pré­estrutura o nosso olhar e'sofistica a nossa capacidade de observacáo, Jul­guei, entretanto, que exemplos bem simples sao geralmente os mais inteli­gíveis, e como a antropologia é minha disciplina, continuarei a valer-me deseus ensinamentos e de minha própria experiencia, na esperanc;:a de pro­porcionar uma boa nocáo dessas etapas aparentemente corriqueiras dainvestigacáo científica. Portanto, se o olhar possui uma significacáo especí­

fica para um cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade.Evidentemente tanto o ouvir como o olhar nao podem ser tomados

como faculdades totalmente independentes no exercício da investigacáo,

Ambas complernentam-se e servem para o pesquisador como duas mu­letas - que nao nos percamos com essa metáfora tao negativa - que lhepermitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimen­too A metáfora, propositalmente utilizada, permite lembrar que a cami­nhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpetode conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participa das mesmasprecondic;:6es desse último, na medida em que está preparado para elimi­nar todos os ruídos que lhe parec;:am insignificantes, isto é, que nao fac;:am

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Page 12: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cerdoso de O/¡"eiro

nenhum sentido no corplls teórico de sua disciplina ou para o paradigmano interior do qual o pesquisador foi treinado. Nao quero discutir aqui aquestáo dos paradigmas; pude fazé-lo em meu livro Sobre o pensamentoantropológico e nao penso ser indispensável aborda-la aqui. Bastaria enten­dermos que as disciplinas e seus paradigmas sao condicionantes tanto de

nosso olhar como de nosso ouvir.

Imaginemos urna entrevista por meio da qual o pesquisador pode obterinforrnacóes nao alcancáveis pela estrita observacáo, Sabemos que autores

como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observacáo de rituais

para estudarrnos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compre­ender urna religiáo, devemos primeiro concentrar atencáo mais nos ritos

que nas crencas"." O que significa dizer que a religiáo podía ser mais rigoro­samente observável na conduta ritual por ser essa "o elemento mais estável eduradouro", se a compararmos com as crencas, Porém, isso nao quer dizer

que mesmo essa conduta, sem as idéias que a sustentam, jamais poderia serinteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do olhar e doouvir - suas músicas e seus cantos -, faltava-lhe a plena cornpreensáo

de seu sentido para o povo que o realizava e sua significafao para o antropó­logo que o observava em toda sua exterioridade," Por isso, a obtencáo de

explicacóes fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigadapermitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de "modelo nati­vo", rnatéria-prima para o entendimento antropológico. Tais explicacóes

nativas só poderiam ser obtidas por meio da entrevista, portanto, de umouvir todo especial. Contudo, para isso, há de se saber ouvir.

Se, aparentemente, a entrevista tende a ser encarada como .algo semmaiores dificuldades, salvo, naturalmente, a limiracáo lingüística - isto é,

o fraco domínio do idioma nativo pelo etnólogo -, ela torna-se muito

mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade está na di-

4 Cf. Radcliffe-Brown, "Religiáo e sociedade", in Estreno» e¡unroo no sociedade primitii«;p.194.

o trabo/ha do ontropo/~f!,o: olbar; omvr, e..tcreuer

ferenca entre "idiomas culturais", a saber, entre o mundo do pesquisadore o do nativo, esse mundo estranho no qual desejamos penetrar. De resto,há de se entender o nosso mundo, o do pesquisador, como sendo Oci­dental, constituído minimamente pela sobreposicáo de duas subculturas: a

brasileira, pelo menos no caso da maioria do público leitor; e a antropoló­

gica, no caso particular daqueles que foram treinados para se tornarernprofissionais da disciplina. E é o confronto entre esses dois mundos queconstituí o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, em um con­

texto essencialmente problemático que tern lugar o nosso ouvir. Comopoderemos, entáo, questionar as possibilidades da entrevista nessas condi­cóes tao delicadas?

Penso que esse questionamento corneca com a pergunta sobre qual anatureza da relacáo entre entrevistador e entrevistado. Sabemos que háuma longa e arraigada tradicáo, na literatura etnológica, sobre a relacáo

"pesquisador/informante". Se tomarmos a clássica obra de Malinowskicomo referencia, vemos como essa rradicáo se consolida e, praticamente,trivializa-se na realizacáo da entrevista. No ato de ouvir o "informante", o

etnólogo exerce um poderextraordinário sobre o mesmo, ainda que pre­tenda posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pre­tende o objetivismo mais radical. Esse poder, subjacente as relacóes hu­

manas - que autores como Foucault jamais se cansaram de denunciar -,já na relacáo pesquisador/informante desempenhará urna funcáo profun­

damente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas feitas em buscade respostas pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz - comou sem autoritarismo -, criam um campo ilusório de interacáo, A rigor,nao há verdadeira interacáo entre nativo e pesquisador, porquanto na Üti­lizacáo daquele como informante, o etnólogo nao cria condicóes de efeti­

vo diálogo. A relacáo nao é dialógica. Ao passo que transformando esseinformante em "interlocutor", urna nova modalidade de relacionamento

pode - e deve - ter lugar,"

5 Aqui Faco urna distincáo entre "sentido" e "significacáo", O primeiro termo consa­gra-se ao horizonte semántico do "nativo" - como no exemplo de que estou mevalendo -, enquanto o segundo termo serve para designar o horizonte do antropólo­go - que é constituido por sua disciplina. Essa distincáo apóia-se em E. D. HirschJr.- Vo/id¡ry in Interpretation , apédice 1 - que, por sua vez, apóia-se na lógica fregeana.

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6 Esse é um tema que tenho explorado seguidamente em diferentes publicacóes. Indi­caria especialmente a conferencia, intitulada "A antropologia e a 'crise' dos modelosexplicativos", reproduzida neste volume como seu capitulo 3.

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G trabalbo doantropo/~~o: olbar, ouuir, escreier

o ESCREVER

Se o olhar e o ouvir podem ser considerados como os atos cognitivosmais preliminares no trabalho de campo - atividade que os antropólo­gos designam pela expressáo inglesa fie/dwork -, é, seguramente, no atode escrever, portanto na configuracáo final do produto desse trabalho,que a questáodo conhécimentbtorna-se tanto ou mais crítica. Um i~teres­

sante livro de Clifford Geertz - Trabalbos e indas: oantropólogo como autor­oferece importantes pistas para o desenvolvimento desse terna." Geertzparte da idéia de separar e, naturalmente, avaliar duas etapas bem distintasna investigacáo empírica: a primeira, que procura qualificar como a doantropólogo "estando lá" - being there -, isto é, vivendo a situacáo de

estar no campo; e a segunda, que seguiria aessa, corresponderia a expe­riencia de viver, melhor dizendo, trabalhar "estando aqui" - being bere -, asaber, bem instalado em seu gabinete urbano, gozando o convívio comseus colegas e usufruindo tudo o que as instituicóes universitárias e depesquisa podem oferecer. Nesses termos, o olhar e o ouvir seriam parteda primeira etapa, enquanto o escrever seria parte da segunda.

Devemos entender, assim, por escrever o ato exercitado por excelen­cia no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante,sobretudo quando o compararrnos com o que se escreve no campo, sejaao fazermos nosso diário, seja nas anotacóes que rabiscamos em nossas

cadernetas, E se tomarmos ainda Geertz por referencia, vemos que namaneira pela qual ele encaminha suas ref1ex6es, é o escrever "estando aqui",portanto fora da situacáo de campo, que cumpre sua mais alta funcáo

cognitiva. Por que? Devido ao fato de iniciarmos propriamente no ga~­

nete o processo de rextualizacáo dos fenómenos sócio-culturais observa­dos "estando lá". Já as condícóes de textualizacáo, isto é, de trazer os fatos

observados - vistos e ouvidos - para o plano do discurso, nao deixamde ser muito particulares e exercem, por sua vez, um papel definitivo tantono processo de cornunicacáo interpares - isto é, no seio da comunidade

profissional -, como no de conhecimento propriamente dito. Mesmo

o titulo da edicáo original é tV'orks and aves: Tbe antbropologis: as antbor. Há urna tradu­<;ao espanhola, publicada ern Barcelona.

7

Roberto Cardoso de Gliveira

Essa relacáo dialógica - cujas conseqüéncias epistemológicas, todavia,

nao cabem aqui desenvolver - guarda pelo menos uma grande superiori­dade sobre os procedimentos tradicionais de entrevista. Faz com que os ho-.,rizontes semánticos em confronto - o do pesquisador e o do nativo _1'

abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal confronto em umverdadeiro "encontro etnográfico". Cria um espac;:o semántico partilhado porambos interlocutores, grac;:as ao qual pode ocorrer aquela "fusáo de horizon­

tes" - como os hermeneutas chamariam esse espac;:o -, desde que o pes­quisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvi­do, encetando .formalmente um diálogo entre "iguais", sem receio de estar,assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu própriodiscurso. Mesmo porque, acreditar ser possível a neutralidade idealizada pelosdefensores da objetividade absoluta, é apenas viver em uma doce ilusáo, Aotrocare m idéias e inforrnacóes entre si, etnólogo e nativo, ambos igualmen-te guindados a interlocutores, abrem-se a um diálogo em tudo e por tudosuperior, metodologicamente falando, aantiga relacáo pesquisador/informante.o ouvir ganha em qualidade e altera uma relacáo, qual estrada de máo única;em uma outra de rnáo dupla, portanto, uma verdadeira interacáo,

Tal inreracáo na realizacáo de uma etnografia, envolve, em regra, aquilo .que os antropólogos chamam de "observacáo participante", o que signi­fica dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pelasociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitacáo senáo ótirna

pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de modo a naoimpedir a necessária interacáo. Mas essa observacáo participante nem sem­pre tem sido considerada como geradora de conhecimento efetivo, sen­do-lhe freqüentemente atribuída a funcáo de geradora de hipóteses, a seremtestadas por procedimentos nomológicos - esses sim, explicativos porexcelencia, capazes de assegurar um conhecimento proposicional e positi­vo da realidade estudada. No meu entender, há um certo equívoco nareducáo da observacáo participante e na ernpatia que ela gera a um meroprocesso de construcáo de hipóteses. Entendo que tal modalidade de ob- .servacáo realiza um inegável ato cognitivo, desde que a compreensáo ­Verstehen - que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chama­ria de "excedente de sentido", isto é as significac;:6es - por conseguinte,os dados - que escapam a quaisquer metodologias de pretensáonomológica. Voltarei ao tema da observacáo participante na coriclusáo.

:.1:

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Roberto Cerdoso de O/iveira

porque há urna relacáo dialética entre o comunicar e o conhecer, poisambos partilham de uma mesma condicáo: a que é dada pela linguagem.Embora a linguagem, como tema de reflexáo, seja importante em si mes­ma, nesse movimento que poderíamos chamar "guinada lingüística" ­ou /inguistics turn -, que perpassa atualmente tanto a filosofia como as

ciencia sociais, o aspecto que desejo tratar aqui, mesmo se muito sucinta­mente, é o da disciplina e de seu próprio idioma, por meio dos quais osque exercitam a antropologia - ou outra ciencia social - pensam e co­

municam-se. Alguém já escreveu que o homem nao pensa sozinho, em-:um monólogo solitário, mas o faz socialmente, no interior de uma "co­

munidade de cornunicacáo" e "de argumentacáo"." Ele está, portanto,

.contido no espa<;:o interno de um horizonte socialmente construído - ode sua própria sociedade e de sua comunidade profissional. Desculpan- f <-

do-me pela imprecisáo da analogia, diria que ele se pensa no interior deuma "representacáo coletiva": expressáo essa, afinal, bem familiar ao cien-

tista social e que, de certo modo, dá uma idéia aproximada daquilo queentendo por "idioma" de uma disciplina. Como podemos interpretar isso

em conexáo com os exemplos etnográficos?Diria inicialmente que a textualizacáo da cultura, ou de nossas observa­

cóes sobre ela, é um empreendimento bastante complexo. Exige o despo­

jo de alguns hábitos no escrever, válidos para diversos generos de escritamas que para a construcáo de um discurso disciplinado por aquilo que sepoderia chamar de "(meta)teoria social" nem sempre parecem adequa­dos. É, portanto, um discurso que se funda em uma atitude toda particularque poderíamos definir como antropológica OÚ sociológica. Para Geertz,por exemplo, poder-se-ia entender toda etnografia - ou sociografia, sepreferirem - nao apenas como tecnicamente difícil, uma vez que coloca­mos vidas alheias em "nossos" textos, mas, sobretudo, por esse trabalhoser "moral, política e epistemologicamente delicado"." Embora Geertznao desenvolva essa afirrnacáo, como seria de se desejar, sempre pode­mos fazé-lo a partir de um conjunto de questóes.

o irabalbo doantropológo: olbar; otlv;r, escrcuer

Penso, nesse sentido, na questáo da autonomia do autor/pesquisador noexercício de seu métier. Quais as implicacóes dessa autonomia na conversáodos dados observados - portanto, da vida tribal, para ficarmos comnossos exemplos - no discurso da disciplina? Temos de admitir que maisdo que uma traducáo da "cultura nativa" na "cultura antropológica" ­

isto é, no idioma de minha disciplina -, realizamos uma interpretacdo que,

por sua vez, está balizada pelas categorias ou pelos conceitos básicos cons­titutivos da disciplina. Porém, essa autonomia epistérnica nao está de modo

algum desvinculada dos dados - quer de sua aparencia externa, propici-,/ ada pelo olhar; quer de seus significados íntimos ou do "modelo nativo",- proporcionados pelo ouvir. Está fundada nesses dados, com relacáo aos

quais tem de prestar contas em algum momento do escrever. O que signi­fica dizer que há de se permitir sempre o controle dos dados pela comu­nidade de pares, isto é, pela cornunidadé profissional. Portanto, sistemaconceitual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já emuma primeira instancia, construídos pelo observador desde o momentode sua descricáo,'? guardam entre si uma relacáo dialética. Sao inter-in­

fluenciáveis. O momento do escrever, marcado por uma interpretacáo dee no gabinete, faz com que aqueles dados sofram uma nova "refracáo",uma vez que todo o processo de escrever, ou de inscreuer as observacóesno discurso da disciplina, está contaminado pelo contexto do being here ­a saber, pelas conversas de corredor ou de restaurante, pelos debates rea­lizados em congressos, pela atividade docente, pela pesquisa de bibliotecaou /ibrary fie/dwork, como, jocosamente, se costuma charná-la, entre muitasoutras atividades, enfim pelo ambiente académico,

Examinemos um pouco mais de perto esse processo de textualizacáo,tao diferente do trabalho de campo. No dizer de Geertz, seria perguntar oque acontece com a realidade observada no campo quando ela é embar­

cada para fora? - 'What happens to rea/ity Ivhen it is shipped abroad?" - Essapergunta tem sido constante na chamada "antropologia pos-moderna",

8

9

Cf. Karl-Otto Apel, "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendentalde las ciencias sociales", in La transformaeán de lafilosofia, tomo n.Clifford Geertz, Works and lives: The anthropologist as autbor; p. 130.

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1O Meyer Portes, já nos anos 1950, chamava esse processo - quase primitivo de investi­gacáo etnográfica no ámbito da amropologia social - "allaD'tiea/ desaiption". Cf. M.Portes, "Analysis and description in social anthropology", in Tbe advancement of saence,

vol. X, pp.190-201.

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I

:(

Roberto Cardoso de Olil1eira

movirnento que vem conquistando lugar na disciplina, a partir dos anos1960, e que, malgrado seus muitos equívocos - sendo, talvez, o principal,a identificacáo que faz da objetividade com a sua modalidade perversa, ooijetivismo - conta a seu favor o fato de trazer a questáo do texto etnográ-fico como tema de reflexáo sistemática, como algo que nao pode sertomado tacitamente, como tende a ocorrer em nossa comunidade profis­sional." Apesar de Geertz ser considerado como o grande inspirador des-se movimento, que reúne um extenso grupo de antropólogos, seus mern-bros nao participam de uma posicáo unívoca eventualmente ditada pelo

mesrre.F A rigor, a grande idéia que os une, afora o fato de possuíremuma orientacáo de base hermenéutica, inspirada em pensadores comoDilthey, Heidegger, Gadamer ou Ricoeur, essa idéia é a de se colocaremcontra o que consideram ser o modo tradicional de se fazer antropologia re isso, ao que parece, com o intuito de rejuvenescerem a antropologiacultural norte-americana, órfá de um grande teórico desde Franz Boas.

Quais os pontos que poderíamos assinalar como condutores aquestáocentral do texto etnográfico? Texto, aliás, que bern poderia ser sociogfáfico,se pudermos estender, por analogia, para aqueles mesmos resultados aque chegam os cientistas sociais, nao importando sua vinculacáo disciplinar.Talvez o que torne o texto etnográfico mais singular, quando o comparamoscom outros devotados a teoria social, seja a articulacáo que busca entre o

, trabalho de campo e a coristrucáo do texto. George Marcus e DickCushman,':' chegam a considerar que a etnografia poderia ser definidacomo "a representacáo do trabalho de campo em textos"." Todavia, issotern vários complicadores, como eles mesmos reconhecem. Tentarei indi­car alguns, seguindo esses mesmos autores, além de outras que, como eles -

11 Cf. meu artigo, HA categoria de (des)ordern e a pós-rnodernidade da antropologia", inAmlárioAntropológico, nO 86, 1988, pp.57-73; tarnbérn no livro Sobre openJammto antropo­lógico, Capítilo 4.

12 . Para urna boa idéia sobre a variedade de posicóes no interior do rnovimento herrne­néutico, vale consultar o volume U:7riting culture: Tbe poetics andpolitit: of ethnograp/!J.James Clifford e George E. Marcus (orgs.).

13 Cf. George E. Marcus e Dick Cushrnan, "Ethnographies as textes", in .Annua!Reviewof Anthropology, na 11, 1982, pp. 25-69.

14 Idem, p. 27.

28

o trabalbo doal1tropo/ógo: olhar, 01/11;'; escreuer

e, de certo modo, muitos de nós, atualmente - refletem sobre a peculia­ridade do escrever um texto que seja contralável pelo leitor e isso na medidaem que distinguimos tal texto da narrativa meramente literária. Já mencionei,momentos atrás, o diário e a caderneta de campo como modos de escreverque se diferenciam claramente do texto etnográfico final. Poderia acrescentar,seguindo os rnesmos autores, que também os artigos e as teses académicasdevem ser consideradas como "versóes escritas intermediárias", uma vez

que, na elaboracáo da monografia - essa sim, o texto final -, exigenciasespecíficas devem ou deveriam ser feitas, Mencionarei simplesmente algu­mas, preocupado em nao me alongar muito nestas consideracóes,

Desde logo, cabe uma distincáo entre as monografias c1ássicas e as

modernas. Enquanto as primeiras foram concebidas de conformidadecom uma "estrutura narrativa normativa" que se pode aferir a partir deuma disposicáo de capítulos quase canónica - território, economia, orga­nizacáo social e parentesco, religiáo, mitologia, cultura e personalidade,

entre outros -, as segundas priorizam um tema, por meio do qual toda asociedade ou cultura passa a ser descrita, analisada e interpretada. Umbom exemplo de monografias desse segundo tipo é a de Victor Turner,

, '''Cisma e continuidade em uma sociedade africana", que manifesta com

muita felicidade as possibilidades de uma apreensáo holística, porém con­centrada em um único grande tema, capaz de proporcionar uma idéiadessa sociedade como entidade extraordinariamente viva. Essa visáo ho­lística, todavia, nao significa retratar a totalidade de uma cultura, mas so­mente ter em conta que a cultura, sendo totalizadora, mesmo que parcial­mente descrita, sempre deve ser tomada por referencia.

Um terceiro tipo seria o das chamadas "monografias experimentais"ou pós-modernas, como defendidas por Marcus e Cushman, mas que,neste momento, nao gostaria de trata-las sem um exame crítico preliminarque me parece indispensável, pois iria envolver precisamente minhas res­tricóes ao que considero como característica dessas monografias: o des­prezo que seus autores demonstram em relacáo anecessidade de controle.dos dados etnográficos, tema, aliás, sobre o qual tenho me referido por¡diversas vezes, quando procuro mostrar que alguns desenvolvimentos da..antropologia pós-moderna resultam em uma perversáo do próprio para-'digma hermenéutico. Essas monografias chegam a ser quase intimistas,

\ ¡ impondo ao leitor a constante presenc;:a do autor no texto. É um tema

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CONCLUSAO

o trabalho doantropológo: olbar; osnir; escreuer

Examinados o olhar, o ouvir e o escrever, a que conclusóes podemoschegar? Como procurei mostrar desde o início, essas "faculdades" doespírito térn características bem precisas quando exercitadas na órbita dasciencias sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia. Se o olhar eo ouvir constituem a nossa percepcáo da realidade focalizada na pesquisaempírica, o escre~er passaa,ser parte quase indissociável do nosso pensa-

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George E. Marcus e Dick Cushman, "Ethnographíes as textes", p. 37.16

É importante também reavivar um outro aspecto do processo de cons­trucáo do texto: apesar das críticas, o terceiro tipo de monografia trazurna inegável contribuicáo para a teoria social. Marcus e Cushman obser­vam, relativamente ainfluencia de Geertz na antropologia, que, com ele,

a etnografia tornou-se um meio de falar sobre teoría, filosofia e epistemolo-'

gia simultaneamente no cumprimento de sua tarefa tradicional de interpretardiferentes modos de vida."

Evidentemente que, ao elevar a producáo do texto em nível de reflexáo

sobre o escrever, a disciplina está orientando sua caminhada para as instan­cias meta-teóricas que poucos alcancaram. Talvez o exemplo mais conhe­cido, entre os antropólogos vivos, seja o de Lévi-Strauss no ámbito doestruturalismo, de reduzida eficácia na pesquisa etnográfica. Com Geertz esua antropologia interpretativa, verifica-se o surgimento de urna práticameta-teórica em processo de padronizacño, em que pesem alguns escor­regóes de seu s adeptos para o intimismo, como mencionado há pouco.Entendo que para se elaborar o bom texto etnográfico, deve-se pensar as !

condicóes de sua producáo a partir das etapas iniciais da obtencáo dos ¡

dados - o olhar e o ouvir -, o que nao quer dizer que ele deva emara-. nhar-se na subjetividade do autor/pesquisador. Antes, o que está em jogo

/ é a "intersubjetividade" - esta de caráter epistémico -, gracas aqual se

articulam, em um mesmo horizonte teórico, os membros de sua comunidadeprofissional. E é o reconhecimento dessa intersubjetividade que torna oantropólogo moderno um cientista social menos ingenuo. Tenho para mimque talvez seja essa urna das mais fortes contribuicóes do paradigma her­menéutico para a disciplina. e

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15 De urna perspectiva crítica, ainda que simpática a essas monografias experimentais,leja-se o artigo da antropóloga Teresa Caldeira, intitulado "A presenc;:a do autor e após-modernidade da antropología", em Notos Estados, Cebrap, n" 21, ju!. 1988, pp.133-157. Já de urna perspectiva menos favorável, cf., por exemplo, o artigo-resenhade Wilson Trajano Fi1ho, "Que barulho é esse, o dos pós-modernos" e o de CarlosFausto, "A antropologia xamanística de Michael Taussig e as desventuras da etnogra­fia", ambos publicados no .AnuárioAntropológico, n" 86, 1988, respectivamente as pp.133-151 e pp. 183-198; e o de Mariza Peirano, "O encontro etnográfico e o diálogoteórico", inserido em sua coletánea de ensaios Uma antropologja /10 plural, como seuCapítulo 4. Para urna apreciacáo mais genérica dessa antropologia pos-moderna, naqual se procura apontar tanto seus aspectos positivos - no que se refere a contribui­c;:ao do paradigma hermenéutico para o enriquecimento da matriz disciplinar da an­tropologia -, como os aspectos negativos daquilo que considero ser o "desenvolvi­mento perverso" desse paradigma, conferir rneu artigo - versáo final de conferenciasproferidas em 1986 - indicado na nota 11.

RobertoCerdoso de Oliteira

sobre o qual tem havido muita controvérsia, mas nao penso que seja aquio melhor lugar para aprofundá-lo."

Porém, o fato de se escrever na primeira pessoa do singular - comoparecem recomendar os defensores desse terceiro tipo de monografia ­nao significa, necessariamente, que o texto deva ser intimista. Deve signifi­car, simplesmente - e quanto a isso creio que todos os pesquisadorespodem estar de acordo -, que o autor nao deve se esconder sistematica­

mente sob a capa de um observador impessoal, coletivo, onipresente eonisciente, valendo-se da primeira pessoa do plural: nás. É claro que sern­pre haverá situacóes em que esse náspode ou deve ser evocado pelo autor.

Nao deve, contudo, ser o padráo na retórica do texto. Isso me pareceimportante porque com o crescente reconhecimento da pluralidade devozes que cornpóern a cena de investigacáo etnográfica, essas vozes térn

de ser distinguidas e jamais caladas pelo tom imperial e muitas vezes auto­ritário de um autor esquivo, escondido no interior dessa primeira pessoado plural. No meu entendirnento, a chamada antropologia polifónica ­na qual teoricamente se oferece espa<;o para as vozes de todos os atores·.do cenário etnográfico - remete, sobretudo, para a responsabilidade es- l .•_

pecífica da voz do antropólogo, autor do discurso próprio da disciplina, '~c_:­que nao pode ficar obscurecido ou substituído pelas transcricóes das falas

dos entrevistados. Mesmo porque, sabemos, um born repórter pode usartais transcricóes com muito mais arte.

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Roberto Cardoso de Oliveira

mento, urna vez que o ato de escrever é simultaneo ao ato de pensar.Quero chamar a atencáo sobre isso, de modo a tornar claro que - pelomenos no meu modo de ver - é no processo de redacáo de um textoque nosso pensamento caminha, encontrando solucóes que dificilmenteapareceráo antes da rextualizacáo dos dados provenientes da observacáosistemática. Assim sendo, seria um equívoco imaginar que, primeiro, che­gamos a conclusóes relativas a esses mesmos dados, para, em seguida,podermos inscrever essas conclusóes no texto. Portanto, dissociando-se opensar do escrever. Pelo menos minha experiencia indica que o ato deescrever e o de pensar sao de tal forma solidários entre si que, juntos,formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que, nessecaso, o texto nao espera que seu autor tenha primeiro todas as respostaspara, só entáo, poder ser iniciado. Entendo que na elaboracáo de urna boanarrativa, o pesquisador, de posse de suas observacóes devidamente or-.ganizadas, inicia o processo de textualizacáo - urna vez que essa nao éapenas urna forma escrita de simples exposicáo, pois há também a formaoral -, concomitante ao processo de producáo do conhecimento, Naoobstante, sendo o ato de escrever um ato igualmente cognitivo,esse atotende a ser repetido quantas vezes for necessário; portanto, ele é escrito ereescrito repetidamente, nao apenas para aperfeicoar o texto do ponto de';vista formal, quanto para melhorar a veracidade das descricóes e da narra­

tiva, aprofundar a análise e consolidar argumentos.Isso, por si só, nao caracteriza o olhar, o ouvir e o escrever antropoló­

gicos, pois está presente em toda e quaIquer escrita no interior das cienciassociais. Coritudo, no que tange a antropologia, como procurei mostrar,esses atos estáo previamente comprometidos com o próprio Iiorizonteda disciplina, em que olhar, ouvir e escrever estáo desde sempre sintoniza­dos com o sistema de idéias e valores que sao próprios da disciplina. O quadroconceitual da antropologia abriga, nesse sentido, idéias e valores de difícilseparacáo, Louis Dumont, esse excelente antropólogo francés, chama issode "idéia-valor"," unindo assim, em urna única expressáo, idéias que pos­suem urna carga vaIorativa extremamente grande. Ao trazer essa questáo

16 Cf. Louis Dumont, "La valeur chez les modernes et chez les autres", in Essais sur/'individualúme: Uneperspective antbropologique SIIr I'idéologie moderne, Capítulo 7. Há uma

traducáo brasileira.

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o trabalbo doantropológo: albar; omdr, escreuer

para a prática da disciplina, diríamos que pelo menos duas dessas "idéias­valor" marcam o fazer antropológico: "a observacáo participante" e a"relativizacáo". Entre nós, Roberto Da Matta chamou a atencáo sobre arelativizacáo em seu livro Relativizando: Uma introdiciio ti antropologia socia!,1?mostrando em que medida o relativizar é constituinte do próprio conhe­cimento antropológico. PessoaImente, entendo por relativizar urna atitudeepisrérnica, eminentemente antropológica, gra<;as aqual o pesquisador lo­gra escapar da ameaca do etnocentrismo - essa forma habitual de ver 0_

mundo que circunda o leigo, cuja maneira de olhar e de ouvir nao foramdisciplinadas pela antropologia. E se poderia estender isso ao escrever, namedida em que, para falarmos com Crapanzano, lB "o escrever etnografiaé urna continuacáo do confronto" intercultural, portante entre pesquisa­

dor e pesquisado. Por conseguinte, urna continuidade do olhar e do ouvirno escrever, esse último igualmente marcado pela atitude relativista."

17 Editado pela Vozes, em 1981, o volurne é uma boa introducáo aantropologia socialque recomendo ao leitor interessado na disciplina, precisamente por nao se tratar deum manual, porém de um livro de reflexáo sobre o fazer antropológico, apoiada narica experiencia de pesquisa do autor. Já em uma direcáo um pouco diferente, posicio­nando-se contra certos exageros ami-relativistas, Clifford Geertz escreve seu ''Antianti-relarivisrno", traduzido p~ra o portugués na Revista Brasileira deCiincias Sociais, vol.

3, nn 8, out. 1988, pp. 5-19, que vale a pena consultar.

18 Cf. Vincent Crapanzano, "On the writing of ethnography", in DialecticalAntbropology,nO 2,1977, pp. 69-73. Muitas vezes, por razóes estilísticas - observa Crapanzano­"isola-se o ato de escrever, e seu produto final [o texto], da própria confrontacáo,Qualquer que seja a razáo para essa dissociacáo, permanece o fato de que a confron­tacáo nao termina antes da etnografia mas, se se pode dizer ao fim de rudo, é que elatermina coma etnografía" [p, 70].

19 Eu Faco uma disrincáo entre "atitude relativista" - que considero ser inerente apos­tura antropológica - e "relativismo", urna ideología científica. Esse relativismo, porseu caráter radical e absolutista, nao consegue visualizar adequadarnente questóes demoralidade e de eticidade, sobrepondo, por exernplo, bábito a norma morale justifican­do esta por aquele. Tive a ocasiáo de tratar desse tema mais detalhadarnente ern rneu"Etnicidad y las possibilidades de la ética planetária", in Antropológicas: Revista deDifilSióndel Instituto de Investigaciones Antropológicas, México: UNAM, nO 8, out 1993, pp. 20-33;urna segunda versáo foi publicada na Re/lista Brasileira deCiéncia.r Soaais, ANPOCS, ano9, nO 24, 1994, pp. 110-121, com o tÍtulo "Antropologia e rnoralidade", inserida nacoletánea Ensaios antropológicos sobre moraleética, de Roberto Cardoso de Oliveira e LuísR. Cardoso de Oliveira, Capítulo 3.

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..

RobertoCerdoso de Oliveira

Urna outra idéia-valor a ser destacada como constituinte do ofícioantropológico é a "observacáo participante", que já mencionei momentosatrás. Permito-me dizer que talvez seja e1a a responsáve1 pela caracteriza­cáo do trabalho de campo antropológico, distinguindo-a, enquanto disci­plina, de suas irrnás nas ciencias sociais. Apesar dessa observacáo partici­

pante ter alcancado sua forma mais consolidada na investigacáo etnológi­ca, junto a populacóes ágrafas e de pequena escala, isso nao significa queela nao acorra no exercício da pesquisa com segmentos urbanos ou ruraisda sociedade a que pertence o próprio antropólogo. Dessa observacáo

participante, sobre a qual muito ainda se poderia dizer, nao acrescentareimais do que urnas poucas palavras; apenas para chamar a atencáo para

uma modalidade de observacáo que ganhou, ao longo do desenvolvi­

mento da disciplina, um status elevado na hierarquia das idéias-valor que amarcam emblematicamente. Nesse sentido, os atos de olhar e de ouvirsao, a rigor, funcóes de um genero de observacáo muito peculiar - isto é,

peculiar a antropologia -, por meio da qual o pesquisador busca inter­pretar - ou compreender - a sociedade e a cultura do outro "de, den­tro", em sua verdadeira interioridade. Ao tentar penetrar em form~s devida que lhe sao estranhas, a vivencia que delas passa a ter cumpre urnafuncáo estratégica no ato de elaboracáo do texto, urna vez que essa viven­

cia - só assegurada pela observacáo participante "estando lá" - passa a

ser evocada durante toda a interpretacáo do material etnográfico no pro­cesso de sua inscricáo no discurso da disciplina. Costumo dizer aos meus

alunos que os dados contidos no diário e nas cadernetas de campo ga­nham em inteligibilidade sempre que rememorados pelo pesquisador; o

que equivale dizer, que a memória constitui provavelmente o élementomais rico na redacáo de um texto, contendo ela mesma urna massa dedados cuja significacáo é melhor alcancável quando o pesquisador a traz

de volta do passado, tornando-a presente no ato d'e escrever. Seria urnaespécie de presentificacáo do passado, com tuda que isso possairnplicardo ponto de vista hermenéutico, ou, em outras palavras, com toda a influ- ,éncia que o "estando aqui" pode trazer para a cornpreensáo - Versteben- e interpretacáo dos dados entáo obtidos no campo.

Paremos por aqui. Em resumo, vimos, por intermédio da experiencia

. antropológica, como a disciplina condiciona as possibilidades de observa­~ \. cáo e de texrualizacáo sempre de conformidade com um horizonte que

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o irabalbo do ontropológo: olbar, ouuir, escreuer

lhe é próprio. E, por analogia, poder-se-is dizer que isso ocorre tambémem outras ciencias sociais, em maior ou em menor grau. Isso significa queo olhar, o ouvir e o escrever devem ser sempre tematizadas ou, em outraspalavras, questionados enquanto etapas de constituicáo do conhecimentopela pesquisa empírica - essa última vista como o programa prioritáriodas ciencias sociais. Trazer esse tema aconsideracáo, parecen-me, enfim,apropriado porque entendo que talvez venha a contribuir ao estímulo dereflexóes de caráter interdisciplinar, urna vez que os diferentes atas cogni­tivos examinados nao sao estranhos as demais ciencias sociais. O que torna

qualquer experiencia antropológica - e nao apenas a minha - objeto deinteresses que transcendem a disciplina. E foi com esse intuito que escolhio presente tópico - e me darei por satisfeito se houver conseguido trans­

formar atos aparentemente tao banais, como os aqui examinados, emtemas de reflexáo e de questionamento.

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Capítulo 2

o MOVIMENTO DOS CONCEITOSNA ANTROPOLOGIN

INTRODu<;ÁO

Quando se pensa a antropologia na América Latina, é comum pensá­

la em termos nacionais - seja como antropologia brasileira, argentina oumexicana - e, quando muito, em termos regionais - como andina oucomo amazónica -, ainda que sempre restrita a espa<;:os bem definidos,ou seja, demarcados por critérios nacionais ou regionais, Ainda que pensá­la em termos universais - isto é, como urna disciplina em escala planetá­

ria - possa ter lugar em um ou outro lugar da academia latino-americana,isso parece-me mais excepcional do que recorrente. Imaginei, assim, quepoderíamos examinar algumas características que cercam nossa disciplinae que, de alguma forma, possam oferecer-lhe uma identidade própria,talvez um estilo, sem que devamos nacionalizá-Ia e, com isso, retirar-lhesua universalidade, que, para muitos de nós, é condicáo necessária parauma disciplina que se pretenda científica.

Como se ve, estou tratando de um tema que, nao sendo novo noámbito da disciplina, nem por isso pode ser considerado como suficiente­mente reconhecido em nossa comunidade profissional como merecedorde maior aten <;:ao. De minha parte, tenho me debrucado sobre o tema desdeo final dos anos 1970, quando refletia sobre a obra de Maree! Mauss e davainício a urna tentativa de desconstrucáo do conceito de antropologia, valeh­do-me, para tal fim, da construcáo de sua "matriz disciplinar'? tentando,

Este ensaio foi inicialmente publicado pela Revista de Antropologia (vol. 36, 1993,pp. 13-31) como urna reelaboracáo do texto em espanhol destinado ao Seminário"Entre el acontecimiento y la significación: el discurso sobre la cultura en el NuevoMundo", realizado em Trujillo, Espanha, em dezembro de 1992.

2 A matriz disciplinar está constituída por um conjunto de paradigmas sirnultanearnen­te ativos e inseridos em um sistema de relacóes bastante tenso, e é responsável pelaidentidade da antropología, assim como por sua persistencia, ao longo deste século(cE R. Cardoso de Oliveira, Sobreopens(1/11ento antropológico, Capítulo 1: "Tempo e tradi­cáo: Interpretando a antropologia'').

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Roberto Cardo.ro de Oliveira

paralelamente, situar a disciplina naqueles espac;:os que chamei de "periféri­COS".3 Espacos esses no interior dos quais venho procurando apreender aantropologia em sua singularidade, sem perder de vista sua pretendidauniversalidade que se expressa na mencionada matriz disciplinar. Assim sen­da, a estratégia que procurarei seguir aqui será a de examinar, a partir de urnaperspectiva comparativa, a dinámica de certos conceitos que, originários forada América Latina, para ela emigraram e nela sofreram transforrnacóesque os adequaram as novas realidades que haveriam de dar conta. ufo

sensu, esse movimento de conceitos pode ser entendido, ern urna primeirainstancia de reflexáo, como movimento do centro para a periferia.

Entretanto, nunca será demais lembrar que tomo por periférico aqueleespaco que nao se identifica com o espac;:o metropolitano - leia-se: Ingla­terra, Franca e Estados Unidos -, de onde emergiram os paradigmas dadisciplina no final do século passado e em princípios des te, e que des sespaíses propagaram-se para outras latitudes. Periférico, no caso, nao se iden­tifica tampouco com a nocáo política de periferia como estigmatizante deum lugar habitualmente ocupado pelo chamado Terceiro Mundo. Assim,as "antropologias periféricas" - como eu as entendo - podem existirem qualquer dos "mundos", até mesmo no mundo europeu, desde quesejam assim identificadas em países que nao tenham testemunhado a emer­gencia da disciplina em seu territorio e, dessa maneira, nao tenham ocupa­do urna posicáo hegemónica no desenvolvimento de novos paradigmas.

3 A nocáo de periferia e sua aplicacáo na caracterizacáo das rnanifestacóes da antropo­logia fora dos centros metropolitanos nao térn ocorrido sem muita reflexáo e crítica,como mostram diferentes debates internacionais. Destaco, por exernplo, aqueJes queforam publicados sob os títulos de Indigenolls Antbropology in Non-H7estern Cosntries (edi­tado por Hussein Fahim pela Carolina Academic Press, 1982) e "The Shaping ofNational Anthropologies" (editado por Tomas Gerholm e Ulf Hannerz, em Etbnos,1­2, 1982). Por razóes que apresento ern outro lugar (R. Cardoso de Oliveira, Sobre oPensamento Antropológico, Capítulo 7, "Por urna etnografía das antropologías periféri­cas"; o mesmo texto, com poucas alreracóes, também em A antropologia na AméricaLAtina, coordenado por George Zarur, com o título "Identidade e diferenca entreantropologias periféricas"), preferí utilizar a expressáo "antropología periférica" emlugar de antropologia "indígena", "nacional", "náo-ocidental" etc., com todos os ris­cos que isso poderia acarretar em funcáo de sua ambigüidade. Espero que mais adian­te tal ambigüidade se desfaca.

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o 1110I';"lento dos conceitos na antropologia

Trata-se, portanto, de urna categoria eminentemente histórica e que reflete,em sua plena acepcáo, a ontogénese do campo da antropologia acrescidode sua estruturacáo atuaI. Para nós, antropólogos, isso se torna bastantesignificativo a medida que podemos trazer a disciplina - entendida comouma subcultura ocidental - para um horizonte que nos é muito familiar:o das relacóes entre culturas ou, mais precisamente, entre "idiomas cultu­rais". Pretendo, assim, abordar urnas poucas idéias que nos ajudem a corn­

preender que nao obstante a pretendida universalidade da antropologiacomo disciplina científica, manifestada - volto a dizer - no conjunto deparadigmas articulados em sua matriz disciplinar, persisrern diferencas ouparticularidades significativas quando exercitada fora dos centros metro­politanos, onde, ao que parece, nao se observaria a mesma pretensño auniversalidade.

Porém, se essas diferencas que se verificam na periferia podem e de­vem ser consideradas mediante urna análise estilística, o mesmo já nao sepode dizer em relacáo as antropologias centrais, porquanto essas antropo­logias nao teriam suas diferencas explicadas em termos estilísticos, já que,de alguma maneira, estáo enraizadas em seus paradigmas originais, todosmarcados por urna pretensáo auniversalidade. o mesmo nao acorre com

-as antropologias periféricas:'voltadas, em regra, para as singularidades deseus contextos sócio-culturais, habitualmente transformados em objetosquase exclusivos de investigacáo, Entre nós, por exemplo, contam-se nosdedos as pesquisas que ultrapassam nossas fronteiras... Seriam, contudo,essas antropologias substancialmente diferentes a ponto de dissolver aunidade da disciplina, tornando irreconhecível na periferia sua própria matrizdisciplinar? Toca-se, aqui, no paradoxo clássico da persistencia do mesmosob as mudancas que nele tém lugar. Em outras palavras, como pode aantropologia amoldar-se as novas condicóes que encontrou em outrospaíses sem que, todavia, deixasse de ser o que é?

o ANTROPÓLOGO E O "OUTRO INTERNOn

Comecaria com urna afirrnacáo quase banal em nossa disciplina: parao antropólogo que exercita a cornparacáo, nao existe um terceiro lugar,neutro, de onde ele possa falar. Pois essa afirmacáo tao trivial está embuti­da na natureza da disciplina em sua transplantacáo para América Latina­e, pode-se acrescentar, até mesmo para qualquer das latitudes em que nao

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Roberto Cardoso de Oliveira

estejam abrigados os centros metropolitanos -, portanto, ali onde se sub­mete as deterrninacóes de uma nova realidade. Pois a história da disciplina

deixa consignado que, desde seus primórdios, sempre focalizou o ho­mem de outras culturas - e, isso,-a partir de sua própria cultura, ou seja,

daiiiliOp61ogia-éümüculwra; ~ertamente urna cultura artificial, ela mes­

ma constituinte do sujeito cognoscitivo. Se esse processo sempre ocorreu

na história da: disciplina, nem sempre - ou raramente - foi assumidopelos antropólogos e tematizado por eles como questáo relevante. Comoadmitir, entáo, que uma disciplina essencialmente antietnocéntrica pudessesequer conviver com essa dirnensáo de um saber que, a rigor, nao seria

senáo sua própria nega¡;:ao? Como eludir uma tal ameaca, capaz de invia­

bilizar seu próprio estatuto epistemológico? Como conciliar na prática ­pois teoricamente é bem mais fácil - a inevitabilidade de uma posturacomprometida com determinada Weltanscha1iung, inscrita nas condicóes ori­

ginárias da própria disciplina, com sua vo cacáo eminentemente

relativizadora e, muitas vezes, ingenuamente neutra? Esse parece ser o de­safio que a disciplina tem enfrentado em toda sua história e que, todavia,

continua enfrentando. A res posta a esse desafio nao tem sido uma, nemduas, mas várias, conforme as modalidades de sua atualizacáo nos contex­tos mais diferentes em que fez do "outro" objeto de investigacáo.

Tomemos a antropologia européia em seu conjunto, independente­mente de uma possível diferenciacáo interna que nela poderíamos obser­var entre as centrais e as periféricas. O certo é que essa antropologia sem­pre fez do "outro" um ser distante, na maioria das vezes transoceánico, O"outro interno" - se assim posso referir-me ao horriern europeu comoportador de uma subcultura local ou regional, seja na Alemanha, na Itália

ou na Espanha -, foi o objeto de urna quase ciencia, o folclore, muitasvezes antecessor direto da própria antropologia. Esse seria o caso de pa­íses como a Espanha." O binomio em língua alerná Volkskunde­Volkerkunde ilustra perfeitamente essa separacáo entre duas disciplinas apa­rentadas, é certo, mas nao idénticas, Se o primeiro termo remete a investiga­

<;:ao interna, ao folclore, o segundo abre o horizonte do pesquisador para a

4 Refiro-me aquí, especialmente, ao caso da antropologia catalá, Entre outros, consulte­se: Luis Calvo Calvo, El "arxtud'elnografia ifoldorede calalunya"y la anlropología catalana,

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o mommento dos conceitos na anlropologia

exploracáo de terras longínquas e exóticas. Sao duas óticas que encontramguarida em duas disciplinas distintas, pelo menos em um determinado mo­mento da construcáo da antropologia moderna, momento este que talvezpudéssemos datá-Io, sem maior rigor, nas duas primeiras décadas deste sé­culo. Mas se agora invoco essa questáo é para relacioná-la com a históriabem mais recente de dois conceitos aparentados, a rigor, também eles umbinomio, a saber: colonialismo - colonialismo interno, que marcam, quase deforma emblemática, a história das relacóes entre a Europa e a América

Latina. Sao conceitos bem típicos, respectivamente do mundo do coloniza­dor e o do colonizado: o primeiro, próprio do mundo europeu; o segundo,próprio do mundo latino-americano. O exótico, ou simplesmente o dife­rente, que sempre ocupou o horizonte do antropólogo, do passado, torna­se bastante relativizado quando o foco da investigacáo comeca a apreendernao mais exclusivamente tal ou qual etnia para estudo intensivo de carátermonográfico - as famosas etnografías c1ássicas, as quais, diga-se a propósito,tanto deve nossa disciplina -, senáo também seu entorno, seja ele a sociedadecolonial, seja a sociedade nacional, praticante - a seu turno - de um certocolonialismo interno - como bem se observa nas sociedades latino-ameri­canas,' É assim que o colonialismo, como conceito abrangente, passa a enfati­zar o relacionamento sistemático entre o colonizador e o colonizado, am­pliando, desse modo, o foco de investigacáo nao mais circunscrito as etniascolonizadas, mas voltado agora para uma realidade mais inclusiva, que sepoderia denominar, por exemplo, "situacáo colonial" - para ficarmos comesse utilíssimo conceito formulado nos anos 1950 por George Balandier.'

5 A genealogia do conceito de "colonialismo interno" pode ser tracada, talvez, a partirde autores como Gunnar Myrdal e C. Wright Milis, alcancando sua formulacáo latino­americana mais consistente com Pablo Casanova, em seu artigo de 1963, "Sociedadplural, colonialismo interno y desarrollo" (América Latina, año 6, n" 3) ou em seu livroSociología delaexplotación, no Capítulo "El colonialismo interno", Rodolfo Stavenhagen,com "Siete tesis equivocadas sobre América Latina" (Política Independiente, n" 1, maiode 1965) acrescenta considcracóes interessantes ateoria dualista de J. Larnbert, mos­trando a necessidade de criticá-la do ponto de vista do colonialismo interno. Inspiradonesses autores, tive a oportunidade de tratar o problema em meu '~ nocáo de 'colo­nialismo interno' na etnología", reeditado como o Capítulo 6 de meu livro A sociologiado Brasilindígena.

6 Cf. G. Balandier, Sociologíe acluel/e de l'AfriqueNoire.

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Roberto Cardoso de Oliueira

A agregacáo do adjetivo "interno" a nocáo de colonialismo cria, arigor, um novo conceito, urna vez que se retém, por um lado, parte dascaracterísticas das relacóes coloniais, como as de dorninacáo política e deexploracáo económica do colonizador sobre a populacáo colonizada; poroutro, acrescenta urna dimensáo inteiramente nova. Essa dirnensáo envol­

ve o que se poderia denominar um novo "sujeito epistémico". E se esti­véssemos interessados em discernir alguma coisa parecida com urna "ca­tegoria teórica" como característica da antropologia latino-americana, aquiloque vai se impor com mais vigor é precisamente a dimensáo do sujeitocognoscitivo. Nao mais um estrangeiro, alguém que observe de um pontode vista - ou horizonte - constituído no exterior, porém, agora, ummembro de urna sociedade colonizada em sua origem - depois trans­formada em urna nova nacáo -, um observador eticamente contrafeitode um processo de colonizacáo dos povos aborígenes situados no interiordessa mesma nacáo. Portanto, do ponto de vista desse observador internode urna sociedade que reproduz mecanismos de dorninacáo e de explora­

cáo herdados historicamente, o que subsiste nao poderá ser apenas'o des­locamento de um conceito metropolitano - e colonial-, sem repercus­soes na própria constituicáo desse ponto de vista. Tratar-se-ia, antes, deum ponto de vista diferente, significativamente reformulado, no qual ainsercáo do observador - isto é, do antropólogo como cidadáo de um

país fracionado em diferentes etnias - acaba por ocupar um lugar comoprofissional da disciplina na etnia dominante, cujo desconforto ético só é

diluído se passar a atuar - seja na academia, seja fora dela - comointérprete e defensor daquelas minorias étnicas.

A IDEOLOGIA INDIGENISTA E A "CONSTRUC;:ÁO DA NAc;:AO"

Diante dessa nova realidade na qual se insere o antropólogo e, com ele,a própria disciplina, o que passa a se impor a reflexáo é, precisamente, o

movimento que o conceito faz em seu deslocamento da Europa para aAmérica Latina. Dizíamos que o papel do antropólogo, como cientista ecidadáo, passa a ter um valor agregado no exercício de sua profissáo, legitima­

dor de seu desempenho visto como urna totalidade. Equivale a dizer que aprática de sua profissáo passa a incorporar urna prática política, quandonao em seu comportamento, certamente em sua reflexáo teórica. Isso denenhum modo significa banalizar a disciplina mediante urna sorte de ati-

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o movimento dos tonceitos na antropofogia

vismo político, primário e dogmático. Nesse sentido, só o domínio dili­gente da disciplina pode evitar tal ameaca, Ainda assim, nunca será portemor dessa arneaca que o antropólogo latino-americano abrirá máo derealizar sua cidadania e sua profissáo, concebidas ambas como as duasfaces de urna mesma rnoeda. Pelo menos a história da disciplina já de­monstrou isso no estudo que tem feito das relacóes interétnicas. Muito sepoderia dizer a esse respeito, mas ternos que nos cingir aquestáo específica

que desejamos abordar: o que haveria de realmente novo nesse sujeitoepistémico? Parece-me que, a diferenca do antropólogo europeu, naAmérica Latina o profissional tem um outro compromisso, igualmenteético, ainda que nem sempre transparente para si mesmo ou para sua co­munidade de pares: sua participacáo na empreitada cívica da construcáoda nacáo, ou nation building. Mariza Peirano, ao que me consta, foi a primei­ra antropóloga a avaliar o lugar do tema no desenvolvimento da antropo­logia no Brasil." Embora a participacáo na construcáo da nacáo nao sejamonopólio do antropólogo latino-americano - e Peirano mostra isso _,8

entendo que, na América Latina, essa participacáo assume contornos bas­

tante específicos. Refiro-me aespecificidade de urna prática antropológi­ca, bem como a seu horizonte teórico, identificáveis em vários países lati­no-americanos como indigeniríno. E é sobre esse indigenismo que restringi­rei as consideracóes a seguir.

Diria que o indigenismo como ideologia, em que pesem seus muitosequívocos, esteve presente no exercício da disciplina praticamente em to­dos os países latino-americanos possuidores de ponderáveis populacóes

indígenas. O México, a Guatemala e os países andinos da América do Sulsempre tiveram como tema - e objeto - primordial das investigac,:o~s

antropológicas a presenc,:a de populacóes indígenas em seu território. OBrasil, ainda que detentor de urna populacáo indígena demograficamente

7 Em sua tese doutoral, "The anthropology of anthropology: The brazilian case", de­fendida na Universidade de Harvard, em 1981, Mariza Peirano mostra a idéia de nation

building como vetor importante na construcáo da antropologia brasileira moderna.

8 Sobre a presen<;a da ideologia da "construcáo da nacáo" também nas nacóes euro­péias, Peirano adverte tratar-se de "urn parámetro e sin toma importante para a carac­terizacáo das ciencias soeiais onde quer que elas surjam"Cf. M. Peirano, Uma antropofagia noplural.- Trés experündas contemporáneas, p. 237.

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Roberto Cerdoso de Ol¡veira

pouco expressiva, conseguiu construir um indigenismo extremamente forte,capaz de contaminar todas as pesquisas de etnologia desde que a disciplinalogrou consolidar-se no país, a partir dos anos 1930. Curt Nimuendaju,nosso "personagem conceitual" por excelencia - para usarmos, aqui,essa rica nocáo deleuziana -, ilustra um claro comprometimento do pes­quisador com a defesa dos índios. Todavia, essa contarninacáo ideológica

deu-se na maioria dos países latino-americanos, em grau variável, já que oindigenismo teórico e prático jamais deixou de apresentar suas particulari­dades regionais. Contudo, o que conta em nosso argumento é a politiza­<;:ao sistemática do antropólogo nos termos da ampla e generalizada ideo­logia indigenista, nao obstante a riqueza de matizes a singularizar sua ado­cáo nos diferentes países do continente.

Penso nao ser necessário dese rever essa ideologia indigenista, mesmoque nos limitássemos a seu núcleo, mas apenas definí-la grosso modo comoum pensamento e uma acáo pautados por um compromisso com a causaindígena - o que nao exclui os próprios erros de interpretacáo dessamesma causa... Entretanto, tal definicáo acarreta um segundo problema,com seu inevitável corolário: como interpretar essa causa indígena? Tratar­se-ia de dar ouvidos aos povos indígenas, concedendo-lhes - por inter-.médio de suas liderancas - voz ativa na elaboracáo da política indigenista?Ou de ouvir, em primeiro lugar ou exclusivamente, os interesses do Esta­do que, nos países latino-americanos, nunca se configura como multiétnico?Em outro lugar? tive a oportunidade de apontar para aquilo que chamode "crise do indigenismo oficial", expressando com isso o atual divórcioentre as liderancas indígenas, cada vez mais conscientes dos direitos deseus pOYOS, e o Estado, autor e gerenciador da política indigenista, tradi­cionalmente impermeável as reivindicacóes dessas liderancas. Em vista disso,tern-se observado atualmente, no Brasil por exemplo, uma separacáo níti­da entre o indigenismo oficial e um indigenismo "alternativo", elaboradoainda que superficialmente por algumas organizacóes náo-governarnentais

- as ONGs -, mas que, eventualmente, pode convergir em alguns pon­tos com a própria Funai, quando esta, excepcionalmente, é dirigida poruma adrninistracáo mais esclarecida... Como uma terceira perspectiva a

9 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, A cnse doindigenismo, especialmente pp. 56-58.

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o movimento dosconceitos na antropofogia

considerar - frente as perspectivas da Funai e das ONGs - está, natu­ralmente, a que se observa nas tentativas de forrnulacáo de uma políticaindígena propriamente dita criada no seio do movimento indígena e elabo­rada em seus diferentes congressos e assembléias indígenas. Porém, inde­pendentemente das características observáveis nos diferentes países da Amé­rica Latina, penso que é importante registrar a forre atuacáo da ideo logia

indigenista, cujas diferentes gradacóes nao sao suficientes para obscurecersua presen<;:a na prática da disciplina em nossos países. Embora caiba re­conhecer aqui a diferenca entre política indígena - dos índios - e políti­

ca indigenista - do Estado -, o que estou chamando de indigenismorepresenta uma idéia mais ampla, ativada sempre que se manifesta entre osantropólogos o compromisso com o destino dos POYOS indígenas.

A "FRICC;;ÁO INTERÉTNlCA" E O "ETNODESENVOLVIMENTO"

Ao enfatizar o indigenismo como formador de uma perspectiva ex­tremamente importante na construcáo da antropologia nos países latino­americanos, nao estou reduzindo a disciplina a um exercício teórico ouprático voltado exclusivamente para as populacñes indígenas. A antropo­logia moderna em nossos países inclina-se hoje - e muitas vezes de for­ma bastante original - sobre a própria sociedade a que pertence o antro­pólogo, portanto, sobre a sociedade nacional. Para penetrar nesse outrotipo de fazer antropológico, estaríamos nos desviando um pouco de nos­so tema. Contudo, gostaría de destacar ainda que vejo nos esrudos indíge­nas - aos quais a antropologia, sob a denominacáo de etnologia, devo­tou em nossos países, ou na maior parte deles, seu exercício mais intensopara a forrnacáo da disciplina - o marcador de uma especificidade qu~,

acredito, nao se observa tao claramente nos estudos dedicados a socieda­de nacional, seja em seu s segmentos rurais, seja nos urbanos. De certamaneira - salvo melhor juízo - esse tipo de antropologia pouco sediferencia daquilo que se observa em outras latitudes, inclusive nas antro­pologias centrais, ainda que a pretensáo a universalidade destas últimassempre pode distingui-Ias das antropologias periféricas, como já aludí.

Dito isso, gostaria de mencionar pelo menos dois conceitos elabora­dos no interior da comunidade de profissionais latino-americanos da dis­ciplina e que bem exprimem aquele deslocamento conceitual. Refiro-meaos conceitos de "friccáo interétnica" e de "etnodesenvolvimento". Como

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Roberto Cerdoso deOlilJeira

Um número razoável de publicacóes - entre livros, artigos, disserta­

cóes e teses - valeu-se desse conceito, revelando sua utilidade, quer no

Brasil, quer em outros países latino-americanos." A formulacáo do con-

Chamamos "friccáo interétnica" o con tato entre grupos tribais e segmentosda sociedade brasileira, caracterizado por seus aspectos competitivos e, no maisdas vezes, conflituais, assurnindo esse con tato proporcóes "totais", isto é,envolvendo toda a conduta tribal e nao-tribal que passa a ser moldada pelasituafao defricfao interétnica.

o f1JOlJimenlo dosconceitos na anlropologia

Bonfil Batalla, "La teoria del control cultural en el estudio de procesos étnicos"; amonografia de Miguel A. Bartolomé e Alicia M. Barrabas, "La resistencia Maya:Relaciones inter-étnicas en el orientede la Península de Yucatán"; ou o conjunto deensaios intitulado Procesos de contacto interétnico, de M. R. Catullo el alii.

ceito significava, em primeiro lugar, urna atitude crítica frente a aborda­

gens correntes na época no Brasil, como aquelas que focalizavam os pro­ces sos de "aculturacáo" ou de "mudanca social", inspirados, respectiva­

mente, nas teorias funcionalistas norte-americanas ou británicas, Em se­

gundo lugar, significava um deslocamento do foco das relacóes de equili­

brio e das representacóes de consenso para as relacóes de confliro e para

as representacóes de dissenso, Em terceiro lugar, ainda que de maneira

incompleta, propunha que se observasse mais sistematicamente a socieda­

de nacional em sua interacáo com as etnias indígenas, como elemento de

deterrninacáo da dinámica do contato interétnico. Com isso, apropriávamo­

nos da nocáo de situacáo colonial, apresentada por Balandier, para

rransforrná-Ia em conceito adequado para desvendar a realidade das rela­

cóes entre índios e alienígenas, que se mostraria especialmente fecundo

para dar conta de situacóes de contato entre segmentos nacionais e grupos

tribais existentes em território brasileiro, com possibilidade de ser útil quando

aplicado em outras regióes da América Latina.

Já com relacáo ao conceito de etnodesenvolvimento - formulado de

maneira bastante consistente por Rodolfo Stavenhagen, em seqüéncia da

"Reunión de Expertos sobre Etnodesarrolo y Etnocidio en América La­

tina" promovida pela Unesco e pela Flacso, em San José de Costa Rica,

em dezembro de 1981 - cabe destacar que esse conceito nao era apenas

um desdobramento do conceito de desenvolvimento, corrente na literatu­

ra económica e política produzida na Europa e nas Américas, mas quase

um contra-conceito, urna vez que implicava urna crítica substantiva as reo­

rias desenvolvimentistas, bastante em yoga nos países de nosso hemisfério.

Com es se conceito, propunha-se urna natureza de desenvolvimento "a~

ternativo", que respeitasse os interesses dos POYOS ou das populacóes étni­

cas, alvo dos chamados "programas de desenvolvimento". Stavenhagen

apresenta um elenco de seis consideranda para justificar a adocáo do concei­

to como instrumento capaz de atender a especificidade dos pOYOS do

Terceiro Mundo diante da questáo do progresso e da modernizacáo:Em AméricaLatina, pp. 85-90. O conceitode friccáo interétnica, por sua vez,guardaum grande parentesco com o de "regióes de refúgio", desenvolvido por GonzaloAguirre Beltrán, especialmente ern seu livro Regiones de refugio.

Alérn de cercade urnadezenade tesese de livros escritos no Brasil, orientadospelocanceita defticfoO interétnica - ou pelo de identidade étnica gue lhe é correlato-, cabemencionar a repercussáo do conceito em países como México e Argentina, comoindicam, por exemplo - egue eu tenha conhecimento -, o ensaio de Guillermo

procurarei mostrar, esses conceitos sao solidários da nocáo de colonialis­

mo e, conseqüentemente, da nocáo de colonialismo interno. Cabe esclare­

cer, nao obstante, que esse último conceito nao tern limitada sua aplicacáo

apenas as etnias indígenas, urna vez que também pode ser considerado

como elucidativo de muitas das investigacóes sobre a sociedade rural, em

sua feicáo camponesa, como mostram, por exemplo, os estudos levados

a cabo pela equipe de antropólogos do Programa de Pós-graduacáo em

Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Río

de Janeiro, a partir de 1968, sobre as regióes Nordeste e Centro-Oeste do

Brasil, ou as investigacóes que tiveram lugar na Universidade de Brasília,

depois de 1972, com a criacáo de um Programa equivalente, para ficar­

mos com dais bons exemplos ilustrativos do alcance desse conceito e desua fecundidade no exercício da pesquisa.

Comecernos pelo conceito de friccáo interétnica. Esse conceito - que

tive oportunidade de propor em 1962, quando elaborei o projeto "Estu­

do de áreas de friccáo interétnica do Brasil",'? para o entáo Centro Latino­

Americano de Pesquisas em Ciencias Sociais, órgáo associado a Unesco e

com sede no Río de Janeiro - teve sua origem em urna reflexáo sobre a

nocáo de "situacáo colonial", a que já me referi, na forma como foi de­

senvolvida por Balandier. Escrevi entáo:

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10

46 47

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°movimento dosconceitos na antropologia

mento, execucáo e avaliacáo" destacado por Stavenhagen. Tal comunida­de asseguraria a possibilidade das relacóes interétnicas serem efetivadasem termos simétricos, ao menos no que diz respeito aos processos deci­sórios de planejamento, execucáo e avalia¡;:ao, e no nível das liderancaslocais, portanto étnicas, em diálogo com técnicos e administradoresalienígenas. Essas relacóes simétricas, e por isso mais democráticas, redun­

dariam na substitui¡;:ao gradativa do "informante nativo" pela figura do

interlocutor, igualmente nativo. Se bem que urna tal comunidade de argu­rnentacáo nao seja de tao fácil realizacáo concreta - mesmo quando en­

volve pares, a exemplo das comunidades de cientistas, como ensina opróprio Apel;" só o fato de te-la como alvo já imprimiria a indispensável

moralidade aos programas de etnodesenvolvimento, sempre que envol­

vessem qualquer acáo externa em sua prornocáo.

CONCLUSAO

Essas consideracóes conduzem a urna breve conclusáo. Em lugar de

nos preocuparmos com eventuais categorias teóricas que poderiam ter

sido elaboradas pelas antropologias praticadas na América Latina, os con­ceitos que examinamos nao sao mais do que categorias sociológicas e histó­ricas que nao devem sinalizar nada mais do que a fixacáo de um léxico da

disciplina, pouco afetando sua sintaxe - se assim posso expressar-me, valen­do-me de um parámetro lingüístico -, sintaxe essa responsável pela grama- ..ticalidade de sua matriz disciplinar. Tal gramaticalidade - para continuar re­correndo a metáforas lingüísticas - asseguraria a pretensáo da disciplina auniversalidade, isto é, viabilizando sua producáo e consumo em nível pla­netário, mercé de conceitos tais como estrutura, cultura,funrao etc., verdad¿i­ros conceitos eminentes da disciplina - para valerme-nos, aqui, de urnafeliz expressáo durkheimiana; porém, a rigor, eles sao mais universalizáveisdo que universais, posto que sua significacáo,ou carga semántica, dependeria

do sistema conceitual ou do paradigma em que estivessem ínseridos;"

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de las ciencias sociales" e "El a priori de la comunidad de comunicación y losfundameentos de la ética", ambos em La transformación de lafilosofia, tomo lI.

Cf. nota 14 deste Capítulo.Como os termos estnauraefllnfao, ou outros que poderíamos acrescentar, recobre mconceitos diferentes, isto é, no estruturalismo francés estrutura eJimfao significam algo

15

16

12 Cf. Rodolfo Stavenhagen, "Etnodesenvolvimento: Urna dirnensáo ignorada no pen­samento desenvolvimentista", pp. 11-44.

13 Cf. R. Cardoso de Oliveira, "O saber, a ética e a acáo social", em Manusaito: &vistaInternacional de Filosofia, pp. 7-22; e "Prácticas interétnicas y moralidad: Por unindigenismo (auto)crítico", pp. 9-25. Esses artigos foram inseridos no volume Ensaiosantropológicos sobre morale ética, Capítulos 1 e 2.

14 Cf. Karl-Otto Apel, "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendental

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Roberto Cardoso de Oliveira

1. que as estratégias de desenvolvimento sejam destinadas prioritariamenteao atendimento das necessidades básicas da populacáo e para a melhoriade seu padráo de vida, e nao a reproducáo dos padróes de consumo das

nacóes industrializadas, propugnados, exclusivamente, pelo crescimentoeconómico;

2. que a visáo seja endógena, orientada assim para as necessidades do país

mais do que para o sistema internacional;

3. que nao se rejeite a priori as tradicóes culturais, mas que se procure

aproveitá-Ias;

4. que se respeite o ponto de vista ecológico;

5. que seja auto-sustentável, respeitando, sempre que possível, os recursos

locais, sejam eles naturais, técnicos ou humanos;

6. que seja um desenvolvimento participante, jamais tecnocrático, abrindo­se a participacáo das populacóes em todas as etapas de planejamento,execucáo e avaliacáo.'!

Em minha leitura do texto de Stavenhagen, entre os vários comentá­rios que poderiam ser feitos, gostaria de destacar apenas o que se refere aum aspecto do conceito de etnodesenvolvimento, que, embora nao explí­cito, parece-me constituir um de seus pontos mais sólidos: refiro-me aquestao ética. Em outras oportunidades.I' pude elaborar essa questáo de:

modo mais extenso; urna elaboracáo a qual nao é necessário retornar por

ser dispensável aargumentacáo a seguir. Diria, entretanto, que a eticidadeimplícita no conceito de etnodesenvolvimento reporta-se especificamenteao sexto considerandum, que enfatiza o caráter participante das populacóesalvo de programas de desenvolvimento. Isso porque entendo essa partici­pacáo como condicáo mínima para a rnanifestacáo de urna "comunidadede comunicacáo e de argumenta¡;:ao",14 criada no processo de "planeja-

1;

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Roberto Cardoso de Oliveira

conceitos esses que cumpririam, de certa forma, o papel de "categoriasdo entendimento sociológico", responsáveis por aquilo que o mesmoDurkheirnchamava de "ossatura da inteligencia"; ou, com suas própriaspalavras, "elles [as categorias] sontcomme i'ossature de l'infelligence" - confor­me escreveu em seu celebrado livro Les formes élémenfaires de la IJie religieuse.Em que pese o sabor kantiano e anacrónico desta formulacáo, ela nos

ajuda a distinguir ordens distintas de conceitos: distingo aqui, para efeitodas presentes consideracóes, o "conceito eminente" ou categoria teórica,do conceito heurístico, carregado de historicidade e instrumento da inves­tiga<,:ao empírica. Poder-se-ia dizer, assim, que os conceitos de que trata­mos aqui sao sempre deste segundo tipo, daí porque evitarmos charná-los

de categorias. Nao obstante, sao novos conceitos gerados para desernpe­nhar um papel estratégico no fazer da disciplina e no trato de novas ques­toes teóricas que surgiram na prática da disciplina na América Latina. Masaqui cabe urna reflexáo sobre a persistencia do poder - ou da hegemonia- das antropologias centrais, poi s há de se admitir que a dinámica daantropologia moderna tende a conferir, hoje em dia, a um tal status "me­tropolitano" - retomemos o problema -, um significado exclusiva­mente histórico, bem mais do que urna indiscutível realidade. A grandeexpansáo da disciplina nas diversas latitudes do planeta - por forca, éverdade, da funcáo pedagógica dessas mes mas antropologias centráis ­

praticamente está levando a antropologia a um processo de "descentrali­zacáo", ou "desrnetropolizacáo", face a sua crescente rnodernizacáo e atua-

bem diferente do que os mesmos termos significam no estrutural-funcionalismo anglo­saxáo, do mesmo modo quecJlltJlra nessa rnesma tradicáo tern um conteúdo sernánti­co diferente se a confrontarrnos com o paradigma hermenéutico, no qual os termosalernáes J:0¡lúlr e BildJlng expressam, respectivamente, e com bastante fe1icidade, essas

diferencas - d. R. Cardoso de Oliveira, Sobreopensamento antropológico, Capítulo 5, "Oque é isso que chamamos de antropologia brasileira?". Todavia, pensados esses con­ceitos no interior de paradigmas constituintes da matriz disciplinar da moderna antro­pologia social, podemos avaliar a possibilidade de eles serem mutuamente traduzíveis.A meu ver, estabelecida a lógica dessa traducáo, teríamos satisfeita urna condicáomínima para se poder falar de urna antropologia planetária. Relativamente aquestáoda caracterizacáo da antropologia que fazemos no Brasil com o recurso dessesmegaconceitos expressivos que sao da matriz disciplinar, d. o Capítulo 6 deste volu­me.

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o movímento dosconceitos na antropologia

Iizacáo em vários países da América Latina. Aqueles centros de onde sur­giram as primeiras tentativas de construcáo da antropologia - ou de suainvencáo nos finais do século passado - nao detérn mais o monopólioda disciplina e, muitas vezes, insinuarn certa rigidez em suas posturas teó­ricas que o contato com as antropologias periféricas só pode ajudar asuperar! Isso significa que o mundo académico e científico reduziu-se bas­tante, estando metrópoles e periferias - prefiro usar ambas no plural ­cada vez mais próximas. E isso corrobora afirrnacóes, que tenho feito emdiferentes ocasióes, de que as chamadas antropologias periféricas nao de­vem ser entendidas como produtoras de resultados menos confiáveis...

Mas qual o verdadeiro lugar que urna antropologia periférica, como aque fazemos na América Latina, ocupa no interior de urna matriz discipli­nar, ou, em outras palavras, em urna disciplina que possa ser validada emnível planetário? 1ndependente de classificar as antropologias que ternosclesenvolvido entre nós com o adjetivo de "periféricas" tal nao exclui quetanto essas como as centrais nao vivam a tensáo entre paradigmas, urna tensáoinerente a dinámica da matriz disciplinar. Como dissemos no início dessasconsideracóes, se nao for pela pretensáo auniversalidade, trace mareante das

antropologias centrais, será pelo caráter particularizador das antropologiasperiféricas - até mesmo daquelas situadas na Europa - e para cuja apre­ensáo a nocáo de estilo parece-me muito útil. Nao penso ser necessário

desenvolver amplamente aqui o que entendo por urna estilística da antro­pologia. Pude fazé-lo em outra ocasiáo." Todavia, diria apenas que a no­cáo de estilo remete a urna individuacáo ou especificidade da disciplina

quando esta se singulariza em outros espacos. No caso do Brasil e dol México, como se tentou mostrar, os conceitos de colonialismo interno, de

friccáo interétniea e de etnodesenvolvimento, cada um de per se, apontamadimensao política das relacóes interétnicas, o que significa dizer que mesmoque os estudos étnicos objetivem a cornpreensáo ou a explicacáo de tal ou

17 Em outubro de 1990, tive a oportunidade de organizar um semináriosobre "Estilosde antropologia", na Universidade Estadual de Carnpinas - Unicarnp, durante o qualprocurei colocar algumas idéias que contribuíssern para o encaminhamento da ques­tao, mediante a apresentacáo de um texto que charnei "Notas sobre urna estilística daantropología". O conjunto de trabalhos do Seminario foi publicado em Estilos deAn­

tropología (Roberto Cardoso de Oliveira e Guilhermo R. Ruben, eds.).

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Roberto Carnoso de OlizJeira

qual povo indígena, é o contexto nacional envolvente que se impóe comrnuita forca no horizonte da disciplina e, por via de conseqiiéncia, na cons­trucáo do ponto de vista do pesquisador. A preocupacáo, explicita ou nao,desse antropólogo está, por isso mesmo, permanentemente voltada parao lugar que ocupa, de onde fala, para as responsabilidades éticas de suacidadania, particularmente quando investiga povos e culturas indígenas si­tuados em seu país. Talvez esteja aqui, na irnposicáo quase compulsivadessa dimensáo politica, a peculiaridade de um dos estilos mais mareantesda antropologia na América Latina.

52

Capítulo 3

A ANTROPOLOGIA E A "CRISE"DOS MODELOS EXPLICATIVOS

o tema que estou me propondo a examinar aqui - ern decorrénciada temática deste Seminario' - embora me pare<;:a oportuno, dada aatualidade dos problemas que gera, é, em si mesmo, equivocado devidoao caráter polissérnico do termo "crise". Por essa razáo, cornecaria mi­nhas consideracóes sobre o conceito de crise, pelo menos na forma pelaqual tem sido utilizado na antropologia. Posteriormente, procurarei distin­guir "modelo explicativo" - que estou entendendo aqui como equivalen­te aparadigma - de teoria. Finalmente' concluirei por uma tentativa deavaliacáo da vocacáo explicativa de alguns paradigmas constitutivos de nossadisciplina frenteái5cárátercompreensivoinerente ao próprio métierdó antro­pólógo:-Minha ~xpectativaé de que possarnos, juntos, aprofundar o exa­me do tema que me foi proposto, uma vez que as idéias que apresentareinao devem ser tomadas senáo como pontos de referencia capazes deorientar o debate, porérn jamais lirnitá-lo.

*A nocáo de crise passou a participar do horizonte das ciencias sociais- e nao apenas da antropologia - nessas últimas décadas, a partir docelebrado livro de Thomas Kuhn, A estruturn das rei)o7iifik;-'á'e~iíftcas, cujaprimeira edicáo remonta ao inicio dos anos 1960. Tratava-se entáo ~e

uma crise de paradigmas, em que, na visáo de Kuhn, a história das ciencias

Conferencia realizada na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, em 19 de no­vernbro de 1993. no ambito do Seminário "Ciencia e Sociedade: A Crise dos Mode­los". Foi publicada na revista USP Estud»: .Auansados (vol. 9, n" 25.1995. pp. 213-228)e. em urna versáo castelhana moclificada, foi destinada ao Seminário "La AntropologíaLatinoamericana y la Crisis de los Modelos Explicativos", realizado em Bogotá. em1995. como conferencia de abertura, e posteriormente publicada em MangJlare: RevistadelDepartamento deAntropología da Universidad Naaonal deColombia (n"'11-12, 1996, pp.09-23). com o título "La antropología latinoamericana y la 'crisis' de los modelosexplicativos: Paracligmas y teorías".

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Roberto Cardoso de Oliveira

paradigmáticas - isto é, das hardsaences - constituía-se de urna sucessáo

de crises semente superadas pela substituicáo do paradigma, vigente na

ciencia normal, por um novo paradigma que seria o resultado de urnaespécie de revolucáo científica. Muito se escreveu em decorréncia da posi­

cáo desse historiador da ciencia, originalmente físico, que, a rigor, procura­

va renovar a história da ciencia trazendo ao debate argumentos até mes­

mo de forte apelo sociológico - como o do paradigma assentar-se em

comunidades de profissionais, idéia, aliás, já antecipada por seu compatri­

ota Charles Pierce, há pelo menos um século.

Nao vejo necessidade de evocar aqui todos os elementos que consti­

tuem o conceito kuhniano de crise e de paradigma, urna vez que sao bas­

tante conhecidos de todos nós, senáo apenas associá-los para qualificar

um tipo de crise que poderíamos chamar crise epistérnica - e que, com

relacáo a sua aplicacáo as ciencias sociais, pelo menos dois livros que eu

gostaria de assinalar possuem especial importancia para ilustrar o nível a

que chegou o debate em torno de suas idéias: trata-se do volume Paradigms& reiolsaions: Applications and appraisals if TbomasKuhnsphilosopqy if saence,de 1980, no qual vários autores discutern a utilizacáo da abordagem kuhniana

nas ciencias sociais e nas humanidades; e o pequeno livro de Barry Barnes,

T S. Kuhn and social saences, de 1982, por meio do qual o autor realiza urna

avaliacáo dos conceitos de paradigma e de ciencia normal, a par de mos­

trar seus possíveis desenvolvimentos no campo das ciencias sociais.

. Porém a antropologia, como disciplina autónoma, já com alguma an­

terioridade preocupava-se com a idéia de urna eventual crise que, segundo

alguns membros da comunidade de antropólogos, avizinhava-se diante do

previsível desaparecimento de seu objeto de estudo. Seria legítima essa preo­

cupacáo, ou sequer cabia levá-la a sério? Claude Lévi-Strauss soube levá-la a

sério para, entáo, exorcizá-la. Todos se lembram bem de seu artigo, publica­

do originalmente no Courrier de l'Unesco, em novembro de 1961, e traduzi­

do logo no ano seguinte para a Revista de Antropologia (vol. 10, nm 1-2, 1962),sob o título de "A crise moderna da antropología". Nesse curto mas interes­

sante artigo, Lévi-Strauss procura mostrar que em nenhuma hipótese o eres­

cente processo de depopulacáo das etnias indígenas do planeta, ou mesmo

a incorporacáo dos POyOS ditos primitivos em grandes civilizacóes ­sobretudo a civilizacáo européia -, podem por em risco o futuro da

disciplina, urna vez que ela nao se define por seu objeto concreto - no

54

A antropolotJa e a "aise" dosmodelos explicativos

caso, as sociedades aborígenes -, mas pelo olhar que deita sobre a ques­

tao da diferenra. Questáo essa sempre presente onde quer que identidadesétnicas se defrontem. Lévi-Strauss conclui seu artigo dizendo que

enquar1to as maneiras de ser ou de agir de certos homens forem problemas.para outros hornens, haverá lugar para urna reflexáo sobre essas diferencas,que, de forma sempre renovada, continuará a ser o domínio da antropolo­gia.2

Ou, como diria MerIeau-Ponty fazendo eco ao pensamento de Lévi­Srrauss:

A etnologia nao é urna especialidade definida por um objeto particular, associedades "primitivas"; é urna maneira de pensar, aquela que se impóe quan­do o objeto é [o] "outro", e exige que nós nos transformemos.'

o argumento elaborado por Lévi-Strauss serve para convencer-nos ­

assim imagino - de que pelo menos o propalado desaparecimento daqueles

que tém sido o foco privilegiado da pesquisa antropológica - os POyOSaborígenes - nao pode ser responsável por um eventual desaparecimen­

to da disciplina por falta de objeto... Contudo, a maior importancia do

argumento está na transposicáo do problema do plano dos objetos concretosao plano das modalidades de ambecimento de qualquer objeto empiricamente

observáveI. Passa-se, assim, ao plano epistemológico - loms , aliás, ondesei:ravam atualmente as polémicas mais interessantes e, certamente, mais pro­

veitosas para o próprio desenvolvimento de nossa disciplina. Gostaria, aqui,

de circunscrever a problemática da crise da antropologia, ou de como ela

é percebida nas comunidades de profissionais da disciplina, nao mais nos

centros metropolitanos - onde a antropologia teve a sua origem e se disse­minou para a periferia -, mas para países onde foi obrigada a adaptar-se

a novas condicóes de existencia, tais como a precariedade institucional ­

falta de bibliotecas, ausencia de tradicáo universitária, limitacáo orcarnen-

2 Claude Lévi-Strauss, ''A crise moderna da antropología", Revista deAntropologia , op.cit, p. 26.

3 Maurice Merleau-Ponty, "De Matlss aClaude Lé/lioStrauss"; inSignes, Gallimard, 1960, p.150. O artigo entre colchetes é meu e exprime minha interpretacáo do texto de Merleau­Ponty.

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¡

Roberto Carnoso de Oliveira

tária etc. etc. -, em que pese esses países terem servido - este é o termo- de campo de pesquisa para antropólogos provenientes daqueles cen­tros. Essa adaptacáo, a que tenho chamada de "estilo", oferece areflexáo

algo que considero muito importante para o progresso da disciplina entrenós, do Brasil e dos países congéneres, Trata-se da investigacáo compara­

da entre antropologias periféricas, de maneira a propiciar o alargamentodo horizonte da disciplina nas áreas nao metropolitanas, gra<;:as aapreen­

sao de seus diferentes estilos, a par de proporcionar a oportunidade de

um saudável intercambio entre suas respectivas comunidades de profis­sionais. Limitar-me-ei aqui a mencionar pelo menos um país congénere, o

México, onde a quesráo da crise nao deixou de ter sua repercussáo, e que

nos servirá de parámetro por meio do qual sempre poderemos elucidar,pelo exercício da cornparacáo, aspectos importantes da antropologia que

se faz no Brasil e em outros países da América Latina.O colega Esteban Krotz, antropólogo da Universidade Autónoma de

Yucatan, organizou um simpósio na Cidade do México, em 1990, devota­do a urna reflexáo sobre "o conceito de crise na historiografia das ciencias

antropológicas", com cerca de urna dezena de participantes. Cinco apre­

sentaram textos que foram finalmente publicados em um opúsculo de .pouco menos de 50 páginas.4 Todavia, a pequena extensáo da coletánea

nao desmerece a qualidade dos trabalhos postes a disposicáo do leitor,que indicam um conjunto de tópicos que mereceram a atencáo dos antro­

pólogos mexicanos e que, em sua maioria, nao nos sao estranhos. Vamos

nos valer aqui de pelo menos urna das contribuicóes do seminario, preci­samente a de seu organizador, urna vez que nos oferece um quadro inte­ressante das diferentes percepcóes da crise no espa<;:o ocupado pela disci­

plina no México. Com seu texto, "Crise da antropologia e dos antropólo­gos", Krotz procura estabelecer, portanto, urna distincáo entre os diferen­

tes sentidos que essa crise pode ter em seu país. Mostra que vários tipos de

crise podem ser identificadas no México. Entre os atores intelectuais quefalam da crise mexicana, distingue, inicialmente, tres que, em sua opiniáo, nao .

estariarn suficientemente familiarizados com a disciplina para sobre ela se

manifestarem: sao literatos, como Octavio Paz; colegas de outras discipli-

A antropologia ea "crise" dos modelos explicalilJos

nas, portanto sem forrnacáo em antropologia; e funcionários de algumamaneira ligados aárea de aplicacáo da disciplina e que, no México - sabe­

mos nós - desempenham papel significativo no financiamento do traba­lho antropológico, certamente em escala muito mais avancada do que acorre

nos demais países latino-americanos. Com efeito, o Estado ocupa umespaco extraordinariamente amplo na sociedade mexicana e pouca coisa se

faz sem seu apoio. Há, ainda, aqueles que possuem maior familiaridade com

a antropologia, mas cuja posicáo pessoal critica contamina sua avaliacáo da

disciplina: em regra, Sao pessoas envolvidas em seus trabalhos de tese, cujaforrnacáo, nem sempre adequada, gera frustracáo e ansiedade bastante per­

turbadora do juízo crítico. Há, finalmente, os profissionais da disciplina,entre os quais identifica trés tipos de atores, cujas avaliacóes sobre a antro­

pologia devem, a meu ver, ser levadas a sério. Krotz assirn os descreve:

a) quando se esgotam, após intenso esforco, debates sem perspectiva desolucáo, situacáo que levaao esgotamento os próprios antropólogos (exem­plo: a discussño sobre o carnpesinato durante os anos 1970); b) quando sesentem desarmados frente a problemas sociais e culturais relativamente no­vos e/ou politicamente relevantes (exemplo: os novos movimentos sociais);c) quando verificam na literatura especializadaestrangeira elou em institui­cóes nacionais fenómenos .que interpretados posteriormente como rupturasde geracáo ou como meros modismos, parecem tornar tao profundamenteobsoletos sucessos científicos recentes que póern ern dúvida o potencial dadisciplina por inreira."

O ponto de vista esbocado por Krotz - amedida que leva em contaos distintos atores sociais que habitam o campo da antropologia, seja em

seu centro, seja em suas proximidades - permite distinguir igualment~

urna certa variedade de representacóes dessa mesma crise, ampliando, as­sim, o próprio horizonte da análise de um fenómeno bem mais complexo

do que poderia parecer inicialmente. Apesar da realidade mexicana ser

substancialmente diferente da brasileira, ainda que as antropologias quevigoram nos dais países tenham indiscutíveis similaridades, o certo é que

esse quadro elaborado por Krotz lanca urna boa luz sobre consideracóes

que sempre podemos fazer a propósito da celebrada crise que, para alguns,

1I.

4 Cf. Esteban K.rotz (org.),El concepto "crisis" enla histon'ogrqfia delasciencias antropológicas.

56

5 EstebanKrotz, "Crise da antropología e dosantropólogos", p. 11.

57

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Roberto Cerdoso de Oliveiru

sonda a disciplina entre nós. Entretanto, ao reconhecer a importancia dadistincáo feita por Krotz em relacáo a comunidade mexicana de antropó­logos em sua percepcáo da crise da disciplina, cabe reconhecer igualmenteque nao fica claro se a crise está situada em um eventual esgotamento doparadigma, seja ele qual for, ou se estamos frente a urna inadequacáo ou aurna superacáo de teorias relativas as realidades ou aos problemas investi­gados. Essa é urna questáo que gostaria de examinar agora, especificamen­

te em relacáo ao exercício da antropologia em nosso país.

*Tenho para mim que muito do que se diz no Brasil sobre a crise naantropologia segue de perto o que Krotz observou no México. Os atoresintelectuais dívidem-se claramente entre os que estariam relativamente fa­miliarizados com a disciplina, sem jamais te-la praticado - entre essesestariam colegas de outras disciplinas das ciencias sociais ou das humani­dades, interessados pela antropologia -, e aqueles que nela militam pro­fissionalmente. Nao possuo nenhuma evidencia de que esses últimos te­nham se impressionado com qualquer arneaca de crise. Se, eventualmente,um ou outro membro da comunidade preocupou-se com a questáo, issoseria um caso isolado, mesmo porque aqueles interessados em discutir adisciplina em nível epistemológico, isto é, procurando dar conta dos para­digmas que a compóern - ou que compuseram a antropologia ao longode sua história -, praticamente térn considerado a nocáo de crise comourna idéia pouco fecunda para a apreensáo da disciplina, pelo menos em sua

atualidade. Siruo-me entre esses últimos - e meus trabalhos, particular­mente os que estáo enfeixados em meu livro Sobre opensamento- antropoló­gico -, sempre procuraram conduzir urna reflexáo sobre a disciplina abs­tendo-se de qualquer énfase maior em suas eventuais crises, passadas oupresentes, simplesmente - e aqui está o argumento - porque mesmo asturbulencias que a antropología sofreu em passado recente nao foram demolde a contaminá-Ia no nível epistémico, Para ilustrar sucintamente isso,

lembraria pelo menos duas crises que tiveram lugar no país: urna que tocouprofundamente a comunidade universitária - refiro-me as conseqüéncias do

regime autoritário no interior do corpo docente de inúmeras universidades-, e outra especificamente prejudicial a etnologia indígena, a transforma­c;ao da Funai no maior obstáculo a pesquisa etnográfica, dificultando, quan­do nao impedindo, o exercício do trabalho de campo junto as populacóes

58

A ufltrupologia e a "crise" dos modelos explicatÍl)os

indígenas por ela tuteladas, a muitos jovens etnólogos. Apesar disso, nao sepode dizer que a antropologia entrou em qualquer tipo de crise disciplinarou metadisciplinar.

Entendo, portante, que aquilo que poderíamos chamar crise - volto adizer, no plano epistemológico, e nao na estrutura da organizacáo do tra­balho científico, na qual se incluiriam as crises institucionais - só se obser­varia nos termos em que Kuhn a coloca, a saber, quando um paradigmasucede ao outro no processo histórico de transforrnacáo da ciencia; ou,melhor, das ciencias duras, ou bardsaences. Dispenso-me de um aprofunda­mento específico sobre o pensamento kuhniano a esse respeito, pois suasidéias térn sido bastante divulgadas mesmo no meio das srft saences, como onosso. Diría apenas - e aqui reproduzo idéias que venho repisando já háalgum tempo - que a antropología moderna está constituida por um elencode paradigmas simultáneos, ou, para usar urna expressáo de George StockingJr., trata-se de um "equilíbrio poli-paradigmático"." Todavia, menos doque tomar em conta a antropologia como um todo, isto é, os seus diferen­tes ramos, tenho focalizado a antropologia social - ou mesmo cultural,em sua acepcáo moderna -, o que confere as minhas preocupacóes umteor bastante diferente daquelas questionadas por esse competente histori­ador da antropologia. Cinjo-me, assim - como térn demonstrado meusescritos desde 1984, quando ministrei a conferencia da XIV Reuniáo Bra­

sileira de Antropologia -, a procurar equacionar os paradigmas que corn­póern, em sua justaposicáo e simultaneidade, a "matriz disciplinar" da

antropologia.' Voltarei ao tema mais adiante para dar conta de como pen­so hoje essa questáo, agora relacionada com a chamada crise da disciplina.

Neste momento, creio que será oportuno ilustrarmos com um borhexemplo a relacáo que tem lugar no interior da disciplina em que paradig­mas e teorias convivem em urna interacáo continua. Penso que podemosexemplificar essa relacáo entre paradigmas e teorias na instancia do paren-

6 Cf. George W.Stocking]r., ''f\nthropology in crisis?A view from berween generations",in Crisisin aflthrupology. Viewfivm SpriflgH1J~ 1980, p. 419.

7 A conferencia ern gue a matriz disciplinar da antropología foi esbocada pela primeiravez, intitulei "Ternpo e tradicáo: Interpretando a antropología", tendo sido publicadanoAfluárioAfltropológico-84, posteriormente inserida em Sobre oPensamento Aruropologico.

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Roberto Cerdoso de Dfiveira

tesco, certamente a mais clássica que podemos identificar na antropologia,responsável mesmo pelo amadurecimento da disciplina ao longo de todoum século. Qualquer professor de antropologia sabe que as teorias deparentesco desempenharam historicamente um papel fundamental na for­macáo de sua disciplina, posto que foi precisamente nessa instancia empírica

que logrou seus sucessos mais sólidos, seja como núcleo de muitas das me­lhores monografias, que se tornaram exemplares para a sua consolidacáo,seja como urna das instancias mais susceptível de formalizacáo, portanto

capaz de proporcionar a antropologia abordagens de caráter nomológi­co. Seja como for, as teorias de parentesco - muitas vezes tao injustamentedesprezadas hoje em dia no ensino da disciplina - sao parte indispensável na .

forrnacáo do antropólogo, pois, por rneio delas, o estudante sempre con­seguirá um acesso bem mais seguro no domínio da antropologia,"

Vejamos o que essas teorias expóern sobre a natureza de nossa discipli­

na. Sabemos que houve tempo em que se conflitavam duas teorias deparentesco: urna, denominada de descendinaa, de inspiracáo anglo-saxonica,proporcionadora de relacóes perpendiculares, facilmente demonstráveisem um diagrama de parentesco; outra, de alianfa, tributária da tradicáo fran­cesa - de Mauss a Lévi-Strauss -, baseada na idéia de reciprocidade emarcada por relacóes expressas horizontalmente em nível de um diagrama

no qual o matrimonio constitui nódulos analiticamente privilegiados. Teo­rias tao diferenciadas em sua concepcáo, em lugar de levarem a disciplinaa crise, foram, ao contrário, responsáveis por urna dinarnizacáo da antro­

pologia de tal magnitude a ponto de se tornarem complementares, articulan­do-se, portanto, entre si, como mostram diferentes autores, como LouisDumont - especialmente em seu livro IntrodHction ti deuxthéories d'anthropohgie

8 Considere-se, por exernplo, que as teorías de redes - nelworkf- que há décadas atrásforam desenvolvidas pela Escala de Manchester, podem ser consideradas como urnatransposicáo dos instrumentos de análise de relacóes primarias, interpessoais, de so­ciedades ditas simples, para sociedades complexas, particularmente as urbanizadas.Ambas as teorias - de parentesco e de redes - cobrem instancias praticamenteequivalentes do ponto de vista teórico-metodológico. No primeiro capítulo de meulivro Enigmas esofufoes. valí-me da oposicáo complementar das teorias de descendenciae de alianca para mostrar como se dá a articulacáo entre teorias a despeito da diferencaexistente entre seus respectivos paradigmas.

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A antropofogia e a "crise" dos n¡ode/os explicatil'Os

sociale, de 1971 - e Ira R. Buchler e Henry A. Selby - com o livro Kinshipnndsocial organiZfltion: An introduaion to tbeory andmetbod, de 1968. Sao auto­res que, apesar de se situarem em tradicóes diferentes e específicas ­Dumont, no estruturalismo francés; Buchler e Selby, no empirismo anglo­saxáo -, chegaram praticamente as mesmas conclusóes no que diz res­peito a articulacáo entre teorias respectivamente originárias de paradigmasque, historicamente, sempre estiveram em oposicáo. A "crise" que even­tualmente essas teorias poderiam ter causado foi rapidamente sanada porurna descoberta óbvia de que nenhuma delas daria conta sozinha da reali­dade do parentesco e que somente com a articulacáo complementar deambas a disciplina poderia finalmente deslindar a complexidade do fenó­meno.

Isso nos ensina que as crises em nível teórico sao sa~áveis ou pela elimi­nacáo de urna por outra, ou pela articulacáo das mes mas, como no exem­plo mencionado, ou, ainda, pela convivencia pacífica de teorias contrárias,porém náo-contraditórias, das quais, aliás, a antropologia conhece inúme­

ros casos. Essas últimas, gra<;:as as quais a antropologia conseguiu consoli­dar-se como disciplina respeitável no reino das ciencias soeiais, sao majo­ritariamente do tipo a que Merton chamou de middle range tbeones - ou"teorias de médio alcance" ~ e que nao sao outra coisa para nós do quedescricóes analíticas, com pretensóes explicativas, contidas nas monogra­

fias produzidas sobre tal ou qual sociedade ou cultura. Apesar de muitasdelas ou todas serem passíveis de restricóes e de críticas, particularmentequando constroem modelos diferentes sobre urna mesma sociedade ecultura, isso nao significa que essas teorias nao convivam de algum modocompulsoriamente, urna vez que urna nao dispóe de forca suficiente ...!....de argumentos - para eliminar a outra. A literatura etnológica está repletade exemplos dessa ordern, Sern nenhuma ironia, poderíamos chamar issode o afável convívio académico entre monografias.

Essas teorias, a diferenca dos paradigmas - que mais seriam meta­teorias - constituem interpretacóes de realidades concretas. Seja focalizan­do sistemas sócio-culturais globais, como as monografias clássicas concernen­

tes a tal ou qual POyO; seja procurando descrever e analisar sistemas parciais,tais como o parentesco, a mitologia, a religiáo etc etc; seja, ainda, porintermédio da investigacáo intensiva de um determinado tema ou proble­

ma, buscando dar conta, holísticamente, de um POYO ou de um grupo

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Roberto Cardoso de Oliveira

social específico - como nas modernas monografias etnológicas." A qua­se totalidade da producáo antropológica está orientada - queiram ounao os seus autores - para a construcáo de "teorías de médio alcance"contidas em monografias competentemente elaboradas. As "grandes teo­rias" sao raras, poi s ultrapassam instancias empíricas específicas para atin­girem níveis de generalidade planetária. Prefiro mencionar, nesse sentido,apenas urna, ralvez a mais conhecida hoje em dia, aquela construída porLévi-Strauss para dar conta do parentesco: seu livro clássico Les structuresélémentaires de laparenté, publicado em 1949, pode ser tomado como urnaboa ilustracáo de urna grande teoria.

*Vamos agora nos deter um pouco sobre a nocáo de paradigma e desua utilidade na antropologia. Procurarei ser bastante sucinto, pois tenhotratado disso com bastante freqíiéncia. Contudo, há de se dizer que meuconceito de paradigma origina-se em sua versáo kuhniana, em que as idéiasde "quebra-cabeca" - ou puZX/e solving - e de "exemplaridade" sao co­extensivas da concepcáo de paradigma: a primeira denotando o caráter

fechado e circular dos problemas e de suas solucóes, ambos devidamenteprevistos pelo paradigma; a segunda, indicando a natureza modelar dessassolucóes enquanto inscritas - no caso de nossa disciplina - em monogra­fias exempiares. O caráter exemplar dessas monografias significa que" as teo­rias de tal ou qual sistema sócio-cultural amparam-se, em nível meta-teóri­co, em paradigmas facilmente identificáveis mediante a investigacáo epis­temológica. A rigor, essas monografias exemplares expressam, em grauvariável, seus pressupostos paradigmáticos. Mesmo pára Kuhn, que estámais familiarizado com paradigmas constituídos por regras formalizadas,a nocáo de exemplaridade é naturalmente aceita ao se tratar de ciencias

sociais ou humanas, pouco afeitas a forrnalizacáo. Fala ainda em "matrizdisciplinar" como equivalente a paradigma. No meu entender, entretanto,cabe distingui-las como duas diferentes nocóes.

A antropofagia e ti "cnse" dos modelos e.><j>Ii(tltivos

Diria que se matriz disciplinar pode ser sinónimo de paradigma, en­quanto materializa o poder matricial de um determinado conjunto de re­gras - o que faz sentido em ciencias marcadas por sucessáo de paradig­mas ou matrizes -, já ao se tratar de conjunto de paradigmas que se dáoem simultaneidade - e nao em sucessáo -, a idéia de matriz disciplinartorna-se bastante útil, por permitir articular tais paradigmas em uma únicaestrutura, inclusiva, capaz de absorvé-los sem anular qualquer um deles­o que ocorre, tipicamente, na antropologia, como tenho procurado de­monstrar em outras oportunidades. lO Por isso, nao pretendo agora mos­trar graficamente o que chamo de matriz disciplinar da antropologia ­para isso, é suficiente observar o gráfico da Figura 1 do Capítulo 7. Basta­ría indicar que tal matriz é constituida por quatro paradigmas básicos,historicamente demonstráveis:1. o racionalista e estruturalista, na acepcáo lévi-straussiana, gerado no inte­rior da tradicáo intelectualista européia continental por intermédio da Es­cola Francesa de Sociologia;2. o estruturaljuncionalista, cuja origem deu-se na tradicáo empirista igual­mente européia, porém insular, na Escola Británica de Antropologia So­

cial;3. o culturalista, igualmente abrigado na tradicáo empirista anglo-saxónica,

mas surgido na Escola Histórico-Cultural Norte-Americana; e, por fim,4. o hermenéutico, vinculado a tradicáo intelectualista européia continental,

reavivado, todavia, pelo "movimento interpretativista" norte-americano,em urna tentativa de recuperacáo tardia de urna perspectiva filosófica do

século XIX.Cabe lembrar que os tres primeiros paradigmas sao igualmente pro- ,;

duto desse mesmo século, mas como subproduto da Ilustracáo; o quartoparadigma constirui-se como reacáo a razáo iluminista. A essa reacáo é que

se tern aplicado o termo pós-moderno, como uma espécie de oposicáo achamada modernidade, inaugurada no Iluminismo, período de um quase re­ligioso culto arazáo, O pequeno livro do pensador francés jean-Francois

Lyotard, La conditionpostmoderne, é bastante esclarecedor nesse sentido. Parajustificar o tratamento tao sintético e incompleto que estou dando aqui a

9 Só para ilustrar sobre o que enrendo a respeito de urna monografia moderna, cons­truída por meio de urna problemática central, menciono o livro de Vieror Turner,

Scbism and(ontinlliry in an.AfricanSodery.

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10 Cf., por exemplo, o artigo mencionado na nora 7 do presente Capítulo.

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Roberto Cardoso de Olit)eira

questáo da matriz disciplinar, gostaria de lembrar que tive a oportunidade

de desenvolver extensamente urna argumentacáo sobre toda essa temática

nos quatro primeiros capítulos do livro Sobre opensamento antropológico, jámencionado. Consistentes ou nao, os argumentos estáo a disposi<,:ao doleitor interessado em aprofundar a questáo,

O certo é que nem os tres primeiros paradigmas, inspirados na epistemenaturalista - como o de ver a antropologia como um tipo de ciencia

natural -, nem o quarto paradigma, com sua crítica radical ao escoponaturalista da disciplina, levaram - ou estáo levando - a antropologia acrise. Ver com olhos críticos os "paradigmas da ordem" - como já as­

sim denominei os tres primeiros - nao significa criar urna crise na antro­

pologia, mesmo ao se considerar a posicáo dos mais fanáticos pós-rno­

demos, como Stephen Tyler, por exemplo. Com a introducáo pelo para­

digma hermeneutico de alguma desordem na matriz disciplinar _ consti­

tuída, originalmente, pelos paradigmas orientados pelas ciencias naturais

-, o que se viu foi urna sorte de rejuvenescimento da disciplina, e issogracas ao aumento da tensáo entre os paradigmas circunscritos na matriz:se já havia essa tensáo entre os primeiros paradigmas, com a incIusao do

último ela aumentou em escala, dinamizando extraordinariamente a antro­

pología de nossos dias. Portanto, nunca é demais insistir que a hermenéurics

nao veio para erradicar os paradigmas, hoje chamados tradicionais, mas

para conviver junto a eles, tensamente, constituindo urna matriz disciplinar

efetivamente viva e produtiva. Tenho me valido de urna expressáo de Paul

Ricoeur, IagreJfe, isto é, o enxerto, para exprimir o papel que a hermeneuticadesempenha na matriz disciplinar. Um enxerto: .

a. de modera<,:ao na autoridade do autor - com a eliminacáo de qualquerdose de autoritarismo;

b. de maior atencáo na elaboracáo da escrita - com a obrigatória tema­tizacáo do processo de textualizacáo das observacóes etnográficas;

c. de preocupa<,:ao com o momento histórico do próprio encontro etno­gráfico - com a conseqüente apreensáo da historicidade em que se véern .

envolvidos sujeito cognoscente e objeto cognoscível; e, finalmente, porémnao em último lugar,

d. um enxerto de compreensao sobre os limites da razáo científica, ou dacientificidade, da própria disciplina - o que nao quer dizer abrir máo da

razáo e de suas possibilidades de explicacáo; para ser mais claro, quero

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A antropologia e a "crise" dos modelos explicativoJ

dizer que continuo acreditando na razáo e, para fazer eco as palavras de

Habermas, diria que a modernidade ainda nao se esgotou para cornecar­

mos a levar muito a sério essa pós-modernidade.

Vamos examinar de maneira tópica - o que significa dizer de modo

nao extensivo - cada um des ses novos elementos que, gra<,:as aperspec­tiva hermenéutica, instalaram-se no interior da matriz disciplinar como

que a alimentá-la com os melhores nutrientes. É assim que, ao se falar de

autor(idade), estamos problematizando algo que nem sempre é levadoern conta pelo pesquisador, podendo, portanto, ser facilmente transfor­

mado em autoritarismo, urna vez que o poder- lembremo-nos de Foucault

- sempre presente e do lado da sociedade a que pertence o pesquisador,

raramente é por ele próprio questionado. Tomemos apenas um aspecto

desse encontro etnográfico, que me parece emblemático por sua natureza

crítica: trata-se da relacáo pesquisador - informante, em que o poder do

primeiro contamina de resto toda a entrevista. Se nao levada em conta

essa situacáo, que condiciona o encontro etnográfico, sabemos hoje que

nunca será um bom comeco para a investigacáo antropológica. A condi­cáo de "estar lá" - o being tbere de que nos fala Geertz" - é, por diversas

razóes, das quais essa é apenas urna, essencialmente crítica. O "estar lá"

geni, poi outro lado, urna autonomía que, a rigor, é ilusória. "Eu estive lá,

portante sou testemunha do que vi e ouvi", nao passa de urna frase plena

de significados no mínimo dúbios! Porque sob a intencáo saudável do

pesquisador responsabilizar-se pelo fato que descreve e interpreta - ou

descreyendo interpreta -, esconde-se urna segunda inrencáo - é verda­

de que nem sempre consciente - de dar legitimidade a seu discurso, qu~­

se que dogmatizando-o ao leitor: e isso vale tanto para os seus pares comopara o leitor comum. O "estar lá" tende a nao admitir dúvidas... Eis o seu

caráter perverso.

11 Tanto o being tbere como o being bere sao expressóes bem apropriadas, utilizadas porClifford Geertz em seu interessante l17ork.r andIiues: Tbeanthropologist asautbor. A biblio­grafia a respeito desse movimento que se chama "antropologia interpretativa" reúnealgumas dezenas de bons artigos publicados em revistas especializadas estrangeiras.Entre as revistas nacionais, destaco o .Antrário Antropológico (n"' 83, 84, 85, 86 e 88),pioneiro em colocar em discussáo no Brasil a questáo hermenéutica.

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Roberto Cardoso de Oliueira

Porém, isso nao quer dizer que o "estar aqui" - being bere - naocarregue em si mesmo suas contradicóes. Geertz mostra o papel do am­biente universitário, desde o prosaico corredor, onde as palavras sao mui­tas vezes "jogadas fora", até o gabinete de trabalho do professor, passan­do pelas bibliotecas, onde, aliás, fazemos urna segunda pesquisa: a libraryfieldlvork. Nao discutirei aqui todos os aspectos assinalados por Geertz,sempre bastante arguto, em que pese sua inescapável tendencia ao precio­sismo verbal... Gostaria de limitar-me exclusivamente a apontar a instanciado "estar aqui", gozando as condicóes do trabalho de gabinete, comosendo em si mesmas problemáticas, urna vez que, necessariamente, con­duzem-nos adinámica dos "jogos de linguagem", próprios de nossa dis­

ciplina e das disciplinas congéneres, de cuja atitude crítica, ou melhor,

autocrítica, nao podemos furtar-nos,O cerro égue tanto o estar no campo como o estar no gabinete fazem

parte de um mesmo processo de busca do conhecimento. Nesse sentido,a separacáo nunca é tao nítida como parece pretender Geertz, porquesempre "levamos o gabinete" conosco quando realizamos a pesquisa decampo, bem como "trazemos o campo" conosco quando voltamos aonosso lugar de trabalho. Entendo que essa separacáo, ainda que real emtermos de topos, nao determina nenhum processo esquizofrénico na per­sonalidade do pesquisador - autor. Lernbro-me, quando ainda fazia etno­logía indígena, quantas vezes em meu diário de campo iniciava verdadei­ros ensaios simultaneamente a etnografia realizada. Geertz, no entanto,

está certo quando - ao separar as duas instancias que, bem articuladas,

criam o produto antropológico - acentua esse processo como ?uas fa­ces de urna mesma moeda.

Contudo, a maior importancia que observo nesses novos elementosque passam a ser absorvidos pela matriz disciplinar - pelo menos assimespero - é o da historicidade, ou, ern outras palavras, da conscienciahistórica que passa a habitar o horizonte do pesquisador. Escusado dizerque é a obra de Gadamer, Verdade emétodo, cuja primeira edicáo alemá é de1960, a grande responsável pela renovacáo do pensamento hermenéuticoque as ciencias humanas e, particularmente, a antropologia, haveriam deincorporar, naturalmente de forma variáve!. No caso específico de nossadisciplina, o que se verificou foi o recrudeseimento de certos componen­tes habituais do fazer antropológico, mas que, todavia, nao chegavam a ser

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A antropofagia e a "irise" dosmodelos expficatil'Os

tematizados na órbita da disciplina e, por esse motivo, nao ganhavam odesenvolvimento que mereciam. Refiro-rne, de modo todo especial, ao

¡-aprofundamento de urna maior reflexáo a respeito da relacáo sujeito ­/ objeto e de seu mútuo condicionamento histórico. Essa reflexáo, entretan­e to, está longe de se inspirar em um historicismo de origem diltheyana, mas

apenas no segundo Dilthey, o hermeneuta. Recuperada essa hermenéutica

por Gadamer - passando, naturalmente, por Heidegger, seu mestre -,dá-se um tipo muito especial de articulacáo epistérnica: a que envolve a

historia e a linguagem, como o meio, ou o ambiente, em que se edifica aesfera da intersuijetÍlJidade. Em poucas palavras, e em urna sirnplificacáo

que espero nao prejudicar a apreensáo do que pretendo passar ao leitor,

diria que história, linguagem e intersubjetividade formam urna espécie detripé sobre o qual se assentam as bases de urna reflexáo sobre questóes

tradicionais na antropología, presentes na obra de nossos clássicos comoMalinowski, Boas ou Evans-Pritchard. Talvez a questáo mais central, porser justamente a questáo nuclear na constituicáo do conhecimento,-seja a

da relacáo sujeito cognoscente - objeto cognoscível, a que já me referi.De que elementos a antropologia se enriquece com a ternatizacáo de

questóes como a da relacáo entre observador e observado, pesquisador e

pesquisado, antropólogo e informante? Primeiro, pode-se dizer, que elaganha ao se interrogar sobre a especificidade de urna relacáo em que asduas partes - observador e observado - estáo igualmente situadas emum mesmo momento histórico, o que significa que o sujeito cognoscente

na~ estáimutavelmente engessado em urna posicáo intocável pelo objetocognoscível: ele, tanto como o outro, está inserido na dinámica do encontro

etnogréifico.12 Em termos epistemológicos, diria, em primeiro lugar, que a~

objetividade concebida pelo positivismo - em que o pesquisador dariatodas as cartas - é puramente ilusória. Segundo, e ern decorréncia disso,a relacáo que se impóe entre as partes envolvidas no processo cognitivo,

de monológica passa a ser dialógica, alterando a própria prática da chamadaentrevista com a transforrnacáo do pesquisador e de seu informante eminterlocutores. Isso significa que urna relacáo caracteristicamente marcada

12 Cf. o Capítulo 1 deste volume, no qual esse tema é especialmente examinado do ponto

de vista da "entrevista".

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Roberto Cardos» de Oliveira

como urna via de máo única, passa a ser de máo dupla, conseqüéncia do

diálogo tomado agora como essencial na busca - nem sempre e dificil­mente alcans;ada, é verdade - de simetria nas relacóes entre pesquisador

e pesquisado.Nao faz rnuito tempo, o .Anuário Al1tropológico-88 publicou um interes­

sante artigo de Vincent Crapanzano intitulado "Diálogo", no qual o autorvinculado ao movimento interpretativista norte-americano procura discu­tir esse tipo de apreensáo gadameriana da realidade examinando seu lugarno interior da própria experiencia antropológica. Se na filosofia herme­néutica de Gadamer, o diálogo e, corn ele, a cornpreensáo - ou Verstehen-, sao constitutivos do homern - daí ser ela urna hermenéutica ontológica-, para a antropologia, a relacáo dialógica conduz as partes envolvidas a

, urna compreensao dupla - o que significa que o outro é igualmente esti­.. mulado a nos compreender... Isso ocorre gras;as aampliacáo do próprio

'- horizonte da pesquisa, incorporando, em alguma escala, o horizonte dooutro. Trata-se da conhecida "fusáo de horizontes" de que falam os herme­

neutas. Contudo, gostaria de enfatizar que em nenhum momento o antropó­logo deve abdicar de um posicionamento próprio no interior de seu horizon­te, isto é, no ámbito de sua disciplina, ela própria urna "cultura científica" deorigem ocidental. Portante, nessa fusáo de horizontes, o pesquisador ape­nas abre espas;o aperspectiva do outro, sem abdicar da sua, urna vez queo seu esforco será sempre o de traduzir o discurso do outro nos termosdo próprio discurso de sua disciplina. Há urna sorte de transferencia desentido de um horizonte para outro. Apesar da "suspeicáo da razáo" le­vantada pela hermenéutica gadameriana," nem por isso essa razáo estariafadada i obsolescencia... Apenas estaríamos levando em conta seu s limites.

*E aqui chegamos a última parte destas consideracóes, momento emque precisamente vamos procurar mostrar como a compreensiio hermenéuticae a explicafao nomológica podem ser articuladas, antes de se oporem irrerne­diavelmente - como parecem querer os mais impenitentes pós-moder­pos. Corn toda a argumentacáo anterior, espero ter deixado claro ao menos

13 Recomendo a leiturado pequeno ensaio de Gadamer, "The hermeneutics of suspicion",in Hemeneutics: QlleJtionJ andprospectJ, G. Shapiro eA. Sica (orgs.).

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A antropologia e a "atse"dOJ modelos explicatit'OJ

minha posicáo de nao reconhecer qualquer crise na antropologia, muitomenos urna que se poderia denominar de epistemológica. Isso só seria

possível se o p~radig;ma hermenéutico tivesse vindo - ainda que tardia­mente - para eliminar os paradigmas da ordem, comprometidos com atarefa de explicar a cultura, a sociedade, enfim, o homem, em termosnomológicos, o que significa "naturalizando-os", na maioria das vezes; ese digo na maioria das vezes, e nao sempre, é que pelo menos no desdo­bramento levi-straussiano do paradigma racionalista - desdobramento,portanto, nao mais naturalizante, ainda que nomológico, e, por conseguin­te, igualme-nte da ordem -, o parámetro nao é mais a ciencia natural, masa lingüística, urna ciencia humana. Assim, em lugar de eliminar todos osparadigmas da ordem, observamos que a hermenéutica veio travar com

eles urna batalha nao de morte, mas de vida, revivificando-os e introdu­zindo na matriz disciplinar urna tensáo extremamente saudável, em nada

parecida com urna crise.A essa altura, gostaria de recorrer a dois autores filósofos, cujas refle­

xóes sobre a compreensáo e a explicacáo abrem boas pistas para o traba­

lho do antropólogo. Sao eles Karl-Otto Apel e Paul Ricoeur. Ambos pro­curam mostrar, cada um a seu modo, como o explicar e o compreenderpodem estar associados em empreendimentos cognitivos específicos. Li­mito-me a mencionar apenas algumas idéias desses autores, ainda que demaneira muito abreviada, mas que justificam-se a título de sugestáo paraleituras mais completas e, certamente, mais avancadas, que sempre pode­ráo ser levadas avante pelo leitor interessado. Proponho dois comentários

inspirados ern um des ses dois autores.O primeiro comentário toma por referencia o ensaio "Cientística, her- ~,

menéutica e crítica das ideologias", no qual Apel desenvolve a perspectivade urna "rnediacáo dialética entre a explicaféio das ciencias sociais e a compre­ensdo das tradicóes de sentido, própria das ciencias histórico-herrnenéuti­

cas"." Embora suas reflexóes estejam orientadas substancialmente para a

14 Cf. Karl-Otto Apel, "Scientistic, hermeneutics and the critique of ideology", in T01J}ardJa tran.rformation of philoJophy, Nova York, Routledge & Kegan Paul, 1980, p.n; ou naedicáo espanhola, La transformación de lafilosofia, tomo Il, Madri, Taurus Ediciones,1985, p. 119.

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Roberto Cardoso de O!iI)eira

questáo ética - questáo essa que, dada sua relevancia, eu mesmo abordei

em outras oportunidades com base nas teses desse autor _,15 o que nos

interessa agora assinalar é que Apel, ao reconhecer a "crítica das ideolo­

gias" - a mesma de que fala Habermas -, abre urna via bastante rica

para a investigacáo em ciencias sociais e, de um modo todo especial, em

antropologia. Se as ciencias naturais empírico-analíticas, admitidas habi­

tualmente como ciencias, e as ciencias hermenéuticas do espírito, sociais o«

humanas, estáo, as prirneiras, orientadas pela infindável busca de oijetúidade- por meio da qua! se exercita a razáo instrumental, interventora na natu­

reza - e, as segundas, pela necessidade de estabelecer sentido nas acóes

observadas - isso em conseqüéncia da obrigatória comunicabilidade

intersubjetiva com vistas a acordos -, o que se conclui é que, do ponto de

vista de nossa disciplina, tanto um quanto outro tipo de ciencia nao deixa

de desempenhar uma importante funcáo no interior da matriz disciplinar.

Os paradigmas que denominei "da ordem", comprometidos com a obje­

tividade custe o que custar, podem ser considerados como guardando

urna relacáo dialética com o paradigma hermenéutico, ele próprio inexo­

ravelmente comprometido com as conexóes de sentido inerentes aesfera

da intersubjetividade. Nao tomando Apel - ou Habermas - ao pé da

letra, poderíamos dizer que mediante a crítica - e nao apenas a "crítica

das ideologias" -, que permanentemente deve habitar o espa<;o da ma­

triz disciplinar, o antropólogo estaría sempre visualizando os limites dos

diferentes paradigmas componentes da matriz) o que o levaria a transcendé­

los na prática da investigacáo.

A transcendencia dos paradigmas, proporcionada pela admissáo tácita

de que eles encontrarn-se em permanente tensáo - chame-a dialética ou

nao -, o importante é reconhecer acrescente unidade que marca a articu­

lacáo entre os paradigmas "da ordem" e o hermenéutico, a partir do

momento em que - e aqui me inspiro em Ricoeur - nao se trata de uma

15 CE. Roberto Cardoso de Oliveira, "O saber, a ética e a acáo social", in Manuscrito:&vista IntemaaonaldeFilosofia, vol. XIII, na2, out. 1990, pp.7-22; "Prácticas interétnicasy moralidad: Por un indigenismo (auto)crItico", inAménca Indígena, vol. L) n" 4, out>dez. 1990, pp. 9-25; "Antropologia e moralidade", in Rstnsta Brasileira de Ciencias 50­dais/Anpocs, ano 9, na24, 1994, pp. 110-121.

70

A antropo!ogia e a "aise" dos modelos o.plicatil'OS

questáo de método o que separa os primeiros do último paradigma. A expli­

cacao, inscrita programaticamente nos paradigmas "da ordem", nao coli­

de com a cornpreensáo constitutiva da hermenéutica. Assim nos esclarece

Ricoeur:"

Sobre o plano epistemológico, primeiramente, diria que nao há dois méto­dos, o método explicativo e o método compreensivo. Para falar estritamente,apenas a explicacáo é metódica. A cornpreensáo é sobretudo o momento naometódico que nas ciencias interpretativas se cornpóe com o momento metó­dico da explicacáo. Esse momento precede) acompanha, fecha e assim envo/ve

a explicacáo, Em compensacáo, aexplicacáo desenuotoe analíticamente a compre­ensáo. Esse elo dialético entre explicar e compreender tem por conseqúéncia

urna relacáo rnuito complexa e paradoxal entre ciencias humanas e ciencias danatureza."

Para melhor entendermos isso nos' termos de nossa disciplina, cabe

ainda algum esclarecimento sobre a questáo do sentido alcancado pela

compreensáo, Diria que enquanto a explicacáo dá conta das dimensóes do

real susceptíveis de tratarnento metódico - por métodos funcionais elou estruturais, por exemplo -, a compreensáo capta aquilo que Ricoeur

chama de "excedente de sentido" - surcroit de sens. Nao é difícil para nós

apreendermos, mesmo intuitivamente, o que significa esse excesso de senti­

do, desde que consideremos que tudo aquilo que possui a!guma significacáo

que seja irredutível a métodos, pode ser de alguma maneira recuperado pela

via da cornpreensáo, Aliás, é por aí que nos reencontramos com a distincáo

gadameriana entre "verdade" e "método", segundo a qua] toda a "verda­

de" - ou simplesmente a veracidade - nao se alcanca pelo caminho

exclusivo do método. Esse algo mais que lhe escapa nao só pode, tnas

deve ser alcancado pela via da cornpreensáo. Se tomarmos isso como um

alvo perfeitamente plausível da antropologia, estaremos admitindo que

15 Cf.Pau! Ricoeur, "Expliquer et comprendre: Sur que!ques connexions remarquab!esentre la théoriedu texte, la théoriede l'action et la théoriede l'histoire", in DII texteaI'aaion. Essais d'hmnéneutique) II. Essa referencia a Ricoeur e atemática da dialética dacornpreensáo e da explicacáo é recorrente em váriosensaios deste volume. Todavía,sugiro umaespecial atencáo ao Capítulo 4) referente aolugar"ou em lugar"do método.

16 Idem, p. 181.

71

Page 37: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Oliveira

nossa matriz disciplinar expressa com razoável fidelidade a atual pis/emedadisciplina. Quera crer que os argumentos até aqui apresentados conduzema essa assercáo, e gostaria de dizer que nao me refiro exclusivamente aantropologia que fazemos no Brasil, porém adisciplina em sua dimensáoplanetária. Todavia, nao poderia dizer o mesrno do ponto de vista deeventuais crises institucionais - que envolvem a organizacáo do trabalhocientífico ou mesmo sua própria viabilidade em países carentes de tradi­cáo académica ou, ainda, submetidos a regimes discricionários da liberda­de intelectual. Entre nós, atualmente, a ordem institucional- em que pe­sem as dificuldades da conjuntura económica - é ainda favorável a em­preendimentos de pesquisa e de ensino avancado, se nao na maioria dosdepartamentos de antropologia do país, ao menos em urna dezena deles,onde a disciplina já se consolidou ou está a ponto de consolidar-se. Comose ve, tenho uma visáo otimista sobre a antropologia que fazemos noBrasil. SÓ espero que o tempo nao me desminta.

Capítulo 4

o LUGAR - E EM LUGAR- DO MÉTODO

La méthode est nécessaire pourla recherche de la veriré,*

Dizer que a sociologia, como ciencia, surge como exercício de métodoé o que se pode depreender da leitura das Regras do método sociológico (1895)que completa o seu centenário. I E para compreendermos bem qual olugar do método na sociologia e em disciplinas afins, ou o porque de suanecessidade - para aludirmos a nossa epígrafe cartesiana -, náo pode­mos deixar de enfrentar a questáo do cientismo, particularmente em suafeicáo racionalista, que secularmente tem preocupado os cientistas sociais.Diante disso, procurarei, em primeiro lugar, nessa comemoracáo dos cemanos dessa seminal obra de Durkheim, esbocar um quadro sobre a inser­cáo da sociologia nascente na tradicáo do racionalismo francés. Em se­gundo, examinarei alguns aspectos da implantacáo da postura metódicaem uma sociologia imaginada como urna verdadeira ciencia natural dosfatos sociais. Finalmente, tentarei mostrar, dentro de urna perspectiva queentendo moderna, os limites do método, ou de como em determinadascircunstáncias da investigacáo sociológica ou ainda, mais precisamente, emsua acepcáo antropológica, o que poderia estar em seu lugar.

*A ~e-.:'tao d()~}~1ét.c>'do~e_mt're acompanhou a busca da verdade. E,

certamente nao corneca com Descartes, mas o antecipa ero séculos, se levar­mos em conta o próprio pensamento grego, com o Organon de Aristóteles,ou, ainda, já na contemporaneidade de Descartes, o Novum Organum deBacon. E, na linha empirista desse último, ainda poderíamos mencionar,

72

* Descartes, "Regle IV", ReglespOllr la direaion deI'espril.

Conferencia de abertura do Colóquio "Durebeir»: 100Anos d'As Regras doMétodo Socio­lógico", realizado no Departamento de Ciencias Sociais da Universidade Federal doParaná, em Curitiba, nos días 2 e 3 de outubro de 1995.

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Roberto Cardoso de Oliveira

entre vários outros expoentes do pensamento anglo-saxáo, o grande lógi­co da inducáo, por sua vez contemporáneo de Comte, o ingles John StuartMilI. Com seu A system iflogic ratiocinatiue andinduaite, precisamente em seulivro VI, Stuart Mili procura mostrar a possibilidade de aplicacáo da lógicainduciva, comprovadamente apta a dar conta dos fenómenos naturais,'agoraenderecada aos fenómenos sociais - ou "morais", na terminologia

da época. O mesmo teor empirista - característico de seus antecessores,como Hobbes, Locke ou Hume, e do próprio Bacon - é a marca dessaobsessáo pelo método, encontradica também na esteira de outra tradicáo:

- -a racionalista. Isso significa que a necessidade de urna investigacáo norteadapelo método nao é monopólio nem do pensamento empirista, nern doracionalista, urna vez que ambos o tomam como idéia organizadora, sem

. a qual nao se logrará impor ordem no mundo das coisas e dos conceitos:seja pela nitida separacáo cartesiana entre pensamento e extensáo, pela qual

se assegura a objetividade de um espirito debrucado sobre a realidadeexterna, a cornecar pela de seu próprio corpo; seja pela dornesticacáometódica de urna experiencia descontaminada da presen<;:a perturbadorado sujeito cognoscente. Intelecrualistas e empiristas, em que pese a diferen­ca de caminhos, confluem na mesma busca de objetividade.

Durkheim, como nao podia deixar de ser, vai se filiar a tradicáo inte­lectualista-racionalisra,? e tomar como fonte de inspiracáo para seu vigo=.

roso cientismo na programacáo da sociologia - perdida a jovem discipli-, na, em seu modo de ver, nas elucubracóes metafísicas de Comte ou nasgeneralizacóes mais filosóficas do que sociológicas de um Spencer - a biolo­

gia, melhor dizendo, irá inspirar-se no organicismo biológico. Caberia per­guntar porque nao adotou a mathesis como paradigma de sua sociologiaem lugar da biología? Afina! de contas, nao estaria o pensamento cartesiano

2 Nao é demais esclarecer que o termo racionalista - ou racionalismo - envolve umconceito menos extenso, logicamente falando, do que infelectualúfa ou infelectllalúmo,urna vez que enquanto este abrange tipicamente o pensamento filosófico europeucon tinental- do século XVI ao século XIX-, aquele restringe-se aos intelectualistasmais conhecidos como racionalistas, isto é, herdeiros diretos de Descartes - comoLeibniz ou mesmo Spinoza, por exernplo, Todavía, o binomio parece-me eloqüentepara nominar urna fradirao - conceito que uso no sentido gadameriano - erncontraste ao pensamento filosófico típico anglo-saxáo,

74

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o IlIgar - eem IlIgar - dométodo

impregnado das matemáticas? Ou mesmo da física, tivesse ele tomado avia kantiana, afinal de contas tao inspiradora de sua sociología das catego­rias do espirito ou da "consciencia coletiva". Essa questáo nao será res­pondida aqui, infelizmente sequer será encaminhada, pois demandaria umrumo diferente do escolhido para as considerac;:6es que pretendo fazer.Porém, vale mencioná-Ia como problema relevante, urna vez que sua sim­ples mencáo vai permitir-nos tematizar com mais vigor o biologismo pre­sente na base da metodologia durkheimiana. Antes de explorarmos essadimensáo tao determinadora do método durkheimiano, cabe dizer algu­

ma coisa sobre o conteúdo efetivamente racionalista de seu pensamento.Desejo recordar o caráter eminentemente conceitual desse pensamen­

too A saber, o papel do intelecto nao somente na construcáo do conheci­mento, mas, sobretudo, como foco e objeto de indagacáo na pesquisasociológica. Em outra oportunidade, pude discorrer um pouco sobre as"categorias do entendimento sociológico", quando procurei tracar o per­fil do paradigma racionalista nas figuras de Durkheim, Lévy-Bruhl e Mauss- e, em sua feicáo atual, Lévi-Strauss e Louis Dumont.' Estava procuran­do, entáo, mostrar a contribuicáo racionalista amatriz disciplinar da antro­

pologia social. Agora pretendo unicamente registrar o papel desempenha­do pelas categorias, portanto dos conceitos eminentes, isto é, aqueles queconstituem a "ossatura da inteligencia", na sugestiva metáfora durkheimia­f!a. Isso significa que o homem nao pensa sem a ajuda de categorias. Saoelas, particularmente as eminentes, aquelas que organizam a realidade ­social ou nao - de modo a imprimir nela a inteligencia do espirito, a seumodo pré-formador dessa mesma realidade. Como já se observou, tra­ta-se de urna heranca kantiana, via o criticismo de Renouvier e a lógica d~s

representacóes de Hamelin- esse último, por sinal, pouco lembrado -,heranca essa consolidada no racionalismo de Durkheim. Será pois nessatradicáo que devemos encontrar o lugar do método durkheimiano; e é na

perspectiva desse lugar que podemos ler e interpretar Les regles de la métbodesociologique.

*3 Trata-se do segundo capítulo de rneu livro Sobre o Pensamento Antropológico, original­

mente publicado no .AnuárioAntropológico-81 , pp. 125-146, com a1gumas incorrecóes,

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Page 39: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberta Cardoso de Oliveira

Seguramente nao vejo necessidade de expor a estrutura de Les regles dela méthode sociologique, tao conhecida que é essa obra do público de cienciassociais. Gostaria de me limitar apenas áquelas passagens em que estáo bem

configuradas as questóes centrais de meu argumento: a da objetividade, rner­

ce do recurso ao método, e da organicidade do todo social, de conformida­

de com o apelo que faz ao paradigma biológico. Ambas as questóes mar­

cam - em meu modo de ver - o discurso naturalizante de Durkheim

em seu esforco de conferir cientificidade a nova disciplina.

Seiecionei, assim, urnas poucas passagens, porém o suficiente para cons­truir o argumento. Urna delas remete-nos a antinomia objetividade-subje­

tividade, constitutiva do próprio conhecimento científico, na medida emque o primeiro termo sobrepóe-se ao segundo. Escreve Durkheim no

Capítulo que dedica as regras relativas a observacáo dos fatos sociais que,

como todos sabem, tais fatos deveriam ser considerados como "coisas":

Corn efeito,urna sensacao é tanto mais objetiva guando o objeto, ao gual dase dirige, tenha maior fixidez;pois a condicáo de toda objetividade está naexistencia de urn ponto de sinalizacáo, constante e idéntico, ao qual a tepre­sentacáo possa serdirigidae que permite eliminar tudo aquilo que sejavariáve/,portante subjetivo."

Isso sugere que é precisamente a variacáo o viláo da história, na medi­

da em que ela implica o elemento individual, portante variável, perturba­dor de qualquer tentativa de generaliza<;:ao e, com ela, a de se alcancar o

conhecimento objetivo. Assim, continua Durkheim,

Quando [...] o sociólogo tenta explorar urna ordem qualquer de fatos sociais,deve se esforcar em considera-los por onde se apresemam isolados de suasrnanifestacóes individuais.l

Como lograr um conhecimento sociológico - por tanto, científico­do individual, do particular? Durkheim está muito consciente disso, por­

tanto, quando afirma que

o /I/gar- eem II/gar- do método

Por fora dos atos individuais que suscitam,os hábitos coletivos se exprimemsob formas definidas, regras jurídicas,morais, ditos populares, fatos de es­trutura social etc. Como essas formas existem de urna maneira permanente,[oO.] das constituem um objeto fixo, um padráo (étalon) constante que estásempre ao alcancedo observador e que nao dá lugaras irnpressóes subjetivase as observacóes pessoais.

Fica muito claro aqui o quanto a subjetividade do sujeito cognoscente

e a individuacáo - e, com ela, a variacáo - do objeto cognoscível sur­

gem como quest6es que demandam sua neutralizacáo pelo método, por

algo que permita urna sorte de medida ou um parámetro de avaliacáo,

sem o qual torna-se inviável qualquer pretensáo a cientificidade.

Inspira-se Durkheim, como já mencionei, em urna ciencia natural, po­

rém nao mais na física, nem mesmo na matemática,' mas na biologia. Anocáo de organismo, de sua estrutura e das funcóes que seus diferentes

órgaos desempenham váo proporcionar urna boa metáfora da socieda­de, de sua organizacáo ou morfologia e de seu funcionamento ou fisiolo­

gia. Dessa mesma metáfora já Auguste Comte havia se valido. Porém o

que separaria esses dois pensadores seria precisamente a prerrogativa dométodo, para Durkheim, como procedimento capaz de eliminar rudo o

que de filosófico ou de metafísico predominava na sociologia comteana,inviabilizando-a como ciencia. As próprias "regras relativas a constituicáo

dos tipos sociais", propostas no Capítulo IV de Les regles de la méthodesociologique, estáo condicionadas por um biologismo a todo instante rnani­festo. E em sua constituicáo dos tipos sociais, suscetíveis de identificacáo e

de descricáo sociológica, recorre a nocáo biológica de espécie, tornando-a espéde social. Diz'dé" .

Esta nocáo de espécie socialtem, aliás, a vantagem de nos fornecer urn meiotermo entre as duas coricepcóes contrarias da vida coletiva que tem sido,durante longo tempo, partilhado pelos espíritos:quera dizer o nominalismodos historiadores e o realismo extremo dos filósofos.'

L.

4

5

É. Durkheim, Les riglu de la méthode soeiologiql/e, estou me valendo da décima prirneiraedicáo da Presses Universitaires de France, de 1949, p. 44. O grifo é meu.

Idern, p. 45.

76

6

7

É. Durkheim, Les riglu de laméthode soeiologique, pp. 44-45.

Idem, p. 76. Esse realismo que Durkheim atribui aos filósofos sigllifica que o realexistente é o da humanidade e sao dos "atributos gerais da narureza humana quederiva toda evolucáo social" (p.77). Quanto ao nominalismo dos historiadores - sebem que nao de todos, corno adverte o próprio Durkheirn -, significa que as socie-

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Page 40: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Robeno Cardase de OlüJei,.o

Para esses filósofos, por exemplo, tipos sociais como tribos, cidadesou nacóes seriam apenas "cornbinacóes provisórias e contingentes semrealidade própria"," ao mesmo tempo em que para os historiadores essesmesmos fenómenos nao poderiam ser objeto de saber científico.

E é contra essas duas modalidades de inferencia sobre o social que/ Durkheim opóe o método como a única via possível de conducáo ao

conhecimento científico. Para Durkheim a realidade social nao pode ser·,.... objeto apenas de urna

filosofia abstratae vagaou de monografiaspuramente descritivas. Porém sepode escapara essa alternativadesde que se reconheca que entre a multidáoconfusade sociedades históricase o conceitoúnico,mas ideal,de humanida­de, há intermediários: sao as espéciessociais.?

E isso porque as instituicóes sociais - morais, jurídicas, económicas,entre outras - "sao infinitamente variáveis", lembra Durkheim; variacóesessas que, em verdade, jamais deixaráo de se constituir em dados suscetí­veis de apreensáo pelo pensamento científico. E é precisamente aí qt:e elefaz recair urna de suas mais pertinentes críticas a Comte, mostrando que ofilósofo jamais soube reconhecer a existencia das espécies sociais, toman­do - por via de conseqüéncia - o progresso das sociedades comoequivalente ao de um único POyo: a humanidade. E no esboce de suateoria das espécies sociais, Durkheim recorre naturalmente a sua conheci­da classificacáo dos tipos sociais, seguindo, portanto, no limite, a orientacáodassificatória de urna morfología de inspiracáo biológica - aliás, já pre­sente na sociología de Spencer, como o próprio Durkheim reconhece, emque pesem as duras restricóes que nao deixa de dirigir áquela classificacáo,

Haveria muitos outros argumentos durkheimianos baseados em analogí­as com a biología, como o que sustenta a independencia do hábito frente a suautilidade, mostrando que urna prática social- ou urna instiruicáo - podemudar de funcáo sem que seja mudada sua natureza, ao mesmo tempoque pode continuar existindo pela simples forca do hábito. E, reconhece

o lugo,.- eem lugo,.- dométodo

ainda, apoiando-se em seu forte biologísmo, que há "ainda mais sobrevi­vencias na sociedade do que nos organismos"; e conclui afirmando

serurnaproposicáo verdadeiratanto em sociología quanto em biologíaque oórgáo é independente da funcáo, isto é que, nao obstante permanecendo omesmo, ele pode servir a fins diferentes.10

Em surna.jráo é difícil entender a razáo da biología ocupar tao plena­mente o lugar da matemática ou da física como modelo de cientificidade.Nao só pela presen¡;a intermitente, porém continua, de Comte e de Spencer,no discurso durkheimiano, como seus interlocutores mais presentes, masainda por ser a biología urna ciencia da vida, suficientemente já consolida­da para servir de parámetro para urna sociología ainda em processo deconstituicáo.

Gostaria agora de voltar a atencáo para um problema que me parecedos mais interessantes no pensamento durkheimiano, urna vez que mostraurna nítida continuidade entre Les regles dela méthode soaologiqi« e a epistemo-.logía clássica, seja ela racionalista ou empirista. Refiro-me ao exorcismometódico a que subrnete as prenoiiesque povoam todo pensamento, levan­do-o a distorcóes inadrnissíveis a investigacáo científica. Nao só essa críti­ca as idéias preconcebidas, portante "nern claras nem distintas", é umelemento basilar do cartesianismo, como vai encontrar em filósofos ditosempiristas, como Bacon, o seu desenvolvimento mais típico, marcador doobjetivismo científico, Trata-se de renunciar de urna maneira de procederque está na origem mesrna de ciencias como a própria física. ApontaDurkheim que Bacon, seguindo Aristóteles, entende que muitas nocóescorno as que estáo na base da alquimia frente a química, ou da astrología.

{'

frente a astronomía, nao sao mais do que no/iones vulgares ou praenotiones.

Sa~. esses idola [diz Durkheim, valendo-se aqui de um termo de Bacon],espéciede fantasmas quedesfiguramo verdadeiro aspectodas coisas e que ostQIIlaITl0s, portanto, pelas coisas mesmas."

8

9

dades constituem "individualidades heterogéneas, incomparáveis entre si", sendo "todageneralizac;:ao quase impossível" (ibidem).

É. Durkheim, Les regles de lo méthode sociologjque, p. 76.

Idern, p. 77.

78

lOÉ. Durkheirn, Les regles delo mithode sociologique, p. 91.

11 A teoría dos ídolos ou dos erros do espírito, constante do Novlfm O"gonJlIlJ de Bacon,aponta para quatro espécies de erros, que vale a pena rememorar aqui, ainda quesucintamente:1. os ídolo tribus que, por defeito do espírito, consistern ern urna sorte de inércia ou de

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Roberto Cardoso de Oliteira o lugar - eem lugar - do método

*Vamos nos ater agora a algumas consideracóes sobre a possibilidadede urna convivencia da subjetividade e das prenocóes no interior de urna

sociologia que se pretenda moderna, - e nao necessariamente pós-mo­derna - a despeito da crítica durkheimiana. Minha intencáo nao é, natu­

ralmente, rebater críticas do mesmo teor, pois afinal de contas elas já se

E se tem sido assim para as ciencias naturais, por urna razáo mais forte deveser o mesmo para a sociología. [oo.] Ora, é sobretudo em sociología que essasprenocóes, para retomar urna expressáo de Bacon, estáo em estado de domi­nar os espíritos e de se substituir as coisas.F

E pode-se dizer que isso é especialmente importante em urna discipli­

na como a sociologia pelo fato de que, segundo Durkheim, ela tem trata­do quase exclusivamente de conceitos, nao de coisas. E é aí que Durkheim

vai identificar urna das maiores mazelas da sociologia anterior, pois nemmesmo Comte, que já havia reconhecido o caráter de coisa dos fenóme­

nossociais, conseguiu escapar de tomar as idéias - e nao as coisas ­

como objeto de esrudo, Exemplo disso estaria na concepcáo vulgar queComte tinha da nocáo de humanidade e de seu desenvolvimento históri­

co. Podendo-se dizer o mesmo de Spencer que, mesmo abandonando oconceito de humanidade, o substitui pelo de sociedade como objeto de

ciencia, porém caindo no mesmo erro de Comte por fazer "desaparecera coisa de que fala para por em seu lugar a prenocáo"," isto é, tomando aidéia que possui de sociedade sem preliminarmente submeté-la, comocoisa social que é, a investigacáo metódica.

14 Cabe lembrar que esse statusnomológico impóe-se a Durkheim por meio das analo­gias que faz com as ciéncias duras de seu tempo, portante bem antes do desenvolvimen­10 da lingüística estrutural, por exemplo, disciplina Joft, na qual seu herdeiro Lévi-

Strauss vai se inspirar.

81

encontram incorporadas naquilo que poderíamos considerar como o mo­mento metódico nao apenas da sociologia, mas das ciencias sociais tomadasem seu conjunto. Nesse sentido, nao há que refutá-las, pois estáo na basede um conjunto de disciplinas bem consolidadas e marcadas pelo predo­mínio do método. O que me anima abordar esses dois temas é a inques­

tionável retomada - a bern dizer, tardia - de um ponto de vista institu­ido no século passado pela crítica romintica as ciencias sociais positivas

pelo fato de haverem adotado as ciencias naturais corno referencia para- i.

digmática, entáo consideradas com as únicas capazes de conferir cientifici­

dade a qualquer modalidade de conhecimento. Refiro-rne a antinomia

Natll1wissenscbaft e Geisteswissenscbaft estabelecida por Dilthey. Se bem queesse filósofo nao tenha ido além do que estou chamando - inspirado emRicoeur _ momento metódico, por sua preocupa<;ao em lograr a rnesma obje­

tividade alcancada pelas ciencias naturais;' os argumentos que sustentamaquela antinomia estabeleceram vigorosamente os limites entre um e outro

tipo de ciencia.Lembremo-nos que todo o esforco metódico de Durkheim concen-

tra-se na busca da explicafño sociológica, conferindo a ela o que podería­mos chamar de status nomológico, marcado pela busca de leis ou de re­gras comuns as ciéncias duras;~ E, por explica<;ao, devemos entender, latosensu, o estabelecimento de conexóes causais e funcionais capazes de serem

traduzidas em proposi<;6es. Esse conhecimento proposicional passa a ser,

portante, o atestado de cientificidade da sociología ou de qualquer outra dis­ciplina das ciencias sociais. Frente a essa forma de conceber o conhecimen­

to, autores modernos como Gadamer - para citarmos um pensadorradical que aborda a questáo - opóe a nocáo de compreensño - Verstandnfs_ e de compreender _ Verstehen -, desenvolvendo, em seu notável livroVerdade e método, urna crítica de inspira<;ao heideggeriana a pretensáo dométodo científico de monopolizar a busca da verdade. Verdade que seria

alcancada supostamente pela via única da explicacáo metódica. E nessa

I80

preguica que nos leva a generalizar sem maiores cuidados;2. os idola specus, segundo os quais nos encontramos como que presos em urna caverna- alusáo ao mito da caverna de Platáo -, cingidos a inércia dos costumes e daeducacáo;

3. os idola-fori ou ídolos da prac;:a pública que concernem as palavras que falseiam nossoconceito das coisas; e .

4. os idola theatri, originários do presúgio das teorias filosóficas, no interior das quaisacabamos por ficar igualmente presos.Cf. Émile Bréhier, Historia dela Fitosofia, Tomo JI, pp. 48-49.

É. Durkheim, Les regles dela méthode sociologique, p. 18.

Idem, p. 21.

12

13

Page 42: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

L ,

Roberto Cardoso de Oliteira

explicacáo pela via do método - o que o nosso autor aponta como sendourna confusáo proporcionada pelos cultores da ciencia - estaria a identifica­e;:ao da "verdade" com a "certeza". Eis como se manifesta Gadamer, an­tecipando-se, em alguns anos, ao que iria formular em seu Verdade emétodo:

Metho~~~i~ca "carninho parair em busca de algo". O metódico é poderpercorrer de noVO-üc:U11illh-ü-andádo, e tal é 6 modo de pi'üEed¿i"da-denciaMas isso supóe necessariamente urna restricáo nas pretensóes de alcancar averdade. Se a verdade (Ilentas) supóe verificabilidade - em urna ou outraforma -, o critério que mede o conhecimento nao é já sua verdade, senáo suacerteza.

E Gadamer conclui seu argumento:

Por isso o autentico ethosda ciencia moderna é - desde que Descartes formu­lara a c1ássica regra de certeza - que ela só admite como satisfazendo ascondicóes de verdade o que satisfaz o ideal de certeza. 15

A despeito dessa afirrnacáo de Gadamer, que transcende a questáo

epistemológica propriamente dita - a medida que envolve todas as di­mens6es da existencia humana e nao exclusivamente a da ciencia -, inte­ressa chamar a atencáo para a substituicáo do ideal de verdade - que,

como tal, sempre desempenhará um papel fundamental na busca do co­

nhecimento, quer como idéia diretri:v quer como idéia organizadora dessa mes­ma busca -, por outro ideal - o de certeza -, absolutamente depen­dente de métodos! Nao precisamos evocar o que todos aprendemos come sobre o método: em suma, que ele "mensura" o que pode ser por ele"mensurado", excluindo, por via de conseqiiéncia, tudo aquilo que naoesteja previsto como "mensurável" - sendo que, nada custa lembrar,sempre podemos substituir a idéia de rnensuracáo pelas de descricáo, ava­liacáo ou, mesmo, explicacáo, de maneira a inscrevermos nas possibilida­des de aplicacáo do método também critérios qualitativos.

Mas o que pode estar no lugar do método na busca de conhecimento?Vejam bem: nao se trata de substituir o método em tudo, mas apenassaber o que pode estar em seu lugar quando - e somente quando - deleescaparem realidades tangíveis por qualquer outra modalidade de conhe-

15 Qué esla verdad? apud Gadamer, Verdady metodo JI, p. 54.

82

~,id

o IlIgar- eem IlIgar- do método

cimento que nao seja metódica. Isso quer dizer que nao se trataria, aocontrário, de substituir a explicacáo, tornando-a apenas ilusória, simples­mente pelas possibilidades abertas grae;:as ao ato de compreender ­T/érsteben! Se nao sao certezas - e por que haveriam de ser? - o conhe­cimento obtido pela via da cornpreensáo, que tipo de conhecimento éesse? Na esteira da explicacáo ou da construcáo de proposicóes verificáveispelo exercício do método, a cornpreensáo nao teria entáo outra funcáoque a de formular hipóteses sujeitas, sempre, a confirrnacáo pelo conheci­mento - verdade? -, apenas alcane;:ável pela via metódica, em um curn­

primento claro do ideário cartesiano." O que procurarei mostrar aqui, adespeito da importancia do método e de suas conquistas iniludíveis naformulacáo de proposie;:6es verificáveis - e aqui prefiro restringir-me arninha disciplina, a antropologia social, para dizer que nela ternos alcanca­do esse mesmo desideratum, como, por exemplo, na construcáo de teoriasde parentesco -, será precisamente o teor do exorcismo feito pelo pen­samento hermenéutico as limitacóes impostas pelo cientismo as dirnen­sóes da subjetividade e das prenoe;:6es no processo de conhecimento ob­tido por nossa disciplina e por outras congéneres,

Cornecemos pelas prenoe;:6es que, com Gadamer, passam a ser cha­madas de preconceitos - Vorhabe, Vorsicbt e Vorgrijj, em que a reiteracáo doprefixo uor, "pré", comunica a idéia de anrecipacáo, de algo previsto, se

assim posso me exprimir. Suas reflex6es sobre o problema dos precon­ceitos ou prejuízos sao conduzidas de maneira bastante densa em urna dassecóes mais interessantes de seu Verdade emétodo, intitulada "Fundamentospara urna teoria da experiencia hermenéutica". Vamos dar a palavra aG~ame~ ~

16 Devo mencionar aquí, por sua posicño caudatária ao cientismo prevalecente a tantosquantos pensam o conhecirnento exclusivamente em termos Ilurninistas, o filósofoMichael Martin, em seu interessante e controvertido artigo "Understanding andparticipant observation in cultural and social anthropology", in Versteoen: Suijectit1eunderstanding in the social saences, pp. 102-133. Interessa-nos a argumentac;ao de Martinpor cingir especialmente a problemática de nossa disciplina. Nesse sentido, ver tarn­bém meu artigo "A dupla interpretacáo na antropologia", Capítulo 5 deste volume, noqual trato desse tema rnais extensamente.

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'( »,

Roberto Cardoso de OlilJeira

Sóeste reconhecimento do caráteressencialmente preconcebidode toda corn­preensáo confere ao problema hermenéutico toda a agudeza de sua dimen­sáo."

Mas que reconhecimento é este? É precisamente aquele feito por Hei­degger sobre o caráter pré-estruturado do conhecimento. Essa pré-estru­turacáo do conhecimento significa o envolvimento do sujeito cognoscente

e do objeto cognoscível no contexto do "mundo da vida" - LebensJvelt- ou, em outras palavras, significa que mais do que conhecermos, nós re­conhecemos, ou, ainda, só conhecemos aquilo que nós estamos (pre)paradospara conhecer. Em termos antropológicos diríamos que, no processo deendoculruracáo pessoal ou grupal, recebemos um quadro de categorias

culturais condicionadoras de nossas possibilidades de conhecimento. Há,portanto, urna sorte de socializacáo antecipada por meio da qual se viabi­liza nossa pré-compreensáo. Se isso é verdadeiro - e nada indica que naoseja - entáo se resgata a nocáo de preconceito da esfera da subversáoepistérnica a que foi lancada pelo Iluminismo.

;

Urna análiseda história do conceito mostra que só na Ilustracáo adquire oconceito deprtjuízo o matiz negativo que agora possui. Em simesmo, "prejuí­zo" quer dizer um juízo que se forma antes de sua validacáo definitiva detodos os momentos que sao objetivamente determinantes. [...] Por isso, emfrancés [e poderíamos dizer igualmente ern portugués] "préjudice", iguala"praejuclicium", significa também simplesmenteprejuízo, desvantagem, dano.Nao obstante, essanegacáo é apenas secundária,é a conseqüéncia negativadeurna validezpositiva, o valor prejuclicial de urna pré-decisáo [...]. "Prejuízo"nao significapois em nenhurn modo juízo falso,senáo que está cpntido emseu conceito o que pode ser avaliadopositivamente ou negativamente. lB

Daí, sentir-se Gadamer autorizado a falar em prejuízo ou preconceitopositivo e negativo, legítimo e ilegítimo." A desqualificacáo de qualquer

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o h!gar - eem IlIgar - dométodo

tipo de prejuízo no processo de cognicáo foi, portanto, a heranca deixada

pelo cientismo absoluto reinante na Ilustracáo.Exorcizado o fantasma das prenocóes diante da inevitabilidade da pre­

senca dos prejuízos ou dos preconceitos, urna vez que eles sao compo­nentes constitutivos de um conhecimento antecipado, cabe verificar emque medida a questáo da subjetividade passa a sofrer urna refracáo aos

olhos da hermeneutica, por intermédio da qual suas limitacóes ou mesmoobstáculos no processo cognitivo sao igualmente eliminados. E é precisa­mente Gadamer que, ao enfrentar a questáo da intersubietitndade, esclarece­

nos sobre o lugar que a "cornpreensáo intersubjetiva" ocupa na esfera da

cogni<;:ao, e isso de maneira inexorável! E nao apenas no que diz respeitoas ciencias sociais, mas igualmente no que toca as ciencias da natureza. Eiscomo se manifesta urna comentadora de Gadamer, Georgia Warnke, pro­

fessora de filosofia da Universidade de Yale:

A virtudedeGadamer é ade ter revelado o reinoda cornpreensáo intersubjetivaque é pressuposta por qualquer "ciencia objetiva", urna vez que cientistas

- também precisam chegar a um entendimento entre si sobre o sentido de_termos, critérios para testar hipóteses e assim por diante."

Gadamer mostra ainda que a tare fa hermenéutica de elucidar o sentido

e de facilitar a comunicacáo Únsubstituível por qualquer outra modalida­

de artificial de linguagem - lógica, matemática etc. - que nao seja alíngua natural, própria do domínio da compreensao intersubjetiva¿ con-

o sensual. O que significa que na esfera da comunicacáo, até mesmo naquela

em que se comunicam cientistas de qualquer campo de conhecimento, softo ou bard, eles estáo circunscritos a obediencia de acordos tácitos ou explíci,

tos, configurados em normas estandardizadas no seu próprio meio.Essas normas nao seriam nem arbitrárias e muito menos subjetivas,pois sao o resultado de urna tradicáo cientifica na qua! a experienciaacumulada em termos de cornunicacáo e de consenso entre cientistas foi

capaz de instituí-las."

17

18

19

Edicáo consultada Verdady metodo 1: Fundamentos de III/a hermenéutica filosófica, S' ed.,p.337.

Ibidem.

Na moderna história da ciencia, autores como Thomas Kuhn aproxirnam-se do pontode vista hermenéutico ao considerarem as tradicóes científicas ou os paradigmas comoverdadeiras antecipacóes do ato de conhecer. Tais paradigmas sao tambérn consisten-

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20

21

tes com a idéia wittgensteineana de "jogos de linguagem", que, pode se dizer com R.Howard, inserern-se em urna sorte de "hermenéutica analítica".

Cf. Georgia Warnke, Gadamer: Hermenentits, tradition and reason, p. 117.

Idem.

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Roberto Cardoso de Oliveira

Isso induz ao seguinte comentário: se a esfera da subjetividade rnos­trou-se, ao longo da história das ciencias - incluindo-se as ciencias sociais,

¡ como a sociologia e a antropologia social -, passível de neutralizacáopelo método, já a esfera da intersubjetividade mostrou-se capaz de seimpor com tal vigor no horizonte do conhecimento científico que nao hácomo deixar de considerá-la como um fato - por certo epistémico ­intransponível sem o recurso da reflexáo hermenéutica, O homem de

ciencia, tal como o homem comum, tem de conviver com a realidade dacompreensáo intersubjetiva; ou, em outras palavras, tanto o cientista comoo leigo encontram-se presos as suas dererrninacóes. Nesse sentido, seria,de certo modo, o equivalente, no dominio da atividade científica, do fenó­meno da pré-estruturacáo do conhecimento descoberto pela fenomeno­logia heideggeriana. Se essa intersubjetividade é urna imposicáo dos fatos,entáo pode-se admitir sem rnuita dificuldade que os procedimentos no­mológicos que conferem cientificidade a teoria social - e aqui sigoGiddens," em referencia a qualquer produto gerado pelas ciencias sociais- só o fazem para aqueles que persistem em ignorá-la. Estáo marcadospor um cientismo radical, comum ao horizonte neopositivista. Porém, senos detivermos apenas a questáo da intersubjetividade no campo da soci­ologia e da antropologia social, veremos que, com mais razáo ainda, cir­cunscrever a producáo de conhecimento exclusivamente ao exercício do

método - como desejaria Durkheim, herdeiro da tradicáo cartesiana,com? vimos -, significaria ignorar o papel da compreensáo intersubjetivacomo preliminar, ou mesmo antecedente, a qualquer modalidade de. co­nhecimento dito científico. Como podemos compatibilizar essa realidadevivida pela cognicáo - quando o método mostra suas limitacóes - coma legitimacáo do conhecimento alcancado pelas disciplinas sociológicas? Eaqui inc1uo a antropologia social.

*

22 Cf. Anthony Giddens, "Hermeneutics and social theory", in Hermenestics: Questionsandprospeets, Gary Shapiro e Alan Sica (orgs.), pp. 215-230.

86

,~ o IlIgar - e em lugar - do método

Retomemos o que falei no início desta exposicáo relativamente ao mo­

mento metódico, contrapondo-o ao momento nao-metódico. Nessa di­recáo é que as investigacóes de Ricoeur váo revelar-se bastante sugestivas e

devem ser evocadas. Preliminarmente, gostaria de recordar que, em 1993,tive a oportunidade de participar de um seminário sobre "Ciencia e Socie­dade: A Crise dos Modelos", com urna conferencia que intitulei ''A antro­pologia e a 'crise' dos modelos explicativos", ocasiáo em que pude mevaler de um texto de Ricoeur para equacionar a mesma questáo de méto­do, que agora retorno." É assim que, para bem esclarecer o que sao essesdois momentos, escreve Ricoeur:

Sobre o plano epistemológico, primeiramente, diria que nao há dois méto­

dos, o método explicativo e o método compreensivo. Estritarnente falando,

só a explicacáo é metódica. A cornpreensáo é, sobretudo, o momento nao

metódico que, nas ciencias interpretativas, se cornpóe com o momento me­

tódico da explicacáo, Este momento precede, acompanha, fecha e assim enuol­vea explicacáo. Em compensacáo, desenuoh» analiticamente a cornpreensáo,Este vínculo dialético entre explicar e compreender tern por conseqüéncia

\ urna relacáo muito complexa e paradoxal entre as ciencias humanas e as

i ciencias da natureza.",

Se, na época da conferencia, eu estava empenhado em mostrar a arti­culacáo entre a explicacáo e a cornpreensáo no contexto do que chamei

enxerto - ou agreffe, como já dissera o mesmo Ricoeur - da hermenéuticana matriz disciplinar da antropología," no sentido de impor urna nova

23 Essa conferencia está reproduzida como Capítulo 3 deste volume. Quanto areferén-,cia relativa a Paul Ricoeur, trata-se do ensaio "Le modele du texte: ]'action senséeconsidérée comme un texte", in D« texte " I'aetion: Essais d'bermenentique, JI. Hátambém sua versáo em ingles, "The model of the text: Meaningful action consideredas a text", in lnterpretive social saence: A reader, P. Rabinow e M. Sullivan (orgs.).

24 P. Ricoeur, "Expliquer et comprendre: Sur quelques connexions remarquables entrela théorie du texte, la théorie de l'action et la théorie de l'histoire", in Dn texte ti

I'aaion. Essais d'herméneutiqlle, ll, p. 181.

25 Esse conceito de "matriz disciplinar", tomado ern urna primeira instáncia de ThomasKuhn, que o considera equivalente a "paradigma", cuidei de diferenciá-Ios de maneiraa atribuir 300 segundo um componente - paradigmático - do primeiro; em termosconcretos, referindo-me aantropología, ternos que o convívio tenso - e historica­mente demonstrável - dos paradigmas racionalista, estrutural-funcionalista, culru-

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Page 45: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Oliveira

dinámica e, com isso, revigorá-Ia; agora, nesta oportunidade, desejo unica­mente sublinhar que o método nao monopoliza - como desejariam aquelesinfluenciados pelo cientismo - a producáo de conhecimento relativo arealidade social ou cultural.

Pois bem. Se existe um tipo de conhecimento que nao se vale do mé­todo para ser alcancado, que conhecimento é esse? Tenho procurado mos­trar, em diferentes oportunidades, que a possibilidade de dornesticacáo darealidade pelo método encontra seus limites naquilo que Ricoeur chamasurcroit de sens - excedente de signiJicaroo.,lsso quer dizer precisamente que ométodo, nao conseguindo abrigar sob seus parámetros toda a realidadesócio-culrural, deixa escapar algo cujo sentido ou cuja significacáo esse

método nao está (pre)determinado a dar conta, É esse excedente de signi-Jica¡;:ao que somente um momento nao-metódico pode apreender.Emminha disciplina, esse momento nao-metódico pode ser facilmente ilus­trado pelo exercício da "observacáo participante", cujas informacóes delaresultantes povoam as monografias produzidas mercé do trabalho de cam­po. Quero chamar a atencáo para o fato de que sao exararnente essasinforrnacóes as que agem na colagem dos dados no discurso, sejam essesdados qualitativos ou quantitativos, presentes na narrativa do antropólogo,Nesse sentido, monografias exemplares como as de Malinowski, de Evans­Pritchard ou de Curt Nimuendaju - esse último, pelo menos para a etno­logía brasileira, durante milito tempo um autor de monografias exempla­res -, conseguem constituir-se em relatos dotados de grande poder depersuasáo, por vezes acusados até de impressionismo literário. Sobre esseponto, aliás, haveria muito a discutir, particularmente no que diz respeitoaos problemas envolvidos na texrualizacáo da cultura ou de como inscrevé­

la no discurso escrito. Pude examinar isso em outra conferencia, "O traba­lho do antropólogo: Olhar, ouvir, escrever", originalmente elaborada paraa Aula Magna que ministrei na Unicamp, em 1994, publicada posterior­mente na Revista de Antropologia. 16 Na presente exposicáo gostaria unica-

ralista e hermenéutico criam um campo semántico que se articula como urna matrizdisciplinar.Cf. R. Cardoso de Oliveira, op. cit., Capítulos 1-4; e, especialmente, o Capítulo 3deste volume.

26 Revista deAntropologia, vol. 39, n" 1, 1996, pp. 13-37. Cf. o Capítulo 1 des te volume.

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o lugar - eem lugar - dométodo

mente de abordar uns poucos pontos que acredito servirem para encami­

nhar mais detidamente a nossa questáo central.O primeiro ponto a ser considerado é o de que tanto as ciencias so­

ciais como as ciencias naturais estilo irremediavelmente condicionadas pela

r- pré-~s_~r~':!!ll~?-~<za,¡;:~QA9fOnhe~ipe.nto_ descoberra por. Heidegger, como, vimos na argumenta¡;:ao de Gadamer e nos oportunos comentários de

Georgia Warnke, de modo a nao fazer mais sentido a tradicional e equi-, vocada hierarquizacáo entre elas, atribuindo as ciencias duras urn status

superior ao das ciencias moles." Nao seria portanto por esse caminho quese poderia chegar a urna boa avaliacáo entre essas modalidades de ciencia.O caminho que, a luz dos argumentos precedentes, poderá ser seguido,cinge-se milito mais a questáo da experimentacáo com a qual, efetiva­

mente, as ciencias sociais, voltadas para a observacáo, nao teriam condi­¡;:6es de enfrentar. Contudo, isso seria um 'assunto para urna outra discus­

sao, porém vale, pelo menos, o registro. Ora, o caminho mais frutíferopara desenvolvermos as preocupacóes aqui apresentadas seguramente naoserá pela via da oposicáo entre tipos de ciencia, social e natural, nem mes­mo por urna radicalizacáo da oposicáo entre os momentos metódico enao-metódico na investigacáo sócio-cultural, senáo por urna tentativa deelucidacáo da relacáo de complementaridade entre ambos os momentos.

Nesse sentido, as investigacóes epistemológicas de Ricoeur e de Apeltérn se mostrado extremamente úteis! Elas conduzem-nos a interessantes .Ó:

.;, y

exploracóes a respeito da construcáo do conhecimento nas disciplinas so"':"._·

ciais. Ternos, assim, urn segundo ponto a destacar, a saber, aquele que nos )permite considerar que a proposta durkheimiana que faz das "representa- \ \cóes coletivas" o alvo por excelencia da investigacáo sociológica pode sér

\. invertida no sentido de considerar as comunidades de profissionais da ....

disciplina, portanto urna comunidade inter-pares, como detentora de urnaintersubjetividade tal- urna sorte de "consciencia coletiva"? -+-, capaz de",anular qualquer subjetivismo que a crítica mais positivista possa querer

27 Embora esses termos em portugués já sejam de uso corrente, considero mais adequa­da a separacáo dessas ciencias, respectivamente, ero rígidas e flexíveis que considerodesignac;:5es mais adequadas por qualificarem mais positivamente as ciencias sociais,tirando-Ihes o caráter de fraqueza ou irnaturidade que o termo soft sugere. Agradece a

sugestáo de meu colega mexicano Dr. Esteban Krotz,

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1: i

Roberto Cardoso de Oliveira

impor. Seria como passar de urna intersubjetividade constitutiva das re­presentacóes coletivas para outra, de teor diverso, inerente acomunidade

\- a que pertence o sujeito cognoscente. A relevancia disso estaria no fato dese constatar no interior dessa comunidade de pares a instancia de elabora­<;ao. de critérios de veracidade - mais do que de verdades - que seprojetam finalmente nas metodologias instituídas. Os métodos estabeleci­dos pela comunidade de profissionais geram um campo intersubjetivopor meio do qual os resultados das investigacóes passam a ser considera­dos válidos ou nao. Se sao metodologias formais, os critérios popperianosde falsificacáo sao perfeitamente adequados; se nao, outros critérios de­vern ser aplicados, como os que se caracterizam, por exemplo, pelo bino­mio "conjectura - validacáo", na forma como esse binomio expressa ofamoso conceito de "círculo hermenéutico". Oucamos, mais urna vez,Ricoeur:

Conjecturae validacáo estáo em uma relacáo circular, como,urnaabordagemsubjetiva e outra objetivado texto.Masessecírculonao é urn círculovicioso,"

•E mostrando que os procedimenros de validacáo e de invalidacáo sao de

certa maneira comparáveis ao criterio popperiano de falseabilidade, escla­rece-nos que

o papelda falsificac;ao é asswnido aqui pelo conflito de interpretacóes rivais.Urna interpretacáo nao deve ser somente provável, mas mais provável queurnaoutra. Há critérios de superioridade relativaque podem ser facílmentederivadosda lógicade probabilidade subjetiva."

E Ricoeur nao nos diz, mas podemos inferir que o que ele chama "lógicade probabilidade subjetiva" está, a rigor, legitimado por acordos intersub­jetivos que tém lugar no interior de comunidades de cornunicacáo e deargurnentacáo inter-pares, nos termos formulados por Apepo

28 P. Ricoeur, "Expliquer et comprendre: Sur quelques connexions remarquables entre lathéorie du textc, la théorie de l'action et la théorie de l'histoire", p. 202.

29 Idem.

30 O ponto de vista de Karl-Otto Apel está bem justificado em seu ensaio "La comunidadde comunicación como presupuesto trascendental de las ciencias sociales", in LAtransformación delafilosofia, tomo n, pp. 209-249.

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1

O Itrgar - e em IJlgar - dométodo

Urn terceiro ponto seria o da validacáo de resultados alcancáveis pelavia nao-metódica em que o papel tradicional da cornpreensáo, como ge­radora de hipóteses ou conjecturas, passa a ter funcáo de indiscutiveJ valorcognitivo. É quando a inrerpretacáo explicativa, apoiada em dados obri­dos pela via metódica, articula-se com a interpretacáo compreensiva, nao­metódica, porém perfeitamente habilitada para alcancar resultados igual­mente sujeitos avalidacáo hermenéutica, marcada peJo conflito de inter­preta<;6es mencionado há pouco. 1sso significa que Iimitacóes ao papel dacompreensao na esfera cognitiva, atribuindo a eJa funcáo exclusiva de ge­rar hipóteses - em virtude das inforrnacóes que logra obter serem resul­tantes de empatia, como querem autores como Michael Martín," e o pró­prio Weber, se levarmos em conta alguns de seus comentadores _,32 naose sustentam diante dos argumentos até aqui apresentados. Nesse sentido,espero haver deixado claro que a validacáo das observacóes construidasno interior das experiencias vividas pelo pesquisador - típicamente no

exercício da pesquisa de campo - nao tiram seu caráter eminentementeinterpretativo - compreensivo; o que as distingue, por sua vez, do conhe­cimento interpretativo - explicativo, característico das ciencias nomológicase, ponanto, sujeito a false~bilidade popperiana.

*Creio que podemos concluir dizendo que já é tempo de deixarmos deopor sistematicamente, como vasos nao comunicantes, a compreensáo e aexplicacáo; a primeira tributária da perspectiva hermenéutica; a segunda

31 Michael Martin, "ünderstanding and participant observation in cultural and socialanthropology", op. cit.

32 Nesse sentido, vale a pena consultar o Iivro de ]udith ]anoska-BendJ, Max Webery larociologla delabistoriai.Aspeaos metodológicos deltipoideal. Na secáo intitulada "Tipo ideal elúpótesis" (pp. 97-113), a autora examina extensamente a controvérsia sobre o lugarda cornpreensáo (verstehen), na construcáo do tipo ideal, bem como sobre a naturezahipotética desse último. Embora ]anoska-BendJ esteja mais preocupada com a nature­za do tipo ideal- se "hipótese", se "teoría implícita" etc. - do que com a faculdadeda cornpreensáo, o exame da controvérsia rnostra o quanto Weber está comprometidocom urna sorte de aentismoque, a rigor, o afasta de urna posicáo efetivamente herrne­néutica - no sentido que a da estamos atribuindo na esteira das reflexóes de Gadamere Ricoeur.

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1\il!

Roberto Cardos» de Oliueira

caudatária das ciencias empírico-analíticas - e nao necessariamente posi­tivistas ou, mesmo, neopositivistas, como tern sido hábito caracterizá-las

com o intuito de deslegítimá-las. Em lugar de tomarmos ambas modali-._oc dades de conhecimento como incompatíveis, o que se pretendeu defen­

der aqui foi, precisamente, a compatibilidade entre os dois modos deconhecer, preservando as duas instancias em que se exercita a cognícáo: ametódica e a nao-metódica.

Durkheim mostrou-nos pioneiramente para a sociología o lugar dométodo na legitimacáo do conhecimento produzido por uma entáo novaciencia. Passado um século, essa mesma sociología - e, com ela, sua irrná

antropología - somaram expressivos resultados legítimamente alcanca­dos gra<;:as ao uso competente de métodos. E nada indica que esses méto­dos tenham de ceder lugar para investigacóes que os eliminem, por deles

nao necessitarem. Ao contrário, a instancia metódica tende a continuarnutrindo a teoria social de evidencias cada vez mais dependentes do aper­feicoamento de metodologías; basta considerar, mesmo em urn rápido esuperficial sobrevóo pela história das ciencias sociais o quanto essas meto­dologías se sofisticaram! Por outro lado, vale também res saltar, que a re­cente - ainda que tardía - reapropriacáo do ponto de vista herrnenéu­

tico pela epistemología das disciplinas sócio-culturais permitiu exorcizar ailusáo da objetividade radical- a saber, o objetivismo -, revelando umainstancia náo-metódica, porém provedora de conhecimentos igualmente

tangíveis, ainda que por critérios diverso~ que, por conseguinte, nao to­rnem a certeza como norma absoluta de verdade.

Diante do que procurei expor, o conflito entre partidários da. compre­ensáo hermenéutica e da explicacáo nomológíca parece-me um conflito

equivocado. Com referencia a minha disciplina, a antropología, a existen­

cia desse conflito está visível em urna c9piosa bibliografia, especialmenteproduzida nos centros anglo-sax6es, em que "tradicionalistas" e "pós­

modernos" esgrimem seus argumentos ad nauseam! Gostaria de ilustrarisso com urna referencia a um único autor e, com isso, finalizo minhaexposicáo, Trata-se de um professor da Universidade de New Hampshire,S. P. Reyna.P que em um artigo publicado na revista inglesa Man, com o

33 Cf. Man - Tbe}ollrnalof tb«RoyalAnlhropologicallnstilule, vol. 29, n" 3,1994, pp.555-581.

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L ~~~~._. ._-

o IlIgar - eem lugar - dométodo

sugestivo título "Literary anthropology and the case against science", das­sifica a "antropologia interpretativa" norte-americana, que se pretendeherdeira da perspectiva hermenéutica, como sendo urna "antropologíaliterária", no que se oporia logícamente a urna antropología verdadeira­mente científica. A despeito do comprometimento explícito de Reyna comas ciencias empírico-analíticas, suas restricóes as críticas "pos-modernas"áquelas ciencias nao devem ser desconsideradas, uma vez que mostram

que tais críticas, a rigor, nao as atingem verdadeiramente. Isso significa quecontinua havendo um espa<;:o próprio. para os procedimentos analíticosque deveriam ser melhor conhecidos da chamada crítica pos-moderna. Ese esse autor, por seu lado, tem dificuldades em avaliar as amplas possibi­lidades da compreensáo hermenéutica - como procurei mostrar, seguin­

do Ricoeur e Apel -, isso é um fato que nao deve impedir o exercício dodiálogo inter-pares, isro é, no interior da arnpla e diversificada comunidadede antropólogos - ou de cientistas sociais, de forma geral -, organizada- ainda que nao tao bem organizada como seria a desejar - em ámbito

internacional. Ao contrário: deve incentivar esse diálogo, sobretudo apósurna diminuicáo que espero venha a ocorrer relativamente agama de mal­entendidos que a radicalizacáo das respectivas posicóes marcaram o deba­te. Mas o importante é que já existe um diálogo, só faltando amadurecé-lo,de modo a escoimá-lo de posturas rígídas e dogmáticas. Penso que, apartir de reunióes regionais ou nacionais como esta, ou internacionais rea­lizadas com o objetivo de alcancar entendimentos em nível planetário, asociología - que um dia foi toda durkheimiana -, abra-se mais a essedebate que a antropología vive atualmente, trazendo urna saudável tensáoasua prática de investigacáo tanto quanto aconstrucáo da teoria social.

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Capítulo 5

A DUPLA INTERPRETAC;AoNA ANTROPOLOGIA 0' '~_'\ -;( __ o

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Falar em interpretacáo nas ciencias sociais hoje em dia e, sobretudo, naantropologia, é urna temeridade, pois facilmente quem assim o faz podeser confundido com um defensor de urna "antropologia interpretativista",comumente chamada de "pós-moderna". É evidente que nao é isso que

-pretendo fazer nesta cornunicacáo,' cuja finalidade maior é a de dar algumrelevo a quest6es de metodologia, como também de teoria, que digamrespeito ao traba!ho antropológico. E se estou aduzindo teoria ametodo­logia, faco pela simples razáo de que nao vejo utilidade em tratar essa semaquela. Pensar metodologias implica necessariarnente invadir dimens6esmeta-teóricas. Por essa razáo, justifico examinar aqui aspectos preliminaresa metodologias específicas, debrucando-rne sobre aquilo que estou cha­mando de "dupla interpretacáo". Por isso, pretendo expor algumas idéiasque possam nos conduzir a evitar qualquer maniqueísmo que sempre as­soma quando o tema é a interpretarao e, com ela, o binomio explicar­

compreender. No desenvolvimento dessas idéias, espero fazer valer a própriaexperiencia ganha por nossa disciplina em sua idade já secular que - ébom esclarecer - nao mais admite ser tratada como "jovem ciencia", e,quase sempre, em sentido pejorativo. Juventude essa que !he tem custadoo descrédito em muitos contextos, notadamente naqueles em que se en­contram as agencias de fomento.

Procurarei ser o mais sucinto possível, sem me alongar em considera­cóes prévias relativas ao lugar da interpretacáo em nossa disciplina - ou

em outras que lhe sao congéneres -, posto que essa nocáo nos é bastantefamiliar, desde que ternos admitido facilmente que a mais singela descricáo

Este texto foi originalmente elaborado como comunicacáo amesa redonda "Discus­sóes Metodológicas da Antropologia Contemporánea", programada no ámbito daSemana deAntropologia, organizada pelo Departamento de Antropología do Institutode Filosofia e Ciencias Humanas da Unicarnp, Campinas, 1994; e publicado no .Anuá­

rioAntropológieo-94, pp. 9-20.

95

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Roberto Cardoso de O/iveira

carrega sempre um certo grau de interpretacáo, cuja avaliacáo - alguns

até poderiam dizer mensuracáo - poderá indicar uma variacáo suscetível

de ser tomada, ela mesma, como dado de pesquisa. Quero dizer com issoque a própria divergencia na interpretacáo da realidade sócio-cultural so­fre pelo menos duas refracóes: uma, resultante da descricáo mesma, a

rigor, uma interpretacáo de primeiro grau; a outra, de segundo grau, umainterpretacáo da descricáo - sendo essa descricáo, ela própria, interpreta­

tiva. E isso parece ser tao evidente na antropologia que, relativamente aprimeira refracáo - a da interpretacáo na descricáo - mesmo a mais

contundente antropologia positivista reconheceu isso com a expressáoanaiytical description, nos termos pelos quais essa expressáo foi formulada

desde princípios dos anos 1950 por um dos epígonos do estrutural-funci­onalismo británico, Meyer Portes.'

Portanto, o que há de novo na interpretacáo? Creio que a nocáo e a

maneira pela qual tem sido usada no discurso da disciplina nao sao mais

suficientes para iluminar o nosso caminho em busca de um melhor escla­

recimento da questáo, Temos de passar da nocáo ao conceito. Bé precisa­mente o conceito de interpretacáo que eu gostaria de explorar na oportu­

nidade des te artigo. Antes, devo dizer, que distingo interpretacáo de compre­ensdo - Versteben -, seguindo, aqui, Paul Ricoeur, quando esse autor exa­mina a relacáo dialética entre compreensdo e explicarao em vários de seus escri­

tos.' Entretanto, se considerarmos que o conceito de interpretacáo é mais

\:

\!

\ '

1- , •

2

3

Cf. Meyer Portes, "Analysis and description in social anthropology", in Tbeadvancementrf sdenie, vol. X, 1953, pp. 190-201. ,Vale distinguir aqui o que estou chamando de inrerpretacáo de primeiro e de segundograu - ou refracóes -, da distincáo que faz um autor como Giddens entre duashermenéuticas - ou double bermeneutic -, urna relativa aprópria materia social comque trabalha o sociólogo - ela mesma produto de representacóes dos agentes sociais-, outra referente ainterpretacáo dessa rnatéria social pelo pesquisador. 1 -

Cf. A. Giddens, Neu/11I/es rf soci%gjca/metiod, p. 146; e, também.], Bleicher, Thebermeneuticimagination: Oulline rf apositioe critique rf saentism andsotiology, p. 52.Há de se distinguir ainda essa "dupla hermenéutica" daquilo que chamo de duplainrerpreracáo - como se verá adiante.

Destaco pelo menos tres deles, todos inseridos em um volume de ensaios sobre her­menéutica. Sao eles: "Qu'est-ce qu'un texte?" (1970);"Expliquer et comprendre" (1977);e "Le modele du texte: L'action sensée considerée comme un texte" (1971).Cf. Paul Ricoeur, Du text«aI'action.

96 l

A dupla inlerpretarao daantrop%gia

extenso _ logicamente falando - que os de explicat;:ao e compreensao,urna vez que os recobre, totalizando-os em urna única categoria cognitiva,

verificaremos que tanto a explicac;:ao corno a compreensao passam a ter

func;:6es de adjetivar a interpretac;:ao. É o reconhecimento de que nao há

descrit;:ao, por mais intencionalmente objetiva que seja, sem um mínimode interpretac;:ao. Está condicionada por um contexto intersubjetivo - acomunidade de profissionais da disciplina. Terí~mos, assim, a interpretaraoexplicativa e a interpretarao compreensiva. Essas duas modalidades de interpre­tac;:ao guardam entre si urna relacáo dialética, isto é, de mútua ou recíproca

contaminac;:ao. Para simplificar, recorro ao "arco interpretativo" de quenos fala o mesmo Ricoeur e que habita, muitas vezes inconscientemente, a

nossa prática etnográfica. E~ um extremo desse arco, exercitamos urna"compreensao ingénua, de superfície, quase urna intuicáo 'daquilo que nos é

dado apercepc;:ao. No outro extremo, realiiamos urna compreensao sábia, de

-profundidade, urna indut;:ao fortalecida pela mediat;:ao ou anterioridadeda explicarao _ nomológica -, situada no vértice do arco interpretativo.

Seja-me permitido recorrer aqui a urna ilustracáo, tirada de meu livro

O indio eomundo dos brancos, em que procurei assentar minha interpretac;:aodos Tükúna em urna análise formalizante do sistema de c1assificac;:ao rote­

mico ainda vigente entre aqueles índios, portanto de indispensável examepelo pesquisador. De urna maneira muito sucinta, diria que minha preocu­pacáo entáo era a de identificar alguns critérios inerentes acultura tükúnatradicion.a

l_ visto que esses Indios viviam urna conjunc;:ao intercultural

secular _, critérios esses que os orientassem ern sua vida intra-tribal. A

"análise componencial" adorada, em um esforco de algebrizat;:ao do pa­rentesco tükúna, mostrou-se suficientemente rentável para ~ermitir expli~citar esses critérios. Em número de quatro, foram eles: sexo [A), gerarao (B),

linealidade Le) metade [D).O que significa dizer que esses índios privilegiavam no processo de

interat;:ao interna avida tribal, a separac;:ao entre sexos [A), grat;:as adicoto­mia masculino _ feminino; a considerac;:ao da gerat;:ao (B), expressa em

Soma-se a esses ensaios um pequeno, mas interessante livro, rraducáo do originalinglés de 1976, a rigor urna série de li<;oes ministradas ern urna universidade norte-

americana.Cf. Ricoeur, Teoria dainterprelafoo: O discurso e oexassodesigniftcaFoo.

97

Page 50: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cerdoso de Oliveira

um diagrama de parentesco pela relacáo dinámica das duas gera<;:6es as­

cendentes e as descendentes relativamente a ego; o princípio de linealidade[C], por meio do qual se fortaleceria a patrilinearidade ern oposicáo acolateralidade; para, finalmente, reconhecer a funcáo das metades [D] ­anónimas - na regulamentac;ao do matrimonio exogárnico. Porém, a análise

componencial mostrar-se-la adequada no exame da terminologia de pa­

rentesco. Como? Algebrizando cada termo de parentesco de maneira atransformá-los em equacóes capazes de sintetizar, termo a termo, a ope­racáo dos quatro critérios - ou valores - sobre a relacáo social efetiva­

mente indicada pela categoria de parentesco. A quem interessar esmiucar oassunto, lembro que está tratado no livro citado, ern seu capítulo rv, "Da

ordem tribal aordern nacional". Agora, limito-me a ilustrar minha tentati­

va de forrnalizacáo, recorrendo a um único exemplo.

Tomemos o termo indígena dz'au:ta?a que engloba nada menos do

que 18 posicóes demonstráveis em um sistema de parentesco, 'todas situa­

das na geracáo de ego [B3] e nas duas primeiras gera<;:oes descendentes

[B4 e B5], sendo que, na primeira e na segunda das gera<;:oes ascendentes[B2 e Bl], esse termo estaria excluido. Todavia, teria sido impossívellevar

avante a análise do sistema terminológico de parentesco, sern o uso deurna notacáo algébrica que registrasse nao apenas o termo relativamente

ao critério de gerafao [B], mas também que igualmente considerasse osdernais critérios enunciados.

Repito: sexo A 1 e A2, para masculino e feminino respectivamente;

/inea/idade C1 para patrilinearidade, C2 para colateralidade; e metade D1,agnática ou a rnetade a que pertence ego, e D2, náo-agnáticaou metade

oposta, marcadora de exogamia. Quero insistir no exemplo só para suge­

rir o quanto urna tentativa de forrnalizacáo pode servir para oferecer urna

descricáo analítica possivel a mais, destinada a apreender o código do paren­

tesco, portanto sua gramaticalidade. A aludida palavra dz'au:ta?a sornente

poderia ser decomposta em seus componentes rnercé do recurso a urna

modalidade de tratamento algébrico dos termos de parentesco.Exemplificando: a equacáo A2B4C2D1, indica, respectivamente, o sexo

feminino, a primeira geracáo descendente, a linealidade e a rnetade agnática,

envolvendo a filha do Filho (fF) com a qual o matrimonio é vedado paraego masculino, urna vez que o sistema é totérnico, constituido por clás e

merades exogámicas; enquanto a equa<;:aoA2B5CID2 englobaria apenas a

98

r'~;,

~A duplainterpre/arao da antl"Opologia

filha da filha (ff) do mesmo ego, com a qual o matrimonio é permitido,

pesto que pertence ametade oposta de ego. Como veremos adiante, ha­verá equa<;:6es que englobam várias posicóes identificáveis em um diagra­

ma de parentesco. As letras maiúsculas e os números que lhes sao as socia­

dos permitem descrever com economia o reor das relacóes soeiais que

transcendem o parentesco propriamente dito. Buscando-se o significado

dos componentes - ou valores -, um a um, a análise tem a finalidade de

identificar categorias - equa<;:6es - que, por sua vez, nao se confundem

con1 os termos de parentesco.por conseguinte, será gra<;:as a essa modalidade de análise que as 18

posi<;:6es de parentesco cobertas pelo termo dz'au:ta?a poderáo ser, assim,

reduzidas a oito categorias diferentes contidas naquele mesmo termotükúna: por meio de reducóes progressivas ainda se pode reduzir a quatro,

desde que se coloque entre colchetes, ou que se suspenda provisoriamente

sua funcáo classificatória, o critério de sexo [A].Recorro, agora, a urnas poucas linhas entáo escritas:

Dessas guatro categorias (reduzidas assim a seus componentes B,e e D) trésdelas (caracterizadas pelo componente D2, que indica o membro da metadeoposta) estáo incluidas no vocativo too'ta?a [termo este aplicável, por sua vez,aquelas pessoas com relacáo as quais o casamento é possivel], exprirnindo,portanto, a possibilidade matrimonial; urna dessas categorias (caracterizadapelo componente Dl, que compreende membros da metade de ego) édistinguida pelos Tükúna, que negam aos individuos nela incluídos o apelativotoo'ta?a, embora continuem a se referir aos mesmos pelo termo [denotativol

dz'au:ta?a.4

A análise permite concluir, assim, que esse último termo, face aplu&­

lidade de posi<;:6es que ele cobre no sistema de parentesco, tem de ser

contraposto a um segundo termo, o vocativo ou apelativo too'ta?a, de cujaurilizacáo se valem os Tükúna para identificar na vida cotidiana os seus

cónjuges potenciais, situados, todos, na metade oposta. Ternos, portanto,

as tres seguintes categorias identificadas pelo termo too 'ta?a, falando ego

masculino:

4 Roberto Cardoso de Oliveira, O indioeo mundodos brancos, p. 106.

99

Page 51: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Carnoso de Oliveira

A2B5C1D2 [= filha da filha (ff)].

A2B3C2D2 [= filha da irrná do Pai (fiP), filha do Irrnáo da máe (fIm)];

A2B4C2D2 [= filha da irrná (fi), filha da filha do Irrnáo do Pai (ffIP),filha do Filho da irrná do Pai (fFiP), filha da filha da irrná da máe (ffim),filha do Filho do Irrnáo da máe (fFIm)];

6 Como ilustracáo dessa reducáo.da cornpreensáo, a mera produtora de hipótese, veja­se Theodore Abel, "TI1e operation called Versteben"; in Versteben: .ftlbjective understandingin the social saences, M. Truzzi (org.), pp. 40-55; e "Replay to professor Wax", pp. 83­86. Escreve ele: "É um fato aceito que, na formulacño de hipóteses, comec;:amoscomalgum palpife ou infuirao. Agora isso parece muito provável que os palpites que noslevarn a certas hipóteses concernentes ao comportaroento humano, originam-se daaplicacáo da operacáo do Versteben" - p. 53. Ou, ainda, em sua réplica a um crítico-Murray L. Wax -, é ainda mais enfático quando diz que "ero minha opiniap

Versteben é a fonte principal de hipóteses em sociologia" - p. 85.

7 Cf., por exernplo, Michael Martín, "Understanding and parúcipant observaúon incultural and social anthropology", in Versteben: Jllbjecfive understandlng in tbe socialsdences, pp. 102-133. Esse epistemólogo considera que "ern qualquer caso (...) com­preender [undersfanding] urna pessoa parece ser redutível a conhecer certos fatos sobreela. Chamamos a esse tipo de conhecimento de conhecimento proposicional.(...) Amesma coisa poderia ser dita sobre compreender urna comunidade. Com~reenderurna comunidade parece consistir em ter certo conhecimento proposicional sobre essacornunidade" - p. 106. Embora o autor considere curras modalidades de coropreen­sao, como a que tern lugar por meio da observacáo participante, a única roodalidadeque ele reconhece como sendo científica é aquela que permite uro conhecimento

factual, traduzido em proposicóes.

A dupla inferprefarao da antropologia

compreensao podem se constituir - no caso da antropologia, pelo me­nos _ em modalidades de interpretacáo até certo ponto complementa-

¡-.res, a primeira voltada para a identificacáo de regras e de padróes susceci­veis de um tratamento proposicional; a segunda voltada para a apreensáodo campo semántico em que se movimenta urna sociedade particular; urnaapreensao, aliás, comumente feita por todos nós no exercício da "observacáo

participante" - sempre reconhecida, seja dito, como inerentementeimpressionista, precisamente por nao fornecer proposicóes nomológicas;aO passo que, para os "cientificistas" mais ardorosos, tal observa<;:ao partici­pante nao nos poderia fornecer senáo hipóteses" a serem testadas pela viametódica de urna explicacáo absolutamente neutra. É o que nos sugeremcertos autores ciosos do caráter proposicional do discurso científico.' Enós sabemos que no trabalho típico do antropólogo, pelo menos desdeMalinowski - na forma moderna de nossa disciplina -, praticamente todasas monografias - que por sua exemplaridade consolidaram o nosso ofí­cio - térn nos resultados dessa mesma observacáo participante - pormais variável que seja a competencia com que essa observacáo foi exercita-

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J,.'1;·t

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Cf. especialmente de Apel, "La comunidad de comunicación como presupuestoO" trascendental de las ciencias sociales", in La transformación de lafilosofa, tomo Il, pp. ..-'

209-249, como o texto que melhor esclarece esse ponto.

5

o enigma, portanto, de haver um único termo denotativo para urnapluralidade de posicóes no sistema de parentesco, sem urna identificacáo

aparente entre cónjuges possíveis, em se tratando de urna sociedade divi­dida em metades exogámicas, fica desfeita com a introducáo no léxico do

parentesco de um termo vocativo, como urna estratégia desse POyO indí­gena na elaboracáo de seu cálculo social.

Quais as implicacóes do que acabo de expor para a questáo da inter­pretacáo? Considere-se que já nao falo agora de níveis de interpretacáo ­

de primeiro ou de segundo grau - como mencionei parágrafos' atrás.Refiro-me agora a interpretarao explicativa, que surge em decorréncia de

.análises formais ou formalizantes, portanto sob o signo de procedimen­tos nomológicos. A essa análise, que no exemplo dado incide na instanciado parentesco em busca de sua sintaxe e, com ela, na descoberta de. umcódigo, vai se contrapor - em urna primeira apreciacáo - urna sorte de

interpretafao compreensiua, por meio da qual se procura dar conta de signiü<:a~

cóes apreensíveis por urna abordagem hermenéutica, Já se tem falado muitosobre as possibilidades da hermenéutica no trato de fenómenos sócio-cultu­

rais. Por isso, limito-me aqui a apenas mencionar que menos de herrnenéu­

cica e mais de interpretativismo - e sublinho o ismo - é que ternos lido eouvido. Porém, nao vejo necessidade de desenvolver consideracóes maisextensas sobre o tema da hermenéutica striao sensu, contentando-me a dizerque a aceitarmos os argumentos de Ricoeur - que se amparam, por sua vez,em escritos bastante profundos de Karl-Otto Apel _,5 a explicacáo e a

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100101

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Page 52: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de OIÍ/)eira

~"¡ A dnpla interpreta,ao da antropologia

da - talvez a melhor expressáo de interpretacáo compreensiva. Portanto,

a rnaior intimidade de todos nós com essa segunda modalidade de ínter­pretacáo dispensa-me de ilustra-la da maneira mais pormenorizada, como

fiz relativamente ainterpreracáo explicativa.

No entanto, gostaria de examinar muito rapidamente a concepcáo que

do tratamento hermenéutico tem um autor como CliffordGeertz," quan­

do submete a urna interpretacáo compreensiva o conjunto de rituais bali­

neses ern busca de seu significado, a saber, da mensagem que eles veicu­lamo Escreve o autor:

Tal como a poesia, que no seu sentido vasto de poiesis ("fazer") é aquilo queestá implicado, a mensagem está neste caso tao profundamente submersa no

rneio que transformá-la em urna rede de proposicóes é arriscar cometer si­multaneamente ambos os crimes característicos da exegese: ver nas coisas

mais do que realmente lá está, e reduzir urna riqueza de significados concretosa uma parada monótona de generalidades.

Porém, adverte ainda Geertz, que "sejarn quais forem as dificuldades e

perigos, a tarefa exegética tem de ser levada a cabo se se quer ficai com

mais do que o mero fascínio maravilhado".?

Demonstrando, com essa advertencia, a necessidade de urna certa arti­

culacáo entre a interpretacáo compreensiva e a explicativa - ou proposi­

cional -, ambas, entretanto - ao que entendo -, guardando sua auto­

nomia. Assim, se para a cornpreensáo da ordem balinesa - seu "Estado

teatro" ou Negara) "é necessário captar o sentido do acontecimenro"."

8

9

10

CE Clifford Geertz, Negara: OEstadoteatro doséculo XIX. Nesse Iivro,ve-se que Geertzinspira-se claramente na tradicáo hermenéutica, ao dizer que "duas abordagens, doistipos de cornpreensáo, devem convergir se se quer interpretar urna cultura: urna des­cricáo e formas simbólicas específicas (um gesto ritual, urna estátua hierática) enquan­to expressóes definidas; e urna contextualizacáo de tais formas no seio da estruturasignificante total de que fazem parte e em termos da qual obtém a sua definicáo. Nofundo, isto é, obviamente, o já conhecído círculo hermenéutico: a apreensáo dialéticadas partes que estño incluídas no todo e do todo que motiva as partes, de modo atornar visíveis simultanearnenre as partes e o todo" - p. 133.

Idem, p. 132.

Ibidem, p. 133.

102

Nern a descrícáo rigorosa de objetos e comportamentos associada aetnogra­

fia tradicional, nem o tracar cuidadoso dos motivos estilísticos que é a icono­grafia tradicional, nem a dissecacño delicada de significados textuais que é a

filologia tradicional sao em si suficientes. Térn que se fazer convergír de um

modo tal que a irninéncia concreta do teatro representado produza a fé nele

contida.'"

E isso porque o Negara, se bem que fosse uma estrutura de acáo ­

sangrenta ou cerimonial -, era também "urna estrutura de pensamento.

Descrevé-lo é descrever uma constelacáo de idéias guardadas em um reli­

cário" .12 Eis como Geertz caracteriza os rituais da corte de Bali:

Os cerímoniais de Estado do Bali c1ássico eram teatro metafísico: teatro con­cebido para exprimir urna visño da natureza fundamental da realidade e para,ao mesmo tempo, moldar as condicóes de vida existentes em consonancia

com essa realidade; isto é, teatro para apresentar urna ontologia e, ao formulá­la, fazé-la acontecer, torná-la real."

Em apoio a essas consideracóes, creio que vale a pena recorrer a uma

comparac;ao mais ordenada entre explicacáo e compreensáo de modo a

elucidarmos melhor o lugar que ambas ocupam relativamente a suas pos­

sibilidades cognitivas. 14 Vou lancar máo de um modelo muito simples para

11 Clifford Geertz, Negara: O Estado teatro do sécuio XIX, p. 134.

12 Idem, p. 169.

13 Ibidem, p. 134.

14 É oportuno registrar que, certamente, urna boa e profunda tentativa de equacionarentre nós a questáo da explicacáo - cornpreensáo, no ámbito da história da antropo-rlogiasocial, foi realizada por Celso Azzan Júnior em Antropologia e interpreta,ao: Expli­carao e compreensáo nas antropologias de Léví-Strallss e Geerti; A propósito de urna cuida­dosa leitura desses dois autores, cada um deles ilustrando um e outro pólo da equacáo,CelsoAzzan consegue realizar uro exame bastante esclarecedor dessa questáo, leitmotivde seu livro - elaborado originalmente como dissertacáo académica. O ponto maisinteressantede seu trabalho é quando mostra- no que diz respeito ao interpretativismogeertziano - o quanto se toma difícil com ele realizar um programa que seja efetiva­mente hermenéutico; e isso, por falta de um léxico adequado, urna vez que Geertz obusca na semiologia de Peirce, o 'lue só faz afastá-lo da própria hermenéutica, Umsegundo ponto a merecer destaque, ainda relativamente ainterpretacáo hermenéutica- ou compreensiva -, é quando sugere sua associacáo a teoria da acáo de Austin,como que completando a guinada lingüística da antropologia atual. Sao pontos que

103

Page 53: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

n\!

Roberlo Cardoso de OJiveira

..,1

A dupla inlerprelarao da antropologia

Em uma demonstracáo por diagrama, teríamos:

presente, tao operativa como efetiva em sua modalidade dialética, nos dois lados do

diagrama, na col una A e na B.

Gostaria ainda de acrescentar, antes de concluir, que estou consideran­do a contribuicáo de Ricoeur e do próprio Apel em termos rnuito pró­

prios, relacionados com minha experiencia de membro de uma comuni­dade de antropólogos e nao de filósofos - é bom esclarecer. lsso querdizer que entendo os dois sentidos de interpretacáo no quadro de minhadisciplina, procurando, por conseguinte, avaliar essa dupla interpretacáona esteira de uma experiencia tambérn coletiva, registrada na já longa his­

tória da antropologia. E se mencionei há pouco um procedimentonomológico -como a análise componencial -- nao foi absolutamentepor reconhecer nesse método uma contribuicáo permanente anossa dis­

ciplina; ao contrário, penso que tal tipo de análise, desenvolvida nos anos1960, no ámbito da chamada etbnoscience, já deu o que podia dar, revelandosua eficácia apenas em umas poucas instancias da cultura - particular­mente as etno-classificacóes; entretanto, ela serve para o argumento segun­do o qual uma metodologia radicalmente objetivista pode servir, no limi­te, ao refinamento de uma interpretacáo - que passa por um momentometódico - para, finalmente, alcancar seu instante de profundidade narealizacáo da cornpreensáo sábia - como nos aponta o arco hermenéuticoa que já me referi. Essa compreensáo sábia pode ser entendida como omomento de apreensáo do "excedente de sentido", de que fala Ricoeur,precisamente o momento nao-metódico da investigacáo, Trata-se daquele

sentido nao apreensível por via metódica, seja da formal ou mesmoformalizante - como no estruturalismo levi-straussiano -, seja simples-

t :r :

tentar tornar mais claro o que estou chamando de dupla interpretacáo," Secolocarmos lado a lado explicarao e compreensiio, encabecando duas colunasimaginárias A e B, e associarmos a das os valores sim e nao para expressarvalidade ou a falsidade de uma ou de outra forma de cognicáo, teremos asseguintes quatro cornbinacóes:1. quando explicaiiio e compreensdo nao sao, nenhuma das duas, reconhecidas

como suscetíveis de oferecer-nos conhecimento, portanto sao falsas, po­demos dizer que estamos frente a uma postura cética;2. quando na coluna A, da explicarao, temos o nao e na coluna B, na mesmalinha, temos o sim, estamos diante de uma hermenéutica tradicional, poisnegamos a validade da explicarao para reconhecer a da compreensao - por­tanto, uma postura romántica;3. ao relacionar novamente a explicarao e a compnensao e aduzindo o simpara aprimeira e o nao para a segunda, teremos a expressáo clara da posturanomológica e, em sua manifestacáo mais radical, positivista; finalmente4. quando relacionamos explicarao e compreensao, porém considerando ambasperfeitamente válidas em proporcionar-nos conhecimento antropológico,estamos assumindo uma postura hermenéutica moderna dialógica, ou aindadialética,16 portanto exercitando o que estou chamando de dupla interpretacáo,

nao tratarei aqui, mas se os trago é para indicar o quanto pode ser superficial aidentificacáo pura e simples do paradigma hermenéutico com a chamada antropologia"pós-rnoderna"; os argumentos de Celso Azzan servem para mostrar a complexidadeda questáo.

15 Para a elaboracáo desse modelo, inspirei-rne no pequeno livro de R. J. Howard, Tbreefaces of bermeneutics: An introduction lo curren! tbeones of tlf!derSlanding, p. 162. Para esseautor, o que estou chamando de dupla interpretacáo, como urna posicáo epistemoló­gica comprometida com a modernizacáo da antropologia, ele denomina "herrnenéu­tica moderna" ou dialética para, no ámbito da filosofia, distinguí-la, especialmente,da hermenéutica tradicional ou romántica,

16 Ainda sobre o uso do termo diaJética - tao desgastado nas ciencias humanas -, cabeadvertir que ele se reporta aquí para um sentido bem específico. Segundo o mesmoHoward, que o relaciona estreitarnente com as investigacóes hermenéuticas atuais, a"hermenéutica é propícia para repensar a lógica dialética de Hegel, mas nao paraaceitar sua conclusáo sobre o espírito absoluto. Esta posicáo antiidealista da herrne-

I néutica contemporánea significa que ela aceita a contingéncia iT7?dutíveJ dasestralégias do'. proprio pensador e da reaJidade mesma" - p. 166, o grifo é meu. Um ponto que ainda

deve ser destacado, seguindo o próprio Howard, é a questáo da intenaonalidade, quenas ciencias humanas é, particularmente, da maior importancia, urna vez que está

Coluna AExplicalfao

SimSimNaoNao

Coluna BCompreensáo

Sim

NaoSimNao

Posicóes Epistemológicas

(4) Dialética(3) Nomológica

rllP.~~_(2) Romantic~-~'~

(1) Cética &~~~4I ~0

104 105

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RobertoCardoso de O/iveira

mente obstinada na neutralizacáo absoluta do pesquisador, acreditandovaciná-lo contra qualquer vírus subjetivista - exemplifica isso a obsessivabusca de objetividade pelos antropólogos orientados por aquilo que venhochamando de "paradigmas da ordem" .!7 Para o antropólogo esse mo-

/ mento pode ser identificado como tendo seu início verdadeiramente criati­vo na e durante a pesquisa de campo, especialmente quando ern sua etnografiase vale da observacáo participante; mas deve também continuar durante aprópria elaboracáo de sua narrativa, ou de textualizacáo da cultura."

Penso que a dupla interpretacáo na antropologia, na forma como aentendo, tem várias conseqüéncias:1. a primeira é a nao exclusáo de nenhuma das modalidades de interpreta­c;:ao, vendo-as igualmente importantes no exercício da disciplina;2. a segunda - como um desdobramento da anterior - implica na com­patibilizacáo dos progressos evidentes alcancados pela disciplina Ce de­monstrados pela exemplaridade das monografias antropológicas, clássi­cas e modernas) com a preocupacáo atual (via hermenéutica) de submeter

a disciplina a urna crítica saudável, levando-a a exorcizar o mito da objeti­vida de absoluta ou, sinteticamente, o seu renitente objetivismo;3. a terceira conseqüéncia estaria na rejeicáo de outra ideología que podecorroer por dentro a disciplina, isto é, o interpretativismo em sua feicáo"pos-moderna", livrando com tal rejeicáo a própria hermenéutica, a serretomada em suas origens, livre de leituras apressadas como ternos obser­vado na história recente de nossa disciplina, especialmente nos EstadosUnidos. -

Sem dimensionar a contribuicáo da hermenéutica na epistemologia da

disciplina, ou, ainda, sem reconhecer o papel fundador do mét~do tantoquanto sua permanente atualidade na investigacáo antropológica, cria-se ocenário de um debate equivocado. E foi com o objetivo de contribuir paraevitar tais equívocos que as presentes consideracóes foram elaboradas.

17 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Sobreopensamento antropológico, especialmente Capítu­los 1 e 4.

18 Para nao dizer que entre nós nao se registra urna monografia que expressa competen­temente essa tensáo entre os paradigmas da ordem e o hermenéutico, gosraria demencionar o bonito livro de Alcida Rita Ramos Memorias Sanumá: Espaco e tempo emlima sociedadeyanomami.

106

Capítulo 6

ANTROPOLOGIAS PERIFÉRICASVERSUS ANTROPOLOGIAS CENTRAIS

o tema que me foi dado examinar nesta oportunidade - que me foi

sugerido por meu colega Dr. Secundo Moreno Yánez, secretário geraldeste congresso - contérn já em sua formulacáo urna inevitável interro­

gac;:ao: como interpretar o termo versus?! Urna oposicáo intransponívelentre comunidades profissionais "periféricas" e "metropolitanas"? um con­flito entre paradigmas exercitados em diferentes latitudes? ou urna relacáoeventualmente complementar entre perspectivas engendradas em mundosnao complementares, a se ter em mente urna visáo crítica terceiro-mundista...Gostaria, assim, de aceitar o desafio que me" oferece um tema tao comple­xo, cornecando por considerar - ainda que de sobrevóo - o tratamen­to que tem recebido nos diferentes cenários de debate internacional, sele­cionando uns poucos eventos que, aliás, parecem-me bem ilustrativos dedesconforto mesclado de certo sentimento de inferioridade e de muitaidiossincrasia, que térn marcado as relacóes entre as comunidades de pro­

fissionais da disciplina situadas na periferia dos centros metropolitanos deonde se difundiu a chamada antropologia moderna.

Desde [á, todavia, gostaria de esclarecer sobre o que entendo pelotermo versus contido no título da conferencia: nao o vejo, de modo algum,por urna perspectiva negativa; ao contrário, interpreto a palavra "versus"como significando urna tensáo, nao social ou política, mas teórica - me­lhor dizendo, meta-teórica ou, seja, epistérnica. E acredito que tal tensáo '

seja extremamente fértil para o desenvolvimento da antropologia, tal comotodos desejamos. Embora as contradicóes de caráter económico, social e

político existam e nao possam ser ignoradas, creio que, mesmo reconhe­cendo esse estado de coisas e nao desprezando o seu componente tercei-

Este texto foi elaborado para constituir-se, em sua versáo em espanhol, em urna das"conferencias magistrales" do 49u Congreso Internacional de Americanistas, realizadoem Quito, Ecuador, de 7 a 11 de julho de 1997. Urna segunda versáo, algo reduzida,foi apresentada, tambérn como conferencia, no V Congreso Argentino de AntropologíaSocial, realizado em La Plata, Argentina, de 29 de julho a 1ude agosto de 1997.

107

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Roberto Cardoso de Ofiveira

ro-mundista, nao posso deixar de constatar que há um espaco para odiálogo teórico e epistemológico em nível planetário - diálogo esse doqual nao poderemos nos furtar se desejamos, efetivamente, melhor noscapacitarmos na realizacáo de nosso ofício. Preocupado com essa relacáo

"centro/periferia", um grupo de antropólogos vem realizando no Brasilum programa de investigacóes com o objetivo de estudar comparativa­

mente a singularidade das chamadas "antropologias periféricas" sob a óti­ca de uma abordagem estilística que contemple, simultaneamente, a voca­<;:ao universalista de qualquer disciplina que se pretenda científica frente arealidade de seu exercício em contextos nacionais outros que nao sejamaqueles de onde se originaram os paradigmas fundadores da antropolo­gia. Mais adiante, procurarei dar uma idéia desse programa e, a seguir,concluirei minha exposicáo com uma reflexáo sobre o tema, no intuito deestimular novas investigacóes que tenham por alvo as relacóes entre antro­pologias que, por serem tensas, nao sao, necessariamente, antagónicas,

Antes um esc1arecimento: embora eu me interesse mais por tensóes de

ordem meta-teórica ou paradigmática, nao posso deixar de reconhecerque teorias e paradigmas sao pensados e ativados por comunidades de pro­fissionais de carne e osso - como nos ensinou Thomas Kuhn, esse com­petente historiador da ciencia -, ensejando, com isso, o desenvolvimentode análises extremamente agudas em que se combinam, sem se exc1uírem,duas tradicóes c1ássicas da história da ciencia, a internalista e a externalista; aque trabalha na esfera das idéias com a que procura descrever o contextohistórico-social dessas mesmas idéias, Curiosamente, nas diversas tentati­

vas de interpretar a história e o presente da antropologia, ra~amente oponto de vista articulador dessas duas tradicóes pode ser implementado,o que resultou em uma preponderancia da preocupacáo quase que exclu­sivamente contextual, concorrendo para que o olhar político preponde­rasse sobre o espistemológico e tornando questóes como o colonialismo

ou a dependencia cultural temas dominantes na literatura crítica da discipli­na, bem como nos encontros ou reunióes entre seus profissionais. Creioque essas reunióes merecem alguns comentários.

*Essas tres últimas décadas foram pródigas em simpósios e semináriossobre o assunto. Destaco alguns deles, uma vez que estamos limitados

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Antropofogias pertfericas versus antropofogias centrais

pelo tempo desta conferencia. Eu mesmo tive a chance de participar deseis: a primeira chance deu-se em Viena, no Burg Wartenstein, em 1967, echamou-se Reuniónpara la Integración de laEnseñanZf1 con lasInvestigaciones An­tropológicas; a segunda e a terceira, deram-se no México, respectivamenteum desdobramento da reuniáo anterior intitulada 11 ReuniónparalaIntegraciónde laEnseñanza enlasInvestigaciones Antropológicas, realizada em 1968, na Cida­de do México, e a 1 Reunión Técnica de Antropólogos eArqueólogos de .Américaútinay el Caribe, ocorrida na Hacienda Cocoyoc, no estado de Morelos,em 1979; a quarta e a quinta, ambas realizadas no Brasil, em 1980, no Riode Janeiro, e, em 1987, em Brasília, sendo a do Rio organizada pela Asso­cia<;:ao Brasileira de Antropologia (ABA), com o título Rumos da Antro­

pologia, enquanto a de Brasília, patrocinada pelo Instituto Panamericanode Geografia e História, pelo CNPq e pela mesma ABA, teve por título AAntropologia na América Latina. Nessa última reuniáo, pude ministraruma conferencia sobre "Identidade e diferenca entre antropologias peri­féricas"," ocasiáo em que examinei, grosso modo, os principais resultadosdessas reunióes e de outras - de que nao participei - mas que me pare­ceram extremamente importantes pelo temário geral e pela presen<;:a deseus participantes: refiro-me, especificamente, a duas delas: urna, em 1978realizada no mesmo Burg Wartenstein, com o título Indigenous Antbropologyin Non-Western Countries; outra, em 1982, proporcionada pela revista sueca

Etbnos, com o título Tbe Sbaping of NationalAntbropologies.Nao pretendo aqui reproduzir o que entáo pude dizer no evento de

Brasília, mas gostaria de retomar duas consideracóes que me parecemapropriadas nesta oportunidade. Urna diz respeito a temática das reunióesda década de 1960, praticamente circunscrita a avaliacáo do campo antro- 'pológico na América Latina, considerado, particularmente, em suas caren­cias institucionais, o que revelava, entáo, uma preocupacáo marcadamenteacadémica, ainda que as questóes epistemológicas se mantivessem longede serem abordadas. Outra consideracáo, que cabe agora fazer, diz respei­to acrescente politizacáo do campo antropológico a partir dos anos 1970e 1980, quando a questáo da construcáo da nacáo - nation building -

2 O texto foi publicado ero George Cerqueira Leite Zarur (coord.), A antropofogia naAmérica Latina, pp. 15-30.

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Roberto Cardoso de Üliteira

corneca a tomar corpo naqueles eventos, em um reconhecimento da di­mensáo política inerente as relacóes entre a comunidade de profissionaisda disciplina e os Estados nacionais. Evidentemente, as temáticas observa­das em todos os eventos estiveram sempre sensíveis as relacóes entre ospaíses de centro, cujas antropologias eram tacitamente consideradas comometropolitanas em comparacáo as dos países periféricos, tomados tambémde modo tácito como "culturalmente colonizados", entendendo-se, aqui,

a própria antropología como urna subcultura ocidental. Aliás, vários entrenós, na América Latina, na África e na Ásia, muito escrevemos sobre essadependencia e sobre o urgente processo de desenvolvimento - certa­mente autónomo - de nossas antropologias.

Nao quero retomar agora esse último tema nos termos até entáo pro­postos, urna vez que já foi objeto de muitas discussóes nos cenários naci­onais e internacionais. Desejo sim sublinhar as duas dirnensóes - a acadé­

mica-institucional, que envolve as atividades de en sino e de pesquisa; e apolítica, na qual se colocam as questóes étnicas e nacionais, e em cujasavaliacóes as políticas estatais sao sempre objeto de crítica -, sobre asquais nao se pode deixar de examinar mais detidamente as atuais tenden­cias que comecarn a se esbocar nas relacóes entre as antropologias que, nafalta de melhor termo, chamaremos de "periféricas" em contraposicáo asantropologias "centrais", isto é, aquelas que surgiram em fins do séculopassado na Inglaterra, na Franca e nos Estados Unidos. Desejo enfatizar- como tenho feito repetidas vezes - que os conceitos de periferia e decentro nao possuem mais do que um significado geométrico, certamenteem n dimensóes, em que espac;:o e tempo sao igualmente levados em con­ta, sem, porém, implicarem um quadro valorativo, isto é de "boa" ou"má" antropologia... Minha última participacáo em eventos dessa ordemdeu-se mais recentemente, em 1994, quando a Associacáo Latino-ameri­cana de Antropologia (ALA), organizou urna reuniáo em Niterói, no Bra­sil, no ámbito da XIX Reuniáo Brasileira de Antropologia (ABA). O tema

desse fórum foi a "Organizacáo do 'campo antropológico' latino-ameri­cano", no qual participaram os vice-presidentes Myriam Jimeno Santoyo,Carlos Serrano, Segundo Moreno Yáñez e Roque de Barros Laraia, queapresentaram cornunicacóes sobre suas respectivas áreas de atuacáo. O

número 4 do Boletim da AlA (abril 1995) apresentou sumários dessascornunicacóes que nos serviram de ponto de partida para a organizacáo

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Antropologiasperiféricas versus al1tropologias centrais

do fórum que acabamos de realizar na presente reuniáo, aqui em Quito, eque tive a satisfacáo de presidir. Menciono todos esses eventos para mos­

trar que o empenho dos colegas latino-americanos em discutir o estado­da-arte da antropologia revela que nossa comunidade profissional naotem estado desinteressada sobre o destino da disciplina em ámbito conti­nental, mas, pelo contrário, tern procurado realizar interessantes reflexóes

sobre diferentes aspectos do exercício da disciplina.Algumas idéias que podem ser res saltadas do conjunto desses eventos

devem servir como importante referencial nesta oportunidade. A primei­

ra seria o reconhecimento de que a disciplina, na América Latina, está

inserida na categoria de "antropologia de nacóes novas", empenhada naconstrucáo da nacáo e destituída de grandes tradicóes intelectuais - ao

contrário do que ocorre nas antropologias de antigas civilizacóes como aChina, o J apáo ou a Índia. Ao mesmo tempo - e isso nao ocorreria apenasna América Latina -, a disciplina estaria eminentemente interessada em seu

próprio território ou regiáo - como a regiao andina ou a regiáo maia ou, em

menor intensidade, a regiao amazónica -, e seus antropólogos dedicam­se prioritariamente aos trabalhos originários dos países de centro, devo­tando, em conseqüéncia, muito pouca atencáo ao que se produz no inte­

rior das antropologias periféricas do continente e, sobretudo, fora dele.Quantos de nós tem familiaridade com a producáo antropológica de pa­

íses da periferia européia, por exemplo, como a da Espanha ou Portugal,

da Grécia ou de países do leste europeu? Pode-se dizer que, além das

fronteiras de cada um de nossos países, pouco sabemos sequer sobre as

antropologias do nosso próprio continente e, sobretudo, das possibilid1­des de suas respectivas contribuicóes ao desenvolvimento da disciplina,

sejam elas de caráter teórico ou mesmo metodológico. Contudo, há de se

reconhecer igualmente que essas características que, segundo alguns autores,

poderiam ser consideradas como marcadoras do tipo periférico, nem porisso se constituem em obstáculo insuperável com vistas a condueño de

nossas antropologías a um efetivo desenvolvimento em escala planetária.

*Com essas preocupacóes em mente, decidimos realizar um programa

de estudo sobre "estilos de antropologia", dele resultando um seminário

levado a efeito há uns poucos anos atrás, na Universidade Estadual de

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Roberto Cerdoso de Oliveira

Campinas (Unicamp), e que serviu de ponto de partida para um conjuntode pesquisas projetadas para diferentes antropologias periféricas, tais comoas que térn lugar na Austrália, em Israel (Ierusalém), no Canadá (Quebec) ena Espanha (Catalunha).'

Antes de falar sobre essas pesquisas, gostaria de dar urna idéia geralsobre algumas conclusóes a que cheguei, pessoalmente, no aludido Semi­nário. Ao reunir colegas possuidores de experiencia de pesquisa e de refle­xáo sobre a antropologia de seus respectivos países a par de contaremcom alguma vivencia na antropologia feita no Brasil, decidimos estabele­cer um encontro que permitisse cornparacóes, se nao sistemáticas e globais,pelo menos fortuitas e tópicas, de modo a criar um clima de debate entrediferentes pontos de vista sobre a diversidade de atualizacáo de urna mesmadisciplina cada vez mais internacionalizada. Retomo a questáo inicial: comocompreender a singularidade de atualizacáo da antropologia nas chama­das "periferias" - que uso no plural, pois nao é urna, sao muitas - coma natureza universalista de qualquer disciplina que se queira científica? Nes­se sentido, procurou-se mostrar que essa singularidade -, manifestadapela disciplina em seu processo de difusáo para fora dos centros em quese originou historicamente, tanto quanto sua insercáo e desenvolvirnentoem outros países - nao haveria de significar uma abdicacáo de sua preten­sao universalista, urna vez que, tecnicamente, a disciplina sempre "falou" umaúnica "linguagem", talvez mudando ape:las o "tom", alguma coisa de sua"fonologia", ademais de urna ou outra contribuicáo para seu "léxico",

porém muito pouco - se é que efetivamente contribuiu - para sua"gramática". Ressalve-se, aqui, que o recurso a metáforas. provenientes deurna disciplina irrná, como a lingüística, se, de um lado, auxilia-nos para acompreensáo do problema - como suponho -, por outro, certamente,nao é suficiente do ponto de vista epistemológico, poi s deixa em abertourna importante questáo: como aplicar o conceito de estilo para caracterizar aantropologia - portanto, como algo rnais do que urna metáfora igualmenteoriginária da lingüística? Todavia, ainda valendo-rne de metáforas lingüís­ticas, creio que se a "gramaticalidade" da disciplina corresponde a sua

3 Os trabalhos apresentados nesse Seminario foram publicados em Roberto Cardosode Oliveira e Guilhermo Raul Ruben (orgs.), Estilosde antropologia.

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Antropologias periféricas versus antropofogias centrais

matrizdisciplinar, que tenho definido - seguindo elipticamente os passosde Thomas Kuhn - como constituída por um conjunto de paradigmasarticulados em um campo de tensáo epistémica, de maneira que nenhumparadigma supera ou anula outro paradigma, como no caso da matemá­tica ou das ciencias físico-químicas, nas quais acorre a superacáo de umparadigma por outro. Diria que na antropologia, e imagino em várias dasciencias humanas, essa matriz disciplinar nao chega a alterar sua estruturaem quaisquer das latitudes em que se atualiza, Assim, se a concebermos ­como, aliás, tenho feito nesses últimos anos - como constituída de pelomenos quatro paradigmas perfeitamente ativos na modernidade da antro­pologia - o estruturalista levi-straussiano, o estrutural-funcionalista de inspi­racáo británica, o culturalista norte-americano e o interpretativista geertziano;aos quais se poderia agregar outros, como o marxista, bu outros mais, demenor expressáo na história moderna da antropologia, sem que isso afeteo teor de meu argumento -, o fato é que as vicissitudes da matriz, vistana ordem planetária da disciplina, afetariam mais a sua dinámica interna­portanto, gerando rnudancas na matriz - do que determinando mudan­cas em sua estrutura - isto é, mudanca da matriz. Portanto, a permanenciaativa de uma estrutura constituída por um sistema de paradigmas em tensainteracáo, significa - voltando as metáforas - que a "gramática" dadisciplina nao se altera ou, pelo menos, nao tem se alterado substancial­mente. Em meu entendimento, o único paradigma novo - quer dizer,surgido nesta rnetade de século e que se expressa na chamada antropolo­gia interpretativista - nao é mais do que urna recuperacáo tardia de umparadigma filosófico do século passado, o hermenéutico, recuperado, porsua vez, por Dilthey das filosofias c1ássica e medieval, e modernizado polGadamer ou Ricoeur no presente século, cujo final estamos testernunhan­do. Pois bem: se a matriz tem permanecido praticamente a mesma, comurna ou outra alteracáo observável nas antropologias centrais, garantindoassim a universalidade da disciplina, o que se pode entender entáo por suasingularidade na periferia? É aquí que entra a nocáo de estilo.

Tomo emprestado a nocáo de estilo, na forma pela qual ela foi desen­volvida por Gilles-Gaston Granger, em seu livro Essaid'unephilosophie d'sryle,que a entende associada anocáo de redundáncia - nao mais como merasmetáforas lingüísticas, mas como conceitos operacionais. Nao vejo neces­sidade em deter-me no exame desses conceitos - urna tarefa que realizei

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rRobertoCardoso de Ofiveira

,Antropofogiasperiféricas tersus antropofogias centrais

Dizia que o Programa sobre Estilos de Antropologias vem dandoresultados bastante promissores. Tentarei destacar alguns, ainda que obti­dos em pesquisas nao necessariamente limitadas aAmérica Latina, em queo olhar dos colegas esteve orientado a partir de nosso continente, poistodos partiram de urna perspectiva engendrada no Brasil e condicionadapor urna antropologia enraizada no país. Como nao existe um lugar neu­tro de onde se pode observar a realidade, todos os estudos enfeixadosnesse programa devotado aconstrucáo de urna estilística envolvem, por­tanto, pontos de vista constituídos no quadro social, político e intelectuallatino-americano. Foi o caso, por exemplo, de tres das recentes pesquisasdo programa: urna primeira sobre a Austrália, realizada por nosso colegada Universidade de Brasilia, Stephen Baynes; outra efetuada em Jerusalém,por Marta Francisca Topel, e apresentada como tese de doutoramento naUnicamp; e a terceira feita em Barcelona, por mim, como professor-visi­tante da Universidade Aurónoma de Barcelona." A antropologia - oumelhor, a etnografia indígena - produzida na Austrália, a antropologiajudaica de Jerusalém - pois há que diferenciá-la da palestina -, bemcomo a catalá, que, de certo modo, mantém sua particularidade quando aconfrontamos com a castelhana, especialmente quando esrudamos o pro­cesso histórico de sua forrnacáo, todas essas antropologias foram obser­vadas a partir de um lugar perfeitamente definido: a América Latina, maisespecificamente o Brasil. Isso confere a investigacáo urna característica quesó podemos equacionar em termos de estilo, pois compreender o outrosignifica um passo a mais do que simplesmente explicá-lo; é tambémapreendé-Io por meio de seus elementos ou instancias empíricas nao sus­cetíveis de explicacáo analítica, ou seja, o que se apreende é o "excedentede sentido" - ou o surcroit de sens, para usar urna expressáo originária dahermenéutica de Paul Ricoeur, para quem esse excesso de significa<;:ao éalcancado gra<;:as ao momento nao-metódico da investigacáo -, que, paramim, é precisamente o momento em que se transcende a própria matrizdisciplinar, isto é, ultrapassando-a sem negá-la. É o momento em que se

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em outro lugar, em minhas "Notas sobre urna estilística da antropologia",apresentadas no aludido simpósio sobre estilos de antropologia -, masapenas mostrar a possibilidade aberta pela utilizacáo dos mesmos em di­recáo a urna estilística. Nesse sentido, redundancia passa a ser um conceitocomplementar a estilo na medida em que exprime algo no discurso quenao acrescenta nada amensagem, salvo o efeito de prolongá-la. Ao con­trário do uso que os lingüistas fazem da redundancia, quando a tornamcomo perda de inforrnacáo relativamente a inforrnacáo máxima autori­

zada pela língua - e aqui tomo a antropología como urna "linguagem"científica -, para mim - e aqui, talvez, me distancie um pouco de Granger-, a redundancia é a expressáo de um estado-de-coisas, é o resultado de

urna análise realizada por meio da matriz disciplinar, portanto na lingua­gem da antropologia, em que qualquer outro acréscimo de inforrnacáoseria inoperante relativamente a urna possível ampliacáo de nossa capaci­dade de cognicáo empírico-analítica; em outras palavras, essa capacidadeestá virtualmente oferecida pela potencialidade analítica da matriz discipli­nar.

Isso nao é tudo. A antropologia, que aufere todas as suas pontenciali­dades de explicafao mediante a atualizacáo de sua matriz disciplinar, lanca­se simultaneamente a aventura da compreensdo; a rigor, urna aventura náo­

metódica, profundamente individualizante, cujas conseqüéncias, impressas

no discurso antropológico resultante, só podemos considerar como Jatordeestilo. É, portanto, nesse sentido, que podemos considerar os elementosindividualizantes nas antropologías periféricas que lhes conferem particu­laridades que, por mais mareantes que sejam, nao nos autoriza¡n a c!assificá­las com o epíteto de nacionais. Assim, nao há necessidade de buscarrnosnacionalizar nossas antropologias para alcancarrnos maior autonomia ou,mesmo, independencia frente as antropologias centráis. Tal busca parece­me fundada em um falso problema. Para as antropologias periféricas e,evidentemente, também, para as metropolitanas, o objetivo das diferentescomunidades profissionais está em dominar cada vez mais a matriz disci­plinar, sua dinámica gerada pela tensáo inter-paradigmática, bem como osresultados que alcanca, ou tern alcancado, nas diferentes latitudes do planeta.

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4 o primeiro resultado de minhas investigacóes em Barcelona foi publicado na revistaMana: EstadosdeAntropofogiaSocia/, com O título "Identidade catalá e ideologia étnica",

pp. 9-47.

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Roberto Cerdoso de O/iveira

inaugura o estilo próprio de tal ou qual antropologia, particularizando-a

sem que ela perca sua vocacáo universalista assegurada pela matriz discipli­

nar - urna matriz alicerc;:ada sob urna pluralidade de métodos bem comopor um conjunto articulado ou articulável de paradigmas. Várias questóes

podem ser levantadas sobre a natureza do conhecimento obtido pela viametódica quando o comparamos com o conhecimento gerado pela in ter­pretacáo compreensiva. Examinei-as em outras oportunidade." quandosegui muito de perto as contribuicóes de Ricoeur e de Apel sobre o tema;por isso, permito-me deixar de examiná-las agora, dizendo apenas que,

independentemente do fato da interpretacáo compreensiva ter ou naovalor apenas hipotético - posto que ela nao está autorizada a formular

"leis", regras, ou generalizacóes mais ambiciosas alcancadas pela explica­

cáo -, o certo é que um debate como esse, mesmo que o levássemos aefeito nesta oportunidade, nao alteraria o sentido de nossa argurnentacáo,

pois o que desejo trazer a consideracáo dos colegas é urna linha de inves­

tigar;:oes que, no meu entender, tern dado interessantes resultados.Trata-se, todavia, de um conjunto de estudos que objetiva' desenvol­

ver-se no ámbito da América Latina, procurando, por meio das antropo­logias praticadas nos seus diferentes países, avaliar, por um lado, as possi­bilidades de desenvolvimento das mesmas; por outro, despertar um interés­

se recíproco entre elas de maneira a incentivar um diálogo horizontal, sem queisso diminua a necessidade da manutencáo de uro maduro con tato com as

antropologías centrais e que seja mais do que um monólogo, mas a vertica­lizacáo do mesmo diálogo. Como dizia - acerca do Seminário sobre

Estilos -, colegas latino-americanos presentes no evento trouxeram, além

da boa vivencia na comunidade de antropólogos brasileiros, urna boadose de inforrnacóes sobre a disciplina em seus países. Se, da Venezuela,

tivemos a participacáo de Hebe Vessuri, com seu trabalho "Estilos nacionaisde antropología? Reflexóes a partir da sociología da ciencia", e da Argenti­na, a de Leonardo Figoli, com sua exposicáo "A antropología na Argentinae a construcáo da nacáo", tivemos também do Quebec, com Robert Crépeau,urna interessante exposicáo sobre "A antropología indígena brasileira vista

5 Consultar especialmente os capítulos 4 e 5 deste volurne, ande essa temática foi exa­minada com rnaior profundidade,

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.Antropoiogiasperiféricas versus antrop%gias centrais

do Quebec", ero que o autor nao deixa de compará-la com a antropolo­

gia quebequense, e ainda urna segunda cornunicacáo sobre a antropologia

canadense de expressáo francesa, intitulada "O 'tio materno' e a antropo­

logia quebequense", apresentada por Guilhermo Ruben, meu colega daUnicamp. Já considerávamos en tao, em nosso programa de pesquisas, oQuebec como parte da América Latina. Vale dizer que talvez tenha sido

essa regiao da América do Norte aguela gue mais atraiu a atencáo denos sos colegas, urna vez que sobre ela fixaram suas investigacóes nao so­mente Ruben, como também Celso AzzanJr., entáo doutorando da Uni­carnp, ambos devotados ao estudo da disciplina antropológica no Canadáde língua francesa. E para nao dizer gue o nosso interesse sobre a América

Latina excluiria outras manifestacóes entre aguelas gue estamos denomi­

nando antropologias periféricas, cuidamos de realizar urna investigacáo

comparada entre duas das mais desenvolvidas dessas antropologias: pre­cisamente a quebequense e a catalá, respectivamente estudadas por

Guilhermo Ruben e por mimo O livro resultante encontra-se em elabora­c;:ao e pensamos intitulá-Io As aventuras da etnicidade: antropofogia e ideofogiaétnica. O objetivo do estudo foi o exame do processo de formacáo daantropología em contextos sócio-culturais minados pela etnicidade, emque se pode observar nitidamente o papel de ideologias étnicas na confor­rnacáo da disciplina. Os nacionalismos quebeguense e cataláo estáo de tal

forma enraizados nas respectivas sociedades gue contarninaram a forma­

r;:ao histórica de suas antropologias, submetendo-as a um nítido processo deetnizafao. Todavia, cabe esclarecer, gue, na modernidade atual das discipli­

nas, pouco se pode observar sobre o dominio da ideo logia étnica em suasrespectivas atualizacóes no Quebec ou na Catalunha. Nao se pode, toda­via, ignorar gue essa etnizacáo, constatada na forrnacáo da disciplina, tenha

deixado suas marcas, passíveis de observacáo táo-somente por meio deurna concepcáo estilística da antropologia.

Pois bem. Se, por um lado, esse fato mostra a forca do contexto social,político e cultural na adaptacáo da disciplina na periferia de seus centros dedifusáo, penetrando-a de novos elementos dinamizadores da matriz disci­

plinar, por outro, como estive procurando mostrar, os elementos dinami­zadores nao concorreram para qualquer rnudanca da estrutura matricial,

que pode, assim, manter a mesmagestaft. A disciplina, nos contextos nacio­

nais do Quebec e da Catalunha - como já indiquei, aliás -, pouco se

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Antropologias periféricas uersu: antropologias centrais

encontradi<;as nas nacóes novas da América Latina, essas nao devem serdesprezadas quanto as suas presencas - de algum modo aferível - nainstala<;aoda disciplina entre nós. Minha experiencia brasileira nao me per­mite sequer pensar qua! o grau de influencia que as antigas civilizacóes

americanas - como a Inca, a Asteca ou a Maia ' - podem ter exercidona antropologia que se pratica nos países andinos, no México ou na Amé­rica Central. Como também me é difícil avaliar a importancia nesses e emoutros países do papel desempenhado por seus cronistas, viajantes e mis­sionários quinhentistas e seiscentistas no estabelecirnento de temas ou naconstrucáo de abordagens de investigacáo, eventualmente ainda relevantesna atualidade da disciplina na América Latina. Já minha visáo da antropo­logia que fazemos no Brasil sugere descontinuidades óbvias. Talvez o fatoda disciplina ser entre nós, membros da comunidade profissional brasilei­ra, uma atividade preponderantemente universitária, ela - pelo menosdurante esses últimos quarenta anos - abastecen-se de idéias e de padróes

de cornportamento provenientes do centros académicos europeus e nor­te-americanos. Certarnente, a influencia francesa, extremamente forte e he­gem6nica nos anos 1940 e 1950, foi progressivamente substituída pelaanglo-americana nas décadas seguintes, em que pese a importante influen­cia do estruturalismo levi-straussiano em toda esta metade de século. Apresen<;a de etnólogos de língua alemá, pelo menos desde os anos 1930,nao foi suficiente para deixar sua marca na antropologia que fazemos hojeo Jáas "raízes", de que nos fala Krotz em um texto anterior," pouco nos dizem

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Roberto Cardoso de OlilJeira

diferencia do tipo metropolitano de antropologia, seja no que diz respeitoao caráter universal de sua producáo, seja no que tange asua qualidade eprodutividade. Mas a eficiencia das antropologias exercitadas em Montre­al ou ern Barcelona nao encobre a forca de suas respectivas tradicóes quecontém, afora do processo de ernizacáo já examinado, outros elementosde ordem cultural que sao muito próprios a cada uma dessas antropolo­gias. Esse é um fator ao qual nao se tem dado muita atencáo, como bemobserva nosso colega mexicano, o antropólogo Esteban Krotz. Nao é aprimeira vez que a leitura de trabalhos seus me foram de grande utilidade.Recentemente, em uma reuniáo organizada por Myriam Jimeno, em Bo­gotá, sobre o tema "La antropologia latinoamericana: crisis de los mode­los explicativos"," pude valer-me das análises de Krotz sobre a antropolo­gia que se realiza na América Latina e sobre seus comentários a respeito dealgumas de minhas próprias idéias veiculadas em meu livro Sobre opensa­mento antropológico. Embora o recorte epistemológico que venho adotandoem minhas análises nao coincida com sua perspectiva - mais próxima dahistória e da sociologia da ciencia -, considero-as mais complementaresdo que conflituosas: defendemos, igualmente, que o trabalho a ser desen­volvido na América Latina só pode ser coletivo. Estou certo que nOSSQSrespectivos recortes, por diferentes que possam ser, haveráo de contribuirpara a intensificacáo e o refinamento des se diálogo horizontal que ambosdefendemos, de forma que, inspirado em uma ou outra de suas conside­racóes que considero mais pertinentes para o prosseguimento desse diálo­go, retomo a seguir o tema das tradicóes,

*Ainda que nao se possa comparar o papel exercido pelas tradicóes

letradas de grandes civilizacóes, como as da China, do japáo ou da Índia, naconformacáo da antropologia nesses países, com as "pequenas tradicóes",

6 O título de sua exposicáo foi "La generación de teoría antropológica en AméricaLatina: Silenciamentos, tensiones intrínsecas y puntos de partida", c¡ue se seguiu aminha conferencia, "La antropología latinoamericana y la 'crisis' de los modelos expli­cativos: Paradigmas y teorías", ambas publicadas na revista colombiana Maguare, n'"11-12,1996. Quanto aminha conferencia, da está inserida, em sua versáo em portu­gués, neste volurne como seu capítulo 3.

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No capítulo 8 deste volume, a propósito de um interessante livro organizado por rneücolega do Centro de Lógica, Epistemología e História da Ciencia (CLE), da Unicamp,o filósofo Marcelo Dascal, intitulado CulturalRt/ativisnr and Philosophy: Nortb andLatinAmerican Perspectioes, faco consideracóes a respeito da relacáo entre tradicóes cultu­rais - eurocénrricas e autótones das Américas - no ámbito da filosofía c¡ue,de certarnaneira, tem a1guma utilidade para nossa cornparacáo entre antropologias centrais eperiféricas. A diferenca estaria no fato de ambas modalidades de antropologia estaremvinculadas a urna mesma raiz, européia; ao passo c¡ueas filosofías dos Nahuatl ou dosTrique nada teriam a ver com o pensamento ocidental. Nesse caso, a comparacáo teriaa funcáo de urna elucidacáo recíproca entre modalidades de pensameruo.

Cf. Esteban Krotz, "Antropología y antropólogos en México: Elementos de balancepara construir perspectivas", in Lourdes Arizpe e Carlos Serrano (Compiladores),Balance de la Antropología enAmérica Latinay el Caribe, pp. 361-380.

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Roberto Cardase deO/iveira

quando procuramos resgatá-Ias em nossa prática profissional da discipli­na. Contudo, se as raízes no Brasil nao possuem a mesma profundidade

histórica - e pré-histórica - que aquel as observadas no México, tal naosignifica que elas nao existam. É só tomarmos ern consideracáo a tradicáo

ensaísta brasileira, instituída desde o século passado, pelo menos. Porém,dizer que essa tradicáo tem ou teve o poder de marcar sua presenc;a namatriz disciplinar é algo que jamais ocorreu. Essa tradicáo ensaística cons­

titui-se, a rigor, em fator de estilo. Se, no Brasil, tal tradicáo pode ser obser­

vada facilmente em autores como Gilberto Freyre, ontem, ou RobertoDa Marta, hoje, marcando nao o estilo brasi1eiro, mas um dos estilos de

antropología que no Brasil se pratica, posso imaginar - e isso vale apenas

como hipótese de trabalho - que em países como o México, suas várias

rradicóes, nao importando o grau de profundidade que possuam, podem

ser consideradas igualmente como fator de estilo." Continuo a acreditar

que o melhor caminho para investigar a particularidade da antropologiaque se faz no México também seja o da estilística; e gostaria que tal inves­

tigac;ao fosse realizada por meio de urna pesquisa comparada, 'nao para

lograr urna teoria geral da antropologia latino-americana - tal compara­cáo só nos tornaria "colecionadores de borboletas", para me valer aquí da

feliz expressáo de Leach -, mas para tirarmos proveito da comparacáocomo um instrumento de elucidacáo recíproca das respectivas antropolo­gias, submetidas a um cuidadoso escrutinio. Considere-se, ainda, que urna

estilística, menos do que pretender substituir outras modalidades de estu­

do das antropologias periféricas, nada mais é do que um acréscimo, urnaénfase especial no discurso da antropologia, portante, um recurso a mais

destinado a ampliar nossa capacidade de cornpreender as particularidadesde urna disciplina nos novas ambientes sócio-culturais que a encerram.

O que fazer para lograrmos a consolidacáo da disciplina nos países lati­

no-americanos ande ela, por diferentes motivos, ainda encontra obstáculospara o seu desenvolvimento? Claro que nao tenho a pretensáo de ter a

Antrop%giasperiféricas uersns antrop%gias centrais

soluc;ao para esse problema, muito menos urna receita... Mesmo porque,

como há urna extrema diversidade nos diferentes contextos latino-america­nos em que se insere a disciplina, é impossível urna solucáo geral e é imprová­

vel que qualquer um entre nós, de forma individual, tenha a pretensáo de

conhecer a antropologia em escala continental, de modo a poder sugerir solu­

<;:oes, ainda que tópicas. Tome-se, como exemplo, o problema institucionalenvolvendo a relacáo da disciplina, isto é, da pesquisa e de seu ensino, com os

Estados nacionais. Esta é urna questáo, entre muitas outras, que só poderá serenfrentada pelos antropólogos de cada país; e, fazendo minhas as palavras deGuilhermo Bonfil, quando se refere ao que ironicamente chama de "casa­mento" entre o Estado mexicano e a antropologia, reproduzo sua fala:

Sin embargo, el maridaje con el Estado persiste, Heno de conflictos,insatisfacciones y frustraciones. O Josantropólogos proponemos nuevasbases de la relación conjugal (o el divorcio), o será el Estado quien lo haga.Más nos vale participar en esto con nuestra propia decisión.lO

E como a presen<;:a do Estado é, em regra, sempre muito forte em nossos

países - ainda que jamais na mesma proporcáo daquela que se observa

no México -, o comentário de Bonfil é mais do que oportuno. Incita-nosa tomarmos nossas próprias iniciativas, enquanto comunidade profissio­

nal, diante de questóes cruciais como esta, que contextualiza decisivamentenossa disciplina. É precisamente o momento em que se articulam, no pro­cesso de investigacáo, as perspectivas externas e internas, a análise institu­

cional e a análise do discurso, a interpreracáo sociológica e a estilística.Por tudo isso, em lugar de solucóes, gostaria apenas de apontar para

um conjunto de indicadores que acredito de alguma utilidade no exame

comparado e nos diagnósticos das antropologias que fazemos em nossospaíses. Alguns des ses indicadores, que aqui relaciono sem nenhuma preten­

sao de esgotá-Ios, podem ser os seguintes:1. a concentracdo dasinvestigafoes noterritorio nacional, que, no caso das antropo­

logias periféricas, parece ser um trace característico, pelo menos para aAmérica Latina;

9 Recenternente, pude explorar urna modalidade específica de tradicáo na antropolo­gia catalá - que podemos definir como etnicidade - ern um ensaio intitulado"Etnicidade como fator de estilo", publicado nos Cedernos de Histári« e Fi/osofia daCiencia, Série 3, vol. 5, número Especial, 1995, pp. 145-171, e aqui republicado como

Capítulo 7.

120t,l

10 Guillermo Bonfil Batalla, "Problemas conjugales?: Una hipótese sobre las relacionesdel Estado y la antropologia social en México", in G,c.L.Zarur (org.), A antrop%giana América Latina, p. 99.

121

Page 62: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

t_

RobertoCardoso de Oliteira

2. as debilidades institucionais, particularmente nas esferas universitárias e cien­tíficas, com carencias de boas bibliotecas, ausencia de implantacáo ou im­plantacáo deficiente do estatuto de "dedicacáo exclusiva" e suas conse­

qüéncias salariais, além de poucos recursos para financiamento de pesqui­

sas, etc.;3. a dependéncia do exterior para a jonnarao profissional auancada, dependenciaque, em alguns países, é extremamente elevada enquanto, em outros, pode

ser bem mais reduzida, porém nao está ausente;4. o mercado de frabalho aquémda demanda e cujas características próprias váodesde urna pobreza franciscana, com reduzida oferta de cargos nas uni­versidades ou fora delas, até urna razoável oferta, como se pode observar

em pouquíssimos países do continente;5. a ausénaa de periódicos de circularao internacional, pelo menos nas regióes

latino-americanas, onde - ao que parece - só recentemente o idiomaportugués corneca a ter mais leitores de língua castelhana, fato que, por sua

vez, nao explica a deficiente circulacáo desses mesmos periódicos na

Hispano-América; e, finalmente, '6. o perfil meta-teorice da antropologia em nossos países, em verdade, um perfilque pode ir desde o eventual predomínio de um ou outro dos paradig­mas fundadores da disciplina, até a arualizacáo crítica da matriz disciplinar- como a ternos definido -, a saber, como articulacáo simultanea, tensae interdependente de paradigmas originários historicamente na Inglaterra,Franca e Estados Unidos da América e ainda presentes na modernidade dadisciplina; isso merece urna consideracáo adicional: ern vários lugares, tenho

questionado a idéia de que mesmo nas antropologias metropolitanas os pa­radigmas que conformam a matriz disciplinar sejam, hoje, absolutamenteautónomos, como foram, ou procuraram ser, desde o final do século

passado até meados deste; o fato que efetivamente se observa, na atuali­dade da disciplina, é que, mesmo naquelas antropologias, seus respectivosparadigmas originais já estáo em intensa interacáo com os demais, igual­mente abrigados na mesma matriz disciplinar; o que ocorre, todavia, é queessa interacáo tem características diferentes daquela que tem lugar nas an­tropologias periféricas: nessas, ela é mais fácil, poi s as comunidades pro­fissionais da disciplina estáo despojadas de compromissos epistemológicoshistóricos, o que resulta em um diálogo mais fluente, com urna carga menorde preconceito teórico, expressáo que uso aqui no sentido gadameriano ou

122

.L

Antropofogiasperiféricas uerstts antropofogias centrais

hermeneutico.Procurarei ilustrar brevemente a aplicacáo desse conjunto de indicado­

res com a antropologia que se pratica no Brasil. Nao darei números, ne­nhuma estatística, para nao sobrecarregar a exposicáo, Procurarei fazeralgumas consideracóes sobre cada um des ses indicadores, de maneira a

fornecer urna idéia sobre o que haveria de específico no "caso brasileiro",se confrontado com outras antropologias periféricas.

1. Efetivamente, observa-se, no Brasil, urna concentracáo desmesura­

da nos temas nacionais e no enderecarnento da pesquisa nos limites doterritório nacional. Isso vem de longe e se justifica amplamente, visto que atéos anos 1940 - se assim posso arbitrar - a massa dos estudos sobre o paísesteve a cargo de pesquisadores e/ou viajantes e cronistas estrangeiros. Umbom indicador disso foi o celebrado Manual bibliogreifico deestados brasileiros, de1949, organizado por Rubens Borba de Moraes, um importante historia­dor brasileiro, entáo sub-diretor dos Servicos Bibliotecários da ONU, e

William Berrien, professor da Universidade de Harvard. Nessa bibliografia,observa-se a absoluta preponderancia de autores estrangeiros sobre os auto­res nacionais, revelando, nitidamente, que os estudos relativos ao país eramhegemonicamente realizados por brasilianistas europeus e norte-americanos.Diante disso, é claro que havia necessidade de se reverter essa relacáo, demaneira a fazer com que o Brasil fosse também investigado por seus própriosintelectuais. E isso era verdadeiro para o conjunto das ciencias sociais, para ahistória e para a literatura. Nesse sentido, cerca de duas décadas depois, essarelacáo comecaria a se inverter, em direcáo ao predomínio das obras escritas

por nacionais. E, atualmente, nao é exagero dizer que os brasilianistas torna­ram-se absolutamente minoritários. Explico isso com o forte desenvolvimen-'to dos cursos de pós-graduacáo que, a partir de meados dos anos 1960,

cornecaram a produzir pesquisadores em ciencias sociais e em história, cujas

teses de mestrado, inicialmente, e, depois, as de doutorado, tiveram signifi­cativo reflexo no movimento editorial, urna vez que grande parte dessas tesesfoi publicada por editoras universitárias e comerciais. Hoje, o que se podedizer, é que - pelo menos na área da antropologia - nao se justifica mais aexclusiva atencáo a realidade nacional, podendo os antropólogos voltaremseu interesse também para além fronteiras. Digo os antropólogos porque acaracterística mais mareante de nossa disciplina é tratar com a alteridade,com a diversidade cultural, com a variacáo de forma de vida, objetivo que

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t_

Roberto Cerdoso de Oliveira

só logramos alcanc;:ar em nossas próprias sociedades quando transforma­mos - por meio de recursos de método - o familiar em exótico, con­seguindo, com isso, estranhar suficientemente tudo aquilo que nos é próxi­mo, de maneira a poder alcanc;:ar urna distancia mínima que nos habilite ao

questionamento típico do olhar etnográfico. Entendo que o momentopresente corneca a ser extremamente favorável para programarmos pes­quisas no exterior simultaneamente aos estudos que devemos continuar afazer dentro do território nacional. E isso corneca a ser facilitado pelaestrutura de ensino e pesquisa avanc;:ada que vem se esbocando no país,com possibilidade de consolidacáo futura. Refiro-rne, específicamente, ao

papel das agencias nacionais de apoio a pesquisa e ao ensino de pós-gra­duacáo. Isso nos leva ao segundo indicador mencionado.

2. Quanto a questáo da debilidade institucional encontradica nas antro­

pologias periféricas, dela nao escapa a antropologia que fazemos no Bra­sil. Se é verdade que contamos com algumas agencias de financiarnentogovernamental, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí­fico e Tecnológico, melhor conhecido por sua antiga sigla CÑPq; ou aFinanciadora de Pesquisas Científica e Tecnológicas (Finep); ou ainda aCoordenacáo do Aperfeic;:oamento de Pessoal de Nível Superior (Capes),é igualmente verdade que elas cobrem apenas urna parte da demanda pórfinanciamento da pesquisa científica e de ensino avanc;:ado. Além dessas, háde se considerar as agencias estaduais, desvinculadas do sistema federal. Amais prestigiosa é a Fundacáo para o Amparo a Pesquisa do Estado deSao Paulo (Fapesp), que, há décadas, dá suporte financeíro as atividadesde ensino e pesquisa no estado de Sao Paulo, apoiando, sobretudo, suastres universidade estaduais: a USP, a Unicamp e a Unesp. Todas essas agen­cias funcionam há quase meio século, o que dá ao sistema urna razoávelcontinuidade que, no caso da América Latina, é um dado até certo pontosurpreendente! Nesse sentido, nao é exagero dizer que as universidadespaulistas, bem como os institutos estaduais de pesquisa, ou ainda as me­lhores de suas instituicóes particulares de nível superior, estáo bastante am­paradas em cornparacáo com os demais estados da federacáo. Em al­

guns, como os estados do Río de Janeiro, do Río Grande do Sul, de SantaCatarina, do Paraná ou do próprio Distrito Federal, em Brasilia, em que seinstalaram fundacóes formalmente análogas, tal fato nao vem tendo omesmo sucesso - salvo engano - que o alcancado por Sao Paulo. Isso

124

1

Alltrupologias penJéncas »ers«: antropolo/i,Ías tentrais

faz com que se observe um grande desequilibrio na distribuicáo de recur­sos em escala nacional, ficando praticamente todo o ónus desse desequilí­

brio para as agencias federais, como a Capes, o CNPq ou a Finep _ que,ainda assim, colaboram com as instituic;:6es científicas e de ensino superiorpaulistas. Com excecáo da Finep - que também, mas residual.mente, opera

na forrnacáo de quadros científicos académicos - as outras agencias de fi­nanciamento vém atuando principalmente na con cessao de bolsas de estudo e

de pesquisa, com prejuízo para o fomento da pesquisa propriamente díta, asaber, a satisfacáo da demanda por yerbas operacionais de investigac;:ao.Arualmente, o governo federal criou o Pronex - sigla do Programa Na­cional de Centros de Excelencia -, vinculado diretamente ao :MinistériodeCiencia e Tecnologia, por meio do qual se espera que grupos de investigado­res de alto nível possam obter os recursos de que necessitsm para a reali­zacáo de projetos específicos e de alta relevancia científica OU tecnológica.

A antropologia social e cultural vem se socorrendo de todas essas agen­cias, incluindo o Pronex, disputando seu lugar frente as ciencias exatas enaturais. Essa é urna competic;:ao por recursos que, aliás, envolve todo ocampo de pesquisa e de ensino avanc;:ado, e em que nao só o Pronex é

mobilizado, mas também as demais agencias de flnanciamento, como osprogramas integrados do CNPq ou da Fapesp, para ilustrarmos com asmais solicitadas agencias de fomento da pesquisa. Diante da relativa escas­sez de yerbas para projetos de pesquisa, térn surgido novas estratégiaspara a obtencáo de recursos. Minha própria experiencia de trabalho, nosquatro principais programas de pós-graduacáo do país - o Museu Nacio­nal, da Universidade Federal do Río de Janeiro (UFRJ); a Universidade deBrasilia (UnB); a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Univer"

sidade de Sao Paulo (USP) -, tem indicado como adequado para a realiza­c;:ao de pesquisas em nossa disciplina o recurso achamada bolsa "sanduí.che". É urna bolsa de estudo concedida pela Capes e pelo CNPq destinadaa estudantes pós-graduados que estejarn no final de curso, quando já tenhamsido aprovados na maior parte das disciplinas curriculares e tenham obtidoaceitacáo de seu projeto de pesquisa, quer para dissertacáo de mestrado,

quer para tese de doutorado. Em ambos os casos, o estudante candidata­se a urna bolsa que lhe permita, seja obter alguns créditos-disciplina emoutras instituicóes, nacionais ou estrangeiras, ou, por meio de sua aceitacáonessas universidades na qualidade de "aluno especial", possa fazer a pes-

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~

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, :

Roberto Cardoso de Olioeira

quisa para cuja realizacáo teve seu projeto aprovado na universidade deorigem. Isso nos leva ao exame do terceiro indicador: a dependencia do

exterior para a formacáo avancada.3. Como avaliar essa dependencia da antropologia que se faz no Brasil?

O que eu poderia dizer, grosso modo, é que, desde o evento do primeiro

doutor ern antropologia formado nos Estados Unidos - o falecido antro­pólogo Eduardo Galváo, PhD pela Universidade Colúmbia em 1952 -,muitos outros, tanto lá como na Europa, graduaram-se. Em verdade, nao sepoderia dizer que o doutorado no exterior, por mais prestigioso que fosse,como os de Colúmbia, de Harvard ou da Universidade de Paris, nunca foi oúnico doutoramento disponível para o estudante brasileiro. O doutorado

oferecido pela USP, desde os anos 1940, e inspirado no modelo europeucontinental- francés e alernáo -, supria a demanda de urna elite, sobre­rudo a paulista, assim como o mestrado oferecido pela entáo Escola Livre

de Sociologia e Politica, institui¡;:ao particular de ensino superior. Sornentecom a reforma universitária federal, ocorrida em meados dos anos 1960,é que a pós-gradua¡;:ao teve condi¡;:6es para desenvolver-se surpreendente­mente. Para ficarmos só com os mestrados e doutorados ern antropolo­gia, há de se registrar o do Museu Nacional, criado em 1968; o da Uni­camp, em 1971; o da UnB, ern 1972; e o da USP, reformulado para'omodelo de inspiracáo norte-americana - isto é, cursos organizados pordisciplina-créditos _, em 1971. Como já mencionei, tal fato haveria de serefletir, urna década depois, no aumento substancial da producáo de ensaios emonografias antropológicas. Como resultado desse incremento na forrnacáode quadros em antropologias - e, certamente, corn menor intensidade, emsociologia e em ciencia política -, comecou a haver urna rerracáo naoferta de bolsas para doutoramento no exterior, posto que para mestra­do, em regra, as únicas bolsas eram destinadas a universidades brasileiras,

desde que possuidoras de status A concedido pela Capes. Mas é bomdeixar claro que isso nao significa que o sistema de pós-gradua¡;:aobrasileiroconsidere-se auto-suficiente; diante da escassez de recursos, foi necessário esti­mular os doutoramentos nacionais, sem deixar de conceder um número maisreduzido de bolsas aos candidatos que demonstrassem ser indispensávelpara sua forrnacáo avan¡;:ada o ingresso ern um doutorado fora do Brasil.Mas, a rigor, pelo menos em nossa disciplina, a dependencia do exterior

vem diminuindo sensivelmente nesses últimos dez ou quinze anos.

126,¡.

Antropologíaspenféricas versus antropologías centrais

4. Com relacáo ao mercado de trabalho, gostaria de limitar-me a urnaspoucas consideracóes de caráter genérico. Diria, inicialmente, que o mer­cado caminha para urna hierarquizacáo crescente. Significa que as universi­dades de maior prestígio estáo praticamente restritas a contratacáo de dou­tores; dificilmente um possuidor de título de mestre por elas será contra­tado. Ao mesmo tempo, as demais universidades do país, possuidoras decursos de ciencias sociais, quer em nível de pós-graduacáo (stn'cto e latoSeflsu), quer unicamente em nível de gradua¡;:ao, buscam docentes ao menospossuidores do título de mestre. Tudo isso porque há, atualmente, entrenós, urna obsessáo por cursos pós-graduados - e grande parte dos rei­tores de universidades as margens dos grandes centros nacionais procu­ram qualificar suas instituicóes da melhor maneira possível, urna vez queisso significa aumento de recursos financeiros. A grande arnbicáo dessesdirigentes universitários da área federal é conseguir prestígio académicoque os leve a dialogar com o Ministério da Educacáo com maiores chan­ces de obtencáo desses recursos.

Mas entendo que o mercado de trabalho para antropólogos, no Brasil,ainda que quase restrito ao ámbito das universidades, nao está esgotado. Ogrande número de concursos realizados em diferentes universidades, so­bretudo nas federais, onde~ pelo menos em antropo logia - registra-seurn número muito pequeno de candidatos, sejam eles mes tres ou douto­res. Depois da reforma constitucional de 1988, somente se pode ingressarern urna universidade estadual ou federal por meio de concurso público;portanto, esses concursos sao conhecidos por seus editais, exigidos por lei.E o que vemos é a pequena migracáo de mestres e doutores para univer­sidades de poueo prestígio académico e/ou que estejam distantes das ci~

dades onde residem. A forte migracáo interna que se observa nos EstadosUnidos, por exemplo, nao se dá no Brasil. Isso faz com que nao ocorraurna boa distribuicáo nacional dos egressos dos cursos de pós-gradua<;ao

mais credenciados. Por outro lado, contudo, é interessante observar que amaioria dos estudantes latino-americanos que obtém seus títulos pós-gra­duados no Brasil, em lugar de retornar aos seus países de origem, tendema permanecer entre nós, concorrendo com seus colegas brasileiros. Aindaque exista um dispositivo legal que impede a estrangeiros fazer concursopara ingresso nos quadros permanentes das universidades, isso pratica­mente só ocorre na área federal, urna vez que em estados da federacáo,

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[I!

Roberto Cardoso deOliveira

como Sao Paulo, tal dispositivo nao é levado em conta, Como tampoucoé levado em consideracáo a diferenciacáo entre nacionais e estrangeirospara a obtencáo de bolsas de estudo ou de pesquisa. Embora eu naopossa oferecer números, posso dizer que é bastante expressiva a quantida­de de estudantes estrangeiros, latino-americanos, como clientes do sistemade fomento da pesquisa e do ensino avancado brasileiro.

5. A ausencia ou a reduzida presenc;:a de periódicos de circulacáo na­cional em antropologia no Brasil é um fato. De antropologia, nao mais doque tres periódicos sao de circulacáo nacional, ainda que de modo defici­ente, em razáo da pequena tiragem e das dificuldades de distribuicáo, Amais antiga é a Revista de Antropologia, publicada pelo Departamento deAntropologia da Universidade de Sao Paulo: criada em 1953, foi total­mente reforrnulada, modernizada e ampliada em número de páginas apartir de 1991, após o falecimento de Egon Schaden, seu fundador; emseguida, ternos o .Anuário Antropológico, do Departamento de Antropologiada Universidade de Brasília, proposto por mim, em 1976, quatro anosdepois de minha chegada na UnB, proveniente do Museu Nacional.final­mente, ternos, agora, urna nova revista, Mana: Estados de Antropologia Social,criada em 1995, pela nova geracáo de antropólogos do Museu Nacionalda Universidade Federal do Río de Janeiro. Contudo, durante muitos anos,o periódico de maior prestigio foi a Revista do Miae« Paulist», :uja novasérie data de 1947, e teve como seu grande mentor o antropólogo Her­bert Baldus, que a dirigiu até 1967, entrando em declinio após seu faleci­mento. Porérn, os antropólogos brasileiros nao dispóern apenas de revis­tas exclusivamente de antropologia, pois contam ainda com várias outrasde ciencias sociais, como a editada pela Associacáo Nacional de Pós-gra­

duacáo em Ciencias Sociais (Anpocs), além de urna dezena do mesmogenero, porém vinculadas a universidades. Há, enfim, outras mais, do tipomiscelánea - como a Revista da USP ou NovosEstudos/Cebrap - em queartigos de antropologia comparecem ocasionalmente.

A divulgacáo desses periódicos é deficiente, nao só em nível nacional,como, notadarnente, em escala internacional, no ámbiro da América Latina.'!

11 Por exemplo, em relacáo ao México, cf Esteban Krotz, "La generación de recriaantropológica en América Latina: Silenciamentos, tensiones intrínsecas y puntos departida", p. 33.

128

"

Antropologias periféncas versus antropologias centrais

Se isso já ocorre na Hispano-América, com os textos escritos em espa­nhol, é muito maior a dificuldade de divulgacáo dos escritos em portugu­es. Todos os colegas que possuem alguma experiencia de atividades noBrasil devem concordar sobre a receptividade do idioma castelhano nocampo intelectual brasileiro; a recíproca nao é verdadeira. Os cerca de 150milhóes de falantes do portugués no Brasil nao sao suficientes para des­pertar o interesse dos hispano-americanos em, pelo menos, se esforcarernpara ler o que escrevemos - salvo, como sempre, as excecóes de praxe ...Há, no entanto, indicios de mudanca, como um crescente interesse deaprendizado da língua portuguesa pelos países do Mercosul, por razóesóbvias... Se isso ocorrer, tenho a esperanca de que resultados mais anima­dores chegaráo para a antropologia que praticamos no Brasil. Urna coisa,todavia, eu gostaria de firmar: entendo, pessoalmente, que a internaciona­lizacáo dessa antropologia será tanto mais importante para nós quamornais ela for lida nos espac;:os latino-americanos; para mim, pelo menos, ofeedback mais desejado será aquele que virá da comunidade de antropólo­gos da América Latina. E isso porque estou seguro que pode remos aprendermuito com a experiencia que a disciplina vem recebendo no continente,posto que, sob a variacáo insofismável dessa experiencia entre nós, é lícitoesperar que um conjunto de questóes comuns, de um modo ou de outro,repercutam na dinámica da matriz disciplinar.

6. Em um ensaio escrito há alguns anos, intitulado "O que é isso quechamamos de Antropologia Brasileira?"," procurei elaborar um esquemacapaz de reproduzir a estrutura da matriz disciplinar que, no meu modode ver, apontasse para suas dimensóes mais ativas do ponto de vista damodernidade da disciplina.':' Ao mostrar preliminarmente o quanto a tra­dicáo de estados etnológicos relativos aopovos indígenas se eomportava diante dasegunda tradicáo importante entre nós, aquela referente aos estados sobre asociedade nacional, e tomando como variáveis relevantes os estudos culturalistasdiferenciados dos estruturalistas, eheguei a esbocar uro quadro deseritivo

12 Publicado primeiramente no AnllórioAntropológico, n' 85, pp. 227-246; republicado emSobre opmsamenfo antropoló¡jco, pp. 109·141.

13 CE figura 1, p. ,do texto "O que é isso que chamamos de Antropología Brasíleira?",em Sobre o PensamentoAntropoló¡jco.

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"I I

Roberto Cerdoso de Q/iveiro

no qual pudemos localizar, em cada um dos quatro espa<;:os criados noámbito de urna coordenada cartesiana, o seguinte quadro: no primeiroespa<;:o, em que se cruzam a tradicáo de estudos etnológicos com a pers­pectiva culturalista, localizamos dois de nossos maiores etnólogos; CurtNimuendaju, respondendo ao que chamei de período "heróico" daetnologia, e Darcy Ribeiro, respondendo igualmente ao período "caris­mático" - imediatamente posterior ao primeiro. Ainda considerando aperspectiva culturalista, porém relativamente aos estudos sobre a socieda­de nacional, entendi que Gilberto Freyre era um legítimo representante doperíodo "heróico", enquanto que o brasilianista Charles Wagley - porforca de sua influencia na implantacáo dos estudos de comunidade noBrasil - expressaria adequadamente o período "carismático". É indis­pensável esclarecer que por heroico entendo o período em que a disciplinaainda nao estava institucionalizada no país, ao passo que por carismáticoentendo o período em que, estimulando o processo de institucionalizacáoda antropologia, destacam-se profissionais de grande influencia, capaz demobilizar o campo intelectual dos que se devotam adisciplina. Ji no quetange ao cruzamento das duas tradicóes - a relativa aos estudos etnológi­cos cruzada com a de estudos sobre a sociedade nacional -, com a pers­pectiva estruturalista comum, seja a de raiz anglo-saxonica, seja a de raizfrancesa, ternos de nos restringir ao período carismático, posto que talperspectiva é bem posterior aimplantacáo dos estudos culturalistas entrenós. Pudemos registrar, assim, a influencia de Florestan Fernandes nos es­tudos de etnologia indígena - considerando-se, aqui, sua fase etnológica,gra<;:as a suas monografias sobre os Tupinambá - e a influencia do soci­ólogo norte-americano Donald Pierson - nao por acaso representantedo período carismático -, dada sua influencia decisiva na organizacáo daEscola Livre de Sociologia e Política, onde, aliás, estudaram Florestan Fer­nandes e Darcy Ribeiro. Vale dizer, nesse sentido, que a vertente sócio­cultural da antropologia - hoje preferentemente denominada antropolo­gia social - é bastante solidária da sociologia, daí porque nao é de seestranhar que autores, como Florestan Fernandes, Charles Wagley, RogerBastide - e o próprio Claude Lévi-Strauss, quando ensinou na USP, nosanos 1930, como professor de sociologia - estiveram sempre na frontei­ra das duas disciplinas. Além do mais, há um dado que nao deve ser des­considerado: o fato de nao existir no Brasil cursos de gradua<;:ao em an-

130

rAntropologiospenftricos IJerJIIS ontrop%gios centrais

tropologia, mas cursos de ciencias sociais, ficando a forrnacáo específicaern antropologia em cursos de pós-graduacáo, em níveis de mestrado edoutorado. A disciplina sociologia é, assim, ministrada no Brasil duranteos quatro anos que leva em média a graduacáo em ciencias sociais, com

urna ligeira preponderancia pedagógica sobre a antropologia e a cienciapolítica. O resultado disso, mesmo na forrnacáo pós-graduada do antro­

pólogo, é que o jovem mestre ou doutor transita com facilidade nas disci­plinas que constituíram seu currículo de gradua<;:ao. Os "estudos de cornu­nidade" foram, assim, indistintamente realizados por sociólogos e antro­pólogos nos anos 1940 e 1950, tempo em que tiveram bastante prestígionos meios universitários brasileiros, cornecando seu declínio nos anos 1960.

*Como vejo atualmente as potencialidades da matriz disciplinar na an­

tropologia que fazemos no Brasil? Para mostrar o rumo que a disciplinatem tomado no seio da comunidade de seus profissionais, gostaria de mevaler do mesmo recurso de que me vali em outra ocasiáo, quando mequestionaram sobre o que chamamos de antropologia brasileira. Retomo agorapara consideracáo dois conceitos importantes, demarcadores do exercíciode nossa disciplina, ou dois ':mega-conceitos", como diria Clifford Geertz:mltura e estrutura. Ao tomá-los, verificamos que há urna evidente polisse­mia, somente esclarecida quando procuramos relacioná-los com o para­digma no qual estáo inseridos. É assim que se pode constatar - tomandoos termos cultura e estrutura no ámbito de tradicóes lingüísticas específicas-, que, na tradicáo alerná, observa-se dois sentidos claramente distintos:o de Kultt«, referente acultura como sistema de costumes e de elementosmateriais produzidos em seu interior; e Bildung, como expressáo "espiritu­al de um povo". Essas duas palavras alernás podem servir de referenciano processo de forrnacáo da antropologia nos Estados Unidos se consi­derarmos o papel desempenhado por Franz Boas, certamente o seu "paifundador" no final do século passado, herdeiro, por um lado, do roman­tisrno alernáo, e, por outro, um antropólogo determinado em dar a suadisciplina um verdadeiro statusde ciencia. Diria, portanto, que Boas podeservir como urna boa "metáfora humana" indicadora de urna certa ambi­güidade no uso da nocáo de cultura. E, se quisermos elaborar urna genea­logia do paradigma culturalista, encontraremos em Boas a atual duplicida-

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Roberto Cardos» de Oliieira

de da antropologia moderna norte-americana, ora voltada para o seu tra­dicional culturalismo, ora aberta para o seu desdobramento, a saber, paraum novo paradigma - o interpretativista -, também preocupado coma dirnensáo cultural, porém em urna acepcáo rnuito próxima ao sentidode Bildul1g, Eu compreendo o binomio Kultur/ Bi/dung como expressáo deurna ambivalencia, cuja história estamos testemunhando nos dias que cor­remo Tomando-se, agora, um segundo binomio, aquele que se expressapela equacáo Strucfural/Structurale - o primeiro termo nativo da antro­pologia británica, o segundo igualmente nativo da antropologia francesa

-, ternos, respectivamente, a palavra estrutura como expressando o mega­conceito do paradigma estrutural-funcionalista británico e o do estrutura­lismo de Lévi-Strauss, Ao se considerar, assim, o relacionamento dessesquatro conceitos que tendencialmente expressam quatro paradigmas abri­gados na matriz disciplinar, podemos acompanhar o movimento que re­alizam no campo antropológico brasileiro. Infelizmente, nao há tempoaqui para examinarmos esse movimento dos conceitos, como pudemosfazer em outra oportunidade, quando examinamos o deslocalnento deum conjunto de conceitos da Europa para a América Latina."

Podemos contudo dizer - como conclusáo desta conferencia -, quea antropologia no Brasil tende a atualizar de forma criativa a matriz discípli­nar, ao tirar da tensáo entre seus paradigmas e da dinámica de seus mega­conceitos muito daquilo que poderíamos considerar como sendo próprio deurna "antropologia de ponta". E essa constatacáo é algo que se pode obser­var nao só no Brasil, mas em várias das antropologias periféricas, seja naAmérica Latina, seja na Europa ou no Oriente Médio - como ocorre exern­plarmente na Espanha e em Israel. Apesar das dificuldades que sempre en­contramos, mas que nao ignoramos - particularmente as institucionais efinanceiras -, vejo com um moderado otimismo o que está ocorrendoem nosso continente. E esse otimismo justifica-se quando constato o interessecada vez maior, na América Latina, sobre a avaliacáo da disciplina, seja ernámbito local ou regional, como demonstram vários dos textos aqui refe­

ridos, como os organizados por Lourdes Arizpe e Carlos Serrano sobre o

14 Cf. R.Cardoso de Oliveira, "O movirnento dos conceitos na Antropología", in &vistadeAntropologia, vol. 36, 1993, pp. 13-31, republicado neste volume como Capítulo 2..

132

i..........

Antropologia.r penféncas versus antropologia.< centrai.r

Balance delaAntropologla enAmén'caLatinay elCaribe; o editado por EstebanKrotz, AspectosdelasAntropologlas enAménca Latina; ou, ainda, o organiza­do por George Cerqueira Leite Zarur, A Antropologia na Aménca Ltina ou

por Myriam jirneno, Antropologla enLatinoamérica, além de estudos restritosa países específicos, mas destinados a induzir urna reflexáo teórica com

alcance comparativo. Contarn, entre esses estudos, ointeressantíssimo li­

vro de Gonzalo Aguirre Beltran, Elpensary e!quehacer antropológico enl\1.é>.:7cO ;o de Manuel M.Marsal, Histón'a de la antropología indiget1ista: México)' Perü; ode Mariza Correa, Histárin da antropologia noBrasil (1930-1960); o de Segun­

do Moreno Yánez, Antropología ectlatoriana: Passado y presente; e, compiladopelo mesmo Moreno y ánez, Antropologia de! Ecuador; acrescentando-se,ainda, nesta relacáo por certo incompleta, o volume coletivo sobre Un siglo

de iniestigaaon social: Antropologia en Colombia, editado por Jaime ArochaRodríguez e Nina S. de Friedemann. Algum etnógrafo mais obstinadopoderia ver nisso uma certa dose de narcisismo inerente as comunidadesprofissionais, quando insistem ern refletir sobre si mesmas em lugar de sedevotarem exclusivamente ao estudo do outro. Eu nao vejo assirn: poiscomo se limitar a estudar alterídades sern se dar conta do próprio camposemántico em que o investigador está inserido? Ou sem se examinar deti­damente o horizonte por meio do qual se fi!tram todas as imagens quenosso olhar constrói sobre o outro etnográfico? Enfim, ternos aquí urna

parte expressiva da comunídade de antropólogos dedicados aos estudosamericanistas e uma forte representac;ao dos colegas latino-americanos,aos quais gostaría que coubesse a última palavra sobre se estamos no rumocerto.

133

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J

Capítulo 7

A ETNICIDADECOMO FATOR DE ESTILO*

INTRODu<;:ÁO

Há duas décadas, tive a oportunidade de publicar urna coletánea demeus primeiros ensaios sobre identidade, etnia e organizacáo social por

meio dos quais procurava dimensionar o significado, para a antropologia,de fenómenos sócio-culturais emergentes das situacóes de confronto en­tre diferentes etnias situadas no interior de Estados nacionais.' Fenómenos

esses que passariam a ser c!assificados como etnicidade. Menciono issopara dizer que a temática tratada naquele volume, volta - ainda que comoutra roupagem - a constituir-se, agora, no tema central do presenteartigo, aduzido da questáo da contaminacáo da disciplina por essa mesma

etnicidade, entendida como um fator de estilo.Ao considerar que nesses últimos vinte anos a teoria das relacóes in te­

rétnicas enriqueceu-se sobremaneira, ampliando e aprofundando o co­

nhecimento que a antropologia 'tem podido trazer para o esc!arecimentoda etnicidade, nao procurarei tratar aqui daquilo que entendo por contri­buicóes ateoria das relacóes interétnicas, ou sobre o que se poderia enten­

der como sendo o "vivo e o morto" da teoria na atualidade. O que pre­tendo desenvolver é uma reflexáo sobre a relacáo entre a etnicidade e a

disciplina antropologia, menos no exame das possibilidades dessa conheceraquela, senáo sobre o fenómeno da própria etnicidade inserir-se no proces­so de adaptacáo da antropologia nas áreas periféricas aos centros de ondeela, como disciplina autónoma, originou-se. Essas áreas, com a exclusáo

L

* o presente ensaio foi publicado originalmente pelo Centro de Lógica. Epistemologíae História da Ciencia - CLE/ Unicamp - em seus Cadernos deHistoria e Filosofia daCiencia, série 3. nO especial, jan.-dez. 1995, pp. 145-171.

Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade, etnia e estrutura social, rambérn foi publicadoem espanhol, em urna edicáo ampliada, com mais dois capítulos, intitulada Etnicidadyestructura social.

135

Page 69: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

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Roberto Cardoso de Oliveira

da Inglaterra, da Franca e dos Estados Unidos, podem incluir qualqueroutro país desde que tenha abrigado a disciplina em seu processo de difu­

sao por todas as latitudes do planeta.Porém, nesta oportunidade, nao se está focalizando essa dispersáo da

disciplina em qualquer outro cenário que nao seja aquele marcado pelapresen<;a de relacóes interétnicas que se dáo no interior de Estados nacio­

nais. O problema, portanto, é a forma como se manifesta a presen<;a daetnicidade na própria conforrnacáo da antropologia. Seria uma espécie dereinvencáo da disciplina em espa<;os marcados por antagonismos étnicos,

quando deles sequer a disciplina consegue ficar incólume? A esse cenário éque se aplica o termo etnicidade, a ser tomado aqui como tendo por refe­

rente um espa<;o social, interno a um determinado país, onde as etniasexistentes mantérn relacóes assimétricas; sendo, nesse sentido, "essencial­mente uma forma de interacáo entre grupos culturais operando dentro de

contextos sociais comuns'Y Eu ainda acrescentaria que pelo menos umadessas etnias desfrutaria de um poder emanado de um Estado, de cujaconstituicáo tal etnia participaria de forma majoritária.

UNlVERSALIDADE E

SINGULARIDADE DA DISCIPUNA

Contudo, antes de examinar um caso específico, em que a antropolo­gia estaria envolvida ela mesma em um processo de etnizacáo, gostaria deme deter em uma preliminar: a de reconhecer que sob as eventuais altera­cóes que uma determinada disciplina - no caso, a antropologia social ecultural- pode sofrer, ela nao pode fugir de sua incontornável pretensáo auniversalidade, ou, em outras palavras, para nao abdicar de sua cientificidade,da nao tem outra alternativa senáo a de reproduzir aquilo que se pode chamar_ na falta de um termo melhor e sem me rotular de "essencialista" - deessénaa disciplinar, aquilo que marca a antropologia enquanto tal. A saber, oque a torna reconhecível como antropologia - portanto sua uniuersalidade_ nao importa a particu/aridade de sua insercáo em uma ou em outralatitude, onde a questáo da etnicidade a contamina, nem mesrno na singu/a­ridade dessa contarninacáo em antropologias igualmente marcadas pelo

A etnicidade comoJatorde estilo

confronto étnico. Isso significa que a disciplina nao pode perder seu alcan­ce planetário, em que pese a particularidade que ganha em absorver aetnicidade - dado o contexto interétnico em que se insere - e a singula­ridade determinada por sua adaptacáo em tal ou qual país anfitriáo,

E o teste desse alcance será sempre o da plena possibilidade de suainterlocu<;ao no interior da comunidade internacional de profissionais daantropologia. Nesses termos, pode-se dizer que a "linguagem falada" pe­las disciplinas periféricas nao pode deixar de ser inteligível em escala plane­tária. Costumo valer-me aqui de uma metáfora originária da lingüística,segundo a qual a antropologia, em seu diálogo planetario, seria equivalentea uma "língua" - cuja estrutura, por exemplo, poderia ser análoga áquiloque tenho chamado de "matriz disciplinar";' sendo suas manifestacóeslocais, seu s "di aletos" e suas atualizacóes em tais ou quais comunidades

profissionais em um mesmo cenário nacional ou regional, seu "idioleto".Ter-se-ia, assim, nesse modelo exploratório, a universalidade da língua, aparticularidade do dialeto, a singularidade do idioleto. Quera crer que,pelo menos como metáfora exclusivamente válida como recurso de refle­xáo sobre a disciplina, ela sirva para expressar nosso modelo, mesmo queencontre, eventualmente, resistencia entre os lingüistas.

Mas tomemos essa matriz ·disciplinar. Em outras oportunidades pudeelaborá-la extensamente, razáo pela qual vou reproduzi-la apenas em suaslinhas mes tras e limitando-me a destacar os argumentos principais. A idéiabásica que sustenta a elaboracáo da matriz é a de paradigma, em sua acep­<;ao kuhniana," o que nao significa que o conceito de matriz disciplinar deque estou me valendo corresponda exatamente ao de Kuhn; e, muito me­nos, que as controvérsias' em torno de sua obra, no que tange ahistória diciencia, tenham maior repercussáo nas consideracóes a seguir. E isso por­que estou recorrendo mais a nOfao de paradigma, do que ao seu conceitopropriamente dito. Portanto, se o conceito de Kuhn pode estar envolvidoem controvérsias, já a idéia geral nele contida - portanto, sua nocáo -

3 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Sobre opensamento al/tropológico, especialmente o Capí­tulo 1.

2 Abner Cohen, Ethnicity, p. Xl.

136

iL

4

5

Cf. T. Kuhn, Tbe structure ofscientijic reuolations.

Cf., por exemplo, 1. Lakatos eA. Musgrave (orgs.), Criticúm andgrolJ'tb ofkn01l'!edge.

137

Page 70: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

r J •

Roberto Cardoso deO/iveiraA etnicidade comofator deestilo

mos de sua relevancia para a explicacáo ou a compreensáo da realidade

sócio-cultural- a presencado tempo está indicada com o termo diacronia;sua ausencia, com seu oposto sincronia. Urna explanacáo mais completasobre a elaboracáo desse modelo está detalhada em outro lugar,"

FIGURA 1

Mais importante do que localizar esses paradigmas em um modelogeométrico é examinar as possibilidades aberras pelo processo de articula­

l1ao que tem lugar entre eles. Imaginemos quatro círculos, cada um corres­

pondendo a um dos paradigmas mencionados, submetidos a um movi­mento centrípedo direcionado para um ponto central e único de interse­l1ao, conforme mostra a Figura 1. Tomemos esse ponto de intersecáo

como indicador de um nódulo em que se articulam os quatro paradigmas./\. conjuncáo entre esses círculos representaria - nesse nosso exercíciometafórico - uma arriculacáo de paradigmas tendente a constituir, a seu

tempo, um único paradigma. Em outras palavras, ter-se-ia a transforma­l1ao de uma matriz disciplinar originária - formada por quatro paradig­mas históricos - naquilo que se poderia reconhecer como sendo "o" pa­radigma observável sem maiores dificuldades na antropologia de nossos

días.

rl!1ti

i1

pode perfeitamente transcender o nivel de debate em que sua obra se viuenvolvida. Assim sendo, enquanto esse autor identifica paradigma commatriz disciplinar, praticamente utilizando as duas expressoes como equi­

valentes, preferi distingui-Ias, na medida ern que procuro mostrar que naantropología nao tem lugar aquela sucessáo de paradigmas que se observa

nas ciéncias naturais, nos termos em que Kuhn tem podido mostrar.Entendo, ao contrário, que, na antropologia, os paradigmas existem

em simultaneidade. Se na física o paradigma newtoniano foi substituído

pelo da relatividade, ou na matemática a geometria euclidiana foi superadapela de Lobatchevski, na disciplina antropológica o paradigma racionalis­

ta, o estrutural-funcionalista, o culturalista e o hermenéutico coexistem nointerior de urna única matriz. Naturalmente que a história des ses quatroparadigmas pode ser rastreada a partir das "escolas" que surgiram na se­gunda metade do século passado," as quais, vale acrescentar, o recente"movimento", de vocal1ao pós-moderna,7 surgido a partir dos anos 1960.

Portanto, sao fatos datados de fácil aferil1ao empírica. Fatos que se distribu­em por duas das tradicóes filosóficas mais significativas na hisrória dopensamento ocidental: a intelectualista e a empirista. Dois a dois, os para­digmas se classificam em urna e em outra tradicáo: o racionalista e o her­

menéutico na primeira tradicáo; o estrutural-funcionalista e o culturalistana segunda. Vejamos o que sao esses paradigmas e como articulam-se

entre si.Sucintamente, diria que os paradigmas intelectualistas - o racionalista

e o hermenéutico _ estáo enraizados, respectivamente, na Escola France­sa de Sociología e no Movimento Interpretativista norte-americano; osparadigmas empiristas, isto é, o estrutural-funcionalista e o culturalista, tém

sua origem na Escola Briranica de Antropologia Social e na Escola Norte­

americana Histórico Cultural. Conforme indica o Quadro 1, a"justaposi­cáo desses paradigmas dá-se no interior de um espaco criado e subdividi­

do por coordenadas cartesianas, urna delas representando as uadicóesintelectualista e empirista; outra, a dimensao tempo - cronos -, em ter-

tradicáo<,

tempo

SINCRONIA

DIACRONIA

INTELECTUALJSTA

Estola Francesa deSociologíaParadigma racionalista e, em

sua forma moderna, estruturalista

(1)

Antropologia InterpretativaParadigma hermenéutico

(3)

EMPIRISTA

EscolaB,itánica de AntropologiaParadigma empirista e estrutural­

funcionalista.(2)

Escola Histórico-CulturalParadigma culturalista

(4)

~

6

7

A École Franpise deSociologie, a BritshSchool of SocialAnthropologJ e a AmericanHistorica!

SchoolofC"lturaIAntropologJ.

O Interpretive Mouvement.

138

'-

B Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, Sobre opensamento antropológico, Capítulos 1 a 4.

139

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Roberto Cardoso deOliveira

FIGURA 2

A área escura é para onde tendem a confluir os para­digmas originais numerados de 1 a 4 - no que pode­rá resultar em um novo paradigma.

Penso estar certo quando constato nao haver, atualmente, modalidadedo fazer antropológico em que nao se possa identificar a combinacáo dedais ou mais des ses paradigmas históricos. Tomemos dais exemplos:1. a obra de Lévi-Strauss, na qual se pode identificar facilmente a articula­<;ao entre o paradigma racionalista - responsável por seu estruturalismo_ e o paradigma culturalista - esse último, em razáo da influencia daetnologia boasiana efetivada durante seu período' nova-iorq1}ino, vivido

durante a Segunda Guerra Mundial;2. o de Edmund Leach, formado no interior da tradicáo empirista e noámbito do paradigma estrutural-funcionalista británico, porém forternen­

te influenciado pelo estruturalismo levi-straussiano.Todavia, observa-se também que tanto Lévi-Strauss quanto Leach guar­

dam indiscutível fidelidade epistemológica aos seus paradigmas originais;fidelidad e essa perfeitamente aferível por qualquer leitor atento. Tais exern­plos se repetem bastante quanto mais fa<;amos leituras diligentes de antro­pólogos de expressáo internacional. Esclare<;a-se que, por expressáo inter­nacional quera realcar aqueles profissionais que participam efetivamenteda comunidade planetária da disciplina, portante que fazem parte ativa de

140

L

A etnuidade comojator deestilo

urna ampla "comunidade de cornunicacáo e de argumentacáo" YA iden­rificacáo de paradigmas originais na forrnacáo de tal ou qual antropólogofaz parte da própria prática do diálogo que tem lugar no interior dessascomunidades, gra<;as aqual nos inserimos em "jogos de linguagem" espe­cíficos. A metáfora lingüística de que lancei rnáo linhas atrás, permite en­tender cada um des ses paradigmas como "di aletos" de urna mesma lin­guagem antropológica - a rigor urna única "língua" - em cujo ámbitoidentificaríamos igualmente o estilo de cada autor, responsável por seu"idioleto". Contudo, nao desejo valer-me da nocáo de estilo exclusiva­mente para dar conta de características individuais sinalizadoras da produ­<;ao intelectual de tal ou qual escritor, como certos autores, como o histo­riador Peter Gay, lograram realizar. 10 Meu interesse aqui é tratar a questáoestilística relativamente aproducáo intelectual de coletividades, particular­mente de comunidades de profissionais daantropologia, em prossegui­mento ao que venho escrevendo sobre o assunto." Portanto, menos doque tratar do problema da individualizacáo de discursos antropológicos,trata-se de individuar ou especificar estilos inerentes a certas tradicóes co­munitárias de trabalho antropológico - no que penso, aliás, estar emconsonáncia com idéias do Professor Granger." Com essa forrnulacáo, jáestamos nos introduzindo na problemática estilística propriamente dita, Enada melhor do que tomarmos um caso específico que sirva de referenciaempírica relativamente ao encaminhamento de nossa questáo central.

A FORMA<;ÁO DA ANTROPOLOGIA CATALÁ

Tive a oportunidade de tratar recenternente do cenário cultural e polí­tico cataláo do final do século passado e princípios des te,13 destacando-o 'como o contexto do qual emergem a identidade étnica historicamente

9 Cf. K.-o. Apel, "La comunidad de comunicación como presupuesto trascendental delas ciencias sociales", in LA transformación delafilosoJia, tomo Il.

10 Peter Gay, O estilo na bistória.

11 Roberto Cardoso de Oliveira, Sobre opensamento antropológico; e "Notas sobre urna esti­lística da antropologia", in R. Cardoso de Oliveira e G. R. Ruben, Estilos deantropologia.

12 G.-G. Granger, Esstry d'une pbilosopbie du s(yle.

13 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, "Identidade catalá e ideologia étnica", in Mana:EstadosdeAntropologia Social, vol. 1, nO 1, out. 1955.

141

I

1

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Roberto Cardoso de Oliveira

constituída e a ideología da catalanidade que a sustenta. Procurei, entáo,

indicar algumas das características que marcam a identidade catalá, forma­

da por urna sorte de oposicáo sistemática a identidade castelhana. Pensa­

dores cataláes dos finais dos oitocentos, como Josep Torras i Bages ou

Valentí Almirall, e autores dos princípios do século XX, como Enrie Prat

de la Riba, Josep Ferrater Mora ou Jaume Vicens i Vives, todos refletiramsobre essa identidade no marco dessa oposicáo, O caldo de cultura em

que subjaz dita identidade está, assim, na representacáo coletiva que o povocataláo faz das relacóes sociais, económicas e políticas que mantérn com o

povo castelhano, mediadas, por sua vez, pelo Estado espanhol. Um Esta­

do dominado pelos herdeiros da Casa de Castela, tida, pelos cataláes, como

secularmente opressora. E tive ocasiáo de mostrar o quadro étnico que con­

grega a populacáo imigrante, envolvida no processo de incorporacáo pelo

mercado de trabalho existente na cidade de Barcelona, capital da regía o

catalá, e local escolhido para a pesquisa. Resumidamente, diria que, se apli­

cássemos o conceito de etnicidade ao sistema interétnico barcelonés, nao

alcancaríamos a mesma rentabilidade de análise com relacáo aos cataláes,

urna vez que esses estariam vivendo a condicáo de povo majoritário, por­

tanto dominador das etnias imigrantes, tais como a basca, a galega ou a

andaluza - para exemplificarmos apenas com essas tres, que parecem ser as

mais expressivas no quadro étnico local. O poder político, no interior da

regiao, está instalado na Genera/itat de Cata/uf!Ya e demais órgáos administrati­

vos, portanto nas máos de caraláes que vivem, internamente, a situafiio de

povo dominante. Todavia, tal siruacáo nao é suficiente para anular neles

urna consciéncia de povo dominado, externamente dominado pelo Estado

espanhol marcadamente castelhano. Essa consciencia, que abre o horizon­

te cataláo para além de sua própria regiáo, vai inseri-los ao mesmo tempo

na dinámica da etnicidade. E gera um ressentimento anti-castelhano de

amplitude cósmica, alcancando todos os recantos do Vo/kgeist cataláo, A

afirrnacáo de sua identidade étnica é sistematicamente levada a efeito pela

negac;:ao da identidade castelhana. Realiza-se aqui, exemplarmente, o que a

teoria barthiana da "identidade contrastante" consideraria como nuclear." a

A etnicidade comoJator deestilo

afirrnacáo de si como negac;:ao do outro; no caso cataláo: o assumir-secomo povo em contraste agente castelhana.

A etnicidade catalá configura-se como tal no sistema de relacóes inre­

rétnicas administrado pelo Estado espanhol. E é nesse sentido que se podeentender desde as posicóes mais radicais~ como ilustra no limite o caso

basco -, porém minoritárias no quadro cataláo, até as posturas mais con­

dizentes com o Estado democrático, na quais a disputa se faz por via

parlamentar ou por outras modalidades de luta que nao a armada. Contu­do, o seu esforco em lograr algo mais do que urna mera autonomía admi­

nistrativa, como conquistou desde a queda do franquismo, nao esmore­ceu. E, por via democrática, o cataláo continua a lutar por seus direitos,

ancorados em sua cultura milenar, ern seu idioma, ern seu Vo/kgeist. E foi

precisamente nessa direcáo que a intelectualidade catalá convergiu seus in­

teresses, pelo menos desde fins do século passádo, Tais interesses resulta­

ram em urna forma de etnizacáo dos setores mais relevantes da cultura, de

modo que desse processo quase compulsivo de etnizacáo nao escaparia aprópria antropología, pelo menos em seus primórdios.

Entendo, por conseguinte, que se pode tracar sem maiores dificulda­des urna linha de desenvolvimento que vai do folclore - tomado aqui

como urna disciplina das mais antigas no campo da pesquisa cultural naCatalunha - a constituic;:ao da antropología como disciplina autónoma,no quadro da investigacño e do ensino académico na regiáo. O direito

consuetudinário, a literatura, as artes plásticas e rítmicas, o folclore cataláo

propriamente dito, foram sempre minuciosamente estudados, dentro de

um espírito obcecado pela busca das origens da nacionalidade catalá. E

isso com o intuito declarado de distinguir-se das demais etnias do territó­rio espanhol, notadarnente da populacáo castelhana. Comenta urn dos

mais argutos historiadores da antropología catalá, Lluís Calvo i Calvo, que

"para o ressurgímento da consciencia nacional [...] o folclore tem contri­

buído de maneira poderosa"; e acrescenta, ainda, que "o nacionalismo

marcou o desenvolvimento do folclore até o ponto de poder afirmar que

ele tem sido um de seu s motores"." Todavia, no que tange a questáoespecífica do nacionalismo, é necessário esclarecer que o caso cataláo nao

14 Cf. F. Barth, Ethnicgroups and boundaries; e Roberto Cardoso de Oliveira, "Identidadecatalá e ideologia étnica".

142

--15 Lluís Calvo, Tomás Carreras i .Ariau o el tremp de I'etnologia catalana, p. 62.

143

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Roberto Cardoso de Oliveiro

pode ser simplesmente categorizado no ambito dos fenómenos da nationbuilding, como fenómenos que emergem do seio de movimentos de cons­trucáo de nacóes, particularmente daquelas que se localizam em nossohemisfério - nacóes novas - e com as quais partilhamos urna grandeexperiencia histórica; experiencia que se reflete até mesmo no que diz res­peito a própria constituicáo da antropología brasileira" e, provavelmente,a construcáo de outras antropologias igualmente periféricas. Porém, pode­se dizer, relativamente ao caso cataláo, marcado pela ernicidade, que eleseria, no máximo, urna subespécie da ampla categoria de "construcáo danacáo", categoria essa em que a dorninacáo étnica, no ámbito interno dosistema societário, nao tem maior relevancia explicativa - a sermos coe­rentes com a nocáo de ernicidade de que estamos nos valendo: como

propóe o já mencionado Abner Cohen,

o termo etnicidade será de pouca valía se ele for estendido para denotardiferencas culturais entre sociedades isoladas, regióes autónomas ou stocks

independentes de populacóes.I'

E exemplifica:

As diferencas entre chineses e indianos, considerados em suas respectivaspátrias, sao diferencas nacionais, nao étnicas. Mas quando grupos de chinesese de indianos irnigranres interagem em urna terra estrangeira como chineses eindianos podem entáo ser referidos como grupos étnicos. is

Essa longa citacáo permite esclarecer, relativamente ao casoem foco, aduplicidade e a ambigüidade das posicóes assumidas pelos cataláes, seja naprópria Catalunha, quando agem como cultura hegemónica ~ - a partirda criacáo recente das Autonornias - como poder local administrativosobre os imigrantes de outras regióes da Espanha ou do estrangeiro; sejacom relacáo ao Estado espanhol, frente ao qual, mesmo no interior daCatalunha, mas sobretudo fora dela, devem a ele se submeter, razáo pela

qual vivem a condicáo de etnia dominada.

A etnicidade como[arar deestilo

Esclarecido esse ponto - que me parece crucial para a cornpreensáoda especificidade do caso cataláo -, retomemos a questáo do folclore ede seu papel na forrnacáo da antropologia. Um dos autores - atores maisimportantes nessa passagem do folclore a antropologia foi Tomas Carrerasi Artau, criador de muitas instiruicóes caralás, merecendo maior destaque oprestigioso Arxiu d'etnogrtifia ifolklorede CatalUfrya. 19 Em 1911, em seu arti­go "Investigacóes sobre a ciencia moral e jurídica de Catalunha", pracica­mente delineia um programa direcionado para a exploracáo científica douniverso cataláo por interrnédio do que ele chamou de psicologia coletiva.Urna disciplina que nao esconde as influencias da Volkerp[jclJologie de Wundt,dos estudos de Lévy-Bruhl sobre "mentalidade primitiva", ou dos de Tylorsobre a "civilizacáo primitiva" ou, ainda, os de Boas sobre a "mente dohomem primitivo". Sao influencias múltiplas, provenientes dos vários cen­tros metropolitanos, onde já se cornecava entáo a estabelecer as bases damoderna antropologia. Diz ele:

A aplicacáo dos procedimentos de psicologia coletiva ahistória da conscienciamoral e jurídica da Catalunha; o conteúdo e hierarquia dessa consciencia, ouseja,as concepcóes científicas ou reflexivas e as concepcóes pessoais de genio;o estudo particular das fontes de investígacáo dessas diversas categorias deconcepcóes, a saber, das producóes poéticas em seus diversos géneros, daslendas e das tradicóes perpetuadas (jolk-lor'e) com a conseguinte necessáriadepuracáo, dos tratados dos teólogos e dos filósofos, das obras jurídicas elegislativas, e mui especialmente das ricas e inesgotáveis concepcóes de direitoe economía consuetudinários [oo.] tem, como resultado de toda essa investi­gac;:ao de conjunto, [oo.] de apontar os traeos permanentemente característicosda consciencia moral e jurídica da Catalunha, [para] revelar a fisionomía espi­ritual do povo cataláo e mostrar a significacáo histórica e futura deste povoem suas relacóes naturais com os dernais povos ibéricos."

16

17

18

Cf. M. Peirano,Tbeontropology of onthropology: Tbe bra'IJlion cose.

Abner Cohen, Ethnicity, p. XI.

Idern,

144 1

19

20

Cf.o interessante trabalho de L. Calvo, "L'arxiu d'etnografia i folklore de Catalunya.El projecte noucentista de renovació i institucionalització de etnografia catalana", inLluísCalvo (org.), Aportocions o la historia del'antropologio catalana i hispanico.

Todaessacitacáo está em LluísCalvo, "L'arxiud'etnografia i folklore de Catalunya. Elprojecte noucentista de renovació i institucionalització de etnografia catalana", p. 87.

145

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Page 74: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

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[1!¡

I!

Roberto Cardoso de Gliueira

Acredito que essa extensa citacáo se justifique, dada a ampla informa­

cáo que nos oferece. Por ela, podemos verificar que o grande desideratumdesses estudos está - já desde as suas origens - na elucidacáo da identi­dade catalá.

O folclore aparece assim como tema de investigacáo e como discipli­

na, destituída, todavía, da cientificidade que Carreras i Artau e seus con­

temporáneos, afinados com o mesmo objetivo, procuravam implantar

nos mesmos estudos. O século XIX havia plantado fortemente as raízes

desses estudos, inspirados no romantismo alernáo - especialmente em

Herder - e no movimento renascentista cataláo, sua particular Renaixenca,a rigor, o renascimento da língua, da cultura e da identidade catalás,

subjugadas por séculas de dorninacáo castelhana. No boja desses fatos,

a via folclorista vai ficar profundamente influenciada pelo romantismo e aRenaixenFa. A salvaguarda ou a recuperacáo dos valores pátrios se convertemem estímulo permanente para muitos folcloristas. Nacionalismo e recupera­cáo da própria identidade [sao] como eixos vertebraisdos nossos folcloristas."

Todavia, para dar a esses estudos o alcance científico de que necessi­

tam, elabora-se urn guia, particularmente inspirado no já entáo celebrado

Notes and queries on anthopology, e redigido por Carreras i Artau, catedrático

da Faculdade de Filosofia e Letras, e Batista i Roca, professor auxiliar da

mesma Faculdade, ambas da Universidade de Barcelona. Intitulado Manu­al per a recerques d'etnograjia de Catalu'!Ya e editado em cataláo pelo .Arxiud'etnograjia i folklore de Catalunya, em 1921, escrevem seus responsáveís que

tratando-se de urna empresa coletiva que poucoa pouco vai desenvolvendoo seu pensamento, este Manual terá de ser objeto de revisáo sempre que oA1XÍ1I considere necessário condensar em forma normativa os avances obti­dos durante urn período determinado, nos seus métodos de investigacáo enas novas perspectivas de trabalho.F

21 Cf Lluís Calvo, Tomas Carreras i .Artau o el tren'P de I'etnologia catalana, p. 91.

22 Cf "L'arxiu d'etnografia i folklore de Catalunya", Manualper a recerques d'etnograjia deCatalunya, p. 4.

146

,t

,A dnicidade comofator deestilo

Entretanto, se o Manual atende as necessidades de caráter metodológi­

co, mais exatamente a demanda de técnicas de coleta de dados, cabe per­

guntar sobre a orienta<;ao propriamente episrémica dessa tentativa de

cientifizacáo, A se julgar pela presenca do positivismo e da denominada

"Filosofia do Senso Comum", como doutrinas de significativa influencia

no século XIX, pode-se dizer que foi por meio delas que os estudos sobre

a cultura catalá postuJaram seu ingresso no campo propriamente científico

- ou, pelo menos, nos termos em que esse campo era concebido pelaintelectualidade da época. Valho-me de algumas avaliacóes do já mencio­nado Lluís Calvo.

Concretamente, consideramos que os postulados defendidos pela Filosofia• do Senso Comum sao urna das bases que deram alento a boa parte dos

estudos folclóricos do século XIX cataláo, - Por que áfirmamos tal coisa?Obviamente, porque durante o tempo de vivenciadessa filosofia, na Catalu­nha, sua transcendencia foi importante, jáque penetrou em muitos [e] distin­tos setores da vida catalá: desde os intelectuais [...] até a burguesia do rno­mento."

Ao alcancar um desenvolvimento rnais acentuado na Escócia dos sé­

culos XVIII e XIX - especialmente com Thomas Reíd (1710-1796),Dugald Steward (1753-1828) e-William Hamilton (1788-1856) _, a Filo­

sofia do Senso Comum veio ao encontro da ideología da catalanidade,

contribuindo para a consolidac;:ao de urn dos pilares da identidade catalá

que se expressa em urna de suas categorias constitutivas: a de Set!), urn

termo quase imraduzível que, tal como a palavra portuguesa "saudade",

nao a compreendemos senáo pelo recurso a várias palavras. Conforme ofilósofo cataláo, Josep Ferrater Mora,

Se tentarmos buscar outras palavras que reflítam com mais ou menos preci­sao o que significaesse se'!),encontraremos, em primeiro lugar, os seguintes:"prudencia", "entendimenro", "discricño", "circunspec<;ao".Nenhum des­ses termos quer dizer propriamente o mesmo que se'!); se'!) equivale atodos. 24

23 Lluís Calvo, El '.:4rxiu d'etnograjia ifolclore de Catalunia"y la antropología catalana, p. 37.

24 J. Ferrater Mora, Lesformesdela vídacatalana i altresassaigs, p. 52.

147

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l ...

RJ¡berlo Cardoso de Oliveira

E rnais adiante:Como a prudencia e o entendimento, a circunspecs;ao ou a discricáo naosignificampropriamente o sef!J, porém nenhum sef!J é possívelsem pruden­cia,sem entendirnento, sem circunspecs;ao e sem discricáo."

Muito se poderia dizer sobre o conceito de sen), dado o lugar central

que ocupa na definicáo da persona catalá, que sempre poderá ser constatada

na extensa literatura a seu respeito. Mas é suficiente evocar, para os propó­sitos deste artigo, uma interessante afirrnacáo de Lluís Calvo, justificandoo uso corrente da expressáo Filosofia do Senso Comum em seu país:

Aqui se adota essa denominas;ao em detrimento da denominada "filosofíaescocesa" já que conflui mais corn o pensamento próprio cataláo daquele

momento" .

Pode-se dizer que essa filosofia escocesa veio, afinal, encaixar-se perfei­

tamente em um dos alicerces da ideología da catalanidade.Destarte, caso queiramos penetrar na história das idéias catalás ern bus­

ca do significado mais profundo da nocáo de se'!)', poderemos rhencionar

um dos c1ássicos mais importantes de seu pensamento filosófico, JoanLluís Vives _ nascido ern finais do século XV -, conforme ele é inter-

pretado pelo já citado Carreras i Artau.

Podem, pois, concluir que se os ideaisdo humanismo europeu proporciona­

raroa Lluís Vives asasasdo seupensamento, o fundo ancestral- reelaboradopor um espírito que faz da observas;aode si e do mundo o primeiro cánonedo correto pensar -lhe dá [...1o sentido de popderas;aoe de equih'brio, oudito em urna palavra usada pelo mesmo Vives,o sef!J.27 ~

A invocacáo do se'!)' por um pensador tao antigo na história das idéias

catalás, faz-nos reconhecer a forca de urna rradicáo intelectual que certa­

mente serviu de elemento modelador - ou pelo menos de base - danova disciplina que se desenhava ern principios do século XX. Isso equiva­le a dizer que o solo no qual se iria plantar a antropología jánele germina-

A etniadade como fator de estilo

vam idéias que acabariam por se expressar na Filosofia do Senso Comumdos séculos XVIII e XIX, de influencia decisiva para a consolidacñ., dofolclore e de sua transforrnacáo em disciplina científica.

Fiel ao propósito de estabelecer ligacóes e revelarlinhas de pensamento, melimitarei a apontar que desde Lluís Vives para cá, e gras;as ao concurso dediversos fatores históricos, se vem elaborando na Catalunha urna doutrinasistemáticado sentido comum - verdadeiraFilosofiado Seny-, pela qualse tem obtido importantes desenvolvimentos e aplicacóes, sobretudo du­rante o século XIX.28

E em uma demonstracáo da vitalidade dessa filosofia, Carreras i Artau

assevera que

A doutrina do sentido comum de Lluís Vives nao é episódica, nem estáreclusaao ámbito estritamente filosófico, senáo que informando toda a obravivista, fecunda os diversos domínios da vida prática."

Pode-se dizer que ela seria - com origem em uma visáo quinhentistacomo a de Vives - o condimento da ideología da catalanidade.

Todavia, se a Filosofia do Senso Comum serviu como uma escora aideología da catalanidade, urna vez que nao seria exagero admitir que arepresentacáo que o homem caraláo soube construir secularmente sobre simesmo adequava-se perfeitamenre a essa concepcáo filosófica, o rnesmonao se poderia afirmar com a mesma énfase relativamente aquestáo doconhecimento científico. Esse deveria ser - como efetivamente chegou aser, ainda que parcialmente - penetrado pela influencia do positivismo.Pelo menos essa é a percepcáo de autores cataláes aépoca. Ao tomarmosem conta posicóes de figuras significativas para o desenvolvimento da "antropología, particularmente em sua acepcáo sócio-cultural- portanro

distinta da antropología física, ou simplesmente antropología, como eracomurnente chamada -, como Carreras i Artau, podemos aquilatar a im­portancia do positivismo e, com ele, a emergencia do cientismo como urnanova ideología que se tomaria hegem6nica na busca do conhecimento dohomem cataláo, Em uma solenidade de sua recepcáo pública na RealA ca-

1--..

25

26

27

J. Ferrater Mora, Lesformes dela vida catalana i altres aJJaigs, pp. 53-54.

Cf. UuísCalvo, El 'Arxi« d'etnografta i folclore deCalalunia"y laantropología catalana, p. 37,

nota 2.Cf. T. Carreras i Artau, Introducció a la historia delpensamentfilosoftc a Catalunya, p. 79.

148

28

29

T. Carreras i Artau, Introducció o la historia delpensamentfilosoftc a Catalzll7)'o, pp. 79-80.

Idem, p. 81.

149

Page 76: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Oliueira A etnicidade comojalor deestilo

CONCLUSAO: DMA QUESTAO DE ESTILO

Ao tomar o "caso cataláo", minha intencáo nao foi outra senáo a depossibilitar o exame de urna situacáo em que o processo de etnizacáo das

formac;:6es discursivas observáveis na Catalunha chegasse a atingir tam­bém a própria antropologia no momento de sua constituicáo como urna

disciplina autónoma. É o momento da transic;:ao entre os dois séculos,quando tem lugar o movimento denominado noucentismo, ao qual várias

figuras proeminentes da intelectualidade catalá participaram, até mesmo, e

de forma destacada, Carreras i Artau. Fundado sobre tres princípios sin­gelamente estabelecidos:

1. "contra o esquecimento do passado";

2. "contra o desconhecimento do estrangeiro"; e3. "contra a falta de urna base científica"."

tigac;:6es foram as que melhor teriam conduzido os "folcloristas científi­cos" e os primeiros etnógrafos ao tema privilegiado da psicologia doPOyO cataláo. O Manua!per a recerques d'etnogreifia de Catalunya, referido pará­grafos atrás, ilustra eloqüentemente o privilegiamento do tema, quando inti­

tula todo seu capítulo final ''Psicologia del poble catala". Há, assim, urna pro­

cura de procedimentos que leve m o pesquisador a assenhorear-se dos recur­sos do método científico progressivamente. Percebe-se urna decidida inten­c;:ao reformista na maneira de pesquisar, como comenta Calvo i Calvo:

Esta reforma metodológica vai estar conectada com as mudancas que a cienciaetnológica produziu nos anos 1920; o modo de etnogr'!fárínicia a sua transforma­<;ao, até o ponto em que vai colocar a necessidade de estadias prolongadas naspovoacóes, °estudo intensivo de urna área ou o conhecirnento da língua indí­gena. Neste momento, o coleaonarpan¡ e:>..plicarvai deixar de ser prioritario."

O estudioso passa da situacáo de excursionista e de mero colecionadorde elementos do folclore, para a de pesquisador, agora dotado de recur­

sos metodológicos conectados a teorias antropológicas disponíveis no iní­cio do século XX.

demia de Buenas Letras de Barcelona, em 1918, Carreras i Artau, discursandosobre a psicologia e a etnografia de urn clássico do pensamento cataláo,

Joaquim Costa, comenta haver ele tentado urna

fórmula de renovacáo filosófica da Escola Histórica Cataja, concebida segun­

do urn conteúdo mais amplo que o estritamente jurídico, emoldada em urnadirecáo francamente psico-etnográfica. Como objeto concreto [...] assinaJavaa

psicología dopovo cataldo, tema esse que, no meu entender, já é hora de investircom toda parcimónia, mas com critério rigorosamente científico."

E, a rigor, o que entendia por critério rigoroso nada mais era do que opredominio de método sobre teorias vagas e abstratas. "Qualquer trans­forrnacáo científica nao consistia, tao somente, a criar novos pressupostosteóricos senáo também metodologias adequadas"." E, nesse sentido, combase nos escritos de Carreras i Artau - como é exemplo disso o seuexcelente compte rendu sobre os "Problemas atuais da psicologia coletiva eétnica e sua transcendencia filosófica'v" - pode-se dizer que, lá pelos anos

1920, já havia um pleno dominio das teorias antropológicas de proceden­cia francesa, alerná, inglesa e norte-americana no cenário científico cataláo,

E o lugar do "método de observacáo objetiva'v" estava assegurado, como

se pode depreender de sua própria familiaridade com Les regles de la mélhodesociologique, de Durkheirn."

A presenc;:a de urn certo psicologismo, em autores como Carreras iArtau, faz pensar que seria difícil conceber urna etnologia totalmente sepa­rada da psicologia; naturalmente, de urna psicologia coletiva - comogostava de sublinhar, seguindo aí seus autores favoritos, como o Wundtda Volkery.rychologie e o Lévy-Bruhl da mentalité primitive. E' nao se pode

deixar de considerar que esses mesmos autores seriam aqueles cujas inves-

30 Cf. T. Carreras i Artau, "Una excursió de psicología y etnografia hispanes. JoaquimCosta", in Discursos I/egils en la "Reai.Academia deBuenas Letras" deBarcelona, p. 9.

31 Cf. lJuís Calvo, TomasCarreras i .Artau o e/tremp dereln%gia catalana, p. 107.

32 Cf. T. Carreras i Artau, "Problemas actuales de la psicología colectiva y étnica y sutrascendencia filosófica", in "Congreso de Barcelona. Asociación Española para elProgreso de las Ciencias", 1929.

33 Idem, p. 83.

34 Ibidem, pp. 61-62.

150

L

35

36

Cf. o trabalho de lJuís Calvo, Tomas Carreras i.Artan oeltremp de!'eln%gía catalana, p. 56,nota de rodapé na 15.

Citacáo de Eugeni D'Ors, "El renovamiento de la tradición catalana", in Cala/filfa, n'"

151

Page 77: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

-r'-"-"-"...-- _.--

Roberto Cardoso de OliveiraA etniddade comofator deestilo

40 UuísCalvo, "folclore, etnografia y etnologíaen Cataluña", in Ángel Aguirre Baztán(org), Historia dela antropología española, p. 217.

41 J. Prat eta/ii, Antropologja de los pueblos deEspaña.

42 Idem, pp. 13-32.

43 Ibídem, pp. 113-140.

44 Ibídem, pp. 77-86.

autores - galegos, bascos, andaluzes, castelhanos - que escrevem sobresuas respectivas regióes. Afinal, a coletánea é dedicada aos povos da Espa­nha. Mas o que parece interessante registrar é a massa de temas recorrentesentre os autores cataláes, porém tratados dentro daquilo que se poderia

c1assificar de urna antropología moderna. Urna antropologia produzidanos termos de urna matriz disciplinar, cuja tensáo entre seus paradigmas é

facilmente perceptível. Urna tensáo que, a rigor, já se poderia observarnos primórdios desee século, quando a disciplina cornecava a encontrar oseu rumo para a sua consolidacáo. Como observa Calvo i Calvo,

a mudanca do século comportou novas expectativas para a antropologia naCatalunha, jáque apareceram noves paradigmas e metodologías que foramtao-somente um dos sinais dos novíssimos modos e atitudes existenciaisque naqueles momentos ocorriarn na Europa. Os novos modelos científicosque irromperam ou se criararn nao comportaram a anulacáo ou exrincáo dos

anteriores. De fato, o que se deu foi sua coexistencia com novas formas defazer e entender o estudo do hornem e suas culturas."

Atualmente, essa mesma coexistencia pode ser observada, a se levarem conta essa pequena mostra. A diferenca estaria apenas na moderniza­<;:ao dos paradigmas que se fazem presentes na matriz disciplinar, confor­me mostrou o Figura 1, e cuja dinámica os conduz para urna simultanei­

dade entre eles cada vez mais tensa, como mostrou a Figura 2.Há,indubitavelmente, urna preocupacáo bern difundida entre os auto­

res caraláes da coletánea" em identificar as raízes da disciplina em suaregiáo. Isso ocorre desde os excelentes artigos de Joan Prat sobre "Histó­ria"42 e "Iecría-Metodología"," até os de Llorenc Prats sobre "Los pre­cedentes de los estudios etnológicos en Cataluña, folklore y etnografía" ,44

os de Ignasi Terradas Saborit sobre "La história de las estructuras y la

!

!Ji. 153

Os vetores que váo marcar a atua¡;ao "científica noucentista" foram diversos,mas um deles teve especial importancia: o conhecimento das origens étnicas, lin­

gi/fsticas, antropológicas e arqueológicas da nafao ratald. O objetivo foi revelar a

diferencialitat dopovo catolao.37

Diante de todas essas considera<;6es, pode-se entender finalmente o

porque de haver sido escolhido aquele período e nao outro para o exameda etnicidade como fator de estilo na constitui<;:ao da antropologia. Pelo

menos duas razóes podem ser evocadas de imediato:1. a de poder surpreender a disciplina em seu pleno processo de emergen­cia; urna estratégia, aliás, adotada nas demais investiga<;6es elencadas no

projeto "Estilos de Antropología";382. a de verificar que a antropología, na atual Catalunha, ainda que abrigueem seu exercício um notável interesse sobre a etnicidade, essa nao mais

chega a conformar o ponto de vista disciplinar com a amplitude que ofizera no passado, deixando, portanto, de constituir-se em uma boa estra-

tégía de investiga<;ao.Todavia, se a primeira razáo está suficientemente amparada pelo con-

junto de argumentos até aqui expostos, a segunda razáo demanda alguns

comentários que entendo ainda caberem nesta conclusáo.Urna boa mostra da antropología ern curso na Catalunha dehoje pode

ser obtida por urna simples leitura da obra coletivaAntropologfa de lospueblosde España.39 Nessa obra, que infelizmente neste artigo nao cabe resenhar, háurn conjunto de trabalhos que sao produzidos por autores cataláes e que

incidem sobre temas relacionados com a Catalunha, tanto quanto outros

152

170-171,1911, apudUuís Calvo,Tomas Carreras i .Artau oeltremp deI'etnología catalana, p.

86, nota de rodapé n2 16.37 Uuís Calvo,Tomas Carreras i Artau o eltremp de I'etnología catalana, p. 51,nota de rodapé

n2 15. O grifo é rneu.38 Cf. Roberto Cardoso de Oliveirae Guilherme R. Ruben, Estilosdeantropologia.

39 J. Prat et alii,Antropologia de lospueblos deEspaña.

Esse movimento estava voltado para a moderniza<;ao da Catalunha e,

naturalmente, para urna renovacáo do pensamento científico, sem, porisso, aliená-lo de seu compromisso com a catalanidade. Como comenta

Calvo i Calvo,

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Page 78: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cartloso de OliveiraA etnicidade como jator de estilo

Esse conjunto de trabalhos se nao cobre a totalidade de interesses quetem lugar no cenário cataJao, permite acreditar que serve de indicador deque pelo menos existe urna producáo antropológica de níve] internacional.Embora voltada para dentro, no que concerne ao objeto empírico de

estudo - no que é coerenre com o padrño latente das antropologiasperiféricas -, essa producáo nao fica a dever ao que se pratica nas antro­pologias mais desenvolvidas, sejam elas periféricas ou nao. Quero dizercom isso que a antropologia na Catalunha está dentre aquel as _ Como

costumo dizer - que deram certo em seu processo de recriac;:ao fora doscentros metropolitanos da disciplina.

Em que a noc;:ao de estilo pode ajudar na identificac;:ao da "aorropolo.gia catalá"> Como se víu, essa própria expressáo "antropologia catalá" é

equívoca, urna vez que, se pensarmos ern termos universalistas, melhorseria falarmos ern "antropologia na Catalunha": pois sendo urna disciplinade pretensáo planetária - como Sustenta toda a argumentac;:ao subjacente

a matriz disciplinar -, sua dimensao catala pode ser aferida exclusiva­mente pela via de urna estilísrica. Isto é, reconhecendo que o exercício dadisciplina na Catalunha de hoje nao é senáo a atualizac;:ao virtual da matriz

disciplinar - nos termos da Figura 1 -, pode-se verificar sem maioresdificuldades que ela nao seria nada aJém de um jato de estilo; de conformi­dade com a definicño que Granger dá ao ./az! de sryle. 50 E isso _ seguindoO mesmo autor - porque estaríamos nos defrontando a urn fenómenode evidente redundáncia sempre que pretendermos identificar na prática daantropologia no cenário catalao aJguma mudanc;:a na estrutura da matrizdisciplinar. Como escrevi ern outro lugar,

as eventuais mudanc;:as gue poderiam ser observadas seriam naestrutura dadisciplina - a saber, em sua matriz disciplinar _, mas nao se observariamudancn daestrutura. 51

Porém, o fato de nao se constatar "nada de novo" do ponto de vistaepistemológico na antropologia que se faz na Catalunha, nao significa que

ela nao possua um estilo que nao possa ser susceptível de identificac;:ao.

hisrória de la vida: Reflexiones sobre las formas de relacionar la histórialocal u la história general"," os de Joan J. Pujadas e Dolores ComasD'Argemir sobre "Identidad catalana y símbolos culturales" ,46 nos quais sesucedem temas como o discurso folclórico, o regionalismo, a Renaixenia, onoucentismo, a etnicidade, o nacionalismo ou o simbolismo que revelam apersistencia de um interesse voltado para o mesmo Volkgeist cataláo,

Porém, a diferenc;a das abordagens das primeiras décadas do século,em que se misturam evolucionismo, difusionismo, Kulturkreise, historicisrnoetc., agora nota-se urna heterogeneidade em torno de paradigmas já con­dizentes com a antropologia socio-cultural moderna, como o funcionalis­mo, o estruturalismo, o culturalismo e a hermenéutica geertziana, entreoutros - deixando de destacar o materialismo cultural, o sócio-biologismoou a etnoscience, que considero menos significativos para a consolidacáo dadisciplina em seu estado atua!' Há, ainda, projetos em andamento, como ode Teresa San Romám, urna antropóloga da Universidade Autónoma deBarcelona, grac;:as ao qual ficamos sabendo do refinamento de sua análisesobre processos de marginalizacáo de idos os ou de ciganos cataláés, con­

forme sua interessante contribuicáo amesma coletánea, "La marginación

como dominio conceptual: Comentarios sobre un proyecto en curso't.", éurna pesquisa que, em termos teóricos, ou metodológicos, pouco distin­gue-se do que fazemos no Brasil. Como tambérn pode-se observar, doponto de vista especificamente epistemológico, nessa mesma e importanteuniversidade catalá, as idéias popperianas aportaram e floresceram: é oque revela o artigo de Aurora González Echevarría, "Del estatuto científi­co de la antropologia" que se soma ao seu livro La construcción teórica enantropología.49 Considerando que essa professora ministra os cursos de teo­ria e metodologia naquela universidade, pode-se admitir que, ao menosem nível do alunado, há rnuita chance de preponderar urna visáo cientificistada disciplina.

45 J. Prat et a!ii, Antropologia de lospueblos deEspan«, pp. 159-176.

46 Idem, pp. 647-652.

47 Ibídem, pp. 151-158.

48 Ibidem, pp. 177-191.

49 Cf A. GonzaJes Echevarría, LA construcción teórica en antropologia.

154

Jl

50

51Cf. G.-G. Granger, Ess'!Jd'unepbilosopbie du style.

Cf. Roberto Cardoso de 01iveira, "Notas sobre urna estilística da antropologia",p.180.

155

Page 79: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

"1:

!~1.~

Roberto Cardoso de Oliveira

Significa apenas que a "mensagem epistemológica" que essa antropologiapoderia transmitir é redundante, urna vez que o que se estaria observandonao seria outra coisa que a atualiza~ao de urna mesma matriz disciplinar dealcance planetário. E como as investiga~6es que até agora realizei ern Bar­celona e ern Bellaterra -lugar da Universitat Autonoma de Barcelona - naopermi

temque se leve avante urna análise estilística da antropología pratica­

da na atualidade, estou limitando-me a examinar a questao estilística comrela~ao ao processo de forma<;:ao da disciplina na Catalunha. E é precisa­mente aí que se coloca a etnicidade como fator preponderante na marca­~ao do estilo cataláo dessa mesma antropología. Nesse sentido, creio ha­ver ficado suficientemente esclarecido que a ideología da catalanidade exer­ceu um papel decisivo na modela~ao das formas de pensar da intelectua­lidade catalá ern todo o período de emergencia da disciplina. E, certamen­

te, essa ideología nao esteve restrita ainte//igent':(ja, poi s há fortes indicios deque teria mobilizado um público muito amplo, a se levar ern conta a tira­gem de 100 mil exemplares da obra de E. Prat de la Riba e P. Muntanyola,Compendi de la doctrina catalanista, publicada ern 1894, considerada o catecis­mo catalao!52 Penso ainda haver mostrado o alto grau de etniza~ao daantropología que teria persistido rnesmo após haver logrado distinguir-sedo folclore corn o entáo novo norne de etnología ou etnografia, ou, ain­da, como urna sorte de "psicología do povo catalao". O certo é que aadocáo das teorias antropológícas na Catalunha foi simultanea ao esforcocoletivo de reconstru~ao da identidade catalá, posto que elas viriam a con­solidar urna disciplina investida da responsabilidade de fornecer respaldo

científico ao projeto político e cultural da catalanidadé. A

Capitulo 8

RELATIVISMO CULTURALE FILOSOFIAS PERIFÉRICAS

É bastante auspicioso verificar que a questáo do relativismo culturalnao é mais monopólio da antropologia como tema de investigacáo e re­flexáo. O livro Cultural relativism andpbilosopf?y,l organizado por MarceloDascal, mostra que também os filósofos podem ser atraídos pelo proble­ma e o enfrentam, naturalmente, com as armas de sua disciplina. Isso trazdesdobramentos dos mais interessantes, pois indica, para aqueles de nósdedicados a percorrer espa~os interdisciplinares e, particularmente, devo­tados aelucidacáo das relacóes entre centro e periferia, o quanto pode serfecundo o enfrentamento de um mesmo tema por disciplinas diferentes.

Mas se a antropologia tem se voltado tradicionalmente para o examedas diferencas entre sistemas culturais os mais diversos, mercé sobretudados recursos do método comparativo, só mais recentemente - e salvoraras excecóes - tem se debrucado sobre si própria, vendo-se ela mesmacomo disciplina, urna modalidade de cultura. É precisamente nesse pontoque antropologia e filosofia encontram-se. E em um momento em que ossistemas cognitivos, dentro dos quais filósofos e antropólogos estáo inse­ridos, sao submetidos a um mesmo olhar interrogativo, de prudente estra­nhamento - para lembrar aqui palavras de um filósofo pouco lembrado,Aníbal Sánchez Reulet - e, ao mesmo tempo, de temor em se deixarlevar, inadvertidamente, a perigosas posicóes etnocéntricas - que, no casoespecífico da filosofia, sao profundamente eurocéntricas, Na antropolo­gia, urna disciplina essencialmente devotada ao estudo da cultura "dos

52Mencionado por J. R. Uobera, ero seu "La idea de Volkgeist en la forroació de laideologia nacionalista catalana", in Histon'a i Antropologia: a la memoria D 'AngelPalerm.

(A cura de Neus Escandell i d'Ignasi Terradas), p. 404.

156 . ~

iL

Este texto, aqui incluído coro modificacóes, foi originalmente escrito para Manuscrito:Revista Internacional deFilosofia, vol. XVI - nO 1, 1993, pp. 207-316 -, como artigo­resenha do Iivro organizado por Marcelo Dascal e intitulado Culturalrelativism andpbilosopby: Nortb andLatin Americanperspective. Como um dos nossos temas nucleares éa relacáo entre "culturas antropológicas" centrais e periféricas, estender essa relacáopara "culturas filosóficas" pareceu-nos que estaríamos enriquecendo nossa reflexáo,

157

l.

Page 80: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Oliteira

outros", se esse olhar episodicamente manifestou-se em sua história, sobre­tudo em seus primórdios - veja-se L. Lévy-Bruhl," por exemplo -, só maisrecentemente, na segunda rnetade deste nosso século, é que tornou-se maissistemático, grac;:as ao trabalho de antropólogos como Louis Durnonr' ouClifford Geerrz,' para destacar aqui apenas dois autores que, no meu en­tender, com maior criatividade enfrentaram o problema. Já na filosofia,ao tomarmos o aludido volume, que em boa hora M. Dascal oferece-nos,como bom indicador - espero que nao o único - dessa tomada de cons­ciencia do problema, vemos que a colaboracáo entre as duas disciplinas naosornen te é possível, como impóe-se caso quisermos aproveitar o que cada

urna delas pode oferecer a um empreendimento de interesse comum.Gostaria de oferecer urna visáo, mesmo sendo de sobrevóo, sobre o

que contém o volume, que nao deixasse de pousar nos pontos que serevelem suficientemente significativos para merecerem comentários. Naintroducáo do volume, Dascal assevera que

Filósofos sempre consideraram, explícitaou implicitamente,a possibilidadede existirern "standards alternativos" de pensamento, moralidade'ou racio­nalidade.Mas eles o fizeram, em sua maior parte, in abstracto?

Isto é, sem penetrar nas profundidades dos esquemas conceituais ·deoutras culturas, mas praticamente limitando-se a testar os limites de seuspróprios esquemas. Contudo, caberia perguntar: teriam os filósofos con­dicóes de penetrar nos sistemas conceituais de outras culturas, particular­

mente as chamadas "culturas exóticas", nao ocidentais ou ocidentalizadas- isto é, em sua modalidade "periférica" - se¡n o concurso de seuscolegas antropólogos ou, mesmo, de lingüistas treinados na~pesquisa decampo? Como realizar urna verdadeira etnografia do pensamento sem os

~

l

2

3

4

5

Em meu livro sobre Lévy-Bruhl, RaZao e ajetividade: O pensamenra de L Ury-Bruhl,tentei mostrar esse estranhamento presente já na origem da antropologia em um dosseus principais fundadores.

Cf. L. Dumont, Essais SIIr l'individua/isme: Une perspective anthropologique sur /'idéologiemoderne, especialmente o Capítulo 6.

Cf. C. Geertz, Localknowledge: Furtber essqys in intepretive anthropology, especialmente osCapítulos 3 e 7.

Idern, p. 3.

158

L

&lativismomltllraleftlosojias perijéncas

recursos da investigac;:ao empinca, sistematlca, por meio do fie!dwork? A"observacáo participante", tao cara aos antropólogos, ainda que cerreta.

mente criticada, em seus limites, por Dascal, nem por isso pode ser toma­da como procedimento metodológico cujos resultados devam ser consi­derados como definitivos para a análise etnológica. A antropologia naoaposta todas as suas cartas em urna única modalidade de abordagem. Arigor, a observac;:ao participante cumprirá bem o seu papel a medida em

gue puder oferecer ao pesquisador a oportunidade de exercitar a interpre­tacáo compreensiva - Verstehen - sobre os excedentes de significa<;:aoprovenientes dos dados empíricos a que teve acesso. Trabalhar sobre da­dos originarios de simples observac;:ao e entrevistas, organizando-os ern

nível de modelos - como, por exemplo, fazem os estruturalistas _, asse­gura ao antropólogo um conhecimento bern mais controlável do que teriacaso se limitasse exclusivamente ao caráter intimista da observac;:ao partici­pante. Esse é, por sinal, um tópico de grande relevancia teórico-metodo_lógica para a disciplina e dele tenho tratado em diferentes ocasióes." Toda­via, sempre vale reforcar a assertiva de que a antropologia "de campo" _

melhor dizendo, no campo - nao se reduz á compreensao ensejada pelaobservacáo participante, mas lanc;:a-se também, ainda que nem sempre

com a eficácia desejada, na busca da explicac;:ao nomolÓgica. A articula<;:aotensa entre a compreensao e a explicac;:ao, como modalidades de cognic;:aoigualmente legítimas, nao só pode ser encontrada ern algumas das mono­

grafias mais importantes na história da disciplina, como deveria servir deorientac;:ao a tantos quantos exercitam a antropologia moderna."

Entretanto, gualquer que seja o tipo de observac;:ao empírica, nao me

parece que o filósofo esreja preparado para realizá-la. Valeria, por isso,perguntar se as outras culturas passíveis de "investigac;:aofilosófica" seriamefetivamente "exóticas" ou apenas manifestac;:oes "periféricas" de filosofí­as "centrais" ou metropolitanas, melhor diria: eurocentricas. Aliás, pareceque foi essa segunda alternativa que prevaleceu na organizac;:ao do volume

6 Cf. especialmente os capítulos 1,4 e 5 deste volurne,

7 Volto a indicar especificamente o capítulo 5, <CA dupla interpreta~ao", no qua! é exami­

nada a questáo da complementaridade entre a interpretafao explicativa e a ú,terpretafaocompreensiva.

159

Page 81: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

1Roberto Cardoso de Oliveira

Cultural relativism andphilosopqy. O ensaio de Mercedes de la Garza, sobre aconcepcáo do tempo e do mundo no pensamento Maya e Nahuatl," é aexcecáo que vem confirmar o que acabo de dizer. E isso nao deixa de serconsistente com o próprio subtítulo da coletánea organizada por Dascal:North andLatin American perspectives. Ele sugere de pronto que as perspecti­vas norte e latino-americanas, que se manifestam ao longo dos ensaios queformam o livro, estáo seguramente inseridas quase em um único "jogo de

linguagem": o grande jogo da filosofia Ocidental. Para usar urna expres­sao antropológica, de sabor bem redfieldiano, diria que o volume caracte­riza-se mais pelo confronto entre "grande" e "pequena" tradicóes, euro­céntricas, do que entre filosofia(s) de ancestralidade ocidental e filosofias

ditas exóticas, isto é, produzidas por povos ágrafos do hemisfério - atotalidade das populacóes tribais das Américas - ou pelas civilizacóes As­teca, Maya ou Inca," Conrudo, isso em absoluto lhe tira o interesse ou dimi­nui seu escopo. Acredito que para o leitor, seja ele antropólogo ou filóso­fo, o volume impóe-se como um painel bastante variado, no qual a refle­xáo filosófica está sempre presente e marca todo o seu teor discursivo.

*Se, para o filósofo, os grandes tópicos abordados sempre serviráo

para baixarem um pouco das alturas de suas abstracóes ao verificaremaimportancia das contextualizacóes sócio-culturais, para o antropólogo.ra­ramente destro no manejo das questóes epistemológicas, o livro sempreservirá de incentivo ao reconhecimento da importancia das instancias meta­teóricas na prática de sua disciplina. Para urna apreciacáo mais detida so­bre a variedade de tratamentos - que Dascal chama de "perspectivas"_ que o assunto enseja e que certamente permitirá ao leitor identificar umcerto parentesco com muito do que venho discutindo sobre antropologi­as - melhor diria, disciplinas - "centráis" e "periféricas", vamos relaci­onar temas e seus autores presentes na coletánea. Quatro sao as partes que

8 Mercedes de la Garza, "Time and world in Mayan and Nahuatl thought", pp. 105-127.

9 "Grande Tradicáo" e "Pequena Tradicáo" sao conceitos hoje c!ássicos na antropolo­gía cultural, conforme foram formulados por Roben Redfield em seu livro Peasantsociety andclIlture, especialmente o Capítulo IIl, "The social organization of tradition".

160

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RelafÍlJÍJmo culmra! ejilosoJiasperiféricas

dividem O volume: a primeira, intitulada "Relativismo: Transforrnacáo oumorte?", reúne contribuicóes dos filósofos Joseph Margolis e LennGoodman, ambos norte-americanos, e dos igualmente filósofos LorenzoPeña, espanhol, e León Olivé, mexicano; a segunda parte, "Um vislumbrede variedade: Experiencias filosóficas e visóes de mundo na América La­tina", com contribuicóes de Mercedes de la Garza, etno-historiadora me­xicana, Robert Longacre, lingüista norte-americano, e dos filósofos Fran­cisco Miró Quesada, peruano e Maurício Beuchot, mexicano; a terceiraparte, "Natureza, cultura e arte", conta com a participacáo dos filósofos

hispano-americanos Gonzalo Munévar, colombiano, David Sobrevilla,peruano, e do lingüista norte-americano, doublé de antropólogo, HarveySarles; finalmente, na quarta parte, "Cruzando esquemas conceituais", te­rnos a participacáo de dois filósofos norte-americanos, Michael Krausz eHugh Lacey, e do cientista político, igualmente norte-americano, EugeneMechan, e do filósofo brasileiro Marcelo Dascal.

Constituem um total de quinze autores, sendo onze filósofos, dois lin­güistas, um etno-historiador e um politólogo. Por nacionalidade, ternossete norte-americanos, tres mexicanos, dois peruanos, um colombiano,um espanhol e um brasileiro.

Essa contagem nao é extemporánea, Em vista da temática do volumepresumir urna cornparacáo entre perspectivas norte e latino-americana ­em que, a rigor, a última é rnais hispano-americana, pois a contribuicáo deDascal pouco ou nada nos diz sobre a perspectiva brasileira... -, é razoá­vel que nos perguntemos sobre urna eventual representatividade latino­americana. Dascal reconhece o problema e oferece urna justificacáo bas­tante interessante - e com a qual nao se pode deixar de concordar, pelomenos aceitando-a como parte de urna possível explicacáo mais abran­gente. Efetivamente, aqueles países como México e as nacóes andinas,possuidores de "grandes tradicóes" produzidas por "culturas indígenas

das terras altas", possuem igualmente urna larga experiencia de pesquisa ede reflexáo sobre a producáo intelectual de suas civilizacóes autóctones,

com o objetivo, muitas vezes, de contribuir para desvelar raízes culturaismais profundas na "construcáo da nacáo" - nation building.

1sso faz com que a idéia de urna possível originalidade no pensamentofilosófico desses países hispano-americanos torne-se um tema de interesselocal e de diligente investigacáo; o que nao acontece, conforme mostra

161

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~

Roberto Can/oso de Üliueira

Dascal,'? em países como o Brasil e a Argentina. Nesses países, o querealmente ocorre é a apropriacáo da tradicáo da filosofia ocidental, tout

court. E poder-se-ia acrescentar que, mesmo nos países andinos, nao saonecessariamente os seus filósofos que pesquisam o pensamento indígena; ase julgar pelos que contribuíram ao volume organizado por Dascal, ob­serva-se que tanto os mexicanos M. Beuchot e L. Olivé como os peruanosF. Miró Quesada e D. Sobrevilla ou o colombiano G. Munévar escrevem

inteiramente dentro do jogo lingüístico da filosofia ocidental. E, comopara confirmar essa ausencia de interesse dos filósofos profissionais portemáticas autóctones, constata-se que sao especialistas em outras discipli­nas que se debrucam sobre as culturas indígenas: foi o caso da etno-histo­

riadora Mercedes de la Garza, com seu trabalho ao qual já me referi, berncomo o do lingüista norte-americano R. Longacre, professor da Universi­dade do Texas e também membro do Summer Institute of Linguistics,preocupado, por razáo de ofício - conhecendo-se os interesses do

Summer Institute of Linguistics pela traducáo da Bíblia e pela galyaniza<;:aodos povos -, em investigar a relacáo entre idioma e visáo de mundo

entre os índios Trique do estado de Oaxaca, no México.É interessante verificar que, mutatis mutandis, aquilo que se observa em

minha disciplina _ na qual somente urna estilística poderia dar conta das

diferencas entre antropologias metropolitanas e periféricas, urna vez. que

nao se notam diferencas substantivas -, parece valer também para oexercício da filosofia nos Estados Unidos e em países da América Latina.Dascal parece-me bastante explícito nessa direcáo, quando diz que Améri-

ca do Norte e América Latina ~

estáo longe de exemplificar um par de esferas culturais radicalmente distintas.Os ingredientes dominantes para ambas provern de fontes européias; ambas

pertencem ao "Ocidente"."

Permita-me o leitor prolongar esta citacáo, pois ela resume bastantebem idéias que também se aplicam no caso de outras disciplinas e, certa­mente, da antropologia. Ao reconhecer a existencia de diferencas significa-

10 Marcelo Dascal, Culturalrelatioism andpbilosopby: Nortb andLatin AmericanperspectitJe, p.

6, nota na 2.

11 Idem, p. 4.

162

Relativismo cultural ejilosoftas perifén'cas

tivas entre as Américas, quer do ponto de vista cultural, quer do ponto devista económico, Dascal vai especificar que

do ponto de vista do presente livro, o gue seja talvez o contraste rnais signi­ficativo pode ser descrito como segue. Enguanto a cultura norte-americanaevoluiu de modo a tornar-se urna parte dominante da cultura Ocidental, aAmérica Latina permaneceu relativamente para trás a esse respeito. Enguantoa América do Norte tornou-se uro centro criativo de modelos de pensamen­to e de acáo, a América Latina permaneceu, via de regra, um consumidor ouaplicador de tais modelos. A antiga direcáo assimétrica de influencia cultural,

Metrópole =9> Colonia, gue a um tempo a Europa manteve com ambasAméricas, foi subvertida (ou pelo menos substituída por um relacionamen­to simétrico) no caso da América do Norte. Como para a América Latina naohouve mudanca no relacionamento, o papel de rnetrópole foi, ao menosparcialmente, assuroido pela América do Norte."

Penso que essa referencia é suficiente paradesconsiderarmos, pelo me­nos com relacáo a urna eventual diferenca substancial entre disciplinas me­

tropolitanas e periféricas, a questáo do regionalismo. Diferencas como,por exemplo, entre o Brasil e a América hispánica ou, mesmo, dos países

hispano-americanos entre si, nao seriam muito relevantes, salvo se desejar­mos ater-nos a urna estilística da filosofia. Nao apenas sobre um pretenso"estilo latino-americano" - como se fala habitualmente - mas estilos

regionalmente diferenciados na América Latina.':' Mesmo porque, even­tuais variacóes de estilo - como pude observar no que tange as antropo-

12 Marcelo Dascal, Culturalrelativism andphilosopby: Nortb and Latin Americanperspeaio«p.4.

13 A esse respeito, urna instrutiva antologia, intitulada Filosofía e identidad cultural enAmé­rica Latina, organizada por Jorge J. E. Gracia e Iván Jaksic, o primeiro da Universidadedo Estado de Nova York, o segundo da Universidade da Califórnia, nao incluemqualquer pensador brasileiro, nem mesmo justificam isso em sua Introducáo: "El pro­blema de la identidad filosófica latinoamericana". Preconceito ou ignorancia? Porémvale a seguinte citacáo, que se encaminha - sem dizé-lo - para a questáo estilística

que nos interessa: "[ ...] o problema da filosofia latino-americana transforma-se noproblema de se a filosofia pode ou nao adquirir o caráter de latino-americano, ou seja

se é possível que exista ou possa existir urna filosofia peculiarmente latino-americana" (p.15). A questáo do caráter e dapeculiaridade (ou do estilo) conduz-nos aquestáo estilísti­

ca, da qual nem a fJ.1osofia, nem a antropologia podem fugir.

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Rnberto Cardoso de O/iveira RElativismo cultura! ejilosojias periféricas

Isso significa que aquilo que. se poderia chamar razáo, a saber, o critério

ou os principios postos em prática na forrnulacáo de juízos, pode serassim considerado mesmo passando de um esquema conceitual para ou­

tro. E isso parece ser possível se considerarmos que um relativismo mo­

derado nao puxa o tapete da raza o em sua busca de tornar comensuráveis

sistemas conceituais diferentes, como pode ocorrer no cotidiano de pes­quisa etnológica - se podemos torná-la como exemplo.

Nesse sentido, qual é a nocáo de racionalidade aqual se apega Olivé?

Ela parece ficar bem mais clara quando a associamos aidéia de transfor­macáo (racional). Tal transforrnacáo racional é definida, assim, como sen­do urna

A relevancia dessa contribuicáo estaria na forrnulacáo da tese em defesa

de um "relativismo moderado" frente a um "relativismo radical", quepoderia encaminhar-se para urna posicáo de incontrolável ceticismo namedida em que supóe a absoluta incomensurabilidade dos esquemas con­ceituais construídos no interior de culturas distintas.

Se tomarmos o conhecimento científico, mesmo em antropologia,

como conhecimento proposicional sobre determinada comunidade ­ainda que isso seja urna afirrnacáo nao imune a controvérsias _,17 vere­

mos, segundo Olivé, que a tese relativista moderada defende como viávela rraducáo de pelo menos algumas proposicóes de um determinado es­

quema conceitual para outro, sempre que tiver lugar em um grupo huma­no com urna permanencia mínima no tempo. Nesse caso, note-se, que aemergencia de "condicóes de racionalidade" é algo latente.

País para essa tese relativista moderada pode ser aduzida a idéia segundo aqua!indivíduos que usam qualquer esquema conceitual,pelo simples fato deserem capazesde usá-lo, revelamque possuem competencia para linguageme diálogo, isto é,que as vezespermitem a emergencia daguilo que chamaría­mas "condicóes de pura racionalidade"."

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logias centrais e periféricas - nao significam diferencas substantivas, urnavez que essas antropologias náo escapam de se situarem no amplo espec­tro de urna disciplina com suas raízes fincadas profundamente no solo doOcidente _ ao menos se romarrnos por referencia, como venho toman­

do, a "matriz disciplinar" como o "ser", por certo histórico, nao metafísi­co, da antropologia. t4 E nem mesrno - e isso é verdade pelo menos comrelacáo a minha disciplina - significam que as antropologias periféricas

sejam atualmente menos criativas ou alcancem resultados menos confiá­veis. Urna conviccáo que renho manifestado em outras ocasióes,

*Muitos sao os temas tratados no corpo da coletánea organizada por

Marcelo Dascal que ofereceriam oportunidade para um exame mais deci­

do, capaz de revelar toda a riqueza da questáo do relativismo cultural,quando abordada pela filosofía. A própria cornparacáo de perspectivas,como as que mencionam].]. E. Gracia e 1.]aksic,15 a saber, aquelas vincu­

ladas ao "universalismo", ao "culturalismo" ou a "postura critica", levar­nos-ia a urna percepcáo bastante diferenciada sobre statusda filosofia lati­

no-americana, posto que mostraria o quanto a questáo da existencia deurna filosofia que se possa classificar de latino-americana pode ser polémi­ca. Nao é necessário abordar aqui esse tema tao controverso, bastando

destacar, aguisa de ilustracáo a respeito da natureza do debate sobre filo­

sofia versus contexto cultural - no sentido antropológico do termo -,alguns aspectos que de urna forma toda especial chamaram a minha aten­cáo e que, acredito, sejam também de inreresse de 'outros leitpres do livrode Dascal, e que nao sejam exclusivamente filósofos. Tratarei desses aspec­tos do relativismo como comentário a urna das contribuicóes do livro, ade L. Olivé, intitulada "Relativismo conceitual e filosofia nas Américas"."

14 Cf., especialmente, minha conferencia "Ternpo e tradicáo: Interpretando aantropolo­gia", de 1984, que constado volume Sobre opensamento antropológico, como Capítulo 1.

15 Cf.a notan~ 13.16 No que diz respeito a urna compara<;ao entre antropologias européias, nem todas

metropolitanas _ muitas dasquais certamente "periféricas" -, vale dizerqueo temaguarda íntima relacáo como queestamos tratando aqui. Procurei dizeralguma coisa arespeito dasvicissirudes dos conceitos trasladados da Europa paraa América Latinano Capítulo 2 deste volume.

164 jL

17

18

Embora essa tese rnerecesse um exame mais deudo, cabe levá-Ia em conta na argu­rnentacáo, uma vez que ela é corrente entre aqueles que possuem uma visáo maiscientificista da antropología - o que nao significa necessariamente positivista -,entreestruturalistas e pós-estruturalistas dasmais variadas ancestralidades.

L. Olivé, intitulada "Relativismo conceitual e filosofia nasAméricas", p. 57.

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Roberto Cerdoso de Oliveira

rnudanca ou abandono [de um esquema conceitual] provocado por razóesque sao inteligíveis dentro do esquema que está senda mudado ou abando­nado."

Dentro de uma concepcáo arbórica de distribuicáo dos esquemas, se­gundo a qual esses seriam como ramos de uma árvore, a distancia maiorou menor entre esses ramos indicaria graus variáveis de comensurabilidade.Uma tal concepcáo permitiria, poi s, reconstruir o processo de transfor­rnacáo racional observável entre comunidades concretas - habituais ainvestigacáo etnográfica - quaisquer que sejam das: desde aquelas for­madas por profissionais de urna dada disciplina - no interior da qualinteragem paradigmas em confronto - até quando esse processo envol­ve, no limite, comunidades culturais ou étnicas.

Esse é um ponto, aliás, que - se interessa a todos quantos perten<;ama comunidades de cientistas que possam se confrontar com sistemas con­ceituais diferentes -, vai interessar sobremaneira ao etnólogo que naoapenas participa das mesmas condicóes de convivencia profissional -

t

portanto entre pares, e que também térn lugar em seu diálogo com cole-gas de outras disciplinas -, como ainda esse etnólogo ve-se permanente­mente envolvido no processo de traducáo de sistemas culturais ou étnicosos mais diversos, nos quais as condicóes de racionalidade nern sempre saofavoráveis.

Como reconhece Olivé, as interacóes entre antropólogos e membrosde comunidades culturais ou étnicas objeto de investigacáo podem envol­ver tanto "interacóes racionais" como "processos náo racionais de apren­dizado"; ou, com outras palavras, mecanismos nao racionais de apreensáo

da cultura do outro - podendo-se incluir a própria empatia, a ernocáo

ou a afetividade, tao freqüentes no fieldwork, como qualquer antropólogoconcordaria.

Essas sao questóes que estáo presentes no texto de Olivé e a leitura quefaco delas espero que possa ser de molde a estimular o antropólogo aexaminá-las no exercício de seu métier. Como se ve, a questáo do relativis­mo cultural passa a ser antes de tudo, como reconhece Dascal, em algum

&lotitJismo cultural ejilosojias perifencas

momento de seu interessante ensaio conclusivo do volume, um "relativis­mo epistemológieo".2o Um tipo de relativismo que, se é necessário aoexercício da filosofia, indispensável parece ser ao trabalho do antropólo­go.

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19 1. Olivé, intitulada "Relativismo conceirual e filosofía nas Américas", p. 67.

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12Marcelo Dascal, CulturalrelotitJism andphilosophy: Nortb and Latin Americanperspective,p.286.

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Capítulo 9

ETNICIDADE, ETICIDADEE GLOBALIZA<::Ao*

Há alguns anos atrás, fui convidado a ministrar a Primeira COliferetlciaLuiZ de Castro Paria, realizada no "Fórum de Ciencia e Cultura da Univer­sidade Federal do Rio de Janeiro", na Praia Vermelha, ocasiáo em queescolhi o tema "Antropologia e moralidade" e pude desenvolver algumasidéias sobre as possibilidades do olhar antropológico visualizar uma éticaplanetaria.' A conferencia parece ter despertado algum interesse, manifes­tado por vários colegas, entre os quais o nosso presidente, Dr. joáo Pachecode Oliveira, que me convidou a dar prosseguimento nesta oportunidadeáquelas consideracóes, Penso agora retorná-las, dando a elas um novorumo, de maneira a complementá-las especialmente no que tange as rela­cóes entre etnicidade e eticidade frente a necessidade - como assim en­tendo - de nossa disciplina levá-las em conta de maneira mais sistemáticae com vistas a questáo da global!zac;:ao.

Parto, assirn, de um caminho entáo trilhado em direcáo a um questio­namento sobre o lugar ocupado pelo relativismo na antropologia, comoorientacáo epistemológica, orientacáo que a deixou pouco afeita ao en­frentamento de questóes de moralidade e de eticidade. Porém, gostaria deadvertir, desde já, que, ao retomar aqui uma questáo clássica da antropolo­gia, nao estou de modo algum colocando-me em uma posicáo anti-relati­vista, mas também nao me incorporo cegamente, sern nenhuma ressalva,áquela outra - "anti-anti-relativista" - preconizada por Clifford GeertzI,:

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* Conferencia de abertura da "XX Reuniáo Brasileira de Antropología", promovidapela ABA, em Salvador, Bahia, e proferida no dia 14 de Abril de 1996, no saláo nobreda reitoria da Universidade Federal da Bahía. Publicada na Rezista Brasileira deCienciasSociaiJ, ano 11, nO 32, 1996, pp. 6-17.

Conferencia intitulada "Antropologia e moralidade" , publicada na Revista Brasiteira deCiencias Soaais, ano 9, nO 24, 1994, pp. 110-121. Inserida na coletánea Ensaios antropoló­gicos sobre morale ética, Roberto Cardoso de Oliveira e Luís R. Cardoso de Oliveira,Capítulo 3.

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Roberto Cardoso deO/iveiraE/nicidode, eticidode eg/obalizorao

de modo tao enfático, em urna atitude perfeitamente compreensível, urnavez que em sua argumenta<;ao nao fica rnuito claro se ele distingue o re­lativismo _ com o sufixo ismo indicador de sua ideologiza<;ao - do olharrelativizador como postura indispensável ao exercício da observa<;ao an­tropológica; junte-se a isso o fato de Geertz esquivar-se de tratar de ques­toes cruciais para a problemática do relativismo como as de ética e demoral, limitando-se simplesmente a mencioná-Ias para deter-s

eern ques­

toes cognitivas em sua crítica ao racionalismo extremado, manifestado nasconhecidas coletaneas de Wilson2 ou de Hollis e Lukes' Essas questoes eoutras mais que lhes sao correlatas, acredito poderem ser melhor matiza­das, tal como a sua afirma<;ao final e peremptória segundo a qual a "únicamaneira de derrotar lo relativismo] é colocar a moralidade além da culturae o conhecimento além de ambas".' Tirante o fato de que Geertz perde a

oportunidade de distinguir a postura relativista - essa sim, merecedora dedefesa _ de relativismo qua ideologia, seus argumentos nao poderiam tersido rnais adequados e nao se pode deixar de estar de acordo corp. eles.Contudo, se retomo aqui a quesdo do relativismo em nossa disciplina épara inscreve-Ia no tratamento de um tópico muito especial, a saber, aque­le que envolve questoes relacionadas corn a idéia do "bem-viver" tantoquanto com aquelas que digam respeito apretensao do cumprimento do"dever", mesmo rejeitando a idéia de que elas possam serdescontextualizadas _ como certamente gostariam os anti-relativistas maisardorosos, alvo das críticas de Geertz. Questoes de moral e de ética rérn,todavia, sido sistematicamente evitadas por nossa disciplina, exatamentepor receio de infligir seu compromisso corn o fantasma do 'relativismo.Portanto, como fantasma, só nos cabe exorcizá-Io, viabilizando aquelas ques­toes como sendo passíveis de reflexáo e de investiga<;ao antropológica.

Entendo assim que a nocáo de bem-viver e a nocáo de dever inserem-se,

respectivamente, no campo da moral e no campo da ética. E entendo,também, que ambos os campos inserem-se igualmente na órbita de inte­resses da antropologia. O primeiro implica valores, particularmente aquel

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2

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Cf. B. R. Wilson, Rationality.Cf. M. Hollis e S. Lukes (orgs.), Rationa/ity andrelativism.Cf. C. Geertz, "Anti anti-relativismo", in Revista Brasi/eira deCienciasSociais, p. 18.

170 I~

associados a formas de vida consideradas como as melhores e, portanto,pretendidas no ámbito de urna determinada sociedade. O segundo campo- o da ética - implica normas que possuam, porém, um caráter pré-for­

mativo, um comando ao qual se deve obediencia, pois segui-las é a obrigacáode todo e qualquer membro da sociedade. Nessas consideracóes sobremoral e ética, pode-se ver que estou situando-me no interior de uma "éti­ca discursiva", de inspiracáo apeliana-habermasiana, se bem que reservan­do-me ao direito de dela fazer urna leitura muito particular, própria dealguém situado em urna disciplina que nao se confunde com a filosofia. Edigo isso porque minha preocupacáo nessa exposicáo é de mostrar oquanto a abordagem antropológica pode ser fecunda no trato de questóesde moralidade e de eticidade, ou, respectivamente, em língua alerná, Moralitiite Sittlichkeit. Na tradicáo hegeliana, a que de algum modo a ética discursiva

se filia, é lícito entender a moralidade como a manifestacáo de urna vontadesubjetiva do bem, enquanto eticidade seria essa mesma vontade, porémrealizada em instituicóes históricas - e culturais - reguladoras dessa mesma

vontade, como a família, a sociedade civil e o Estado. Assim entendidas,moralidade e eticidade abrem uma fresta para o olhar antropológico, pormeio do qual nao há como deixar de considerar que nossa disciplina selegitima perfeitamente em trata-las com os recursos de que dispóe. Den­tro desse quadro, que nao é originariamente de nossa disciplina, procura­rei responder porque penso que a antropologia nao só pode tratar detemas como esses, mas, para dizer de forma responsável, deve enfrentá­

los pelas razóes que procurarei oferecer ao longo desta exposicáo,Disse que deve enfrenta-los, porém com as armas de nossa disciplina e

respondendo a um problema central que a antropologia socio-culturalcarrega em seu dorso qua se desde sua constituicáo, como disciplina auto­noma. Como já mencionei, estou referindo-me aquestáo da incornensu­

rabilidade das culturas, tao cara ao relativismo mais pertinaz. Muito já seescreveu sobre essa questáo, portanto só me cabe poupar o auditório deum rosário de citacóes e de referencias. Basta considerar aqui que essa idéiadas culturas serem incomensuráveis foi sempre tomada de modo tácito,praticamente como uro dogma nao sujeito a questionamento. Porém, se vol­tarmos o nosso olhar para certas dimensóes do relacionamento intercultu­tal, aduzindo novas interrogacóes, veremos que essa incomensurabilidadepode ser tanto mais problemática quanto mais envolver proferimentos de

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Roberto Cardoso deOliveiraEtnicidade, eticidade egloba/i<:'Pféio

quais critérios - de objetividade? -, poderia ele agir - como cidadáo e

como técnico - no encontro entre culturas diferentes, sobretudo quandoas sociedades, portadoras dessas culturas guardam entre si relacóes pro­fundamente assimétricas, caracterizadas pela dorninacáo de urna sobre aoutra. E o moralmente grave é que ele, enquanto antropólogo, é cidadáo

da sociedade dominante. Essa parece ser, por exemplo, a situacáo vivida

entre nós, tipicamente pelos antropólogos indigenistas, e que na oportuni­dad e de urna reuniáo como esta, em que muitos desses colegas estáo pre­sentes, penso que mencionar o cenário indigenista é mais do que apropri­ado para submetermos essas consideracóes a exame.

*Ainda está muito viva em todos nós a acusacáo de a antropologia -

especificamente a antropologia aplicada e o próprio indigenismo latino­americano - ter sido, desde os seus primórdios, um instrumento de do­minacáo do colonialismo externo e interno. E o resultado disso é que a

nossa disciplina, em sua dimensáo académica, sempre fiada em um relati­

vismo dogmático - perdoem-me o paradoxo -, jamais conseguiu li­bertar-se de constrangimentos quando sobre ela a razáo especulativa passaa ser substituída pela razáo instrumental, a saber, quando ela envolve-secom práticas de intervencáo cultura!. Como justificar tais intervencóes?Minha primeira consideracáo é dizer que, sem a aceitacáo voluntaria pelapopulacáo-alvo da intervencáo, essa é injustificáve!. Todavia, o problema

nao se encerra aqui: ele transfere-se para o sentido da expressáo "aceitacáovoluntária". E é aqui que recorro a "ética discursiva". E, assim fazendo,penso dar prosseguimento as consideracóes que fiz em 1993 por ocasiáo

da mencionada Primeira Conferéncia LuiZ de Castro Faria.Naquela oportunidade, vali-me de algumas idéias que gostaria de evo­

car agora para dar consistencia a minha argumentacáo, Algo penso terdeixado firmado naquela ocasiáo que gostaria de retomar agora. Lembra­tia, primeiramente, a distincáo que sempre se pode fazer entre costume enorma moral, "o que significa dizer que aquilo que está na tradicáo ou nocostume nao pode ser tomado necessariamente como norrnativo't.! ou,como escreve o filósofo Ernst Tugendhat,

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juízos de valor e que, por mais complexa que possa ser a nossa forma detratar tais dimensoes, em nenhum momento devamos considerá-la imunea análise e a reflexao antropológica. Será que todas as dificuldades sao oresultado de um mal uso do método comparativo, quando a compara<;:ao

é conduzida de forma mecanica e até certo ponto ingenua?É assim que nao há como deixar de considerar que os problemas

trazidos pela antropologia comparada tradicional fazem parte do nosso

conhecimento mais corriqueiro. Por isso, é sernpre útil interrogarmo-nossobre nossos próprios hábitos intelectuais. Vale, portanto, a pergunta: comocotejar as culturas entre si, senáo pelo uso de um método comparativoque, em si mesmo, já denuncia um comprometimento corn pelo menosurna cultura _ em última análise, a cultura da própria antropologia, isto é,

da antropologia como cultura. Nao seria a cultura a "medida" de todas as

coisas? Portanto, enquanto cultura - ou se quiser, linguagem Ctlltural -, anossa disciplina engendra métodos que, muitas vezes, nao chegam a sersenáo a contrafa<;:ao de si própria. Pois a antropologia seria urna terceira

cultura a se interpor entre duas ou mais culturas postas em con\para<;:ao.

Teria apenas a distingui-la ser ela artificial- como linguagem científica­diante do fato das culturas em compara<;:ao serem entidades naturais ---, talcomo uma língua natural. Mas quais as dificuldades que urna análise com­parativa encontraria? Ao que parece, se nao há muita dificuldade na corn­paracáo de dados ditos objetivos - quantidade de bens produzidos, tec­nolog

iassofisticadas etc. _, nao restaria sempre a imponderabilidade dos

juízos de valor a confirmar a natureza incomensurável de cada cultura? Enao teríamos de incluir aqui, nessa equa<;:ao, a pr6pria antropologia como

cultura? A isso é que qualifiquei há pouco como contrafa<;:ao ou auto-

anula<;:ao de nossa disciplina.É, portanto, diante da tradicional prática da disciplina que questóes

como essas térn sido colocadas como sendo um pe rene desafio ao antro­pólogo, do ponto de vista epistemológico. E é tanto mais difícil enfrentá­

lo quanto mais o antropólogo estiver envolvido em programas ou políti­cas de a<;:ao social. Pois um antropólogo imbuído de pretensoes de exami­nar a consistencia de suas próprias a<;:oes em sociedades culturalmente taodiferentes, claramente detentoras de sistemas de valor próprios e singula­res, corre o risco de ficar emaranhado em seu próprio relativismo. Emoutras palavras, o desafio que se impóe a esse antropólogo é o de como, por

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5 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, "Antropologia e moralidade", p. 114.

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Roberto Cardoso de Oliveira

é inaceitável que se admita algo como carreta ou bom (portanto como nor­ma) porque está jádado de anternáo no costume, sem poder preva-lo comocarreta ou born."

Admitida essa distincáo, torna-se sempre válida a indagacáo sobre ca­

sos de moralidade e de eticidade, no ámbito de nossa disciplina. É aceitá­

vel, por exemplo, o infanticídio que os Tapirapé praticavam até sua erradi­cacáo, nos anos 1950, pelas Irrnázinhas de Jesus? E é importante que sejadito, aliás, que tal erradicacáo foi conduzida habilmente, sem nenhuma

violencia, exclusivamente grac;:as a persuasáo pelo discurso, pelo diálogo;esse caso - para aqueles que tiverem interesse em melhor conhecé-Io ­

tive a oportunidade de analisá-lo nos termos da ética discursiva na men­cionada Conferéncia Castro Faria.? Índios e missionárias tinham suas razóes

para tomarem uma e outra atitude: os Tapirapé tinham toda uma justifica­cáo para nao deixarem sobreviver o quarto filho, desde que ele viesse ­

por uma lei demográfica por eles intuída ao longo de uma experienciasecular - a aumentar uma populacáo limitada as potencialidades do ecos-,sistema regional; já as missionárias, por sua fé nos mandamentos religio-

sos, nao poderiam aceitar passivamente um costume que destruía uma

vida. Para os índios o costume se justificava, uma vez que o sacrifício dealgumas vidas valia a vida de toda uma comunidade; para as missionárias

a vida de qualquer pessoa é um bem inquestionáveI. Duas morais, duaséticas? Sim, todas perfeitamente racionais. Portante, nao é a questáo da

racionalidade que está em jogo.Diante disso, como lidar praticamente com tal situacáo? Como condu­

zir a nossa acáo quando nao temos nenhum dogma a sustentá-Ia? A rigor,toda a questáo resume-se na intersecáo de dois campos semánticos dife­

rentes - o indígena e o missionário -, uma questáo, aliás, equacionadapela teoria hermenéutica por meio do conceito de "fusáo de horizontes",

observável na prática dialógica discursiva. Isso quer dizer que a solucáo

das incompatibilidades culturais, até mesmo as de ordem moral surgidas

do encontro interétnico, estariam no diálogo?

Elnicidade, el/cidade eglobalizarao

Creio que para, respondermos a essas questoes, vale recorrer a urnaoutra idéia, entáo apresentada: a da distinc;:ao dos espac;:os sociais ern que

pode ser observada a atualizac;:ao de valores morais. Apel _ apoiando-se

em Groenewold - distingue tres espac;:os sociais, que denomina esferas: amicro, a meso e a JJlacro.

8Apel traz essas esferas para o campo da ética, con­

siderando assirn uma micro-ética, uma meso-ética e urna mficJ1?-ética, corres­pondendo, a primeira, as esferas das relac;:oes face a face que se dáo no

meio familiar, tribal ou comunitário; a segunda, as relacóes sociais per­

meadas pela acáo dos Estados (de direito) nacionais por meio das institui­cóes e das leis por eles criadas; e a terceira, as ac;:oes sociais que por delibe­racáo internacional, por intermédio de seus órgaos de representac;:ao _

como a ONU, a OIT, a OMS ou a Unesco -, devem ser reguladas poruma ética planetária. O infanticídio Tapirapé, por exemplo, que poderiaencontrar justificac;:ao em nível micro, no interior da cultura tribal, já vaiencontrar sua discriminac;:ao como crime ern nível meso, inscrito que está no

código penal, tanto quanto em nível macro, urna vez que violenta a "Cartados Direitos Humanos". Voltarei a isso mais adiante.

Estamos retomando assim um conjunto de idéias que me parecemimportantes para a argumentac;:ao que desejo desenvolver. Se, de um lado,

podemos admitir que a questao da:racionalidade das normas morais nada

tem a ver com a possibilidade da aceitac;:ao ou da rejeic;:ao das mesmas,desde que elas podem justificar-se plenamente no ambito de moralidadestao diferentes, para nao dizer opostas, como bem ilustra o caso dos Tapirapée das missionárias, por outro lado, o contexto interétnico ern que se dá a

confrontac;:ao entre essas normas está contaminado por urna indisfarc;:ávelhierarquizac;:ao de uma cultura sobre a outra, reflexo da dominac;:ao ocidentalsobre os povos indígenas. O processo de dominac;:ao _ como todos nós

sabemos - nao se dá apenas pela forca ou pelo peso das tecnologiascriadas pelo mundo industrial, dá-se também _ e é esse o ponto que me

interessa desenvolver - pela hegemonia do discurso ocidental, de raiz

I6

7

Cf. E. Tugendhat, Problemas de la ética, p. 48.

Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, "Anrropologia e moralidade", pp. 115-116.

174

1

8Cf. K.-o. Apel, "El a priori de la comunidad de comunicación y los fundamentos de laética", in La transformación de lafilosojia, tomo II; e'~ necessidade, a aparente dificuJ­dade e a efetiva possibilidade de urna macroética planetária da (para a) humanidade",in ReviSla de Comllnicarao eL'ngllagens, n'" 15-16 - Ética e Comllnicarao _, 1992, pp. 11­26. Cf. também Roberto Cardoso de Oliveira, '~ntropoJogia e moralidade".

175

Page 89: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

\ Roberto Cardoso de Olioeira

européia. Essa é a base da crítica que se faz atualmente aética discursivaapeliana, em urna tentativa de encontrar os seus limites. Nessa dire<;ao, umdebate muito instrutivo vem se dando ern escala internacional, tendo poralvo as comunidades de comunica<;ao e de argumenta<;ao apresentadaspor Apel como condi<;ao sine qua non da ética do discurso. Afinal de con­tas, o diálogo interétnico ou intercultural seria efetivamente democrático?Qual a possibilidade de urn sistema de fric<;ao interétnica constituir urnaefetiva comunidade de comunica<;ao e de argumenta<;ao que satisfaca os

pré-requisitos apelianos?Desde 1989, esse debate vem ocorrendo no ambito das relacóes Nor-

te _ Sul, e em torno da ética discursiva em confronto com a "filosofia daliberta<;ao" latino-americana. Evocar alguns aspectos desse debate parece­me importante para o rumo de minha argumenta<;ao. Os debates que vérn

tendo lugar desde entáo na Alemanha, no México, na Rússia e mesmo noBrasil _ como ern Sao Leopoldo, ern 1993 -, já geraram várias publica­

<;6es, entre as quais um volume intitulado precisamente Debate em torno daética do discurso de Apel: Diálogofilosófico Norte - Sul apartirdaAméricaLatina,9organizado pelo filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel, considera­do o principal teórico da filosofia da liberta<;ao. Sern entrar no méritodessa filosofía, o debate, pelo menos como ele se manifesta nesse livr~, é

extraordinariamente interessante para o noSSO propósito de questionar ­se bem que no horizonte empírico de nossa disciplina - a possibilida'dede se verificar faticamente o cumprimento de um dos requisitos básicosda ética do discurso: o da simetria ou igualdade de posicóes entre as partes

envolvidas no diálogo. Tanto para Apel como para-Haberma~ o que legi­tima o diálogo _ além dos quatro requisitos de pretensao de valide~ a saber, a

inteligibilidade, como condi<;ao dessa pretensao, mais a verdade, a veracidade ea retiddo _ é o seu caráter democrático. E para deixarmos claro o quantoesse caráter é fundamental para que se de a plena fusáo de horizontes, vale

lembrar a crítica de que foi objeto Gadamer por haver desconsiderado aquestáo democrática, quando escreveu o seu monumental Verdade e méto-

Etnicidade, eticidade egloba/izoriio

do. lO Isso levou Habermas a fazer uma de suas críticas mais pertinentes ahermenéutica gadameriana, uma vez que pós a questáo do poder no inte­rior de qualquer comunidade de comunicacáo, na qual teria lugar a "corn­preensáo distorcida", decorrente do processo de dorninacáo; um lugar,por sinal, melhor elucidado, segundo Habermas," pela "crítica das ideolo­gias" do que pela hermenéutica de Gadamer. No entanto, quando essadistorcáo dá-se em uma comunicarao tnteradtural, portanto entre campossemánticos teoricamente incomensuráveis, isso agrega obstáculos dos maisvariados tipos que somente a constatacáo óbvia da assimetria na relacáodialógica por si só nao esgota. Pois, como comenta um outro participantedo debate Norte - Sul em torno da ética do discurso de Apel,

aquiapareceo problemade sea éticadiscursiva - construidano horizontedacomunicacáo "intersubjetiva"- é capazde enfrentaradequadamente o hori­zonte da cornunicacáo "inrercomunitária" ,\2

ou, diria eu, interétnica.Ve-se, assim, que a perspectiva aberta por aquele debate permite-nos

vislumbrar a possibilidade de um proveitoso encaminhamento do pro­blema. Como mencionei há pouco, a relacáo dialógica entre membros decomunidades culturalmente distintas introduz certas especificidades quemerecem um exame mais detido. Que o digam os indigenistas, imersosem sua prática diária precisamente nisso que se poderia chamar de con­fronto de horizontes semánticos diferentes; é quando o processo de fusáodesses mesmos horizontes enfrenta dificuldades próprias, a meu ver bas­tante mais complexas do que aquelas observáveis na fusáo de horizontesque tem lugar entre indivíduos ou grupos pertencentes a culturas ou asociedades nao hierarquicamente justapostas; particularmente quando fa­zem parte de uma mesma e ampla tradicáo histórica. Nesse sentido, ahermenéutica gadameriana tem mostrado sua eficácia precisamente naexegese de textos de diferentes períodos da história ocidental, com o ob­

jetivo de inseri-los na inteligibilidade do leitor moderno, igualmente oci­dental ou ocidentalizado; em outras palavras, tratar-se-ia de submeter os

9Cf. Enrique Dussel, "La raza n del otro. La 'interpelación' como acto-de-habla", inDebate en torno o la ética deldiscurso deApel Diálogo .filosófico Norte - S IIrdesde América

Latina, Enrique Dussel (org.), pp. 55-89.

10 H. G. Gadamer, Tratb andmethod.

11 J. Habermas, Dia/ética ebermestuti:« Para a critica da hermenéutica de Gadamer.

12 M. T. Rarnirez, "Ética de la comunicación intercomunitaria", p. 98.

176I

~177

Page 90: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Can/oso de O/irJeira

textos a um processo de "presentificacáo". Já a fusáo de horizontes entreculturas enraizadas em tradicóes tao diferentes - como soem ser os pa­vos indígenas diante das sociedades nacionais latino-americanas - tanto ahermenéutica de Gadamer quanto a ética discursiva de Apel e Habermasmais do que solucóes geram problemas, quando pensamos poder usá-lassem maiores precaucóes. Quais seriam esses problemas?

Seguindo, assim, as pistas abertas pelo debate Norte - Sul ao qual estou

me referindo, podemos identificar inicialmente alguns des ses problemas.Sem procurar debate-los nos termos em que foram explorados pelosfilósofos participantes daquele evento, urna vez que seríamos abrigados aabordar quesróes demasiadamente técnicas, tornando com isso muito langaesta exposicáo, creio que será suficiente para sustentar minha argumenta­cáo limitar-me a reformular aqueles problemas em termos de nossa pers­pectiva antropológica. Nesse sentido, estaremos tratando das relacóes in­terétnicas que térn lugar no interior de Estados nacionais, particularmentenos da América Latina. E se falamos em relacóes interétnicas nao custarelembrarmos algumas nocóes a elas associadas e de uso corrente ha an­

tropologia desta segunda metade do século. Quero mencionar a de etnia­dade: urna nocáo que, desde lago, nos induz a visualizar um panorama no

qual se defrontam - melhor diria, confrontam-se - grupos étnicos nointerior de um mesmo espac,:o social e político dominado apenas por umdeles. Abner Cohen, há anos atrás, definiu etnicidade como senda "essen~

cialmente a forma de inreracáo entre grupos culturais que operam dentrode contextos sociais cornuns"." Pareceu-me entáo - e continuo valendo­me de sua definicáo - que ela dava bem canta da nocáo que todos nós

tínhamos do forte componente político que presidia os sistemas interétnicos,sobretudo quando as relacóes observáveis em seu interior estavam marca­

das pela presenc,:a de um Estado cioso em defender a etnia dominante,isto é, aquela que esse mesrno Estado representava. Seja no Brasil, noMéxico, na Guatemala ou em muitos outros países latino-americanos, era

precisamente isso que se observava. N o Brasil - e fiquemos com essaexperiencia que nos é próxima - todo diálogo entre indios e brancos que

13 A. Cohen, "Introduction: The lesson of ethnicity", in UrbanEfhnicity, Abner Cohen(org.), p. ix.

178¡

L

Etnicidade, eticidade eg/oba/izarao

produza resultados de valor legal, é feito por inrermédio da Funda<;:aoNacional do Índio, o braco indigenista do Estado brasileiro. Mesmo queesse Estado seja plenamente um Estado de direiro, democrático ao menosem suas características formais, veremos que, em um confronto entre ín­

dios e brancos, a Funai, na qualidade de mediadora de um desejável diálo­

go entre as partes, terá, ern primeiro lugar, de interpretar o discurso indí­gena a tim de torná-Io audível e inteligível ao seu interlocutor branco _ eisso nas raras vezes que esse branco está disposto a dialogar.

Imaginemos, todavía, que esse branco deseje sempre dialogar. Mesrnonesse caso, a ética discursiva apeliana que exige urna argfl!Jlmtarao racionalentre os litigantes, como característica básica de qualquer comunidade decomunicac,:ao, sempre guardaría um resíduo de ininteligibilidade, fruto dadistancia cultural entre as partes e, até mesmo, em relacáo ainstancia medi­

adora: a própria Funai. Dussel mostra, por exemplo, que qualquer interpe­larao - por ele c1assificada como "ato de fala" - dirigida pelo compo­nente dominado da relacáo interétnica ao componente dominante _ esse

branco, culturalmente europeu, ocidental - nao pode cobrar do primei­

ro a obediencia aos pré-requisitos de il1teligibilidade, llerdade, ueraadade e reti­diio que se espera estejam presentes no exercício pleno da ética do discurso.A própria interpelac,:ao feita pelo Indio ao branco dominador _ nao ape­

nas por ser parte do seguimento dominante da sociedade nacional mas,também, como dominador da linguagem do próprio discurso-, tornamuitas vezes difícil a inteligibilidade da mesma interpelac,:ao, e, com ela, sua

natural pretensáo de validade, urna vez que falta aquela condic,:ao básicapara o proferimento de um ato de fala que seja verdadeiro _ isto é, aceito

como verdadeiro pelo ouvinte alienígena; que tenha veracidade, portantoaceito com forca ilocucionária (de convicc,:ao) pelo mesmo ouvinre; e quemanifeste retidáo ou, com outras palavras, que cumpra as normas da co­

munidade de argumenta<;:ao eticamente constituída, normas essas estabe­lecidas - e institucionalizadas - nos termos da racionalidade vigente nopólo dominante da relac,:ao interétnica. Como diz o mesmo Dussel "saoditas normas - a institucionalidade dominadora _ a causa de sua misé­ria", isto é, da miséria e da infelicidade do pólo dominado.

De todas as maneiras, na medida em que a dignidade da pes so a é considerada

em toda comunicas:ao racional como norma suprema, eticamente, pode nao

obedecer as normas vigentes, colocando-as em ques60 a partir de seu funda-

179

Page 91: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Olil)eiraEtnicidade, eticidade e,globa/i~.afíio

Cf.RobertoCardoso de Oliveira, "Indigenismo e rnoralidade", p. 48.18

Relativamente ao primeiro tópico, enquanto os museus argumentam que opavo em geral tem o direito de aprender sobre a história da humanidade enao apenas limitar-se ahistoria de seu próprio grupo étnico, os índios res­pondem que isso é uma profanacáo e uma forma de racismo. Alegam osmuseus que os indios tradicionalmente nao dño muita importáncia ao corpo,mas ao espírito; o que respondem os índios dizendo que a vida é um ciclo,originado na terra pelo nascimento e a ela retornando pela morte, ciclo esteque nao pode ser quebrado. Reivindicarn ainda os museus seus direitos emnome da ciencia:respondem os indios que as necessidadesculturáis - isto é,da cultura indígena - sao muito mais importantes do que as da ciéncia."

Como podemos verificar, relativamente a esse primeiro tópico, os di­

reitos apregoados pelos museólogos confrontam-se de maneira muito

evidente com o direito indígena de autopreservacáo,

Já com relacáo ao segundo tópico, em que se advoga o retorno de artefatosindígenas aos seus lugares de origem, a saber, sua repatriacáo, os museusponderam que se isso acorrer; daqui a um século, uma nova gera<;ao nadapoderia aprender sobre seus objetos religiosos (senda, portante, responsabi­lidade dos museus assegurar esse aprendizado). Argumentam os índios queos objetos sagrados possuem importancia chave para a sobrevivéncia dasculturas indígenas americanas: e que esses objetos sao muito mais importan­tes para perpetuar suas culturas do que para o ensino de novas geracóes debrancos. Falam ainda os rnuseus que os objetos rituais nao pertencem so­mente a quem os faz; no que respondem os índios com o argumento dodireito do produtor original. Contra isso apelam os museus dizendo que osíndios nao sabem como conservar esses objetos; ao que discordam os índiosdizendo que os museus nao podem ir contra os valores sagrados, pois se osobjetos sao destruidos é porque eles (conforme felizexpressáo indígena) seautodevoram - e isso deve ser respeitado! E que ao contrário do que dizemos museus - que os artefatos sagrados sao estudados e interpretados deforma respeitosa -, para os índios eles só podem ser interpretados pelas

objetos indígenas. O primeiro tópico diz respeito a direitos invocados

pela comunidade dos museus, enquanto o segundo refere-se a direito rei­

vindicado pelos índios. Esse conjunto de direitos é questionado segundo

os diferentes pontos de vista.

mento mesmo: desde a dignidad e negada na pessoa do pobre que interpe­la." A nao-normatividade da "interpela<;ao" é exigida por encontrar-se emum momento fundador ou originário de nova normatividade - ainstitucionalidade futura de ande o "interpelante" terá direitos vigentes que

agora nao tern."

14 Ou do índio, ou de qualquer outro excluído - acrescentaria eu.15 Cf.E. Dussel, "La razan del otro. La'interpelación' como acto-de-habla", p. 71.

16 Roberto Cardoso de Oliveira, "Indigenismo e moralidade", in Tempo Brasileiro (Refle­xdo e Participafíio/330 Anos), 1992, pp. 41-55. Com o título "Práticas interémicas emoraJidade: Por um indigenismo (auto)crítico", foi inserido em Ensaiosantropológicos

sobre moral e ética, como seu Capítulo 2.

17 R. Hin, "Indiansand museums: A piea for cooperation",in HistoryNetus, vol. 34, n~ 7,

1979.

Isso quer dizer que na relacáo entre índios e brancos, mediada ou nao

pelo Estado _ leia-se Funai -, mesmo se formada urna comunidade

interétnica de comunica<;ao e de argumenta<;ao, e que pressuponha rela­

<;oes dialógicas democráticas - pelo menos na intencáo do pólo dominan­

te _, mesmo assim o diálogo estará comprometido pelas regras do discurso hegemó­nico. Essa situacáo estaría semente superada quando o índio interpelantepudesse por meio do diálogo contribuir efetivamente para a instituciona­

lizacáo de urna normatividade inteiramente nova, fruto da interacáo dada

no interior da comunidade intercultural. Em caso contrário, persistiria urna

sorte de eomunicacáo distorcida entre índios e brancos, comprometendo

a dimensao ética do discurso argumentativo.A necessidade de assegurar as melhores condicóes possíveis para uma

comunica<;ao nao distorcida tanto mais é indispensável quanto maior for a

distancia entre os campos semanticos em interacáo dialógica. Gostaria deilustrar isso com um caso observado nos Estados Unidos - e que já tive

a ocasiao de explorar em outra oportunidade.16

Refere-se a um choque depontos de vista entre os indios norte-americanos e a "comunidade dos

museus", decidida a estabelecer um código ético regulador de sua política

de obten<;ao de elementos culturais indígenas para seu s acervos.l? A dis­

cordancia entre os pontos de vista pode ser entáo registrada corn relacáoaos seguintes tópicos: o direito de coleta de restos humanos e de fazer

escavacóes arqueológicas ern território tribal; e o direito de expatria<;ao de

180181

..L

Page 92: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de O/iveira

entidades religiosas tribais. E, finalmente, contra a acusacáo feíta peJos rnu­seus segundo a qual os índios tendem a dizer que todos os seus artefatos saosagrados, argumentam gue nao há palavra na cultura indígena que possa sertraduzida como "religiáo", pois dizem - "pensamentos espirituais, valorese deveres estáo totalmente integrados nos aspectos sociais, políticos, culturaise artísticos da vida diaria. Essa unidade de pensamento é a religiáo indíge­na". t9

É claro que nesse caso específico, em que o diálogo interétnico mos­

trou-se possível, vale dizer que os líderes indígenas participantes em gran­

de parte já estavam socializados no mundo dos brancos - alguns deles

até mesmo graduados por universidades norte-americanas -, tivemos

um cenário em que o nivel de distorcáo do discurso pode ser considerado

como bastante tolerável. Certamente, tal nao aconteceria nas situacóes mais

comuns no Brasil e em muitos dos países latino-americanos, em que a

distancia cultural entre os interlocutores nao teria a mesma chance de ser

diminuída. Com campos semánticos tao distintos, praticamente opostos,

como o exemplo norte-americano mostra tao bem, o que esperar claque­

las relacóes interétnicas em que urna das partes - a indígena - nao teria

sequer as condicóes discursivas mínimas para poder se opor ao ponto de

vista manifestado pelo branco, um ponto de vista muitas vezes ininteligível

para ele? Como falar em ética discursiva sem mostrar os seus limites? Tais

limites é o que o debate em torno da ética discursiva de Apel procura

identificar.

*Diante desse quadro, bastante desfavorável as Iiderancas indígenas para

1evarem a bom termo um diálogo com eventuais interlocutores da socie­

dade dominante, restaria saber quais as reais possibilidades de emergencia

de urna ética discursiva que efetivamente leve em conta o contexto sócio­económico em que estáo inseridos indios e brancos. A saber, um contexto

que, por sua lógica perversa, exclui os POyOS indígenas da condicáo moral

de "bern-viver" e os inclui na grande lista das minorias sociais, como os

pobres urbanos, os camponeses sem terra e toda sorte de despossuídos. E

no caso dos Indios propriamente ditos, o que nos acostumamos a chamar

Etl1icidade, etiC/dade eg/oba/izafiio

de conflito interétnico - e que eu, há trinta anos atrás, cheguei a cunhar a

expressao "fric¡;:ao interétnica" -, devo alertar agora que as palavras "con­

flito" ou "fric¡;:ao" nao sao suficientes para indicar o conteúdo substantivo

das rela¡;:oes entre Indios e brancos, pois muitas vezes encobrem a natureza

específica dessas mesmas rela¡;:oes. Como lembra o já citado Dussel,

Em realidad e o eufemismo "confJito"ZIJ nao indica claramente o que saoestruturas de dominacño, exploracáo, alienacáo do outro. Na temática queestamos expando se manifesta como "exclusáo" do outro da respectivacomunidade de comunica<;ao.21

Ressaltados alguns dos problemas que envolvem a etnicidade, tanto

quanto as dificuldades que urna comunidade de comunica¡;:ao e de argu­

menta¡;:ao intercultural encontra em lograr instituir novas' normas, capazes

de regular e assegurar um diálogo que seja democrático, creio que cabem

ainda algumas reflexoes no espa<;:o desta conferencia. Gostaria de retomar

a questáo crítica sobre o papel do Estado no processo de mediacáo entre

Indios e brancos. Porém, penso que é rnelhor especificarmos a instancia

em que a interven¡;:ao estatal deve ser requerida, observada e cobradadepois em seus resultados.

Refiro-me ainstancia da eticidade. Vimos, no inicio desta exposicño, a

importante distincáo aceita pela ética apeliana, relativa as tres esferas sociais

onde se arualizam valores morais: a micro, a meso e a macro-esfera. Anterior­mente, eu já observara que

"enguanto na micro-esfera as normas morais possuem caráter particularista esempre podem ser observadas nas instancias mais íntimas (como as queregulam a vida sexual, por exernplo), na lllOC71J-esfera encontram-se os interes­ses vitais da humanidade - e as normas morais que incorporam esses inte­resses ganham urna dimensao universalista (como as que regulam os direítoshumanos, por exemplo). Se na primeira esfera o ideario relativista da antro­pologia recobre facilmente de bons argumentos a intocabilidade dos valoresmorais contidos nessas normas, nao sendo muito difícil ao antropólogoindigenista defender sua preserva<;ao, jánamocro--esfera esse rnesrno indigenista

19 C[ Roberto Cardoso de Oliveira, "Indigenismo e moralidade", pp. 48-49.

182

~L

20

21

E eu acrescentaria "fric<;:ao",se - e somente se - desvinculada do modelo da friq:aointerétnica.

C[ E. Dussel, "La razan del otro. La 'interpelación' como acto-de-habln", p. 78.

183

~

Page 93: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Olil'eira

Ira encontrar uma rnaior complexidade na defesa de cerras normasparticularistas _ como o infanticidio Tapirapé - que infringem uma éticaplanetária na qual esse mesmo infanticídio é visto de uma perspectivauniversalista, portante, como crime contra os direitos humanos. Essas nor­mas morais universalistas, quando inscritas em conven~oes promulgadaspor órgáos internacionais, como a Organiza~ao das Nacóes Unidas, já naopodem ser ignoradas, e por várias razóes, inclusive porque essas mes masnormas universalistas acabam por trabalhar a favor do discurso indigenistaquando se trata _ e este é um caso cada vez mais comum - da defesa dodireito avida dos pavos indígenas ou do meio ambiente em que eles e todos

nós vivemos.22

E nao precisamos ir muito longe: vejam o caso dos lanonami, para

imaginarmos se eles nao estariam ainda ern pior situacáo se nao fosse a

grande pressao internacional ern sua defesa, apoiada naturalmente na Car­

ta dos Direitos Humanos. Esse exemplo e muitos outros mais que pode­ríamos encontrar ern toda América Latina vérn sustentar a idéia segundo a

qual o processo de globaliza<;:ao ern que as sociedades humanas estáo en­

volvidas, quaisquer que sejam elas, nao pode deixar de se tornar, hoje, umdos focos de atencáo prioritária da pesquisa, da reflexáo teórica e da prá-

rica antropológica.Gostaria, assim, de concluir esta exposi<;:ao corn algumas considera-

cóes sobre aquilo que entendo como sendo o lugar do Estado - natural­mente o Estado de direito - na indispensável mediacáo entre os interes­

ses particularistas e os universalistas, situados respectivamente na micro-es­

fera e na macro-esfera. Examinemos um pouco essa meso-esfera,.particular­

mente no que diz respeito a política indigenista. Sabemos que os Estados

nacionais latino-americanos, que, de modo geral, nao térn se mostradomuito sensíveis ao multiculturalismo, como política de governo, tém, pelo

contrário, procurado dissolver as etnias indígenas no interior da sociedadenacional, sern maiores preocupa<;:6es ern respeitar suas especificidades cul­turais. A política assimilacionista rondoniana, de ínspiracáo positivista, e

que encontra ainda seus defensores no Brasil, ou, de igual modo, as políti­

cas mexicana e peruana - entre outras - voltadas a mesticagern, saoexemplos eloqüentes de uma atitude pouco afeita a defesa da diversidade

22 Cf Roberto Cardoso de Oliveira, "Antropología e moralidade", p. 120.

184

~

Etniadade, etiddade e"Iobali?,pfoo

cultural. Porém, é curioso observar que a defesa dessa mesma diversidadevern se constituindo em uma das posicóes mais firmemente assumidas

nos foros internacionais, de modo a pressionar os Estados nacionais a

levarem a efeito o reconhecimento e o respeito as especificidades étnicas.Essa atitude, que nao deixa de se guiar por urn princípio relativista - que

tern seu lugar original na micro-esfera - passa a ser adotado ern nível

planetário como prática política nos foros internacionais! Como entender

essa aparente contradicáo? Creio que devemos interpretá-la como o resul­

tado da intersecáo entre a micro-esfera, como o domínio da particularida­

de, assegurada, por sua vez, pela vigencia do ponto de vista relativista,

com a macro-esfera, na qual a defesa da diversidade cultural e do respeito

aos direitos humanos passou a se constituir, notadamente nesta segunda

metade do século, em pressuposto moral e ético universalista, pois deadocáo planetária gra<;:as áqueles foros. Uma tal intersecáo, entretanto, nao

se faz na prática diretamente, mas por mediacáo da meso-esfera, na qual osEstados nacionais, de direito, por pressáo de órgáos internacionais - como

a ONU ou a OIT - sao compelidos a administrar tal conjun<;:ao entrevalores particularistas e universalistas.

Ternos, assim, atualmente, um cenário transnacional resultante do pro­

cesso de globaliza<;:ao que, envolvendo todo o mundo moderno, acabou

por incorporar em sua dinámica também os POyOS indígenas, com suas

demandas pela defesa dos direitos aos territórios que habitam, a identida­

de étnica que devem poder assumir livremente e aos seus modos de vida

particulares, sem os quais estariarn pondo em risco sua própria existencia.Ao mesrno tempo, tal processo - como já mencionei - imegrou esses

mesrnos POyOS no horizonte de uma ética planetária, portanto de caráteruniversalista, em que direitos e deveres preconizados pelos foros interna­cionais sao a eles estendidos. Mas se isso, de algum modo, pode abrirpossibilidades de intervencáo discursiva, isto é, por meio da argumenta­

<;:ao persuasiva, nos valores vigentes na micro-esfera - como se viu no

caso das missionárias entre os Tapirapé -, há de se admitir que gra<;:as aessa eticidade institucionalizada no ámbito da macro-esfera, vém podendo

os POyOS indígenas - tanto quanto toda urna variedade de segmentos

sociais dominados - obter apoio internacional na defesa de seus direitosdiante de Estados nacionais freqüenternenre injustos.

Nao gostaria de encerrar esta exposicáo sem antes oferecer um bom

185

Page 94: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

II

i,

1\

Roberto Cardos» de Ol¡"eira

exemplo de como a instancia internacional vem podendo desempenhar

um papel estratégico na sustenta~ao das reivindica~6es dos povos indíge­

nas junto aos Estados nacionais. Em 1990, tive a oportunidade de partici­

par da elaboracáo do Plano Qüinqüenal do Instituto Indigenista Interame­

ricano _ 1991-1995 -, entáo dirigido pelo antropólogo peruano José

Matos Mar. Durante a semana que passamos na Cidade do México dedi­

cados a redacáo do texto, pudemos relacionar mais de urna dezena de

documentos produzidos em organismos internacionais, sustentadores de

idéias e de recomendac;:oes aos governos do hemisfério, no sentido de

promoverem corn a maior rapidez possível a democratizac;:ao de suas

relacóes com os POyOS indígenas inseridos nos territórios nacionais. Pude­

mos, assim, constatar que, nas últimas décadas, tem ocorrido significativas

mudancas no comportamento indígena, podendo-se destacar algumas

bastante auspiciosas: o aumento da capacidade de organizac;:ao étnica, per­

mitindo urna atuac;:ao mais eficiente no modo de pressionar os organis­

mos governamentais; o crescimento de uma tendencia que leva a afirmar

a identidade étnica bem como sua auto-estima, entendidas como núcleo

de urna proposta política em condicóes de igualdade; a existencia de urn

crescente número de etnias que, por sua própria iniciativa, empreendem o

desenvolvimento economico, como a integra<;ao no mercado nacional,

sem abandonar sua identidade e sua rradicáo cultural; a capacidade de se

vincular com diversas organizac;:oes nacionais e internacionais que apóiam

o movimento indígena; o aparecimento de lideranca própria que inclui

desde índios monolíngues até intelectuais graduados ~m universidades; o

interesse pela política, que os aproxima, com cenas reservas, a 'partidos

políticos; o reencontro corn migrantes índios localizados em cidades, o

que significa urna base de apoio que lhes facilita a vinculacáo com organis­

mos estatais e organizac;:oes populares urbanas; e, finalmente, a identifica­

cáo, no plano mundial, com o destino de outros POyOS indígenas com os

quais dividem problemas similares e com esses POyOS entram em en tendi-

mento."Pode-se dizer que hoje os POyOS indígenas, apesar de todas as dificul-

Etnicidade, eticidade eglobalizarao

dades que encontram a todo instante e em todo lugar, cornecam a viver

ern um novo cenário político, resultante da globaliza~ao. Se tomarmos,

como ilustracáo disso a mudanca sofrida na famosa Convencáo 107, da

Organizacáo Internacional do Trabalho (01T) , substituída pela Conven­

c;:ao 169, de 27 de junho de 1989, podemos verificar o quanto progrediu

a luta indígena em defesa de seus direitos. O Instituto Indigenista Intera­

mericano, no texto de seu Plano Qüinqüenal, reconhece isso e faz o se­

guinte comentário:

Esta nova convencáo é uma versáo modificada da convencáo 107 que, desde1957, havia sido a norma internacional mais importante em matéria de defesados povos indios, constituida em lei nacional de 27 estados membro da OIT,entre eles, 14da América Latina. As rnodificacóes foram aprovadas depois deum extenso, minucioso e árduo debate em que, durante tres anos consecuti­vos, participaram as principais instiruicóes e organiza<;oes indígenas e pró­indígenas do mundo, junto com representantes dos governos, das organiza­cóes patronais e de trabalhadores, de virtualmente todos os países."

E continua o documento:

o espirito que orientou estas rnodificacóes foi o rechace explícito a referenci­as, enfoques ou propostas integracionistas. Em seu lugar, a nova convencáo

contém medidas que, ainda que com certas explicáveis salvaguardas, favore­cem ou preservam a autonomia e a singularidade étnica dos POYOS indios. Adifercnca da convencáo 107 que só os denominava "populacóes", o 169 oschama "povos" e lhes reconhece o direito de possuir "territórios", além das"terras" que lhes reconhecia 0107.25

Entendo que muito ainda há para se conquistar no plano internacional

e, sobretudo, nos nacionais, cornecando com a assinatura de todos os

governos dessa nova convencáo em que, entre várias conquistas, está - a

meu ver - a principal: a das populacóes indígenas serem, finalmente,

reconhecidas como POliOS e, como tais, legítimos pretendentes a singulari­

dade étnica e aautonomia, ainda que no ambito dos Estados nacionais. O

surgimento de um instrumento político dessa ordem só foi possível, em

23 Cf. Instituto Indigenista Interamericano - "política indigenista (1991-1995)", in

América Indígena, vol. L, 1990, pp. 80-81.

186

~

24

25

Cf. Instituto Indigenista InteramericanoAmérica Indígel1a, vol. L, 1990, pp. 82-83.

Idem.

187

- "Política indigenista (1991-1995)", in

Page 95: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso deQ/iveira

meu modo de ver, gra<;as apercepcáo pelas entidades internacionais, situ­

adas na macro-esfera, dos graves problemas de etnicidade gerados no inte­rior de países como os da América Latina, ainda que, atualmente, nao se

possa dizer que exista sequer um continente livre des ses mesmos proble­mas _ ao se considerar os movimentos de autonomia que se espalham

em todas as latitudes do planeta. Mais do que o "bom senso" cartesiano,

pode-se dizer que a etnicidade é, hoje, la cbos« du monde la mieuxpartagée! E

essa percepcáo da etnicidade explica-se, em grande medida, pela crescente

participacáo em organismos nacionais e internacionais de representantes

dos povos indígenas - tanto quanto de outros segmentos sociais

despossuídos de plena cidadania -, que passam a ter seus povos reco­

nhecidos como sujeitos morais, merecedores de melhores condicóes de

existencia. O "bem-viver", como fato moral vivido por uns poucos po­

vos, passa a ser admitido - ainda que formalmente - como alvo de

todos os pavos. Se isso nao é tudo, também nao é pouco, se olharmos

para trás ... O certo é que o crescimento, mesmo lento, da participacáo

gradativa de representantes étnicos nas comunidades cada vez rnais arn­

plas de cornunicacáo e de argumenta<;ao - em que pesem todas as difi­

culdades já apontadas para a plena efetivacáo da ética discursiva -, é algQ

que devemos levar em canta para melhor entendermos o quadro em que

se inserem atualmente as relacóes interétnicas e, sempre que possível, pres-

sionarmos por sua democratiza<;ao.

Capítulo 10

SOBRE O DIÁLOGOINTOLERANTE

A toleráncia é um fim em si mesmo. Aelirninacáo da violencia e a reducáo da

repressáo na extensáo requerida para pro­teger homem e anirnais da crueldade eagressao sao precondicóes para a criacáo

de urna sociedade humana.*

A oportunidade deste Seminario,' em boa hora programado pela Unes­

co e realizado pela USP, vem ao encontro de preocupacóes que tenho

expressado em diferentes ocasióes, no Brasil e no exterior, por meio de

conferencias em torno de questóes nao muito habituais entre meus colegas

antropólogos. Sao questóes assaciadas a temas tais como eticidade e rno­

ralidade, que cornecam a penetrar nas fronteiras de minha disciplina. Gos­

taria, assim, de retomar o assunto no ponto em que o deixei, em minha

conferencia de abertura da Reuniáo Brasileira de Antropologia, em 1996,

que teve lugar em Salvador, quando abordei o tema "Etnicidade, eticidade

e globaliza<;ao", concentrando-me no exame da possibilidade - e sobre­

tuda nas dificuldades - da construcáo de urna ética planetária.? A saber,

urna ética que seja válida para todos os pavos do planeta e que concorra

- sob o signo da tolerancia, acrescento agora - arealizacáo daquilo queMarcuse defendeu como "precondicóes para a criacáo de urna sociedade

humana", conforme reza a epígrafe que acabo de ler.

188

L

*

2

Cf. Herbert Marcuse, "Repressive tolerance", in Robert P. Wolf , Barrington Moore,

J r e Herbert Marcuse, A critique of puretolerante, p. 82.

Serninário Internacional "Ciencia, cientistas e a toleráncia", Unesco!USP, novernbro

1997.

o texto em referencia foi publicado pela Revista Brasileira de Ciéncias Sociais, ano 11,nO 32, 1996, pp. 6-17. Urna outra versáo desse texto pude apresentar recenternenteem Oaxaca, México, em 25 de Junho de 1997, como Conferencia Inaugural do"Simposio Internacional 'Autonomías Étnicas y Estados Nacionales'", com o título"Etnicidad, eticidad y globalización", e consta como Capítulo 9 do presente volume.

189

-

Page 96: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Olil'eira

Após fazer urna breve retrospectiva da questáo desenvolvida naquela

ocasiáo, vou deter-me, portanto, naquilo que reconheco ser o nó górdio

do problema - o que nao significa, a bem da verdade, que me considereem condicóes de desatá-lo! Apenas gostaria de propor um possivel enca­minhamento de urna discussáo que possa levar-nos a um consenso razoá­

ve!. E para urna reflexáo coletiva, nao existe melhor oportunidade do que

a de um Seminario como o presente. Desde já, aproveito para agradecer

o convite que me foi feito pelos organizadores deste evento.Na mencionada conferencia, procurei mostrar que a ética discursiva, na

maneira como ela vem sendo formulada por Karl-Otto Apel e ]ürgen Ha­

bermas, deixa um residuo de incornpreensáo na relacáo dialógica quando a

interlocucáo envolve membros de culturas absolutamente diferentes, quando,

por exemplo, ela tem lugar entre índios e nao-indios, marcada, portanto, porhorizontes teoricamente incomensuráveis. Sabemos que a ética discursiva, na

medida em que se ampara na possibilidade de urna hermenéutica - e aqui

me refiro especialmente a hermenéutica gadameriana -, opera sobre urnatradicáo histórica que, em regra, é partilhada pelos interlocutorés, ainda

que pertencentes a períodos históricos diferentes. Logo, poder-se-ia dizer,preexiste um caldo de cultura comum a sustentar a jusao deborirontes entretexto e leitor envolvidos em urna relacáo dialógica; a saber, entre o hori­

zonte do texto e o do leitor. Nao vejo necessidade de recorrermos a

Hans-George Gadamer para sustentar esse argumento, pois é muito conhe­

cido. Ora, quando se trata de indivíduos inseridos em culturas tao diversas,como as que podemos observar entre índios e náo-índios, a probabilidade de

ter lugar essa fusáo de horizontes entre individuos contemporáneos diminui

expressivamente, ainda que nao se possa afirmar que ela se inviabilize, poissempre se poderá encontrar empiricamente - daí a contribuicáo da an­

tropologia - um nexo entre horizontes diferentes, gra<;as ao exercício da

argumentacáo racional - como, aliás, aponta a própria teoria da ética dis­cursiva. Na conferencia aludida, procurei trazer areflexáo um elucidativo de­

bate ocorrido no México, na Universidade Autónoma Metropolitana deIztapalapa, em 1991, cujos resultados foram publicados no volume Debate entorno de la ética deldiscurso de Ape/' com o subtítulo - muito a propósito ­

Diálogo filosófico Norte - Sur desde América Latina, organizado por EnriqueDussel, esse pensador argentino-mexicano, um especialista na filosofia ape­

liana. O que me pareceu importante naquele debate foi o que considero

190

---""---

!Jobre o diálo.go ilTtolerolTte

urna abertura da discussáo sobre a significa<;ao da ética discursiva _ que

se pretende planetária - relativamente a instancias empíricas, na quais ra­

ramente a filosofia como disciplina académica digna-se a examinar, o quedeixa um espaco interessante para o antropólogo Ocupar. Nesse sentido,cabe esclarecer, a "teologia da liberta<;ao", como tema recorrenre nagUeledebate, ocupa aqui, neste texto, um lugar secundário. A saber, nao será

tomada por referencia, enquanto doutrina religiosa ou ideologia política,

pela única razáo de meu interesse estar centrado nas cOl1dlfoes depossibilidadede diálogo e nao no assunto propriamente dito da relacáo dialógica.

De minha conferencia de 1996, gostaria de rerer dois conceitos que meparecem básicos na conducáo de minha argumenta<;ao: sao os conceitos

apelianos de "comunidade de comunica<;ao" e de "comunidade de argu­

mentacáo". Penso que será suficiente dizer que urna cOlJilf!lldade de cOIJlll!licafaO é

urna instancia constitutiva do conhecimento presente em qualquer discursovoltado para alcancar consenso, tenha ele caráter científico ou simplesmente

produza discursos tangidos pelo "senso comum". É, portanro, urna ins­tancia marcada pela intersubjetividade, inerente, por sua vez, a toda comuni­

dade de argulllentafao - esse segundo conceiro apeliano -, comunidade

essa da qual nao escapa sequer o pensador solitario, como constata o pró­prio Ape!' Ve-se, portanto, que ambos os conceitos sao co-extensos. Significaque tais comunidades estáo constituídas por indivíduos de um grupo cultural

qualquer, desde que estejam inseridos em um mesmo "jogo de linguagem"

- para falarmos com Wittgenstein. Há mesmo urn ar de familia observávelentre essa nocáo wittgensteineana com os conceitos propostos por Apel.

Acrescente-se, apenas, relativamente a comunidade de comunica<;ao, que

essa é pensada por Apel em sua dupla dimensáo: como comunidade ideale como comunidade real; a primeira correspondenda apenas a possibili­dade lógica de sua realizacño - e funcionaria como urna "idéia regulado­

ra" -, enquanro a segunda remete asua realizacáo empírica, o que signi­fica implicar urna comunidade constituída por indivíduos "de carne e osso".

Para ilustrar isso, tomemos como caso limite urna comunidade profis­sional altamente sofisticada, como, por exernplo, urna comunidade for­

mada por cientistas. Apel vai dizer que a validade lógica dos argumentosformulados no interior dessa comunidade pressup6e, necessariamente, um

acordo intersubjetivo em torno de regras explícitas ou tacitamente admiti­das. Isso quer dizer que, mesmo ern urna comunidade de comunica<;ao e

191

Page 97: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cerdoso de Olirleira Sobre o diálogo intoleraste

de argumentac;:ao desse tipo, observa-se uma exigencia de consenso sobrenormas e regras - como, por exemplo, as da lógica formal - inerentes

aargumentac;:ao e que devem nela prevalecer. A garantia de um tal consen­so está, precisamente, na existencia de uma ética que seja intersubjetivamente

válida e signifique o deuer de todos os membros da comunidade em obe­decer as regras e as normas instituídas por aquele consenso. E se isso éverdadeiro para uma comunidade científica, é igualmente para qualquer

outra comunidade de comunicac;:ao e de argumentac;:ao no interior da qualse constrói todo e qualquer conhecimento. Essa é uma idéia que tu gosta­ria de deixar bem clara, uma vez que ocupa um lugar central nos argumen­

tos que pretendo apresentar a seguir.Imaginemos uma situacáo em que membros de diferentes etnias, inse­

ridas em campos semánticos diferentes, busquem estabelecer um diálogo.

E _ valha o exemplo - que esse diálogo se de entre a lideranca de um

determinado grupo indígena e representantes da Fundacáo Nacional doÍndio - Funai. Admitamos, ainda, que esses representantes estejam imbu­ídos dos princípios da doutrina de desenvolvimento alternativo conhecidapor "etnodesenvolvimento",' em termos da qual torna-se indispensávelnegociar com a populacáo indígena as eventuais mudancas propostas petoórgao indigenista. Tal negociacáo, para ser levada moralmente a bom ter- .mo, deveria ocorrer, portanto, no ámbito da ética discursiva. Nesse senti­

do, a compatibilizac;:ao do modelo de etnodesenvolvimento com a éticado discurso nao pode merecer dúvidas. Em um texto anterior, "Práticas

interétnicas e moralidade: Por um indigenismo (autojcritico"," estendi-rnelongamente sobre o assunto, sem, contudo, chegar a abordar ab dificulda­des inerentes aplena efetivacáo do diálogo interétnico, sem o qual - seja

3

4

o etnodesenvolvimento é urna alternativa ao desenvolvimentismo intervencionistae, como tal, tem sido recomendado nos foros internacionais, como o que teve lugar emSan]osé de Costa Rica, em 1981, dele tendo se originado a chamada "Declaración deSan]osé", que publicamos em editorial no AnuárioAntropológico/81, 1983, pp. 13-20.

Cf. Roberto Cardoso de Oliveira e Luís R. Cardoso de Oliveira, Ensaiosantropológicossobre morale ética, pp. 33-49, livro que recebeu esse texto, ampliado, como seu Capítu­lo 2. Sua forma original, porém, foi publicada em Antonio A. Arantes, Guilhermo R.Ruben e Guita G. Deberr (orgs.), Desenuohnmento e direitos humanos: A responsabi/idode

doantropólogo, pp. 55-66.

192

I

1

dito - torna-se irrealizável gualquer negociacáo, Uma negociacáo que

envolva relacóes dialógicas simétricas, em que a questáo do poder, ainda

que irremovível, possa de certo modo ser neutralizada por posturas de­mocráticas assumidas convictamente por indigenistas devotados a persua­dir o índio a aceitar as eventuais mudancas a serem introduzidas. O mode­lo de etnodesenvolvimento parece admitir essa situacáo sem maiores gues­tionamentos sobre os resultados positivos que, ao fim e ao cabo, deveráo

surgir. Porém, no meu modo de ver, entendo gue há dificuldades intrínse­cas na própria estruturacáo desse diálogo, mesmo que o pólo dominanteda relacáo interétnica assuma uma postura eminentemente democrática, a

saber, quando os representantes da Funai aceitem o modelo de etnode­senvolvimento como a via mais correta orientada para a inducáo de mu­

dancas no mundo indígena. É claro que essa via passa pela compreensáo

recíproca das partes envolvidas. Quanto a isso, nao parece haver dúvidas!As dúvidas que temos de examinar - volto a dizer - prendem-se aprópria estrutura desse diálogo gue, a rigor, ocorre entre indivíduos situa­dos em campos semánticos distintos. A superacáo desse semanticalgap é

que parece se constituir no grande desafio, mesmo entre pessoas de "boafé" e preocupadas em chegar a um consenso.

Continuemos com o exernpló do diálogo Índios versus Funai. Nesse

diálogo imaginário, deve haver espac;:o para urna sorte de il1terpe/afao ­esse "ato de fala" , como assim é definida por Henrique Dussel - demodo gue as liderancas indígenas sempre possam dirigir-se ao órgao indi­genista, pois, sem esse ato, como assegurar as condicóes mínimas necessá­

rias ao cumprimento dos "requisitos de pretensáo de validez" do diálogo

recomendados pela ética discursiva? Entende-se com isso, e aqui permito­me transcrever um longo trecho de minha conferencia,

que qualquer interpelacáo dirigida pelo componente dominado da relacáo

interétnica ao componente dominante - este branco, culturalmente euro­

peu, ocidental- nao pode cobrar do primeiro a obediencia aos pré-requisi­

tos de inteligibilidade, verdade, veracidade e retidáo que se espera estejam

presentes no exercício pleno da ética do discurso. A própria interpelacáo feita

pelo índio ao branco dominador - nao apenas por ser parte do seg­

mento dominante da sociedade nacional, mas, também, como domina­

dor da linguagem do próprio discurso - torna rnuitas vezes difícil a inteligi­

bilidade da mesma interpelacáo e, com ela, sua natural pretensáo de validade,

193

....

Page 98: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cardoso de Oliveira

urna vez que falta aquela condicáo básica para o proferimento de um ato defala que seja "verdadeiro" - isto é, aceito como verdadeiro pelo ouvintealienígena; que tenha "veracidade", sendo, portanto, aceito com forc;:ailocucionária (de conviccáo) pelo mesmo ouvinte; e que manifeste "retidáo"ou, com outras palavras,que cumpra as normas da comunidad e de argumen­tacáo eticamente constituída, normas essasestabelecidas- e institucionaliza­das - nos termos da racionalidade vigente no pólo dominante da relacáointerétnica.'

Essa institucionalidade dominadora tem sido, a rigor, se nao a causa,pelo menos um sério fator de dorninacáo política - e social - dos

POyOS indígenas, incapaz de ser eludida pelo indigenismo militante - ofi­

cial ou particular -, ainda que ungido de boa fé. E para Dussel, a única

alternativa seria substituí-la por urna nova institucionalidade capaz de asse­

gurar normatividade de urna interpelacáo feita pela parte dominada da

relacáo interétnica. Diz, assim, que

a náo-norrnatividade da "interpelacáo" é exigida por se encontrar em ummomento fundador ou originário da nova normatividade - a instinícionali­dade futura de onde o "interpelante" terá direitos vigentes que agora naotern."

A importancia dessa nova normatividade está precisamente no fato

de, com ela, poder-se viabilizar um discurso em que nenhuma das partes,

eventualmente litigantes, veja-se impedida de comunicar-se sem embrenhar­se no cipoal de urna "cornunicacáo distorcida" - para usarmos esse uti­

líssimo conceito habermasiano. Há, portante, a imperiosa necessidade de

transcender o discurso hegemónico, basicamente eurocéntricó, compro­

metedor da dirnensáo ética de um discurso argumentativo que deveria

fluir naturalmente no interior do diálogo interétnico.

Vários caminhos poderiam ser examinados aqui. Caminhos que nos

levassem a investigar - e eventualmente propor - meios tendentes a

superar esse impasse gerado pela necessidade de urna nova normativida-

Sobre o diálogo intolerante

de. No momento, prefiro escolher apenas um, sugerido, aliás, pelo temá­rio deste seminário: o da elucidacáo do conceito de to/eráncia e de sua

aplicabilidade no diálogo interétnico e, por via de conseqüencia, na ética

discursiva. Mas para um filósofo como Robert Paul Wolf,7 o melhor ca­minho para o encaminhamento - ou solucáo, como prefere Wolf _ do

problema parece estar em seu equacionamento em termos políticos e, emcerto sentido, psicológicos! Diz ele:

Urna solucáo para o problema da intolerancia,naturalmente, é enfraquecer oselos que ligam o indivíduo aos seus grupos étnicos, religiosos ou económi­cos."

E explica,

Somos todos irrnáos sob a pele, é a mensagem do humanista [..1 Mas operigo de dissolver lealdades paroquiais é que sem elas o homem nao podeviver.?

E dada a impossibilidade real de transformar toda urna nacáo em um

grupo primário - o que poderia teoricamente transcender ao simplesparoquiamento -, isso seria evidentemente impossível. Por isso, seria "de­

sastroso enfraquecer os elos primários mesmo em nome da fraternidade"nacional. Diante disso, Wolf procura um caminho em direcáo ao "plura­

lismo" como condicáo de dernocratizacáo de urna moderna sociedadeindustrial; portanto, parece-lhe suficiente urna solucáo política, na qual a

tolerancia, como "estado de espírito", cumpriria urna funcáo básica, urna

vez que a "tolerancia é verdadeiramente a virtude de urna democracia

pluralista".'? De minha parte, entendo que o encaminhamento do proble-,

ma para urna solucáo apenas política, ainda que importante, nao é sufi­

ciente para armar-nos de um ponto de vista que, com maior profundida­

de, possa levar a urna reflexáo preferencialmente em direcáo da moralida­

de e da eticidade, em detrimento da política. Sugiro, assim, urna outradirecáo para o exame do problema da intolerancia.

5

6

Roberto Cardoso de Oliveira, "Etnicidade, eticidade e globalizacáo", pp. 11-12.

Cf. Enrique Dussel, "La razon del otro. La 'interpelación' como acto-de-habla", inDebate en tomo a la ética del discurso deApeL Diálogo filosófico Norte - Sur desde AméricaLAtina, Enrique Dussel (org.), p. 71.

194

aL

7 Cf. R. P. Wolf, "Beyond tolerance", in A critique ofpure tolerance, pp. 3-52.

8 Idem, p. 7.

9 Ibidem.

10 Ibidem, p. 23.

195

i.

Page 99: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

Roberto Cerdoso deOliveira

Entre as várias acepcóes do termo tolerancia inscritas em dicionários,

tomaria aque1a que parece mais condizente com a problemática que esta­

mos tratando. Quero me valer aqui do sentido c do termo, registrado no

Vocabulaire technique et critique de laphilosophie de André Lalande.!' O verbete

reza o seguinte: "Disposicáo do espírito, ou regra de conduta, consistente

em deixar a cada um a 1iberdade de exprimir suas opinióes, mesmo que

de1as nao participe". 12 A idéia de tolerancia assim formulada expressa urna

atitude que, sobre ser democrática, é profundamente moral! Tern-se aqui a

virtude da tolerancia que, a rigor, está longe de caracterizar o diálogo inte­

rétnico. Pode-se dizer que a etnografia, nao só no Brasil, mas no mundo,

registra de forma bastante eloqüente dificu1dades que parecem ser ineren­

tes ao tipo de diálogo comumente observável no interior de sistemas inte­

rétnicos. Nesse sentido, nao há nenhuma novidade em reconhecermos que

existem dificu1dades nas relacóes sociais que neles térn lugar; e que engen­

dram representacóes preconceituosas e profundamente discriminadoras

do outro - particularmente quando este outro mais se distancia dos pa­

rámetros cu1turais do pólo dominante da sociedade global.

Mas o que nem sempre nos chama a atencáo, por carecer de espessura

social empiricamente resgatável pela etnografia, é o plano da linguagem;

ou melhor, do discurso enquanto modo de re1acionamento intercu1rural.

É verdade que o chamado linguistic turn, originário do pensamento filosó­

fico contemporáneo, vem se introduzindo gradativamente na antropolo­

gia e, certamente, tem contribuído para trazer ao horizonte da disciplina o

fenómeno do discurso e, particularmente - para os n<;>ssos interesses -, o

problema do discurso interétnico. E se pudéssemos atribuir umá marca a .

esse discurso, diríamos que essa seria a da intolerancia. E é essa intolerancia

que as monografias registram ad nauseam. Mas, sem querer reduzir o pro­

blema da persistencia do discurso hegemonico - habitual no diálogo

interétnico - a exc1usividade de um fator de ordem psicológica, estou,

antes, procurando situá-lo além de qualquer psicologismo, para examiná­

10 em termos de urna moralidade - o do compromisso com a idéia do

11 André Lalande, Vocabulaire tethniq,« el critique de la philosophie, 5' ed., París, PressesUniversitaires de France, 1947.

12 Idem, p. 1.111.

196 L

Sobre o diálo.go intolerante

bem-viver do outro - e de urna eticidade - o do compromisso com a

idéia do deverde negociar democraticamente a possibilidade de se chegar a

um consenso com o outro. Entendo - ainda va1endo-me de Lalande­

que é imperioso separar da nocáo de tolerancia qualquer sentido que a

vincule a um cerro sentimento de caridade diante do outro, tratado como

um ser subalterno; pois tolerancia deve ser compreendida como respeito,

sem o qua1 a dignidade moral nao é atingida. Nesse sentido, para Lalande

- seguindo Renouvier - "o que se chama tolerancia é urna virtude da

[ustica, nao da caridade"." Desfeito esse possível equívoco, podemos for­mular finalmente o conceito de tolerancia como urna questáo de direito,

ademais de poder situá-lo no paramar da moralidade e da eticidade. Com

isso, a rejeicáo ao diálogo intolerante passa a ser um caso de justifa e as

relacóes interétnicas subjacentes passam a ser tratadas em um plano de

lídima moralidade e nao apenas como realidade política a ser administra­

da exclusivamente pela democratizacáo daquelas relacóes. Destarre, nao se

trataria mais de urna concessáo do pólo dominante, isto é do Estado, mas

um imperatiuo moral.

Nao vejo outro rumo a tomar para melhor encaminharmos o proble­ma criado com a constatacáo da necessidade de se institucionalizar urna

nova normatividade - como sugere Dussel - capaz de substituir o dis­

curso hegemónico exercitado pelo pólo dominante do sistema interétnico.

Ao indigenista, voltado para o aperfeicoamento de práticas interétnicas e

eventualmente interessado em urna sorte de "antropologia da acáo", as

questóes aqui desenvolvidas podem ter a1gum apelo, poi s seráo sempre

capazes de conduzi-lo a repensar modalidades habituais de re1acionamen­

to, comumente fadadas ao fracasso. Quanto ao papel da antropologia,

como disciplina académica, entendo caber a ela procurar - mediante a

elucidacáo do conceito de tolerancia, bem como do lugar que ocupa no

diálogo interétnico -, nao apenas a conduzir a reflexáo teórica para a

dimensáo empírica - etnográfica - de um certo genero de diálogo ­

reflexáo esta mais afeita as incursóes filosóficas -, mas também contri­

buir indiretarnente para a formulacáo de políticas indigenistas que sejam

compatíveis com os imperativos de eticidade e de moralidade.

13 André Lalande, Vocablllaire tecbnique et critique de la pbilosopbie.

197

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'1

Page 101: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

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~

índice analítico

Page 106: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

ÍNDICE ANALÍTICO

1,A

aculturacáo 20, 47ambientes sócio-culturais 120an tropologia

antropologias centráis

39, 45, 50, 51, 107,113, 114, 116, 163

antropologia cultural 28, 125, 136antropología interpretativa 31, 93antropologias metropolitanas 122, 162antropologia moderna sócio-culrural 154antropologias periféricas 38, 39, 45, 51,

56, 107, 108, 109, 111, 112, 114,117, 120, 121, 122, 123, 124, 132,155, 164

antropologia pos-moderna 27, 29antropologia social 33, 46, 59, 63, 75, 83,

86, 125, 128, 130, 136, 138antropologia sócio-culmral 171

conceiro de antropologia 37crise da antropología 55, 56, _58,

59, 64, 69crise na historiografia das ciencias

antropológica 56crise moderna da antropologia 54discurso da antropologia 27, 34, 68,

96,114120,141estilos nacionais de antropologia 116história da antropologia 58, 105história moderna da antropologia 113insritucionalizacáo da antropologia

130linguagem da antropologia 114modo tradicional de se fazer

antropologia 28singularidade da antropología 136teoria geraJ da antropologia latino­

americana 120universalidad e da antropologia 39,

113an tropólogo

comunidade de antropólogos 54, 93, 105,116,129,133

comunidade mexicana de antropólogos 58argumenracño

argurnentacáo racional 179, 190argurnentacáo inrerculrural 183

B

bem-viver 170, 182, 188, 196Bildung 131, 132

eCatalunha

cultura catalá 143,144,146,147direitos cataláes ¡ 43etnologia catalá 153etnografía catalá 151história da consciencia moral e jurídica da

Catalunha 145história das idéias catalás 148ideologia da catalanidade 142, 147, 148,

149, 156movimento renascentista cataláo 146pensamento cataláo 148persona catalá 148psicologia do povo cataláo 150, 151, 156Rmaixensa 146, 154

cienciahistória da ciencia 54, 86, 108, 137história das ciencias paradigmáticas 53historia das ciencias sociais 92objeto de ciencia 80objeto de saber científico 78período de emergencia da disciplina 156

ciencia política 126, 131ciencias sociais

explicacáo das ciencias sociais 69interpretacño nas ciencias sociais 95

cognicáo 18, 19, 23, 24, 25, 32, 35, 67,69,85, 86, 91,92, 104, 114, 157, 159

objeto cognoscível 67, 77, 84sujeito cognoscente

64, 67, 74, 77, 84, 90sujeito cognoscitivo 40, 42valor cognitivo 91

colonialismo 41, 42, 46, 108, 173colonialismo interno 41, 46, 51

1;1.I.!

211

Page 107: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o /rabalho do antropólogo Índice anaJilico

conceito de colonialismo 51etnias colonizadas 41situacáo colonial 41, 46, 47

comensurabilidade 165, 166, 171compreensáo 22,24,34, 51, 64, 68, 69, 71,

81,83,84,85,86,87,91,92,93,96,97,100,102,103,104,105,112,114,139,145,159,177,190,193

interpretacáo compreensivs 91, 96, 97,100,102,116,159

interpretacáo explicativa 102método compreensívo 71, 87pré-cornpreensjr, 84

comunidade 22, 58, 90, 130, 131, 165,166, 174, 177, 180, 188, 191

comunidade científica 49, 166, 192comunidade de antropólogos

54, 93, 105, 116, 129, 133

comunidade de argumenta~¡¡o 49, 179, 191,194

comunidade de comunica~¡¡o 26, 48, 90,141, 176, 177, 179, 183, 191, 192

comunidades culturalmente distintas 177comunidade de pares 27, 43, 89, 90comunidade de profissionais 17, 25, 26,

27,28,31,37,45,55,56,89,90,97,107,108,110,111,114,119,121,122,133,137,141,191

comunidade intercultural 180

comunidade internacional de profissio­nais da antropologia 137

comunidade mexicana de antropólogos 58conceito 27, 37, 38, 41, 42, 45, 46, 47,49,

50, 74, 78, 80,84,96,131,132,137,191conceito apeliano 191conceiro complementar 114conceito de antropologia 37conceito de colonialismo 51conceito de crise 53, 56

conceito de crise e de paradigmakuhniano 54

conceiro de estilo 112

conceito de etnicidade 142conceito de etnodesenvolvimento 45, 48conceito de fric~ao interétnica 45, 46conceíro de "fusáo de horizontes" 174conceito habermasiano 194conceito heurístico 50conceiro de humanidade 80

conceito de interpretacáo 96conceito de matriz disciplinar 137conceito metropolitano 42conceitos operacionais 113conceito de paradigma 54, 62conceito de periferia 110conceito de prejuizo 84conceito de seny 148conceito de tolerancia 195, 197história do conceito 84mega-conceito do paradigma estrurural­

funcionalisra 131, 132personagem conceirual 44relativismo conceirual 164

conhecimento 18, 19, 21, 24, 25, 32, 35,55, 66, 67, 75, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 88,89, 92, 104, 116, 135, 149, 151, 152, 159,170, 172, 191, 192

conhecimenro antropológico 33, 104conhecimento científico 76, 78, 86, 149, 165conhecimento dito científico 86conhecimento interpretativo 91conhecimento objetivo 76conhecimento proposicional 81

conjectura 90, 91crise 53,54,56,57,58,59,60,61,64,69,87

crise da antropologia 55, 56, 59crise de paradigmas 53crise disciplinar 59crise do indigenismo oficial 44crise dos modelos 87crise epistérnica 54crises institucionais 59, 72

crise meta-disciplinar 59crise moderna da antropologia 54conceito de crise 53, 56conceito de crise e de paradigma

kuhniano 54percepcáo da crise da disciplina 58

críticacrítica das ideologías 69, 70, 177

cultura 20, 26, 29, 39, 40, 49, 61, 69, 88,106, 108, 118, 131, 143, 153, 157, 162,163, 165, 170, 171, 172, 173, 175, 177,178, 179, 181, 184, 190, 191

cultura antropológica 27, 172

cultura artificial 40cultura catalá 144, 146, 147cultura científica 68

culturas exóticas 158

cultura indígena 52,161,162,180,181,182cultura nativa 27cultura norte-americana 163cultura ocidental 163cultura do outro 34, 157, 166cu ltura tri bal 17S

culturalmente europeu 193caldo de cultura 142, 190caregorias culturais 84comunidades culturais 166comunidades culturalmente distintas 177diferericas culturais entre sociedades

isoladas 144distancia cultural 179, 182diversidade cultural 123, 184, 185grupos culturais 136idiomas culturais 39incompatibilidades culturáis 174influencia cultural 163intervencáo cultural 173linguagem cultural 172outras culturas 158, 159parámetros culturáis 196processo de endoculruracáo 84raízes culrurais 161

relacionamento intercultural 17), 196relativismo cultural 157, 164, 166sistemas culturais 166subcultura ocidental 110tradicóes culturais 48, 186

culturalismo 63, 113, 129, 130, 132, 138,154, 164

culturalisrno tradicional 132paradigma culturalista 131, 140

D

descricáo 27, 82, 95, 96, 97, 98, 103desenvolvirnento

teoria desenvolvimentista 47dever 170, 182, 185, 192, 197diacronia 139dialética 26,27,70,71,87,104,105

mediacáo dialética 69relacáo diaJética 70, 96, 97

dialeto 137, 141

diálogo 3, 24, 49, 68, 93, 108, 118, 122,141, 165, 166, 174, 176, 178, 179, 180,182, 183,189,191, 192, 193, 196,197

diálogo horizontal 116, 118diálogo ínter-pares 93diálogo planetário 137comunica~ao interculrural 177

diferenc a

identidade e diferenca 109discurso

discurso durkheimiano 79discurso escrito 88discurso folclórico 154discurso interpretativo 180discurso naturalizante 76discurso ocidental 175discurso próprio da disciplina 30ética de um discurso 194

difusionismo 154

disciplinas sócio-cuIturais 92discurso 18, 24, 25, 26, 27, 65, 68, 88,

114,174, 176, 177, 179, 182, 191,192, 193, 194, 196

discurso argumentativo 194discurso científico 101discurso hegemónico 180, 194, 197discurso do nativo 24análise do discurso 121ética do discurso

176, 177, 179, 180, 192, 193dorninacño

dorninacáo política 42

E

economia 29

economía consuetudinária 145empírico

observacáo empírica 159

objeto ernpiricamente observável 55objeto empírico de estudo 155paradigmas empiristas 138pensamento empirista 74rradicáo empirista 63, 140

ensaísmotradicáo ensaisra brasileira 120

entendimento

categorias do enrendimento 50, 75entrevista 22, 23, 24, 65, 67, 159

entrevistado/entrevistador 23, 30epistemologia 18,24,28,31, 55,58,59,67,

69,71,82,87,92, lOS, 106,109,112,118,154,155,160,172

212 213

Page 108: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o IrahaIho do 011tropólogo Ílldice ollolítico

epistemologia clássica 79

fpis/<lJJe 72epis/elllf naturalista 64compromisso epistemológico 122crise epistérnica 54diálogo teórico e epistemológico 108estatuto epistemológico 40fidelidade epistemológica 140investiga<;ao epistemológica 62, 89mensagem epistemológica 156orientacáo epistemológica 169relativismo epistemológico 167sujeito epistémico 42, 43

Escola de Antropologia Social Británica

138Escola Francesa de Sociologia 63, 138Escola Histórico-Cultural Norte­

AJnericana 63, 138Escola Livre de Sociologia e Política

126, 130estética

estética de lévi-straussiana 17estilística 9,51,108,114,115,117,120,

121, 141, 155, 156, 162, 163estilo 19,37,51, 56, 112, 113,114, 115,

116, 120, 135, 141,151, 152, 155,163

estilos de antropologia 111,114,115,120,

152estilo brasiJeiro 120estilo cataláo 156estilo latino-americano 163estilos marcantes da antropologia 52estilos nacionais de antropología 116conceito de estilo 112

estrutura 21, 76, 77, 113, 132, 193estrutura de acáo 103

estrutura no ámbito de tradicóes

lingüísticas 131estrutura da disciplina 155estrurura de ensino e pesquisa 124estrutura matricial 117estrutura da matriz disciplinar 129, 155estrutura da organizacáo do trabalho

científico 59estrutura de pensamento 103estrurura social 77

estrutural-funcíonalismo 63, 138estrurural-funcionalismo británico 96,

113,132,140mega-conceito do paradigma esrrurural­

funcionalista 132paradigma esrrurural-funcionalista, 132, 140

estruturalismo 31, 140, 154estrururalismo levi-straussiano 105, 113,

119,132,140estruturalista 63, 129, 130, 159estudo

objeto de esrudo 80ética 48, 52, 70, 170, 171, 174, 175, 185,

189, 192ética apeliana 183, 190

ética discursiva 171, 173, 174, 176, 177,178, 179, 182, 188, 190, 192, 193, 195

ética do discurso176, 177, 179, 180, 192, 193,194

ética planetária 169, 175, 184, 185, 189macro-ética 175meso-ética 175micro-ética 175teoria da ética discursiva 190

eticidade 48, 169, 171, 174, 183, 185;189, 195, 196, 197

etnia 41, 42, 135, 136, 142, 144, 186,192ernia dominante 42, 178etnias indigenas 46, 47, 54, 184identidade étnica 55, 141, 142, 185, 186ideologia étnica 117singularidade étnica 187

etnicidade 117, 135, 136, 137, 142, 144,152, 154, 156, 169, 178, 183. 188,189

etnicidade catalá 1'43etno-classificacóes 105percepcáo da etnicidade 188

etniz acáo 117, 118, 136, 143, 151, 156

etno-história 161, 162etnocentrismo 33, 157

antietnocén trismo 40etnodesenvolvimento 45, 47, 48, 49, 51,

192, 193conceito de etnodesenvolvimento 45, 48modelo de ernodesenvolvimento

192, 193etnografia 24, 26, 28, 31, 33, 41,66, 106,

133, 150. 151,158, 196,197etnografía catala 151etnografía indigena 115

214

etnografia tradicional 103cenário etnográfico 30dados etnográficos 29encontró etnográfico 24, 64, 65, 67investigacáo etnográfica 30, 166material etnográfico 34pesquisa etnográfica 31, 58prática etnográfica 97observacóes etnográficas 64olhar etnográfico 19, 21, 124texto etnográfico 28, 29, 31

etnologia 45, 55,129, 130, 150,151, 156,159

etnologia boasiana 140etnologia brasileira 88etnología catalá 153ernologia indígena 58, 66, 130investigacáo etnológica 34literatura etnológica 23, 61monografia etnológica 62periodo "heroico" da etnología 130pesquisa etnológica 44, 165tradicáo de esrudos etnológicos 130

etnoscience 154evolucionismo 154experimental

monografias experimentáis 29explícacño

51, 64, 69, 71, 81, 82, 83, 87,91, 96, 97, lOO, 101, 103, 104, 105114, 116, 139, 159, 161

explicacáo analítica 115interpretacáo explicativa 91, 97, 100, 102método explicativo 71, 87modelo explicativo 53, 87, 118

F

falaato de fala 179, 193, 194linguagem falada 137

fenómenos sócio-culrurais 135fieldwork 25, 27, 66, 159, 166filologia tradicional 103filosofia 26, 31, 147, 157, 158, 160, 163,

164, 167, 171, 176, 191fiJosofia abstrata 78filosofía nas Américas 164filosofía apeliana 190filosofías ccntrais 159

filosofia clássica, 113filosofía escocesa 148filosofia nos Estados Unidos 162filosofías ditas exóticas 160filosofia latino-americana 164filosofia da libertacño 176filosofia medieval 113filosofía ocidental 160, 162filosofias periféricas 157Filosofia do Senso Comum

147, 148, 149filosofia do Sen)' 149paradigma filosófico 113pensamento filosófico 148, 161pensarne nto filosófico contemporáneo

196tradicáo da filosofia ocidental 162

folclore 40, 143, 145, 146, 149, 151, 156folclore caraláo 143discurso folclórico 154

folclorista 146folcloristas científicos 151

friccáo 183

friccáo interétnica 45, 46, 51, 176, 183conceito de friccáo interétnica 45, 46

funcionalismo 154funcionalistas norte-americanos 47funcionalistas ou británicos 47métodos funcionais 71recrias funcionalistas 47

"fusáo de horizontes" 24, 68, 174, 176,177, 178, 190

G

Geistestoissenscbaft 81globaliza<;ao 169, 184, 185, 187, 189grarnaticalidade 49, 98, 112greffe 64,87

H

hermenéutica 28, 29,31,64, 65, 66,67,68,69,70,71,83,84,85,86,87,91,92,93,100,102, lOS,106, 113, 122, 138, 174, 190

hermenéutica gadameriana 68, 177,178, 190hermenéutica geertziana 154hermenéutica moderna 104hermenéutica de Paul Ricoeur 115hermenéutica ontológica 68hermenéutica tradicional 104

215

f

Page 109: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o trabalho do antropó/og , Índice analítico

i!

,

abordagem hermenéutica 100ciencias hermenéuticas do espirito 70ciencias histórico-hermeneuúcas 69círculo herrnenéutico 90experiencia hermenéutica 83filosofia hermenéutica 68paradigma hermenéutico 29, 31, 64, 69, 70pensamento hermenéutico 66, 83recria da experiencia hermenéutica 83teoría hermenéutica 174

heurísticoconceito heurístico 50

hipótese 24, 54, 91, 101hipótese de trabalho 120construcáo de hipó tese 24formular hipótese 83gerar hipótese 91testar hipótese 85

história 67, 108, 118, 123,153história da humanidade 181história das relacóes entre a Europa e a

América Latina 41história ocidental 177história do pensamento ocidental 138história de seu próprio grupo étnico 181ciencias histórico-hermenéuticas 69tradicáo histórica 177, 190

hístoricidade 50, 64, 66historicismo 154

historicismo de orígem diltheyana 67paradigmas históricos 139, 140

humanidadeconceito de humanidade 80

1

ídéía-valor 32, 33, 34ídentidade 37, 135, 142, 146, 186

identidade castelhana 142identidade catalá 142, 146, 147, 156idenúdade contrastante 142idenúdade e diferenca 109

ideología 43, 106, 149, 156, 170ideologia política 191crítica das ideologias 69, 70, 177indigenismo como ideologia 43

idioleto 137, 141indígena

cultura indigena 52, 161, 162, 180,181, 182

discurso indígena 179emias indígenas 46, 47, 54, 184etnografia indígena 115ernologia indígena 58, 66, 130objetos indígenas 181pensamento indígena 162política indígena 45religiáo indígena 182

indigenismo 43, 44, 45indigenismo como ideologia 42, 43, 44, 45indigenismo latino-americano 173indigenismo militante 194indigenismo oficial 44indigenismo teórico e prático 44crise do indigenismo oficial 44discurso indigenista 184indios VerSIIf Funaí 193política indigenista 44, 45, 184. 197

ínfanticidío 174, 175, 184instítucionaliza'1ao 180institui'1ao 78intelectual

tradicóes intelecruais 63, 111, 138; 148tradicáo intelectualista-racionalista 74paradigmas intelectualistas 138

ínteligíbílídade 34, 176, 179, 193inteligibilidade do leitor moderno 177

íntelígível 21,166,179inteligencia do espirito 75inteligivel em escala planetaria 137ininteligivel 182"ossarura da inteligencia" 50, 75

ínterétnicocomunidade interétnica de ;omuníca~ao

180diálogo interétnico 135, 176, 182, 192, 194,

195,196,197dimensáo política das relacóes interétnicas

51discurso interérnico 196friccáo interémica 45, 46, 51, 176, 183teoria das relacóes interérnicas 135

interlocucáo 137, 190ínterpretacáo 17, 27, 34, 44, 90, 95, 96,

97, 100, 101, 102, 105, 106interpretacáo nas ciencias sociais 95interpreta~ao compreensiva 91, 97, 100,

102, 116, 159antropologia interpretativa 31, 93conhecimentQ interpretativo 91

216

discurso interpretativo 180dupla interpreracáo 95, 104, 105, 106

intersubjerividade 31, 67, 70, 85, 86, 89,90,97,177,191,192,

investigacño sócio-cultural 89

Jjuízos de valor 171, 172

K

Kultur 131, 132Kulturkreise 154

L

Lebenswelt 84língua

universalidade da língua 137linguagem

26,67,85, 112, 165, 179, 193, 196linguagem antropológica 141linguagem científica 114, 172jogo de linguagem 66,141,160, 191

lingüístas 114, 137, 158, 161lingüística 22, 69, 112, 137, 152

lingüística norte-americano 161estrutura no ámbiro de tradicóes

lingüísticas 131guínada lingüística 26jogo lingüístico 162metáfora lingüística 49,112, 113, 141parámetro lingüístico 49tradicóes lingüísticas 131

linguistics turn 26, 196lógica 85

lógica formal 192lógica indutiva 74lógica perversa 182lógica de probabilidade subjetiva 90lógica das representacóes de Hamelin 75possibilidade lógica 191validade lógica dos argumentos 191

M

matrimonio 60, 98, 99matrimonio exogámico 98possibilídade matrimonial 99

matriz disciplinar 37, 38, 39, 49, 51, 59,62, 63, 64, 65, 66, 69, 70, 72, 75,

87, 113, 114, 115, 116, 117, 120, 122,129, 131, 132, 137, 138, 139, 153, 155,156, 164

conceito de matriz disciplinar 137estrutura da matriz disciplinar 129, ·155

método 71,73,74,76,77,78,82,86,87,88,90,92,105,106,124,150,172

método científico 81, 151método comparativo 157, 172método compreensivo 71, 87método explicativo 71, 87métodos funcionais 71métodos de investigacáo 146método de observacño objetiva 150método da sociología 73aplicacáo do método 82exercício de método 73, 83, 86importancia do método 83limites do método 73pluralidade de métodos 116predominio do método 81prerrogativa do método 77

metodologia 24, 90, 92, 95, 150, 153, 154metodologia durkheimíana 75metodologias formáis 90metodologia radicalmente objetivista 105

mitología 29, 61modelo 61, 87,103, 137, 139, 159, 163

modelos científicos 153modelo de cientificidade 79modelo de etnodesenvolvirnento 192,

193modelo europeu 126modelo explicativo 53, 87, 118modelo exploratorio 137modelo geométrico 139modelo de inspiracáo norte-americana

126modelo nativo 22, 27modelos de pensamento e de acáo 163

moral 26, 145, 170, 171, 173, 174, 182,185, 192, 196, 197

consciencia moral 145costume e norma moral 173fato moral 188imperativo moral 197valores morais 175, 183

moralidade 49, 158, 169, 170, 171, 174,175, 189, 192, 195, 196, 197

217

Page 110: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo

o rrabalbo do antropólogo

1\

W!¡Ji

sociología da ciencia 116, 118sociología cornreana 77sociologia de Spencer 78

conhecimento sociológico 76descricáo sociológica 77explicacáo sociológica 81interpretacáo sociológica 121

subjetividade 76,77, 80, 83, 85, 86, 90, 171subjetividade do autor/pesquisador 31

subjetivismo 76, 89, 106sujeito 67

T

teoria 19, 31, 53, 58, 59, 60, 61, 62, 95,108, 135, 150, 154

teoria antropológica 150, 151, 156teoria barthiana 142teoria das espécies sociais 78teoría da experiencia hermenéutica 83teoria desenvolvimenrisra 47teoria funcionalista 47teoria geral da antropologia latino-

americana 120teoria grande 62teoria de médio alcance 61, 62teoria de parentesco 21, 60, 83teoria das relacócs inrerétnicas 135

teoria social 18,21,26,28,31,86,92,93diálogo teÓrico e epistemológico 108meta-teorías 61

tolerancia 189: 195, 196, 197conceito de tolerancia 195, 197intolerancia 195, 196diálogo intolerante 197

tradicáo 23, 61,64,75, 118,120, 129,130,138, 173,178

tradicáo académica 72

tradicáo alerná 131tradicáo cartesiana 86tradicáo científica 85tradicóes clássicas 108tradicóes comunitarias 141

tradicóes filosóficas 138tradicáo francesa 60tradicáo hegeliana 171tradicóes lingüísticas 131tradicáo racionalista 74tradicionalistas 92grandes tradicóes 161pequenas tradicóes 118

Tükúnacultura tükúna 97

parentesco tükúna 97interpreracáo dos Tükúna 97

uuniversalidade 37, 38, 39, 45, 49, 51, 136universidade

cornunidade universitaria 58tradjcáo universitaria 55

vvalor 32, 98, 99, 170, 182, 185

valor agregado 42valor legal 179

valores particularisras e universalistas 185valores párrios 146

valor prejudicial 84idéia-valor 32, 33, 34sistemas de valor 172valorativo 110

veracidade 32, 71, 90, 176, 179, 193, 194verdade 66, 71, 81, 82, 83, 90, 92, 176,

179,193, 194Yerstandnis 81Yerstehen 24, 34, 68, 81, 83, 96, 159Volkerkunde 40

Volkerpsychologie 145, 150Volkgeist 142, 143, 154Volkskunde 40

wWeltanschauung 40

220

L

Page 111: Cardoso de Oliveira Roberto_El Trabajo Del Antropologo