características gerais do neoplatonismo

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Características Gerais do Neoplatonismo O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico para resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo e racionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristóteles conseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo, mediante o monismo estóico, na qual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e julga poder superar, completar, integrar a filosofia mediante a religião, o racionalismo grego mediante o misticismo oriental, proporcionando o racionalismo grego especialmente a forma, e o misticismo oriental o conteúdo. Será acentuado o dualismo platônico entre sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre finito e infinito, entre o mundo e Deus: primeiro, identificando, por um lado, a matéria com o mal, e elevando, por outro lado, o vértice da realidade inteligível ao suprainteligível e, em segundo lugar, elaborando uma moral ascética e mística, em relação com tal metafísica, a qual, todavia, se esforçará por unificar os pólos opostos da realidade, fazendo com que da substância do Absoluto seja gerado todo o universo até a matéria obscura. A filosofia antiga, em seu último período, não tem mais sua capital tradicional em Atenas, cidade grega por excelência. O centro do pensamento então se estabelece em Alexandria, cidade cosmopolita na qual vivem egípcios, judeus, gregos e romanos. É o local privilegiado de todos os intercâmbios, particularmente os intelectuais. A cidade é povoada de pensadores que dispõem de uma admirável biblioteca. Isto nos ajuda a compreender o caráter sincrético, ou sintético, da filosofia neoplatônica. O racionalismo lúcido dos gregos se une - numa síntese muito original - aos fervores do misticismo oriental. Apesar das denegações dos céticos e da propaganda materialista dos epicuristas, nunca os homens foram tão famintos de Deus quanto nessa época. As religiões de salvação, o culto de Mitra, de Ísis, então se desenvolvem. O cristianismo tomará impulso. Preocupações filosóficas e religiosas se unem estreitamente. Os filósofos, além da verdade suprema, buscam a salvação. Os homens piedosos querem fundamentar suas crenças filosoficamente. Tal é a atmosfera que vamos encontrar envolvendo tanto Filon de Alexandria, quanto Plutarco ou Plotino. Filon de Alexandria Filon de Alexandria (nascido por volta de 25 a.C.) é bem representativo dos meios judeus helenizados que só sabiam ler a Bíblia na versão grega denominada dos Setenta (segundo a tradição, a Bíblia hebraica teria sido traduzida para o grego por setenta sábios, em Alexandria). Seus correligionários tinham-no encarregado de uma missão junto ao imperador Calígula (para serem dispensados do culto ao imperador, incompatível com o monoteísmo judaico).

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Page 1: Características Gerais do Neoplatonismo

Características Gerais do Neoplatonismo

O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento

clássico para resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível

no dualismo e racionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético

e profundo de Aristóteles conseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo,

mediante o monismo estóico, na qual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e

julga poder superar, completar, integrar a filosofia mediante a religião, o racionalismo grego

mediante o misticismo oriental, proporcionando o racionalismo grego especialmente a forma, e

o misticismo oriental o conteúdo.

Será acentuado o dualismo platônico entre sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre

finito e infinito, entre o mundo e Deus: primeiro, identificando, por um lado, a matéria com o

mal, e elevando, por outro lado, o vértice da realidade inteligível ao suprainteligível e, em

segundo lugar, elaborando uma moral ascética e mística, em relação com tal metafísica, a qual,

todavia, se esforçará por unificar os pólos opostos da realidade, fazendo com que da

substância do Absoluto seja gerado todo o universo até a matéria obscura.

A filosofia antiga, em seu último período, não tem mais sua capital tradicional em Atenas,

cidade grega por excelência. O centro do pensamento então se estabelece em Alexandria,

cidade cosmopolita na qual vivem egípcios, judeus, gregos e romanos. É o local privilegiado de

todos os intercâmbios, particularmente os intelectuais. A cidade é povoada de pensadores que

dispõem de uma admirável biblioteca.

Isto nos ajuda a compreender o caráter sincrético, ou sintético, da filosofia neoplatônica. O

racionalismo lúcido dos gregos se une - numa síntese muito original - aos fervores do

misticismo oriental. Apesar das denegações dos céticos e da propaganda materialista dos

epicuristas, nunca os homens foram tão famintos de Deus quanto nessa época. As religiões de

salvação, o culto de Mitra, de Ísis, então se desenvolvem. O cristianismo tomará impulso.

Preocupações filosóficas e religiosas se unem estreitamente. Os filósofos, além da verdade

suprema, buscam a salvação. Os homens piedosos querem fundamentar suas crenças

filosoficamente. Tal é a atmosfera que vamos encontrar envolvendo tanto Filon de Alexandria,

quanto Plutarco ou Plotino.

Filon de Alexandria

Filon de Alexandria (nascido por volta de 25 a.C.) é bem representativo dos meios judeus

helenizados que só sabiam ler a Bíblia na versão grega denominada dos Setenta (segundo a

tradição, a Bíblia hebraica teria sido traduzida para o grego por setenta sábios, em Alexandria).

Seus correligionários tinham-no encarregado de uma missão junto ao imperador Calígula (para

serem dispensados do culto ao imperador, incompatível com o monoteísmo judaico).

Filon pretende fazer uma síntese entre os ensinamentos de Moisés, de Platão e de Zenão de

Citium. Para ele, a Bíblia diz a verdade, mas sob forma alegórica. Platão traz a mesma

mensagem sob forma filosófica. Como dirá mais tarde um discípulo de Filon, "Platão é um

Moisés que fala grego". A idéia de Filon de harmonizar a revelação e a razão, a Bíblia e Platão,

estaria fadada a uma grande existência. Num sentido, o grande problema da escolástica

medieval, o da concordância entre razão e fé, é uma herança legada por Filon (é nesse sentido

que Wolfson dirá que a filosofia medieval é inteiramente filoniana ).

Para Filon, o próprio Deus é inefável, inacessível às nossas abordagens. Todavia, podemos

nos aproximar d'Ele por intermédio da renúncia ao mundo e do recolhimento da alma. Já Platão

não houvera dito que é preciso morrer para o sensível, a fim de nascer para o inteligível? Se

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Deus é inacessível, o espírito humano, ao menos, pode participar do Inteligível - ao qual Filon

denomina Logos , Verbo eterno de Deus, seu filho primogênito (protógonos). A concepção que

São João faz do Verbo divino muito deve às fórmulas e às idéias de Filon de Alexandria.

Plutarco de Queronéia

O autor da Vida dos Homens Ilustres também é um pensador religioso. Colocou em particular o

problema do mal e da Providência em seu ensaio sobre as Dilações da Justiça Divina , que

levou Joseph de Maistre, que o admirou, a traduzi-lo.

Para Plutarco, não podemos, à maneira dos estóicos, identificar Deus com o universo. Isto

porque, ao princípio transcendente do Bem se opõe um princípio do mal, que é a lei do nosso

mundo. Essa filosofia dualista provém de Platão e a encontraremos em todos os sistemas

denominados "gnósticos" . A idéia essencial (já presente em Platão e Plutarco) é a de que

somos formados de uma alma, divina por essência, envolvida por uma potência malfazeja num

corpo radicalmente vicioso (a encarnação é uma encarceração) e de que a salvação provém do

verdadeiro conhecimento (gnosis em grego), isto é, do conhecimento dos dois princípios rivais,

das causas que fizeram triunfar o princípio do mal, dos meios que permitiriam a vitória do

princípio do bem.

Plutarco encontra simbolização de sua doutrina nos mitos da salvação comuns em sua época.

Ísis simboliza a matéria e Osíris o Logos. A união dos dois explica a criação no que ela tem de

bom. Mas Tifon, o princípio do mal, introduz a desordem e a perturbação: dispersa os membros

divinos de Osíris que Ísis tenta reunir.

Plutarco aceita tornar-se sacerdote de Apolo Pítico em Delfos; trabalha da melhor maneira

possível para o renascimento do culto délfico. Leva a sério as profecias de Pítia, cuja exegese

ele propõe: á Apolo que, diretamente, ilumina o espírito de Pítia, mas esta exprime a Revelação

segundo sua mentalidade e sua cultura, com os seus hábitos de linguagem... Dezoito séculos

antes do Pe. Lagrange, temos um primeiro esboço da teoria dos gêneros literários e das

mentalidades! É com relação à inspiração sagrada da Pítia que Plutarco formulará sua célebre

expressão: "O corpo é o instrumento da alma e a alma o instrumento de Deus, psyche organon

theou!"

Plotino

Plotino nasceu em Licópolis, no Alto Egito, e, aos 28 anos, dirigiu-se para Alexandria onde

seguiu as lições do platônico Amônio Sacas, que o "converteu" à filosofia (pois, na escola

neoplatônica, assim como entre os estóicos, a filosofia não era simples disciplina teórica, mas

escola de vida espiritual, destinada a transformar inteiramente a alma, e purificá-la, a voltá-la

para as realidades sublimes). Em 243, a fim de conhecer a filosofia dos persas, Plotino

engajou-se no exército do imperador Giordano; sobrevivendo aos seus desastres, estabeleceu-

se definitivamente em Roma, onde abriu uma escola. Aí, uniu às práticas ascéticas ("Tinha

vergonha de estar num corpo", dirá seu discípulo Porfírio a seu respeito) um ensino muito

brilhante. Porfírio anotou e publicou seus cursos. O conjunto compreende cinqüenta e quatro

tratados agrupados em seis Enéadas (isto é, grupos de nove).

A doutrina fundamental de Plotino é a das três hipóstases , isto é, das três substâncias, das

três realidades eternas - embora elas derivem, em termos plotinianos, embora

elas procedam uma das outras.

A. - A realidade suprema, o Deus de Plotino, é o Uno , o qual não é o conhecimento (uma vez

que este supõe a dualidade do sujeito cognoscente e do objeto cognoscível - nem o Ser, mas

antes a fonte inefável de todo ser e de todo pensamento. Ele é todas as coisas e nenhuma

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delas. É aquilo de que promana toda existência, toda vida e todo valor, mas ele próprio é de tal

ordem que nada podemos afirmar a seu respeito, nem a vida, nem a essência; é superior a

tudo e fonte absoluta de tudo.

B. - Por que existem outras hipóstases ? Por que esse Deus plotiniano, por que o Uno não é

único, por que se degrada na multiplicidade? É certo que não está submetido a qualquer

necessidade, não pode desejar coisa alguma - pois, desejar é sentir falta de algo, e ele é

plenitude. Mas o Uno é riqueza infinita, generosidade sublime. A perfeição suprema se difunde

em si mesma, tende a engendrar outros seres que se lhe assemelham, ainda que menores.

Assim como de um fogo ardente as chamas se irradiam, assim ocorre com os seres emanados

do Uno. O primogênito de Deus é o Logos, a Inteligência. Essa Inteligência é o princípio de

toda justiça, de toda virtude e, o que é capital para Plotino, de toda beleza. A Inteligência é que

faz a realidade ter uma forma, na medida em que ela é coerente e harmoniosa, na medida em

que ela é Beleza (nesta segunda hipóstase encontramos algo das Idéias de Platão e do

pensamento que se pensa de Aristóteles).

C. - Da Inteligência procede a Alma, terceira hipóstase (que evoca o tema platônico da alma do

mundo, assim como o deus cósmico dos estóicos). A Alma é a mediação entre a Inteligência,

da qual ela procede, e o mundo sensível, cuja ordem é constituída por ela. As almas individuais

emanam dessa alma universal. A alam humana também é uma parcela do próprio Deus

presente em nós.

Abaixo das três hipóstases, o mundo material representa o último estágio dessa "difusão"

divina, o ponto extremo onde morre a luz; é aqui que encontramos a opacidade da carne, o

peso da matéria, as trevas do mal. Todavia, enquanto o Uno dispersou-se, obscureceu-se,

abismou-se no múltiplo, este último aspira à reconquista da unidade, à luz e ao repouso na

fonte sublime. Ao movimento de procedência corresponde o impulso de conversão pelo qual a

alma, caída no corpo, obscurecida no mal, se assume e tenta se elevar até o Princípio original.

Reservemo-nos, todavia, de ver no plotinismo um dualismo gnóstico. O próprio Plotino

escreveu uma tratado contra as seitas gnósticas. Para ele, não existe um mundo do mal, rival

do mundo do bem. O mal, para Plotino, nada tem de uma substância positiva: "O mal não é

senão o apequenamento da sabedoria e uma diminuição progressiva e contínua do bem". A

alma que dizem prisioneira do mal é apenas uma alma que se ignora, é, como diz Plotino, uma

luz mergulhada na bruma. O mal não é uma substância original, é só o procurado pelo reflexo

do bem que fracamente ainda brilha nele. Nesse sentido, livrar-se do mal, para Plotino, não é,

como para os gnósticos, destruir um universo para dar nascimento a outro, mas antes

encontrar a si mesmo em sua verdade. Não esqueçamos que é a leitura de Plotino que, um dia,

arrancará o jovem Agostinho de suas crenças dualistas abeberadas no maniqueísmo.

Essa filosofia, no entanto, não é absolutamente nova. Já no Timeu de Platão está colocada a

questão de uma gênese do mundo; por outro lado, a conversão plotiniana lembra a dialética

ascendente de Platão. Em ambos os métodos de purificação, a idéia do Belo desempenha

importante papel. Todavia, a obra de Plotino possui uma tônica de misticismo que é nova;

sente-se aí, como até então não se sentira ainda, o desejo e o esforço de uma alma que quer

se encontrar e ao mesmo tempo se perder no Uno universal e inefável. Esse arrebatamento da

alma, esse êxtase foi que impressionou Bergson ao ler as Enéadas, o que explica o fato de o

autor das Duas Fontes Ter colocado Plotino acima de todos os filósofos.

A Gnosiologia

A gnosiologia de Plotino é semelhante à de Platão, pela desvalorização da sensibilidade como

aparência, opinião, com respeito ao pensamento. A sensação representa o primeiro grau de

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conhecimento humano, manifestando-se nela obscuros vestígios da verdade. Segue-se,

superior à sensibilidade, a razão : conhecimento mediato, discursivo, dialético, demonstrativo,

que atinge as idéias, as essências das coisas. A razão é a atividade do espírito, que conhece

enquanto vem iluminado pelo pensamento propriamente dito, o qual é superior ao espírito.

À razão segue-se o pensamento imediato, que é autocontemplação do espírito pensante.

Nesse grau de conhecimento o espírito compreende, ao mesmo tempo, a si e as coisas. É

conhecimento intuitivo, imediato, não discursivo e sucessivo. Também o pensamento - o

intelecto - representa uma atividade do espírito humano participada do pensamento absoluto,

isto é, da Inteligência - noûs . O pensamento absoluto, a inteligência, o noûs , em si mesmo,

está sempre em ato de conhecer, e nunca erra; mas, no espírito humano, o pensamento vem a

ser intermitente e sujeito ao erro, precisamente pelo fato de ser, nele, o conhecimento

participado. O conhecimento humano, finalmente, se completa e atinge a sua perfeição

no êxtase , que é identificação do espírito humano com o espírito absoluto, o Uno , Deus , em

que o espírito humano se torna passivo, inconsciente.

A Metafísica

Como os graus de conhecimento são quatro - sensibilidade, razão, intelecto, êxtase - assim

quatro são os graus do ser : matéria, alma, noûs , Uno. O Uno , Deus - segundo Plotino - é a

raiz de todo ser e de todo conhecer, tudo depende dele. No entanto, transcende toda essência

e todo o conhecimento, de sorte que é inteiramente indeterminado e inefável, e em torno dele

pode-se dizer apenas o que não é - teologia negativa. O universo deriva de Deus, não por

criação consciente e livre, mas por emanação inconsciente e necessária, que procede de Deus

degradando-se até à matéria. Deus certamente transcende o mundo, mas o mundo é da sua

mesma natureza. A primeira emanação é representada pelo noûs , inteligência subsistente,

intuitiva e imutável, que se conhece a si mesma e em si as coisas. A segunda emanação do

Uno é a alma ; ela procede do pensamento, como este procede do Uno. A alma contempla as

idéias - que estão no noûs - e enforma a matéria, segundo o modelo delas. A alma universal, a

alma do mundo, por sua vez se multiplica e especifica nas várias almas individuais, que estão

em escala decrescente do céu até os homens. Também Plotino sustenta que as almas

humanas caíram de uma vida pré-mundana para o cárcere corpóreo; também ensina a

metempsicose e a conversão. Com a alma termina o mundo inteligível, divino, e começa o

mundo sensível, material. A matéria plotiniana, pois, não é apenas potencialidade,

indeterminação, mas também mal, irracionalidade.

A Moral

Depois da descida - a emanação das coisas do Uno - há a subida, a conversão do mundo para

Deus. Efetua-se ela através do homem, microcosmo, compêndio do universo. Nisto consiste

a moral plotiniana, radicalmente ascética: libertação, purificação da matéria, do corpo, do

sentido. Os graus dessa libertação são representados, em linha ascendente, pelas virtudes

éticas, dianoéticas - arte e filosofia - , culminando no êxtase.

A Religião

O neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é imaginado como o

suprainteligível. Por isso, é inefável e pode ser atingido na sua plenitude unicamente mediante

o êxtase, que é uma fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em

que é afirmada uma relação específica com a Divindade, parece abrir-se o caminho para uma

nova filosofia religiosa , para a valorização da religião positiva. E outro caminho parece abrir-se

na doutrina dos intermediários , que estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos em

deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas as divindades das religiões tradicionais.

Page 5: Características Gerais do Neoplatonismo

Leia mais: http://www.mundodosfilosofos.com.br/neoplatonismo.htm#ixzz29SnWwift

neoplatonismo renascentista

Definition:

Cada época vê à sua maneira própria as épocas anteriores, sobretudo as mais antigas, e as acomoda conforme as suas ideias, o seu gosto, o seu temperamento e as suas necessidades. A Idade Média havia tomado de empréstimo à antiguidade uma dialética, uma doutrina de oue se servira para a explicação e a defesa das suas crenças; a Renascença concebeu sob umoutro aspecto esses tempos que retornavam e que a enchiam de deslumbramento. Possuía mais artistas do que teólogos, ou então os seus artistas eram muito superiores aos seus teólogos; demorava-se na contemplação das formas antes de nelas buscar realidades deordem intelectual, e é digno de nota o fato de ter sido um poeta como Petrarca um dos primeiros a saborear aqueles poucos diálogos platônicos que acabavam de ser descobertos e de achar-se personificado por um Leonardo da Vinci o tipo mais significativo dos homens de então. Isto não deve ser esquecido — e o é com demasiada frequência — quando se chega a esta era faustosa.

Devemos registrar ainda que foi da Itália que partiu o movimento, que foi ali que ele se expandiu com maior pujança e não é para causar admiração que, num clima ameno e em meioa uma civilização brilhante, o artista tenha levado a palma ao pensador e a imaginação àmeditação. Isto já se patenteia no incrível sincretismo religioso em que se vê o Olimpo invadir o céu cristão, Júpiter vizinhar com Deus-Pai, Vénus com a Virgem e os heróis com os santos. A interpretação dos filósofos é menos fantasista; com toda facilidade poderá descarrilar e prestar-se a novas acrobacias do espírito.

Foi em 1438 que Aurispa e Traversari trouxeram de Constantinopla um manuscrito no qual estava contida a obra de Platão, e foi Gemisto Pléton quem se tornou o corifeu da filosofia platônica. Georgios Gemistos, cognominado Pléton (1375-1464), viera a Florença para tomarparte no concílio reunido com o fim de pôr termo à cisão que opunha a Igreja do

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Oriente à Igreja do Ocidente. Poi essa ocasião pregou a doutrina do mestre grego diante de um auditório seleto e com tal sucesso que Cosme de Médicis resolveu fundar uma "academia platônica". Num livro sobre A dtferença entre Platão e Aristóteles, revivia Pléton o velho debate em torno dos dois filósofos, aplicando-se sobretudo a combater o último. Um outro tratado seu, o Tratado das leis, um pouco alexandrino derríais, foi condenado pelo patriarca de Constantinopla. É que, efetivamente, éste filósofo faz pensar mais em Plotino do que em Platão. Teve um zeloso discípulo na pessoa de João Argirópulos, professor de grego cm Florença, e adversários decididos em Teodoro de Gaza, que ensinava em Ferrara, e Jorge de Trebízonda, radicado em Veneza.

O Cardeal João Bessárion era inspirado pelos mesmos desígnios que Gemisto Pléton. Como este, trabalhou pela reunião das. duas igrejas, e como ele tratou de Aristóteles e Platão, mas procurando conciliá-los ao invés de opô-los. Entretanto o florentino» Marsílio Ficino grande humanista, se mostrava ardente propagador de um platonismo ainda fortemente inclinado para Plotino nem mesmo para Proclo. Servia-se do Fédon para defender, contra os averroístas, a imortalidade da alma; afastava-se ainda mais de Averróis e não temia aproximar-se de Aristóteles, vendo na alma a forma substancial do corpo. Mas também animava os astros e o próprio mundo, isto é, dotava-os de alma. Na vasta síntese que tentava reconstituir misturava Pitágoras, Zoroastro, o pseudo-Dionísio e outros, mostrando-se tomado por essaespécie de embriaguez oue empolgava então, por um excesso de entusiasmo e uma certa deficiência de método, os cérebros melhor alimentados.

Também os nomes de João Pico della Mirandola de seu sobrinho João Francisco e de seu discípulo João Reuchlin recomendam-se mais pelos prodígios da erudição do que pelas profundezas da especulação. Ainda platônicos, mas abandonando o tom polêmico, insistiam sobre o acordo possível dos dois filósofos gregos rivais e relacionavam com eles Santo Tomás,Avicena, Averróis e Duns Escoto. Isto se aplica principalmente ao primeiro, Pico. Reuchlin, mais antiescolástico, autor de um De arte cabalística publicado em 1517, sublinha as suas tendências particulares e o seu gosto pelo esoterismo. Era tio de Melanchton. Não se

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separou todavia de Roma, embora não a poupasse em suas críticas.

Tal é, em grosso, o neoplatonismo dos livros. Houve um outro que foi mais longe, talvez: o do comum dos espíritos ou de grandes espíritos menos especializados, e o dos costumes, aquele que estabelecia um compromisso fantasista e perigoso entre o paganismo e o cristianismo, aquele também que inspirava aos artistas esse idealismo donde brotaram obras inimitáveis. A célebre e pura ligação de um Miguel Ângelo com Vitória Colonna pode talvez servir comoilustração viva da doutrina. E é, na verdade, a paixão da vida que este período da Renascençarevela ainda aqui. [Truc]