caracterÍsticas do sermÃo de santo antÓnio aos peixes

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CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES 1. Introdução O Pe António Vieira é considerado o maior orador sacro português e domina todo o século XVII pela sua personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes. Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a exploração dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da independência nacional, numa época instável como foi a da Restauração. É marcante, também, o seu anticonvencionalismo e ousadia ao combater a organização social e religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas anti-cristãs denuncia, independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que tais atitudes lhe causaram. 2. Razão do título do sermão de Sto António aos Peixes: O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações destinadas a emendar o comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar que os homens não lhe prestam atenção. Compreensivos e atentos, os peixes levantam as cabeças à superfície das águas, comprovando a força da palavra do santo. António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que exploram os ameríndios e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera, falará aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo pode criticá-los sem temer represálias. 3. Contexto em que foi pregado este sermão e objectivo do mesmo: Foi pregado na cidade brasileira de São Luís do Maranhão, em 13 de Junho de 1654, «três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios (…) E nele tocou todos os pontos de doutrina (posto que perseguida) que mais necessários eram ao bem espiritual e temporal daquela terra, como facilmente se pode entender das mesmas alegorias.» 3.1 Funções do sermão: O sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração, isto é, salvá-los da antropofagia que era a prática comum entre os homens na sociedade), e é também um instrumento de intervenção na vida política do país; tem também uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de santos como exemplos de condutas a imitar. 4. Intencionalidade comunicativa do pregador: O sermão é um texto que pretende: a) ensinar através do recurso a citações bíblicas, dados da História natural, exemplos da sabedoria popular. Tem, portanto, uma função informativa (informa sobre diversos saberes)

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CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

1. Introdução

O Pe António Vieira é considerado o maior orador sacro português e domina todo o século

XVII pela sua personalidade vigorosa que capta a atenção dos ouvintes.

Destaca-se, ainda, pela coragem evidenciada na luta, através das palavras, contra a

exploração dos povos oprimidos e pelo patriotismo evidenciado na luta pela manutenção da

independência nacional, numa época instável como foi a da Restauração.

É marcante, também, o seu anticonvencionalismo e ousadia ao combater a organização

social e religiosa mais poderosa de Portugal – O Tribunal do Santo Ofício – cujas práticas

anti-cristãs denuncia, independentemente dos perigos a que se expôs e do sofrimento que

tais atitudes lhe causaram.

2. Razão do título do sermão de Sto António aos Peixes:

O sermão inspira-se na lenda medieval segundo a qual Santo António, numa das pregações

destinadas a emendar o comportamento dos homens, decide falar aos peixes ao constatar

que os homens não lhe prestam atenção. Compreensivos e atentos, os peixes levantam as

cabeças à superfície das águas, comprovando a força da palavra do santo.

António Vieira imitá-lo-á visto que também não é ouvido pelos colonos do Maranhão que

exploram os ameríndios e os escravos negros; à semelhança do santo que tanto venera,

falará aos “peixes” – alegoria dos colonos. Deste modo pode criticá-los sem temer

represálias.

3. Contexto em que foi pregado este sermão e objectivo do mesmo:

Foi pregado na cidade brasileira de São Luís do Maranhão, em 13 de Junho de 1654, «três

dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos

Índios (…) E nele tocou todos os pontos de doutrina (posto que perseguida) que mais

necessários eram ao bem espiritual e temporal daquela terra, como facilmente se pode

entender das mesmas alegorias.»

3.1 Funções do sermão:

O sermão tem uma missão social (salvar os ameríndios da cobiça e exploração, isto é, salvá-

los da antropofagia que era a prática comum entre os homens na sociedade), e é também

um instrumento de intervenção na vida política do país;

tem também uma missão espiritual: divulgar a palavra de Cristo, o Evangelho e histórias de

santos como exemplos de condutas a imitar.

4. Intencionalidade comunicativa do pregador:

O sermão é um texto que pretende:

a) ensinar através do recurso a citações bíblicas, dados da História natural, exemplos da

sabedoria popular. Tem, portanto, uma função informativa (informa sobre diversos

saberes)

Page 2: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

b) agradar aos ouvintes através do recurso a frases exclamativas, interrogações retóricas,

gradações, apóstrofes, alegorias. Tem uma função emotiva (desperta emoções nos

ouvintes)

c) Persuadir os ouvintes através da argumentação por meio do confronto com a Bíblia,

emprego do modo imperativo, do vocativo e interrogações retóricas. Tem uma função

apelativa(interpela os ouvintes, obrigando-os a reflectir no que é dito)

d) intervir na sociedade portuguesa da sua época.

5. A estrutura do sermão (a organização temática e discursiva do texto)

1ª parte do sermão:

5.1 O conceito predicável como ponto de partida:

o sermão parte de uma afirmação retirada da Bíblia à qual se dá o nome de conceito

predicável. O conceito predicável que inicia este sermão é «Vós sois o sal da terra»,

afirmação retirada por Vieira do Evangelho de São Mateus.

Que pretende dizer o pregador aos seus ouvintes do Maranhão? O sal preserva os alimentos

impedindo-os de se estragarem (era assim que antigamente a carne e o peixe eram

conservados); ora, tal como o sal preserva os alimentos da corrupção, o mesmo faz a palavra

de Cristo a quem a ouve, visto que a palavra divina transmitida pelos pregadores (eles são

o sal) impede que os colonos (a terra) se afastem do caminho do bem. O conceito

predicável é uma verdade intemporal que tem raízes bíblicas e que, por esse facto, dá

credibilidade à pregação já que ninguém se atreve a contestar a palavra de Cristo.

5.2 O Exórdio ou Introdução:

É uma parte importante porque é através dela que o pregador capta a atenção dos ouvintes,

logo, tem que prender e agradar.

O conceito predicável está inserido na 1ª parte do sermão – o Exórdio. Neste, o

pregadorapresenta o tema do sermão: a necessidade dos colonos do Maranhão alterarem

a sua conduta desumana.

Resumidamente: no exórdio Vieira diz que se as palavras do pregador (o sal) não cumprem a

sua função de impedir a corrupção entre os homens, duas questões devem ser analisadas:

será que o defeito está nos pregadores cujas palavras não convencem porque dizem uma

coisa e fazem o contrário do que pregam? A solução para este caso consiste em deitar fora o

sal porque não presta: «é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de

todos.» (cap.I)

Mas também pode acontecer que o pregador ou sal seja bom e a terra ou colonos o

desprezem: «E à terra que não se deixa salgar, que se lhe há-de fazer?» (cap.I)

«Este ponto não resolveu Cristo Nosso Senhor no Evangelho; mas temos a sobre ele

a resolução do nosso grande português  Santo António.»

Assim sendo, Vieira opta por imitar Sto António que deixou os homens e se virou para

melhores ouvintes: os peixes.

Page 3: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

O Exórdio termina com uma invocação à Virgem Maria ou Domina Maris (Senhora do

mar) para obter a inspiração necessária à pregação convincente que deseja.

Fim do cap.I do sermão.

No que respeita à organização do discurso e linguagem figurada, notar alguns

exemplos de:

- encadeamento lógico das ideias;

- paralelismo sintáctico ou estrutural: «ou é porque (…) ou é porque (…) ou é porque (…)»;

- interrogações retóricas que confrontam directamente os ouvintes: «Não é tudo isto

verdade?»

- vocativo: «Vós, diz Cristo, (…)»

- repetição da conjunção coordenativa disjuntiva “ou” que inicia várias frases com estrutura

idêntica.

- linguagem metafórica: «sal», «salgar», «e como erros de entendimento são dificultosos de

arrancar», «começam a ferver as ondas (…)»…

- exclamações retóricas: «Ó maravilhas do Altíssimo!»

- enumeração e gradação crescente: «sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito

verdadeira»

- trocadilhos: «é melhor pregar como eles que pregar deles»

- ironia: «o mar está tão perto que bem me ouvirão»

São ainda de notar as inúmeras afirmações, interrogações e citações bíblicas em latim:

mostrar erudição e dar validade ao discurso.

2ª parte do sermão

5.3 Os capítulos II – V correspondem à 2ª parte do sermão (o desenvolvimento) e neles o

orador desenvolve, através de um discurso fortemente argumentativo, a tese exposta no

cap. I: é necessário reformar os costumes dos colonos do Maranhão.

Assim, se existe o Bem e o Mal, o sermão, a partir do cap.I, será dividido em 2 partes, a

saber:

- louvor das virtudes dos peixes, em geral – cap. II

- louvores aos peixes em particular, no cap. III: serão louvados o Santo Peixe de Tobias, a

Rémora, o Torpedo e o peixe Quatro-Olhos.

- repreensão aos peixes em geral: cap. IV

- repreensão aos peixes em particular – cap. V: são repreendidos os peixes Roncadores,

Pegadores, Voadores e o Polvo.

Para defender as suas ideias, Vieira recorre a uma argumentação cerrada, a uma linguagem

alegórica* de modo a tornar claras e facilmente compreensíveis determinadas realidades

Page 4: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

abstractas (os vícios e as virtudes humanas) e a citações bíblicas e ou de padres famosos/

santos para melhor convencer acerca da pertinência das suas ideias.

* a alegoria é uma figura de estilo através da qual se refere ideias abstractas recorrendo a

exemplos comuns do mundo material; os vários peixes elogiados e repreendidos são

alegorias da maldade e bondade humanas.

5.4 Capítulo II (1ª parte do desenvolvimento) – síntese das ideias:

As 2 qualidades dos peixes mencionadas no início deste capítulo estabelecem um contraste

com 2 defeitos humanos:

- «os peixes ouvem e não falam», donde se depreende que os homens falam demais e não

ouvem os bons conselhos do pregador;

- seguidamente, Vieira informa que quer pregar com a mesma imparcialidade que Santo

António usou nas suas pregações porque essa é a atitude que deve manifestar qualquer

pregador digno desse nome: «Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o

bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele.», isto é, o louvor das

virtudes (humanas) influencia a continuidade das mesmas e a crítica aos vícios (humanos)

leva a que quem os pratica se consciencialize dessa prática errada.

- Vieira justifica, com novos argumentos, o elogio das virtudes em geral dos peixes:

foram os primeiros animais criados por Deus, são os animais mais numerosos e com maiores

dimensões, são ordeiros, tranquilos e ouviram com atenção e devoção a mensagem de Santo

António, contrariamente aos homens que a desprezaram «tão furiosos e obstinados».

Jonas, personagem do Antigo Testamento a quem Deus encarregou de cumprir uma missão,

foi deitado ao mar pelos homens e salvo por uma baleia.

os peixes vivem retirados do convívio com os humanos, facto que revela a sua sensatez pois

são independentes e livres:

«Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles,

Deus vos livre!»

Na conclusão do cap II, Vieira interpela directamente os peixes e diz-lhes:

«Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.» Como eles procedeu Santo

António, cuja biografia é sumariamente narrada na antítese que termina este capítulo: «e

por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais

apartado dos homens.»     

5.5 Capítulo III – síntese das ideias

Neste capítulo, o pregador passa à enumeração dos peixes que serão elogiados e das razões

que levam a esses elogios. Cada peixe representa, alegoricamente, virtudes humanas.

1º peixe elogiado: o peixe de Tobias, personagem do Antigo Testamento que, no momento

em que ia lavar os pés ao rio, é surpreendido por «um grande peixe com a boca aberta

em acção de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado (…)»

Page 5: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

Acontece que este peixe assustador ia, afinal, salvar Tobias com as suas entranhas: «o fel

era bom para salvar da cegueira e o coração para lançar fora os demónios.»

2º peixe elogiado: a rémora «peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no

poder»; a rémora é alegoria da energia e força de vontade que devem ser o “leme”/ a

orientação das acções humanas. A rémora representa todos os que são imunes, como Santo

António, à «fúria das paixões», guiando-se na vida pela racionalidade.

À alegoria da rémora seguem-se outras alegorias: as “naus” soberba, vingança, cobiça e

sensualidade. Estes são vícios humanos decorrentes da falta de racionalidade que

arrastam o homem para comportamentos indevidos.

3º peixe elogiado: «aquele outro peixezinho, a que os latinos chamam torpedo»; este peixe

produz uma descarga eléctrica que passa para a mão do pescador, fazendo-lhe tremer o

braço. Isto quer dizer que a virtude deste peixe contagia o ser humano, sendo essa virtude a

energia para lutar contra a atracção pelo mal. Com esta nova alegoria Vieira critica os

padres pregadores que se interessam apenas por falar sem atender à qualidade das suas

mensagens evidenciando ausência de espírito crítico e descuido relativamente aos fiéis que

“pescam” com os respectivos discursos. Isto nunca acontecia com os sermões de Santo

António visto que aqueles que os ouviam “tremiam” de tanta emoção que, «tremendo,

confessaram seus furtos; (…) todos enfim mudaram de vida e de ofício e se

emendaram.»

4º peixe elogiado: o quatro-olhos -«Tantos instrumentos de vista a um bichinho do

mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que

estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos!»

Tantos olhos num único peixe (2 virados para o céu e 2 virados para baixo) devem-se ao

facto de serem muito perseguidos no mar e no ar, pelas aves marítimas. Deste facto o

pregador conclui que este peixe ensina os homens a olharem para o céu para praticarem a

virtude e a não esquecerem o inferno sempre que olham para a terra.

O capítulo III termina com um elogio a todos os peixes que alimentam os pobres (as solhas);

já os salmões alimentam os ricos. Devido a esta boa acção dos peixes, o pregador deseja que

se reproduzam em abundância: «Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos

confirme a sua benção.»

5.6 capítulo IV – síntese das ideias

Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral porque os peixes grandes comem os

pequenos (alegoricamente é referida a antropofagia social, isto é, os homens poderosos

aniquilam os mais frágeis, os marginalizados da sociedade: os ameríndios e negros do

Brasil). Assim sendo, a terra parece «um açougue» ou matadouro, já que os marginalizados

vão morrendo de cansaço, fome e doença, diante da indiferença dos colonos. Mas os homens

também se comem uns aos outros mesmo dentro da mesma classe social, porque cobiçam os

bens uns dos outros, são interesseiros:

«Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se

hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a

Page 6: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

despedaçá-lo e a comê-lo. Comem-nos os herdeiros, comem-no (…) ainda o pobre

defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.»

Os homens deviam preocupar-se em lutar pela independência da sua terra atacada pelos

piratas ingleses e holandeses em vez de se perderem em lutas por bens menores sem

objectivo que as justifique.

Os peixes comem-se uns aos outros no mar por razões de sobrevivência, mas os seres

humanos aniquilam-se e desprezam-se por amor excessivo ao dinheiro. Esta constatação

leva a uma 2ª repreensão geral aos peixes alegoria dos homens: estes dão a vida por

insignificâncias, «um retalho de pano», mas os bens terrenos são ilusórios e fonte de

discórdias; o costume de se aproveitarem dos bens dos naufragados é condenável: «Pode

haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta?» Deviam seguir o

exemplo de Santo António que, tendo nascido rico, abandonou tudo para imitar Jesus Cristo.

Capítulo V – síntese das ideias

Neste capítulo, Vieira repreende alguns peixes em particular:

«Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós»

Os peixes criticados são alegorias dos piores vícios humanos, ainda que haja uma gradação

nesta enumeração porque o polvo será o “peixe” mais criticado.

1º peixe repreendido:

o roncador – é a alegoria dos homens arrogantes e vaidosos que prometem e não cumprem

porque «o muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela»; «Assim que,

amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas

cousas há nos homens que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o

saber e o poder.»

2º peixe repreendido:

o peixe pegador – é a alegoria da adulação e do parasitismo, vícios da alta nobreza e classe

política, gostam de receber favores e da adulação daqueles que deles dependem. Estes

peixes nadam presos a um «tubarão», membro mais importante na escala social que eles

vão explorando como podem: «porque não parte vice-rei ou governador para as

Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que

cá lhes matem a fome, de que lá |em Portugal continental| não tinham remédio.»

3º peixe repreendido:

o peixe voador – é a alegoria dos sempre insatisfeitos com a vida e ambiciosos porque não

se contentando em nadar no mar, querem voar como os pássaros: «Dizei-me, voadores,

não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? (…) Peixes,

contente-se cada um com o seu elemento. (…) À vista deste exemplo, peixes, tomai

todos na memória esta sentença: quem quer mais do que lhe convém, perde o que

quer e o que tem.»

 4º peixe repreendido:

Page 7: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

o polvo, alegoria da hipocrisia e da traição, os vícios piores entre todos. Contra o polvo

ergueram-se as vozes de dois santos importantes: S. Basílio e Santo Ambrósio porque o

polvo aparenta ser aquilo que não é:

«com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios

estendidos parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a

mesma brandura, a mesma mansidão.»

Percebemos o alcance da crítica ao polvo: como ele, também os monges enganam os fiéis,

passando por homens piedosos quando não passam de homens imorais e interesseiros que

utilizam a palavra de Deus para melhor conseguirem os seus verdadeiros intentos.

Através de anáforas, frases paralelísticas e comparações, Vieira descreve a aparência

enganadora o polvo que, devido ao mimetismo, se disfarça para melhor enganar os

inocentes e que é pior traidor do que foi Judas, o traidor de Cristo.

«Se está nos limos faz-se verde, se está na areia, faz-se branco, se está no lodo, faz-

se pardo (…) E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai

passando desacautelado (…) Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez

tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e

mais o que prende.»

Para além das razões já invocadas contra o polvo, Vieira refere o contraste entre a

“sujidade” moral do polvo e a transparência do elemento natural em que habita – o mar:

«Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e

tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo

céu!»

Vieira intui os argumentos que os peixes/ homens empregariam, se pudessem falar, para

rebater as acusações contra o polvo:

«Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os

vossos mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades,

enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas

traições. (…) Mas ponde os olhos António, vosso pregador, e vereis nele o mais ouro

exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo,

fingimento ou engano.»

Isto é, é verdade que a terra está infestada de traidores e não apenas o mar onde vivem os

peixes acusados, sobretudo o polvo, pior entre os piores. Mas também é verdade que há

habitantes da terra que se destacam pela pureza de coração e amor à verdade, como é o

caso de Santo António a quem Vieira imita e cita frequentemente no seu sermão. Que se há-

de então fazer, já que Santo António é inimitável? Para Vieira, basta que os portugueses do

seu tempo se mantenham fiéis aos valores morais e éticos que outrora existiam em Portugal

e que agora parecem estar arredados das intenções dos colonos do Maranhão:

«E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente

ser português, não era necessário ser santo.»

Page 8: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

O capítulo V termina com uma censura àqueles que roubam os bens dos náufragos que dão

à costa e avisa:

«Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio

atravessado na garganta.»    

              

A Peroração ou Conclusão do sermão – cap. VI

No último capítulo, Vieira quer “consolar” os peixes, eles que para além de terem sido alvo

de duras críticas, também foram excluídos do terceiro livro da Bíblia – O Levítico. Esta

desconsideração feita aos animais marinhos num livro sagrado deve-se a esta razão:

«(…) foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício |entenda-se que se

tratava de uma oferenda a Deus que passava por sacrificar animais, tal como era habitual

nas práticas religiosas ancestrais| e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa

morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares.»

Ora, tal como os peixes que morrem antes de chegar a Deus, também «quantas almas

chegam àquele altar mortas (…) estando em pecado mortal!»

No entanto, os peixes estão em vantagem relativamente aos humanos já que nem chegam a

aproximar-se de Deus, não o podendo ofender; opostamente, os homens chegam a Deus

cheios de pecados, facto que leva o pregador a exclamar:

«Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não

chegar ao sacrifício, que chegar morto.»

Mas as vantagens dos peixes não se resumem apenas ao que foi referido antes: o pregador

também é humano e dotado de razão, contrariamente aos peixes que agem segundo as leis

da natureza. Assim sendo, o pregador inveja «a bruteza» dos peixes porque estes não

ofendem a Deus já que nem pensam nem têm vontade própria.

Vieira termina reconhecendo, numa atitude humilde, as fraquezas inerentes aos seres

humanos que falham perante Deus porque a inteligência destrói a inocência e pureza que os

peixes, seres irracionais, conservam e o livre-arbítrio que falta aos peixes nem sempre o

conduz à prática mais cristã :

«Vós fostes criados por Deus para servir ao homem, e conseguis o fim para que

fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que

me criou.»

Acrescenta a esta confissão da sua indignidade face a Deus, o pedido aos peixes para que

louvem a Deus, criador da vida e a quem tudo se deve.

Introdução

O Pe António Vieira escrevia e pregava o que escrevia em público, nas igrejas, a partir do

púlpito ou lugar destinado na igreja aos pregadores. Para que a sua pregação produzisse o

efeito pretendido pelo orador, tornava-se necessário agradar aos ouvintes e conseguir

prender a atenção destes durante o tempo da pregação. Assim, nenhuma parte dos longos

Page 9: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

discursos era deixada ao acaso mas, pelo contrário, minuciosamente trabalhada

previamente.

Vieira conseguia seduzir os ouvintes à custa dos seus dons oratórios ou capacidade para se

expressar oralmente com convicção, através do recurso a figuras de estilo ou de retórica, do

encadeamento lógico dos raciocínios, das imagens sugeridas através das associações de

vocábulos seleccionados para esse efeito, do recurso a argumentos difíceis de contestar

pelos ouvintes.

Para ter sucesso na pregação e convencer os ouvintes a alterar a mentalidade e modos de

agir, Vieira serve-se de variados recursos; para além da argumentação (consulta a página

seguinte sobre este assunto), emprega largamente citações bíblicas, normalmente em latim,

faz referências à vida de Santos e Doutores da Igreja (Santo António, São Basílio, Santo

Ambrósio, Santo Agostinho, São Mateus), refere passagens conhecidas do Antigo

Testamento (o episódio de Jonas, no cap.I;o episódio do Dilúvio e a arca de Noé, no cap. I; o

episódio de Tobias a quem apareceu o Arcanjo Rafael, no cap. II; passagens da vida do rei

David, cap. II, o episódio vivido por Jesus Cristo no Horto, cap.V; a fuga de Jesus para o

Egipto, cap. V;…); referências a filósofos e pensadores (Aristóteles, p.ex.); referências à

mitologia greco-latina; referências à variedade da fauna marítima e terrestre, a zonas

geográficas, à sabedoria popular, …

O recurso a abundantes referências bíblicas confere seriedade e credibilidade à pregação já

que não há argumentos de peso que se oponham às narrações bíblicas. Como foram escritos

para serem ouvidos, os sermões têm um ritmo facilmente captável pela audição. Para além

disto, os conceitos mais importantes são acentuados através da repetição e as palavras são

escolhidas criteriosamente porque deviam ser, segundo o pregador, “distintas e claras como

estrelas”.

II – Principais recursos estilísticos presentes no Sermão de Santo António aos

Peixes:

1. Alegoria: todo o sermão é alegórico ou uma extensa alegoria, a partir do cap. II (os

peixes são alegorias dos homens e das virtudes e vícios destes).

2. Anáfora e Paralelismo sintáctico ou estrutural

Ex. «Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus

pegos, lá se escondem nas suas grutas» – cap. II

Ex2. «Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às

praças e cruzar as ruas, vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e

sair sem quietação nem sossego?» – cap. IV (nota os verbos antitéticos aqui presentes)

Ex3. «Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se

pardo» – cap. V

3. Apóstrofes

Ex. «Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes (…)» – cap.I

Page 10: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

Ex2. «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens» – cap.I

Ex.3 «Ah moradores do Maranhão, quanto (…)» – cap.II

Ex.4 «Parece-vos isto bem, peixes?» (interrogação retórica + apóstrofe) – cap.IV

4. Antíteses

Ex. «Uma é louvar o bem, outra é repreender o mal» (paral. sintáctico + antítese)

Ex2 «tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens» – cap. II

Ex3 «tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder»

Ex4 «traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras» – cap. V

Ex5 «de manhã e de tarde, de dia e de noite» – cap I

Ex6 «e visse na terra os homens tão furiosos e tão obstinados e no mar os peixes tão quietos

e tão devotos» – cap. II

Ex7 «não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro» . cap. II

Ex8 « ou desta hipocrisia tão santa» – cap. V

5. Anadiplose (repetição de uma palavra nos segmentos de uma enumeração para sugerir

uma reacção em cadeia)

Ex. «De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol,

do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.» – cap. III

Ex2 «E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, (…)» – cap V

5. Enumerações

Ex. «Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-

no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e dos defuntos e ausentes; come-o o

médico (…), come-o o sangrador, (…)» – cap. IV

Ex.2 «(…) que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito

maiores e mais perniciosas traições» – cap. V

Ex 3 «primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal» (enumeração +

gradação) – cap. II

Ex4 «mudou o nome, mudou o hábito e até a si mesmo se mudou» – cap. II

6. Gradações

Ex. «sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira» – cap.I

Ex2. «Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores,

os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças fora de água» (enumeração +

gradação) – cap.I

Ex3 «Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza (…)» –

cap. II

Ex4 «o mar é muito largo, muito fértil, muito abundante» – cap. IV

Page 11: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

Ex5 «de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água» – cap.V

7. Comparações

Ex. «Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão

cerzidos com a pele, que mais parecem remendos» – cap. V

Ex2 «O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios

estendidos parece uma estrela (…)» – cap. V

8. Metáforas

Ex. «e esse fel que tanto vos amarga (…) uma é alumiar e curar as vossas cegueiras, e outra

lançar-vos os demónios fora de casa» – cap. III

Ex2 «Quem dera aos pescadores do nosso elemento (…) Tanto pescar e tão pouco tremer!» –

cap. III

Ex3 «onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes» – cap.

III

Ex4 «porque a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos» – cap.

IV

Ex5 «Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos» – cap IV

Ex6 «porque ambas incham: o saber e o poder» – cap. V

9. Quiasmo

Ex. «mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso e os peixes o uso sem a razão» –

cap. II

10. Interrogações e exclamações retóricas

«Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo?» – cap. I

«Oh grande louvor para os peixes e grande afronta e confusão para os homens!» – cap. II

«Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis

vós?» – cap. III

«Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus

juízos!» – cap. III

«Parece-vos bem isto, peixes?» – cap. IV

11. Repetições

Ex. «Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é

que haveis de olhar» – cap. IV

12. Trocadilhos

Ex. «Dizei-me: o espadarte porque não ronca? (…) Contudo que lhe sucedeu naquela noite?

Tinha roncado e barbateado Pedro (…) O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir

nela.» – cap. V

Page 12: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

13. Adjectivação dupla

«Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida

que escolhestes.» – cap. V

«Vê peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade» – cap. V

«Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno (…)» – cap. V

14. Forte apelo ao sentido da visão

O sentido da visão é, de todos os sentidos, aquele que está mais em evidência:

Ex. «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.» – cap. II

Ex2 «para a cidade é que haveis de olhar» – cap. IV

Ex3 «Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar (…) Morreu algum deles

e vereislogo tantos sobre o miserável» – cap. IV

Ex4 « Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos (…) e olhai quantos o

estão comendo. (…) E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos (…)» –

cap. IV

Ex5 «Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o mundo» – cap. IV

Ex6 «Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo.» – cap. V

Ex7 «Mas ponde os olhos em António, vosso pregador (…)» – cap. V

15. Verbos no modo imperativo

Ex. «Crescei, peixes, crescei e multiplicai (…)» – cap. III

Ex2 «Vede um homem desses (…) e olhai (…)» – cap. IV

16. Deícticos espaciais

«Porque cá, no Maranhão, ainda que se derrame muito sangue (…)» – cap. IV

«E começando aqui, pela nossa costa» – cap V

17. Aforismos

«Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem» – cap. V

18. Ironia

«o mar está tão perto que bem me ouvirão» – cap. I

«Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente.» – cap II

6. Exemplos de argumentação no Sermão de Santo António

6.1 capítulo II

O pregador vai dirigir o seu discurso aos peixes: porquê?

Argumentos a favor da escolha do auditório (peixes):

ouvem e não falam;

Page 13: CARACTERÍSTICAS DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES

O pregador decide elogiar e repreender os peixes. Porquê?

Argumentos a favor desta pregação bipartida (elogia e repreende): Santo António assim

procedeu; o grande doutor da Igreja, S. Basílio, está de acordo; no Evangelho, os

apóstolos de Cristo (pescadores) recolheram os peixes bons e devolveram ao mar os

que não prestavam; assim sendo, «há que louvar e que repreender».

Argumentos a favor dos louvores aos peixes em geral:

Argumento 1: foram os primeiros animais a ser criados;

Arg. 2: os peixes existem em maior número e têm maiores dimensões que os

restantes animais.

Arg.3: Moisés, “cronista da criação”, distinguiu-os exclamando: «Peixes graúdos e

tudo o que se move nas águas bem dizei ao Senhor»

Arg.4: os peixes são obedientes, ordeiros, sossegados e atentos à palavra de Deus

difundida nos sermões de Sto António.

Arg.5: os peixes parecem ter inteligência, ao contrário dos homens que sendo

racionais não o querem mostrar.

Arg.6 Uma baleia salvou Jonas da maldade dos homens que o atiraram ao mar.

Arg.7 O filósofo Aristóteles disse que entre todos os animais eles são os mais

independentes (não se domam nem domesticam)

Arg.8 Os peixes não se deixam inflenciar porque vivem isolados dos outros animais.

Arg.9 Quando se deu o Dilúvio, os peixes salvaram-se todos; Santo Ambrósio disse

que esta salvação se ficou a dever ao facto de habitarem longe dos homens.

Arg.10 Deus decidiu castigar os animais que viviam perto dos homens e poupar os

que viviam longe deles.

Arg.11 Santo António também procedeu como os peixes, afastando-se da família e

indo viver num deserto.