caracter da arquitectura e do lugar

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ARTiTEXTOS06. JULHO 08 107 Amílcar de Gil e Pires Arquitecto, Professor Auxiliar da F.A.U.T.L. Carácter da Arquitectura e do Lugar * [email protected] A noção de “carácter” em Arquitectura tem tido várias interpretações, desde que o termo começou a ser utilizado na segunda metade do Séc. XVIII, tendo sido objecto de reflexão para alguns teóricos e arquitectos que, desde então, deram contributos relevantes para a Teoria da Arquitectura. No seu livro Form, Function and Design, em pleno apogeu do Movimento Moderno, Paul Jacques Grillo refere-se ao carácter como sendo “uma rara qualidade”, quando diz respeito ao Homem ou a um edifício. Qualidade que, ao longo da História da Arquitectura, se manifestou quando um edifício, devido à sua forte “personalidade”, se afirmou e evidenciou em determinado contexto construído. 1 Para ele, o carácter resulta da perfeita materialização arquitectónica dum programa funcional dum tipo de edifício específico, a que chama “Group–character”, e diz respeito a edifícios públicos (escola, hospital, igreja, por exemplo), estruturantes do Lugar urbano. Existem edifícios que se evidenciam relativamente a uma arquitectura de acompanhamento, que sobrepõem determinadas barreiras, pelo seu desenho, que não podem ter uma abordagem tão objectiva como a simples expressão duma eficaz materialização funcional. Estes não só cumprem rigorosamente o seu programa, numa perfeita comunhão entre desenho, forma, materiais e função, mas estão ligados a um sítio como se fossem animais vivos, dando a impressão que a sua existência nesse lugar é intemporal. A sua perfeita relação com o sítio e o programa é de tal forma indiscutível que se torna impossível imaginar esse edifício em outro lugar diferente. A sua pertença ao Lugar é tão natural que quase chegam a atingir o anonimato de qualquer obra da Natureza. 2 Como exemplos existem palácios, igrejas e lugares que o tempo da História elegeu como obras de arte notáveis de excepção, onde a importância dos elementos de detalhe ou o estilo arquitectónico passaram a ter menor relevo, prevalecendo o todo edificado e a construção do Lugar. A primeira leitura destes edifícios faz-se a partir da interpretação das suas fachadas, o que é insuficiente, fazendo sentir a necessidade duma abordagem espacial e temporal do espaço arquitectónico, do seu todo – interior e exterior – uma abordagem de cariz fenomenológico. Werner Szambien, no seu livro Simetria, Gosto, Carácter faz uma profunda reflexão sobre a noção de carácter em Arquitectura, assumindo-o como um dos “objectivos da concepção arquitectónica” 3 , muito para além de um simples princípio estético. * A partir da sua Tese de Doutoramento em Arquitectura: Vilegiatura e Lugar na Arquitectura Portuguesa, defendiada na Faculdade de Arquitectura da UTL em Fevereiro de 2008. 1 Paul Jacques Grillo, Form, Function and Design, Dover Publications, Inc., New York, 1960, p.20. 2 Ibidem, p.20. 3 Werner Szambien, Symetrie, Goût, Caractère – Théorie et Terminologie de L’Architecture À L’Âge Classique 1550-1800, Ed. Picard, Paris, 1986, p.174.

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Page 1: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

ARTiTEXTOS06. JULHO 08

107

Amílcar de Gil e PiresArquitecto, Professor Auxiliar da F.A.U.T.L.

Carácter da Arquitectura e do Lugar *

[email protected]

A noção de “carácter” em Arquitectura tem tido várias interpretações, desde que o

termo começou a ser utilizado na segunda metade do Séc. XVIII, tendo sido objecto

de reflexão para alguns teóricos e arquitectos que, desde então, deram contributos

relevantes para a Teoria da Arquitectura.

No seu livro Form, Function and Design, em pleno apogeu do Movimento Moderno,

Paul Jacques Grillo refere-se ao carácter como sendo “uma rara qualidade”, quando

diz respeito ao Homem ou a um edifício. Qualidade que, ao longo da História da

Arquitectura, se manifestou quando um edifício, devido à sua forte “personalidade”,

se afirmou e evidenciou em determinado contexto construído.1 Para ele, o carácter

resulta da perfeita materialização arquitectónica dum programa funcional dum tipo

de edifício específico, a que chama “Group–character”, e diz respeito a edifícios

públicos (escola, hospital, igreja, por exemplo), estruturantes do Lugar urbano.

Existem edifícios que se evidenciam relativamente a uma arquitectura de

acompanhamento, que sobrepõem determinadas barreiras, pelo seu desenho,

que não podem ter uma abordagem tão objectiva como a simples expressão

duma eficaz materialização funcional. Estes não só cumprem rigorosamente o seu

programa, numa perfeita comunhão entre desenho, forma, materiais e função, mas

estão ligados a um sítio como se fossem animais vivos, dando a impressão que a

sua existência nesse lugar é intemporal.

A sua perfeita relação com o sítio e o programa é de tal forma indiscutível que se

torna impossível imaginar esse edifício em outro lugar diferente. A sua pertença ao

Lugar é tão natural que quase chegam a atingir o anonimato de qualquer obra

da Natureza.2 Como exemplos existem palácios, igrejas e lugares que o tempo

da História elegeu como obras de arte notáveis de excepção, onde a importância

dos elementos de detalhe ou o estilo arquitectónico passaram a ter menor relevo,

prevalecendo o todo edificado e a construção do Lugar.

A primeira leitura destes edifícios faz-se a partir da interpretação das suas fachadas,

o que é insuficiente, fazendo sentir a necessidade duma abordagem espacial

e temporal do espaço arquitectónico, do seu todo – interior e exterior – uma

abordagem de cariz fenomenológico.

Werner Szambien, no seu livro Simetria, Gosto, Carácter faz uma profunda reflexão

sobre a noção de carácter em Arquitectura, assumindo-o como um dos “objectivos

da concepção arquitectónica” 3, muito para além de um simples princípio estético.

* A partir da sua Tese de Doutoramento em Arquitectura:

Vilegiatura e Lugar na Arquitectura Portuguesa, defendiada na

Faculdade de Arquitectura da UTL em Fevereiro de 2008.

1 Paul Jacques Grillo, Form, Function and Design, Dover Publications,

Inc., New York, 1960, p.20.

2 Ibidem, p.20.

3 Werner Szambien, Symetrie, Goût, Caractère – Théorie et

Terminologie de L’Architecture À L’Âge Classique 1550-1800,

Ed. Picard, Paris, 1986, p.174.

Page 2: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

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Carácter da Arquitectura e do Lugar

O termo carácter pode ser, de certa forma, equívoco, em Arquitectura.

Usualmente refere-se à fisionomia humana que, de igual modo, é transposta para

a caracterização do objecto de Arquitectura, assumindo-se o edifício construído

como justificação da interpretação analógica ou mimética da Natureza, ideia

recuperada de períodos importantes da História que, no Séc. XX, volta a ter um

papel relevante no pensamento artístico de então.

A disciplina de Arquitectura, ao ser questionada pelas novas tecnologias postas à

disposição da criação arquitectónica no Séc. XIX, procurou uma nova especificidade

ao desenvolver a doutrina da composição arquitectónica, aparecendo a Teoria do

carácter como um instrumento de interpretação, preferencialmente direccionada

para a arquitectura pública, onde se põe em evidência a especificidade de cada

género arquitectónico num contexto cultural determinado.

O objectivo da composição passava pela expressão de um uso inerente a uma

determinada tipologia arquitectónica, onde os edifícios, pela sua disposição, pela

sua estrutura e pela forma como são decorados, devem indicar, objectivamente, o

seu uso e destino. Ao não o fazerem contrariam a expressão que se pretende que

seja verdadeira e objectiva.

Jacques-François Blondel (1705-1774), nos seus tratados dedicados à análise da

obra de arte, emprega o termo carácter de forma algo ambígua, hesitando entre

a “qualidade da própria obra” ou a sua “qualidade de expressão”. Para ele todas

as diferentes espécies de produções de que dependem a Arquitectura devem ter

impregnados os objectivos particulares a cumprir por cada edifício, todas devem

ter um carácter que determine a sua forma geral e que anuncie “o tipo que o

edifício quer ser”.4

O “carácter distintivo” definido por Blondel ultrapassa a disposição volumétrica

e a escolha das formas em harmonia espacial – atributos da escultura, das Belas

Artes – procurando a própria maneira de ser do edifício, cuja expressão pode até

incorporar vários simbolismos na sua composição ou ornamentação, mas que

emerge logo de inicio na própria concepção. O carácter expresso pelo exterior do

edifício deixará bem claro o seu uso particular e será, também, uma manifestação

de bom gosto.5

Claude-Nicolas Ledoux (1736-1806) e Étienne-Louis Boullée (1728-1799), com

quem frequentou o curso para “arquitecto artista” na “Ecole deux Arts” de Blondel

– professor e teórico de quem herdaram uma identidade cultural e filosófica que

associava o papel do arquitecto na sociedade à criação arquitectónica baseada em

dois factores indissociáveis: a “distribuição” e o “carácter”. O primeiro era associado

a um nível de novas exigências funcionais e o segundo estava relacionado com os

conceitos de “contraste” e “variedade”, que dão continuidade a uma tradição de

pensamento clássico que se enquadra na “estética sensualista” do Séc. XVIII.6

4 Ibidem, p.179.

5 Ibidem, p.180.

6 Anthony Vidler, Ledoux, Ediciones Akal, S.A., Madrid, 1994, p.15.

Page 3: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

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O conceito de carácter, considerado por Blondel um dos níveis ou mesmo o nível

mais importante para a criação da “boa arquitectura”, quer se tratasse de edifícios

públicos ou privados, condicionados mais pela sua expressão simbólica ou pela

sua função utilitária, acaba por ser expresso quer na prática profissional como no

discurso arquitectónico duma nova geração de arquitectos que integra Ledoux.

Estes subscrevem e desenvolvem a teoria de Blondel de que tudo o que decorre da

produção arquitectónica tem que ter em conta o destino particular de cada edifício,

e todos os edifícios devem ter o seu próprio carácter, determinante da sua forma

geral, devendo esta ser objectivamente indicativa da sua própria identidade.7

O termo carácter está directamente relacionado com a teoria geral da

caracterização, comum a disciplinas como a Literatura, a Linguística e a História

Natural, que se torna corrente no meio académico do ensino da Arquitectura da

segunda metade do Séc. XVIII com Blondel, com a designação de caracterização.

Esta acaba por ser a solução para contrariar a afirmação progressiva dos gostos

individuais ou colectivos que substituem gradualmente as normas que até ali

ainda poderiam ser consideradas inquestionáveis ou absolutas e que, no conjunto

de novas necessidades institucionais ou sociais, obrigavam à criação de novas

soluções funcionais, de novos tipos arquitectónicos.

“Tanto na arquitectura como no terreno da ciência, o sentido da caracterização

dividia-se entre o estudo de uma expressão adequada – os signos do

carácter – e uma análise da organização ou da distribuição – a constituição

do carácter. Entre ambos, para repetir os termos de Michel Foucault,

‘uma teoria da marca e uma teoria do organismo’. A maior ambição de

Ledoux foi sempre superar esta divisão pretendidamente irremediável entre

‘necessidade’ e ‘representação’, com o fim de que o edifício se converterá,

em suma, no signo perfeitamente transparente do seu próprio destino.” 8

A expressão do carácter próprio a cada edifício passou, então, a ser encarado como

um problema de coerência ou mesmo de verdade em Arquitectura. A discussão

dos critérios fundamentais da Arquitectura começa a ser feita a partir de factores

relevantes como a distribuição – relacionada com a correcta adaptação funcional

–, a integridade funcional – associada aos processos construtivos emergentes – e

a linguagem das formas – que actuam como expressão inequívocas de carácter,

dando origem à muito discutida linguagem dos caracteres criada por Ledoux como

a forma de alcançar e de revelar a nobreza da Arquitectura, independentemente

da sua função ou importância simbólica.

A teoria do carácter é também desenvolvida pelo arquitecto parisiense

contemporâneo de Ledoux, Le Camus de Mézierères (1721-1789), que faz

uma abordagem à obra arquitectónica como um todo. “O carácter não reside

somente no exterior dos edifícios públicos e privados mas, em primeiro lugar, se

se considerar o espaço definido pelo autor, também o seu interior”.9 Entende este

teórico e autor de obras importantes em París (segunda metade do Séc. XVIII)

7 Ibidem.

8 Anthony Vidler, Op. Cit., p.16.

9 Werner Szambien, Op. Cit., p181.

Page 4: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

110

que a vontade de caracterizar o espaço interior deverá ser sistematizada, que as

proporções e o seu jogo de relações devem ser abrangentes ao todo da obra

construída e que a percepção do seu espaço envolvente, da Natureza em que se

integra, não poderão ser tratados de modo independente ou indiferenciado.

A ordem inerente à organização racional do espaço interior revela uma lógica

imperturbável, onde o sistema de caracterização próprio a um determinado

programa, com origem numa concepção definida, faz revelar o carácter no

interior. Cada elemento independente e participante na organização do espaço

interior revela, também, o seu próprio carácter e faz associar a percepção e a

vivência do espaço ao prazer do seu domínio sensorial e intelectual. O jogo

de proporções criadas pela arquitectura interfere nas sensações inerentes à

apropriação dos diferentes espaços, num usufruto progressivo e por vezes

ritual, que resulta da utilização dos espaços – quase num domínio ideal –, onde

vestíbulos e antecâmaras se multiplicam, contribuindo para a satisfação dos

prazeres sociais: sala de comer, salão, bilhar, galeria, etc.10

O carácter está, no interior dos edifícios, tão omnipresente como nas sensações

inerentes à percepção espacial, e pode manifestar-se de modo muito relevante na

própria escolha e colocação do mobiliário e das obras de arte que compõem e

organizam o seu espaço.

A luz tem, também, um papel determinante na definição do carácter interior,

sendo para Mézierères essencialmente o meio que põe em evidência as massas e

volumetrias da Arquitectura.

“Um edifício muito iluminado, bem arranjado, é, acima de tudo o resto,

perfeitamente tratado, devidamente agradável e risonho. Menos aberto ele

oferece um carácter sério. A luz, quanto mais intersectada, fá-lo misterioso

ou triste.”11

Devido às utilizações diferenciadas do termo carácter e às várias interpretações

possíveis no final do Séc. XVIII, Quatremère de Quincy (1755-1849) fez a

distinção clara entre os “caracteres da arquitectura histórica” e os da “Arquitectura

contemporânea”, entre o “carácter da ideia expressa” e o “carácter do género do

edifício”, entre os “caracteres da arquitectura pública” e os da “Arte dos jardins”,

introduzindo, assim, uma hierarquia que permitia formular os objectivos da

Arquitectura do seu tempo.12

A noção de carácter aparece, então, classificada em diferentes categorias: “carácter

distintivo”; “carácter essencial” e “carácter relativo” (“ideal” e “imitativo”).13

O “carácter distintivo” (ou de originalidade) encontra-se na arquitectura que

expressa uma qualidade dominante, real e objectiva, de forma visível; que

denota afirmativamente uma fisionomia resultante de um hábito ou hábitos gerais

provenientes dum carácter cultural de um povo específico.

10 Ibidem, p.181.

11 Ibidem, p.183.

12 Ibidem, p.184.

13 Ibidem, p.185.

Carácter da Arquitectura e do Lugar

Page 5: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

ARTiTEXTOS06. JULHO 08

111

O “carácter essencial” da arquitectura é menos comum e é sinónimo de força, de

grandeza e domínio. É o carácter por excelência e o mais directamente ligado à

História da Arquitectura e à distinção entre civilizações. A sua conotação com a

ordem dórica, devido à expressão de solidez, por vezes superior à solidez real, e

ao emprego de formas geométricas e regulares, que produzem uma impressão de

força e grandeza, permitem relevar a Arquitectura Grega Clássica como detentora

de “maior força” relativamente à arquitectura Romana e associar à Arquitectura

do Movimento Moderno uma perda ou mesmo falta de carácter.14

O “carácter relativo” está mais relacionado com a prática de concepção particular

e objectiva de um edifício. Poderá partir da imitação ou interpretação de um

modelo de inspiração e expressa-se na arte de caracterizar, de tornar sensível,

pelas formas geométricas, as qualidades intelectuais e as ideias que se podem

exprimir no edifício. Pode dar a conhecer as partes construtivas do edifício, a sua

natureza e o seu destino, e as suas propriedades espaciais associadas a um uso

particular. É fortemente expresso o talento ou génio de quem o concebe, como

obra artística que se oferece a uma leitura interpretativa como um todo completo,

em equilíbrio ideal.

O “carácter relativo” subdivide-se em dois géneros: o ideal e o imitativo. O

“carácter ideal” está mais direccionado para a poética da arquitectura, onde

as regras são subalternizadas relativamente à formação simbólica do objecto

criado. Como exemplo refira-se que, na Grécia Antiga, a arquitectura procurava

materializar a variedade dos caracteres particulares das suas divindades nos

templos construídos. O “carácter imitativo” está directamente relacionado com

regras provenientes de modelos predefinidos e com o rigoroso conhecimento da

natureza do edifício, do seu destino.

A expressão do carácter próprio dos edifícios parte, indiscutivelmente, do

conhecimento das qualidades particulares introduzidas no acto da sua criação,

e cujo resultado estético e arquitectónico só é totalmente entendido pelo uso e

fruição do seu espaço – interior e envolvente.

A “Teoria do Carácter” parte de três pressupostos de percepção: o objecto natural

que possui um determinado carácter e produz uma determinada sensação em

quem o apreende; o objecto arquitectónico que possui o seu próprio carácter e

produz no Homem uma sensação, e a inspiração do arquitecto nos caracteres da

Natureza, com o pressuposto de dotar as suas criações dum carácter análogo que

desperte as mesmas sensações interpretadas do meio natural.15

Boullée foi um dos apologistas de que se deve evitar, de forma consciente, atribuir

o mesmo carácter a mais do que um tipo de edifício. Nesse sentido, a programas

diferentes seriam associados caracteres diferentes: um templo expressava

grandeza; um teatro, delicadeza; um palácio, magnificência; um palácio da

justiça, magestosidade; e um monumento funerário, tristeza.16

14 Werner Szambien, Op. Cit., p.185.

15 Ibidem, p.193.

16 Ibidem, p.196.

Page 6: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

112

Também para Boullée a “teoria do carácter” aplicava-se, essencialmente, à

arquitectura pública. A sua visão poética da Arquitectura posicionava o carácter no

seio de uma estética da percepção, quando esta assumia a tendência de aceitação

dos princípios de imitação analógica da Natureza e reconhecia a ligação objectiva

entre os determinados caracteres e os tipos de edifícios públicos específicos.

Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834) opunha-se frontalmente a estes

princípios, tendo protagonizado uma Arquitectura utilitária onde o carácter

passa a ter um efeito secundário na observação dos verdadeiros princípios da

Arquitectura. Para Durand, a procura de produção de carácter em arquitectura é

um falso problema. Nesse sentido afirma: “se eu disponho um edifício de maneira

convincente ao uso a que este se destina, não se diferenciará ele de um outro

edifício destinado a outro uso? Não terá ele, naturalmente um carácter, o seu

próprio carácter?”17

Em Arquitectura é, ainda, utilizado o termo carácter na procura duma sistemática

de qualidades expressivas, objectivas a determinado tipo de edifícios, a uma

situação particular – Lugar – e a um destino atribuído – programa funcional.

Os arquitectos modernistas tinham muitas dúvidas quanto aos princípios de

composição propostos pelos académicos no início do Séc. XX. Estes princípios, ao

não estarem directamente relacionados com a estrutura e a função arquitectónica,

não poderiam ser aceites na concepção de uma arquitectura autêntica que

deveria, antes, ser fundada por objectivos de ordem racionalista.

A composição era conotada com o privilégio excessivo da aparência formal

dos edifícios, de evidente e perigosa subjectividade. Consideravam que havia

uma preocupação exagerada com os problemas formais da Arquitectura, que

teriam que ser substituídos, no contexto cultural em que se vivia, por uma maior

dedicação aos problemas de construção.

Os autores dos livros de composição que circulavam em Inglaterra e nos Estados

Unidos entre 1900 e 1930, apesar de reconhecerem a importância das disciplinas

funcionais e estruturais na Arquitectura, procuravam, em primeiro lugar, atribuir ao

edifício um verdadeiro significado que seria emergente duma estrutura organizada

segundo os princípios da composição arquitectónica, tendo um conteúdo

expressivo e simbólico que era descrito como carácter.18 Para eles, o êxito de

um edifício adviria de uma boa composição e de um carácter apropriado, mas

admitiam que a primeira poderia não dar origem, obrigatoriamente, ao segundo

e vice-versa. Poderão mesmo existir edifícios com uma muito boa composição

mas com uma expressão funcional desadequada – ex: fábrica com aparência de

biblioteca – o que poderia levar o seu observador ou usufruidor a um completo

engano de interpretação e reconhecimento. Para estes, só o esforço consciente do

arquitecto é que conseguiria atribuir em simultâneo o carácter apropriado e uma

boa concepção com base nos princípios de composição, o que daria, obviamente,

origem a uma obra arquitectónica de destaque.

17 Ibidem, p.198.

18 Colin Rowe, Manierismo y Arquitectura Moderna y Otros Ensayos, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 1999, p.65.

Carácter da Arquitectura e do Lugar

Page 7: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

ARTiTEXTOS06. JULHO 08

113

A expressão de carácter na Arquitectura não foi um dos atributos mais procurados

para a definição do objecto arquitectónico ao longo da História da Arquitectura.

O carácter foi definido muito raramente mas, em geral, referia-se em simultâneo

à impressão de individualidade artística e à expressão funcional ou simbólica da

finalidade a que o edifício estaria destinado.

No campo estrito da Arquitectura, sempre se admitiu que qualquer edifício tem

como origem uma composição, quer esta seja resultante de um procedimento

mais ou menos correcto, e é evidente que qualquer edifício tem carácter, quer

este seja intencional ou não. A expressão de carácter, apesar dos diferentes

sentidos dados à palavra composição, representou um interesse comum a todos

os arquitectos, nas diferentes épocas históricas.

“Tal como carácter, também o termo composição só se tornou frequente

a partir do final do Séc. XVIII. A atribuição de carácter à composição

arquitectónica não era um objectivo expresso dos tratadistas. Para eles,

o desenho de concepção abordava o todo arquitectónico, de acordo

com o sentido dado por Vitrúvio, um processo que incluía ‘invenção’,

‘compartimentação’, ‘distribuição’ e ‘ordenamento’. Nesta época, o que

era entendido por ‘artes da composição’ era o que os críticos anteriores

costumavam descrever – com um sentido talvez distinto – como ‘artes do

desenho’.” 19

Quando começou a aparecer o termo composição, no discurso sobre Arquitectura

em Inglaterra, estava já implícita a noção de carácter, como é o caso da definição

de Robert Morris (1734-1806) que definia a composição em Arquitectura como

arte útil e ampla, baseada na “beleza”, “proporção” e “harmonia”, que também

dividia a Arquitectura em três classes – “grave; jovial; encantadora”. No princípio

do Séc. XIX, Edmund Aikin (1780-1820) trata o “contraste” e a “variedade” como

“essência da beleza arquitectónica”, como qualidades que conferem carácter e

expressão a qualquer composição, libertando-a da “monotonia da arquitectura

comum”. 20

A concepção de carácter tem, também, que objectivar uma relação com a

paisagem e mostrar uma identidade intencional. A palavra carácter pode ter

várias conotações, ao ser empregue de um modo um tanto indiferente, quando

faz referência a uma classe tipológica ou um estilo arquitectónico – ex: edifício

de “carácter variado ou divertido”, ou edifício construído segundo o “carácter

gótico”.21

“Em Arquitectura, como em fisionomia, o carácter deve-se a certas

características distintivas – um edifício é destinguido imediatamente de

outros do mesmo tipo. Pode existir uma grande quantidade de edifícios,

como existe uma grande quantidade de seres que não mostram nenhum

carácter peculiar. Por outro lado, pode haver edifícios que mostram, graças

à exaltação das suas proporções gerais e à justa distribuição de todas as

19 Ibidem, p.66.

20 Ibidem.

21 Ibidem.

Page 8: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

114

partes, algo semelhante a nobreza de carácter. O que demonstra que o

carácter de um edifício deve ser evidente e notável, e deve ser expresso mais

numa só característica do que em várias.” 22

O carácter passou a ser associado ao belo em Arquitectura, evidenciando os

edifícios, de forma clara e indiscutível, o uso a que eram destinados. Os tipos

arquitectónicos mais comuns eram, correntemente, associados a estilos diferentes

que caracterizavam a sua aparência externa.

As variantes que resultaram da exploração formal de um único tipo arquitectónico,

comum a diferentes programas funcionais, metodologia corrente na tradição

académica, passou a considerar uma abordagem significativa e personalizada,

específica e localizada a um determinado contexto cultural.

A sobreposição do carácter, como valor arquitectónico dominante, à importância,

antes indiscutível, do estilo arquitectónico, permitia apropriar os diferentes estilos

consoante os propósitos predefinidos para o edifício a projectar. Mesmo os temas

vernáculos, até aqui sempre subvalorizados, adquiriam legitimidade arquitectónica

quando faziam parte de uma composição formalmente coerente.

Apesar da sua conotação com um certo empirismo metodológico, a obrigatorieda-

de de atribuir determinado carácter a um edifício garantia uma certa racionalidade

conceptual que se servia das heranças da História da Arquitectura e da Natureza

como materiais para a construção do objecto arquitectónico funcional e significativo.

O carácter afirma-se como expressão de uma cultura específica, de forma

intencional, em importantes intervenções arquitectónicas de meados do Séc. XIX.

Este era o produto de circunstancias particulares que surgia naturalmente, como

evidência de uma interacção genuína entre as condições naturais, um certo ambiente

cultural e o indivíduo, quer se tratasse de quem concebia arquitectura ou de quem

a usufruía. O carácter deveria ser revelado pela arquitectura e ser extraído através

da sua interpretação, mesmo que de modo implícito. Este perde a conotação de

valor objectivo e empírico e passa a afirmar-se como um conceito novo enquanto

forma de expressão e de revelação de valor da arquitectura, conceito teoricamente

consolidado que punha totalmente de parte a antiga ideia de característico.

O carácter, directamente ligado à técnica e à representação, passa a interagir com o

carácter como algo intrínseco também ao estilo. Enquanto, por um lado, era exigido

que se mostrassem as qualidades inerentes à substância da arquitectura do edifício,

por outro lado assumia uma tradição que se mantinha presente na sua expressão

formal e simbólica herdadas de uma cultura arquitectónica claramente afirmada.

Nos finais do Séc. XIX, o carácter é, assumidamente, um dos objectivos da com-

posição arquitectónica que associa os atributos poéticos desta a uma objectividade

metodológica progressivamente mais racionalizada, expressando-se como signo

exterior do comportamento racional identificativo das finalidades funcionais e

espaciais da arquitectura. 22 Ibidem, p.70.

Carácter da Arquitectura e do Lugar

Page 9: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

ARTiTEXTOS06. JULHO 08

115

O termo composição não teve tantas e tão variadas interpretações como as dadas

ao conceito de carácter. A tendência progressiva para uma arquitectura que

aspirasse à abstracção – Séc. XX –, que defendesse o anonimato, que procurasse

o que é típico, a norma, não o acidental mas sim a forma definida, deixa de

necessitar ter como premissa a “exibição de carácter”. A preferência de soluções

impessoais, neutras e estandardizadas do Movimento Moderno tornaram-se

totalmente incompatíveis com uma ideia de “expressão característica”.23

Quando recentemente se afirmava que a arquitectura do Movimento Moderno

tinha um problema de carácter, contrariamente ao que era evidente na Antiguidade

Clássica, deveria reconhecer-se que, nas questões iniciadas pela implementação

do conceito de carácter, questões praticamente irresolúveis para o Séc. XIX, se

encontram as origens de muitas reflexões e contributos teóricos importantes sobre

o modo de conceber e interpretar a arquitectura, sendo esta entendida como

“Lugar” do habitar.

O conceito de carácter está directamente relacionado com o conceito de Lugar

por Christian Norberg-Schulz (1926-2000) em Espaço, Existência e Arquitectura

e em Génius Loci.

Para Norberg-Schulz, a abordagem da Arquitectura, de certa forma analítica

e científica, do Movimento Moderno, leva à perda do carácter concreto da

envolvente do edifício e das qualidades de identificação do Homem com o

Lugar. Para o contrariar, ele cria o conceito de “Espaço Existencial”, um termo

que compreende as relações básicas entre o Homem e o seu meio envolvente

e que é composto por dois termos complementares – “Espaço e Carácter”,

directamente relacionados com as funções básicas psíquicas de “orientação” e

“identificação”.24

“Desde os tempos remotos tem-se reconhecido que diferentes lugares têm

diferente carácter. Tal diferença de carácter é muitas vezes tão forte que é

suficiente para determinar as propriedades básicas das imagens exteriores

da maioria das pessoas presentes, fazendo-as sentir o que experimentam

e que pertencem ao mesmo Lugar. [...] o espaço existencial não pode ser

compreendido somente por causa das necessidades do Homem, mas antes

unicamente como resultado da sua interacção e influência reciproca com um

ambiente que o rodeia, que tem de compreender e aceitar.“ 25

A necessidade de compreensão qualitativa e fenomenológica da Arquitectura,

depois de um período marcado pela teoria abstracta e científica, fazem-no

desenvolver este discurso entendido como “dimensão existencial”. Esta não é

determinada directamente pelas condições sócio-económicas do Lugar que,

no entanto, podem facilitar ou criar o suporte para a realização de certas

estruturas existenciais, ao oferecerem o espaço para a vida “ter lugar”, mas sem

determinarem, obrigatoriamente, os seus significados existenciais. Significados que

têm raízes profundas, determinadas por estruturas do nosso “estar-no-Mundo”.26

23 Ibidem, p.81.

24 Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura,

Ed. Blume, Barcelona, 1975, p.33.

25 Ibidem.

26 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of

Architecture, Ed. Rizzoli, New York, 1984, p.6.

Page 10: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

116

27 Martin Heidegger, Construir, Habitar, Pensar [Bauen, Wohnen, Denken], In Martin Heidegger, Vortrage und Aufsatze. Pfullingen: Gunther Neske, 1954. (Tradução do original alemão por Carlos Botelho)

28 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture,Op. Cit., p.5.

29 Ibidem, p.19.

30 Ibidem, p.6.

Carácter da Arquitectura e do Lugar

Norberg-Schulz recorre-se do conceito de habitar de Martin Heidegger (1889-

1976), dando-lhe o sentido de apoio existencial como propósito fundamental da

Arquitectura.27

“O Homem habita quando se consegue orientar ‘em’ e ‘identificar-se’ a si

próprio com o meio envolvente ou, quando experimenta a envolvente como

significativa”. 28

O habitar é entendido muito para além da noção primitiva de abrigo e ocorre

em espaços com carácter distintivo (original), em lugares existencialmente

identificativos. A identidade do Homem depende directamente da sua pertença a

um Lugar e este é, por sua vez, a manifestação concreta do habitar do Homem.

“A palavra habitar indica uma relação total Homem-Lugar. Esta implica

a distinção entre espaço e carácter. Quando o Homem habita, ele é

simultaneamente localizado no espaço e exposto a um certo carácer

ambiental. As duas funções psicológicas envolvidas são a ‘orientação’ e a

‘identificação’. Para ganhar a sua identidade existencial este tem que ser

capaz de se orientar, tem que saber onde está, mas também tem que se

identificar com o ambiente, ou seja, tem que saber como está num certo

Lugar.” 29

Apesar da importância significativa da orientação, é a identificação com o

ambiente que dá origem ao habitar. Estes dois conceitos são, de certo modo,

independentes mas pressupõem uma relação de complementaridade inerente à

apropriação e, até, à criação do Lugar. Podemos orientarmo-nos num espaço

habitado sem termos que nos identificar com ele e identificarmo-nos com o Lugar

sem termos o completo conhecimento da sua estrutura. As duas vivências em

simultâneo permitem-nos o reconhecimento e interpretação do espaço e carácter

que fazem o Lugar habitado. Ao identificarmo-nos com o Lugar assumimos,

perante ele, um certo sentido de pertença e de identidade reforçados pela

compreensão que temos do espaço para além deste, que nos é dado pelo sentido

imprescindível da orientação.

Qualquer tipo de acontecimento refere-se a uma determinada localização, o que

faz do Lugar uma parte integral da existência humana. O Lugar, mais do que

uma localização abstracta, é entendido por Norberg-Schulz como uma totalidade

composta por coisas concretas, com substância natural, forma, textura e cor.

Juntas estas determinam o “carácter ambiental”, o carácter do meio envolvente

que é a essência do lugar.30

Um Lugar pressupõe sempre a afirmação de um determinado carácter ou atmos-

fera. Como fenómeno qualitativo e total, tem uma abrangência que vai muito

para além das suas relações espaciais. Estas, apesar de muito relevantes, não são

suficientes para a caracterização e interpretação da natureza concreta do Lugar.

Page 11: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

ARTiTEXTOS06. JULHO 08

117

O carácter é determinado pela identidade própria dos objectos que constituem

o Lugar, pelos fenómenos concretos que condicionam o habitar e a identificação

do Homem com um ambiente espacial determinado. A compreensão do Genius

Loci ou espírito do lugar, conceito herdado da Antiguidade, permite-nos

reconhecer a realidade concreta a enfrentar e, através da Arquitectura, cumprir

a sua principal tarefa de criar as condições ideais para habitar através da

fundação de lugares significativos.

“Genius Loci é um conceito romano. De acordo com as crenças romanas

qualquer ser ‘independente’ tem o seu ‘genius’, o seu espírito guardião. Este

espírito dá vida às pessoas e aos lugares, acompanha-os do nascimento até

à morte, e determina o seu carácter ou essência. Mesmo os deuses têm o seu

‘genius’, um facto que ilustra a natureza fundamental do conceito. O ‘genius’

denota o que um objecto é ou o que este quer ser - usando um termo de

Luis Kahn.” 31

Um Lugar estrutura-se a partir do meio envolvente, duma paisagem e duma

ocupação humanizada. Pode subdividir-se, segundo Norberg-Schulz, em duas

categorias – espaço e carácter. O espaço revela a estruturação tridimensional

dos elementos que constituem o Lugar e o carácter denota as suas propriedades

mais compreensíveis. Estas duas categorias associadas revelam-nos o espaço

vivenciado, o espaço habitado e identificado com um colectivo humano.

“A categoria de ‘espaço’ e ‘carácter´, baseadas na função psicológica

fundamental de ‘orientaçao’ e ‘identificação’, introduzida por C. Norberg-

-Schulz para descrever a ‘estrutura do Lugar’, pode gerar maus entendimentos,

justificando o ‘característico’ e o fácil ‘ambientamento’. De facto, quando se

fala de carácter referimo-nos ao ‘saber local’ mais do que às funções do

edifício”. 32

Podem existir organizações espaciais semelhantes mas que possuem caracteres

muito diferentes, revelados pelo particular tratamento dos elementos definidores

do espaço criado pelo Homem, do seu limite, e do seu ambiente natural

envolvente. A própria organização espacial do Lugar põe certos limites à sua

caracterização, o que torna os dois conceitos interdependentes. O espaço, para

além da sua conotação com uma geometria tridimensional é, aqui, também,

entendido como campo perceptivo, os dois são definidores daquele que podemos

chamar, segundo Norberg-Schulz, “espaço concreto”33.

Carácter é, ao mesmo tempo, um conceito mais geral e mais concreto do que

espaço. Ele denota uma compreensiva atmosfera geral, a forma concreta e a

substância dos elementos de definição espacial.34 Qualquer tipo de presença

humana está ligada a um carácter particular que resulta, também, das exigências

específicas das diferentes acções inerentes ao acto de apropriação no Lugar.

31 Ibidem, p.18.

32 Domizia Mandolasi, lL Luogo e la Cultura del Luogo Nell’Arquitectura

Contemporánea, IL Luogo Come Principio di Ligittimazione del

Progetto, Gangemi Editore, Roma, 1988, p.24.

33 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a

Phenomenology of Architecture, Op. Cit., p.11.

34 Ibidem, p.13.

Page 12: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

118

Como exemplos de caracteres particulares associados directamente a tipologias

arquitectónicas podemos referir os seguintes:

1. Habitação – protectora;

2. Espaço desportivo – festivo;

3. Igreja – solene;

4. Escritório – funcional.

Num espaço interior o carácter está implícito no sentido de protecção e conforto

dado pela luz e ambiente controlados, em contraste com o exterior agressivo e

desconfortável. Ao interior é associada a existência de condições para a vida ter

lugar.

O ambiente urbano característico e particular a uma qualquer cidade histórica

revela o seu próprio carácter, com o qual se identificam os seus habitantes.

Qualquer paisagem também possui o seu carácter, de tipo particularmente

original, o que é relevante na afirmação do carácter de qualquer Lugar.

“O Genuis Loci demonstrou, em muitos casos, ser bastante forte para

predominar acima dos ciclos das mudanças políticas, sociais e culturais. Tal

resulta, por exemplo, para cidades como Roma, Estambul, París, Praga e

Moscovo. Certamente, a ‘verdadeira grande cidade’ caracteriza-se por um

Genius Loci especialmente pronunciado.” 35

O carácter do Lugar está, também, directamente relacionado com o tempo e

expressa-se de forma diferente com a mudança das estações, com o passar do dia,

com o clima e, associada a estes factores, com as condições diferentes da luz.

A luz não é só o mais genérico fenómeno natural mas, também, o menos

constante. As condições de luz mudam com o decorrer do dia – à noite o escuro

preenche a totalidade do espaço e o mesmo é feito pela luz de dia. Esta está

intimamente ligada aos ritmos temporais da Natureza.

As estações mudam a aparência dos lugares, mais nuns sítios do que noutros, de

forma diferenciada com as várias regiões onde se inserem. Os ritmos temporais

não mudam os elementos básicos que constituem um Lugar natural mas, em

muitos casos, contribuem decisivamente para a definição do seu carácter.

A própria constituição morfológica do Lugar e os seus materiais aparentes são

determinantes para a afirmação do seu carácter. Dos seus limites, onde estão

também incluídos o Céu e a superfície que pisamos, depende a sua articulação

formal e o modo como o Lugar é construído.

A forma como um edifício se encontra no terreno, a sua relação com o Céu, os

seus limites físicos, as suas fachadas, contribuem decisivamente para determinar

o carácter da paisagem urbana. Quando nos referimos ao carácter de um

conjunto ou família de edifícios que constituem um Lugar são, também, tidos em

35 Christian Norberg-Schulz, Existencia, Espacio y Arquitectura, Op. Cit., p.33.

Carácter da Arquitectura e do Lugar

Page 13: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

ARTiTEXTOS06. JULHO 08

119

consideração os motivos característicos que os compõem, como, por exemplo,

tipos particulares de telhados, portas e janelas. Estes motivos podem funcionar

como elementos convencionais que possibilitam o deslocar do carácter de um

Lugar para o outro.

O carácter depende, também, de como são construídos os elementos constituintes

do Lugar, os seus edifícios, e é determinado pela própria realização tecnológica

do construído, onde a tradição e a cultura do Lugar não são, de todo, alheias.

Um Lugar criado pelo Homem pode ser entendido como um edifício que assenta

no chão e se eleva para o Céu. O carácter desse Lugar é determinado pela forma

como o assentar e o elevar-se é concretizado.

Quando uma cidade nos agrada pelo seu carácter distinto, este é dado pela

forma como a maioria dos seus edifícios se relacionam com a Terra e com o Céu.

Eles expressam uma comum forma de vida, uma comum forma de estar na Terra,

constituindo um “Genius Loci” que contribui para a identificação humana.36

O próprio carácter do Lugar natural é transportado pelos edifícios cujas pro-

priedades individuais o manifestam de forma espontânea ou mesmo intencional.

Os potenciais significados presentes no ambiente original são relevados na

transformação de um sítio num Lugar como um propósito existencial de construir

com a arquitectura.

O tipo de construção usado na Arquitectura é, também, determinante para o seu

carácter. Esta pode ser leve, aberta e transparente ou massiva e fechada, o que

origina, também, diferentes significados e diferentes articulações formais. Estas

são determinadas pelo modo como o edifício assenta na Terra e como se ergue

para o Céu, como recebe a luz. A sua dominante horizontal agarra o edifício ao

chão, se for vertical torna-o potencialmente leve, acentua a sua relação activa

com o Céu e com o desejo de receber luz. Refira-se que a religião esteve, desde

sempre, associada à verticalidade afirmativamente expressa na sua arquitectura.

Como elementos determinantes da composição formal da arquitectura para a

afirmação do seu carácter temos:

1. as aberturas que recebem e transmitem luz;

2. os materiais – elementos decisivos para a caracterização (ex: a madeira e

a pedra têm diferentes presenças que expressam o modo como os edifícios

interagem com o Lugar;

3. a cor – “a cor dum edifício pode ser clara e alegre; indicando festividade

e recreação, outro edifício pode ter uma cor escura e austera, sugerindo

trabalho e concentração”.37

O uso da cor pode ser assumido como uma vontade de independência no acto de

fazer arquitectura. Esta pode ser significativa quando as paredes construídas estão

pintadas com cores que têm uma mera função caracterizante. Uma liberdade

36 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of

Architecture, Op. Cit., p.63.

37 MUGA, Henrique Muga, Psicologia da Arquitectura, Colecção

Ensaios, Ed. Gailivro, Vila Nova de Gaia, 2005, p.199.

Page 14: Caracter Da Arquitectura e Do Lugar

120

38 Christian Norberg-Schulz, Genius Loci, Towards a Phenomenology of Architecture,Op. Cit., p.67.

39 Ibidem, p.74.

Carácter da Arquitectura e do Lugar

deste tipo é mais comum em espaços interiores e fechados, onde o contacto

directo com o ambiente é mais fraco e onde o carácter implica uma reunião de

significados distantes.38

Nos edifícios de Arquitectura de expressão Clássica, as suas partes constituintes

têm a sua própria identidade individual e, ao mesmo tempo, diferenciam-se do

carácter geral do todo. Cada carácter faz parte duma família de caracteres que

pode, em muitos casos, estar directamente relacionado com uma qualidade

humana. Na Arquitectura Clássica, as forças originais são, também, humanizadas

e apresentam-se, a si próprias, como participantes individuais no mundo

compreensivo e significante.39

Para Norberg-Schulz, o carácter no ambiente urbano produzido pelo Movimento

Moderno distinguia-se por monotonia. Quando era encontrada alguma

variedade, devia-se geralmente a elementos oriundos do passado. Os edifícios

não afirmavam a sua presença de carácter, de modo intencional, e recorria-se

às novas tecnologias de construção, como é o caso da fachada cortina, para

afirmar um carácter abstracto e insubstancial, ou mesmo uma falta de carácter.

Ao Movimento Moderno, que oferecia poucas surpresas e descobertas, ele

contrapõe com a experiência das cidades antigas e com História como património

indispensável na afirmação do carácter e consolidação do Lugar.

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(Tradução do original alemão por Carlos Botelho)

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MANDOLASI, Domizia, lL Luogo e la Cultura del Luogo Nell’Arquitectura

Contemporánea, IL Luogo Come Principio di Ligittimazione del Progetto, Gangemi

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SZAMBIEN, Werner, Symetrie, Goût, Caractère – Théorie et Terminologie de

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VIDLER, Antony, Ledoux, Ediciones Akal, S.A., Madrid, 1994.

ROWE, Colin, Manierismo y Arquitectura Moderna y Otros Ensayos, Ed. Gustavo

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