capÍtulo 4 – experimentos em laboratÓrio · conhecida como taipa de sopapo (ou pau-a-pique),...
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CAPÍTULO 4 – EXPERIMENTOS EM LABORATÓRIO
4.1. INTRODUÇÃO
As construções de baixo impacto, particularmente aquelas provenientes
da tradição, não são necessariamente antiquadas ou sinônimos de estagnação.
Segundo FATHY (1973), o arquiteto não deve supor que suas qualidades
artísticas serão sufocadas, caso ele caminhe dentro da tradição de sua cultura, e
sim que elas se expressarão em contribuições relevantes à tradição e
concorrerão para o avanço da cultura da sociedade.
A utilização de tecnologias inicialmente inspiradas no fazer e na
sabedoria local, próprias das tradições populares, de forma revitalizada e
racionalizada (DETHIER, 1981), como, por exemplo, a taipa de sopapo (ou pau-
a-pique), contribuem para a construção de alternativas à dicotomia economia /
ecologia (DIEGUES, 1996) própria das tecnologias industriais.
Do ponto de vista técnico e material, as dúvidas com relação à terra crua
já não têm mais razão de ser, haja vista os procedimentos que permitiram seu
aperfeiçoamento, tais como a utilização de aglomerantes, resinas, hidrofugantes
e impermeabilizantes que melhoram consideravelmente suas propriedades
físicas e mecânicas (DETHIER 1981).
Contudo, persistem ainda resistências de natureza econômica,
psicológica, cultural, institucional e política com relação às construções com terra
crua, mantidas por potências industriais ou multinacionais, e centros de estudo
responsáveis pela utilização maciça do concreto, aço, alumínio e derivados
petroquímicos, de forma a favorecer os monopólios industriais, os quais
raciocinam em termos de instalações gigantes de produção, cujo caráter
devorador de energias e poluentes é bem conhecido (DETHIER, 1981).
O presente capítulo relata os experimentos desenvolvidos no Laboratório
de Investigação em Living Design (LILD) do Departamento de Artes e Design da
PUC-Rio, tendo como referência a produção material dos povos tradicionais
conhecida como taipa de sopapo (ou pau-a-pique), combinando colmos de
Phyllostachys aurea (espécie de bambu originária da Ásia), fibras de sisal
(Agave sp.) e terra crua, com o objetivo de estudar alternativas tecnológicas que
minimizem a retração, potencializem a resistência ao intemperismo, e reduzam o
consumo de recursos naturais.
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4.2. MATERIAIS E MÉTODOS
Os Processos Construtivos tratam da maneira como será realizada a
produção, levando-se em conta as capacidades locais de infra-estrutura e da
disponibilidade materiais e humanas, resultando em uma definição nos projetos
de Sistemas Construtivos (PARTEL, 2006).
Os sistemas construtivos, dentro do quadro da construção de edificações,
representam um determinado estágio tecnológico, indutor da forma de se
executar os edifícios, ou seja, sintetizam o conjunto de conhecimentos técnicos e
organizacionais, possíveis de serem combinados, em função do grau de
desenvolvimento tecnológico em que se encontram (MARTUCCI, 1990).
Os experimentos a seguir constituem o ponto de partida para o
desenvolvimento de sistemas construtivos com terra crua, tramas de bambu e
fibras vegetais, com foco na sustentabilidade sócio-ambiental dos produtos e
processos.
4.2.1. Triângulos pantográficos em terra crua
Estruturas pantográficas são aquelas que podem se adaptar a diferentes
tipos de abertura, por serem retráteis, podendo ser abertas ou fechadas,
conforme a necessidade, o que facilita sobremaneira seu transporte, as quais
são utilizadas a milhares de anos pelas tribos nômades da Ásia Central e Oriente
Próximo, do Irã à Mongólia, na confecção dos Yurts (Figura 95)
Figura 95 - Yurt (extraído de Shelter Publications, 1979)
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De acordo com o designer Marcelo Fonseca, os primeiros experimentos
na PUC com estruturas pantográficas foram desenvolvidos pelos professores
Ripper e Ana Branco com ripas de ipê, cujas conexões eram efetuadas com
cabos de polipropileno com nós nas extremidades, introduzidos em furos
existentes nestas peças.
Posteriormente, foram desenvolvidas estruturas com ripas e colmos de
bambu, amarrados com cabos de polipropileno, utilizando um nó conhecido
como “volta do fiel”
Figura 96 - Nó “volta do fiel”
Tendo como referências este trabalhos pioneiros, foram preparados dois
bastidores triangulares feitos de ripas de madeira, com tramas pantográficas de
fitas retilíneas de bambu cruzadas em duas direções, formando uma retícula
losangular, sobre os quais foi aplicada a terra crua (Figuras 97 e 98).
Figura 97 - Trama sem espaçadores
Figura 98 - Trama com espaçadores
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Na trama do primeiro bastidor, as fitas ficaram encostadas na região de
seus cruzamentos, enquanto no segundo bastidor as fitas foram separadas, por
espaçadores cilíndricos produzidos com o próprio bambu (especificamente com
os nós), nos seus cruzamentos. Não foram utilizadas neste experimento fibras
adicionadas ao barro, de forma a se poder avaliar especificamente a relação de
acoplamento entre este e o bambu.
4.2.2. Pantográficas de bambu e barro moldados em fôrmas
Foi produzida uma fôrma triangular de madeira, dentro da qual foram
colocadas terra crua com fibras de sisal e as tramas de bambu. No primeiro
modelo (Figura 99), foi utilizada a trama descrita acima sem espaçadores,
enquanto no segundo modelo (Figura 100) foi utilizada a trama convencional,
formada pelos paus-a-pique (elementos verticais) e envaros (elementos
horizontais), dispostos ortogonalmente.
Figura 99 - Trama pantográfica
Figura 100 - Trama convencional
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Figura 101 – Modelo 1 desformado Figura 102 – Modelo 2 desformado
4.2.3. Painel pantográfico contraventado
Foi efetuado um painel pantográfico com taliscas de cerca de 02 cm, e
vãos de abertura de 20 cm, como trama primária, a qual foi armada em uma
requadro de madeira, tornando o conjunto estável. Foram então inseridas
taliscas mais estreitas com cerca de 1, 5 cm, de forma a subdividir os vãos da
pantográfica em 04 vãos menores cada, e favorecer o acoplamento do barro.
O painel apresentou 90 cm de largura por 180 cm de comprimento
(Figuras 103 e 104), e foi preenchido com diversas formulações de barro e
fibras, totalizando 06 tratamentos, os quais são descritos a seguir.
Tabela 2 – Tratamentos aplicados sobre painel pantográfico contraventado
Tratamento 1 argila c/ fibras de sisal e trama terciária de 03 cm de vão
Tratamento 2 barro argiloso (Formoso/SP) c/ sapé e trama terciária de 05 cm
Tratamento 3 barro argiloso (RJ) c/ sisal e trama secundária de sisal
Tratamento 4 barro argiloso (RJ) com fibras de sisal hidratada
Tratamento 5 barro areno-argiloso (RJ) c/ adição de argila s/ fibras
Tratamento 6 barro areno-argiloso (RJ) c/ adição de argila e fibras de sisal
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As fitas para execução das tramas terciárias foram sendo intercaladas
nos vãos, de forma a dividir o vão inicial de 20 cm em 04 partes ou 05 partes,
que correspondem respectivamente ao tratamento 2 (barro argiloso de
Formoso/SP) e tratamento 1 (argila com fibras).
Figura 103 - Vista frontal do painel Figura 104 - Vista posterior do painel
2 2 1 1
4 3 3 4
6 5 5 6
4.2.4. Parabolóide hiperbólico
Foi confeccionada uma trama pantográfica, com meias-canas de
Phyllostachys aurea, de abertura 16 x 08 cm, a qual foi tensionada de forma a se
obter uma superfície de dupla curvatura, conforme as figuras a seguir.
Foram acopladas a essa trama primária, taliscas de aproximadamente 1,
5 cm de largura, que funcionavam como uma trama secundária, contribuindo
para uma melhor aderência com a massa de barro e fibras de sisal que envolvia
a trama. O barro, aplicado sob pressão, apresentava coloração avermelhada, e
textura areno-argilosa, tendo sido aplicadas fibras de sisal (Agave sp) secas ao
ar, dissociadas manualmente, previamente cortadas com cerca de 05 cm de
comprimento.
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Figura 105 - Trama tensionada Figura 106 - Barro aplicado c/ fibras
Figura 107 - Trama com barro seco Figura 108 - Ampliação e reboco
O revestimento foi efetuado com uma parte do barro de Formoso (de
coloração mais alaranjada e textura argilosa) passado na peneira 40, 1/3 de
resina de poliacetato de vinila (PVA), diluídos em 2/3 de água, em volume. Cabe
salientar que o barro seco foi previamente umedecido antes da aplicação do
revestimento descrito anteriormente, por pincelamento.
4.2.5. Triângulo curvo
Foram preparados 03 arcos com barbante como tirantes, solidarizados 02
a 02 nas extremidades, configurando um triângulo curvo. Foram inseridas
taliscas com cerca de 01 cm de largura, acompanhando paralelamente os arcos
de fora para dentro, de modo que a trama gerada apresentou uma malha com
células triangulares.
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Figura 109 – Trama de célula triangular Figura 110 - Barro com fibras aplicado
Figura 111 – Aspecto aos 04 meses Figura 112 - Aspecto pós-reboco
4.2.6. Seção da vedação de um domus geodésico
Colmos de Phyllostachys aurea foram conectados aos segmentos do
domus geodésico de raio 3,5 metros instalado no LILD com cordas de
polipropileno de 03 mm, apertadas com o auxílio de torniquetes de bambu. Foi
preparada uma trama com fitas de bambu de aproximadamente 1,5 cm de
largura, com vãos losangulares de 10 cm, a qual foi acoplada aos colmos
supracitados, configurando uma seção da vedação (trama primária).
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Figura 113 - Trama primária Figura 114 - Trama secundária
Foram então amrradas taliscas (ou ripas) de cerca de 1,5 cm de largura,
as quais diminuíram o vão de acoplamento pela metade, o que contribuiu para
um melhor acoplamento do barro ao sistema. O barro (ou saibro) apresentava
coloração avermelhada, e textura areno-argilosa, e a este foram adicionadas
fibras de sisal, até o instante em que não comprometessem a “liga” do barro.
Figura 115 - Embarramento da trama Figura 116 - Aspecto pós-reboco
O revestimento foi efetuado, novamente, com a composição feita de 1
parte de terra de Formoso (mais argilosa) passada na peneira de fubá (# 40),
adicionada de 2/3 partes de água , com 1/3 partes de resina PVA diluída.Cabe
ressaltar que o recobrimento foi efetuado meses depois da aplicação do barro, o
qual foi previamente umedecido, para auxiliar na adesão do revestimento.
4.3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
As figuras a seguir apresentam os experimentos com triângulos
pantográficos após 01 ano de exposição ao ambiente do LILD.
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Figura 117 - trama sem espaçadores (frente) Figura 118 - trama sem espaçadores (verso)
No que tange ao acabamento, a trama sem espaçadores, em função do
próprio método de fixação ao bastidor, obteve uma superfície mais homogênea,
apresentando ainda um menor consumo de terra crua, em relação à trama com
espaçadores, fato desejável quando tratamos de recursos não-renováveis. A
ocorrência de rachaduras foi equivalente em ambos os casos, enquanto o
descolamento de placas foi mais intenso na trama sem espaçadores.
Figura 119 - trama com espaçadores (frente) Figura 120 - trama com espaçadores (verso)
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No segundo experimento (pantográficas de bambu e barro moldados em
fôrmas) foi verificada uma diferença considerável no consumo de terra crua.
Enquanto no modelo com a trama tradicional as paredes atingiram uma
espessura de 08 cm, no modelo com a retícula losangular o consumo de barro
diminuiu consideravelmente, ficando o painel com 04 cm de espessura, em
função da diminuição do número de planos da trama (de 03 para 02).
A adição de fibras vegetais à terra crua, agente conhecido por evitar a
formação de fissuras, favoreceu a diminuição das trincas e reduziu o peso da
estrutura, ocasionando conseqüentemente uma economia no processo de
produção e transporte.
Figura 121 - Vista superior amostra pantográfica
Figura 122 - Vista superior amostra convencional
O menor peso favorece a pré-fabricação, além do consumo energético e
de materiais diminuir consideravelmente (da ordem de 50 %, pelo menos). A
inércia térmica do material diminui com espessuras menores, propiciando um
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desempenho mais adequado aos trópicos, que exige vedações leves e de baixa
condutibilidade térmica, em função das altas temperaturas e umidades do bioma
atlântico.
A presença de eflorescências ou bolores está correlacionada
positivamente com o aumento do teor de umidade no ambiente, e
consequentemente na superfície, até as regiões internas das amostras.
Ainda com relação ao experimento 3 (painel pantográfico contraventado),
no tratamento 1 ocorreram trincas aleatórias, apresentando contudo boa
resistência à ação das chuvas de vento, no que tange ao acoplamento da argila
com fibras, e a pantográfica.
No tratamento 2, o barro com sapé desagregou-se em certos pontos,
devido à ação de gotejamento sobre sua superfície, e as trincas ocorreram de
forma mais pronunciada acompanhando o sentido das ripas da trama primaria.
No tratamento 3 (barro com argila e sisal, além de trama secundária de
sisal) ocorreram rachaduras no sentido da trama primária. O tratamento 4 (sem a
trama secundária de sisal) apresentou intenso desprendimento e rachaduras no
sentido da trama pantográfica, enquanto no tratamento 5 (barro sem fibras) as
rachaduras ocorreram de forma intensa. No tratamento 6, com a aplicação das
fibras de sisal ao barro, as rachaduras foram mais estreitas e em menor
quantidade.
Com relação aos experimentos que tratam da utilização de reboco com
barro e PVA (parabolóide hiperbólico, triângulo curvo e seção de vedação de
domus geodésico), o primeiro e o último foram colocados em ambiente externo
contíguo ao LILD, de forma a se verificar sua resistência ao intemperismo em
situações mais adversas.
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Figura 123 - Início da exposição Figura 124 – Após 1 mês de exposição
O material apresentou acréscimo de umidade claramente perceptível à
olho nu, contudo manteve sua coesão, fato devido à ação adesiva da resina
PVA. No local onde ocorreu gotejamento houve uma certa desagregação do
revestimento, de forma pontual, expondo as fibras contidas no barro aplicado
sobre a trama.
O experimento intitulado triângulo curvo permanece, após cerca de 08
meses exposto ao ambiente do LILD, em perfeitas condições físicas, não
apresentando nenhum tipo de descolamento, desagregação, desprendimento ou
fissura.
Foi claramente perceptível a melhoria nas propriedades coesivas dos
compósitos em função da aplicação do recobrimento. As superfícies entretanto,
devem ser resguardadas de injúrias mecânicas diretas, atuando muito bem sob a
variação das condições térmicas, particularmente no que tange ao calor e a
umidade.
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4.4. CONCLUSÕES
A presença de fibras no barro favorece a coesão dos materiais,
contribuindo para uma diminuição da ocorrência de fissuras, trincas e
rachaduras, permitindo que solos, em principio inadequados, pudessem ser
utilizados no processo de produção.
É de suma importância ressaltar que o recobrimento deve ser efetuado,
utilizando-se até argamassa do próprio barro passado na peneira de fubá, na
ausência de outros recursos disponíveis, tais como cinzas, esterco de boi, cal,
cimento e resinas vegetais e/ou minerais.
A elevação e proteção dos elementos de fundação é imprescindível para
que o material mantenha suas propriedades coesivas, afastando o perigo da
proliferação de agentes patogênicos (como fungos e bolores) que surgem devido
ao aumento de umidade na base das edificação.
A utilização das tramas estudadas abre novas perspectivas no processo
de produção do sistema de taipa de sopapo ou pau-a-pique, na medida que
trata-se de elemento pré-fabricado, com materiais provenientes de outras
localidades, sendo facilmente transportado (devido à sua leveza) para que se
efetue o acoplamento do barro in loco.
Trata-se de um elemento de vedação de baixo impacto e custo zero,
pressupostos mão-de-obra e materiais disponíveis, dentro de uma perspectiva
de sustentabilidade sócio-ambiental.
Face o exposto, podemos concluir que os compósitos confeccionados
com terra crua e tramas de bambu apresentam, além das excelentes
propriedades térmicas, grande potencial de utilização na indústria da construção,
em função da baixa quantidade de energia e matéria-prima utilizadas no
processo de produção, fácil assimilação por mão-de-obra não-especializada e
flexibilidade quantos aos potenciais tipos de solo.