capoeira angola os sentidos em jogo-libre

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 UNIVERSIDADE  FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA  E CIÊNCIAS  HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS A R ODA DA CAPOEIRA ANGOLA OS SENTIDOS EM JOGO CHRISTINE  NICOLE ZONZON Salvador 2007

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    A RODA DA CAPOEIRA ANGOLA OS SENTIDOS EM JOGO

    CHRISTINE NICOLE ZONZON

    Salvador2007

  • CHRISTINE NICOLE ZONZON

    A RODA DA CAPOEIRA ANGOLA OS SENTIDOS EM JOGO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais.

    Orientador:Prof. Dr. Milton Arajo Moura

    Salvador2007

  • ___________________________________________________________________________

    Zonzon, Christine Nicole A Roda da Capoeira Angola: os sentidos em jogo. Christine Nicole Zonzon. Salvador: C. N. Zonzon, 2007. 138 f.

    Orientador: Prof. Dr. Milton Arajo Moura Dissertao (Mestrado) Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. 2007.

    1. Capoeira. 2. Angola. 3. Aprendizagem. 4. Tradio. 5. Mandinga. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. II. Moura, Milton Arajo. III Ttulo.

    ___________________________________________________________________________

  • TERMO DE APROVAO

    CHRISTINE NICOLE ZONZON

    A RODA DA CAPOEIRA ANGOLA

    OS SENTIDOS EM JOGO

    Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Cincias Sociais, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca:

    Milton Arajo Moura (Orientador) ___________________________________________Doutor em Comunicao e Cultura ContemporneasUniversidade Federal da Bahia

    Ldia Maria Pires Soares Cardel______________________________________________Doutora em AntropologiaUniversidade Federal da Bahia

    Teresinha Fres Burnham___________________________________________________Doutora em FilosofiaUniversidade Federal da Bahia

    Salvador, 26 de julho de 2007.

  • AGRADECIMENTOS

    Coordenao de Aperfeioamento Pessoal do Ensino Superior CAPES, que oportunizou

    as condies materiais para a realizao da pesquisa.

    Ao professor Milton Moura, pela forma paciente, sensvel e inteligente com a qual orientou a

    pesquisa, pelo respeito e a confiana que soube expressar diante das minhas dvidas.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal

    da Bahia, pelos ensinamentos e os dilogos que tornaram esses dois anos to prazerosos

    quanto trabalhosos.

    Ao historiador Frede Abreu e todo grupo de pesquisa Mestre Noronha do Instituto Jair Moura

    pelas ricas contribuies a esse trabalho.

    s grandes amigas Adriana Albert Dias e Clara Lourido, pelas incontveis horas passadas a

    discutir todas as fases desse trabalho. Fico muito grata e honrada por ter amigas to generosas

    e sbias.

    Aos meus mestres de capoeira Poloca, Janja e Paulinha e ao mestre Valmir pela dedicao e

    os ensinamentos na capoeira. Agradeo tambm a eles e a todos os membros dos grupos

    Nzinga e FICA, cuja confiana e companheirismo possibilitaram as observaes de campo,

    sem restrio nem constrangimento.

    A minha filha Melissa, por aceitar e compreender o meu amor incondicional pela capoeira, e

    torcer pela realizao deste trabalho e, por saber viver as prprias paixes e perseguir os

    prprios objetivos.

  • DEDICATRIA

    A Zinedine Zidane.

  • RESUMO

    A partir de uma pesquisa participante em dois grupos de capoeira angola de Salvador, investiga-se de que modo (re)produzida e transmitida a prtica tradicional e ritual, herana das matrizes culturais africanas e afro-brasileiras, em coletivos que se caracterizam, na contemporaneidade, pela heterogeneidade de seus membros. O enfoque recai sobre o percurso de aprendizagem, no intuito de evidenciar os processos de incorporao de disposies corporais e perceptivas no mbito de uma vivncia coletiva. Em seguida, atenta-se vertente emocional da formao do capoeirista no sentido de trazer tona a construo dos valores ticos e estticos o ethos do universo da capoeira angola e reflete-se sobre os modos de negociao e de re-significao desses valores no contexto atual. Por fim, a observao concentra-se na encenao da roda de capoeira, cuja anlise permite vincular os critrios de excelncia dos fazeres corporais, musicais e dos comportamentos com a estrutura hierrquica dos grupos. A anlise orientada pelo eixo terico-metodolgico da teoria da ao prtica do socilogo Pierre Bourdieu, sendo assim compreendida a aquisio das competncias e dos critrios de julgamento dos capoeiristas em termos de habitus, isto , de incorporao de disposies historicamente constitudas, confrontadas no campo dialtico das disputas em torno da legitimidade. Conclui-se esboando uma esquematizao dos princpios prticos que regem a capoeira angola, cuja plasticidade tem possibilitado a re-significao dos fazeres e dos valores na atualidade. Nessa perspectiva, o estudo aponta para a importncia da insero de novos atores e, mais particularmente, da recente participao feminina nesse universo tradicional, no sentido de revitalizar as representaes msticas associadas matriz africana a mandinga em detrimento do ethos das prticas da malandragem, legado histrico da capoeira de outrora.

    Palavras-chave: Capoeira; Angola; Aprendizagem; Tradio; Mandinga.

  • ABSTRACT

    Based on participant research in two capoeira angola groups in Salvador, in this study I observe the ways in which traditional and ritual practices African-Brazilian and African heritage are (re)produced and transmitted among markedly heterogeneous current members. I focus on the learning courses, aiming to highlight the process by which bodily and perceptive dispositions are acquired in collective experiences. In the next step, I turn to the emotional aspects of learning capoeira in order to draw attention to the construction of ethics and aesthetic parameters the ethos in capoeira angola universe, and analyze how these values are negotiated and resignified in the contemporary context. At last, I observe closely the roda de capoeira performance, whose analysis allows us to link excellence criteria bodily, musical and behavioral to the group hierarchy. The study is guided by Pierre Bourdies theory of practice. Thus I understand the acquisition of bodily abilities and judgment values for capoeiristas as habitus formation, that is, the embodiment of historically construed dispositions, dialectically disputed in the field around legitimacy. To conclude, I present an outline of capoeira angola practical principles that have been permitting the re-signifying of values and making due to their plasticity. From this stand point, the research points to the importance of new actors entering the field, mainly the participation of women in this traditional universe, leading to a renewal of mythical representations around the African origin the mandinga , instead of the malandragem ethos that marked the capoeira in the past.

    Keywords: Capoeira; Angola; Learning; Tradition; Mandinga.

  • RSUM

    partir dune recherche participante dans deux groupes de capoeira angola de Salvador, il sagit ici de comprendre de quelle manire est (re)produite et transmise la pratique traditionnelle et rituelle, hritage des matrices culturelles africaines et afro-brsiliennes, au sein de collectifs, qui se caractrisent dans la contemporanit, par lhtrognit de leurs membres. Lattention se porte sur le parcours dapprentissage afin de mettre en vidence les processus dincorporation de dispositions physiques et perceptives dans le cadre dun vcu collectif. On sintresse ensuite au versant motionnel de la formation du capoeiriste, pour claircir la construction des valeurs thiques et esthtiques lethos de lunivers de la capoeira angola, et la rflexion se porte sur les modes de ngociation et de re-signification de ces valeurs dans le contexte actuel. En dernier lieu, lobservation se concentre sur la mise en scne de la ronde de capoeira, et lanalyse rvle les liens existant entre les critres dexcellence appliqus aux savoir-faires corporels, musicaux et comportementaux, et la structure hirarchique de ces groupes. Lanalyse a pour rfrence thorico-mthodologique la thorie de laction pratique du sociologue Pierre Bourdieu, lacquisition des comptences et des critres de jugements y tant par consquent comprise en termes dhabitus, cest dire de dispositions constitues historiquement, qui se confrontent dans le champ dialectique des disputes de lgitimit. En conclusion, on bauche um schma des principes pratiques qui rgissent la capoeira angola, dont la plasticit permet une re-signification des savoir-faires et des valeurs dans lactualit. Dans cette perspective, ltude souligne limportance de linsertion de nouveaux acteurs, et plus particulirement la rcente insertion dactantes fminines, au sein de cet univers traditionnel. Elle revitalise en effet les reprsentations mystiques associes la matrice africaine, la mandinga, au dtriment de lethos de la malandragem, hritage historique de la capoeira dautrefois.

    Mots clefs: Capoeira, Angola, Apprentissage, Tradition, Mandinga.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Vrias. Por Caryb. 031

    Figura 2. Chamada. Por Caryb. 066

    Figura 3. Barraco. Por Caryb. 095

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    GCAP Grupo de Capoeira Angola do Pelourinho

    FICA Fundao Internacional de Capoeira Angola

  • SUMRIO

    Encantamento a Ttulo de Preldio 001

    1 INTRODUO 003

    1.1 Capoeira angola, capoeira, capoeiragem 0031.2 A capoeira angola dos anos oitenta e os grupos FICA e Nzinga 0061.3 A roda em destaque 0081.4 Perspectivas dos estudos sobre a capoeira 0091.5 Para aqum ou para alm da tradio 0141.6 A lgica prtica da capoeira 0161.7 Metodologia e objetivao 0191.8 Etnografia e experincia 024

    2 PERCEPES 031

    2.1 Treinar o corpo e as percepes 036 2.2 Interagir com o outro 0462.3 Dialogar com o corpo 0522.4 Aprendizagem e temporalidade 059

    3 VALORES 066

    3.1 O jogo da capoeira: jogo de criana/jogo de ator 0683.2 Disposies perceptivas e emoes 0743.3 Canto e valores 0773.4 O ethos da mandinga e da malandragem 0823.5 Ethos da capoeira e valores da contemporaneidade 088

    4 POSIES 094

    4.1 Risco e eufemizao da violncia 0974.2 A responsabilidade 1044.3 O espao sagrado da roda 1114.4 Posies no espao da roda e posies na estrutura do grupo 116

    5 CONSIDERAES FINAIS 126

    6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 134

  • Encantamento a ttulo de Preldio*

    por Eunice Catunda

    Quando chegamos ao terreiro, a capoeira j comeara. Dois danarinos coleavam

    rentes ao cho, enquanto dois berimbaus e trs pandeiros acompanhavam com

    estranhos ritmos e sons aquela dana magnfica e forte. Os danarinos do momento

    eram um carregador do mercado de gua de Meninos e um operrio da construo

    civil. O operrio estava todo de branco, sapatos brilhando, camisa alvejando. Era um

    dos melhores danarinos.

    (...) A roda de espectadores, gente do bairro, gente amiga da qual os nicos estranhos

    ramos Maria Rosa Oliveira e eu. Em breve, estvamos eletrizadas pela dana. S

    tomvamos conhecimento do tempo nos breves intervalos entre uma dana e a

    seguinte; e assim mesmo para achar que demorava a continuao...

    A dana da capoeira a representao simblica de antigas lutas autnticas. Na

    capoeira angola, os danarinos volteiam quase rentes ao cho, realizando paradas de

    brao, em posio horizontal, girando, escorregando como enguias e escapulindo por

    sob o corpo do adversrio. Os golpes so constados por mesuras e pelas exclamaes

    dos assistentes. Alis, no fora a preciso daqueles movimentos, muitos dos golpes

    seriam mortais. Esse o caso das clebres cabeadas assestadas contra o peito e cujo

    impulso sustado s no derradeirssimo momento, quando a cabea de um dos

    bailarinos j aflorou o corpo do outro.

    A violncia latente nunca se desencadeia e esse extraordinrio domnio de paixes

    mantm a assistncia numa incrvel tenso de nervos, empolgando a todos numa

    espcie de hipnotismo coletivo quase indescritvel. S aqueles que assistiram a uma

    * O historiador Frede Abreu reproduz a seguinte descrio de uma roda de capoeira de Mestre Waldemar, que deve ter acontecido em volta dos anos cinqenta e fornece as seguintes informaes sobre a fonte: A reproduo deste artigo de Eunice Catunda foi feita com base numa cpia. (...) Na cpia constava esta referncia: Fundamentos: agosto de 1951 a novembro de 1952. Fundamentos era uma revista paulista e o artigo deve ter sido publicado num dos nmeros correspondentes ao perodo mencionado (ABREU, 2003, p. 28).

  • demonstrao de capoeira de angola podero compreender a monstruosa fora e

    controle exigidos para que se realize cada um daqueles movimento, sem que se d

    lugar a qualquer agresso, sem que se perca a elegncia e a graa felina de cada

    gesto, absolutamente medido, calculado por uma espcie de instinto, j que os

    elementos atuantes se acham inteiramente entregues quela arte aparentemente to

    impulsiva e espontnea. (...)

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    2

  • 1 INTRODUO

    1.1 CAPOEIRA ANGOLA, CAPOEIRA, CAPOEIRAGEM.

    No estudo que segue, falar-se- dos modos de fazer e de sentir vigentes em dois

    grupos de praticantes da capoeira angola em Salvador, enfocando a transmisso de uma

    prtica cultural conhecida por ser ldica e ritual e apresentar fortes vnculos com a herana

    cultural africana e afro-brasileira, a partir da vivncia fsica e relacional de seus membros num

    ambiente estruturado de aprendizagem1 coletivo.

    Antes de iniciar a apresentao dos grupos em que foi desenvolvida a pesquisa,

    necessrio deter-se, mesmo que brevemente, sobre a formao histrica da prtica da

    capoeira, no intuito de situar os microcosmos que sero retratados aqui em meio a um

    universo mais amplo, tanto na sua durao quanto na sua extenso e diversidade atual. Com

    efeito, o prprio termo capoeira angola se consolida em paralelo e em oposio

    denominao capoeira regional, na poca em que o jogo comea a ganhar reconhecimento,

    passando progressivamente a impor-se como prtica esportiva e, a partir de ento, tambm

    chamada cultural. Esses dois principais estilos, largamente divulgados na contemporaneidade,

    tm como origem comum a capoeiragem de outrora, cujas origem e circunstncias de

    aparecimento ainda permanecem controvertidas2.

    As pesquisas histricas situam o surgimento da capoeira moderna por volta dos anos

    trinta e quarenta do sculo XX, sendo a cidade de Salvador o palco desse processo de

    modernizao. Distinguem entre essa nova fase e o perodo anterior com base na

    descriminalizao da capoeira, em 1937, quando o capoeirista baiano Mestre Bimba

    autorizado a abrir legalmente a sua academia: o Centro de Cultura Fsica e Capoeira

    Regional3. A criao da capoeira regional, qual seja, uma reconstruo da luta tradicional a

    partir da incorporao, junto aos golpes tradicionais da capoeiragem e do batuque, de tcnicas 1 O substantivo aprendizagem ser empregado ao longo do texto para referir dimenso processual do ato de aprender, em alternncia com aprendizado, que designar o conjunto dos saberes adquiridos. 2 A denominao capoeira angola parece ter surgido pela primeira vez na fala de Mestre Bimba, numa entrevista ao jornal Dirio da Bahia em 13.03.1936 (ABREU, 1999, p. 66). A capoeiragem do sculo XIX tambm costumava ser chamada de brincadeira de angola. Os criadores e mantedores da capoeira angola definem este estilo da capoeira moderna como continuidade e resgate da prtica dos sculos anteriores. Quanto s controvrsias concernentes histria mais remota da capoeiragem, sero evocadas mais adiante, ao se tratar da bibliografia respectiva. 3 O certificado de registro original foi expedido pela Secretaria da Educao, Sade e Assistncia Pblica da Bahia, no dia 9.07.1937 (REIS, 2000).

  • oriundas de lutas orientais e ocidentais e da sistematizao do ensino, constitui o marco inicial

    da ruptura com as prticas dos capoeiras de outrora, at ento criminalizadas e sancionadas

    com penas de priso e/ou deportao pelo cdigo penal de 18904.

    A (re)criao da capoeira angola, em volta dos anos quarenta, d-se em resposta e

    numa dinmica de concorrncia com relao ao sucesso obtido pela capoeira regional de

    Bimba, que vinha ganhando visibilidade e reconhecimento graas confiana e ao apoio de

    pessoas das classes mdia e alta. Trata-se de uma outra estratgia no sentido de construir uma

    nova imagem da capoeira que pudesse ser melhor aceita socialmente (ABIB, 2005; PIRES,

    2002; ABREU, 1999). Nessa segunda sistematizao da prtica e do ensino, so destacados os

    elementos religiosos e ldicos da capoeira, sendo o resgate dos vnculos com a origem

    africana a misso que norteia a (re)elaborao da prtica ancestral.

    A vertente da capoeira angola declina em diversos locais de Salvador e sob a

    responsabilidade de vrios mestres, nesse perodo inicial dos anos quarenta/cinqenta. A

    figura que acaba se impondo como sendo o seu mais legtimo representante a de Mestre

    Pastinha, que ir assumir a posio de um outro heri cultural ao lado e em contraponto com

    Mestre Bimba da capoeira baiana nos discursos e representaes ulteriores5.

    Tanto a capoeira regional quanto a capoeira angola se expandem em diversas camadas

    sociais no incio da segunda metade do sculo XX: a primeira, estreitamente vinculada com

    prticas esportivas (e competitivas); a segunda, tendendo cada vez mais folclorizao6. Os

    discpulos de Bimba (que morre em 1974) prosseguem com o trabalho de expanso da

    capoeira no Brasil e no mundo e vm obtendo cada vez mais sucesso, aproveitando-se do

    crescimento da demanda no mercado dos esportes e das lutas marciais nas dcadas finais do

    sculo XX. J a capoeira angola encontra dificuldades em afirmar-se no contexto de

    modernizao urbana de Salvador. Assim, pode-se dizer que, desde a sua (re)criao, o

    estilo angola configura-se como numericamente minoritrio em meio capoeiragem,

    4 Uma portaria de 1821 j estabelecia castigos corporais e outras medidas de represso capoeiragem, mas com a Repblica que se intensificam a perseguio a esta e outras prticas dos negros, na Bahia e no Brasil.5 O destaque conferido a Mestre Pastinha no universo da capoeira angola conserva at hoje aspectos um tanto enigmticos. Seria necessrio um estudo do campo, entendido como espao de concorrncia entre pretendentes (na acepo bourdieusiana, como se ver adiante) da capoeira baiana para dar visibilidade aos fatores que privilegiaram este nome em meio a outros representantes dessa vertente da capoeira. Um dos elementos que certamente pesou na construo da imagem de Pastinha encontra-se no campo da produo artstica baiana da poca. Artistas de renome como Caryb, Verger e Jorge Amado inspiram-se nesse personagem e na arte da capoeira angola em suas produes, associando Pastinha e seus discpulos aos smbolos da herana africana legtima na Bahia. 6 Como a capoeira angola perdia terreno, o recurso desenvolvido para a sua sobrevivncia foi a prtica de apresentaes para turistas , seja nas academias, seja em casas de espetculo.

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  • caracterstica esta que conserva at hoje7. A decadncia da prtica evocada pelo antroplogo

    baiano Waldeloir Rego em seu livro clssico Capoeira Angola (1968). O autor atribui a morte

    da prtica descaracterizao da pureza do jogo sob os efeitos das polticas de turismo

    empreendidas em Salvador8. Embora tal anlise, portadora da idia de que o desenvolvimento

    urbano e turstico implicaria irremediavelmente a morte das tradies culturais o que

    apresenta semelhanas com as concluses de Bastide (1995) a respeito do futuro do

    candombl na Bahia, na mesma poca tenha sido desmentida pela expanso nacional e

    internacional da capoeira angola no fim do sculo XX e superada por outras abordagens no

    campo dos estudos da cultura9, as inquietaes de Rego do a medida das dificuldades

    enfrentadas pela capoeira angola no incio dos anos setenta.

    De fato, quando morre Pastinha em 1981, aos 92 anos e numa situao de abandono e

    misria, pode-se dizer que a capoeira angola em Salvador est quase extinta10. Entretanto,

    neste mesmo perodo que a prtica vai encontrar um novo flego, iniciando-se um processo

    de revitalizao que lhe confere os contornos que conhecemos hoje.

    7 Segundo Arajo,estima-se que cerca de 2,5 milhes de brasileiros praticam a capoeira. Alguns pesquisadores apresentam cerca de 20 grupos de capoeira angola na Bahia, local com a maior concentrao de angoleiros no Brasil (ARAUJO, 1999, p. 35). Embora esses nmeros sejam apenas indicativos e o nmero de 20 grupos em Salvador esteja provavelmente muito abaixo da realidade , evidenciam a inegvel diferena de popularidade entre os dois estilos. 8 Este autor acusa as autoridades de levar os capoeiristas a prostituir sua arte. Afirma: Mas o agente negativo no processo da capoeira sociolgica e etnograficamente falando foi o rgo municipal de turismo. Detentor de ajuda financeira, material e promocional, corrompeu o mais que pde (REGO, 1968, p. 361). 9 Responde s inquietaes de Rego sobre o fim da cultura a provocao de Sahlins, que, ao se referir aos relatos etnogrficos sobre povos indgenas que se recusavam tanto a desaparecer quanto a se tornar ns, avana afirmando que essas sociedades no estavam simplesmente desaparecendo h um sculo atrs, no incio da antropologia: elas ainda esto desaparecendo e estaro sempre desaparecendo (SAHLINS, 1997, p.49).10 Segundo depoimentos de capoeiristas e estudiosos, apenas a academia de Mestre Joo Pequeno encontrava-se, naquela poca, com atividades regulares no Forte de So Antnio, e mesmo assim, com um nmero muito reduzido de participantes. Mestre Joo Grande, por sua vez, s retornaria s atividades de ensino da capoeira respondendo ao convite do GCAP, alguns anos mais tarde. Para o GCAP, tratava-se de atrair de volta para a capoeira angola legtima os mais legtimos angoleiros formados por Mestre Pastinha. Ora, Joo Grande e Joo Pequeno j gozavam da fama de ser os capoeiristas mais brilhantes da academia, e este lhes teria confiado a responsabilidade de perpetuar sua misso de transmisso da prtica.

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  • 1.2 A CAPOEIRA ANGOLA DOS ANOS OITENTA E OS GRUPOS FICA E NZINGA

    O universo da capoeira angola passou por um processo de revitalizao a partir dos anos

    oitenta do sculo XX, no contexto soteropolitano, quando surgiram grupos auto-identificados

    como descendentes de Mestre Pastinha. A re-significao da prtica, que se deve iniciativa

    do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho GCAP11, e sua consolidao no interior de outros

    grupos organizados ocorreram em consonncia com o surgimento dos movimentos de

    reivindicao identitria, e mais particularmente com os grupos de militncia que passavam a

    se chamar movimentos negros. O processo teve como eixo central a proclamao do

    pertencimento ao que passava a se chamar cultura negra em diversos ambientes, incluindo

    setores da mdia, da academia, dos diversos aparelhos governamentais, das artes, etc. Tratava-

    se, como se trata ainda, de definir e valorizar suas prticas como heranas de uma vigorosa

    matriz africana, qual seja, a cultura Bantu12. Atravs dessa afirmao, a capoeira angola

    diferenciava-se mais ainda da capoeira regional, com relao qual estava em franca

    competio, tanto na disputa por seguidores quanto por espao de reconhecimento enquanto

    expresso cultural no cenrio poltico e acadmico brasileiro. Em face da capoeira regional

    brasileira, baiana e mestia , reivindicava sua ascendncia africana e enfatizava os aspectos

    da prtica remetendo a tal origem. A prtica da capoeira angola constitua-se como emblema

    de pureza negra e/ou de africanidade, em contraposio prtica da capoeira regional,

    caracterizada pela hibridao e por uma franca disposio de negociar espaos com outros

    grupos sociais e tnicos.

    Do GCAP, principal protagonista desse movimento, surgiram novas lideranas

    mediante a formao de uma nova gerao de mestres discpulos de Mestre Moraes, o

    fundador do grupo, e das cises produzidas no seu prprio interior. assim que so criados,

    em 1993 e 1996, respectivamente, a Fundao Internacional de Capoeira Angola FICA e o

    Instituto Nzinga, objetos da presente pesquisa. O primeiro grupo nasce nos Estados Unidos,

    por iniciativa de Mestre Cobra Mansa aluno de Moraes tambm conhecido como Cobrinha

    , e em seguida desdobra-se em Salvador, sob a liderana do ento contramestre Valmir,

    11 O GCAP nasceu em 1980, no Rio de Janeiro, mas foi na Bahia que se desenvolveu, a partir do ano de 1982, quando Mestre Moraes passa a ocupar uma sala no Forte de Santo Antnio Alm do Carmo, inicialmente alternando os dias de aula com o Mestre Joo Pequeno e, em seguida, ocupando outro salo no primeiro andar do edifcio (ARAUJO, 1999).12 A capoeira angola encontraria sua origem na cultura Banto, herdada dos escravos importados da regio de Angola. Uma de suas misses polticas de reabilitar a matriz africana Banto, que, desde o comeo dos estudos afro-brasileiros, tem sido depreciada e esquecida em favor da matriz ioruba (tambm chamada nag) (CASTRO, 2001; LOPES, 1988 apud CLEAVER, 2004).

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    6

  • discpulo de Moraes e Cobrinha. O Instituto Nzinga, por sua vez, formado na cidade de So

    Paulo por um trio de contramestres, igualmente ex-alunos do GCAP baiano: Janja, Poloca e

    Paulinha. Em 2002, o contramestre Poloca, de volta para Salvador, inicia um novo trabalho

    nessa capital, convidando alguns capoeiristas a integrar o novo Nzinga baiano, com a

    participao da contramestra Paulinha. Em 2006, a contramestra Janja retorna Bahia e

    assume junto com eles a liderana do grupo.

    Os grupos FICA e Nzinga compartilham a origem, em termos de formao das suas

    lideranas. Ambos so auto-denominados como grupos da linhagem de Mestre Pastinha,

    tendo conseqentemente prticas parecidas no que diz respeito aos mtodos de ensino,

    realizao das suas rodas e filosofia da capoeira, que pretendem transmitir para seus alunos.

    No entanto, cada uma dessas organizaes tambm apresenta certas particularidades, uma vez

    que cabe a cada mestre reconduzir e interpretar seus saberes de modo sempre singular e em

    funo da composio do seu grupo particular. O grupo FICA caracterizado pela intensa

    movimentao de capoeiristas estrangeiros, participando das suas atividades por perodos

    curtos ou, por vezes, integrando o contingente de membros permanentes do grupo13. Possui

    ncleos em vrios pases e seus mestres, contramestres e treinis14 realizam viajes regulares

    entre esses diversos plos de atividade. O grupo Nzinga se diferencia da maioria dos grupos

    de capoeira angola (ou mesmo regional) por ter tambm lideranas femininas (duas mulheres

    e um homem). Estas tambm exercem atividades profissionais e militantes em prol das

    polticas de incluso de gnero e de combate ao racismo, alm de distinguir-se do perfil

    tradicional dos mestres de capoeira por terem, ambas, formao e ttulos acadmicos.

    Assim, nesses dois grupos, fica evidenciado o fenmeno de heterogeneizao do

    universo da capoeira angola, processo este indissocivel da revitalizao da prtica e tambm

    visvel em outros grupos da Bahia e/ou do Brasil. Em paralelo, os grupos FICA e Nzinga se

    definem como guardies da tradio da capoeira e elaboram discursos e estratgias polticas

    no sentido de estreitar ainda mais os vnculos entre a capoeira e as tradies culturais e

    religiosas africanas.

    13 preciso ressaltar que a proporo de estrangeiros visitando ou aderindo ao grupo altera igualmente a repartio de gnero: muitos estrangeiros so de fato, estrangeiras. 14 Grau correspondente ao ajudante do mestre e/ou do contramestre, encarregado do treino dos alunos em geral mais freqentemente, dos alunos mais novos.

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  • 1.3 A RODA EM DESTAQUE

    no quadro do processo de revitalizao da capoeira atravs de uma reafirmao de

    referncias africanas que a roda ocupa um lugar de destaque no mbito das prticas

    desenvolvidas por esses grupos, assumindo, na interpretao dos prprios atores, valores

    reconhecidos pelos prprios praticantes como sendo de autenticidade e de africanidade. A

    roda de capoeira angola passa a ser encenada conforme um roteiro ao mesmo tempo definido

    e flexvel, em que as formas expressivas, corporal e musical, os papis dos protagonistas, as

    configuraes espaciais e temporais da performance so formalizados e ritualizados. Diversos

    elementos constitutivos da roda, sejam ritmos, seja o prprio repertrio musical, sejam ainda

    movimentos do repertrio gestual, compartilhados com as prticas religiosas do candombl,

    vm sustentar a afirmao identitria negra no sentido de comprovar a herana africana,

    garantindo, tanto para os praticantes como para os seus interlocutores mais diretos, como

    ainda para os demais interessados, uma legitimidade ao mesmo tempo religiosa, poltica e

    ancestral.

    A roda apresenta-se, assim, como um espao de afirmao identitria e tambm de

    aprendizagem e transmisso. na roda que se aprende a ser angoleiro (praticante da capoeira

    angola), isto , comunicar-se atravs dos cdigos do grupo que, na maior parte, no so

    explicitados verbalmente: aprende-se assistindo roda e dela participando.

    A atuao na roda demanda o domnio de capacidades diversas: executar movimentos

    e golpes, tocar todos os instrumentos da bateria musical, cantar e sobretudo saber realizar

    cada um desses desempenhos com sabedoria, de modo original e esteticamente elaborado, ao

    mesmo tempo que reproduzindo formas tradicionais e obedecendo s regras implcitas do

    grupo. nesses termos que ficam delineados os contornos de nosso objeto de estudo: a roda

    enquanto espao ritual em que se constroem e expressam memrias, significados e valores

    coletivamente compartilhados. O estudo detm-se sobre os processos singulares de tal

    construo, tanto na prpria roda quanto nas vivncias dirias dos aprendizes capoeiristas.

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    8

  • 1.4 PERSPECTIVA DOS ESTUDOS SOBRE A CAPOEIRA

    No mesmo perodo em que se davam as transformaes acima evocadas, a capoeira

    estava se constituindo como objeto de pesquisas acadmicas nas reas de historiografia,

    sociologia e antropologia, bem como no mbito da educao e das artes. J havia suscitado o

    interesse dos intelectuais desde as primeiras dcadas do sculo XX, quando o jogo, ento

    conhecido como capoeiragem, brincadeira de angola ou mandinga e aludido nas pginas

    policiais dos dirios em que se denunciavam os crimes cometidos pelos capodcios e

    desordeiros, comea a inspirar produes de literatos e cronistas15.

    A produo cientfica sobre a capoeira intensifica-se com o interesse despertado em

    torno das constituies identitrias e das expresses culturais remanescentes no Brasil deste

    fim de sculo XX. Os processos de modernizao e urbanizao do pas repercutem

    contrariamente, com a investigao e valorizao das prticas ldicas tradicionais no

    redutveis ao padro racional da eficincia moderna (FARIAS, 2006). Nesse sentido, o tema

    da capoeira mostra-se propcio s elaboraes intelectuais que procuram trazer luz e

    caracterizar as expresses da cultura popular, e no caso, da cultura negra, negligenciadas ou

    discriminadas nos quadros valorativos dominantes at ento em vigor. Os enfoques adotados

    pelos respectivos autores so bastante diversos; contudo, pode-se afirmar que a discusso tem

    se concentrado preferencialmente em torno da construo histrica da capoeira, assim como

    da anlise dos elementos scio-culturais e tnicos que formaram as diferentes vertentes da

    capoeira hoje conhecidas. Neste sentido, tem se tratado de trazer luz a dinmica e as

    interdependncias entre grupos e instituies que tomaram parte na constituio da prtica da

    capoeira nas suas diversas formas, alm de investigar a permanncia ou a superao dos

    valores associados s diversas matrizes identificadas.

    Algumas questes ocupam um lugar central nesta literatura:

    a origem controvertida da capoeira, africana ou escrava, negra ou mestia, carioca

    ou baiana etc;

    15 Waldeloir Rego (1968) consagra um captulo de sua obra Capoeira Angola capoeira na literatura, apresentando uma relao com os seguintes nomes: Jorge Amado, Manuel Antnio de Almeida, Alusio Azevedo, Machado de Assis, Manuel Querino, Melo Morais Filho, Henrique Maximiliano, Viriato Correia, Odorico Tavares e Gilberto Amado.

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    9

  • as relaes histricas desta manifestao com as instituies, a lei e as elites

    polticas ou intelectuais, abordagem esta que investiga a pertinncia de se falar em

    prtica de resistncia;

    as correlaes entre a reconstruo ou re-significao da capoeira e os processos

    de formao da identidade nacional brasileira;

    e, ainda, a indagao dos fatores, agentes e valores, que permitiram a

    sobrevivncia e o ressurgimento da capoeira na suas vertentes regional e angola,

    respectivamente como esporte e prtica cultural vinculada reivindicao negra,

    na contemporaneidade.

    Os autores so unnimes quanto ao deslocamento da prtica da marginalidade para

    formas de legitimidade e aceitao mltiplas, simultneas ou consecutivas: esporte; folclore;

    expresso cultural; instrumento educativo. Tais mudanas fizeram com que os capoeiristas

    sassem das ruas e outros recantos populares e concentrassem suas atividades em academias

    ou grupos. Tambm so ressaltadas a formalizao e racionalizao do ensino vinculadas

    mudana de status, mas tal discusso, que poderia ser bastante fecunda no que diz respeito ao

    conhecimento das formas organizacionais e de transmisso da prtica, acaba muitas vezes

    reduzida oposio entre capoeira regional e capoeira angola.

    Este eixo comparativo originado na disputa entre os partidrios respectivos da

    capoeira regional moderna e da capoeira angola tradicional tem como efeito polarizar

    os atributos de cada uma destas vertentes: a organizao racional atribuda mais

    especificamente capoeira regional esportiva, ficando assim com a capoeira angola os

    atributos de tradicionalismo, ritualidade e religiosidade. Em outras palavras, a perspectiva de

    enfoque da capoeira angola permanece inexoravelmente atrelada identificao de suas

    razes, sendo as investigaes orientadas quase exclusivamente pelo conceito de tradio e a

    percepo do presente condicionada busca do passado histrico ou mtico.

    Se tal produo acadmica favorece uma compreenso do carter relacional e

    transformacional da capoeira mais especificamente, no caso que nos interessa aqui, da

    capoeira angola, apreendida como uma prtica scio-cultural marcada pela herana africana e

    pela elaborao reflexiva em torno desta herana , pouco espao se dedicou no sentido de

    conhecer e fazer conhecer a estrutura e a dinmica interna que redimensionam esta

    manifestao no seio dos grupos que a praticam, perpetuam e re-significam. Mais

    particularmente, tem sido ignorada a configurao renovada dos grupos no contexto em que

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  • as proclamaes identitrias, aliadas ao sucesso das novas formas ritualizadas adotadas nas

    suas prticas, comearam a atrair um pblico extremamente diversificado, desde o incio do

    seu processo de revitalizao.

    Ora, tais mudanas, afetando a composio dos grupos, deram-se em paralelo quelas

    concernentes ritualizao da prtica e politizao do discurso, levando a pressupor a

    existncia de vnculos entre ambos os fenmenos e levantando questionamentos quanto aos

    reordenamentos das prticas e dos valores. Mas a miscigenao dos grupos em termos de

    origem tnica ou social e de gnero, entre outros, amenizada quando no ignorada na

    discusso como se fosse apenas um fenmeno marginal sem relao direta com os contornos

    identitrios da manifestao que os estudos trazem luz ou mesmo com a natureza dos modos

    de fazer, pensar e interagir com o mundo expressos na performance da roda.

    Sendo assim, algumas perguntas essenciais que dizem respeito s inter-relaes que

    estruturam os grupos deixam de ser postas. Poderiam ser formuladas assim:

    De que maneira as mudanas culturais e sociais (elas mesmas decorrentes das

    transformaes polticas e scio-econmicas que ocorrem no Brasil e no mundo ao

    longo do sculo XX) penetram no universo dos praticantes da capoeira

    organizados em grupos?

    Como so construdos e reconduzidos as estruturas organizacionais e os valores

    ou seja, o ethos atravs dos quais tais mudanas so acolhidas e re-significadas?

    Como se articulam as diferenas entre componentes caracterizados pela

    diversidade de origens na estrutura destes grupos, cuja identidade repousa sobre a

    proclamao de um pertencimento a uma cultura homognea, qual seja, a cultura

    negra?

    Apesar de terem se multiplicado os trabalhos de investigao em grupos de capoeira

    angola em Salvador como em outras cidades, as pesquisas etnogrficas so excees e os

    dados recolhidos sobre as modalidades da prtica so relativamente escassos e fragmentrios.

    Contamos, j, com alguns levantamentos dos repertrios gestuais e musicais da capoeira,

    entre os quais se destaca a obra seminal de Waldeloir Rego, fonte qual recorrem todos os

    trabalhos ulteriores. No entanto, embora os dados recolhidos pelo folclorista nos anos sessenta

    sejam extremamente numerosos e precisos, o modelo enciclopdico do seu estudo pouco

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  • esclarece os vnculos existentes entre os diversos elementos, alm de isol-los, para o estudo,

    dos protagonistas e das situaes em que se do as ocorrncias16.

    Os trabalhos mais recentes, por sua vez, apresentam alguns estudos de grupos de

    capoeira contemporneos e levantam importantes questionamentos a respeito da dimenso

    simblica da gestualidade e da musicalidade da prtica (REIS, 2000; ABIB, 2005; ARAUJO,

    2004; ZONZON, 2001). A abordagem que prevalece em muitos desses trabalhos se orienta

    pelo eixo analtico relativo identificao das matrizes formando e informando a capoeira. O

    vnculo com a cultura africana constitui-se ao mesmo tempo como ponto de partida e

    concluso como numa dinmica tautolgica. Os fazeres, ritos, gestos, cantigas, etc so

    apreendidos atravs dos conceitos de cultura popular, ancestralidade, africanidade (ABIB,

    2005) ou no eixo comparativo cultura negra popular/cultura branca dominante (REIS, 1997),

    sem que se esclarea suficientemente se tais categorias se referem s proclamaes

    identitrias dos capoeiristas ou opo terica do autor17.

    Em algumas dessas abordagens, a discusso alimentada a partir de textos nativos

    manuscritos ou livros, geralmente da autoria dos mestres de capoeira ou dos seus seguidores

    sendo Mestre Pastinha, Mestre Bimba e Mestre Noronha os mais citados , bem como de

    relatos e transcries de entrevistas, sejam estas fontes secundrias, sejam recolhidas pelo

    estudioso que as apresenta. Embora estes documentos forneam dados riqussimos no que diz

    respeito s tomadas de posio das figuras de liderana do universo em questo, alm de

    apontar para a natureza das disputas no embate entre definies e interpretaes diversas ou

    opostas defendidas pelos autores respectivos, o recurso sistemtico a estas fontes nos parece

    ser uma das razes da univocidade das perspectivas desenvolvidas nos estudos referidos.

    Convm lembrar que so principalmente os aspectos idealizados da prtica que fundamentam

    o que estes mestres e os capoeiristas em geral costumam designar como filosofia da

    capoeira, ou seja, a elaborao discursiva que abrange desde a sua histria at seus princpios

    e significados. Assim, recorrendo diretamente a estes construtos que apresentam a capoeira

    como uma comunidade simultaneamente mtica, histrica e poltica, os pesquisadores omitem

    16 A escolha deste formato enciclopdico repousava na crena do autor num inevitvel desaparecimento da capoeira angola no contexto de modernizao da Bahia e, mais especificamente, em razo do crescimento do turismo, que ele v como elemento de perverso da prtica tradicional. Neste sentido, o autor pretendia, atravs do levantamento, resgatar informaes e dados autnticos sobre uma prtica considerada agonizante. 17 exceo do trabalho de Arajo, em que a perspectiva de anlise da autora claramente explicitada. O ponto de vista que norteia a pesquisa o de uma praticante da capoeira angola, fundadora e lder do grupo Nzinga, em So Paulo. A modalidade do trabalho,uma pesquisa ao em educao, permite que sejam conjugados os objetivos cientfico e militante (ARAUJO, 2004).

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  • os mecanismos mnimos atravs dos quais imposto um ajustamento das condutas

    heterogneas em vista de se alcanar uma linguagem comum.

    Ora, este trabalho toma como hiptese que a identidade tnica-poltica proclamada

    hoje em grande parte construda atravs da aprendizagem e da convivncia cotidianas. O que

    justifica em grande parte o esforo de empreender este estudo precisamente a constatao de

    que esta vertente da experincia da capoeira aquela que menos comentrios costuma receber

    nos depoimentos dos atores e nas fontes literrias ou jornalsticas s quais os estudos

    recorrem, j que tais relatos tendem a retratar o que a prtica tem ou teria de mais

    extraordinrio, ou ainda a associ-la a alguma ideologia. Partindo-se de que os modos de agir

    rotineiros so naturalizados e, portanto, ignorados reflexivamente por aqueles mesmos que os

    praticam (BOURDIEU, 2000), preciso lanar mo de instrumentos de investigao que

    possibilitem conhecer as condutas tais como so vivenciadas na prtica da capoeira, no dia-a-

    dia das rodas, assim como tambm dos treinos e outros momentos de convivncia dos grupos.

    Apreender a capoeira manifestao ritual, corporal, artstica e ldica atravs das

    reflexes racionalizadas que suscita nos prprios atores implica atribuir percepo racional

    ou reflexiva um lugar privilegiado para o conhecimento da prtica18. Negligencia-se assim o

    fato de que o ator envolvido em qualquer prtica nativa ou cotidiana ignora os princpios que

    organizam a sua maneira de agir, ou, retomando Bourdieu, que a verdade do domnio de uma

    prtica repousa numa necessria douta ignorncia, modo de conhecimento prtico que no

    encerra o conhecimento de seus prprios princpios (BOURDIEU, 2000). Entende-se,

    portanto, que, tratando-se de uma prtica intensamente corporal, de um universo no qual o

    mais nuclear transmite-se, adquire-se e desdobra-se tambm aqum da linguagem articulada

    por meio de palavras e da percepo reflexiva, o recurso ao dito no esclarece a lgica prtica

    desempenhada nos modos de agir dos atores. Sem um trabalho de desnaturalizao do

    fenmeno de transmisso tradicional (e conseqentemente uma interrogao dos conceitos de

    ancestralidade, africanidade, popular ou cultura negra), corremos o risco de nos fusionarmos

    com o prprio objeto e, o que mais grave, de elidir a abordagem de um dos aspectos mais

    ricos da capoeira angola, qual seja, o trabalho contnuo, sistemtico e progressivo de

    18 Tal postura remete ao mtodo sociolgica weberiano em que as aes cotidianas, os costumes e as tradies seriam dificilmente compreensveis. Na tipologia de Weber, o tipo de ao tradicional aquele que se encontra mais distante da ao racional em finalidade que se constitui, por sua vez, como a mais transparente , embora tambm reconhea que a maioria das aes cotidianas habituais se aproxima desse tipo, ou ainda, que a ao real sucede, na maioria dos casos, em surda semi-conscincia ou inconscincia do sentido visado (WEBER, 1994). Com o conceito de habitus, Bourdieu procura resolver a questo de como compreender essas maneiras de agir : so simultaneamente impostas de fora, pela fora do social, como no modelo de Durkheim, e originadas na ao individual subjetiva, do modelo weberiano. o conceito de incorporao das estruturas objetivas que realiza essa sntese.

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  • incorporao de valores e sentidos tidos como herdados de grupos tnicos e sociais, que

    remeteriam a modos de ser subversivos ordem racional moderna, atravs da transmisso da

    prtica em grupos estruturados e estrategicamente articulados com os contextos local e global

    de nossos dias.

    1.5 PARA AQUM OU PARA ALM DA TRADIO

    A perspectiva adotada nesse trabalho caracteriza-se por ser de suspeio quanto ao

    argumento da tradio negra (ou africana, Bantu) descritiva e explicativa da prtica e dos

    valores inerentes capoeira angola. Como j sinalizei, a verso apresentada pelos lderes dos

    grupos, e que encontra suas fontes nos depoimentos e escritos dos grandes mestres, figuras

    histricas de referncias para os praticantes de hoje, situa-se no mbito de discursos polticos

    num contexto de concorrncias entre correntes distintas, historicamente construdas. Sendo

    assim, a tradio da capoeira angola informa sobre as diferenas que se quer evidenciar em

    comparao com outras prticas e grupos que disputam alguma forma de reconhecimento.

    igualmente verdade que o argumento da tradio perpassa todos os contedos

    explicativos da situao de aprendizagem num grupo de capoeira angola. Abrange regras cuja

    origem remete criao da capoeira angola moderna por Mestre Pastinha: por exemplo,

    usamos as cores amarelo e preto e s podemos jogar calados porque tradio herdada do

    mestre amante da equipe de futebol Ypiranga. O que normalmente se chama tradio tambm

    sustenta aquilo que no menos normalmente se tem na conta de fundamentos, dentre os quais

    muitos se originam no universo religioso afro-brasileiro como o status sagrado dos

    instrumentos. Enfim, pode-se dizer que praticamente qualquer modalidade de comportamento

    na roda repousa sobre alguma tradio, dos mestres de antigamente, da linhagem de Mestre

    Pastinha, do GCAP, da capoeiragem de rua de antigamente, do candombl, da cultura

    africana, da ancestralidade africana, da transmisso oral19, etc. Tal justaposio de

    referncias a um passado histrico mais ou menos recente ou a um passado mtico africano

    deixa entrever a plasticidade do termo central tradio, cujo uso tem muitas vezes como

    efeito qualificar e valorizar a prtica da capoeira angola.

    19 Esto aqui reproduzidas as expresses e os termos micos, isto , as formulaes dos prprios capoeiristas, e mais particularmente dos mestres.

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  • O fato de usar uma farda de determinadas cores ou de proibir a participao nas aulas

    ou nas rodas sem sapatos ou tnis, para retomar um exemplo bastante significativo,

    arbitrariamente associado a valores ideolgicos pela mediao de um pertencimento a uma

    linhagem que se promove como mais autntica. So freqentes os questionamentos dos

    adeptos da capoeira regional e tambm de novos entrantes dos grupos de capoeira angola

    no sentido de contestar essa regra de conduta, argumentando que a referncia ao capoeirista

    negro histrico se encontraria de um modo mais verdadeiro na tradio da capoeira

    regional de se jogar descalo. Costuma-se esquecer, em tal debate, que, sendo a tradio o

    fruto de uma construo e ela prpria uma contnua construo, os conceitos de verdade ou

    autenticidade histrica permanecem inadequados para avaliar as qualidades respectivas dos

    dois sistemas.

    Deslocando a interrogao do porqu das prticas para o como, consegue-se conhecer

    muito mais sobre a singularidade do universo enfocado. Trata-se ento de indagar de que

    maneira esse conjunto de regras, valores, comportamentos, embora possam parecer arbitrrias

    para quem est de fora, passa a ser aceito, como acaba fazendo algum sentido para quem

    membro do grupo, e que sentido seria este. Nesta perspectiva, o questionamento dirige-se aos

    aspectos da prtica que se situam aqum da representao que orienta a reconstruo da

    tradio angola, isto , na prpria experincia dos fazeres.

    A proposta consiste em suspender temporariamente o discurso explicativo para

    atentar ao movimento dos corpos e experincia dos sentidos, atribuindo os fenmenos de

    adeso e identificao dos capoeiristas a seu grupo e prtica a um acontecimento de ordem

    vivencial articulado em contexto coletivo. A suspeio quanto possibilidade de se dar conta

    da transmisso da capoeira angola a partir de uma adeso ideolgica a alguma tradio

    (qualquer seja sua natureza e pertinncia) o fruto da minha prpria experincia e de tantos

    outros capoeiristas. Constato que a crena na tradio no antecede nem justifica o

    pertencimento ao grupo; pelo contrrio, resulta da convivncia com este. Observo tambm

    que o capoeirista identificado pelo seu jeito de corpo, sua tonalidade na hora de puxar o

    canto, suas habilidades fsicas e outros tantas expresses ditas corporais. Estas garantem a sua

    atuao no sentido de perpetuar e transmitir uma prtica tradicional, qual seja, a de jogar

    capoeira angola conforme determinados modos. Essas observaes me levam a pensar a

    tradio da capoeira como algo incorporado, e no necessariamente pensado como tal. E, se

    algum sentido h para a tradio (da capoeira entre outras), acredito que esteja justamente nos

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  • sentidos na acepo de modos de sentir que recriam um mundo de prticas e de

    representaes construdas sobres as mesmas.

    A opo metodolgica adotada para a pesquisa vem auxiliar o que surgiu inicialmente

    como um questionamento sobre a minha prpria prtica de capoeirista. Os instrumentos

    tericos escolhidos contribuem para compreenso de comportamentos que aparentam ser, ao

    mesmo tempo, arbitrrios e ricos em sentidos. O desafio posto justamente evitar a reduo

    de uma dessas dimenses outra, o que significa situar-se simultaneamente de dentro e de

    fora da prtica.

    1.6 A LGICA PRTICA DA CAPOEIRA

    So estas as consideraes que argumentam em favor de uma dmarche que cuide em

    no se perder, pelo menos inicialmente, nos debates em torno das questes histricas e

    identitrias que tm mobilizado o interesse dos universos acadmico e nativo. No intuito de

    orientar o trabalho por uma investigao da lgica inerente prpria prtica, optei por

    estreitar o foco da pesquisa num campo etnogrfico claramente definido espacial e

    temporalmente: as prticas performticas das rodas de capoeira encenadas por dois grupos de

    capoeira angola de Salvador, apresentados acima. A escolha da roda como objeto central desta

    pesquisa contempla a centralidade que tal performance vem assumindo nas prticas e nos

    discursos dos grupos de capoeira angola contemporneos questo qual me refiro no incio

    deste captulo e, simultaneamente, decorre da opo terico-metodolgica que orienta este

    trabalho: investigar uma prtica ritualizada atravs de um trabalho etnogrfico participante

    que traga luz os cdigos e valores que a orientam e os modos de aquisio e transmisso dos

    mesmos.

    As questes levantadas no estudo de uma prtica no caso presente, a experincia,

    constituio e transmisso de um jogo dito tradicional so aqui tratadas com base numa

    releitura dos conceitos de habitus e de incorporao dos valores expostos por Bourdieu

    (1980). Seu modelo terico-analtico, fundamentado num estudo extenso das prticas,

    incluindo alguns estudos de caso que se tornaram referenciais na pesquisa emprica, como La

    Distinction (1979), Le Bal des Clibataires (2002) e Esquisse dune Thorie de la Pratique

    (2000), corresponde recusa tanto do objetivismo que submete as relaes entre os agentes a

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  • um determinismo externo (mecnico ou inconsciente) como do subjetivismo que atribui a

    ao simplesmente a um ator racional perseguindo fins intencionalmente.

    Enfocada nesta perspectiva, a prtica (e mais especificamente a prtica ritual) de

    natureza dbia, ambgua, pois tem como condio de ser ocultar os interesses tcitos pelos

    quais os atores so possudos, isto , as disposies adquiridas que orientam as aes sem

    passar por intenes conscientes. A apreenso cientfica tende a explicitar aquilo que deve

    justamente permanecer velado, pois a prtica no implica ou mesmo exclui a lgica que a

    se expressa (BOURDIEU, 1980). Donde a impossibilidade de traduzir a lgica da prtica

    simplesmente em termos de inteno consciente ou de regras. Atravs do uso da terminologia

    do jogo, o modelo bourdieusiano destaca que os atores interagem no mbito de estruturas

    objetivas (estrutura do jogo) que conhecem por familiarizao e pertencimento a um grupo ou

    a uma classe, sem precisar efetuar escolhas conscientes ou obedecer a regras. As

    estratgias, embora aparentem apontar para uma inteno subjetiva com antecipao do

    futuro, tendem sempre a reproduzir as estruturas objetivas que as produziram. Elas so o

    produto do futuro j sucedido de prticas passadas (idem, ibidem). A chave deste paradoxo

    deve ser procurada na incorporao das estruturas objetivas: o habitus a histria

    incorporada em oposio ao campo, historia objetivada (idem, ibidem).

    Se pelo nascimento no interior de um grupo social ou classe que se d de forma mais

    incondicional, porquanto mais inconsciente, a adeso aos valores que estruturam os

    comportamentos sociais, h no entanto toda uma escala de modos de aquisio do habitus que

    vai da simples familiarizao transmisso explcita, entre os quais o esporte, a dana, etc.

    Exerccios estruturais como rituais e jogos, ou todas as aes desempenhadas num espao e

    num tempo estruturados, so modos de transmisso do domnio prtico exercitados em todas

    as sociedades. O corpo, como a linguagem, a sede dos significados, das memrias e portanto

    das disposies a reproduzir os valores da coletividade. Neste sentido, constitui-se como

    locus privilegiado da interiorizao da exterioridade, ou mais, pode-se afirmar que s no

    corpo se completa a sntese indivduo e sociedade, pois como afirma Bourdieu ce qui est

    appris par le corps nest pas quelque chose que lon a (...), mais quelque chose que lon est20

    (BOURDIEU, 2000, p.123).

    Esta incorporao das estruturas de um grupo nos sujeitos individuais fruto de um

    processo lento e repetitivo; uma aprendizagem de tipo inicitico tal como se pode observar

    nos grupos de capoeira angola. No enfoque aqui proposto, trata-se de apreender a prtica da

    20 O que se aprende pelo corpo no algo que se tem, mas sim [algo] que se . Traduo da autora.

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    17

  • capoeira encarnada em homens, mulheres e crianas reais com os quais tenho convivido,

    pessoas estas que se tornaram ou esto se tornando capoeiristas atravs de um processo

    simultaneamente fsico, psicolgico e social, que remete definio de Mauss para o que

    designa como fato social total (MAUSS, [1950], 2004).

    H, portanto, um conjunto de prticas ensinadas de um modo particular, no explcito,

    em virtude de serem desempenhadas regularmente e de modo igualmente particular, no

    espao da roda de capoeira. Pergunta-se qual o sentido de tal combinao de elementos, ou

    seja, movimentos, cantos e ritmos, gestos e mmicas. Assim, um sistema de relaes

    aparentemente arbitrrio enfocado como significativo. Alerta Bourdieu para a necessidade

    de compreenso de todos os atos ou discursos rituais, e no apenas os mais espetaculares,

    levando em conta a sua especificidade ressaltada nesses termos:

    (...) la particularit [des actes et des discours rituels] rside prcisment dans le fait que nul ne savise de les vivre comme absurdes, arbitraires ou immotivs, bien quils naient dautre raison dtre que dtre socialement reconnus comme dignes dexister (BOURDIEU, 1980, pp. 35-36)21.

    tambm preciso dar voz s ressalvas de Bourdieu com relao ao uso do modelo

    estruturalista em etnologia. Segundo o autor, tal abordagem resultou em grandes equvocos,

    entre os quais o de enfocar esse sistema revelado pela anlise estrutural como independente e

    autnomo em relao s funes sociais das interaes. O uso da teoria estruturalista na

    antropologia levou muitas vezes a interpretar as variantes encontradas nas prticas e nos

    rituais como diferenas semiolgicas dentro de um sistema de diferenas internas, como no

    modelo saussuriano, ignorando as correlaes existentes com os demais sistemas de

    diferenas entre posies sociais. preciso, portanto, compreender as ligaes entre as

    diferenas internas entre elementos simblicos e diferenas externas decorrente das posies

    dos agentes nas esferas econmicas ou polticas os campos , entre outras.

    A dmarche aqui proposta parte do estudo dos significados internos da prtica, que

    tm sido negligenciados na bibliografia analisada sobre a capoeira. Trata-se de investigar a

    estrutura, constituio ou configurao da roda, isto , a construo e a realizao das aes e

    interaes que envolvem os seus participantes, para em seguida relacionar o sistema

    diferencial de expresses e comportamentos com a estrutura do grupo hierarquicamente

    organizado. Desta forma, as diferenas so retraduzidas em termos de valores, bem como de

    21 a particularidade [desses atos e discursos rituais] reside precisamente no fato de que ningum os vive como absurdos, arbitrrios ou imotivados, ainda que no tenham outra razo de ser do que serem socialmente reconhecidos como dignos de existir (Traduo da autora).

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    18

  • poder. A perspectiva assim deslocada de uma anlise que confronta o universo da capoeira

    como comunidade igualitria representativa dos grupos sociais dominados, por um lado, e as

    instituies dominantes (qualificadas pelos autores como racionais, brancas, modernas, etc)

    por outro, tal como representado na maioria dos trabalhos consultados, para uma perspectiva

    em que se procura estabelecer analogias e homologias entre a excelncia atribuda a certos

    praticantes a partir de fazeres (corporais, artsticas e comportamentos) e as relaes de poder

    que estruturam os grupos.

    Objetiva-se, assim, vincular os saberes e os poderes diferenciados que conferem as

    formas e os sentidos prtica da capoeira angola e, em seguida, compreender tal conjunto no

    contexto mais amplo das relaes entre os grupos sociais tambm diferenciados envolvidos na

    (re)produo da prtica.

    1.7 METODOLOGIA E OBJETIVAO

    Como j afirmado, os vnculos entre a capoeira e instncias polticas, intelectuais e

    grupos socioculturais ou tnicos foram objeto de diversos estudos, cujos dados

    complementam a abordagem apresentada e so aqui confrontadas com aqueles produzidos na

    pesquisa de campo no universo de dois grupos baianos de capoeira angola.

    Tambm so retomados aspetos etnogrficos de pesquisas j disponibilizadas, quando

    os dados apresentados permitem esclarecer ou ampliar o foco das minhas observaes ou

    ainda quando as concluses s quais chegam os autores suscitam um dilogo proveitoso aos

    efeitos do trabalho, independentemente da coincidncia ou no dos posicionamentos.

    conveniente situar a perspectiva adotada pelos autores, no sentido de trazer tona os

    pressupostos e valores inerentes posio que ocupam no campo, para que se possa acolher

    suas contribuies. importante que se diga isto porquanto existe, em muitos casos, uma

    estreita relao entre os pesquisadores da capoeira e seus objetos o que tambm o caso

    deste trabalho. O envolvimento com o universo que se pretende investigar costuma engendrar

    uma situao peculiar do pesquisador, que freqentemente se encontra vinculado ao seu

    objeto por laos afetivos, pois compartilha os valores e os interesses que animam os grupos de

    capoeira. Sendo assim, a sua perspectiva pode tender a uma certa idealizao, pois a prpria

    experincia enquanto membro de uma coletividade resulta na adoo consciente e/ou

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  • incorporao de perspectivas e categorias dadas que orientam a sua apreenso. Ora, sabe-se

    que a relao que une o capoeirista a seu grupo, seu mestre e sua prtica pode por vezes

    alcanar dimenses vitais em termo de auto-estima, incluso social, equilibro fsico e psico-

    afetivo. Em todo caso, isto implica uma identificao com este universo particular, sem a qual

    no haveria possibilidade de permanncia prolongada no grupo.

    Por outro lado, os dados e as concluses que um trabalho acadmico traz luz iro

    direta ou indiretamente pesar no sentido de alimentar uma ou outra perspectiva sobre um

    objeto controvertido, pois a discusso sobre a identidade cultural negra ou afro-brasileira e a

    herana das matrizes tomadas como africanas, seja esta herana central ou apenas transversal

    nos estudos da capoeira, participa de um amplo debate com inegveis dimenses polticas. Os

    discursos produzidos na academia, ao apresentarem o objeto sob uma vertente dada,

    enobrecida pela objetividade cientfica, exercem um poder de construo do real ao modo

    do discurso performativo (BOURDIEU, 1994) capaz de levar existncia fatos, relaes e

    grupos ou, pelo contrrio, relegar concluses anteriores e alheias ao status de equvocos ou de

    simples mitos. Assim foi o caso de uma pesquisa etnogrfica realizada pelo antroplogo

    portugus Neves e Sousa, em meados dos anos sessenta do sculo passado22, que revelava a

    existncia de um rito de passagem consistindo numa luta entre dois rapazes observado em

    Angola e chamado de dana da zebra ou Ngolo. Semelhanas notveis entre os movimentos

    desempenhados em tal luta ritual e aqueles que caracterizam a capoeira brasileira, ressaltadas

    pelo autor do estudo, forneceram o insumo para pesquisas ulteriores argumentando a favor da

    origem Bantu da capoeira. A dana do Ngolo como possvel origem da capoeira retomada

    em praticamente todos os trabalhos acadmicos enfocando este tema dos ltimos 30 anos23.

    Mais relevante ainda que vrias academias de capoeira angola adotaram como

    smbolos e logotipos representativos dos seus respectivos grupos o desenho de duas zebras em

    confronto, inspirados nos dados aportados pela pesquisa portuguesa e retomados no s nos

    mais recentes estudos acadmicos brasileiros como tambm na literatura de vulgarizao. Este

    22A primeira referncia ao trabalho deste antroplogo encontrada em Cmara Cascudo. Diz ele: Albano de Neves e Sousa, de Luanda, poeta, pintor, etngrafo, encarregou-se de elucidar o lado de l; as fontes da capoeira (CASCUDO, 1967, p. 184).23 No pretendo aqui recusar tal hiptese, nem mesmo participar do debate polmico sobre a trajetria histrica da capoeira no Brasil e na Bahia, inclusive porque a proposta da pesquisa no inclui abordar a discusso da origem da capoeira. Entretanto, convm ressaltar que faltam estudos comparativos entre as diversas lutas e danas rituais africanas e as suas supostas heranas na Amrica do Sul e no Caribe, regies em que se encontram diversas modalidades dessas prticas ldicas e marciais (como a Bassula, a Ladja e o Mouringue). Neste sentido, a relao entre capoeira e Ngolo me parece ser demasiadamente estreita em vista das mltiplas intersees que caracterizam as manifestaes ldicas e religiosas reinterpretadas pelas disporas africanas nas Amricas. S nos ltimos anos, pesquisadores e capoeiristas tm iniciado pesquisas a respeito dessas manifestaes; assim, pode-se esperar que o tema inspire novas pesquisas num futuro muito prximo.

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  • exemplo evidencia os vnculos que unem o mundo acadmico e o universo da capoeira, num

    contexto em que a produo simblica, acadmica ou no, pode se tornar um elemento

    estratgico na disputa pelo reconhecimento de indivduos e grupos e traz assim tona a

    questo da relao do pesquisador com seus campo e objeto, justificando uma ateno

    especial.

    A dimenso metodolgica da pesquisa adquire assim um lugar central no conjunto do

    trabalho, correspondendo posio donde se empreende a observao. Trata-se do elemento

    que condiciona no s a escolha dos dados considerados relevantes, como tambm a

    perspectiva analtica que orienta a sua interpretao. Ao pretender aqui investigar o que

    acontece na roda de capoeira com a finalidade de identificar e/ou reconhecer os cdigos e

    valores que estruturam tal prtica e constituem seu sentido singular, preciso questionar os

    pressupostos inerentes prpria dmarche da autora, pressupostos estes que se originam em

    duas vertentes da experincia: como praticante e admiradora da capoeira e na perspectiva de

    um trabalho acadmico em Cincias Sociais. Ambas as posies implicam compromissos e

    acarretam determinados ngulos de viso que decorrem, em grande parte, do uso de categorias

    de apreenso e de critrios de coerncia, ou seja, de uma lgica.

    A perspectiva bourdieusiana auxilia a minha reflexo ao ressaltar a diferena entre a

    lgica terica da prtica, oriunda de uma apreenso que faz das prticas um uso

    cognitivo (BOURDIEU, 1982), esquecendo que as relaes e as prticas que se pretende

    objetivar cumprem outras funes para os agentes, e a lgica prtica da prtica, decorrente

    dos habitus, predisposies incorporadas que estruturam as prticas sem que os agentes

    tenham intenes reflexivamente percebidas de perseguir determinados fins. Entre as

    construes tericas sobre a prtica, ainda se h de distinguir entre aquelas s quais os

    prprios agentes recorrem para explicar ou justificar seus modos de agir e as elaboraes

    cientficas. duplicidade das perspectivas tericas, necessrio responder atravs de uma

    dupla ruptura (BOURDIEU, 1980). A primeira a j clssica ruptura epistemolgica, que

    consiste em demarcar-se do ponto de vista dos agentes, da sociologia espontnea, termo que

    corresponde ao que Durkheim (1990) chamava de pr-noes. A segunda consiste em romper

    com o ponto de vista do observador, isto , com o distanciamento necessrio observao

    cientfica para questionar as condies e os pressupostos de natureza social de tal postura e

    compreender que esta obedece a uma lgica diferente daquela que impulsiona os agentes, para

    enfim reintroduzir na anlise essa distncia objetivada. Tal dmarche consiste, assim, em

    objetivar a objetivao.

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  • Aos efeitos de alcanar este objetivo, modalidade de observao participante,

    escolhida pelo fato de a autora do projeto conviver e participar das atividades dos grupos de

    capoeira observados desde uma poca prvia investigao, associado um rigoroso

    acompanhamento crtico. Aposta-se na fecundidade da tenso relacional do binmio

    pesquisadora/campo para propiciar uma reflexo sobre os processos de naturalizao dos

    valores. Atravs de uma postura reflexiva que interroga a escolha das categorias que surgiram

    de um modo que parecia natural no processo de tomada de notas que acompanhou as

    observaes, so desvendados alguns dos pressupostos ocultos na vivncia nativa. Em outros

    termos, a descrio do ritual, fase fundamental do trabalho etnogrfico, reveladora de

    categorias de classificao que tambm so categorias de apreciao ou de julgamento, as

    quais so incorporadas e remetem aos valores dos capoeiristas: o jogo bonito, tem ax,

    jogo de mestre ou jogo de compadres, o capoeirista aluno de Mestre X, aluno antigo,

    mandingueiro, de fora, mulher, etc.

    Por outro lado, tambm se lana mo, na etnografia, de critrios de classificao e

    avaliao inerentes pesquisa cientfica para a medio e/ou comparao dos fenmenos

    observados. Trata-se, por exemplo, nos procedimentos de observao e de colheita de dados,

    de quantificar elementos da prtica o nmero de cantigas interpretadas numa roda, por

    exemplo e/ou de medir os tempos de atuao dos jogadores, dos revezamentos de jogo ou

    de canto. Este concernimento com as quantidade e durao objetivas das performances

    alheio aos marcos apreciativos nativos e remete a um trato do tempo orientado pela

    racionalidade cientfica, alm de revelar habitus oriundos da origem europia mais

    precisamente, francesa da pesquisadora. No se trata aqui de empreender uma sntese entre

    estes dois ethos diferenciados, mas de submeter as categorias micas (dos capoeiristas, entre

    os quais a autora em certo sentido e em certa medida) a uma anlise sociolgica de tipo

    etnogrfico cujos instrumentos (fundamentados na racionalidade cientfica) so tambm

    objetivados.

    Procurou-se assim reconstruir o objeto, evidenciando as divergncias e interseces

    entre a posio do fazer/participar e a posio do observar/analisar ao custo de um

    posicionamento reflexivo ao mesmo tempo difcil, desafiante e extremamente enriquecedor.

    Tal jogo entre distncia/objetivao e familiaridade, que j se encontra presente, embora de

    um modo diferenciado, na minha experincia de estrangeira convivendo h duas dcadas na

    capoeira e no Brasil, sustenta uma posio e um olhar que oscilam de dentro para fora e vice-

    versa. As duas experincias distinguem-se, no entanto, de forma significativa, pois, se na vida

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    22

  • cotidiana exero o meu estranhamento de forma quase naturalizada24, trata-se agora de

    objetiv-lo.

    Em outros termos, foi preciso atentar diversidade de pontos de vista, alternado e/ou

    se sobrepondo ao longo da observao e da escrita, que revelam nveis de identificao, de

    familiaridade e de conhecimento distintos. Optou-se pelo uso da primeira pessoa verbal para

    expressar a posio de autora da pesquisa e do texto, o que permitiu reservar o ns aos

    enunciados em que se deseja marcar a pertena ao universo dos angoleiros (ns capoeiristas

    ou, em outros momentos, ns do Nzinga). O uso do eu autoral permite que se desenhe o

    ele/eles do objeto e expressa e propicia o distanciamento necessrio anlise. Enfim, esse

    eu assume a sua parcialidade e a sua subjetividade: quem escreve capoeirista, mulher,

    estrangeira e pesquisadora. Ou ainda: enquanto capoeirista, tende a partilhar e, portanto, a

    perceber as experincias vivenciadas pelos aprendizes capoeiristas (e tende a ignorar aquelas

    dos mestres) e, enquanto mulher estrangeira, ocupa uma posio no campo que orienta o foco

    da observao no sentido de tornar mais visveis as relaes de poder.

    A esse esforo de esclarecimento da posio da autora do trabalho25, ou seja, do

    sujeito, falta ainda acrescentar uma considerao sobre a sua finalidade, seu receptor, j que

    esta segunda face determina, tambm, aquilo que dito ou no no texto que segue.

    Parafraseando Castoriadis, a pergunta quem ?, que remete subjetividade daquilo chamado

    de indivduo social, surge logo que se produz uma interpretao (o autor est se referindo

    psicanlise, mas no h como negar que uma etnografia tambm seja, em parte, uma

    interpretao). Contudo, segue afirmando que qualquer interpretao dirige-se tambm a

    algum e, neste sentido, implica a segunda pergunta: para quem ? (CASTORIADIS, 1990,

    p. 235). Pois o presente texto destina-se em primeiro lugar a leitores acadmicos e procura

    corresponder s exigncias e padres deste universo; por outro lado, tambm objetiva

    satisfazer leitores capoeiristas, o que significa respeit-los, pesar o dito, omitir nomes ou fatos

    suscetveis de explicitar aquilo que deveria permanecer na opacidade da prtica.

    24 Praticamente, um estranhar familiar.25 Como demonstra Geertz (1989), as estratgias textuais, ou seja, o estilo adotado pelo autor da etnografia, so indissociveis das representaes construdas a respeito do mundo do outro.

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  • 1.8 ETNOGRAFIA E EXPERINCIA

    A etnografia apresentada a seguir construda a partir de uma pesquisa participante

    nos grupos Nzinga e FICA, no perodo entre novembro de 2005 e fevereiro de 2007. No

    primeiro desses grupos, as observaes aconteceram em paralelo com a continuidade da

    minha participao s atividades regulares de treinos, rodas, conversas e convivncia com os

    membros do Nzinga. No que concerne ao segundo, foram efetuadas visitas sistemticas s

    rodas, treinos e workshops promovidos pela FICA, alm de contar com narrativas (escritas e

    orais) elaboradas por uma capoeirista tambm estudiosa da capoeira membro deste grupo.

    A escolha e a interpretao dos dados condicionada pela prpria vivncia da autora,

    pois aquilo que visto no trabalho de campo se insere num conjunto de conhecimentos e de

    experincias mais amplo no universo da capoeira angola em geral e nesses dois grupos, em

    particular26. Esta perspectiva subjetiva procurou se confrontar com as experincias e

    apreenses construes objetivas e subjetivas do mesmo objeto, expressas por outros

    capoeiristas/pesquisadores envolvidos ou situados em diversas reas de conhecimento.

    Tal dilogo foi propiciado pela criao de um grupo de pesquisa expressamente

    constitudo de estudiosos da capoeira, em Salvador, no incio ano de 2006, reunidos em torno

    da proposta de se discutir os textos e produes dos seus participantes. O grupo de Estudo

    Mestre Noronha, sediado no Instituto Jair Moura, no bairro do Garcia, no centro de Salvador,

    realiza encontros quinzenais em que so apresentados estudos e pesquisas sobre a temtica,

    reunindo capoeiristas que estudam capoeira, alm de outros interessados. Alguns resultados

    parciais que desembocaram no texto da presente Dissertao foram debatidos nesse contexto.

    Atravs dos debates desenvolvidos neste ambiente, foi possvel entrar em contato com

    diversas faces da experincia de capoeirista que enriqueceram e matizaram alguns aspetos das

    minhas prprias observaes.

    A escolha desse frum de discusso num mbito externo aos grupos est associada s

    restries impostas pela estrutura organizacional hierrquica dos grupos de capoeira. Diversos

    elementos que a observao das prticas e a prpria prtica trazem tona, associados s

    relaes de poder como a eufemizao da violncia ou a cooptao dos lderes, por exemplo

    26 Sou membro do Nzinga desde sua criao em Salvador, em 2003 e participei das atividades dos anos iniciais da FICA (de 1997 a 2000). Alm da minha participao nesses dois grupos, enfocados na pesquisa, fui aluna em mais trs grupos de capoeira angola da linha de Mestre Pastinha: GCAP (1989); Sementes do Jogo de Angola (1990-1992); e ZIMBA (1993-1997).

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  • remetem ao domnio do tcito, do no dito ou mesmo do desconhecido dos prprios

    atores. relevante lembrar que meu ofcio de pesquisadora no neutraliza a minha posio no

    campo, que comporta acordos, tambm tcitos, no sentido de aderir s regras implcitas e

    explcitas do grupo.

    Nestas condies, o exerccio de observao ocorreu de modo quase mudo ( exceo

    da autorizao prvia obtida junto aos mestres), sem que eu solicite esclarecimentos sobre

    aquilo que estava sendo visto ou ouvido e tambm, sem que me fossem solicitados

    esclarecimentos sobre aquilo que eu estava vendo e escrevendo. As interpretaes dos

    atores (GEERTZ, 1989) fazem parte daquele fluxo de fazeres e dizeres que se oferecia

    observao, ainda mais porque, em muitas das situaes enfocadas, havia algum ensinando

    algo a outro algum. Os mitos, a tradio oral, a filosofia explcita da capoeira so

    apreendidos em meio ao conjunto de elementos considerados significativos apresentados no

    texto, constituindo-se como uma das facetas da experincia vivenciada pelos capoeiristas27.

    A partir do prisma da experincia, um dos objetivos centrais da etnografia enfocar a

    dimenso corporal da prtica no intuito de revelar as disposies fsicas e mentais

    interiorizadas no esquema corporal prprio ao capoeirista. Ora, esta construo corporal,

    resultado de uma educao da gestualidade e dos sentidos adquirida ao longo de uma

    aprendizagem de longa durao28, embora se situe aqum da conscincia e da linguagem oral,

    encontrando-se assim ausente das racionalizaes dos agentes, constitui-se como suporte s

    crenas e valores que estruturam a prtica dos grupos de capoeira.

    Em termos do procedimento etnogrfico, nossa abordagem inspira-se nos

    procedimentos do socilogo Loc Wacquant em seu estudo sobre o pugilismo, Corpo e Alma:

    Notas etnogrficas de um aprendiz de boxe. O objetivo perseguido pelo autor restituir

    sociologia a dimenso carnal da existncia atravs de deteco e de registro, de

    decodificao e de escritura da dimenso afetiva e sensorial do mundo social geralmente

    negligenciada pelas abordagens estabelecidas (WACQUANT, 2000, p. 11). O autor parte do

    conceito de aprendizagem pelo corpo, bastante visvel no caso do boxe, pois a transmisso

    desta prtica se d aqum da linguagem verbal, e prope estender tais mecanismos aos

    agentes sociais que participam de universos aparentemente bem menos corporais como os 27 Em razo da opo metodolgica inspirada na teoria da ao prtica e em conseqncia desses ensinamentos tradicionais terem sido repetidos tantas vezes no decorrer da minha aprendizagem e tambm interpretados e comentados sistematicamente na maior parte da bibliografia sobre capoeira, tenderam a atrair menos minha ateno do que outros elementos mais discretos ou implcitos.28 caracterstica da capoeira angola a lentido do ritmo de aprendizagem. Um capoeirista demora em torno de 20 anos para tornar-se mestre, um aluno novo pode passar de 3 a 6 meses treinando apenas os primeiros movimentos, e so geralmente necessrios anos para aprender a tocar berimbau.

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  • intelectuais. Disto se depreende que a sociologia deve, na medida do possvel, compreender

    pelo corpo o universo que analisa (WACQUANT, 2006).

    Esta vertente da anlise permite que sejam integrados ao trabalho os domnios da

    experincia e da subjetividade, favorecendo o aproveitamento dos conhecimentos prticos da

    pesquisadora a respeito dos grupos e de seus componentes enfocados no trabalho. Com a

    dmarche de objetivao, acima referida, estabelece-se uma distncia para com os habitus

    adquiridos no meio e expressos na linguagem nativa. Torna-se desta forma possvel

    confrontar os dados objetivos concernentes estrutura da roda configurao dos espaos

    fsico e temporal, dinmica dos revezamentos, classificao dos componentes em termos de

    gnero, nacionalidade, idade, entre outros com a vivncia subjetiva da investigadora e dos

    seus companheiros de capoeira, cuja interlocuo cotidiana e no necessariamente reflexiva

    tambm constitui uma fonte de dados, j que reveladora dos valores naturalmente

    atribudos prtica.

    As interaes verbais espontneas informam sobre as percepes e apreciaes dos

    atores quanto s situaes vivenciadas na capoeira em tempo real, diferena dos

    depoimentos recolhidos por ocasio das entrevistas habitualmente utilizadas como fontes nas

    pesquisas, em que os capoeiristas previamente escolhidos pelo entrevistador expressam

    opinies, relatam acontecimentos que tacitamente julgam significativos e dignos de ser

    relembrados naquela ocasio, ou seja, construes que, embora originadas na experincia,

    dela omitem os elementos percebidos como no consoantes com a imagem idealizada

    construda pelo grupo.

    Esses dilogos informais e cotidianos so designados por Wacquant pela expresso

    currculo oculto, por vincular informaes prticas ausentes nos ensinamentos mais formais

    de tais situaes de aprendizagem. O aproveitamento dessas falas central numa pesquisa que

    investiga as percepes e os julgamentos dos praticantes: so captados em contextos

    interativos precisos nos quais os ditos so dirigidos a interlocutores que ocupam posies

    diferenciadas no meio; prescindem das coerncia e correo moral e/ou lingstica

    (auto)exigidas dos informantes de uma pesquisa etnogrfica; enfim, so muitas vezes

    simultneos aos prprios fazeres a que se referem, sendo assim reveladores das emoes

    suscitadas pelos acontecimentos.

    O vocabulrio mico constitui, portanto, um segundo eixo interpretativo

    complementar dimenso corporal da experincia. Constitui um meio de organizao e um

    26

    26

  • canal de expresso dos valores e afetos associados a esta dimenso, quando os capoeiristas

    julgam as interaes que presenciam ou das quais participam e, desta forma, tornam acessvel

    a subjetividade da suas experincias. Por outro lado, h um aproveitamento desses dizeres

    nativos no sentido de serem os veculos de permanncias histricas: atravs dos termos

    micos, relatos individuais contemporneos sobre a prtica da capoeira podem ser vinculados

    a elementos do passado e informar sobre a profundidade histrica dos habitus.

    Com as grias dos capoeiristas associadas a suas expresses corporais, trata-se tambm

    de adentrar um universo que muitas vezes escapa ao enfoque convencionalmente sociolgico,

    pois se situa aqum da racionalizao: o dos sentimentos. A intuio concernente ao lugar que

    o corpo e a emoo ocupam na construo social tambm fundamenta o estudo de Wacquant

    acima referido, que, por sua vez, retoma de Marcel Mauss (1968; 2004) o tema da educao

    da emoo para analisar a construo emocional inerente identidade do boxeador. Esta

    mesma perspectiva mostra-se muito relevante no mbito do presente trabalho. Com efeito, o

    domnio da expresso dos sentimentos nas performances corporais do jogo da capoeira

    central, sendo a habilidade em esconder as demonstraes de medo, dor ou raiva, ou, pelo

    contrrio, de teatralizar tais sentimentos ou seus opostos segurana, alegria, ingenuidade

    um dos principais componentes dos critrios de excelncia, do mesmo modo que as

    qualidades de destreza corporal ou de execuo musical. Assim, recorrer experincia

    sensorial e emocional dos agentes constituiu-se como ferramenta complementar essencial no

    sentido de indagar a natureza das normas coletivas implcitas que sustentam a expresso dos

    sentimentos considerada adequada e as formas de aquisio/educao de tais manifestaes

    legitimadas pelo grupo.

    A ateno dada linguagem e ao corpo no trabalho junto aos dois grupos de capoeira

    se orienta no sentido de trazer tona a progressiva incorporao dos esquemas de percepo e

    de ao do capoeirista que so simultaneamente razes e frutos de tais modos de sentir, agir e

    interagir. Estas disposies estruturadas e estruturantes, como as definiu Bourdieu (2000),

    podem tambm ser apreendidas nos componentes dinmicos da corporeidade. Esta pesquisa,

    ao se deter especificamente sobre o repertrio gestual caracterstico da capoeira angola,

    elemento consideravelmente complexo no sentido em que associa dana, teatro, mmica e

    luta, alm de incluir elementos da gestualidade religiosa afro-brasileira, procura trazer luz as

    percepes do mundo suscitadas pelas tomadas de posio entendendo a expresso no seu

    sentido literal dos atores. Prope-se assim estabelecer uma correspondncia entre posies

    no espao fsico da roda e posicionamento no espao social, sendo a estrutura do grupo de

    27

    27

  • capoeira apreendida como mediao e ferramenta de leitura da analogia proposta. Neste

    sentido, no s se analisam os gestos e movimentos executados no jogo que opem os dois

    adversrios, como tambm se abre o foco da observao para uma perspectiva mais

    abrangente que apreende os deslocamentos e as interaes do conjunto dos participantes na

    roda. Trata-se, portanto, de desvendar a qualidade dos espaos simblicos construdos atravs

    das configuraes rituais espao do jogo propriamente dito, espao da bateria musical,

    espao da platia e de perceber regularidades na ocupao destes espaos portadores de

    valores diferenciados.

    O texto elabora e reconstri os diversos elementos da experincia de aprendizagem e de

    realizao da capoeira angola, organizando-os em trs tpicos que emprestam seus nomes aos

    captulos: percepes, valores e posies.

    No captulo 2: Percepes, acompanham-se os processos de aprendizagem da

    capoeira no sentido de propiciar o entendimento das modalidades de incorporao dos

    movimentos e gestos que constituem o repertrio fsico da capoeira angola. So ressaltados os

    efeitos do trabalho fsico/tcnico sobre as percepes dos aprendizes no sentido de uma

    reconfigurao da percepo do espao e do prprio corpo. Num segundo momento, atenta-se

    dimenso interativa do jogo, focalizando-se o desenvolvimento de habilidades criativas que

    gara