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Mochila Social Um olhar sobre desenvolvimento social e pobreza no leste da África Por Alex Fisberg Este capítulo integra o livro Mochila Social – Para mais informações acesse: www.mochilasocial.com ou colabore em www.catarse.me/mochilasocial Por Alex Fisberg (2012) O projeto gráfico é da Casa Rex www.casarex.com.br

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O Quênia foi o terceiro país visitado. Passando por Nairobi, Kisumu e uma viagem à Dadaab, pude explorar o setor social através de diferentes pontos de vista: desde visitas a projetos de agências da ONU até microprojetos dentro das favelas de Kibera, Mathare e Korogocho. Foi também uma oportunidade de conhecer a capital queniana e suas similaridades e diferenças com São Paulo, na distribuição espacial de riquezas e na influência ao resto da região leste da África.

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Mochila Social

Um olhar sobre desenvolvimento social e pobreza no leste da África

Por Alex Fisberg

Este capítulo integra o livro Mochila Social – Para mais informações acesse: www.mochilasocial.com ou colabore em www.catarse.me/mochilasocial

Por Alex Fisberg (2012) O projeto gráfico é da Casa Rex www.casarex.com.br

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mais tranquilo ou, pelo menos, eu estava mais tranquilo. Apesar

de apaixonado pela Etiópia, estava também muito curioso para

conhecer o Quênia e, principalmente, Nairóbi. Ouvi muito sobre

a cidade, sobre ser o centro de inovação e mobilização social do leste

africano. Estava empolgado para rever alguns amigos e, claro, visitar

projetos que conhecia apenas do meu computador.

Chegar em um país sem ter nada planejado já é difícil,

mas chegar de madrugada e com a guarda levantada é ainda pior.

Do aeroporto, discuti por mais de uma hora com um serviço de táxis

para garantir que eu não estava entrando em um desses esque-

mas com turistas mal informados. Cheguei a me divertir bastante

com o jogo de negociações no qual estávamos nos desafiando.

No fim, acho que ambos fizemos um bom negócio, mas a viagem

do aeroporto até uma possibilidade de hostel não foi tão sutil

quanto imaginava. Pelo menos não da minha parte.

Não posso negar que cheguei a Nairóbi com os punhos

erguidos, em posição de defesa. Ouvi muitas histórias de roubo

e truques e o apelido de “NaiRobbery”, repetido em dezenas de

fóruns, guias e livros, não era nada animador. Abordei diversos

muzungus6, na tentativa de baratear meu transporte, mas ne-

nhum deles estava indo na mesma direção que eu.

No carro, conversava com o motorista e conduzia a conversa

para dois lados: primeiro, elogiar a simpatia e amizade da popula-

ção queniana (uma esquizofrênica tentativa de convencê-lo a não

me roubar); depois, compartilhar uma série de histórias infundadas

sobre a minha pessoa para garantir que eu não era um idiota qual-

quer: afirmei ser a minha quinta vez no país, contei horrores sobre

a vida em São Paulo e quão acostumado à violência estou, gabei-me

de campeonatos de luta e conhecimentos de defesa pessoal. No final,

acho que o motorista deve ter pensado que era eu quem ia assaltá-lo.

No local marcado com um “x” no meu guia, o hotel no qual

planejava me hospedar já não existia mais. Em compensação, de

2007 para cá (data de publicação do meu guia), muitos outros

“hotéis” abriram naquela região. A música alta e as diferentes

“modelos” que passeavam pela rua me diziam exatamente em que

parte da cidade estava. Depois de verificar em mais de 5 opções e

perceber que todas estavam lotadas, acabei por encontrar uma

habitação adequada para aquelas poucas horas de sono.

Ao sair na rua no dia seguinte, tive certeza de onde estava:

praticamente no meio da “rua 25 de Março” de Nairóbi (misturada

com a rua Augusta). Recebi uma bela recepção dos vizinhos en-

quanto saía em busca de um caixa eletrônico para pagar o hotel.

6 A partir de agora,

Muzungu é a palavra

usada para definir o

estrangeiro, branco,

turista. Mais uma

vez, o sentido não

é necessariamente

pejorativo, apesar de

diversas vezes ser

usado como tal.

O VOO PARA O QUÊNIA FOI MUITO

102 103

abandono de serviços, inclusive públicos, para a maior parte

da população.

Quando digo que me senti em casa, em São Paulo, também

estou me referindo a esta dualidade. Se de um lado a cidade es-

banja certo desenvolvimento, a periferia esconde favelas e bairros

esquecidos ao resto da população. Ao cidadão “da cidade”, é muito

fácil passar a vida inteira sem tomar conhecimento da existência

destas favelas e das condições de vida que permanecem ali.

Montei um roteiro para visitar as organizações e regiões

consideradas favelas na capital queniana. A primeira, quase ao

acaso, foi Korogocho, por meio de uma organização chamada

SUFTA. Esta era uma visita já programada junto a Stanley e

Debrah na qual resolvi me juntar.

Entrei em um Matatu comum do centro de Nairóbi, mas

o destino estava há alguns quilômetros da capital queniana.

O transporte nos deixou em uma rua asfaltada, mas a partir daí o

caminho seguia em uma viela de terra. Um ativo mercado toma

conta do cenário, mas caminhávamos em um terreno extrema-

mente desnivelado, cheio de rachaduras e buracos, por onde

passavam centenas de pessoas e algumas motocicletas. A viela,

de aproximadamente 500 metros, é a última conexão existente

entre a presença do poder público e a favela de Korogocho.

O fim da viela dá espaço a um campo aberto, lotado de

lixo. Um córrego separa o campo do início das moradias. Em um

cano exposto de esgoto, crianças brincam de se pendurar por

cima da água. Passamos uma ponte de não mais que 1 metro

de largura e chegamos à rua central onde a favela tem início.

Por lá seguimos, entre olhares atentos e saudações ao Muzungu

que por ali passava. Uma curva à esquerda, passando por alguns

varais de roupa por secar, e finalmente chegamos ao escritório

Com um mapa da cidade na mão, cruzei Nairóbi em poucas horas

e me senti em casa. Para falar a verdade, me senti em São Paulo.

De um lado para o outro, pessoas caminhavam apressa-

das, muitas de terno e gravata, no trajeto casa-trabalho-almoço-

-trabalho-casa. A cidade também tem suas regiões: a rua dos

eletrônicos (indianos e chineses), a rua dos tecidos (a maioria

vindos da Tanzânia), dois grandes parques arborizados, alguns

museus, cadeias de supermercado gigantes e cafés e hotéis para

todos os gostos. Mas onde estão as favelas? Afinal, uma das razões

da minha vinda ao Quênia era para explorar Kibera (considerada

uma das maiores favelas da África) e outras regiões famosas pela

extrema concentração de pobreza.

O assunto não ficou para depois. Sentei em um café com

dois amigos quenianos que conheci em um curso da UN-Habitat

em parceria com meu antigo trabalho no Weitz Center, em Israel.

Após comentar sobre a região do meu hotel e perguntar sobre a

localização das favelas em Nairóbi, tomamos uma decisão: eu me

mudaria para a casa de Stanley e ajudaria ele e Debrah a montar

uma consultoria de desenvolvimento social.

O acordo era perfeito. Enquanto eu fazia minha pesquisa e

visitava diferentes projetos, ao mesmo tempo estaríamos criando

a oportunidade de dar continuidade às discussões por meio da

nova consultoria. Fizemos uma rápida avaliação dos contatos e

organizações que já dispúnhamos e começamos a montar um cro-

nograma de visitas para a minha estadia no Quênia.

Peguei minha mochila no hotel no centro da cidade e saí-

mos em um Matatu7 em direção a uma espécie de subúrbio de

Nairóbi, chamado Uthiru, onde Stanley morava. A cidade se di-

vide claramente em um centro comercial e uma infinidade de

subúrbios residenciais, variando bastante o tipo de morador e,

principalmente, a classe e os serviços sociais disponíveis. Se de

um lado da cidade concentram-se lojas ocidentalizadas e uma

rede de serviços de elevado custo, do outro é notável o real

7 Matatu é o

nome das minivans

de transporte

no Quênia. No

passado, eram

todas grafitadas

e decoradas e

competiam para

ver quem possuía

o sistema de som

mais poderoso. Li o

relato no excelente

livro Pé na África, de

Fabio Zanini e fiquei

desapontado por

uma nova série de

leis ter restringido a

competição cultural

destes veículos. O

que sobrou: sinais

desgastados de

antigos grafites,

sistemas de som

funcionando

escondidos e a

mesma sensação de

que a cada viagem

você põe sua vida na

roleta russa. Matatu,

originalmente,

vem do Swahili e

significa algo como

“4 dinheiros”, pois

era o preço da

viagem no início.

Hoje, dependendo

do horário e das

condições climáticas,

você paga entre 20

e 300 Shillings pela

mesma viagem.

104 105

da organização que fui encontrar: SUFTA (Societies United for

Transformation in Africa).

Fui recepcionado por John, um dos fundadores da orga-

nização. Segundo ele, SUFTA foi fundada por alguns jovens que

nasceram e cresceram na comunidade. Pedi que me explicasse

o funcionamento da organização e os projetos em andamento.

Confesso: fiquei boquiaberto com a explicação. Ele falava em

planejamento estratégico, negócios sociais, empoderamento de

jovens e mulheres, desenvolvimento social comunitário, abor-

dagem holística e outros termos tão utilizados hoje em dia por

ONGs e agências internacionais. Resolvi fazer uma pergunta in-

delicada e fiquei impressionado com a resposta.

— John, de onde vem todo esse conhecimento?

Ele me respondeu com um sorriso sem graça. Os fundadores

da organização são universitários formados em administração, eco-

nomia e desenvolvimento comunitário. Foi interessante conferir

um dado que afirma que grande parte dos jovens quenianos atual-

mente frequentam as universidades do país. Estes, em específico,

resolveram usar o conhecimento adquirido para retornar a sua co-

munidade de origem e fazer a diferença. Foi bem melhor do que a

resposta que eu estava esperando, sobre algum tipo de treinamento

padronizado por parte de uma organização qualquer.

Estávamos discutindo sobre um novo projeto de legalização

de casamentos como forma de reduzir a violência doméstica e

sensibilizar homens e mulheres sobre o compromisso de se cons-

tituir uma família. Ao mesmo tempo, projetos de informática,

prevenção de HIV/AIDS e Malária, desenvolvimento de pequenos

negócios e apoio psicológico possuem agenda semanal junto à

comunidade. Até uma voluntária internacional da AIESEC estava

ali, ensinando inglês para as crianças da região.

Na comunidade de Korogocho estimam-se 120.000 mora-

dores, sendo 70% da população menor de 30 anos. É considerada

a quarta maior de Nairóbi, atrás de Kibera, Mathare (vizinha) e

Mukuru Kwa Njenga. É um assentamento ilegal iniciado nos anos

1980, com maioria de imigrantes de áreas rurais e até da Tanzânia.

A terra é dividida, sendo que mais da metade é propriedade do

Estado e o restante é de posse de um proprietário privado. A pre-

sença do poder público na região é nula, sendo que a distribuição

de água e energia são ilegais. A maioria da água chega a alguns

tanques e é redistribuída por intermediários, fazendo o preço su-

bir consideravelmente (sendo que a qualidade da água é muito

ruim, segundo o próprio John).

Não conseguimos notar a presença do governo ao caminhar

pelas ruas da comunidade. Ao contrário, é bem possível perce-

ber onde a mão do Estado termina, um pouco antes da ponte de

acesso à favela. De um lado, água encanada, iluminação pública e

ruas, digamos, alinhadas. Do outro, abandono em meio às vielas

de terra e casas improvisadas feitas de placas de metal e barro.

SUFTA mantém dois negócios locais como forma de buscar

sua sustentabilidade financeira: uma indústria de velas e uma

plantação de tomates. O lucro vai para a manutenção do escritó-

rio e das atividades realizadas na comunidade. Apesar de ainda

dependerem de uma doação mensal de um cidadão britânico que

“adotou” o projeto, os fundadores e diretores da organização

estão em busca de maneiras de criar independência financeira

para o desenvolvimento de suas atividades.

A organização, criada por jovens universitários, agora bus-

ca oportunidades de desenvolver negócios como forma de gerar

capital financeiro o suficiente para a manutenção das atividades

sociais voltadas para a comunidade. Não só as atividades econô-

micas propiciariam algum tipo de reforço para a renda daqueles

que ali trabalhassem, mas também parte desse lucro seria rein-

vestido em ações para a própria comunidade.

O modelo é conhecido, mas é aplicado organicamente utili-

zando-se principalmente do potencial já existente na região. A pro-

dução de velas está ligada a dois fatos cruciais para o sucesso das

106 107

atividades: primeiro, alguém na comunidade introduziu o equi-

pamento e compartilhou o conhecimento sobre como fazer velas

para a organização; em segundo lugar, identificou-se a relevância

de se comercializar estas mesmas velas em uma região próxima

para fiéis de uma igreja, reduzindo custos de transporte e garan-

tindo um mercado consumidor razoavelmente estável.

Mas as velas produzidas pela comunidade de Korogocho, sob

a liderança da SUFTA, possuíam um valor agregado ainda não explo-

rado. O lucro das velas produzidas pela SUFTA ia quase que integral-

mente para o sustento de uma infinidade de atividades sócio-edu-

cativas em uma das maiores favelas do Quênia. Enquanto as outras

velas do mercado operavam sob a lógica tradicional que garante o

lucro para os investidores ou diretores da empresa. O simples fato

de compartilhar esta informação com o cliente já agregaria o valor

necessário para destacar os produtos feitos na comunidade.

Afinal, há um mercado nacional (no Quênia) e internacio-

nal que teria bastante interesse em consumir este tipo de produto.

Principalmente sabendo que, além de cumprirem com excelência

a função que lhes cabe – no caso das velas, iluminar ou servir

de objeto ritualístico –, ainda exercem uma função fundamental

para o desenvolvimento social de uma favela queniana e, conse-

quentemente, para a cidade como um todo. Se bem comunicado,

a produção vinda de Korogocho poderia inclusive cobrar um valor

mais alto sem prejuízo no volume de vendas no mercado.

Foi no meu primeiro final de semana no Quênia, empol-

gado por tirar dois dias de folga com amigos, que fui vítima das

estatísticas e quase coloquei em xeque o resto da experiência.

Para mim, ter sido roubado no Quênia era um assunto ainda mais

complicado do que a simples perda dos meus bens materiais. Era

uma questão de não cometer uma injustiça com meu real estado

de preocupação com a violência no país.

Antes de chegar, ouvi que o Quênia era perigoso, que andar

nas ruas não era seguro e que se equiparava ao Brasil com relação à

violência. E por isso, ter sido assaltado foi, acima de tudo, uma

pena. Afinal, sentia-me extremamente seguro em Nairóbi. Retorna-

va à minha residência temporária a qualquer hora da madrugada,

de transporte coletivo, com todos os meus pertences na mochila

(isso inclui laptop e câmera fotográfica) e nada temia. Tratavam-me

bem de maneira geral e ninguém mexia comigo, nem mesmo por

eu ser “branco-europeu-bobo-rico”.

Assim, ter a mochila roubada como fruto de um descuido

do qual um paulistano de respeito jamais se orgulharia era uma

injustiça com a realidade que observava. Não foi a primeira vez

que fui roubado. Para falar a verdade, já havia sido roubado tantas

outras vezes e perdido tantas coisas de valor e insubstituíveis que

quando vi o porta-malas do carro sem os meus pertences, apenas

ignorei o ocorrido e segui em frente.

Foi minha culpa. Mais uma vez, é mais fácil justificar o

fato de eu ter sido descuidado do que questionar esse tipo de

acontecimento. “Ah, se eu tivesse agido diferente” ou “por que eu

fui deixar as coisas ali” são pensamentos que me ocorreram, mas

eu já nem sinto mais nada quando uma agressão dessas acontece.

Não fico mais paralisado, não fico nem surpreso. Engulo minha

perda e penso em como seguir adiante.

Sinto-me injustiçado e o que mais me dói é não poder ex-

pressar o que sinto. Um ladrão não pergunta quem somos ou o

que fazemos. Não permite diálogo e não abre espaço para argu-

mentação. Não me deixa negociar o que pode ou não arrancar de

mim. Tenho certeza que se eu pudesse ter uma conversa franca

com quem me furtou, chegaríamos a um acordo. Eu não estou

viajando como um turista qualquer, mas isso não interessa.

Infelizmente, o que aconteceu não tem volta. Nada do que

eu fizer ou refizer vai alterar minhas perdas. Cada item da minha

108 109

mochila era importante para mim, de formas diferentes. Quando

fui selecionado como furtado, eu era apenas uma mochila verme-

lha nas mãos de um Muzungu. Pelo puro exercício, resolvi listar o

inventário da minha mochila e argumentar, item por item, uma

simulação de o que eu diria ao ladrão. Eu sei exatamente o que

tinha na minha mochila e sei o impacto que cada perda terá no

meu projeto. Uma pena.

Eu estimo minha perda financeira – coisas que eu vou ter

que comprar novamente e recompor – em aproximadamente

R$ 3.000,00. Isso, provavelmente, comprometeu um relevante

pedaço do meu projeto, talvez tendo que diminuir a duração

do Mochila Social. Tendo em vista que 90% do dinheiro que vi-

nha usando era fruto de minhas economias e que eu nunca tive

nenhum interesse de lucro junto ao projeto, a situação agora

se alterou.

INVENTÁRIO:Mochila vermelha North Face A melhor mochila que já tive.

Presente dos meus pais especialmente para esta viagem, me

acompanhou na Índia, Israel, Jordânia, Egito, Palestina, Etiópia

e Quênia. Como você pode ver, era o instrumento que eu usava

para carregar coisas de valor para mim.

Câmera Lumix F265 A melhor câmera que eu já tive, mas enfim,

continua à venda na loja e se você quer me roubar, que o faça.

Mas por favor, o cartão de memória, com 4GB, se você aguardar

um pouco eu faço o download das fotos tiradas no sábado, do

lago Naivasha, e te dou. Essas fotos e vídeos não estão salvas em

nenhum outro lugar.

Livro “Poor economics: rethinking the way we fight poverty”

Se você me der meia hora, eu termino as 42 páginas que faltam

e te entrego com maior prazer. Eu comprei esse livro na Amazon

e mandei entregar onde eu estava porque não se encontra pra

vender em qualquer lugar.

Camiseta verde National Pornographic Presente dos meus tios

de Israel, coloquei na mochila especialmente porque ia ao meu

primeiro “safári”.

Caderno preto capa dura Continha toda a minha pesquisa e

aprendizado do meu trabalho na Índia sobre impactos da migração

em pobreza e educação. Apesar de eu ter backup de praticamente

tudo no computador, era uma bela lembrança do meu processo

de aprendizado. Havia a descrição de capítulos de uma ideia de

livro que eu tive, diversos diagramas de um projeto para o futuro.

Também, esta tudo na cabeça, mas se eu pudesse, arrancava algu-

mas páginas e deixava você ficar com o resto (aproveite os cartões

postais indianos que estão na contracapa).

Caderno estampado de viagem Ganhei o caderno de uma pes-

soa muito especial. Já me acompanhou em diversas viagens.

Continha pedaços de pesquisa, contatos e mensagens de carinho.

Gostaria de guardá-lo.

Pano da Etiópia Depois de mais de 2 horas de conversa com um

garoto chamado Salam, uma das pessoas mais educadas e potencial-

mente inteligentes que conheci, resolvi comprar um tecido etíope

para guardar de memória. Eu estava usando-o como protetor para

a minha câmera fotográfica. Se você faz questão, pode ficar.

Agasalho xadrez Não era dos mais bonitos, nem dos mais quentes.

Mas era um dos três agasalhos que carrego na minha viagem.

U$ 400,00 Dinheiro reservado para vistos da Tanzânia, Uganda,

Ruanda e talvez Burundi. Também reservado para emergências.

110 111

Não tenho nem como argumentar, era mais de 50% de todo meu

dinheiro em mãos.

Ipod + Fone + Cabo O aparelho está com problemas, costuma tra-

var a cada 1 hora e não desliga. Foi um “presente” do meu irmão

e tem sido uma boa companhia nas viagens. Continua a venda nas

lojas, você pode ficar.

Passaporte antigo Tive que refazer o passaporte porque estava

para vencer. Era puro souvenir, com carimbos de Israel, Índia,

Jordânia e países europeus. Tinha planos de fazer um quadro com

as páginas, gostaria de tê-lo de volta.

Pen Drive 8GB A informação armazenada não é importante.

São textos que salvei para publicar quando tivesse internet dis-

ponível. O meu primeiro pen drive eu dei de presente, e acabei

comprando esse para mim. Continua à venda nas lojas, você

pode ficar.

Chaveiro “Coexistence” Meu pai que fez. Colocou uma reza de

proteção atrás e o símbolo de Coexistence na frente. Estava no

bolso de fora da mochila, tentando propor aos desconhecidos um

mundo mais tolerante. Acho que você pode se beneficiar dele.

Cabo/Corda Meio que um cabo metálico para qualquer emer-

gência. Já amarrou minha mala a alguns postes.

Carregador de celular Feliz da vida porque comprei um celular

que me serviria também de modem para a Internet. Agora sem

carregador, nem o celular estou podendo usar. Vou comprar ou-

tro, mas se você não tem o mesmo celular, para que pode querer

o carregador?

Escova e pasta de dente, tesoura, desodorante, repelente de

corpo e spray antimosquito

Ramsa, símbolo de proteção Rosa, em acrílico, onde estava grava-

da uma reza de proteção. Também presente dos meus pais, uma

boa lembrança de casa. Gostaria de tê-la de volta.

Marca texto, lapiseira, caneta preta e caneta com o logo do

Weitz Center

Toalha verde Decathlon A melhor toalha que já tive, “presente”

de uma grande amiga brasileira quando deixou a Índia. Gostaria

de devolver a ela em algum momento...

3 Plaquinhas Mochila Social Um presentinho feito pelo meu

pai, com logo e site do projeto. A ideia era dar as plaquinhas

para pessoas importantes ao longo da viagem. Parece que você é

bastante importante...

SIM Chip telefônico da Etiópia Estava guardando como lem-

brança e também para o caso de voltar ao país.

Lanterna LED azul Presente de despedida de Israel, da família

que me abrigou por 2 meses sem fazer quase nenhuma pergunta.

Eles também me deram uma carteira para usar por baixo da cue-

ca e, graças a eles, eu não perdi meu passaporte ou resto do meu

dinheiro (que agora não é muito).

Cartão de aniversário dos meus tios Um cartão dado como

adiantamento do meu aniversário em novembro, para o caso de

não nos vermos. Um pedaço de cartolina com muito carinho e sig-

nificado. Eu gostaria de tê-lo de volta...

112 113

Óculos escuros Eram falsos, comprados em uma espécie de

camelô no Sinai...

Marca Páginas Árabe Meu marca páginas favorito, no formato

de um árabe sunita de kefiah.

Shorts Verde com um furo na perna Meu shorts favorito. Na

verdade, a única bermuda que levei para Índia e que usei do início

ao final da viagem. Pelo menos tenho muitas lembranças, já que a

estou vestindo em praticamente todas as fotos.8

Como você pode ver, a maioria das coisas tem valor ape-

nas para mim.

Existem coisas que são de fato insubstituíveis. Aquele meu

caderno, cheio de rabiscos, gráficos e explicações de ideias ou-

sadas das quais nem eu mesmo ainda tinha clareza é um destes

exemplos. Mas ser roubado e sair ileso também abre espaço para

outra discussão: sobre as coisas que não podem ser roubadas.

Podem roubar nossos bens materiais, podem roubar até nos-

sa dignidade ou nosso sentimento de segurança. Se de um assalto

algum dano físico nos é causado, poderíamos até dizer que nos

roubaram a saúde ou a mobilidade e se nos matam, roubaram a

nossa vida. Mas o que aprendemos, o que sabemos, o que vimos e o

que entendemos de tudo isso, ninguém nos rouba. Propositalmente

exercitei minha memória para relembrar cada item que estava na-

quela mochila, cada traço feito em cada página do meu caderno,

cada grifo no meu livro e cada memória relacionada aos outros

itens como forma de defesa dessa invasão da qual fui vítima.

Os impactos de um fato com esse na minha vida não são

tão catastróficos. Ainda não tenho certeza do motivo, mas claro

que está relacionado à minha relativa estabilidade financeira e,

principalmente, à composição de minhas redes pessoais e profis-

sionais. Isto baseado no fato de que, apesar de ter sido roubado

e perdido mais de 80% de minhas posses de valor, ainda teria

um lugar para dormir, comida garantida, transporte de volta até

minha residência, apoio moral de uma infinidade de amigos e co-

legas. Claro, sem contar um dinheiro de reserva no banco, opções

de retirada de dinheiro por cartões de crédito e débito e várias

pessoas dispostas a contribuir com a minha reestruturação.

Muitas vezes, uma pessoa em situação de pobreza ou vul-

nerabilidade social sofre uma interferência externa prejudicial,

mas não consegue se restabelecer tão facilmente pela falta de

estruturas de apoio sólidas o suficiente para tal. Penso sempre

no caso de uma vítima de deslizamento em uma favela de São

Paulo. Sua casa foi invadida pelo morro, seus familiares abando-

naram a moradia mas a senhora de idade que ali vivia não tinha

condições físicas ou financeiras de se mudar. De um dia para o

outro a situação foi de precária para “de risco”.

Não havia dinheiro estocado em nenhum lugar que pu-

desse ajudá-la momentaneamente. Na comunidade onde vivia,

ninguém possuía recursos ou interesses o suficiente para auxiliá-

-la em um momento de crise como esse e sua rede pessoal era

incapaz e desinteressada para oferecer uma situação de maior es-

tabilidade, mesmo que apenas por alguns dias. Já desempregada,

poucas eram as ações que a dona de casa podia mobilizar para

reparar o caos que se instaurava ao seu redor. Na minha opinião,

em um caso como esse, apenas intervenção externa e mistura de

redes e recursos de áreas diferentes da cidade podem contribuir

para alguma mudança.

Ao retornar de Nakuru, decidi que era hora de visitar Kibera,

considerada a maior favela da região leste da África e centro de ho-

lofotes e intervenções sociais de toda ordem na capital queniana.

Tentei fazer contato com algumas organizações atuantes por lá,

mas demorei para receber respostas e resolvi ir junto com um casal

de amigos para um ponto da cidade, localizado em um dos bairros

8 Felizmente, meu

shorts verde com

um furo na coxa foi

encontrado em meu

mochilão. Eu havia

me confundido e

levado uma bermuda

preta e vermelha

para a possibilidade

de nadar no final

de semana. Isto

também para

mostrar que,

independente do

discurso, a memória

falha e nos levam

mais do que

gostaríamos

de assumir.

114 115

mais disputados para se morar, de onde havia uma visão panorâmi-

ca de Kibera. Achei que seria um bom começo observar o espaço de

longe e ir aos poucos entendendo que tipos de organização atuava

na região.

Os números divulgados por agências internacionais nor-

malmente ultrapassam 1,5 milhão de moradores, mas o censo

queniano de 2010 apontou pouco mais de 170.000 pessoas mo-

rando no complexo.

Eu não sou grande fã de números e pouco me importa se são

centenas, milhares ou milhões. Acho que o problema por ali é falta

de infraestrutura e oportunidades iguais para quem quer que seja.

Resolvi fazer uma primeira abordagem à distância. Fui com meu

amigo e anfitrião Stanley e sua namorada Debrah até um bairro

considerado de classe média chamado Langata. De lá, a melhor vista

para Kibera. Não que a vista seja boa...

Do lado esquerdo da paisagem, o projeto da UN-Habitat em

parceria com a KenSup (Kenyan Slum Upgrading Program) que eu

vim conhecer. Meus dois amigos trabalhavam na UN-Habitat e par-

ticiparam de parte do projeto que, infelizmente, é considerado uma

tentativa mal-sucedida. O projeto construiu novas moradias para os

habitantes de Kibera logo ao lado do atual complexo. Porém, após a

mudança, os moradores teriam de pagar um aluguel de 1.000 KES,

quase o dobro do que pagavam anteriormente. Além disso, os

apartamentos construídos têm o potencial de serem alugados por

aproximadamente 15.000 KES. Assim, os beneficiários do projeto

venderam ou alugaram seus novos apartamentos e retornaram ao

que é considerado a favela.

Estacionamos o carro no alto de uma colina e observamos a

região. Um córrego divide o projeto da KenSup e o resto de Kibera.

Ao término do complexo, apartamentos de alto valor na região de

Langata. Comíamos um sanduíche no carro e discutíamos possibili-

dades de intervenção no local. Meus amigos estão tentando montar

uma consultoria para desenvolvimento de favelas e bairros pobres

por meio de treinamentos e cooperação entre diversos setores

(ONGs, Governo, Universidades e setor privado).

Do outro lado do complexo, chegamos à corte principal de

Kibera. A princípio, o lugar é sede da maioria dos julgamentos na

região. Minha “surpresa”: chão de cimento, água encanada, luz

elétrica, estacionamento com diversos carros bem conservados,

segurança e aquele clima de “lugar normal”. Uma curva à esquerda

depois e a favela tem início, sem água encanada, sem luz elétrica

oficial, sem pavimentação e sem planejamento. A distância entre

as duas realidades é fisicamente pequena, mas mostra claramente

o impacto da exclusão de um espaço dentro do planejamento de

uma cidade.

Se é possível trazer toda a infraestrutura até a “porta” da

favela, por que será que os benefícios não chegam até os cidadãos?

Há uma lista gigantesca de ONGs e agências internacionais atuando

junto à comunidade para empoderar jovens e mulheres, prevenir

HIV/Aids, realizar treinamentos em empreendedorismo, negócios

e microcrédito, entre outras ações. Mas como melhorar a qualidade

de vida destas pessoas e desenvolver a região sem providenciar o

básico de infraestrutura do resto da cidade?

Fico sempre pensando nessa história toda de negócios so-

ciais e “soluções inovadoras para os pobres”. Por que estas pessoas

que estão atualmente em uma situação considerada de pobreza

merecem soluções diferentes das que nós, “ricos”, possuímos

em nossas casas? Por que não começar deste ponto: oferecer à

“favela”, os mesmos serviços do resto da cidade. Claro que infra-

estrutura é só uma parte do problema, mas se pensarmos um

paralelo com a agricultura, a primeira ação normalmente é pre-

parar o terreno, depois fertilizar o solo, plantar uma variedade

de sementes, “regar” e depois colher.

Para preparar o terreno é importante garantir que os mo-

radores da região tenham acesso não só a água e energia elétrica,

mas também a serviços de saúde e educação de qualidade. Isso soa

116 117

um pouco banal, mas é importante pensar também na construção

de vias de acesso adequadas, para que se crie uma relação entre

a região e o resto da cidade e da economia. Nesta fase, eu julgo

também importante a realização de um mapeamento detalhado

das condições da comunidade, lideranças e organizações ativas,

status do terreno e presença (em que nível) do poder público.

Para fertilizar o solo, ações de educação infantil, empodera-

mento de jovens e mulheres e capacitação específica são fundamen-

tais. De maneira geral, o importante é garantir que as áreas deficitá-

rias da comunidade sejam atendidas por estes treinamentos, mas o

fundamental é descobrir o que cada comunidade já possui de ferra-

mentas e catalisá-las. Ao invés de abordar uma comunidade somen-

te em busca de problemas, é fundamental um mapeamento para

identificar quais são as ferramentas, características e instituições

já existentes e “fertilizá-las”, oferecendo coordenação e cooperação

entre estes esforços, o poder público, a iniciativa privada e, claro, o

resto da sociedade civil.

As ações iniciais correspondem também à plantação. Com

estas sementes, é importante pensar no “sistema de irrigação”

a ser aplicado. Um acompanhamento por parte das lideranças,

reuniões periódicas entre os membros da comunidade e os parcei-

ros envolvidos (sejam eles governo, empresas ou sociedade civil).

Eu julgo importante que os encontros sejam realizados dentro da

comunidade, no “solo”, para garantir que todos estejam sensorial-

mente envolvidos na mudança física e abstrata da região.

A parte da colheita não é passiva. A partir do momento que

uma comunidade começa a produzir alguns frutos, é fundamen-

tal garantir acesso aos mercados e serviços do resto da cidade.

Sem contar a importância de se trabalhar com a quebra do estigma

da região e garantir direitos iguais em todas as esferas para os

residentes do local. Isso pode ser feito por meio de veículos de

comunicação, projetos de intercâmbio entre regiões e, principal-

mente, por mídia espontânea gerada pelos próprios moradores.

Uma das coisas que vejo acontecer bastante é um êxodo da

juventude e liderança treinada e capacitada para fora da comuni-

dade. Claro que este fato por um lado significa uma melhoria na

qualidade de vida destas pessoas, mas a região continua sofrendo

com os mesmos problemas, recebendo cada vez mais pessoas e

repetindo o ciclo migratório: de um lado o número daqueles que

chegam das áreas rurais ou menos favorecidas para tentar a sorte

nestes aglomerados urbanos cresce sem parar; do outro, jovens

e lideranças capacitadas deixam a comunidade. Em Korogocho

observei um exemplo do oposto do que descrevo aqui, mas vejo-

-os como exceção, e não regra.

É claro que o que esbocei aqui é uma descrição teórica e

simplista de um projeto de desenvolvimento de uma favela, mas

acho válido ressaltar que em minhas observações até agora, há

sempre um padrão nessas regiões: a clara divisão entre a cidade e

estes “não-lugares” chamados de favela. Se já possuímos os meios

para desenvolver estas regiões tão bem quanto o resto, por que

não fazer?

Um dos argumentos – extremamente válido – é que os ser-

viços providenciados (como água potável, saneamento básico,

energia e benefícios referentes à posse legal de terra por exem-

plo) ainda são muito caros para estes moradores. Como as taxas

de desemprego e subemprego são altíssimas, mesmo as menores

quantias, se cobradas constantemente, são inacessíveis. Meu argu-

mento é que uma ação leva à outra: melhorando as condições de

vida e estabilidade, os moradores dessas comunidades têm mais

ferramentas para se restabelecer e conquistar melhores posições

de trabalho (claro, somado ao apoio técnico e formação específica).

Tudo é importante. Acesso aos mercados certos, habilidades

que possam gerar renda e meios de subsistência, participação em

redes qualificadas que podem catalisar iniciativas interessantes e

assim vai. Mas não dá para assumir uma posição paternalista, mui-

tas vezes observada, dizendo que “estas pessoas” – como me repetia

118 119

o coordenador de uma das ONGs visitadas em Kibera – não possuem

as características necessárias para escapar da pobreza. Muito pelo

contrário. Eu me desafio constantemente a tentar imaginar o

cenário de sobreviver com menos de um dólar por dia, sem in-

fraestrutura, sem voz, sem apoio e sem instituições confiáveis e

falho em todas as minhas projeções.

As pessoas em situação de pobreza (porque, convenhamos,

ninguém É pobre) são absurdamente qualificadas e são profissio-

nais da arte de sobreviver em condições muito mais que adversas.

Se ouvi de um coordenador de ONG que estas pessoas não sabem

gerir um orçamento e precisam de treinamento específico sobre

planejamento econômico familiar, fico pensando como é que en-

tão mantém uma casa, com mais de 8 crianças, sem dinheiro,

sem recursos. Como, mesmo assim, a maioria destas crianças fre-

quenta a escola ou algum tipo de atividade educativa, chegam até

a universidade, encontram empregos e melhoram a qualidade de

vida de suas famílias. Parece-me que “estas pessoas” entendem

alguma coisa de economia.

Veja o exemplo do projeto do Kensup e UN-Habitat. O que

você faria na mesma situação? Pense como um economista, um

empreendedor ou como uma mãe. Acho que qualquer um de nós,

pensadores, especialistas e críticos, tomaríamos decisão parecida.

Assim, fica difícil afirmar de maneira superficial que o que falta

a “estas pessoas” é somente habilidades e conhecimento. Concor-

do com Amartya Sen9 quando ele propõe a criação de oportunida-

des como lógica de desenvolvimento ou da metáfora do bonsai de

Muhammad Yunus.10

O principal que me incomoda é observar desenvolvimento

e subdesenvolvimento, lado a lado, convivendo como se fossem

dois mundos diferentes. A solução é claramente complexa, mas

não necessariamente complicada. Sinto que esta faltando come-

çarmos a tentar encontrar algumas respostas, a começar por fazer

as perguntas certas.

Retornaria àquela comunidade muitas outras vezes duran-

te minha estadia no Quênia. Neste primeiro dia, fui também

conhecer o tribunal de justiça de Kibera e alguns outros luga-

res onde era possível sentir a presença do Estado, como clínicas

de saúde e escritórios de alguns órgãos do governo. Enquanto

esperava um oficial de justiça da região, o qual eu havia feito

contato anteriormente, precisei ir ao banheiro. Certo que teria

de me adequar mais uma vez às condições sanitárias carentes da

região, fui surpreendido com a impecabilidade do banheiro que

me foi apresentado.

Mas, então, se era possível levar energia elétrica conectada

ao resto da cidade e saneamento básico convencional até o banhei-

ro do tribunal, por que a população do entorno ainda precisava

se virar com soluções paliativas e improvisadas? Afinal, a popu-

lação de Kibera tinha algumas opções para defecar, como fazê-lo

no chão em algum lugar menos habitado, em um dos saquinhos

apelidados de “cocô voador”11 ou banheiros químicos experimentais

utilizando Sanergy12. E a energia elétrica era quase inexistente a

pouquíssimos metros do prédio do tribunal.

Apesar de intrigado com o convívio passivo entre as duas

realidades, fiquei feliz em saber que já era possível trazer o tal

do desenvolvimento para uma região periférica e marginalizada

como Kibera, mas fiquei também apreensivo em saber que então

os motivos para este desequilíbrio viriam se mostrar muito mais

complicados do que mera incapacidade técnica. De qualquer

forma, estava ainda só de passagem por Kibera, em busca de

organizações atuantes na região. Saí do complexo de escritórios

com algumas revistas e folderes na mão, de projetos e iniciativas

sociais na área.

No dia seguinte, tentando entrar em contato com uma des-

sas organizações, acabei chegando a outro rapaz. Seu número de

telefone estava associado a uma organização atuante em Kibera,

mas na conversa ele me convidou a conhecer outros grupos de

11 Faço referência

tanto ao costume

dos “banheiros

voadores”, o ato

de defecar em

um saco plástico

e lançá-lo para

qualquer lugar da

favela, quanto a uma

iniciativa específica

chamada PeePoo,

cuja contribuição

para esta atividade

foi a de reduzir o

impacto ambiental

que as sacolas de

plástico estavam

causando. A sacola

biodegradável

serve também para

a produção de

fertilizante com os

resíduos sólidos.

12 Banheiros

químicos elaborados

por alunos do MIT

e da Universidade

de Chicago

cujo objetivo é

gerar energia e

fertilizantes a partir

dos resíduos sólidos

da comunidade.

Hoje, a Sanergy

é uma Start-Up

vencedora do

concurso 100k

do MIT.

9 Em seu livro

Desenvolvimento

como Liberdade

10 Muhamad Yunus,

no livro Um Mundo

sem Pobreza, afirma

que as pessoas em

situação de pobreza

são como bonsais.

Árvores comuns

sendo cultivadas

em ambientes com

recursos limitados

geram miniaturas

de árvores. Não

há nada errado

com as sementes,

mas o ambiente

de escassez limita

o crescimento

dessas pessoas.

Se plantadas em

um ambiente

convencional, com

amplos recursos,

estas pessoas-

bonsai poderiam se

desenvolver como

qualquer outra.

120 121

jovens atuando na favela de Mathare, cujo nome faz tremer al-

guns moradores de Nairóbi. Eu achei a oportunidade ainda mais

interessante e acabei aceitando o convite para conversarmos.

Tudo começou com esse telefonema. E o telefone, extraído de

uma planilha velha e desatualizada, que conectava seu nome à outra

organização, outra favela. Foi assim que conheci Ezequiel, um jovem

com potencial liderança na favela de Mathare, poucos quilômetros

de Korogocho. Marcamos um encontro para o dia seguinte.

Sentamos em um café qualquer em Nairóbi para conversar.

Estávamos nos analisando. Do lado dele, por que raios um mu-

zungu como eu estava se aproximando de uma favela? Resposta

provável: entediado com a farta vida na Europa, resolvi ajudar

os pobrezinhos. Do meu lado, só queria ter certeza que ele era

uma pessoa com acesso à comunidade e capaz de representar – ou

acessar – Mathare livremente.

Em poucos minutos de conversa, fomos nos adaptando à

realidade. Ele entendeu que meu objetivo era de aprendizado,

pesquisa e minha intenção era contribuir com ideias e contatos

de outras organizações, pelo menos por enquanto. Do meu lado,

senti-me seguro que, apesar de ele não estar envolvido em nenhu-

ma organização atualmente, o autodefinido cargo de freelancer

me soou interessante. Conversamos, paguei o café e saímos.

Pouco tempo depois, estávamos juntos em um Matatu na

direção de Mathare. Chegamos à entrada da comunidade e fui

me sentindo cada vez mais em casa. Ezequiel parecia conhecer

muitos jovens da favela e me apresentava um a um. Há uma área

asfaltada e coberta por pequenos prédios residenciais e comer-

ciais, mas caminhávamos por entre uma montanha de lixo e terra

na direção de um pequeno córrego. Do lado de lá, algumas poucas

palafitas contam em um dia seco o impacto das chuvas na região.

No caminho, conversávamos sobre alguns projetos em anda-

mento, como o aparentemente macabro RYP (Programa de Reabili-

tação de Jovens, na sigla em inglês), um centro de juventude chama-

do Luwaku e uma cooperativa de coleta de lixo, também por parte

dos jovens da comunidade, chamada One Love. Tantos projetos liga-

dos à juventude. Obtive a resposta da minha pergunta: ele nasceu

e viveu por mais de 20 anos em Mathare. Conhece todo mundo.

Andamos pela parte asfaltada e repleta de comércio que bei-

ra a favela. No caminho, diversas placas referindo-se a projetos de

cooperação internacional entre os alemães e o governo do Quênia.

Em uma das partes da favela (Mathare 4A), uma iniciativa alemã

tentou no passado reformar algumas habitações. Transformou bar-

racos de metal em casas de cimento. Até hoje é possível perceber o

impacto da ação, mas o projeto foi interrompido devido à crise de

violência tribal pós-eleições de 200513 .

A região tem duas áreas bem definidas (e uma porção de

outras indecifráveis): de um lado asfalto, prédios de 3 a 6 andares,

serviços públicos (deficientes, porém presentes) e um clima de

“normalidade”; alguns passos pelo meio de um lixão, mais uma

vez uma ponte e chega-se a uma segunda região, aparentemente

sem planejamento, sem infraestrutura e sem presença de poder

público. Mas com muita gente vivendo por ali.

As casas começam se distribuindo pela extensão de um cór-

rego e terminam quando o segundo córrego começa. Em épocas

de chuva (segundo os moradores, praticamente qualquer chuva)

os dois córregos se unem, alagando a estreita faixa de terra que

abriga mais de 200 moradias. Em uma ponta, chamada de Ndoya,

uma escola foi erguida ao estilo palafita e é uma das construções

mais estáveis, escapando assim das constantes cheias do córre-

go. Eu que já estou acostumado a enfrentar odores sufocantes de

esgotos a céu aberto confesso que fui derrubado pelo cheiro que

emanava pelo estreito caminho à beira do córrego.

Ao redor da escola, casas não tão bem projetadas e constan-

temente vítimas das cheias. O chão de terra batida, completamente

inundado e forrado de insetos serve de palco para brincadeiras e sor-

risos simpáticos das centenas de crianças da favela. Uma sinfonia

13 Uma onda de

violência atingiu

o Quênia depois

da questionada

reeleição do

presidente Mwai

Kibaki, em 2005.

Os conflitos

entre tribos

rivais e partidos

políticos causou

mais de 1.500

mortes, segundo

documentos oficiais.

122 123

de “how are you?” emana das vozes alegres dos pequenos, mas

na minha cabeça a resposta não é tão positiva assim: como estou?

Estou tentando encontrar um sentimento qualquer que justifique

tamanho descaso e abandono, tão próximo ao “resto da civilização”.

Os prédios do entorno consideram essa parte da favela –

incluindo seus moradores – um grande lixão. Lançam diariamente

de suas janelas o lixo produzido em seus lares, sem grandes con-

siderações para o destino final destes dejetos. Mas nós, ali embaixo,

sabemos exatamente o impacto deste desrespeito: pilhas e mais

pilhas de lixo acumulado, sendo diariamente coletadas por

alguns jovens de uma organização chamada One Love. Porém,

a quantidade de lixo e a forma como é descartado impede um

resultado próximo do aceitável.

Cruzamos para o outro lado da comunidade, até chegar ao

segundo córrego. Um convite inusitado: se eu quero conhecer as

latrinas comuns da favela. Passo de lado por uma portinhola de ma-

deira e arame farpado e chego à beira do córrego. Lá, duas peque-

nas casinhas de metal entortado e madeira servem de refúgio para

a satisfação das necessidades fisiológicas mais básicas dos morado-

res. De lá, os dejetos vão, claro, para o mesmo córrego. A paisagem

de fundo é repleta de lixo, sacos plásticos e prédios que margeiam

este pedaço da favela.

Fico observando a água marrom azulada que praticamen-

te não se move por ali, é uma visão desagradável. Pensamos, a

princípio, que tratava-se de uma boneca, dessas que as crianças brin-

cam e aprendem a cuidar de outro ser. Mas não era. Com apenas um

braço e um pedaço do corpo para fora da água, um recém-nascido

(ou melhor, um bebê abortado) ali jazia, apoiado sob um acúmulo de

lixo que formava uma ilha na insensível paisagem. Relutei em

fotografar mas registrei a imagem. De longe, sem expressão e

com dor em algum lugar da minha pessoa.

Durante a conversa com moradores, entendemos que esta é

uma prática que se repete diversas vezes, não só por ali. Os abortos

são feitos em procedimentos ilegais e perigosos e o feto abortado

é descartado. Simples assim. Do outro lado da grade, um prédio

da Igreja local. Segundo Ezequiel, o casamento de sua irmã seria

celebrado ali no dia seguinte. E assim, tirei a imagem do bebê da

minha cabeça e a substituí por uma cena romantizada da união de

dois desconhecidos. Simples assim.

A visita à Mathare se estendeu para além das áreas restritas

pelas reminiscências de um conflito tribal e, por diversas vezes,

cruzamos regiões e espaços controlados por uma ou outra organi-

zação de “segurança”. O clima de desconfiança pela comunidade

ainda se mantém, mesmo depois de uma quase natural reorgani-

zação do espaço após as demonstrações de violência no período

pós-eleitoral em 2005.

Cruzamos, por acidente, outra organização de jovens. De iní-

cio, as portas estavam literalmente fechadas para a nossa visita, mas

em poucos minutos fomos convidados a entrar e conversar com as

lideranças do grupo chamado MYTO (Mathare Youth Talented Organi-

zation). Fomos recebidos por Felix e Dan, dois rapazes que tomaram

a liderança e nos apresentaram as atividades da organização: artesa-

nato feito de ossos de animais, empoderamento e desenvolvimento

de liderança para os jovens da comunidade, confecção de instrumen-

tos musicais e apresentações culturais para a comunidade.

Conversávamos dentro do escritório de não mais que 4 me-

tros quadrados quando um grupo de muzungus chegou em uma

van para visitar o espaço. Italianos, desceram da van e em poucos

segundos estavam comprando os artigos feitos de osso. Em poucos

segundos subiram de volta no carro e partiram. Felix explica que

muitos turistas vêm ao Quênia em busca de experiências junto a

comunidades carentes, mas na maioria das vezes a relação não

ultrapassa o que presenciamos.

Em contato pela primeira vez, Ezequiel, Felix e Dan pro-

põem um início de trabalho em conjunto, conectando os diferen-

tes grupos de juventude atuantes na região. A ideia é fortalecer

124 125

a comunidade como um todo, independentemente de grupos

étnicos ou tribais, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida

e oportunidades na região. Descobrimos juntos que a escassez de

serviços oficiais relacionados ao abastecimento de água na região

gera uma diferença imensa no custo de, por exemplo, a água para

consumo próprio. De um lado da comunidade, 3 Shillings para

20 litros; deste lado, mais de 5 shillings pelos mesmos 20 litros.

Dependendo sempre dos “senhores de água”.

Na comunidade de Mathare há uma infinidade de grupos de

jovens atuando como organizações não governamentais porém,

na maioria das vezes, sem registro junto ao governo. Este é um

fator que dificulta em muito a captação de recursos e a credibili-

dade destes grupos para se estabeleceram para além das comuni-

dades. Ainda assim, grupos mais organizados têm a oportunidade

de contribuir para a melhoria de organizações mais jovens e atuar

em colaboração mútua dentro do mesmo espaço.

Mathare tem uma fama muito ruim pelas bocas de Nairóbi.

O local é conhecido principalmente pela violência, pela tensão tri-

bal e pelas demonstrações posteriores às eleições de 2005. Porém,

estes jovens mandam uma mensagem diferente, acolhedora e sin-

cera, uma mensagem daqueles que estão cansados da realidade em

que vivem e do estigma de onde moram.

A visita à Mathare prometia. Fiz contato com algumas orga-

nizações lideradas por jovens da própria comunidade e me mostrei

totalmente disponível para colaborar como achassem mais inte-

ressante. Enquanto isso, pensava em como poderia ajudar estes

grupos sem ser simplesmente contribuindo financeiramente para

pequenos projetos do dia a dia. Fui aos poucos percebendo que,

mesmo que eu tentasse, continuava sendo enquadrado no estereó-

tipo de estrangeiro tocado pela difícil realidade africana querendo

ajudar. Não era o caso.

Meu objetivo, antes de mais nada, era de aprendizado.

Principalmente por meio de conversas e imersões em projetos

interessantes da região, mas acreditava que talvez eu também

tivesse algo a acrescentar à prática social nessas comunidades.

O fato de ser brasileiro cooperava bastante. Se de um lado, portas

eram abertas graças aos craques do futebol, o simples fato de eu

contar as similaridades da minha cidade aproximava-me aos jo-

vens desse cenário. E assim, fui mantendo contato com os jovens

de Mathare por toda o tempo no qual permaneci no Quênia.

Nessa mesma semana, fui convidado para conhecer uma pe-

quena vila próxima da região onde eu estava ficando, com o intui-

to de avaliar a possibilidade de trazer ferramentas de irrigação por

gotejamento através da gravidade para pequenas áreas agrícolas14.

Isso incentivado pelas horas e horas que gastava contando da revo-

lução que acreditava possível ser feita com esse sistema. Um pouco

baseado no que havia visto em Israel, mas muito do que li de Paul

Polak e suas diversas iniciativas em redesenhar ferramentas para

uso em regiões com escassez de recursos.

Saindo da estrada pavimentada, percorremos um longo

caminho de terra e pedras até chegar a Ndeya. O clima seco e em-

poeirado deixava a região com uma imagem de maior isolamento.

De um lado para o outro, mulheres e crianças transportavam ga-

lões de água, cheios ou vazios, pela estrada de pó. Tudo indicava

que a comunidade que ali vivia tinha acesso à água, porém de

maneiras alternativas. Do carro, quase cegávamos por causa da

poeira, mas observávamos crianças domando burros e carroças

no transporte de galões de mais de 100 litros.

Ao chegar a uma rua um pouco mais estreita, encostamos

para conversar com uma senhora que estava parada diante da

abertura na cerca-viva de sua propriedade. Com ela, descobri-

mos dois grupos organizados de moradores daquela comunidade.

Ambos reuniam-se quinzenalmente para discutir problemas e

14 Trazia comigo

na “bagagem”

(fruto de pesquisas

presenciais e

virtuais) alguns

modelos de irrigação

por gotejamento

baseado na

gravidade, para

redução de

custos e aplicação

em terrenos

considerados

pequenos.

126 127

possíveis soluções para a própria região. Alem disso, cada mem-

bro contribuía semanalmente para um pequeno fundo, destinado

a microempréstimos e compra de bens coletivos para a comuni-

dade. Um dos maiores objetivos atuais era a compra de cabras

para fornecimento de leite para as famílias membros, com o

custo de 2.000 shillings por cabra (aproximadamente U$ 20,00).

A poeira da estrada principal da vila era quase sufocante.

O ar seco e a clara ausência de água na região intensificava a

experiência. A agricultura estava visivelmente prejudicada pela

seca e a variedade das plantações não ultrapassava dois tipos:

milho e uma variação específica de feijão. Nas ruas, o trânsito

era de crianças domando burros e galões de 10 a 100 litros de

água, de um lado para o outro.

Não havíamos combinado de encontrar ninguém especifi-

camente. A ideia era conversar com os moradores e entender a

situação de vida e moradia para ver se poderíamos colaborar de

alguma forma por ali. Claro, trazíamos algumas ferramentas nas

mãos, mas esta era uma visita de apresentação e reconhecimento

do terreno. Algumas crianças estão na rua e atrás delas, Priscila,

mãe dos 4 pequenos que nos observam. Vestida com uma colorida

canga amarrada e cruzando o peito na qual havia um pequeno

bebê suspenso pelo tecido nas costas, ela divide conosco algumas

informações na rua empoeirada.

Ela nos conta que a época de chuvas já passou e como sem-

pre não foi o suficiente. Hoje a plantação está seca, murcha e mais

um ano esta família vive de uma única colheita. De vez em quando,

um excedente da colheita ou uma ou outra atividade gera alguma

forma de dinheiro (por que falar em renda é não entender o que se

passa). Com esse dinheiro, Priscila contribui quinzenalmente para

um grupo de 41 mulheres do qual faz parte. O total levantado é

democraticamente dividido para ser utilizado na compra de caixas

de água, utensílios de cozinha, leite ou algum equipamento que

possa vir a gerar mais dinheiro e/ou estabilidade na vila.

Chegamos à casa de outra senhora, de um pouco mais idade,

chamada Margareth. Ali, a família toda se dividia em interessan-

tes casas feitas de barro e outras de cimento, num espaço muito

organizado e agradável. Margareth faz parte de outro grupo de

mulheres com aproximadamente 30 pessoas e aparentemente

um pouco mais organizadas. Perguntamos sobre sistemas de ir-

rigação por gotejamento de baixo custo e fiquei boquiaberto: em

poucos minutos um kit estava sendo desempacotado e desenro-

lado na minha frente, ali mesmo no que poderia ser um jardim.

O kit, aparentemente ofertado por um muzungu em outro

momento, já havia sido usado no passado, mas foi desmontado na

época de chuvas e nunca mais montado outra vez. O motivo: a difi-

culdade em encontrar os 40 litros de água necessários por dia para

a irrigação. A água é escassa na região, sendo fornecida apenas por

um poço da Igreja local (com acesso restrito e proibido o uso para

irrigação) e por comerciantes que extrapolam no preço do litro de

água. Porém, fazendo cálculos aproximados, valeria a pena com-

prar água para irrigar uma plantação de vegetais fora de tempora-

da e, com as vendas após o consumo próprio, ainda lucrar.

O mais interessante ainda estava por vir. Observamos que as

mulheres desta região carregavam grandes bolsas feitas de sizal,

com design muito interessante e aparentemente de boa qualidade.

Descobrimos que a matriarca da família era a responsável pelo

talento, mas suas mãos começavam a demonstrar sinais de fra-

queza e perda dos movimentos. Ainda assim, sua filha mais velha

e outra garota haviam aprendido a técnica e também produziam

estas sacolas para uso próprio.

Aos poucos, as mulheres que ali estavam começaram a

trazer diversas variações da técnica com o sizal. Não só bolsas e

sacolas, mas também artefatos decorativos, fruteiras e recipien-

tes feitos do material. A maioria com muito bom gosto e senso

estético. Em seguida, uma jovem trouxe timidamente uma fru-

teira feita de casca seca de banana, ainda mais interessante.

128 129

O custo do produto mais caro? Vendiam raramente a 300 shillings

(aproximadamente U$ 3,00).

Eu tive uma ideia e propus. Margareth havia comentado

que o grande objetivo para os próximos meses era conseguir com-

prar cabras para as mulheres da região, mas o custo era muito

alto e necessitava de quase um milagre para ser concretizado:

2.000 shillings (aproximadamente U$ 20,00 por cabra). A cabra

serviria como fornecedora de leite para todas as crianças da fa-

mília, o excedente poderia ser vendido e gerar certa renda, sendo

vendido como leite ou como derivados (cujas habilidades de pre-

paro ficaram muito claras na conversa).

A ideia é muito simples: eu apelidei o processo de “Carre-

gamento com propósito” (Shipment with a goal). Tenho certeza

que estas bolsas poderiam ser facilmente vendidas nos mercados

centrais de Nairóbi por, pelo menos, o dobro do preço. Se pelo

menos elas tivessem acesso aos bons mercados, onde o dinheiro

está, conseguiriam um lucro muito maior. Além disso, sei tam-

bém que estes produtos se estivessem sendo oferecidos no Brasil,

nos Estados Unidos ou Europa estariam sendo oferecidos por, no

mínimo, U$ 30,00.

Mas a diferença – e claro, não é nenhuma novidade – é divi-

dir com o consumidor, não só o produto em si, mas a história das

pessoas e organizações por trás do trabalho. A lógica é simples,

mas exige um comprometimento dos dois lados. O consumidor se

dispõe a pagar um pouco a mais pelo produto com valor agregado

e o produtor se compromete a utilizar os lucros de forma a adqui-

rir ativos e outras ferramentas para alcançar sua própria sustenta-

bilidade financeira. E o que falta para que o negócio dê certo? Um

intermediário socialmente consciente disposto a apenas facilitar

o processo, sem interferência direta nos lucros e garantindo uma

lógica de fair trade.

Esse parceiro ainda será responsável por auxiliar e orientar

os produtores em diferentes estratégias e possibilidades de in-

vestimento em melhoria das condições de vida da comunidade.

Por enquanto, na vila de Ndeya, estamos fazendo alguns experi-

mentos, organizando amostras e identificando potenciais entra-

das no mercado de Nairóbi (principalmente voltado aos turistas).

A ideia é incentivar novamente a produção destas manufaturas

como forma de gerar receita e desenvolver a região. Com apoio,

consultoria e ideias, mas principalmente, desenvolvendo o que já

há para ser desenvolvido.

Infelizmente, o primeiro carregamento que eu enviei do

Quênia, repleto de amostras dos mais variados produtos que

encontrei no caminho (também de grupos jovens das favelas de

Kibera e Mathare) ficou perdido no limbo dos correios quenianos15.

Assim, o embalo para testar a possível parceria comercial entre

eu, meus parceiros quenianos e as moradoras de Ndeya foi preju-

dicado. De qualquer forma, o conceito de “dividir a informação”

com o consumidor foi divulgado entre os próprios produtores.

Em Kibera, o grupo de coordenadores de um projeto cha-

mado Taka ni Pato (“Lixo é dinheiro”, em kiswahili) testaram

com sucesso a implementação de folhetos explicativos ao lado

dos produtos elaborados por grupos jovens da favela. Assim, em

uma feira internacional de comércio justo, expuseram suas bolsas

feitas de plástico reciclado e utensílios de cozinha feitos de osso

animal com uma breve descrição não só do processo produtivo,

mas também da história de quem os produziu. Segundo uma das

coordenadoras, agregar a história ao lado dos produtos foi um

diferencial em relação a outros projetos que estavam também

participando da feira, atraindo a atenção de mais e mais pessoas.

Naquele momento, ia aos poucos entendendo a comple-

xidade da pobreza que aqueles moradores enfrentavam diaria-

mente: a falta de água era apenas o pano de fundo de uma região

sem investimentos em infraestrutura e com acesso restrito ao

desenvolvimento social do entorno, expresso nos altos edifícios

da capital Nairóbi, a pouquíssimos quilômetros de distância.

15 A caixa chegou

em abril de 2012,

6 meses depois

do envio.

130 131

Mesmo a abertura de algumas bicas de água em propriedades parti-

culares não garantia a melhoria na distribuição dos recursos por ali.

O impacto que uma cabra tem ao ser trazida para uma região

como essa pode dividir a vida de uma família em dois momen-

tos distintos, dando um salto de qualidade sem precedentes. Mas

sem o devido investimento no espaço coletivo, até mesmo a in-

terferência externa trazendo recursos pontuais pode ser aneste-

siada pelas condições existentes.

Pra mim, isso ficou muito claro com a questão da irrigação.

Simples seria se apenas faltassem os recursos materiais. Quando

cheguei e dei de cara com um kit de irrigação por gotejamento de

baixo custo, guardado desmontado em um lugar-que-ninguém-

-lembra-onde-guardou, minha ficha mais uma vez caiu. Uma

pena ter terminado a leitura de Paul Polak tarde demais, pois

em seu livro “Out of Poverty”, ele exemplifica muito bem todo o

processo pelo qual foi aprendendo pouco a pouco estas lições do

desenvolvimento. E com a vivência em Ndeya, fui pouco a pouco

assentando os pés no chão e deixando a criatividade ser levada

pelo aprendizado.

Ao mesmo tempo, eu enfrentava no Quênia o inferno das

minhas finanças pessoais. Tendo em vista que já havia aprendido

que cartões de crédito ou débito não são lá o melhor dos meios de

pagamento no leste africano, fui descobrindo da pior maneira pos-

sível as consequências de ter sido roubado e não possuir dinheiro

vivo nas mãos. O meu cartão de crédito foi aos poucos entrando em

colapso: primeiro, impedindo-me de sacar qualquer quantia em

qualquer função de qualquer caixa de qualquer banco (foi o que

tentei, a muito custo, explicar para o meu gerente via Skype, sem

grande sucesso). Depois, fui sendo pouco a pouco impedido de re-

alizar transações financeiras em estabelecimentos de toda ordem,

pois meus cartões começaram a ser rejeitados sabe-se lá por quê (e

claro, mais uma vez a gerência do meu banco estava completamen-

te desinteressada no meu caso).

Quando eu cheguei ao país, meu anfitrião queniano me

alertou que o aparelho celular de U$ 2,00 que eu carregava desde

a Índia, um destes modelos da Nokia totalmente inquebráveis

com aquela lanterninha providencial, não era socialmente acei-

to na sociedade queniana. Brincadeiras à parte, ele me orientou

a comprar um smartphone em promoção pela SafariCom, a rai-

nha das telecomunicações da região. E junto com o telefone,

entre Internet 3G quase ilimitada e uma infinidade de possibili-

dades que me foram abertas, tive o prazer de poder usufruir dos

serviços da M-Pesa.

Meu tempo no Quênia foi marcado por diferentes senti-

mentos em relação à economia e os mecanismos de acesso ao

dinheiro, direta e indiretamente. Explico: por grande parte do tem-

po no país, fiquei sem acesso a minha conta bancária no Banco

Santander (um grande salve para toda a equipe que em nada me

ajudou) e sem conseguir utilizar meu cartão de crédito e débito

da Visa (outro salve a todos os atendentes, que assim como outras

pessoas, acham que a culpa – ignorância – é sempre minha).

Mas o que quero dividir aqui é outra história. Uma história de

soluções, e não de problemas.

Se você se interessa por negócios sociais ou gosta de ficar

por dentro das tecnologias que, de alguma forma, contribuem

para melhoria da qualidade de vida das pessoas em situação de

pobreza, já deve ter ouvido falar do M-Pesa (se não faz ideia do

que estou falando, você tem uns 5 minutos para explorar o Google

antes das pessoas começarem a rir da sua cara). Eu já tinha lido

e escutado bastante coisa sobre esse sistema de transmissão de

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fundos via celular, mas não fazia ideia do tamanho e impacto na

sociedade queniana.

Para começar, a porta do meu primeiro hostel em Nairóbi

era, adivinhe, um agente da M-Pesa. Fiquei super emocionado,

mas depois fui percebendo que a cada meio metro, por quase

qualquer parte do país, a presença se faz sentida. Enquanto eu,

relutante, tentava explicar que meu pedaço de plástico chato era

na verdade a chave para as minhas riquezas, ouvi de diversas

fontes que eles não acreditavam que um cartão fosse dinheiro.

Soa justo, mas um SMS dizendo que a minha conta do M-Pesa foi

abastecida com um valor enviado por outro número de telefone

era dinheiro? Sem dúvida.

O sistema serve não só para transferências entre pessoas

físicas. Através de um menu muito simples, em praticamente qual-

quer aparelho celular, é possível pagar contas, fazer depósitos para

estabelecimentos, comprar ingressos de cinema e espetáculos e

até sacar dinheiro em um dos vários caixas eletrônicos prepara-

dos para tal. O sistema funciona às vezes até no estabelecimento

que em si não tem um código M-Pesa, mas você pode depositar

no celular do garçom ou recepcionista, sem problemas. O sistema

não te faz perguntas, não bloqueia seu crédito e nem impede suas

transações por nenhuma razão.

No início, os bancos lutaram contra o sistema, mas é tão

popular que hoje em dia, banco que não está integrado com o

M-Pesa – ou com todas as outras opções de transferência de di-

nheiro por celular no mercado – está fadado ao esquecimento.

E quantas facilidades um sistema como esse não poderia possibilitar,

por exemplo, se fosse internacional? Em uma conversa de bar com

uma pesquisadora francesa em política queniana, expandimos as op-

ções de compra e venda de bens dos mais remotos produtores aos

mais interessantes compradores, tudo por meio do aparelho celular.

Eu que deixei Nairóbi com uma pequena dívida por receber,

pude pagar meu hostel em Kisumu, dias depois, por meio de uma

simples transferência de pouco mais de U$ 4,00 para o celular da

recepcionista. As taxas são bem honestas pela liberdade que o

procedimento lhe dá. Assim, não há quantidade mínima para

ativar seu M-Pesa, nem quantia mínima que você deva manter

na conta para evitar um descadastramento. Ninguém precisa

aprovar seu crédito ou se meter nas suas finanças.

Uma das parcerias mais promissoras é entre o M-Pesa e o

Equity Bank (que você também já deveria estar por dentro do

modelo). Sem taxas de adesão ou mínimo em conta corrente,

o cliente pode abrir uma conta M-Kesho (que segundo o banco

pode fazer render mesmo se você tiver apenas um shilling) to-

talmente integrada com o sistema de transferência do M-Pesa,

mas, nesse caso, também com a função depósito ou saque para

sua conta corrente. Imagine não ter que enfrentar filas ou buro-

cracias no banco para fazer um depósito ou saque mesmo para

uma conta bancária.

E a melhor parte? Enquanto discutia horas/dias com meu

gerente do Santander via Skype no Brasil, gastando um dinheiro

que me permitiria hospedagem num hotel 5 estrelas aqui no leste

africano, resolvi todos os meus problemas de suporte técnico do

M-pesa por um menu muito inteligente baseado em mensagens de

texto. Quando cheguei a conversar com o suporte técnico, eu era

somente sorrisos.

Fico, claro, no aguardo que investidores e desenvolvedo-

res desse tipo de aplicativo abram os olhos para as oportunida-

des que um sistema como o M-Pesa pode oferecer para cidadãos

de baixa renda e pouco elegíveis para uma conta no banco ou

coisa ultrapassada assim. Com o tempo, até microempréstimos

poderiam ser feitos e pagos pelo celular. Saindo do Quênia, tive

que me reacostumar com a batalha para poder usufruir do meu

próprio dinheiro, refém de uma conta num banco, guardado por

pessoas que não entendem minhas necessidades. Pelo menos não

como eu mesmo.

Mochila Social

Um olhar sobre desenvolvimento social e pobreza no leste da África

Por Alex Fisberg

Este capítulo integra o livro Mochila Social – Para mais informações acesse: www.mochilasocial.com ou colabore em www.catarse.me/mochilasocial

Por Alex Fisberg (2012) O projeto gráfico é da Casa Rex www.casarex.com.br