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Paulo Victorino CAPÍTULO OITO A DEMOCRACIA "RELATIVA" GOVERNO JOÃO BATISTA FIGUEIREDO As tensões sociais reprimidas começaram a explodir, principalmente em São Paulo, logo após a posse do novo governador, Franco Montoro (eleito por via direta no final de 1982) substituindo o governador biônico Paulo Salim Maluf e Montoro assumiu prometendo governar com pleno respeito aos direitos humanos. Essa expressão direitos humanos até então, de simples retórica, precisava agora ser dimensionada, para fixar-lhe os limites, separando a liberdade de expressão dos atos atentatórios a essa própria liberdade. Nem o próprio governador sabia exatamente quais esses limites. Praticamente no dia seguinte à posse, hordas de desempregados começaram a realizar passeatas de protesto, principalmente no centro da cidade e na região de Santo Amaro (zona sul de São Paulo), onde os desocupados se achavam em maior número. E no meio deles, também, os agitadores. O encaminhamento da candidatura sucessória à presidência da República não foi um ato circunstancial, mas um projeto traçado desde o início do governo anterior. Com efeito, o general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência, cinco anos antes, representando sobretudo a ala moderada das Forças Armadas, tinha a função precursora de realizar a abertura política, a fim de que seu sucessor, general João Batista Figueiredo, cuidasse da segunda etapa, qual seja, o processo de redemocratização. O primeiro trabalho era de terraplenagem, o segundo, de construção do novo edifício.

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Page 1: CAPÍTULO OITO A DEMOCRACIA RELATIVA GOVERNO … · ... o Serviço Nacional de ... Assume em 15 de março de 1979 para iniciar o processo de redemocratização do ... federais e para

Paulo Victorino

CAPÍTULO OITO

A DEMOCRACIA "RELATIVA"

GOVERNO JOÃO BATISTA FIGUEIREDO

As tensões sociais reprimidas começaram a explodir,

principalmente em São Paulo, logo após a posse do novo

governador, Franco Montoro (eleito por via direta no final de 1982)

– substituindo o governador biônico Paulo Salim Maluf – e

Montoro assumiu prometendo governar com pleno respeito aos

direitos humanos.

Essa expressão – direitos humanos – até então, de simples

retórica, precisava agora ser dimensionada, para fixar-lhe os

limites, separando a liberdade de expressão dos atos atentatórios

a essa própria liberdade. Nem o próprio governador sabia

exatamente quais esses limites.

Praticamente no dia seguinte à posse, hordas de

desempregados começaram a realizar passeatas de protesto,

principalmente no centro da cidade e na região de Santo Amaro

(zona sul de São Paulo), onde os desocupados se achavam em

maior número. E no meio deles, também, os agitadores.

O encaminhamento da candidatura sucessória à presidência da República

não foi um ato circunstancial, mas um projeto traçado desde o início do governo

anterior. Com efeito, o general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência, cinco

anos antes, representando sobretudo a ala moderada das Forças Armadas, tinha

a função precursora de realizar a abertura política, a fim de que seu sucessor,

general João Batista Figueiredo, cuidasse da segunda etapa, qual seja, o

processo de redemocratização. O primeiro trabalho era de terraplenagem, o

segundo, de construção do novo edifício.

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Dentro desse plano de duas etapas, o general Figueiredo foi colocado

em um dos postos-chave da República, o Serviço Nacional de Informações,

cabendo-lhe acompanhar as reações nos meios civis e militares e dosar o

remédio segundo a reação do paciente. Para outro ponto vital, que era a

chefia da Casa Civil, foi nomeado o general Golberi do Couto e Silva, o

cérebro articulador do processo de abertura.

No momento oportuno, Figueiredo foi eleito sucessor de Geisel, enquanto que

Golberi permaneceu na Casa Civil mesmo após a troca de governo, garantindo,

desta forma, a continuidade da transição. Tudo muito bem planejado.

A vocação de Figueiredo para a democracia vinha de seu pai, o general

Euclides Figueiredo, um dos líderes da Revolução Constitucionalista de 1932,

que, sustentando suas convicções, teve de amargar o exílio na Argentina até a

anistia decretada com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte de

1934. Ao falar em abertura, pois, o novo Presidente sempre se referia à

democracia de meu pai.

Tinha o costume de circunscrever a democracia a determinados limites,

identificados por adjetivos: era a democracia relativa, a democracia possível, a

democracia controlada. Não escondia sua convicção de que uma democracia só

é salutar se for dirigida pelo governo, a fim de cortar os excessos, ideia que

chegou a defender em uma coletiva dada à imprensa estrangeira. Uma

democracia que não excluía o uso do autoritarismo, conforme frase do próprio

Figueiredo: "Infeliz o país que diz não aos seus generais, que diz não aos

golpes."

Já em sua primeira entrevista à Folha de S. Paulo, ainda candidato,

escandalizou a opinião pública, defendendo as eleições indiretas à Presidência

e reforçando sua opinião com um exemplo:

"Veja se em muitos lugares do Nordeste o povo pode votar bem

se ele não conhece noções de higiene? Aqui mesmo em Brasília,

eu encontrei, outro dia, num quartel, um soldado que nunca

escovara os dentes e outro que nunca usara um banheiro. E por aí

vocês me digam se o povo já está preparado para eleger o

presidente da República?"

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Figueiredo: a democracia consentida

Era franco e espontâneo em suas reações. Ao inaugurar, numa cidade, a

vaca mecânica que iria produzir leite de soja para a merenda escolar,

experimentou o produto, fez uma careta e exclamou: "Bah, nenhuma criança vai

conseguir beber isto!"

Em outra ocasião, ao tomar conhecimento do atentado no Riocentro,

desabafou: "Essa bomba estourou sobre minha cabeça!" Depois, teve de

conformar-se e digerir um inquérito manipulado que adulterou a realidade,

transformando os réus em vítimas, tudo para conter os ânimos da linha-dura.

Essa mesma espontaneidade acabou com a imagem de homem do povo,

que vinha sendo criada por seu secretário de Comunicação Social, Saíd Farah.

O Presidente passou a chamar-se simplesmente João ("Plante que o João

garante", dizia a mensagem aos lavradores). Figueiredo era levado a lugares

comuns, tomava café com operários, visitava feiras-livres, mantinha contato com

o povo...

Um dia – 1º de dezembro de 1979 – deu no que deu: foi vaiado por um grupo

de estudantes em Florianópolis-SC e partiu para uma sessão de capoeira,

enfrentando, corpo-a-corpo, os seus desafetos, e transformando um simples

incidente em questão de segurança nacional.

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A partir desse dia, deixou de ser “João” e voltou à sua verdadeira face,

a do general Figueiredo. Após o incidente, sua imagem foi associada a uma

musíca, corrente na época: João Valentão é brigão, só dá bofetão e não pensa

na vida... Figueiredo se defende: Não é possível aceitar insultos e ficar calado.

No projeto político que lhe foi confiado, fez o que pôde. Encaminhou o

processo de redemocratização mas precisou engolir muitos sapos. Não teve

pulso para conter a linha-dura e, no caso do Riocentro, perdeu seu grande

articulador político, o general Couto e Silva, que se demitiu ao tomar

conhecimento dos rumos que seguia o inquérito. Foi substituído, na Casa

Civil, por Leitão de Abreu, mais à direita que a média.

E, em 1985, no dia da posse do novo Presidente, ou melhor, do vice-

Presidente José Sarney, saiu pela porta dos fundos para não transferir a faixa

ao seu sucessor. O presidente eleito Tancredo Neves fora internado, pela

madrugada no Hospital de Base de Brasília e a posse do Vice (é o que se

supunha) seria apenas provisória.

Quem era Figueiredo

João Batista de Oliveira Figueiredo nasceu no Rio de Janeiro em 15 de

janeiro de 1918. Filho de general (numa família de seis irmãos), aos 11 anos já

estava matriculado no Colégio Militar de Porto Alegr (RS) e, no ano seguinte,

acompanhando o pai, transferiu-se para o Colégio Militar do Rio de Janeiro.

Em 1937, aos 19 anos, forma-se aspirante a oficial na Academia Militar do

Realengo, como primeiro da turma. Ao receber o espadachim, o presidente

Getúlio Vargas, presente à cerimônia, lhe pergunta como conseguiu aplicar-se

tanto nos estudos e o cadete responde rápido: “Se não faço isso, meu pai me

põe na cadeia!"

Em 1958 é promovido a tenente-coronel e em 1961, no governo Jânio

Quadros, inicia sua experiência com serviços de inteligência, ao ser nomeado

chefe do Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (precursor

do SNI). Com a revolução de 1964, é promovido a coronel e assume a chefia do

SNI, cargo que voltará a ocupar, mais tarde, no governo Geisel. Sua formação,

pois, desenvolveu-se, toda ela, na área da inteligência.

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Em 1977, como principe-eleito, seu nome já é anunciado por Geisel como

sucessor, embora faltem quase dois anos para a o fim do mandato deste último.

Assume em 15 de março de 1979 para iniciar o processo de redemocratização

do Brasil, após a distensão já ocorrida no período Geisel.

Era casado com dona Dulce Maria de Guimarães Castro e tinha dois filhos:

João Batista (Johnny) e Paulo Renato, este último bem mais conhecido pela

mídia.

Dona Dulce Figueiredo, a última Primeira-Dama do regime militar

A difícil graduação

do processo

Se, por um lado, o novo Presidente tinha consciência de que o autoritarismo

precisava ter um fim, por outro, discordava dos que pretendiam ir com muita sede

ao pote, achando, mesmo, que Geisel teria se apressado demais no processo

de abertura.

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Figueiredo ressentia-se por não ter às mãos, pelo menos no início, os

recursos do AI-5, extinto antes de sua posse:

"Eu falei ao Geisel para abrir um pouco a válvula da panela de

pressão. Mas ele veio com aquela mãozona de alemão e abriu

demais."

Mas reconhecia também que era perigoso retardar demasiado o

encaminhamento das soluções, por causa das tensões sociais e políticas e usou

de seu estilo deixe de que eu chuto:

“É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo.

Arrebento. Não tenha dúvidas"

General João Baptista de Oliveira Figueiredo, em 15/10/1978, ao

ser questionado sobre a abertura política

Como se fosse continuação do governo anterior (e era), logo nos primeiros

momentos, Figueiredo arregaçou as mangas e pôs as mãos ao trabalho,

encadeando uma série de atos administrativos.

Encaminhou o projeto que concedia anistia ampla e irrestrita não só

para os chamados subversivos, como também para os elementos que

faziam parte do aparelho repressor, impedindo, assim, que uns e outros

fossem julgados pelos atos que praticaram.

A Lei da Anistia foi sancionada em 28 de agosto de 1979. Era uma anistia

de mão dupla. Beneficiou, sim, 4.650 brasileiros banidos e despidos de sua

cidadania, que, assim, puderam voltar à pátria.

Mas a mesma lei beneficiou, mais que tudo, aquela multidão de agentes da

repressão, que em momento algum precisaram sair do país, e que agiram à

solta, prendendo, torturando e matando; sobre estes se estendia também o

manto protetor da anistia, o que lhes permitiu continuar agindo, à margem da lei,

mas sob as vistas grossas do poder público, que não queria ou não conseguia

mais controlar os atos de terrorismo e intimidação, mesmo após a anistia

concedida.

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Em 1981, em regime de urgência, foi enviada ao Congresso uma lei que

estabelecia a reforma política, acabando com a figura do senador biônico

(exceto para os que já estavam empossados) e restabelecendo eleições

diretas para governador.

A lei, não apreciada pelos congressistas no prazo regulamentar, foi aprovada

por decurso de prazo, recebendo apenas a sanção do presidente da República.

O decurso de prazo era um resíduo autoritário garantido pela Constituição de

1969, do qual se serviram alguns governantes (governadores e prefeitos) até a

promulgação da Constituição de 88.

No governo anterior, os mandatos de prefeitos e vereadores havia sido

prorrogado até 1983, permitindo a coincidência das eleições. Assim, foi possível

marcar para 15 de novembro de 1982 as eleições gerais para governadores e

deputados estaduais, para deputados federais e para a renovação de um terço

do Senado, bem como para prefeitos e vereadores.

No caso das prefeituras, continuavam sendo nomeados os prefeitos das

capitais e das estâncias hidro-minerais bem como das cidades consideradas de

segurança nacional.

Economia em declínio

O mesmo fator condicionante que favoreceu o presidente Médici a fechar o

regime, com apoio ou indiferença popular, é agora o grande adversário de

Figueiredo, dificultando o processo de redemocratização. Seu nome:

Economia.

O ministro continua o mesmo, Delfim Neto. Mas a situação, quanta

diferença! Da primeira vez, Médici recebera um país estabilizado pelo governo

Castelo Branco, encontrou boa vontade dos investidores estrangeiros e crédito

fácil para realizar obras, muitas delas faraônicas e de necessidade discutível,

algumas delas abandonadas ao meio da execução.

Agora, Figueiredo encontra um país em apuros, com aumento contínuo nos

preços dos preços do petróleo, dificuldades para exportar e dívida externa

crescendo perigosamente, apelidada que foi de “dívida eterna”, sem o “x”.

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Ferrovia do Aço, em Minas Gerais iniciada no governo Médici, é um

exemplo do desperdício. A obra parou, mas a dívida ficou para pagar.

No início do governo, a inflação era de 40 por cento, em 1981 subiu a 90 por

cento e ao fim do mandato, já havia ultrapassado os 200 por cento. Recebeu o

governo devendo 40 bilhões de dólares e saiu devendo mais de 100 bilhões.

A par com a inflação, havia a recessão, o desemprego e o arrocho salarial.

No Congresso, encontrou uma reação não experimentada pelos governos

anteriores, que obrigava o Presidente a negociar.

Para promover o congelamento salarial foram emitidos, sequencialmente os

decretos-leis 2.012, 2024, 2045 e 2064, todos retirados a tempo para evitar que

fossem rejeitados. Por fim, o governo conseguiu o apoio do PTB de Ivete

Vargas que lhe deu a maioria necessária e, então, emitiu o decreto-lei 2.065,

que passou espremido, mas passou.

Os salários eram contidos, enquanto a inflação corria solta. E o PTB, tal qual

na República anterior, continuava sendo o fiel da balança, negociando seus

votos a peso de ouro.

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Foi em tal clima que se realizaram as eleições gerais de 1982, as quais

repercutiram de forma variada, conforme as condições específicas de cada

região do país.

Volta o pluripartidarismo

Ainda no governo anterior, foram extintas a Arena e o MDB,

restabelecendo-se no país o pluripartidarismo, com um mínimo de

exigências para a formação de partidos políticos, e com prazos

relativamente longos para o cumprimento das exigências legais, com o que

passou a haver um grande número de partidos que tinham sua existência

apenas consentida, mas sem regularização definitiva.

O pluripartidarismo fazia parte da estratégia governamental. Com a volta das

antigas lideranças, após a anistia, a oposição rachou em várias facções,

quebrando sua unidade. Foram proibidas as coligações entre partidos e

estabeleceu-se o voto vinculado, ou seja, governador e vice, prefeito e vice, etc.,

tinham de ser escolhidos dentro do mesmo partido, limitando a opção do

eleitorado.

Isso, aparentemente, enfraqueceu a oposição e fortaleceu a situação, dado

que o Presidente só permitiu a existência de um partido oficial, o PDS (antiga

Arena), considerando oposicionistas todos aqueles que criassem ou se filiassem

a outras legendas. Por outro lado, extra-oficialmente, todos os ocupantes de

cargos de confiança dentro do governo tinham de filiar-se ao PDS e autorizar o

desconto, no contracheque, de uma contribuição mensal para essa agremiação.

Os principais líderes oposicionistas formaram, então, os principais partidos

da oposição. Como a expressão Partido tinha, obrigatoriamente de constar do

nome, o MDB passou a chamar-se PMDB, sendo ironizado pelo ministro

paraense Jarbas Passarinho: "Mas essa é a sigla da Prefeitura Municipal de

Belém!"

Leonel Brizola e Ivete Vargas disputavam separadamente a sigla do

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com todo o charme que esse nome trazia

do período Vargas.

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Brizola requereu o registro primeiro, mas o TSE concedeu o nome da legenda

a Ivete Vargas, alegando que os documentos apresentados por Brizola estavam

incompletos. Com Ivete, voltava o tradicional PTB, de centro-direita, como linha

auxiliar do governo.

Brizola saiu do Tribunal em lágrimas, reuniu seus partidários e fundou o

Partido Democrático Trabalhista (PDT), de centro-esquerda. A esta altura,

Leonel Brizola era um político experimentado e conciliador, não lembrando nem

de longe o Brizola incendiário dos tempos de João Goulart.

Esses foram os partidos com raízes sólidas, e que se desenvolveram através

dos tempos. Mais tarde, surgiria também o PT-Partido dos Trabalhadores, com

fundamentos suficientes para subsistir. Ao contrário dos outros, o PT nasceu

pequeno, apoiado firmemente nas bases de sustentação, e conseguiu crescer

até se emparelhar com os maiores, ganhando voz e credibilidade.

No mais, surgiram, em quantidade, partidos sem expressão, conhecidos,

quase todos, como legendas de aluguel, dado que não tinham chances de se

firmar, servindo apenas para tumultuar o processo eleitoral e utilizar (ou alugar

a outras legendas) o seu horário político gratuito no rádio e na televisão.

Numa dessas legendas, o seu presidente, pastor Armando Correa (na prática,

o dono do partido) se auto-intitulava o candidato dos explorados. Em outra, o

presidente, José Alcides de Oliveira, conhecido pela alcunha de Marronzinho foi

processado por crime contra a honra (calúnia, injúria e difamação). Julgado e

condenado, cumpriu pena em uma das cadeias da Grande São Paulo.

Uns poucos partidos eram realmente idealistas, mas não conheciam a

carpintaria da política, afundando, assim, em seus próprios ideais.

A abertura foi ampla, mas não irrestrita. Os partidos comunistas

permaneceram proibidos e seus membros se alojaram nas legendas de

oposição, sobretudo no PMDB e, mais tarde, no PT. O fantasma da Intentona de

35 continuava a ser agitado nos quartéis, dificultando a sua liberação. Os que

tentaram organizar clandestinamente o PCB acabaram sendo presos e só foram

anistiados muitos anos depois, quando se permitiu sua legalização. Luís Carlos

Prestes, por sua vez, fora marginalizado e o nome em evidência passou a ser o

de seu opositor, João Amazonas.

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Lula, candidato, em um comício do PT

As eleições gerais de 1982

Os governistas, de roupa nova, com a sigla do PDS (a imagem da Arena

ficara profundamente desgastada) realizavam sua campanha por todo o país,

utilizando a estrutura já existente. Enquanto isso, a oposição, fracionada em

várias legendas, tinha a seu favor a rejeição popular ao governo em face da crise

econômica. Criticar é mais fácil que governar e a linguagem de palanque seduz

mais do que a racionalidade da administração.

Ainda que o problema central da economia estivesse no embargo do petróleo,

atingindo todo o mundo ocidental e não apenas o Brasil, o fato visível era o

empobrecimento cada vez maior da população e o desemprego causado pela

recessão.

Nas grandes cidades, quase toda família tinha pelo menos um

desempregado sendo sustentado pelos demais. E isso numa época em que

não existia seguro desemprego ou qualquer outro sistema de proteção,

além do que, as possibilidades de voltar à atividade eram mínimas, pela

falta de oferta de novas vagas.

Ainda assim, de um modo geral, as eleições não surpreenderam o governo,

que, firmado no coronelismo e na máquina eleitoral lustrosa e lubrificada,

conseguiu a maioria das prefeituras e governos estaduais. Mas os três maiores

Estados do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais – votaram

com a oposição, fazendo os governadores e conseguindo maioria nas

assembleias legislativas, bem como conquistando grande número de

prefeituras.

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As tensões sociais reprimidas começaram a explodir, principalmente em São

Paulo, logo após a posse do novo governador, Franco Montoro – que substituía

o governador biônico Paulo Salim Maluf – assumiu prometendo governar com

pleno respeito aos direitos humanos. Essa expressão, até então, de simples

retórica, precisava agora ser dimensionada, para fixar-lhe os limites, separando

a liberdade de expressão dos atos atentatórios a essa própria liberdade. Nem o

próprio governador sabia exatamente quais esses limites.

Praticamente no dia seguinte à posse, hordas de desempregados

começaram a realizar passeatas de protesto, principalmente no centro da cidade

e na região de Santo Amaro (zona sul de São Paulo), onde os desocupados se

achavam em maior número.

E, é claro, entre eles se infiltravam agitadores profissionais, provocando

quebra-quebras, que o governo federal atribuía à população como um todo. A

mídia fotografou populares arrancando e destruindo uma placa de rua com o

nome do general Euclides Figueiredo, pai do Presidente, e isso causou

transtornos ao novo governador, que mandou substituir incontinente a placa

destruída, enviando fotos a Brasília para comprovar a restauração.

O novo prefeito nomeado para a Capital, Mário Covas, teve de enfrentar um

problema semelhante. Ao chegar à sede da Prefeitura, no Ibirapuera, encontrou

um acampamento de desempregados montado quase à frente de seu gabinete.

Ex-cassado pela ditadura, defensor dos direitos humanos, não considerou o ato

como provocação e, deixando de restabelecer a ordem de imediato, perdeu o

controle da situação, ficando com um problema que não tinha mais condições de

administrar, tanto mais que se tratava mais de uma ação política do que

reivindicatória.

Pior aconteceu ao governador Franco Montoro. Aumentando dia-a-dia

as arruaças, os manifestantes, finalmente, marcharam até a sede do

governo e, não sendo contidos pela guarda, derrubaram a cerca do Palácio,

espalhando-se pelos gramados e demais áreas externas ao edifício. Nada

mais destruíram, mas o impacto psicológico foi grande, simbolizando a

falta de autoridade do poder público.

De outro lado, sem teto invadiram algumas propriedades públicas, como o

Colégio Stafford, no centro da cidade, outrora residência de Santos Dumont,

que se achava desativado e tombado pelo patrimônio histórico, mas

abandonado. Novamente, as autoridades relutaram bastante em providenciar

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a saída dos invasores e o local transformou-se num imenso cortiço, que assim

permaneceu por muitos anos.

O local, de inquestionável valor histórico transformou-se, muitos anos mais

tarde, em museu, o Museu da Energia.

Por toda a cidade, a situação era tensa. Durante semanas, as casas

comerciais tinham de funcionar com as portas semicerradas, com funcionários

atentos para fechá-las ao menor indício de distúrbios.

Aos poucos, o governo sentiu a necessidade de repor a disciplina e a polícia

começou a agir, algumas vezes com violência além do necessário, dando

combustível aos adversários.

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Foi um teste de fogo para os novos governos em todos Estados em que a

oposição venceu. Após longo tempo de ostracismo, eles recuperavam o poder e

precisavam fixar seus próprios parâmetros, estabelecendo os limites justos para

que a liberdade não se transformasse em anarquia. Conseguiram, mas deu

trabalho e, com isso, perderam um pouco do charme que tinham ao fazer

simplesmente oposição.

Terror à sombra do poder

O governo anterior, de Ernesto Geisel, agiu duramente contra os dois lados

do confronto político-militar que se instalara no país. Ao mesmo tempo que

liquidou com as guerrilhas e movimentos de contestação ao regime, também

desativou os órgãos de repressão usando com eles a mesma energia, inclusive

com a demissão de seu ministro da Guerra, general Silvio Frota, e do

comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Avila Melo, representantes da

linha-dura do Exército.

A verdade, porém, é que desativou os órgãos de repressão, mas não

cuidou de desmontá-los, de sorte que, ao início do governo Figueiredo, todo o

aparelho se achava em plenas condições de atuar, agora à margem da lei, mas

ainda sob a sombra da impunidade, numa escalada de violência objetivando

impedir a redemocratização do país.

A série de atentados ocorridos desde então durou um ano e meio e tinha

articulação cuidadosa, como se depreende da perfeita sincronia com que eram

realizados.

Em 27 de agosto de 1980 três bombas explodiram em pontos diferentes do

Rio de Janeiro. Na OAB-Ordem de Advogados do Brasil, uma delas arrancou o

braço da secretária, Lida Monteiro da Silva, que morreu ao chegar ao hospital;

na Câmara Municipal, outro petardo atingiu o assessor José Ribamar e mais

cinco pessoas, sendo que Ribamar perdeu um braço e a visão do olho esquerdo;

a terceira explodiu no jornal Tribuna da Luta Operária, sem maiores

consequências, além do susto e da intimidação.

No dia seguinte, uma carta-bomba, endereçada ao superintendente da

Sunab, foi desativada a tempo.

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Por todo o ano os atentados continuaram a ocorrer. Várias bancas de jornais,

que vendiam semanários oposicionistas, foram incendiadas, em São Paulo, Rio

de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e outros Estados. A sede do jornal Hora do

Povo foi parcialmente destruída por duas bombas. O mesmo ocorreu com o

jornal carioca Tribuna da Imprensa, atingido por várias bombas, conforme

comentado ironicamente em editorial, por seu diretor, Hélio Fernandes:

"Este é um jornal que renasce das cinzas, literalmente. Não é

força de expressão, estamos trabalhando no meio de escombros,

não há nada que esteja em pé, a não ser a nossa cabeça, cada vez

mais lúcida e serena."

Uma semana depois, na CPI do Terror, o mesmo Hélio Fernandes depõe:

"A Tribuna foi atingida por duas espécies de explosivos. Um,

objetivo, e outro, subjetivo. O explosivo objetivo foi o TNT. Mas o

explosivo subjetivo foi a IMPUNIDADE NACIONAL, pois só a

certeza da impunidade pode levar a atentados monstruosos como

esse praticado contra a Tribuna, na semana passada".

Em Minas Gerais, bombas explodiram, por exemplo, em um cinema de Belo

Horizonte, no Sindicato dos Jornalistas, no jornal Estado de Minas, no Forum

Milton Campos, na sede da OAB e no interior do Estado.

Em São Paulo, os alvos principais foram os sindicatos e no Rio Grande do

Sul atingiram até a casa de um juiz, como que contestando a validade da Justiça

como poder.

Isso é apenas uma pequena amostra do que ocorreu naquele pequeno

espaço de tempo. Não citamos, por exemplo as bombas no Hotel Everest, onde

se achava hospedado Leonel Brizola, na Escola de Samba Acadêmicos do

Salgueiro, no escritório do jurista Sobral Pinto, em agências bancárias, em locais

públicos, por todos os pontos do país. Foram centenas de ameaças e tentativas,

entre as quais pode-se confirmar pelo menos 40 atentados efetivos em pouco

mais de um ano.

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Chegou a vez do Riocentro

Entre todos atentados, seguramente, nenhum ganhou tamanha repercussão

como o do Riocentro, em 30 de abril de 1981, pretendendo causar pânico e

morte durante um espetáculo musical em que se comemorava, na véspera, a

passagem do Dia do Trabalho.

Não era um atentado comum, mas um complexo em que bombas explodiriam

em vários locais do Riocentro e só não causou a tragédia planejada por

incapacidade técnica de seus realizadores, diga-se de passagem, profissionais.

Uma delas chegou a detonar na casa de força, mas não cumpriu seu objetivo

que era o de causar a escuridão e o pânico na sala de espetáculos.

Outra bomba – a que trouxe à tona todo escândalo – explodiu dentro de um

Puma, no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário (no Exército,

especialista em ativação e desativação de bombas) causando-lhe morte

instantânea; foi atingido também o “carona”, seu companheiro de ofício, o

capitão Wilson Luís Chaves Machado, que perdeu uma das pernas.

O sargento, que morreu em acidente de trabalho, teve funerais de herói,

com honras militares e a bandeira nacional sobre o caixão; já o capitão recebeu

uma perna mecânica e desfilou na parada de 7 de Setembro, à frente de um

batalhão. Foi rapidamente promovido, até chegar ao posto de coronel.

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O Jornal Nacional, da TV Globo, noticiou a existência de mais duas bombas

dentro do Puma. No dia seguinte, teve de desmentir a notícia, já que o assunto

vinha sendo tratado pelas autoridades como segredo de estado.

Um inquérito foi aberto na área militar, designando-se para chefiá-lo o

coronel Luís Antônio do Prado Ribeiro, que renunciou à missão ao perceber

que não poderia fazer um trabalho sério sem ferir o espírito de corpo,

incriminando companheiros de farda.

Assumiu, então, a chefia o coronel Job Lorena de Sant’Anna, que deitou

e rolou, fazendo uma montagem rudimentar dos acontecimentos e

concluindo pela inconclusão: não se podia apurar os mentores do

atentado, que foi atribuído a elementos de esquerda.

Escreve o jornalista Vilasboas Corrêa:

"Aparatosa encenação, montada para a divulgação dos

resultados do IPM do Riocentro, desde o cenário armado com

meticulosidade calculada, à exibição profusa de slides até a

ingênua esperteza da escolha do dia e da hora, exatamente

quando o Congresso Nacional mergulha na sonolência de um mês

de recesso – não procurou colar a estampilha da credibilidade

numa peça política e quase confessadamente política, nos seus

objetivos e na sua proposta. (...) Um documento que chega a ser

constrangedor na sua fragilidade de porcelana, que não suporta o

piparote de uma crítica, que não aguenta o tranco de uma análise."

Uma investigação extra-oficial

O coronel Dickson Grael, ex-diretor do Riocentro, afastado alguns dias

antes do atentado, pôs-se a investigar, sozinho, o outro lado da história,

propiciando à imprensa os esclarecimentos que o inquérito não conseguia dar.

Reuniu, inclusive, uma série de documentos, como carta solicitando

policiamento para o show; ordem de serviço do 18º Batalhão da PM,

determinando o policiamento; ato do comandante geral, demitindo o comandante

do 18º Batalhão que deu essa autorização (a ordem de policiamento foi

suspensa em seguida); auto de exame cadavérico do sargento morto,

acompanhado de fotos; e até foto de um pedaço de porta do Puma onde se deu

a ocorrência, a qual foi recolhida por Dickson Grael e encaminhada ao Juiz

Auditor da 3ª Auditoria do Exército.

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A investigação do coronel Grael aponta para alguns acontecimentos

que se encadeiam: o seu afastamento da direção do Riocentro, dias antes

do atentado; o afastamento do responsável pela segurança, tenente Cesar

Wachulec no próprio dia do show e alteração no plano de segurança,

deixando a descoberto o policiamento da casa-de-força, onde explodiu

uma das bombas; dos 30 portões de saída, 28 ficaram trancados durante o

show, restando apenas dois para a evacuação do público, cerca de 20.000

pessoas, quando se instaurasse o pânico; não havia sequer uma

ambulância no local (o capitão ferido foi transportado em um carro

particular pela neta de Tancredo Neves, dona Andrea Neves da Cunha). E

vai por aí.

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A Justiça Militar, após o julgamento do processo, optou pelo seu

arquivamento, por falta de provas conclusivas quanto aos autores do atentado.

O único voto contrário ao arquivamento foi o do almirante Júlio de Sá

Bierrenbach, que insistiu depois pela reabertura do processo, alegando

que – pasmem! - nem sequer tinha sido ouvida a principal testemunha, o

capitão Machado, o único que viu como as coisas aconteceram.

Somente em setembro de 1999, dezoito anos depois, o inquérito do

Riocentro foi aberto, e pra valer. Oficiais que prestaram depoimento no

IPM-Inquérito Policial Militar confirmaram que o atentado foi praticado por

radicais do DOI-CODI do Rio de Janeiro, "com a conivência da alta

hierarquia do antigo regime com a mentira".

O capitão Wilson Luís Chaves Machado (hoje coronel da reserva), apontado

anteriormente como vítima, agora figura na condição de réu e co-autor do

atentado. Aos poucos, a verdade vai sendo restabelecida. Pelo menos, para

uma retificação da História. Em 29 de Abril de 2014, a Comissão Nacional da

Verdade apresentou um relatório preliminar sobre o caso afirmando que o

atentado fez parte de uma ação articulada do Estado Brasileiro

O Presidente vacila

Não se deu bem o general-Presidente João Batista Figueiredo em seu

posicionamento em face ao caso do Riocentro. Desejando contemporizar,

evitando atritos com a linha dura, deixou o inquérito correr à solta por conta do

Exército, sem usar sua influência, como presidente-militar que era; como

representante, que era, do Sistema; como Comandante Supremo, que era, das

próprias Forças Armadas.

Até seu ministro-chefe da Casa Civil, general Golberi do Couto e Silva,

geralmente conciliador, sensato, prudente e tranquilo, desta vez, perdeu a

paciência e demitiu-se do cargo, diante da passividade do Presidente, sendo

substituído por Leitão de Abreu, mais próximo à linha-dura.

O general Diogo Figueiredo, irmão do Presidente recusou-se a ler os

resultados do inquérito frente a seus comandados – conforme ordem do 1º

Exército – por considerá-lo irreal e distorcido.

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Em 8 de maio de 1991, dez anos após o incidente e já fora do governo,

Figueiredo divulga uma longa mensagem à imprensa, tentando se defender, e

dizendo, entre outras coisas:

"Preservei a autonomia soberana da Justiça. Na época, antes

mesmo de iniciados os procedimentos de inquéritos, declarei que

não ingeriria no caso, que respeitaria de forma absoluta e isenta

qualquer caminho que as investigações e o posterior julgamento

tomassem. (...) Se não tivesse agido dessa forma teria

comprometido de forma irremediável a única estratégia possível

para atingir o objetivo maior de meu governo, de restaurar o Estado

Democrático de Direito no Brasil."

Pelo menos ao público externo, Figueiredo sempre se disse indefinido com

relação ao episódio, analisando as duas probabilidades:

"Se foi do lado de lá, não poderia ser mais inteligente; se foi do lado

de cá, não poderia haver burrice maior."

O ponto positivo no atentado do Riocentro foi o de que ele gerou forte clamor

popular, fazendo retrair as forças de repressão que, após seu canto do cisne,

começaram a declinar nas atividades terroristas.

O ponto negativo é que a autoridade do presidente da República, chefe

supremo das Forças Armadas, saiu bastante enfraquecida do episódio,

perdendo em certo ponto o apoio dos liberais que, aos poucos, foram se

afastando do governo, abrindo espaço para a entrada dos radicais.

Isolando o vice-Presidente

Envolvido em crônicos problemas de coluna, Figueiredo teve ainda de

enfrentar um enfarto do miocárdio e, em 1983, voltou a internar-se em um

hospital de Cleveland (EUA) para colocar uma ponte de safena e outra de

mamária. Em ambos os casos foi substituído por seu vice, Aureliano Chaves,

mas em ambos os casos, também, cuidou de afastar os seus ministros do

convívio com seu substituto.

Alguns viajaram, estrategicamente, em missões oficiais e outros, levou-os

consigo mesmo aos Estados Unidos, por conta e ordem do Tesouro Nacional.

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Ainda assim, não se viu livre de um sério incidente, em 1983. Achando-se

investido como Presidente em exercício, Aureliano Chaves deu algumas

instruções ao ministro da Previdência Social, Jarbas Passarinho, um dos poucos

que ficaram em Brasília, e este recusou-se a cumpri-las, declarando que só

receberia ordens do presidente Figueiredo. Irritado, Aureliano demitiu-o e

Passarinho recusou-se a acatar a demissão, alegando que "um ministro é

nomeado em português e demitido em latim [ad-nutum] mas só por quem está

habilitado a fazê-lo".

Aureliano Chaves, Vice do Presidente Figueiredo

Assim que soube do acontecido, o presidente Figueiredo deu razão ao

ministro, desautorizando o vice-Presidente. Com isso, criou uma situação

irreversível, afastando de seu convívio não só o vice, como todo o bloco de apoio

que ele representava.

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Na forma de costume, o vice-Presidente recebeu convite para participar das

comemorações do Dia do Soldado, em 25 de agosto. Depois, por instruções de

Figueiredo, o seu ministro do Exército, general Valter Pires, enviou novo ofício

cancelando o convite. Afora a falta de polidez, nenhum reparo havia a fazer por

essa atitude inusitada, porquanto as festividades do Dia do Soldado são restritas

à caserna e, como tal, o único convite obrigatório, pelo protocolo, é dirigido ao

presidente da República, comandante supremo das Forças Armadas.

Acontece que, aproximando-se as comemorações de 7 de Setembro,

Aureliano também não recebeu o convite para estar presente ao desfile. Aí, a

coisa complica, porque a vice-presidência da República é cargo e não

função. Seu titular não é um eventual a ser chamado em casos de substituição

ao Presidente. Ele é participante ativo do governo, desde o dia de sua posse até

a posse de seu substituto e assim, protocolarmente, sua presença a cerimônias

públicas não é uma questão de gosto, mas de obrigação protocolar de governo.

Incontinente, Aureliano oficiou aos organizadores do desfile, advertindo-os de

que continuava vice-Presidente constitucional e não iria tolerar a quebra do

protocolo. Diante disso, o convite lhe foi encaminhado, mas, durante o desfile,

tanto o presidente Figueiredo quanto sua comitiva ignoraram por completo a

presença de Aureliano Chaves, que permaneceu no palanque completamente

isolado. Aureliano não perdoou a grosseria, que serviu para afastá-lo, ainda

mais, do bloco presidencial.

O governo e o trabalhador

Durante todo seu governo, João Batista Figueiredo fugiu ao diálogo com o

trabalhador brasileiro e, quando se lembrou dele, foi para aplicar o arrocho

salarial determinado pelo Decreto-Lei 2065.

Não evitou, porém, que estourassem greves reivindicatórias, todas julgadas

pela Lei de Greve implantada pela ditadura militar e, por conseguinte, todas elas

declaradas ilegais. O governo tinha inclusive o poder de interferir nos Sindicatos

e não hesitou em fazê-lo, quando lhe conveio.

Os momentos de maior tensão social ocorreram nas greves dos

metalúrgicos do ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano e

Diadema) em 1979 e 1980, quando a cidade de São Bernardo do Campo virou

praça de guerra, com a Polícia Militar e a Polícia Civil tomando a cidade por

terra,.

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No ar, helicópteros do Exército faziam voos de reconhecimento e de

intimidação. O direito de ir e vir dos grevistas foi, a toda hora contestado e, em

certos momentos, foi-lhes impedido até realizar suas Assembleias.

Em 1979, o movimento grevista foi rápido. Iniciou-se em 14 de março e

encerrou-se 13 dias depois, em 27 de março, o que não impediu a intervenção

do ministério do Trabalho no Sindicato, afastando temporariamente o presidente

Luís Inácio da Silva (Lula).

Já a segunda greve, em 1978, custou 65 dias de tensão para os

trabalhadores e também para a polícia, trazendo, como conteúdo adicional, uma

instabilidade ao regime, pelo que se tornou um dos momentos mais delicados

dentro do processo de transição.

De seu lado, o governo insistia na aplicação, com todo o rigor, de uma lei de

greve ilegítima e irreal, que impedia as montadoras de veículos e demais

empresas metalúrgicas até de negociarem com os sindicatos. Se pudessem

negociar, os problemas teriam sido resolvidos mais rapidamente.

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Já os trabalhadores, desta vez, haviam se organizado melhor para suportar

um movimento mais prolongado, inclusive com coleta de contribuições e de

alimentos, para sobrevivência sua e da família.

Entre polícia e trabalhadores, havia uma ação pacificadora, que era

desenvolvido pelo senador Teotônio Vilela, de Alagoas, e pelo suplente de

senador Fernando Henrique Cardoso, de São Paulo. Um e outro,

representavam o algodão entre os cristais, para evitar a quebra.

Permanecendo todo o tempo em São Bernardo do Campo, os dois

estabeleciam contatos frequentes, ora com os comandantes da operação

policial, ora com os líderes dos grevistas, empenhando-se para evitar um

confronto que seria fatal, com prejuízo maior para estes últimos, que poderiam

até estar com a razão, mas não detinham a força.

Mais uma vez, ocorreu intervenção no Sindicato e Lula foi novamente

afastado. "Desta vez, eu garanto que ele não voltará mais", declarou o

ministro Murilo Macedo.

Não voltou, tudo bem, mas na prática a liderança permaneceu nas mãos de

Lula e era com ele que tinham de ser feitos os contatos e tomadas as decisões.

Assim, a intervenção foi um rompante que não produziu qualquer efeito prático.

Por fim, trabalhadores e empresas começaram a se cansar. Em 8 de abril

de 1978, a greve encerrou-se em São Caetano do Sul. Em 1º de maio,

contrariando a proibição dos órgãos de segurança, realizou-se em São

Bernardo uma passeata com mais de 100 mil pessoas, que terminou com

uma concentração no Estádio de Vila Euclides (Depois, esse local seria

fechado aos grevistas, por determinação do governo). No gramado, um

grupo deles estava desenhando, com os próprios corpos, a palavra

DEMOCRACIA, quando foram interrompidos pela polícia, a golpes de

cassetete.

Em 5 de maio de 1978 ocorreram choques entre polícia e grevistas por toda

a cidade com 50 feridos. Nesse dia, terminava a greve em Santo André e os

trabalhadores voltavam às fábricas.

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Restavam São Bernardo do Campo e Diadema. Diz uma publicação sindical:

"No dia 11 de maio premidos pela intransigência dos empresários

e do governo, acossados por violenta repressão policial, com seus

líderes encarcerados e sem perspectiva de receber o salário

referente aos dias parados, os metalúrgicos de São Bernardo do

Campo e Diadema decidiram voltar ao trabalho. A greve durara 41

dias."

Lula chegou a ficar preso na sede do DEOPS (Departamento de Ordem

Política e Social) por um mês, mantendo um relacionamento razoável com o seu

diretor, delegado Romeu Tuma. Foi Lula que deu aos cárceres do DEOPS o

apelido de Pensão do Tuma. E, por causa desses 30 dias de confinamento,

Lula recebe uma indenização mensal que, em 2010, estava em torno de 6

mil reais. Nada mal para ele...

Romeu Tuma, delegado titular do DEOPS (Departamento de Ordem

Política e Social). Com a eleição de Franco Montoro (oposição) ao

governo de São Paulo, o presidente Figueiredo transferiu-o para a Polícia

Federal, levando consigo para lá todos os arquivos políticos da delegacia.

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Conclusão

Este é um breve resumo do governo Figueiredo, mas nele falta a parte mais

importante. É a grande manifestação popular representada pelo movimento das

Diretas-Já e as consequências decorrentes desse despertar da cidadania.

Tão importante esse episódio, que merece um capítulo aparte, seja pela

vibração popular que há muito não se via, seja pelas reações do governo,

preparado para viver uma ditadura, mas totalmente despreparado para enfrentar

uma crise de democracia. Então, nos encontramos novamente no próximo

capítulo..