capítulo do livro escrito na cal

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3 A REVOLTA DE UM POETA Com as tréguas dos maiores males, que já lá iam, e até ao aparecimento de outros, os consolos da palavra eram presentes nos ditos dos mais conformados: «o mal que Deus dá é para todos»; «Deus conforme dá a chaga dá a mesinha»; «É do céu que nos virá o remédio». Eram estes anteparos de fabrico religioso e de fatalismo resignado que minoravam as contingências das fomes e dos azares dos repetidos anos maus. Quanto a terra amada pedia de dedicação! E quanto ela podia ou não oferecer, dependendo das marcas do tempo. Alqueivar, atalhar, depois a outra lavoura que é aterceirar, e pouco antes da sementeira dar-se-lhe uma gradagem para que possa receber o adubo alentador. A lavoura de sementeira com o arado ou o charrueco, depois adubar em cobertura se o pão já começa a medrar. Mondar as ervas intrometidas, a isso mais do que uma vez. Depois ceifar e acantoar. Dar o pão à debulha transportando-o para o celeiro, dar também caminho às palhas feitas fardos, cintados de arame magro, o comer da gadeza na invernada e no entremeio do atraso do verde dos prados. Seguir o que já vinha dos tempos antigos. Respeitar a terra. A rotação que os solos pedem. Três anos: trigo, cevada ou aveia, tremez, trigo serôdio, alqueivar; quatro anos: trigo, aveia ou cevada, descanso, pousio, alqueive; cinco anos: trigo, cevada ou aveia, dois de descanso para dar pastagem, seguindo-se o alqueive. Era este o tempo das lavouras a respeitar. Formando-se o rancho da acêfa do Tio Laginha. A empreitada tomada. Cinquenta mulheres para meterem foice às palhas; vinte e cinco homens para atarem e comporem os terços e os molhos na amoreia e proverem dos carregos para a debulha, serviço do mantieiro para os almoços, jantares, e prover água fresca para a campanha. Organizava para o outro labor o mestre Prudêncio, que comandava os trabalhos da debulha e que recrutava os seus homens. Era uma empreitada tomada por hábito anual e que começava em meados de Maio e havia de ter nome de prontidão lá pelo tempo de Santa Maria de Agosto. De muito sol aos costados seria a vergasta. O pão dava-se mas exigia curvar, dar de suas poeiras aos corpos, enleá-las no suor, tornar as gargantas secas e os cortes na carne sacrificiais, acontecer de comidas comunais em bojo de tarros, marmitas e barrenhões com pães duros migados, a maior parte das vezes em água chilra, cinco à volta, à vez, com a colher cautelosa a ir e vir a intervalos a respeitar. 53

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A REVOLTA DE UM POETA

Com as tréguas dos maiores males, que já lá iam, e até ao aparecimento de outros, os consolos da palavra eram presentes nos ditos dos mais conformados: «o mal que Deus dá é para todos»; «Deus conforme dá a chaga dá a mesinha»; «É do céu que nos virá o remédio».

Eram estes anteparos de fabrico religioso e de fatalismo resignado que minoravam as contingências das fomes e dos azares dos repetidos anos maus.

Quanto a terra amada pedia de dedicação! E quanto ela podia ou não oferecer, dependendo das marcas do tempo.

Alqueivar, atalhar, depois a outra lavoura que é aterceirar, e pouco antes da sementeira dar-se-lhe uma gradagem para que possa receber o adubo alentador. A lavoura de sementeira com o arado ou o charrueco, depois adubar em cobertura se o pão já começa a medrar.Mondar as ervas intrometidas, a isso mais do que uma vez. Depois ceifar e acantoar. Dar o pão à debulha transportando-o para o celeiro, dar também caminho às palhas feitas fardos, cintados de arame magro, o comer da gadeza na invernada e no entremeio do atraso do verde dos prados.

Seguir o que já vinha dos tempos antigos. Respeitar a terra. A rotação que os solos pedem. Três anos: trigo, cevada ou aveia, tremez, trigo serôdio, alqueivar; quatro anos: trigo, aveia ou cevada, descanso, pousio, alqueive; cinco anos: trigo, cevada ou aveia, dois de descanso para dar pastagem, seguindo-se o alqueive.

Era este o tempo das lavouras a respeitar. Formando-se o rancho da acêfa do Tio Laginha. A empreitada tomada. Cinquenta mulheres para meterem foice às palhas; vinte e cinco homens para atarem e comporem os terços e os molhos na amoreia e proverem dos carregos para a debulha, serviço do mantieiro para os almoços, jantares, e prover água fresca para a campanha. Organizava para o outro labor o mestre Prudêncio, que comandava os trabalhos da debulha e que recrutava os seus homens.

Era uma empreitada tomada por hábito anual e que começava em meados de Maio e havia de ter nome de prontidão lá pelo tempo de Santa Maria de Agosto. De muito sol aos costados seria a vergasta.

O pão dava-se mas exigia curvar, dar de suas poeiras aos corpos, enleá-las no suor, tornar as gargantas secas e os cortes na carne sacrificiais, acontecer de comidas comunais em bojo de tarros, marmitas e barrenhões com pães duros migados, a maior parte das vezes em água chilra, cinco à volta, à vez, com a colher cautelosa a ir e vir a intervalos a respeitar.

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Aqueles horizontes cor de oiro iam das Antas, Amieira dos Louros,

Casarões, Val de Travesso, Súnica, Poço Coberto, Venda Ruiva, Vale de Palhas, Granja, Monte Branco. O que era somente uma parte do que a terra oferecia de tantas sementes.

Pedia a malta ao Tio Laginha que se começasse a encimar o pão mesmo antes da Feira de Maio que era no 2º sábado e 2º domingo, para que houvesse um acabar e mudança das máquinas antes da mais luzida das feiras a de S. Tiago, de 25 a 27 de Julho. Ninguém podia faltar aquele encanto e divertimento, tudo o que as justas mãos produziam estava lá. Quinquilharia, calçado, panos, gangas, cotins e saragoças, capotes de papa e aguadeiros; para os endinheirados, peliças com pele de ovelha ou com o enlevo da pele de raposa. Almotolias luzidas que guardariam um pouco do brioso das oliveiras, cântaros de folha e de barro, sachos e enxadas. Armadilhas para os tordos e pardais e ratoeiras para a praga roedora. Se alguém queria deitar uns franguinhos, logo ali encontrava os amarelinhos de boa cara e piar e a fazer-se notar para a engorda.

Nos tabuleiros as melancias encavalitavam-se redondas, riscadinhas e sem estas vestes, algumas dadas à faca para comprovares do encarnado melado onde atestavam da doçura e madureza do fruto, as abelhas. Paredes-meias, as novidades do Ribatejo; melões de vários nasceres e castas: os “ Saturnino”, “ Doiradinho”, “Pêro”,” Bicha Gata”,” Manuel António”; todos a lançarem acenos de bom cheiro, imolando-se alguns em metades para justificar o seu orgulho de filhos da lezíria e o maduro e bondade das suas polpas.

Para os gaiatos pequenos mostravam as tendas muito para escolher. Pífaros de barro e de lata para treinar trinados nas pedrarias isoladas dos carrascais. Pássaros de madeira que debicavam no imaginário à medida que os fios que os prendiam se movimentavam no compasso das bolas na ponta a balançarem.

Ciclistas de pernas alongadas que à medida que se fazia rodar a roda em que assentavam produziam um som de campainha tão ou mais vivo do que o real. Trapezistas afamados, cintados entre dois fios, habilidades dependentes da destreza do manipulador. Gaitas-de-beiços de vários tamanhos, a marcar pelas vozes a extensão da melodia. Desafios ao pretenso tocador para umas saiadas ou chotiça batida que encantasse os serões de saias e balhos.

Da Feira do Gado, das cavalgaduras a trote de mostras, ali bem nas margens do Rossio, mais luzido não havia: burros, mulas, cavalos, tudo enfeitado nas garupas a tosquias e desenhos de traço cigano. Tudo só com cabrestão e arriata de corda para o ensaio.

Pelo varrido, garupas luzidias, aguardares de varinha grácil aos flancos para ver os empenhos e mostras da locomoção. As embustices de cigano forasteiro de além Terena em preparar alimária velha para desígnios de azougamento de nova. Metendo-lhe carrapetos debaixo da cauda, ali no lugar onde estrumavam, ocultando-se

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o que causava o frenesim no bicho fazendo-o brilhar de trote e relinchos desmedidos, confundindo a idade que os dentes mostravam. As notas a passarem de mão em mão e as alimárias já com outro bornal da favada, cabrestões novos e cascos engraxados lá iam a trilhos planície fora. No outro dia, a descoberta do embuste acontecia a mudares de cavalariça para o terreiro. Os trotes a incomodarem os quartos traseiros, a cauda num rodopio que fazia desconfiarem. Descobertos e tirados os acicates malévolos e espinhosos, ficava o bicho tão sereno e a pedir tanta paz que serventia para galopes só as da roda dos alcatruzes ou a moleza caminheira de qualquer ida ao moleiro com saca mal cheia... Do aldruga cigano, já a carteira das notas tinha destino em Talavera, e o sumiço era de anos sem frequentar a feira de S. Tiago.

Depois os advertimentos: carrossel, circo, uma mão cheia de barracas de Torrão de Alicante, rebuçadinhos de ovo, santinhas que se davam a badalares no pescoço como escapulário de Cura e que no fim da feira se podiam comer sabendo-se da sua carne adocicada.

Mas o melhor era a Corrida de Toiros. Diziam que vinha o Manuel e o Diamantino, e para a crava a cavalo o mestre Simão e a Conchita Citron. Os rapazes de Santarém para as barbeladas e para os fechos à corna. Para esta gadeza eram os Ribatejanos melhores do que os Alentejanos, pois logo de gaiatos iam com os maiorais a campo e dormiam nas barbas dos listãos.

Mal os cartazes anunciantes se colavam às paredes. Era a espera desde muitas madrugadas até à abertura do postigo dos bilhetes, pois estes, mesmo que fossem para cinco ou seis redondéis não chegavam.

Antes dos grandes trabalhos de Verão, deu-se então o tal facto, como nunca outro era dado saber e de que se falava por tudo o que eram praças de jornas e gente a consertar para as aceifas. Em montes, vendas, casas da malta e dormitórios de ganhões, tudo falava do Jaime e da coragem que tinha tido.

O Jaime, da manta branca, tinha respondido ao agrário Salcedo com décimas bem duras e a propósito.

Era o Jaime um poeta popular de grande gabarito, um poeta repentista como havia poucos. Nas poucas horas fora do trabalho, nas feiras, nas tarimbas da casa da malta tinha sempre a propósito um mote a lançar, ou a recebe-lo em desafio, desenvolvendo-o e ganhando ao oponente pela ligeireza e encadeado das rimas.

Um dia, lembra-se o grande agrário Salcedo, bem bebido e comido, em súcia com amigos e outras gentes de Lisboa. Após regalarem-se com umas terrinas de lebres, umas frituras de perdizes e vinho da melhor colheita. De mandar chamar o poeta para que o divertisse e aos amigos, já que quem lhe pagava era ele. Vem o Jaime já sem chapéu, poupando-se à humilhação de se descobrir à frente do latifundiário e companhia.

«Ó Jaime diz lá uns versos para a gente se rir!...»

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Vem a voz do alpendre cimeiro onde aquela súcia ainda dava nacos aos lebréus e se virava indolente observando a raridade do autóctone ali parado em frente. Um homenzinho do produto da ruralidade, talvez um bobo de ocasião sem grandes préstimos, mas que poderia divertir um bocado. Se fazia versos, possivelmente só dos campesinos eram entendidos, ou então apreciados por essa gente de cursos ousados e sem préstimos, etnógrafos sedentos de raridades provincianas.

Presente em frente daquela gente ociosa. O sangue a ferver-lhe com a intensidade da deflagração, a culatra da arma já nos aprontes do fogo do dizer, tudo a medrar no encadeado guardado das palavras a proferir e há muito pensadas. Diz o Jaime:

«Uns versos para rir!... Querem uns versos para rir!... »

«Vão então ouvir uns versos como nunca ouviram. Uns versos proferidos por todos os que sofrem e são oprimidos dia a dia, os que são explorados para alimentar a vossa ostentação e riqueza!»

E antes que o pasmo se desvanecesse, disse o Jaime: «Aqui vai o mote»:

«NÃO VEJO SENÃO CANALHADE BANQUETE PR’A BANQUETE

QUEM PRODUZ E QUEM TRABALHACOME AÇORDAS SEM AZÊTE.»

«Ainda o que mais me admiraE penso vezes a miúdo

Dizem que o Sol nasce p’ra tudoMas eu digo que é mentira.Se o pobrezinho conspiraO burguês com ele ralhaNem à porta o pode ver.

A não trabalhar e só comerNÃO VEJO SENÃO CANALHA.

Quem passa a vida arrastado,Por se ver alegre um dia,

Logo diz a burguesiaQue é muito mal governado,Que é um grande relaxado,

Que anda só no “ bote e dête”Antes que o pobrezinho respeiteTratam-no sempre ao desdém. E vê-se andar quem muito tem

DE BANQUETE P’RA BANQUETE.

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É um viver tão diferente!Só o rico tem valor

E o pobre trabalhadorVai morrendo lentamente.A fraqueza o põe doenteE a miséria o atrapalha

Leva no peito a medalhaQue ganhou à chuva e ao vento.

E morre à falta de alimentoQUEM PRODUZ E QUEM TRABALHA.

Feliz de quem é patrãoE pobre de quem é criado

Que até dão por mal empregadoO poucochinho que lhe dão.Quem semeia e colhe pão,

Não tem bem onde se deite,Só tem quem o assujeite

Para que toda a vida chore.E em paga do seu suor

COME AÇORDAS SEM AZÊTE.»

Na sua enorme estatura do dizer, o Jaime tinha-se transfigurado: tinha silenciado toda aquela gente. Os outros criados que por ali circulavam, não transparecendo no rosto o que tinham ouvido, sentiam uma alegria enorme nos seus corações. Era como se aquelas palavras fossem a ousadia que albergavam há tantos anos nos peitos. Como se as tivessem também proferido em uníssono com as ditas por ele.

No alpendre, não fora o vermelhão do largo vinho consumido, a lividez tinha irrompido declaradamente aos rostos dos poderosos. Ainda assim o espanto era geral. Quem dirá que aquele homenzinho só com as armas das palavras tinha tido ousadia para tanto?... O Salcedo rubro de cólera, era quem mais mascava a afronta.

” Fora outros tempos, não lhe custaria chumbar aquele animal!... Não o podendo fazer, da posição altaneira faria baixar os olhos ao desrespeitador.”

Mas Jaime olhava-o sereno, com a firmeza do aço segador; e, uma determinação de quem sabia ter a razão do mundo.

Salcedo pensou:“Recuar, nunca: a relação com aquela gente nunca mais seria igual.

Esteve para ir buscar o chicote e retalhar-lhe a boca para que nunca mais pudesse dizer coisas daquelas a quem mandava. Mas sentiu um medo estranho, os olhos daquele homem eram tições mais feros que fuzis. Um

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medo cobarde anunciou-se-lhe por dentro: aquele homem parecia determinado a tudo e sem temor de enfrentá-lo, mesmo de outras maneiras. Haveria outros métodos para o castigar para sempre pela sua ousadia; tirar-lhe o sustento em todas as léguas em redor onde crescesse um bocadinho de pão e onde um conserto de trabalho fosse ajustado. Iria matá-lo pela fome, que tivesse menos alimento do que os cães vadios!... E que a sua vida fosse um rojar no pó. Seria o exemplo para todos daquela laia saberem quem mandava!”

Estes poucos minutos hastearam uma bandeira de conquistas para todos os de sol a sol. As verdades que um homem diz um dia são as mesmas que milhões calam no interior dos seus peitos. Aqueles versos avivavam a razão de ser gente, de ter direitos, de poder ganhar o pão condignamente, arredar a fome das mesas, ter um amanhã para os que despontavam e ser livre nas suas opiniões.

Num disfarce de um desdém concertado encheram-se de novo as taças, sorriram para o anfitrião os que vieram de longe, com polido e cínico gozo minimizaram o acontecido.

«Sempre houve destas coisas: até na República Romana! A crucificação talvez fosse um castigo demasiado. Mas ai, se esta gente encontra um líder!... Uma organização que lhe abra os olhos!... Os esclareça e estimule, veja-se o que está a acontecer em Espanha: com a nefasta acção da Segunda República, a proliferação de ideias anarco-sindicalista, socialistas, e o fértil terreno para o movimento Comunista se alargar!» – Dizia isto, um senhor anafado, dedos nodosos de brilho áureo, botas de montar e chapéu à manzantina, tão postiço de vestes que tresandava a comicidade carnavalesca.

Confortavam o anfitrião, desvalorizando aquele mal que não tinha sido para eles mais do que uma rábula regional que até serviria para glosa em salões lisboetas. Regressaram todos ao interior não suportando a estatura do tal homenzinho que chamaram para os divertir.

O último a retirar-se foi o Jaime. Apertava ainda no bolso a navalha aberta, fincava-lhe os dedos como tenazes de tento, sentindo o irmanar cúmplice do que aquele aço polido ansiava fazer. O fio que cortava o magro pão, saltaria dali como foice a crestar de jugulares. Degola tão justa de que não se importaria, mesmo que valesse a prisão e o castigo de grilhetas e deportares para África.

Atravessou o vasto terreiro. A tarde ainda era uma jornada por cumprir. Olhou a pedra debaixo do carvalho velho, lugar onde no auge do estio olhava a Lua que lhe ditava versos. Entrou na Casa da Ganharia, retirou da cabeceira da tarimba a bolsa do seu nada. Olhou o tisnado da vasta lareira comunal, agora acalmada de fogo novo. Saiu. Deu um último olhar às velhas paredes de mil conversas recordadas e mil versos das coisas do mundo. Apresentando-se ao feitor a pedir contas.

Este acolheu-o com olhos que fugiam de o ver. O Sol que entrava por uma janela que iluminava o local, irmanava-se à sua frente como bandeira de luz. Aquele homem agora atemorizava aqueles que todos os

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dias se serviam da tirania; não tinha mais a pequenez de quem só conhecia a legenda de mandado e explorado.

Tinha-se tornado um gigante, uma torre formada por todos os gritos inconformados e moios segádos na vastidão dos campos. Enchia toda a vasta casa do celeiro de nova luz. Luz de um mundo que havia começado. Não mais o atemorizariam os latifundiários injustos e exploradores. Num tentear cobarde, o Malcaia abandonou o dinheiro sobre a velha mesa que media o mando da praça de jornas e as tenças dos suores.

Sozinho, Jaime encaminhou-se para a porta, os seus passos ecoavam no vasto casarão como vergastas de vozes vivas e mortas. À medida que a luz o acompanhava cerrava-se nas suas costas a claridade dos justos. Alastrando-se as trevas como guaridas de ímpios seres que ainda mantinham o império. No entanto, aquelas palavras não mais deixariam de brilhar e foram a jura de que nunca mais trabalharia para nenhum daqueles canalhas.

Finava-se o dia saiu o Malcaia e o sota, a mando do Salcedo, para dizer aos agrários das estremas de que não deviam dar trabalho a um tal Jaime, um rebelde que fazia versos perigosos contra os patrões e desrespeitadores da ordem instituída.

Chega a noite perfumada de rosmaninho e murta nova. O Jaime

deitou-se num berço de pão tendo a Lua por coberta. Sentiu o grito da terra que o acariciava como o sangue de mulher nova. O vento ciciava-lhe motes de liberdade e as estrelas pareciam-lhe brilhar como nunca. Fechou os olhos e pensou: «Ele há lá coisa melhor do que a raiz da palavra justa, da liberdade e do combate pela razão!...»

Vem a nova madrugada como a murmurada ondulação dos campos de pão e o canto das papoilas. O vento espalhou a nova e o feito do que o Jaime da Manta Branca tinha dito ao mais poderoso dos latifundiários e a mais graúdos presentes.

A nova voava por cerros, córregos, casas e planícies, plantando em todos os peitos um medrar de sementes da mudança, a justeza chegaria um dia, nasceria tão forte como a revolta de um poeta.

José A. Movilha

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