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CAPÍTULO 4: A EDUCAÇÃO E O DIREITO DAS CRIANÇAS AO DESENVOLVIMENTO 139 5 PROTECÇãO DA CRIANÇA CAPÍTULO

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CAPÍTULO 4: A EDUCAÇÃO E O DIREITO DAS CRIANÇAS AO DESENVOLVIMENTO

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PROTECÇãO dA CRIAnÇA

CAPÍTULO

141

5CAPÍTULO

PROTECÇÃODA CRIANÇA

1. IntroduçãoA Convenção sobre os Direitos da Criança, a Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar da Criança e outros instrumentos a nível internacional e regional apresentam uma ampla análise da necessidade de protecção da criança. Esses ordenamentos jurídicos reconhecem que as crianças são vulneráveis a violações dos seus direitos humanos básicos, e, consequentemente, concedem-lhes o direito fundamental a protecção jurídica e social, antes e após o nascimento. O dever de protecção das crianças recai tanto sobre entidades públicas como privadas, que têm a responsabilidade de proteger meninos e meninas de violência, abuso, exploração e negligência, incluindo separação desnecessária do seu ambiente familiar, e dos efeitos de situações de emergência. Através de sistemas e serviços legislativos, sociais e administrativos apropriados, entre os quais programas de protecção social, podem ser tratados os riscos de violação dos direitos das crianças conhecidos, o que poderá reduzir a vulnerabilidade das crianças e fortalecer a sua resistência.

Entre as várias formas de maus tratos e abuso que ameaçam as crianças encontram-se o abuso e a exploração sexual, o tráfico, trabalho perigoso, violência, viver ou trabalhar nas ruas, deficiência, SIDA, e práticas prejudiciais como o casamento prematuro, a falta de acesso a uma justiça amiga da criança, a separação e a

institucionalização desnecessárias, entre outros. Uma protecção efectiva da criança mitiga os riscos e vulnerabilidades que contribuem para estes abusos. Um ambiente protector para as crianças apoiado por um sólido sistema e infra-estruturas de protecção é uma abordagem baseada em direitos para impulsionar o progresso do desenvolvimento humano e económico, melhorando a saúde, a educação e o bem-estar das crianças bem como as capacidades que estão a desenvolver para serem pais, cidadãos e membros produtivos da sociedade. Pelo contrário, um sistema de protecção da criança difuso e fragmentado agrava a pobreza, a exclusão social e a susceptibilidade a infecção pelo HIV, aumentando também a probabilidade de sucessivas gerações virem a enfrentar riscos semelhantes.

Os principais ministérios de Moçambique responsáveis pela educação, fortalecimento e manutenção de um sistema de protecção da criança são o Ministério da Mulher e da Acção Social, o Ministério da Justiça, o Ministério do Interior e os tribunais judiciais. Todos os ramos do governo, a sociedade civil e as organizações internacionais, juntamente com os sistemas informais, como as famílias e as comunidades, têm a responsabilidade de cooperar, coordenar e colaborar para nutrir e sustentar os esforços de protecção dos direitos das crianças.

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

Embora se tenham registado importantes avanços na protecção dos direitos das crianças em Moçambique, muito ainda há a alcançar: aumentar o acesso das crianças a serviços sociais básicos de protecção e outros, harmonizar as ferramentas de monitoria para melhorar a recolha e análise de dados para o acompanhamento e planificação efectiva do bem-estar das crianças ao longo do tempo, e fortalecer as capacidades dos ministérios relevantes. O objectivo é o desenvolvimento de uma abordagem sistémica e robusta à protecção das crianças que torne os ministérios mais

responsáveis e melhore a coordenação entre eles nos diversos níveis administrativos para proteger eficazmente as crianças. É necessário que se concentrem também esforços na sensibilização a todos os níveis da sociedade, incluindo crianças, famílias e comunidades, para os direitos das crianças e a obrigação de todos os intervenientes de promover a protecção da criança. Este capítulo descreve a situação da protecção da criança em Moçambique, analisa os progressos realizados e apresenta uma análise das lacunas e problemas no ambiente de protecção da criança.

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2. Reforma legislativa e das políticas

O amplo pacote de legislação aprovado em 2008 demonstra o compromisso do Governo de Moçambique para com a protecção dos direitos da criança e o melhoramento da situação das crianças e mulheres vítimas de violência, abuso e exploração. Para além disso, foram criados quatro tribunais especializados para menores visando reduzir o atraso de decisões judiciais pendentes e melhorar as capacidades do sistema judicial para gerir eficazmente os casos de crianças em conflito com a lei e melhorar a protecção dos direitos da criança.

Também o Ministério do Interior, no âmbito dos serviços policiais para proteger os direitos das crianças e mulheres, tem vindo a criar e racionalizar procedimentos-padrão bem como a aplicar abordagens mais sistemáticas. Foi ainda criado pelo Ministério da Mulher e da Acção Social, em 2009, um grupo de trabalho multissectorial para prevenção da violência contra as crianças, na sequência do Estudo das Nações Unidas sobre a Violência e do III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, onde o Governo reconheceu a necessidade urgente de uma abordagem multissectorial de prevenção e resposta à violência contra crianças e da criação de um sistema de encaminhamento para assistência às vítimas.1

Os sistemas nacionais de protecção da criança eficazes começam por leis, políticas e regulamentos concebidos para defender os direitos da criança em todas as circunstâncias. A falta de um quadro de políticas adequado agrava a vulnerabilidade da criança e aumenta a probabilidade de lhe ser negada uma série de direitos que vão para além dos estritamente associados à protecção. A responsabilidade de respeitar, proteger e cumprir direitos é compartilhada por vários actores, mas é o Estado o primeiro garante de direitos seja nos termos do direito internacional seja nos termos da Constituição moçambicana. O Estado deve,

e tanto quanto possível, garantir que exista protecção na lei, criar e fortalecer instituições eficazes para fazer cumprir a lei e trabalhar com a sociedade civil e o sector privado na promoção de valores e práticas positivas para melhorar a eficácia da protecção legal.

Com a aprovação de três instrumentos - a Lei da Criança, a Lei da Justiça Juvenil e a Lei sobre a Violência Doméstica – promoveu-se um Sistema de Protecção da Criança nacional efectivo, cujo quadro tem vindo a ser desenvolvido. Outras medidas que vêm sendo adoptadas pelo governo são a criação do Conselho Nacional da Criança e da Comissão de Direitos Humanos e do Parlamento Infantil, bem como a sensibilização para as questões de direitos da criança nos media. Foram criados em cinco províncias tribunais de menores para fortalecer a protecção das crianças em conflito e em contacto com a lei.

Moçambique ratificou diversos importantes instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos sobre a protecção da criança, o que reflecte o compromisso do Governo para com a harmonização da legislação nacional com as normas internacionais. A Constituição de 2004 estabelece claramente que todas as acções relativas às crianças, empreendidas tanto por entidades públicas como por instituições privadas, devem considerar o melhor interesse da criança, em conformidade com a Convenção sobre os Direitos da Criança. A Constituição define os contornos do quadro jurídico e de políticas concernente às crianças, como abaixo descrito. Ver Caixa 5.1 para desenvolvimentos recentes e futuros no quadro jurídico de protecção das crianças.

As políticas e os programas de protecção social têm-se revelado eficazes na resposta às necessidades das famílias e crianças vulneráveis uma vez que a protecção social desempenha um papel fundamental na redução da pobreza, superação da exclusão

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social e constituição de capital humano para se atenuarem os riscos enfrentados por grupos vulneráveis, particularmente crianças e suas famílias. Várias formas de política de protecção social existiram em Moçambique desde 1975, variando ao longo dos anos o papel pretendido para o Estado, desde o de ambicioso provedor de todos os serviços (após a independência) até ao de fornecedor marginal de regimes de pensões extremamente limitados, ajuda de resposta a situações de emergência e subsídios alimentares para idosos (na sequência de programas de ajustamento estrutural). Nos últimos anos, no entanto, tem-se dado uma atenção mais centrada no reforço da protecção social em todo o país, começando a reconhecer-se a importância da protecção das crianças vulneráveis no diálogo sobre políticas nacionais. Além disso, os sectores de Saúde e Educação têm programas específicos para crianças com necessidades específicas (serviços de saúde gratuitos para crianças menores de cinco anos e crianças padecendo de desnutrição, e apoio em material educativo para crianças vulneráveis).

A Lei sobre a Protecção Social, aprovada em 2007, exige que se ofereça segurança social básica a pessoas e crianças pobres em situações difíceis. Nela se define protecção social como “um conjunto de medidas que visam mitigar, em sintonia com as condições económicas do país, a pobreza absoluta da população, garantindo a subsistência dos trabalhadores em situações de privação ou diminuição de capacidade para o trabalho, bem como a sobrevivência de outros membros da família caso o dito trabalhador tenha falecido, e garantir condições para a sua sobrevivência.”2A lei reparte ainda a protecção social por três pilares: protecção social obrigatória (seguro social sob tutela dos Ministérios do Trabalho e das Finanças para os que se encontram no mercado de trabalho formal); protecção social complementar (iniciativas adicionais através dos sectores privado e de voluntariado) e protecção social básica, o que tem maior potencial para chegar às crianças vulneráveis. A protecção social básica abrange os cidadãos

que estão impossibilitados de trabalhar ou que não têm meios para satisfazer as suas necessidades básicas, a saber:

Pessoas em situação de pobreza absoluta;

Crianças em difíceis circunstâncias;

Idosos em situação de pobreza;

Pessoas portadoras de deficiência em situação de pobreza absoluta;

Pessoas com doenças crónicas ou doenças degenerativas.

As Normas da Estratégia se Segurança Social Básica aprovadas em 2009, subdividem a segurança social básica em acção social directa, acção social relacionada com a saúde, acção social relacionada com a educação e rede de segurança produtiva. A Estratégia de Segurança Social Básica multissectorial, que foi aprovada pelo Conselho de Ministros em 2010, identifica quatro programas constituintes do pacote de segurança social básico: dois programas de transferência de dinheiro (o actual Programa Subsídio de Alimentos [PSA] e um novo programa de subsídios para a criança destinado a famílias com crianças órfãs e vulneráveis a seu cargo); o actual Programa de Apoio Social Directo (PASD) e um novo programa da rede de segurança produtiva. Planeia-se expandir o PSA para que dê maior enfoque a crianças órfãs e vulneráveis como beneficiários indirectos. A operacionalização do programa de subsídios para crianças proposto depende das conclusões da avaliação contínua do impacto do PSA e de outros estudos de viabilidade. O alcance actualmente limitado do PASD inclui ainda uma percentagem relativamente elevada de crianças beneficiárias. Prevê-se a instauração de um mecanismo para garantir que as famílias vulneráveis tenham acesso a um conjunto de serviços básicos e protecção, possivelmente partindo da experiência do atestado de pobreza actual. Deverá ser finalizado até ao final de 2010 um plano operacional para complementar a estratégia, o qual constituirá um importante instrumento para procurar influenciar no sentido de maiores fundos do governo para implementar esses programas.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

Caixa 5.1: legislação e políticas de protecção social recentemente aprovadas

2010A Estratégia de Protecção Social Básica inclui, como parte integrante, subsídios para crianças.

2009

A Lei da Violência Doméstica tem por objectivo aumentar a protecção das mulheres e das crianças contra o abuso e a exploração sexual em casa e nas comunidades. Criminaliza pela primeira vez a violência doméstica em Moçambique, requer penalizações acrescidas para os infractores e atribui ao Estado a obrigação de assistir as vítimas oferecendo serviços como investigação policial e tratamento médico.

2008

A Lei da Criança e a Lei da Justiça Juvenil, ambas aprovadas em 2008, traduzem a Convenção sobre os Direitos da Criança na legislação nacional de direitos da criança, um passo importante para a criação de um quadro jurídico e político concernente à criança.

A Lei sobre o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças define o tráfico de pessoas em consonância com os instrumentos jurídicos internacionais (nomeadamente o Protocolo de Palermo, ratificado em 2006) e criminaliza o tráfico, sobretudo de crianças e mulheres. Tem de ser elaborado e aprovado o regulamento desta lei.

A Lei do Trabalho proíbe explicitamente as piores formas de trabalho infantil para crianças menores de 18 anos. Estabelece que as crianças entre os 15 e os 18 anos só podem trabalhar um máximo de 38 horas por semana ou 7 horas por dia. Em reconhecimento da realidade económica do país, permite que as crianças de 12 a 15 anos trabalhem, desde que o façam com a permissão de um dos seus progenitores ou outro responsável legal.

A Lei de Protecção Social exige a provisão de segurança social básica a pessoas pobres e crianças em situações difíceis. A lei define protecção social como “um conjunto de medidas que visam mitigar ... a pobreza absoluta da população, garantindo a subsistência dos trabalhadores em situações de privação ou capacidade para o trabalho diminuída, bem como a de familiares sobrevivos em caso de morte do referido trabalhador, e garantir condições para a sua sobrevivência.”

2006

O Plano Nacional para Crianças Órfãs e Vulneráveis identifica seis serviços essenciais para atender às principais necessidades das crianças: saúde, educação, apoio nutricional e alimentar, apoio financeiro, apoio jurídico e apoio psicológico. O Governo de Moçambique comprometeu-se a garantir que as crianças tenham acesso a pelo menos três desses seis serviços, com particular incidência sobre as crianças que vivem abaixo da linha de pobreza absoluta, incluindo órfãos e crianças a viver com e afectadas pela SIDA. A implementação do plano é coordenada pelo Ministério da Mulher e Acção Social com o apoio de um grupo de trabalho técnico multissectorial e do Grupo de Trabalho Técnico para Crianças Órfãs e Vulneráveis.

2005

O Plano Nacional de Acção para a Criança 2006-2010 visa proteger os direitos civis e humanos e a segurança de todas as crianças desenvolvendo e coordenando actividades das principais partes interessadas.

A Lei da Família articula novas normas jurídicas para responsabilidades parentais, guarda, adopção e herança, e eleva a idade de casamento de 16 para 18 anos tanto para rapazes como para raparigas.

2004O Código do Registo Civil alarga o período de registo de nascimento gratuito de 30 para 120 dias a contar do nascimento da criança.

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3. Violência, abuso e exploração

A violência contra as crianças é uma grave violação dos direitos humanos com devastadoras consequências para a saúde física e mental a curto e longo prazo. Crianças vítimas de violência incluem crianças que foram abusadas sexualmente ou submetidas a violência como punição; crianças forçadas a trabalhar em condições deploráveis ou traficadas em condições de trabalho exploratórias, ou crianças forçadas a casamento prematuro. Tal violência ultrapassa fronteiras geográficas, atravessando culturas, classes, raças e religiões. Pode ser expressa como agressão ou abuso físico ou sexual, maus tratos psicológicos ou emocionais, privação ou negligência. O risco de violência é agravado pela pobreza, que muitas vezes anda de mãos dadas com a falta de protecção adequada por parte dos cuidadores e limitado acesso a serviços essenciais. Estatísticas do Ministério do Interior revelam terem sido reportados à polícia mais de 3.500 casos de violência infantil em 2009.3 É possível que o número de crianças vítimas de violência, abuso e exploração supere em muito o número de casos notificados.

O Estudo das Nações Unidas sobre a Violência constata que a violência contra as crianças é importante em termos de escala, alcance e subnotificação, três aspectos agravados pela aceitação social do fenómeno.4 Algumas formas de violência estão enraizadas em dinâmicas de género discriminatórias e desiguais e práticas nocivas, e Moçambique não constitui excepção. Estudos e dados disponíveis constituem uma base para se afirmar que é excepcionalmente forte em Moçambique a cultura patriarcal existente e ordem social dominada pelo sexo masculino.5 O baixo nível de conhecimento que as vítimas possuem dos seus direitos e uma cultura de silêncio e aceitação da violência são os principais obstáculos ao lidar-se com esta questão.

São limitados os dados quantitativos recentes, mas pesquisas anteriores relataram uma alta incidência de exploração e abuso sexual de crianças e mulheres no lar, no trabalho e na escola. O abuso sexual de crianças e mulheres continua a ser uma grande preocupação em Moçambique. Em 2001, o Inquérito Nacional de saúde sexual e reprodutiva e comportamento sexual dos jovens indicou que 30 por cento das mulheres e 37 por cento dos homens, quando crianças ou adolescentes, tinham testemunhado directamente violência entre os seus pais, e que 15 por cento das mulheres e 20 por cento dos homens sofreram abuso físico de um parente na sua juventude.6 Um estudo realizado pelo Ministério da Mulher e da Acção Social em 2004 indicou que mais de 54 por cento das mulheres pesquisadas relataram ter sido espancadas, e 23 por cento dos inquiridos reportaram ter sido submetidos a alguma forma de abuso sexual.7 A maioria dos infractores é conhecida das vítimas e, muitas vezes, familiares próximos e amigos.

As leis para proteger crianças e adolescentes contra o abuso sexual deixam considerável margem de manobra para o sistema judiciário interpretar se uma criança foi vítima de abuso sexual. Por exemplo, apenas com crianças menores de 12 são proibidas relações sexuais em qualquer circunstância (inclusive se se tiver estabelecido consenso) e as penas criminais podem ser em qualquer lugar, de dois a oito anos. No que respeita a crianças com mais de doze anos, é conferida ao juiz autoridade para determinar se ocorreu abuso sexual, mesmo no caso de adolescentes vítimas de abuso cometido por adultos.

3.1. Violência e abuso sexual nas escolas

O abuso sexual nas escolas constitui uma área de particular preocupação, como observou o Comité dos Direitos da Criança.8 Um inquérito do Ministério da Educação (MINED) de 2008 revelou que 70 por cento

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

das meninas inquiridas relataram que alguns professores usam a relação sexual como condição para passar de classe, tendo 50 por cento afirmado que não são unicamente os professores que delas abusam sexualmente, mas também rapazes do seu grupo de colegas. Além disso, 80 por cento das raparigas reconheceram que o abuso e o assédio sexuais ocorrem não só nas escolas mas também nas comunidades. Muitas meninas não sabiam se esses actos eram proibidos por lei nem onde reportá-los quando ocorrem.9

A resposta institucional aos abusos sexuais nas escolas é limitada. O estudo também analisou o nível de consciencialização dos funcionários do MINED sobre o assunto. 70 por cento dos funcionários provinciais de unidades provinciais de género e 65 por cento dos coordenadores distritais de género reconheceram que o abuso sexual contra meninas e a gravidez precoce eram as principais preocupações e importantes obstáculos à provisão de um ambiente de aprendizagem seguro para a rapariga. Os membros dos Conselhos da Escola mostraram também preocupação com o abuso e assédio sexual nas escolas e tentaram medidas disciplinares estritas contra os professores que abusam de meninas na escola.

O MINED tem uma política de ‘tolerância zero’ para o abuso sexual nas escolas, mas a continua fraca a sua aplicação. Em 2003, o MINED emitiu um decreto (Despacho 39/GM/2003) proibindo os professores de terem relações sexuais com estudantes do sexo feminino e declarou ‘tolerância zero’ ao abuso sexual nas escolas. A Lei da Criança moçambicana de 2008 reafirma a obrigação da direcção da escola de comunicar às autoridades competentes os casos de maus tratos a alunos. No entanto, tanto o acompanhamento de actos de violência nas escolas como a implementação do decreto permanecem fracos. A revisão da estratégia de género e do decreto 39/GM/2003 para enfatizar a notificação de violência e abuso sexual faz parte do plano de trabalho do MINED para 2010. A

integração de questões de abuso sexual nas directrizes de planificação de 2010 é um avanço significativo que está a conduzir ao desenvolvimento de acções definidas para reforçar a capacidade dos pontos focais de género provinciais em matéria de monitoria e notificação de casos de abuso sexual nas escolas.

Continuam a ser permitidos os castigos corporais em casa e na escola, sendo muitas vezes considerados a única forma de disciplinar as crianças. O Comité dos Direitos da Criança expressou preocupação pelo facto de “a Lei de Protecção dos Direitos da Criança (de Moçambique) não proibir explicitamente os castigos corporais em casa e nas escolas... que, apesar de os regulamentos internos do MINED, que proíbe os castigos corporais, continuam a ser infligidos às crianças por pais e professores.”

O Estudo das Nações Unidas sobre Violência contra Crianças considera essencial haver sensibilização para influenciar as normas sociais, não só para as comunidades, incluindo as escolas, mas também para os profissionais em contacto com crianças. Uma adequada atenção dos media também consciencializa, promove discussão aberta e encoraja as comunidades a reagirem em casos de abuso e exploração. Tornar os serviços de apoio e reabilitação disponíveis é outro aspecto fundamental. Essas respostas tornam-se significativamente mais eficazes pela existência de um mecanismo de coordenação eficaz. Em 2009, o Ministério da Mulher e da Acção Social criou um grupo de trabalho multissectorial para questões de prevenção da violência contra crianças na sequência do Estudo das Nações Unidas para a Violência e do III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Embora o processo de reforma legal tenha progredido, a tradução da nova legislação em regulamentação e programas eficazes continua a constituir, em virtude da falta de fundos, um desafio.

O Plano de Acção para Prevenção da Violência Contra as Crianças está agora em fase de conclusão. O plano delineia

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40%

35%

30%

25%

20%

15%

10%

5%

0%Quando elasai de casa

sem informar

Quando énegligente

com as crianças

Quandodiscutecom ele

Quandorecusa fazer

sexo com ele

Quandodeixa a comida

queimar-se

Por qualquerdestas razões

19% 19%

13%

36%

18%21%

Figura 5.1: Percentagem de mulheres de 15-49 anos que acham que um marido pode bater na sua esposa, por motivo específico, 2008

actividades relativas à protecção das crianças contra violência, negligência e exploração sexual estejam a ter lugar.10 A promulgação da Lei sobre a Violência Doméstica de 2009 pode impulsionar o fortalecimento de mecanismos para proteger as mulheres e as crianças de abuso sexual. Parceiros da sociedade civil prestaram acções de sensibilização a nível da comunidade, entre as quais uma campanha da Action Aid contra o abuso sexual de raparigas na escola.

3.2. A violência doméstica Cinquenta e quatro por cento das mulheres que participaram num estudo do Ministério da Mulher e da Acção Social de 2004 informaram ter sido espancadas. A aceitação cultural da violência é um importante factor que muito contribui para a violência doméstica.11 O perpetrador foi mais frequentemente o marido ou um parente

próximo ou um conhecido. Dez por cento das respondentes relataram ter sido vítimas de algum tipo de abuso sexual. Nas áreas rurais foram reportados mais elevados níveis de violência contra as mulheres do que nas áreas urbanas.I

A percentagem de mulheres que consideram que os homens têm o direito de lhes bater em certas circunstâncias desceu de 54 por cento em 2003 para 36 por cento em 2008.II,III Embora a redução seja positiva, continua muito elevada a aceitação da violência contra as mulheres. A razão mais comummente citada no Inquérito de Indicadores Múltiplos (MICS) de 2008 para bater na esposa é o marido aperceber-se de que a esposa está a ser negligente com as crianças. Este motivo foi citado por 21 por cento dos inquiridos (ver Figura 5.1).

Há disparidades regionais nas atitudes de violência doméstica. A educação dos

Fonte: MICS 2008.

I O estudo, realizado em 2004 para o Ministério pela Universidade Eduardo Mondlane, Centro de Estudos da População, incluiu 2052 mulheres com idades compreendidas entre os 18 e os 45 anos na Cidade de Maputo, Província de Maputo, Sofala, Manica, Zambézia e Nampula (Universidade Eduardo Mondlane, 2004).

II Este valor é significativamente mais baixo que a média dos países da África Austral, onde 65 por cento das raparigas e mulheres com 15-49 anos pensam que se justifica um marido espancar ou bater na mulher em determinadas circunstâncias. Fonte : UNICEF, Progress for Children – A Report Card on Child Protecction, Número 8, UNICEF, Nova Iorque, Setembro de 2009.

III O Indicador do IDS é a percentagem de mulheres com 15 e 49 anos que afirma justificar-se que um marido bata na mulher por uma das seguintes razões: roubar comida, discutir com o marido, sair de casa sem informar o marido, recusar sexo com o marido, e não cuidar das crianças.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

Figura 5.2: Percentagem de mulheres (15-49 anos) que acreditam que bater na esposa se justifica em determinadas circunstâncias, 2008

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

69%

48%42%

35%

26% 27%

35%

26%

51%

20%

10%

Niassa CaboDelgado

Nam-pula

Zam-bézia

Tete Manica Sofala Inham-bane

Gaza MaputoProvíncia

MaputoCidade

Fonte: MICS 2008.

Figura 5.3: Probabilidade de aceitação da violência doméstica pelas mulheres, 2008

Fonte: Cálculos do UNICEF baseados no MICS 2008

-1 0 1 32

Classificação da riqueza

marido lhe bata 15-49

pro

bab

ilida

de d

e a

mul

her a

ceita

r

que

o m

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o lh

e b

ata

0.1

.2.3

.4

Probabilidade de a mulher aceitar que o

Primário Secundário Superior

homens e das mulheres é o factor-chave na redução da violência contra crianças e mulheres. A percentagem de mulheres que acreditam que bater na esposa se justifica em certas circunstâncias varia de 10 por cento na Cidade de Maputo para perto de 70 por cento em Niassa (ver Figura 5.2).12 O MICS 2008 também assinala que 24 por cento das mulheres que frequentavam o ensino secundário e superior aceitam a violência, em comparação com 38 por cento das mulheres que nunca frequentaram a escola. O estudo do Ministério da Mulher e

da Acção Social de 2004 concluiu que essas diferenças estão fortemente relacionadas com as normas e práticas socioculturais, bem como com a falta de educação e conhecimento dos direitos das mulheres e crianças na sociedade.13

Foi realizada uma análise de regressão probabilística multivariada para examinar os factores correlacionados com a aceitação de violência doméstica pelas mulheres (ver Figura 5.3). A variável dependente é se uma mulher (15-49 anos) aceita ser

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espancada pelo marido. A análise revelou que as mulheres com ensino secundário ou superior são muito menos propensas a considerar aceitável bater na mulher do que mulheres sem qualquer instrução. Ter o ensino primário, no entanto, não parece influenciar as atitudes das mulheres. A riqueza é estatisticamente relacionada com a protecção das mulheres apenas em níveis muito elevados (ver Figura 5.3), que muito poucos agregados familiares alcançam. Dados os enormes desafios na promoção da riqueza da mulher a este nível, promover o acesso à educação pode ser a resposta política mais viável para corresponder à atitude das mulheres para com a violência doméstica.

O modelo não apresenta diferenças estatisticamente fiáveis nas atitudes para com a violência doméstica de mulheres em relações poligâmicas versus monogâmicas. O mesmo acontece com a idade das mulheres, ou a diferença de idades entre marido e mulher. Em termos de geografia, todas as mulheres que vivem em províncias que não Maputo (especialmente no norte) têm uma maior probabilidade de aceitar a violência, não parecendo haver diferença de atitudes entre as mulheres rurais e urbanas.

Quebrar a cultura do silêncio sobre o abuso de crianças e mulheres exige um diálogo aberto, uma maior sensibilização e sistemas externos de protecção para intervir quando se identificam casos de abuso. Não é fácil fazê-lo onde a violência baseada no género e o abuso sexual, especialmente de crianças, são admitidos por algumas comunidades e indivíduos. Apesar dos progressos realizados no reforço do Governo e no desenvolvimento de um quadro jurídico e político para proteger as crianças contra a violência, o abuso e exploração, a limitada capacidade do Governo para fazer cumprir essas leis e o pouco conhecimento dos membros da comunidade sobre as questões permite que essas práticas continuem inabaláveis. Além disso, é frequente prevalecer o direito consuetudinário em muitas áreas rurais do país, particularmente no que respeita a casamento e herança.

Enfrentar as convenções e normas sociais que contribuem para a violência, a exploração e o abuso é o primeiro passo para travar tais práticas em Moçambique.

3.3. Exploração e abuso sexual comercial

Embora os dados sejam extremamente limitados, há evidências de que ocorre em Moçambique exploração e abuso sexual de crianças. As crianças são muitas vezes forçadas a participar em actos sexuais comerciais para obter ajuda de adultos para fazer face às suas despesas ou como estratégia para enfrentar pobreza extrema. As vítimas de exploração sexual comercial são geralmente pobres e sofreram anteriormente algum grau de violência ou abuso. Embora a exploração sexual comercial se verifique com rapazes e raparigas, estas são consideradas mais comummente vítimas. Um estudo também mostra que a pressão de pares é um factor importante na introdução de meninas na indústria de exploração sexual comercial infantil.14 Esse mesmo estudo constatou que as meninas que são vítimas de exploração sexual correm um risco acrescido por praticarem sexo sem preservativo para maiores benefícios económicos. Muitas crianças que são exploradas em sexo comercial servem-se da droga para lidar com a situação, o que também afecta o uso do preservativo.15 Os perpetradores de exploração comercial de crianças provêm de todas as esferas da vida: membros da comunidade local, turistas nacionais e estrangeiros em resorts de Moçambique e motoristas de transportes em centros populacionais por onde passam as principais estradas.

3.4. Tráfico de crianças e migração

Num relatório publicado em 2002/03 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), foi estimado que aproximadamente mil crianças e mulheres são traficadas anualmente para a África

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

do Sul para exploração da sua força de trabalho e exploração sexual comercial.16 O tráfico de crianças não só as retira do ambiente protector da família, como também aumenta a sua vulnerabilidade à violência, exploração e abuso.iv Indica o relatório que o tráfico de pessoas está ainda relacionado com a extracção de órgãos humanos para fins rituais, embora esta questão ainda seja contestada por organismos governamentais.17

Num estudo publicado pela Save the Children em 2009, as respostas das crianças parecem indicar que o tráfico e a exploração internos em Moçambique geralmente ocorrem por ‘trapaça’, fraude ou engano, em grande parte cometido por familiares das crianças e pares.18 O tráfico de crianças ocorre geralmente num contexto regional mais amplo, só podendo ser combatido de forma eficaz fortalecendo-se os mecanismos regionais e transfronteiriços para uma resposta multifacetada e coordenada adaptada às diferenças regionais e nacionais. Por exemplo, a Cooperação Regional dos Chefes de Polícia da África Austral tem trabalhado com a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em medidas comunitárias de combate ao tráfico, entre as quais formação da polícia regional.

A migração infantil voluntária é muitas vezes decorrente da pobreza ou do facto de a criança ser órfã ou ter sido abandonada. Em Moçambique as crianças deslocam-se das aldeias para as cidades ou, por vezes, atravessam a fronteira ilegalmente e desacompanhadas para países vizinhos, principalmente para a África do Sul, numa tentativa de melhorar a sua vida ou a vida de suas famílias. Esses padrões de migração tornam os meninos e meninas vulneráveis ao abuso e à exploração tanto

durante as viagens como no seu lugar de destino. Um relatório da Save the Children de 200819 compila as experiências das crianças migrantes na sub-região, e indica que as meninas, em particular, viajam de Moçambique para a África do Sul em busca de trabalho, mas acabam por ser vítimas de abuso sexual e exploradas. As que não conseguem arranjar emprego e não conseguem ou não querem regressar a Moçambique, recorrem, por vezes, à falta de alternativas, a trabalho sexual.

3.5. Trabalho infantil O trabalho infantil é outra grave forma de abuso e exploração em Moçambique. Os dados revelam que 22 por cento das crianças de 5-14 anos estão envolvidas em trabalho infantil, registando-se uma grande disparidade entre as zonas urbanas e as rurais (15 por cento e 25 por cento, respectivamente).20 v A proporção de crianças envolvidas em trabalho infantil também varia de acordo com a idade da criança: uma em cada cinco de 5 a 11 anos de idade está envolvida em trabalho infantil, chegando a uma em cada quatro as crianças com 12 a 14 anos. São visíveis as disparidades entre as províncias; quase 40 por cento das crianças em Inhambane estão envolvidas em trabalho infantil, em comparação com menos de 10 por cento das crianças em Niassa.

A prevalência de trabalho infantil está relacionada com o nível de escolaridade da mãe. Vinte e quatro por cento das crianças cujas mães não têm nenhuma escolaridade estão envolvidas em trabalho infantil, em comparação com 10 por cento das crianças cujas mães têm, pelo menos, ensino secundário. A prevalência de trabalho infantil é ligeiramente maior nas meninas (24 por cento) que nos

iv Tráfico designa o transporte ilegal de seres humanos, em particular mulheres e crianças, para os vender ou para explorar a sua força de trabalho.

v Uma criança é considerada envolvida em trabalho infantil se durante a semana que antecedeu a pesquisa tiver estado envolvida em: (i) pelo menos uma hora de trabalho económico ou 28 horas de trabalho doméstico por semana, se a criança tiver 5 a 11 anos de idade, (ii) pelo menos 14 horas de trabalho económico ou 28 horas de trabalho doméstico por semana, se a criança tiver 12 a 14 anos de idade.

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

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Nunca frequentou a escola Primário Secundário+

rapazes (21 por cento). Além disso, as meninas trabalham mais que os rapazes apoiando as tarefas domésticas (8 por cento contra 5 por cento, respectivamente). A percentagem de crianças que trabalham para apoiar negócios familiares é a mesma para ambos os sexos (16 por cento). Não há grande correlação entre riqueza e trabalho infantil. A prevalência de trabalho infantil é relativamente estável para os quatro quintis inferiores, só reduzindo nas famílias em melhor situação. Um estudo de 2009 indica que as crianças trabalhadoras

são acrescidamente exploradas por más condições de trabalho, incluindo abuso verbal e sexual, e ainda salários pagos com atraso ou não pagos na totalidade.21

O MICS de 2008 revela que 86 por cento das crianças que trabalham em áreas urbanas também frequentam a escola, em comparação com 76 por cento nas zonas rurais. Quase 30 por cento dos estudantes das zonas rurais estão envolvidos em algum tipo de trabalho infantil, antes ou depois das aulas.

Figura 5.4: Percentagem de crianças de 5-14 anos que estão envolvidas em trabalho infantil, por província e sexo, 2008

Fonte: MICS 2008.

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Total

Figura 5.5: Prevalência de trabalho infantil por nível de escolaridade da mãe, 2008

Fonte: MICS 2008.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

Figura 5.6: Trabalho infantil e frequência escolar, por área geográfica, 2008

Fonte: MICS 2008.

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Percentagem de crianças em trabalho infantil Percentagem de crianças trabalhadorasque estão a frequentar a escola

Urbana Rural

Em Moçambique, o Ministério do Trabalho é responsável por orientar e coordenar as acções relacionadas com o trabalho infantil. As respostas nacionais ao trabalho infantil incidem sobre quatro áreas: desenvolvimento de uma legislação nacional que reflicta os padrões internacionais que Moçambique ratificou; desenvolvimento de mecanismos eficazes para fazer cumprir a legislação existente e complementar, incluindo a legislação sobre o ensino obrigatório; melhoramento da capacidade das instituições governamentais e outros actores para identificar e agir sobre a questão do trabalho infantil; e, finalmente, sensibilização do público em geral para a questão. A eficácia das iniciativas será reforçada por um maior compromisso para com a recolha de dados sobre a natureza (incluindo a dimensão do género) e as dinâmicas do trabalho infantil em Moçambique.

A Lei da Criança de 2008 proíbe o trabalho infantil e qualquer forma de trabalho a menores de 15 anos, prevendo medidas punitivas a serem tomadas contra o empregador. A Lei da Criança define

também formas de trabalho proibidas, incluindo a exploração sexual comercial e trabalho que possa ser prejudicial à saúde e bem-estar da criança. Contudo, uma aplicação eficaz exige a divulgação da lei a todos os interessados, bem como um considerável reforço da capacidade de todas as autoridades encarregadas da aplicação das suas disposições. Finalmente, as pressões económicas e sociais que obrigam os pais a impelir os seus filhos para trabalho infantil exploratório devem ser tratadas por via de uma protecção social mais eficaz.

Reduzir a carga de trabalho sobre as crianças depende da garantia de que as crianças e suas famílias, especialmente as mais pobres e mais vulneráveis, beneficiem de programas de redução da pobreza. Enquanto o trabalho infantil continuar a ser uma necessidade económica de determinadas famílias, o Governo deverá concentrar a sua acção no garantir que qualquer actividade económica empreendida seja adequada à idade e capacidade da criança e que em nada comprometa a sua sobrevivência, saúde, educação, desenvolvimento ou bem-estar geral.

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

3.6. Casamento infantil Em Moçambique, é ilegal o casamento antes dos 16 anos. Pela Lei de Família de 2004, o Governo de Moçambique elevou a idade legal de casamento não carecendo de consentimento dos pais dos 16 para os 18 anos. A idade mínima em que o casamento pode ocorrer com o consentimento dos pais foi elevada de 14 para 16. No entanto, é limitada a capacidade de aplicar a lei, e os casamentos tradicionais ao abrigo do direito consuetudinário continuam a constituir um desafio ao estabelecimento dos 18 anos como idade mínima de casamento. Em muitas comunidades, as meninas são consideradas prontas para casar ao atingir a puberdade.22

Dados recentes revelam que 18 por cento das raparigas entre os 20 e os 24 anos se casaram antes de fazerem 15 anos, e 52 antes dos 18 anos.23 A percentagem de meninas que se envolve em casamento infantil decaiu ligeiramente desde 2003. Há diferenças significativas nas taxas de casamento infantil entre as regiões sul, centro e norte de Moçambique: as províncias do sul, designadamente Gaza, Inhambane, Maputo e Cidade de Maputo, têm uma taxa de casamento infantil inferior a 10 por cento; as províncias do centro têm uma taxa média

de 20 por cento, enquanto Niassa e Cabo Delgado, no norte, têm índices de 24 e 30 por cento, respectivamente.

O casamento infantil não só é uma grave violação dos direitos da criança em si, mas também compromete seriamente a materialização de uma série de outros direitos. Por exemplo, o casamento na adolescência pode ter graves implicações para a saúde das meninas. A gravidez e o parto na adolescência estão associados a problemas de saúde e fracos resultados nutricionais para a mãe e seus filhos. Isto acontece particularmente com raparigas que são mães pela primeira vez muito jovens.24 Adolescentes casadas muitas vezes recebem menos informações sobre saúde reprodutiva que seus pares não casados.25 As meninas casadas têm muito menor probabilidade que seus pares casados de frequentar a escola, e são muitas vezes retiradas da escola para se casarem ou por estarem grávidas, o que às vezes pode estar relacionado com abuso sexual.26

O casamento infantil é influenciado pelas relações de género tradicionais e pelos valores que a sociedade atribui às mulheres e meninas. O casamento pode reflectir o valor atribuído à virgindade de uma menina e ser visto pelos pais como um meio para evitar

Figura 5.7: Mulheres de 20-24 anos que se casaram antes dos 15 e dos 18 anos, 2003 e 2008

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Urbana Rural Total

Percentagem de casadas antes dos 15 anos Percentagem de casadas antes dos 18 anos

Fonte: IDS 2003 e MICS 2008.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

as relações sexuais antes do casamento e da gravidez. Nas comunidades, muitas meninas vítimas não denunciam às autoridades os casos de abuso sexual, em parte devido ao estigma e mitos em torno da questão do abuso sexual. Mesmo quando a polícia ou outras autoridades querem avançar com os casos de abuso sexual, é frequente os pais interromperem o processo por considerarem-no um problema a ser resolvido no seio da família ou entre as famílias. A falta de um instrumento legal rígido para punir casos de abuso sexual agrava o problema.

Em muitos casos, o casamento infantil, tanto de rapazes como de meninas, tem uma motivação económica. O casamento infantil é uma estratégia de sobrevivência para aliviar a família do que consideram ser, face à pobreza extrema, um encargo financeiro. Embora a situação económica seja uma causa do casamento infantil, não é a única motivação. A prevalência

de casamento infantil está também ligada a práticas culturais de grupos étnicos específicos.27 Apesar de serem realizadas nas escolas campanhas de sensibilização sobre saúde sexual e gravidez, o uso do preservativo ainda é baixo em crianças. O casamento é, por vezes, organizado numa idade precoce, com as meninas começando a viver com o marido na puberdade. Um mapeamento efectivo do casamento infantil em Moçambique por grupo étnico apoiaria os esforços do programa e aumentaria a eficácia das campanhas de prevenção.

São também comuns em Moçambique relações poligâmicas, encontrando-se quase um quarto das mulheres de 15-49 anos num relacionamento poligâmico.28 Embora a poligamia não seja legal em Moçambique, é muito frequente nas províncias do centro, em particular, encontrando-se um terço das mulheres de Manica, Tete e Sofala, em uniões desse tipo.

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

4. As crianças e o sector da justiça

Foi reconhecida, tanto pelo Governo como pela sociedade civil em Moçambique, a necessidade de se melhorar o sector da justiça como uma prioridade fundamental para melhorar os sistemas de protecção infantil. Isto inclui a protecção de crianças que entram em contacto com o sistema de justiça como vítimas, testemunhas ou infractoras visando pôr fim à impunidade de crimes contra as crianças. Importantes progressos foram feitos, incluindo a criação de uma secção para menores no tribunal em três províncias e a criação de mais de 200 centros policiais de apoio à vítima (Gabinetes de Atendimento da Mulher e da Criança) em todas as províncias. A criação destas novas estruturas de apoio tem ajudado a garantir que os direitos da criança sejam protegidos e que esta receba um tratamento amigo da criança e sensível, em conformidade com normas e padrões internacionais, quando entra em contacto com o sistema de justiça.

Os sistemas de justiça ainda não são eficazes para a maioria das crianças. Observações finais do Comité dos Direitos da Criança referiram, no segundo relatório periódico de Moçambique, por exemplo, que os perpetradores de violência e abuso raramente são levados à justiça, que o encarceramento de crianças em conflito com a lei não é usado como medida de último recurso, e que é frequente a prisão preventiva.29

O Ministério da Justiça e o Ministério do Interior carecem de recursos financeiros e humanos para melhorar a eficácia do sistema para as crianças. As dotações orçamentais do estado em 2008 destinadas ao Ministério da Justiça e ao Ministério do Interior, que inclui a polícia, foram de dois e três por cento, respectivamente, com limitados recursos destinados a crianças e programas de justiça juvenil.

Grandes têm sido os progressos de Moçambique na área da reforma legislativa

para fazer com que a legislação nacional fique em consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança. Continuam a ser tratadas algumas inconsistências internas, devendo reforçar-se iniciativas e medidas preventivas, especialmente em relação às crianças em conflito com a lei, incluindo a aplicação de medidas correctivas alternativas que estejam em conformidade com as normas internacionais. As crianças em conflito com a lei em Moçambique muitas vezes não beneficiam da protecção estipulada nos instrumentos internacionais, incluindo os Artigos 37 e 40 da Convenção sobre os Direitos da Criança, as Regras de Beijing para a Administração da Justiça Juvenil (1985), e as Directrizes de Riade para a Prevenção da Delinquência Juvenil (1998).

As crianças em conflito com a lei são frequentemente colocadas em prisões para adultos, embora a lei estabeleça que devem ser mantidas em celas separadas. A polícia tem autoridade para deter menores que supostamente tenham cometido uma infracção por um período máximo de 30 dias, após o que a criança deve ser apresentada em Tribunal de Menores ou Secções Civis. O ideal seria um centro de transição ou instalação intermédia e que se tivessem atenções particulares para garantir que esses casos fossem levados a tribunal de forma expedita. Essa não é, no entanto, a prática comum em Moçambique.

É frequente não se cumprirem políticas prisionais que exigem que os presos sejam separados por sexo e idade, e fiquem, de preferência, em instalações separadas, e as condições de segurança e sanitárias nas prisões são um problema.30 O Serviço Nacional de Prisões reporta que nenhum centro para crianças em conflito com a lei está operacional neste momento; foi reabilitado um (Centro de Reabilitação de Chiango), mas não está a funcionar por falta de recursos. Estão previstos ou operacionais três centros de detenção juvenil para menores

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

com 16 a 18 anos (assim como jovens até aos 21 anos, e excepcionalmente até aos 25). Estas instalações estão situadas em Nampula, em Matutuíne, na província de Maputo (ainda em construção), e na Beira (prevista).

Trinta e cinco por cento do total da população prisional em Moçambique tem 16-21 anos de idade. Dados divulgados pelo Serviço Nacional de Prisões de menores com 16 a 18 anos de idade em conflito com a lei revelam que 898 do sexo masculino e 8 do sexo feminino estão actualmente em prisões em todo o país. Existe apenas uma prisão para mulheres, localizada em Ndlavela, em Maputo, com capacidade para albergar cerca de 300 presidiárias, mas existem secções femininas em todas as prisões provinciais. Em 2008, havia 297 presos do sexo feminino numa população prisional total de 14.309 pessoas. O Estudo sobre o Acesso à Justiça realizado no âmbito da avaliação do PARPA II (2009) relata que o governo está a empreender esforços para conferir tratamento especial a mulheres e menores; esses esforços, no entanto, ainda não se traduzem em prática correspondente aos objectivos da política prisional e às regras e padrões mínimos dos instrumentos internacionais.31

Para proteger as mulheres e crianças vulneráveis e promover o acesso à justiça, o Governo decidiu aumentar a capacidade do sector da justiça, definindo como prioridade o direito constitucional a representação. Para isso, aumentaram os fundos atribuídos ao Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica [IPAJ], que foi incluído em 2008, pela primeira vez, no orçamento do Estado. O recrutamento de profissionais em 2007 e 2008 elevou o número de funcionários que recebem um salário do Estado de 10 em 200232 para 138 no primeiro semestre de 2008. 33 No mesmo período, o número total de funcionários do IPAJ subiu de 360 para 700. A cobertura dos serviços prestados pelo IPAJ aumentou de 41 filiais em 2005 para 57 no primeiro semestre de 2008. O número de pessoas que beneficiam destes serviços aumentou de 7.327 em 2007 para 9.615 na primeira metade de 2008.34, 35

4.1. Acesso das crianças a propriedade e herança

Os direitos das mulheres e crianças à propriedade e herança estão ameaçados pela pandemia da SIDA, pois são cada vez mais as viúvas e os órfãos que se confrontam com apropriação cobiçosa de propriedade. Em Moçambique, as leis de sucessão estabelecidas no Livro de Sucessão do Código Civil de 1966 conferem iguais direitos a herdeiros do sexo feminino e do sexo masculino. Todavia, nos termos do direito consuetudinário, os homens estão mais protegidos, encontrando-se as viúvas vulneráveis a apropriação cobiçosa de propriedade.

Um estudo realizado em quatro províncias de Moçambique revelou que as viúvas e os órfãos tendem a sofrer, após a morte de seu marido ou pai, algum tipo de perda de material.36 Como a herança é encarada como assunto privado da família, os outros membros da comunidade em geral optam por não interferir nesses casos. Um estudo de seguimento realizado em 2009 observa que a maioria das pesquisas abordando a questão da apropriação cobiçosa de propriedade incide sobre os aspectos legais da sucessão, e observa haver falta de dados quantitativos sobre a situação dos direitos de propriedade das crianças e mulheres.37 O estudo destaca a necessidade de: (i) uma avaliação do grau de apropriação cobiçosa de propriedade de crianças e viúvas em Moçambique, (ii) prevenção de apropriação cobiçosa de propriedade, (iii) garantia de que as viúvas e seus filhos beneficiam de justiça, seja através de mecanismos locais de resolução de conflitos seja no quadro do sistema jurídico formal. Para atender a essas necessidades, é necessário fazerem-se acções para defesa e promoção de mudanças na legislação e nas políticas do governo, bem como para melhorar a monitoria e o apoio e promover mudança comportamental ao nível das comunidades.

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

4.2. Registo de nascimentoO registo de nascimento dá à criança existência legal e autoridade para reivindicar cidadania, bem como os direitos, benefícios e obrigações resultantes dessa cidadania. Assim, o registo de nascimento é reconhecido como um direito tanto pela Convenção sobre os Direitos da Criança (Artigo 7) como pela Carta Africana sobre os Direitos e Bem-estar da Criança (Artigo 6). A obrigação de Moçambique de se registarem as crianças imediatamente após o nascimento está legalmente reconhecida no Código do Registo Civil. A falta de registo de nascimento viola o direito humano inalienável da criança a uma identidade e coloca em situação de risco o seu desenvolvimento e protecção.

O registo de nascimento é especialmente importante numa altura em que a pandemia da SIDA está a privar cada vez mais crianças de cuidados parentais. A falta de uma certidão de nascimento pode resultar em problemas na determinação de relações familiares, relações legais e direitos de herança, bem como trazer dificuldades no acesso a serviços sociais básicos, como a matrícula escolar e a assistência social. Embora o uso de um registo de nascimento para crianças esteja ainda numa fase rudimentar em Moçambique, o processo de modernização e a instauração do distrito como pólo de desenvolvimento está a tornar um documento de identificação legal cada vez mais importante para protecção jurídica e prevenção de exclusão socioeconómica, especialmente dos mais vulneráveis na sociedade.

Moçambique tem aumentado significativamente o acesso a serviços de registo de nascimento em todo o país. Foi desenvolvido em 2004 um plano nacional de acção para o registo de nascimento, e o registo de nascimento é parte integrante do plano nacional de acção para a criança 2006-2010. Foi lançada em 2006, pela Direcção

Nacional dos Registos e Notariado, do Ministério da Justiça, uma campanha de registo de nascimento de longa duração. Os objectivos da campanha são dar resposta ao grande acumular de crianças por registar, sensibilizar para a importância do registo (precoce) e melhorar o acesso do público aos serviços de registo de nascimento levando-os para mais perto das populações.

Desde a adopção do plano nacional de acção para o registo de nascimento e o lançamento da campanha, cerca de 4,2 milhões de crianças menores de 18 anos foram registadas, o que representa 40 por cento de todas as crianças em Moçambique. A percentagem de crianças menores de cinco anos que tiveram o seu registo de nascimento [aumentou] de 8 por cento em 200338 para 31 por cento em 2008.vi Há grandes disparidades geográficas no registo: 39 por cento das crianças com menos de cinco anos tiveram os seus nascimentos registados em áreas urbanas, em comparação com 28 por cento nas zonas rurais, e enquanto 47 por cento das crianças menores de cinco anos são registadas na Cidade de Maputo, apenas 11 por cento são registadas na província de Tete. A pesquisa também constatou que os entrevistados citaram as principais barreiras ao registo como sendo a complexidade dos procedimentos envolvidos (25 por cento), a distância para os serviços de registo (22 por cento) e os custos (20 por cento), com apenas uma parte relativamente pequena citando a falta de conhecimento do serviço (9 por cento) ou não reconhecendo a importância do registo de nascimento (6 por cento). (Ver Figura 5.8).

Num país com baixos índices de alfabetização (com índices de analfabetismo mais elevados e mais baixas taxas de registo nas áreas rurais), as rádios comunitárias desempenharam um papel-chave na mobilização das famílias para matricularem as suas crianças. Spots

vi Nem todos os distritos da pesquisa tinham realizado actividades de registo de nascimento na altura da pesquisa, pelo que os dados podem estar a subestimar a média nacional.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

Figura 5.9: Percentagem de crianças com menos de cinco anos com registo de nascimento, por província, 2008

Fonte: MICS 2008.

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Figura 5.8: Razões para não registar os nascimentos, 2008

Fonte: MICS 2008.

produzidos e difundidos em línguas locais proporcionam fortes canais de comunicação aos activistas locais, os quais não só divulgam informações básicas sobre o registo de nascimento, como também ajudam as famílias a superar algumas das barreiras socioculturais para registarem os recém-nascidos em tempo oportuno. Em algumas comunidades, por exemplo, práticas tradicionais na escolha do nome podem estender-se para além do prazo de 120 dias durante o qual os nascimentos

podem ser registados gratuitamente. O impedimento cultural de as mães registarem uma criança sem a presença do pai é outro desafio, especialmente nos casos em que o pai fica ausente de casa por longos períodos, devido, por exemplo, a trabalho migratório.

As actividades da campanha de registo de nascimento vêm dar um impulso fundamental à introdução de serviços de registo de nascimento de rotina que aproximam o registo das comunidades e evitam um futuro acumular de registos, criando uma cultura de registo (precoce) das crianças. Soluções de longo prazo, sustentáveis e de rotina, estão a ser desenvolvidas com a participação dos Ministérios da Saúde, da Educação, da Administração Estatal e da Mulher e da Acção Social. Será importante uma estreita cooperação com estes organismos do Estado para estabelecer um sistema eficaz, eficiente e sustentável, centrado especificamente no registo de nascimento. Para curto a médio prazo, até que os ministérios acima mencionados tenham capacidade institucional para conduzir o processo de registo, estão a ser oferecidos por agentes de serviços de registo alternativos que ligam as comunidades e o Governo e facilitam o estabelecimento de uma cultura de registo precoce da criança.

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

Fonte: MICS 2008.

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Figura 5.10: Percentagem de crianças (2-9 anos) com pelo menos uma deficiência relatada, 2008

4.3. Crianças portadoras de deficiência

Moçambique não é signatário da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência e seu Protocolo Facultativo. A política nacional para pessoas com deficiência responsabiliza o Ministério da Mulher e da Acção Social pela promoção da integração efectiva das crianças portadoras de deficiência em actividades pré-escolares e por garantir a protecção social das pessoas com deficiência e suas famílias por meio de medidas destinadas a promover a sua autonomia e integração na comunidade.

O programa estatal Subsídio de Alimentos (um pequeno valor mensal em dinheiro para pessoas especialmente vulneráveis) está disponível unicamente para cidadãos maiores de 18 anos e, portanto, exclui crianças portadoras de deficiência.39 A política nacional de educação prevê a possibilidade de as crianças com deficiências moderadas frequentarem escolas regulares e as crianças com deficiências mais graves frequentarem escolas especiais. Conforme descrito no Capítulo 4, “Educação e desenvolvimento da criança”, as crianças portadoras de deficiência têm menos 40 por cento de probabilidade de frequentar a escola primária do que as crianças sem deficiência. Dados indicam que 13 por cento das crianças com idades compreendidas entre os 2 e os 9 anos vivem com pelo menos uma deficiência (ver Figura 5.10).40

A deficiência mais comum foi a demora em sentar-se, pôr-se em pé ou andar (6 por cento das crianças).

4.4. Mecanismos de cuidados alternativos

Na prática, Moçambique tem dois tipos de sistemas alternativos de cuidados: formal e informal. O Governo de Moçambique incentiva o fortalecimento do papel protector das famílias como primeiro passo para a realização dos direitos das crianças. No entanto, são necessárias acções específicas para lidar com mecanismos alternativos de cuidados a crianças que não se encontrem sob cuidados parentais ou familiares.

Os sistemas tradicionais de cuidados alternativos têm vindo a sofrer uma pressão cada vez maior devido às mudanças sociais decorrentes de desenvolvimento económico, migração e urbanização, e à pandemia da SIDA. As famílias alargadas e as comunidades têm sido a primeira linha de resposta à situação das crianças órfãs e vulneráveis em Moçambique.

Os cuidados formais inscrevem-se no âmbito da jurisdição civil, sob a forma de guarda (tutor), acolhimento (família de acolhimento) e adopção. Nos termos da legislação moçambicana, as decisões concernentes a cuidados formais são tomadas através de uma autoridade judicial e em conformidade com o princípio do melhor interesse da criança, e a colocação

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

em famílias de acolhimento ou instituições é usada apenas como último recurso. Os cuidados residenciais também são considerados um meio de cuidados formais, mas a decisão de colocar uma criança numa instituição é tomada principalmente por via de procedimentos administrativos, sob a responsabilidade do Ministério da Mulher e da Acção Social. Foi recentemente desenvolvido o Regulamento dos Centros de Acolhimento da Criança para garantir a qualidade dos serviços de assistência à infância e a aplicação de padrões mínimos, regulamento esse que aguarda a aprovação final do Ministério da Mulher e da Acção Social. Este quadro regulamentar também especifica como se devem realizar as inspecções e como deve ser monitorado o bem-estar das crianças nessas instituições.

O conceito de família de acolhimento para crianças que carecem de cuidados parentais foi introduzido pela Lei da Família. Precisam, no entanto, de ser desenvolvidos os processos de execução e o regulamento, a fim de se levar avante a iniciativa. É também necessário (i) melhorar a rede de instituições para crianças e instituições infantis do tipo internato, transferindo instituições estatais infantis para centros de apoio familiar, (ii) criar um sistema alternativo de serviços de cuidados (baseados na comunidade e na família, guarda, tutoria, acolhimento, adopção), e (iii) implementar mecanismos para ampliar e estimular a integração das crianças em assistência familiar (família biológica ou alternativa).

A legislação actual não faz distinção entre a adopção internacional e a adopção doméstica. Os processos de adopção devem ser harmonizados nas várias instituições e ministérios para garantir procedimentos de colocação e supervisão adequados durante o período de integração. Quanto à adopção internacional, Moçambique não assinou a Convenção de Haia n º 33, relativa à Protecção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adopção Internacional de 1993, ou quaisquer outros acordos bilaterais sobre a adopção, o que representa uma lacuna no quadro legal. A Ratificação da Convenção

de Haia sobre a Adopção criará o quadro jurídico necessário para assegurar o devido processo para casos de adopção e também que o melhor interesse da criança seja o principal aspecto a considerar. A assinatura da Convenção de Haia foi recomendada pelo Comité dos Direitos da Criança em 2009.41

É necessário que se forneçam ao público em geral informações completas sobre a adopção, para desenvolver uma regulamentação específica para as adopções nacionais e internacionais, bem como para harmonizar os procedimentos de adopção com a Convenção sobre os Direitos da Criança e outros acordos globais de modo a assegurar supervisão do processo de adopção pelos Serviços de Acção Social e órgãos judiciais apropriados. Por exemplo, embora a Lei da Criança adopte a definição de criança da Convenção sobre os Direitos da Criança como qualquer pessoa até aos 18 anos de idade, o Código Civil define a maioridade como sendo os 21. Decorrem tentativas para compatibilizar outros aspectos da legislação nacional com os padrões dos direitos humanos.

Embora sejam limitados os dados quantitativos de Moçambique sobre a colocação de crianças vulneráveis em diferentes tipos de assistência, há evidências de estarem a proliferar os centros de cuidados residenciais. A partir de 2010, os dados registados pela Direcção Provincial da Mulher e Acção Social indicaram um total de 12.767 crianças a serem atendidas em 143 instituições de acolhimento em todo o país. Em 2009 e 2010, o Ministério da Mulher e da Acção Social avaliou 113 dessas instituições para determinar a qualidade dos cuidados e dos serviços prestados às crianças. Verificou-se que a maioria dos centros não estavam legalmente registados, não tinham sustentabilidade e dependiam da ajuda externa ou de doações. Além disso, a maioria dos centros não oferece actividades ocupacionais e não tem um programa de saída para crianças por volta dos 18 anos de idade. Os empregados carecem de suficientes conhecimentos e habilidades em matéria de cuidados infantis

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

e desenvolvimento da criança. Estão a decorrer acções em todas as províncias para a resolução de problemas encontrados nas visitas de monitoria. Embora ainda esteja muito por fazer, têm-se registado alguns progressos: foi desenvolvida uma base de dados nacional para se seguir a situação de cada centro, e tem-se realizado uma série de workshops de formação com o pessoal dos centros para resolver as carências em termos de recursos humanos.

4.5. Crianças órfãs e vulneráveis e outras crianças marginalizadas

A vulnerabilidade das crianças não se limita à sua condição de órfãs ou não órfãs, nem está exclusivamente ligada a ser afectada pelo HIV e pela SIDA. As crianças que perderam os seus pais devido à SIDA são parte de um grupo muito maior de crianças com sérias e urgentes necessidades. É a tripla ameaça de SIDA, pobreza e insegurança alimentar interligadas que torna vulnerável uma ampla gama de crianças. Com efeito, a análise mostra que em contextos de pobreza extrema generalizada as diferenças entre órfãos e não órfãos ou não se manifestam ou são muito pequenas quando comparadas com a privação e o sofrimento que todas as crianças vulneráveis enfrentam42.

Consequentemente, alguns especialistas recomendam que se redefina o grupo-alvo para uma intervenção de protecção social de ‘órfãos’ considerando um mais amplo grupo de crianças vulneráveis, embora essa medida venha a apresentar as suas próprias dificuldades, como, por exemplo, chegar a consenso sobre onde estabelecer limites ou poder vir a aumentar significativamente o número de beneficiários dos programas existentes.

Actualmente, o número de crianças órfãs devido à SIDA tem sido adoptado como medida para avaliar a gravidade do impacto da epidemia nas crianças, famílias, comunidades e país em geral. Apoiar as crianças que perderam os pais continua a ser visto como imperativo. No quadro do

HIV e da SIDA, as crianças são consideradas Crianças Órfãs ou Vulneráveis (COV) se um ou ambos os seus progenitores tiver morrido, se no seu agregado familiar tiver morrido algum adulto nos últimos 12 meses após doença prolongada, se vivem em famílias chefiadas por adultos com doença crónica, ou se vivem em domicílios chefiados por outras crianças ou por jovens, mulheres ou idosos.

Estima-se que existam 1,8 milhões de órfãos em Moçambique, dos quais 510 mil devido à SIDA.43 Prevê-se que o número de órfãos aumente, tornando-se as doenças relacionadas com a SIDA, cada vez mais, a principal causa de orfandade. O número de órfãos não toma em conta as outras crianças eventualmente vulneráveis devido ao HIV ou a viver em agregados familiares com pessoas a viver com HIV. Há 100.000 crianças de 0-14 anos vivendo com HIV.44 O MICS refere ainda que 17,2 por cento das crianças moçambicanas são órfãs ou vulneráveis (COV) devido à SIDA.

O quadro legislativo pelo qual se orienta a resposta nacional a COVs compreende dois principais planos de acção: o Plano Nacional de Acção para a Criança 2006-2010 e o Plano de Acção para Crianças Órfãs e Vulneráveis (PACOV). O PACOV também se aplica a crianças que ficaram vulneráveis devido a outros factores que não o HIV e a SIDA. Engloba as crianças que vivem na rua, as que vivem em instituições (orfanatos, prisões, instituições de saúde mental), as que entram em conflito com a lei, as portadoras de deficiência, as vítimas de violência, de abuso e exploração sexual, de tráfico e das piores forma de trabalho infantil, as que se casam antes da idade legal, e as refugiadas ou deslocadas.

O PACOV identificou seis serviços básicos para atender às principais necessidades das crianças: cuidados de saúde, educação, apoio nutricional e alimentar, apoio financeiro, apoio jurídico e apoio psicossocial. O Governo de Moçambique comprometeu-se a garantir que as crianças tenham acesso a pelo menos três desses

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seis serviços, com particular incidência sobre as crianças que vivem abaixo da linha de pobreza absoluta, incluindo crianças órfãs e crianças vivendo com ou afectadas pelo HIV e pela SIDA. Além do PACOV, a estratégia de redução da pobreza 2005-2009 (PARPA II) incluiu também metas específicas para COV, incluindo a necessidade de desenvolver e consolidar as redes de segurança social para crianças órfãs e garantir que os rácios de frequência escolar e de desnutrição entre as crianças órfãs sejam idênticos aos das crianças não órfãs.

Algumas das ameaças à protecção que as crianças órfãs enfrentam são um aumento de agregados familiares chefiados por irmãos ou crianças, menores índices de matrículas e mais fraco desempenho escolar, e maior risco de abuso sexual e infecção por HIV, trabalho infantil perigoso, actividade sexual precoce e casamento prematuro, graves problemas psicossociais e problemas de saúde e nutrição.45 Além disso, o estigma e discriminação contra as pessoas afectadas pela SIDA continua a ser uma questão desafiadora. Crianças e jovens com familiares doentes ou moribundos estão particularmente expostas ao estigma. Podem ser condenadas ao ostracismo pelas suas comunidades e receber um apoio mínimo das suas famílias devido à vergonha e ao estigma frequentemente associados às mortes relacionadas com a SIDA. Nas escolas, a discriminação da criança traduz-se em provocação e bullying [intimidação]. Em alguns casos, as crianças evitam os seus pares seropositivos por terem medo de ficar infectadas.

O MICS constatou que doze por cento das crianças moçambicanas eram órfãs (das quais 11 por cento órfãs de um dos seus progenitores e 1 por cento órfãs de pai e mãe), enquanto outros 6 por cento eram crianças consideradas ‘vulneráveis’.46 Também foram observadas diferenças geográficas, havendo mais COV em áreas urbanas do que em áreas rurais (20 e 16 por cento, respectivamente), e nas províncias do sul do que nas regiões centro e norte do país (ver Figura 5.11). Apenas 68 por cento das

crianças moravam com ambos os pais em 2008.

Não há nenhuma evidência de uma maior taxa de privação severa de educação em COV do que em não órfãos. Há, no entanto, diferença nas taxas de frequência escolar entre órfãos de pai e mãe e não órfãos, sendo 0,90 o rácio de rapazes órfãos de pai e mãe e 0,92 o de meninas órfãs de pai e mãe, com relação aos seus pares não órfãos.

O MICS mostra ainda que apenas 22 por cento das famílias com COV recebem algum apoio externo; a maior parte desse apoio vai para a educação, com dois por cento dos agregados familiares recebendo apoio material ou financeiro, e menos de um por cento recebendo apoio médico. Apenas 20 por cento das crianças do quintil mais pobre recebem apoio externo grátis, em comparação com 27 por cento no segundo quintil mais pobre.

As crianças órfãs e vulneráveis tendem a viver em famílias pobres chefiadas por idosos. O MICS constatou que 10 por cento dos agregados familiares são chefiados por uma pessoa idosa, mais de metade dos quais tem pelo menos um dependente menor. Um estudo realizado em 2006 revelou que fazer face a custos associados a cuidar de crianças era um fardo impossível para os idosos: cuidar de uma criança órfã ou vulnerável custa, em média, 21 dólares americanos por mês e cuidar de uma pessoa vivendo com HIV custa 30 dólares americanos, enquanto os idosos tinham um rendimento médio mensal de 12,5 dólares americanos.47

Algumas famílias também são chefiadas por uma criança, ou têm uma criança que se vê forçada a funcionar como principal provedor devido a doença ou deficiência dos membros da família adultos (cerca de um e dois por cento, respectivamente, de acordo com o MICS). Em tais situações, as crianças têm normalmente meios de geração de rendimento muito limitados, sendo obrigadas a recorrer a estratégias de risco, como o casamento precoce, sexo transaccional e trabalho infantil

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POBREZA INFANTIL E DISPARIDADES EM MOÇAMBIQUE 2010

Figura 5.11: Percentagem de crianças órfãs e vulneráveis devido à sIdA, 2008

Fonte: MICS, 2008.

Niassa9%

Cabo Delgado17%

Nampula13%

Zambézia19%

Tete12%

Manica19%

Sofala20%

Inhambane15%

Maputo19%

Maputo Cidade20%

Gaza31%

prejudicial. É também limitado o acesso dessas crianças a serviços básicos como os de saúde, educação e alimentação, jurídicos, financeiros e psicossociais. Além desses desafios, as crianças órfãs em consequência da SIDA muitas vezes são estigmatizadas e socialmente discriminadas, sendo susceptíveis a exclusão das suas comunidades. Por exemplo, um estudo realizado pelo Ministério de Planificação e Desenvolvimento realizado em 2005 constatou que nas famílias pobres existe discriminação na alocação de recursos a crianças que não são descendentes biológicas do chefe de família. O estudo verificou que as crianças sem relação

biológica directa com o chefe da família eram vítimas de discriminação em termos de acesso à educação, tanto nas áreas rurais como nas áreas urbanas.48

O Inquérito Demográfico e de Saúde de 2003 constatou que as órfãs com 15-17 anos de idade têm maior probabilidade que as não órfãs de se ter iniciado sexualmente e as órfãs de mãe têm maior probabilidade que as não órfãs de estar casadas,49 o que significa que os adolescentes, especialmente as meninas, são particularmente vulneráveis. Um estudo constatou que os órfãos eram mais propensos a intimidações e depressões, e menos propensos a ter um adulto ou amigos de confiança. Pessoas com órfãos a seu cargo também reportaram depressão e isolamento similares.50

4.6. Protecção Social Básica Presentemente, o Instituto Nacional de Acção Social supervisiona cinco programas de protecção social: dois programas de assistência (um programa de transferências de dinheiro e um programa de transferências sociais em espécie) e três programas de promoção e desenvolvimento (Benefício Social pelo Trabalho, Geração de Rendimentos e Desenvolvimento Comunitário).

Destes, o Programa Subsídio de Alimentos (PSA) é, de longe, o de maior alcance. Este programa de transferências incondicionais de dinheiro foi introduzido em 1990, destinando-se a idosos, deficientes e doentes crónicos e seus dependentes no estrato mais pobre da sociedade. Actualmente, os seus principais beneficiários directos são idosos (93 por cento), pessoas portadoras de deficiência (6 por cento) e doentes crónicos (1 por cento). Tem, portanto, as características de pensão (de velhice) não contributiva. Moçambique é um dos poucos países de baixo rendimento africanos com tal programa de transferências de dinheiro de longa duração suportado por fundos do estado e legislação nacional. Em 2007, o PSA atingiu 128 mil famílias com transferências mensais de dinheiro, aumentando para

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143.455 agregados familiares em 2008 e 166.824 em 2009. No total, o programa alcançou 166.824 beneficiários directos e 140.643 beneficiários indirectos (dependentes) em 2009. Uma significativa percentagem de beneficiários indirectos são crianças, incluindo filhos biológicos do beneficiário directo, órfãos e crianças vulneráveis que vivem no agregado.

Em 2008, o PSA passou por duas importantes reformas: o aumento gradual da escala do subsídio, e um maior enfoque na inclusão de dependentes elegíveis como beneficiários indirectos no regime de pagamento. Parte significativa desses beneficiários indirectos são crianças, o que até agora tem sido problemático em virtude de muitas vezes não cumprirem os critérios de elegibilidade. No caso das crianças, isso deve-se frequentemente à falta de um documento de registo de nascimento ou de orfandade. De acordo com os procedimentos do programa, não órfãos que vivem com os idosos, mesmo não recebendo nenhum apoio financeiro de seus pais, não são beneficiários elegíveis do PSA. Consequentemente, fica excluído do programa um número significativo de crianças extremamente vulneráveis. Um inventário e actualização das fichas de registo dos beneficiários directos e indirectos planeado para 2010 irá trazer mais luz sobre o número de crianças potencialmente elegíveis nas famílias beneficiárias a que não está a ser presentemente conferido um direito. Essas informações irão alimentar o novo sistema de gestão do programa que entrará em funcionamento em 2011 e garantirão uma melhor cobertura dos dependentes elegíveis. Está prevista uma revisão do manual do programa integrada no plano operacional da Estratégia de Segurança Social Básica, que incluirá discussões sobre os critérios que determinam a inclusão de dependentes menores. A presente campanha de registo de nascimento deverá abordar o problema de não se ter um documento de registo de nascimento, facilitando assim a inclusão de crianças vulneráveis como portadoras de direitos.

Está em curso uma avaliação do impacto do PSA, na qual um grupo de tratamento (1.016 famílias) e controlo (1.650 famílias) participa numa pesquisa para determinar o impacto das transferências mensais de dinheiro no consumo, na saúde e na educação (incluindo acesso a serviços), no emprego, na habitação e nas alterações demográficas intra-agregados familiares. O levantamento inicial foi realizado em 2008, estando previstas pesquisas de seguimento para 2009 (já realizada), 2011 e 2013. É seu objectivo analisar o impacto do PSA nos beneficiários e famílias visando informar o diálogo técnico e político com o Governo e os parceiros sobre o rumo do programa. Prevê-se que evidências empíricas geradas por essa avaliação venham a influenciar as principais decisões programáticas, tais como montantes e a gama da escala de benefícios, o número de beneficiários, a constituição do grupo-alvo, etc. Os resultados da avaliação deverão também informar o diálogo técnico e político sobre a introdução de um subsídio para crianças como proposto na Estratégia de Segurança Social Básica.

A Estratégia prevê ampliar o programa PSA para 452.000 agregados familiares até 2014. Espera-se que estes agregados representem 1.356.000 beneficiários directos e indirectos, dos quais 795.520 beneficiários indirectos serão provavelmente crianças.

Além do PSA, o programa de transferências em espécie identifica crianças órfãs e vulneráveis como beneficiários directos. É fornecido material de apoio a indivíduos e famílias que necessitam de assistência imediata sob a forma de produtos alimentares, material escolar, utensílios domésticos e material de construção. Em 2008, este apoio chegou a 24 por cento dos agregados familiares. O maior grupo de beneficiários são as crianças, incluindo 26 por cento de crianças órfãs, 23 por cento de crianças desnutridas; 12 por cento de gémeos; 10 por cento de crianças abandonadas; 6 por cento de bebés que não podem ser amamentados; 6 por cento de crianças chefes de agregados familiares; 2

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por cento de adolescentes e 0,24 por cento de trigémeos. Embora esse apoio seja um valioso contributo para aliviar a privação das famílias em extrema necessidade, é dado como fornecimento, sendo a cobertura limitada e insuficiente para atender à presente demanda.

O programa de subsídio para as crianças proposto terá como alvo famílias que cuidam de órfãos e crianças vulneráveis. Está previsto introduzir-se o subsídio numa abordagem faseada (ver Tabela 5.2), mas os fundos estatais para a sua introdução não foram ainda assegurados, pelo que não foi viável o lançamento do programa em 2010.

4.7. Atestados de PobrezaO Governo criou um sistema em que são emitidos atestados de pobreza para os agregados mais vulneráveis visando garantir o livre acesso das crianças a serviços de educação, saúde e registo civil. Os agregados familiares beneficiários são definidos como sendo os que não têm recursos para sobreviver sem ajuda

Tabela 5.1: Transferências de dinheiro projectadas para agregados familiares chefiados por idosos, portadores de deficiência e doentes crónicos, 2010-2014

2010 2011 2012 2013 2014Número de famílias alargadas 242.296 312.592 382.888 453.183 523.479Montante atribuído (Milhões de Mts) 668,74 862,75 1,056,77 1,250,79 1,444,80

Percentagem de fundos do estado 0,24% 0,29% 0,34% 0,38% 0,42%Número de idosos beneficiários directos e indirectos 300.447 387.614 474.781 561.947 649.114

Fonte: Governo de Moçambique, “Estratégia Nacional de Segurança Social Básica,” Maputo, Março 2010.

do Estado. O processo de obtenção de atestados de pobreza requer interacção com o registo local (para confirmar o local de residência), depois com os serviços de acção social a nível distrital (para verificar as informações sobre a condição social do requerente) e, finalmente, com a administração do distrito (para emissão do atestado). Relatórios de organizações não governamentais que apoiam o acesso das famílias a este programa têm revelado que morosos procedimentos e falta de clareza sobre a que serviços se aplicam os atestados (mesmo entre os prestadores de serviços e agentes da administração), bem como a falta de meios dos prestadores de serviço para aceitar gratuitamente os beneficiários representam grandes constrangimentos.

4.8. Análise de capacidadeO estudo Acesso à Justiça 2009, realizado por incumbência do Ministério da Planificação e Desenvolvimento no âmbito do processo de avaliação do PARPA II concluiu que durante o período 2005-2009 o acesso à justiça em Moçambique não

Tabela 5.2: Transferências de dinheiro para famílias com crianças órfãs e vulneráveis, 2010-2014

2010 2011 2012 2013 2014

Número de famílias alargadas 66.780 133.559 200.339 267.119 333.899

Montante atribuído (milhões de Mts) 186,51 373,03 559,54 746,06 932,57

Percentagem de fundos do estado 0,20% 0,39% 0,55% 0,71% 0,85%Número de crianças beneficiárias 203.531 407.062 610.594 814.125 1.017,656

Fonte: Governo de Moçambique, “Estratégia Nacional de Segurança Social Básica,” Maputo, Março 2010.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

melhorou (embora também não se tenha reduzido).51 Persistem falhas no assegurar que os benefícios dos serviços públicos oferecidos pelo sector da justiça (ou seja, os Tribunais, a Procuradoria Geral da República, o Ministério da Justiça e o Instituto de Assistência Jurídica alcancem de facto a maioria dos cidadãos, especialmente os mais vulneráveis.

A avaliação de impacto do PARPA II revelou que, das 36 acções previstas nas áreas de reforma da justiça, legalidade, ordem e segurança pública, apenas seis foram totalmente concluídas, e que em dez acções não registou qualquer progresso. Entre as importantes acções que não foram concluídas constam a nova lei sobre o Instituto de Assistência Jurídica, a digitalização dos dados do tribunal judicial, a aprovação da Política Nacional de Direitos Humanos, e a reforma da Unidade de Investigação Criminal da Polícia.

Todo o sector de justiça, e particularmente as forças policiais, deve desempenhar um papel mais activo no sentido de garantir que as famílias, comunidades e escolas proporcionem ambientes seguros e de protecção para as crianças, aplicando as leis penais e ampliando iniciativas como os Gabinetes de Atendimento. Foram criados mais de 200 centros em todo o país desde o primeiro Gabinete de Atendimento na Beira, em 2002.52 Estes gabinetes foram criados com vista a proporcionar às vítimas um espaço seguro para denunciarem à polícia casos de violência e para serem encaminhadas, pelo Ministério da Mulher e Acção Social, o Ministério da Saúde e ministérios afins, incluindo trabalhadores de saúde e assistentes sociais, para os serviços necessários. Entre Janeiro e Setembro de 2009, mais de 14.000 vítimas de violência, abuso e exploração, das quais 2.721 crianças (1.219 rapazes e 1.502 raparigas), foram apoiadas através desses gabinetes por todo o país. No entanto, continuam a verificar-se carências significativas até que esses gabinetes possam ser considerados plenamente operacionais. Os recursos humanos e logísticos disponíveis são

insuficientes para permitir que a maioria dos gabinetes funcione 24 horas por dia. Apenas sete dos 200 Gabinetes de Atendimento têm os seus próprios veículos, o que representa uma séria limitação na mobilidade para investigar casos de violência contra crianças e mulheres, para prestar cuidados e apoiar as vítimas. Deve ser mobilizado mais apoio para reforçar a capacidade dos centros visando facilitar um rápido encaminhamento dos casos para prestadores de serviços básicos e assegurar às crianças e mulheres vítimas de violência serviços de qualidade.

A recolha de dados fiáveis sobre as questões relacionadas com a protecção da criança no sector da justiça é fundamental para melhorar essa protecção, mas extremamente difícil em Moçambique, nomeadamente a nível provincial e distrital. Tal situação é devida, por um lado à tradição de se lidar com os casos no seio das famílias e dos agregados, ao invés dos canais formais legais, e, por outro, à falta de capacidade técnica e material a nível do Governo e do sistema de justiça. A violência, a exploração e o abuso desenvolvem-se em condições de ilegalidade e falta de transparência, tornando difícil as estatísticas dos Ministérios da Justiça e do Interior reflectirem a verdadeira dimensão e extensão dos problemas.53

A realidade para a maioria dos moçambicanos é que os tribunais judiciais são inacessíveis, bloqueados por uma série de obstáculos, incluindo custos elevados em relação ao rendimento, distância e fracas redes de transporte. Moçambique enfrenta desafios significativos na oferta de acesso à justiça à maioria dos seus cidadãos, bem como no cumprimento dos padrões constitucionais e internacionais de justiça.54 Os principais centros do sistema de justiça encontram-se em áreas urbanas, principalmente em Maputo, ficando as áreas rurais por servir. O relatório sobre o Sector da Justiça e o Estado de Direito publicado pela Open Society Foundation (Sociedade Aberta) citou constrangimentos no acesso à justiça, incluindo um insuficiente número de funcionários nos tribunais e a falta de

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pessoal qualificado, tais como magistrados, procuradores gerais e escrivães. Mais obstáculos verificados foram a acumulação de processos nas várias secções, a falta de equipamentos e infra-estrutura (apenas estão cobertas neste momento capitais provinciais e pouco mais de metade das capitais de distrito) e a falta de advogados disponíveis para representar as crianças acusadas de crime, especialmente fora da Cidade de Maputo. Esses importantes obstáculos no sistema de justiça impedem os tribunais de satisfazer os crescentes pedidos de guarda, bem como outras questões de justiça juvenil e contribuem para um atraso cada vez maior de casos pendentes.

Embora a capacidade dos sistemas de justiça para prevenir e responder a diferentes formas de violência, abuso e exploração tenha sido reforçada, a resposta global continua a ser fragmentada, reactiva, fraca e insuficiente. É urgentemente necessária uma melhoria da capacidade dos Ministérios da Justiça e do Interior para proporcionar a devida atenção e protecção às vítimas de violência, abuso e exploração. A capacidade dos sectores de acção social, do interior e de justiça para prevenir e responder a casos de violência contra as crianças, tanto a nível nacional como provincial também tem de ser reforçada através de recolha de dados, monitoria e mecanismos de apresentação de relatórios a todos os níveis.

Em termos de capacidade neste domínio falta também um banco de dados nacional sobre violência e abuso sexual. O desenvolvimento de um sistema nacional eficaz aumentaria consideravelmente a capacidade do Governo para registar, acompanhar, avaliar e responder a padrões de abuso e violência. Esse desenvolvimento seria especialmente útil para ministérios-chave como o Ministério do Interior (para notificação de casos criminais), o Ministério da Mulher e Acção Social (para aos assistentes sociais fornecerem informações sobre casos de género), e o Ministério da Educação (para notificação

de incidentes em escolas), bem como para reforçar a capacidade das comunidades para prevenirem e responderem à violência nas famílias ou na rua. As observações finais do Comité dos Direitos da Criança ao relatório periódico de Moçambique reconhecem que o reforço da base de evidências sobre a protecção das crianças no sector da justiça é fundamental, sobretudo para se garantir que se usem os dados para melhorar as leis, políticas e práticas.55

Outro grande desafio para o sector da justiça é a necessidade de se coordenar, dinamizar e maximizar o impacto do desenvolvimento de capacidades e esforços de sensibilização por uma grande variedade de partes interessadas. Doadores, organizações não-governamentais e agências das NU estão a definir como alvo juízes, funcionários judiciais, agentes prisionais e policiais, tanto a nível nacional como comunitário. No entanto, o Governo não estabeleceu padrões para materiais de formação e mensagens de sensibilização, e não existe uma abordagem sistemática e coordenada para a formação e sensibilização. Para melhor institucionalizar os esforços de capacitação, tanto o Ministério da Justiça como o Ministério do Interior têm vindo a integrar módulos de formação que descrevem pormenorizadamente como proteger os direitos das crianças na qualidade de vítimas, testemunhas e infractoras no sistema de justiça criminal nos manuais de formação utilizados pelo Instituto de Formação Jurídica e Judiciária nacional e pela academia nacional da polícia, dando por esse meio uma atenção sistémica a questões de protecção infantil.

Apesar das limitações acima mencionadas, registaram-se melhorias, nomeadamente no âmbito dos tribunais e do Ministério Público. De acordo com o segundo Plano Estratégico Integrado do Sector da Justiça (Plano Estratégico Integrado II) um total de 1.173 pessoas formaram-se nas diferentes faculdades de direito no país desde 2000. Desde que o Centro de Formação Jurídica e Judiciária iniciou suas actividades em 2001, cerca de 136 juízes e procuradores,

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

343 funcionários de tribunal, 51 assistentes jurídicos e 45 notários públicos se formaram a partir do Centro, estimando-se que 90 por cento dos licenciados entraram depois numa das instituições do sector. Desde 2004, a Academia da Polícia concedeu os graus equivalentes a Licenciado e Mestrado em ciências policiais a cerca de 85 candidatos por ano, e 1.200 agentes policiais se graduam anualmente a partir da escola básica da polícia.

O Ministério da Mulher e da Acção Social tem recebido apoio técnico e financeiro de uma série de parceiros para implementar o PACOV. No entanto, uma avaliação constatou que o Ministério opera com limitados recursos e competências a nível distrital, o que enfraquece a sua capacidade de responder de forma abrangente às necessidades das crianças existentes.56 Assim, está a ser encomendado um estudo para gerar mais evidências relativas a onde residem as lacunas de capacidade ou pontos fracos a nível distrital e, consequentemente, como podem essas carências ser transformadas em pontos fortes.

Para avaliar o impacto da implementação do PACOV, o Ministério da Mulher e da Acção Social encomendou uma avaliação. Os resultados dirão da relevância e eficiência do PACOV na prestação de assistência e apoio às crianças, em especial às que vivem em situação de vulnerabilidade. A elaboração dos Padrões Mínimos de Assistência a Crianças Órfãs e Vulneráveis centrando-se especificamente nos seis serviços básicos definidos pelo PACOV, agora em curso, será um importante guia para a implementação no país de actividades respeitantes a crianças

Conforme estabelecido na Lei da Criança, o Conselho de Ministros aprovou o Conselho Nacional dos Direitos da Criança em 2009. Este será um importante fórum para diferentes instituições governamentais e organizações da sociedade civil definirem as principais estratégias para os direitos das crianças e coordenarem futuramente as acções de uma forma eficaz.

4.9. Parcerias da sociedade civilTambém a sociedade civil participa activamente em acções de advocacia, no diálogo político, na capacitação e sensibilização da comunidade sobre questões de protecção da criança no sistema de justiça. Os parceiros da sociedade civil têm assumido um papel activo na divulgação de diversas leis, entre as quais da Lei da Criança, na sua versão ‘amiga da criança’.

Organizações da sociedade civil em Moçambique também desempenham um papel vital na provisão de serviços básicos, especialmente no apoio a famílias e crianças vulneráveis que fazem face ao HIV e à SIDA. Embora não estejam disponíveis dados específicos sobre o apoio a crianças órfãs e vulneráveis prestado por organizações da sociedade civil, note-se que só o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da SIDA ajudou 16 organizações não-governamentais a alcançarem 242.800 COV em 2008.57 As organizações da sociedade civil despenderam cerca de 38 por cento do total de fundos gastos no domínio do HIV de 2004 a 2006.58

É necessário que se melhore a coordenação das actividades das organizações da sociedade civil para evitar duplicação, expandir o que, muitas vezes, é apoio localizado e garantir sustentabilidade, uma vez que chega a 70 por cento o apoio de organizações da sociedade civil que provém de fontes externas.59 Uma meta-análise60 de grupos comunitários a trabalhar no domínio da protecção e bem-estar da criança ressaltou a necessidade de financiamento de longo prazo para permitir o desenvolvimento de grupos de protecção da criança pertencentes a e assumidos pelas próprias comunidades.

4.10. Financiamento do sector e dotações orçamentaisO Ministério da Mulher e da Acção Social recebe baixos níveis de apoio financeiro do Governo de Moçambique: em 2010, foi-lhe atribuído apenas 1,1 por cento do PIB, uma redução de 0,3 por cento da verba de 2009.61

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vii O orçamento do Ministério do Interior não está desagregado, não permitindo, portanto, que se identifique a parcela atribuída às forças policiais.

cento cada ano, com excepção de 2006 (um aumento de 5 por cento). As dotações orçamentais por instituição para as despesas de investimento foram irregulares, não se podendo observar nenhuma clara tendência.

As dotações orçamentais para o nível provincial estão a aumentar, mas apenas proporcionalmente ao aumento do orçamento total. As dotações para o nível provincial representam aproximadamente cerca de 25 por cento do total das dotações para o sector da justiça em 2008. Poucas evidências há de uma efectiva descentralização de recursos ou sua administração a nível provincial.

Além disso, a capacidade das Direcções Provinciais da Mulher e Acção Social para desempenhar efectivamente as suas funções e responsabilidades tem sido limitada pela falta de recursos humanos e formação adequada (em termos seja de trabalho social seja de gestão do programa).

Desde 2003, as dotações orçamentais para o sector da justiça têm-se mantido relativamente estáveis, representando entre seis e sete por cento do orçamento do Estado.62 O Ministério do Interior absorve cerca de 70 por cento dos recursos alocados.vii Em termos nominais, as verbas aumentaram de 22 por cento para 25 por

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

5. Conclusões

São muito diversos os problemas de protecção que se colocam às crianças em Moçambique. A violência física e sexual, o casamento precoce, o trabalho infantil e o tráfico de crianças continuam a ser comuns; embora os dados nessas áreas sejam escassos, a informação disponível indica que as tendências não melhoraram significativamente nos últimos anos. O número de crianças órfãs e vulneráveis tem-se mantido, principalmente como resultado do HIV e da SIDA. Embora as famílias alargadas e as comunidades em Moçambique tenham sempre constituído a primeira linha de resposta, este sistema de apoio tradicional está sujeito a uma pressão cada vez maior, uma vez que tem vindo a subir o número de crianças a necessitar de assistência. Além disso, registou-se um progresso significativo na área dos serviços de registo de nascimento por todo o país, com cerca de 7 milhões de crianças registadas desde 2005; o desafio nesta área consistirá em assegurar que se mantenham as iniciativas em curso para se alcançar uma cobertura universal.

Nos últimos anos foi alcançado um significativo progresso no quadro legal e de políticas respeitantes à protecção da criança, nomeadamente a aprovação da Lei sobre a Violência Doméstica, da Lei da Criança e da Lei da Justiça Juvenil, entre outros. Apesar dessas melhorias, a resposta global continua a ser fragmentada, reactiva, fraca e insuficientemente provida de fundos, e é necessário que esta nova legislação se traduza em regulamentos e programas eficazes. A Estratégia de Segurança Social Básica, recentemente aprovada pelo Conselho de Ministros e actualmente em vias de operacionalização apresenta um cenário promissor no que respeita a lidar com crianças e vulnerabilidade familiar, especialmente porque incorpora uma componente de subsídio para crianças. Os progressos alcançados no programa de

transferência social do PSA, onde o número de agregados familiares passou de 90.000 em 2005 para cerca de 170.000 em 2009, são um exemplo encorajador de como as crianças poderiam beneficiar das iniciativas de protecção social.

As políticas e os programas de protecção social são meios eficazes de responder às necessidades das famílias e crianças vulneráveis, dado o fundamental papel da protecção social na redução da pobreza, na superação da exclusão social e na formação de capital humano para se reduzirem os riscos e a vulnerabilidade enfrentados por grupos vulneráveis, particularmente crianças e pessoas que delas cuidam. De forma mais específica, é necessário que se enfrentem três importantes desafios para ir ao encontro das necessidades e proporcionar resultados efectivos e benéficos às crianças vulneráveis e suas famílias:

O apoio e os serviços liderados pelo governo devem chegar a todas as crianças que deles precisam em comunidades pobres afectadas pelo HIV e pela SIDA. Isto inclui crianças que perderam os pais, mas também muitas outras, incluindo as vítimas de violência, abuso e exploração;

As políticas e os programas para crianças vulneráveis devem fortalecer a capacidade das famílias alargadas e comunidades para cuidar das crianças a nível da base;

É necessário que se abordem os problemas de pobreza familiar e desigualdade de género com vista a obterem-se melhores resultados para as crianças.

Apesar dos importantes avanços na área da defesa dos direitos das crianças em Moçambique, muito mais há a fazer para desenvolver um sistema holístico de protecção da criança, que procure sinergias

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entre os sectores de acção social e justiça para aumentar o acesso das crianças a serviços de protecção e outros importantes serviços sociais. Isso envolve principalmente o melhoramento dos dados e mecanismos de monitoria; o desenvolvimento de uma abordagem mais sistémica e coordenada dentro de e entre os ministérios-chave; e o fortalecimento de capacidades dos ministérios relevantes para desenvolver uma abordagem robusta e sistémica à protecção da criança. Além disso, como as normas culturais e sociais desempenham tão importante papel no contexto da protecção das crianças, é contínua a necessidade de

se proceder a uma divulgação efectiva de informação sobre questões-chave e de se sensibilizar a sociedade em geral para os direitos da criança e a obrigação que todos têm de as proteger. No entanto, sem que haja mais recursos, continuará limitada a capacidade do Ministério da Mulher e da Acção Social aos níveis nacional e subnacional para levar a cabo as tarefas que lhe competem. É fundamental que as respostas das políticas governamentais às ameaças que se colocam às crianças vulneráveis tenham o devido financiamento e uma implementação adequada para que se possam proteger os direitos dessas crianças.

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CAPÍTULO 5: PROTECÇÃO DA CRIANÇA

Referências

1 United Nations Secretary-General, Study on Violence against Children and Adolescents, Documentos de resultados do III Congresso Mundial, Brasil, 2008.

2 Governo de Moçambique, ‘Lei nº 3/2007, de 7 de Fevereiro, sobre a Protecção Social,’ Maputo, 2007.

3 Ministério do Interior, Departamento da Mulher e da Criança, Relatório Anual de 2009, Governo de Moçambique, Maputo, 2009.

4 Pinheiro, Paulo Sérgio, Report of the independent expert for the United Nations study on violence against children, Nações Unidas, Nova Iorque, 2006

5 Tvedten, Inge, Margarida Paulo and Georgina Montserrat, Gender Policies and Feminisation of Poverty in Mozambique, CMI Report, Chr. Michelsen Institute, Bergen, 2008.

6 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito Nacional sobre Saúde Reprodutiva e Comportamento Sexual dos Jovens e Adolescentes (INJAD), Governo de Moçambique, Maputo, 2001.

7 Universidade Eduardo Mondlane, Centro de Estudos da População, Inquérito Internacional sobre a Violência contra a Mulher (IVAWS-2004) em Moçambique, Maputo, Abril de 2005.

8 United Nations Committee on the Rights of the Child, 52nd session, Consideration of Reports Submitted by States Parties Under Article 44 of the Convention, Concluding Observations of the Committee on the Rights of the Child: Mozambique, Nações Unidas, Genebra, 2009.

9 Ministério da Educação e Cultura, Relatório da Auscultação Através das Unidades de Género, dos Conselhos Escolas, e Jovens Raparigas sobre Que Mecanismo a Adoptar para Prevenção, Combate, Denúncia e Encaminhamento de Casos de Assédio e Todo o Tipo de Abuso, Incluindo o Abuso Sexual na Escola, Governo de Moçambique, Maputo, 2008.

10 Ministério da Mulher e da Acção Social, Plano Nacional de Acção para a Criança, Governo de Moçambique, Maputo, 2005.

11 Ministério da Mulher e da Acção Social, Inquérito sobre Violência Contra a Mulher, Governo de Moçambique, Maputo, 2004.

12 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos 2008, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

13 Ministério da Mulher e da Acção Social, Inquérito sobre Violência Contra a Mulher, Governo de Moçambique, Maputo, 2004.

14 Ibid.

15 Ibid.

16 International Organization for Migration, Regional Office for Southern Africa, Seduction, Sale and Slavery:Trafficking in Women and Children for Sexual Exploitation in Southern Africa, 3rd ed., Pretoria, 2003.

17 Mozambique Human Rights League, Trafficking Body Parts in Mozambique and South Africa, Moçambique Liga dos Direitos Humanos, Maputo, 2008.

18 deSasKropiwinicki, Zosa,The Internal Trafficking and Exploitation of Women and Children in Mozambique, Save the Children, Noruega, 2009.

19 Save the Children, Our Broken Dreams: Child migration in southern Africa, Save the Children UK e Save the Children Norway em Mozambique, Maputo, 2008.

20 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos 2008, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

21 deSasKropiwinicki, Zosa, The Internal Trafficking and Exploitation of Women and Children in Mozambique, Save the Children, Noruega,2009.

22 Population Council, ‘Child Marriage Briefing: Mozambique’, 2004, descarregado de: http://www.popcouncil.org/pdfs/briefingsheets/MOZAMBIQUE_2005.pdf, acedido a 8 de Novembro de 2010.

23 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

24 Population Council, ‘Child Marriage Briefing: Mozambique’, 2004, descarregado de: http://

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www.popcouncil.org/pdfs/briefingsheets/MOZAMBIQUE_2005.pdf, acedido a 8 de Novembro de 2010.

25 Haberland, Nicole, Erica Chong and Hillary Bracken, ‘Married Adolescents: An overview’, document preparado para o WHO/UNFPA/Population Council Technical Consultation on Married Adolescents, Organização Mundial de Saúde, Genebra, 2003.

26 Ministério da Educação e Cultura, Direcção de Programas Especiais, Relatório da Auscultação Através das Unidades de Género, dos Conselhos das Escolas e Jovens Raparigas sobre Que Mecanismo Adoptar para Prevenção, Combate, Denúncia e Encaminhamento de Casos de Assédio e Todo o Tipo de Abuso, Incluindo o Abuso Sexual na Escola, Governo de Moçambique, Maputo, 2008.

27 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito Demográfico e de Saúde 2003, Governo de Moçambique, Maputo, 2005.

28 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

29 United Nations Committee on the Rights of the Child, 52nd session, ‘Consideration of Reports Submitted by States Parties Under Article 44 of the Convention, Concluding Observations of the Committee on the Rights of the Child: Mozambique’, Nações Unidas, Genebra, 2009.

30 Graça, J. et al., ‘Impacto das realizações do PARPA II no acesso à Justiça’, Maputo, 2009.

31 MGA Consultoria e Lexterra. ‘Avaliação sumária do impacto das realizações do PARPA II no acesso à justiça,’ Moçambique, Maputo, 2009

32 Open Society Institute for Southern Africa, ‘Mozambique: Justice Sector and the Rule of Law’, OSISA, Londres, 2006.

33 Legal Aid Institute, ‘Report to the Consultative Council of the Ministry of Justice,’ Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica, Junho de 2008.

34 Ministry of Planning and Development, Balanço do Plano Económico e Social, Governo de Moçambique, Maputo, Janeiro a Junho, 2008.

35 Ministry of Foreign Affairs of Denmark, ‘Final Programme Document: Support to the Justice Sector in Mozambique 2008–2013’, Ref. No. 104.MOZ.106, Outubro de 2008.

36 Save the Children, ‘Denied our Rights: Children, women and inheritance in Mozambique,’ Save the Children, Maputo, 2007.

37 Save the Children and the Food and Agriculture Organisation, ‘Children and women’s rights to property and inheritance in Mozambique,’ Save the Children, Maputo, 2009.

38 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito Demográfico e de Saúde 2003, Governo de Moçambique, Maputo, 2005.

39 Ministério da Educação e Cultura, Responsabilidades do Estado Moçambicano em Relação à Pessoa Portadora de Deficiência, Governo de Moçambique, Maputo, 2000.

40Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

41 United Nations Committee on the Rights of the Child, 52nd session, ‘Consideration of Reports Submitted by States Parties Under Article 44 of the Convention, Concluding Observations of the Committee on the Rights of the Child: Mozambique,’ Nações Unidas, Genebra, 2009.

42 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

43 Instituto Nacional de Estatística, Ministry of Health, Ministry of Planning and Development, Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Conselho Nacional de Combate ao HIV/SIDA,

Faculdade de Medicina, Impacto demográfico do HIV/SIDA em Moçambique: Actualização - Ronda de vigilância epidemiológica 2008, Governo de Moçambique, Maputo, 2009.

44 UNAIDS, Mozambique Country Response, descarregado de: http://www.unaids.org/en/CountryResponses/Countries/mozambique.asp, acedido a 14 de Junho de 2010.

45 United Nations Children’s Fund, The Human Rights Situation of Children in Mozambique, UNICEF, 2009

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46 Instituto Nacional de Estatística, Inquérito de Indicadores Múltiplos, Governo de Moçambique, Maputo, 2010.

47 HelpAge International, Mind the Gap. HIV and AIDS and older people in Africa, HelpAge International, Londres, 2008.

48 Nhate, Virgulino, et al., Orphans and Discrimination in Mozambique: An outlay equivalence analaysis, International Food Policy Research Institute, Washington, D.C., 2005.

49 Palermo, Tia, and Amber Peterman, ‘Are Female Orphans at Risk for Early Marriage, Early Sexual Debut, and Teen Pregnancy? Evidence from Sub-Saharan Africa’, Studies in Family Planning, vol. 40, no. 2, 2009; pp. 101–112.

50 Cluver, Lucie, and F. Gardner, ‘The Mental Health of Children Orphaned by AIDS: A review of international and southern African research’, Journal of Child and Adolescent Mental Health, vol. 19, no. 1, 2007, pp. 1–17.

51 MGA Consultoria e Lexterra, Avaliação sumária do impacto das realizações do PARPA II no acesso à justiça. Moçambique, Maputo, 2009

52 Ministério do Interior, Departamento da Mulher e da Crinaça, Relatório Anual de 2009, Governo de Moçambique, Maputo, 2009.

53 MGA Consultoria e Lexterra. ‘Avaliação sumária do impacto das realizações do PARPA II no acesso à justiça,’ Moçambique, Maputo, 2009.

54 Open Society Initiative for Southern Africa, ‘Mozambique Justice Sector and the Rule of Law Discussion Paper,’ Open Society Initiative for Southern Africa, Londres, 2006.

55 United Nations Committee on the Rights of the Child, Concluding Observations to the State Report by the Government of Mozambique, Nações Unidas, Genebra, 2009.

56 Austral Cowi, Assessment of UNICEF NGO – Government Partnership Programme, UNICEF, Maputo, 2010.

57 The United States President’s Emergency Plan for AIDS Relief, Partnership to Fight HIV/AIDS in Mozambique, retrieved from: http://www.pepfar.gov/countries/mozambique/index.htm, accessed 14 March 2010. www.pepfar.gov/countries/mozambique/index.htm, acedido em 14 de Março de 2010.

58 Amoaten, Susan, e Claire Bader, Rapid Review of Support to NGOs and Civil Society on AIDS in Mozambique, 2008. Inédito.

59 Francisco, António, et al., Mozambican Civil Society Within: Evaluation, challenges, opportunities and action, Foundation for Community Development and United Nations Development Programme, Nova Iorque, 2007.

60 Wessells, Mike. What Are We Learning About Community-Based Child Protection Mechanisms?2009. Draft.

61 United Nations Childrens Fund, O que diz o Orçamento do Estado para 2010 sobre os chamados Sectores Prioritários? Informe 10, UNICEF, Nova Iorque, Maio de 2010.

62 Sal &Caldeira, ‘The Justice Sector in Mozambique: Budget Allocations and Expenditure 2003 to 2010’, Maputo, Dezembro de 2007.