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História e Biodiversidade do MoNa das Ilhas Cagarras Arqueologia2 3
Um achado inesperado
Capítulo 2
“Cariocas da Gema”: evidências de presença humana na Ilha Redonda
no período pré-colonial
O Arquipélago das Cagarras e a Ilha Redonda são um marco na paisagem do litoral do Rio de Janeiro.
Visível de quase toda a orla, sua distância em relação ao ponto mais próximo do continente, a praia de
Ipanema, varia entre cerca de 4 e 9 km, respectivamente. Presente na cartografia desde o século XVI,
o arquipélago representava para a navegação um marco sinalizador da entrada da Baía de Guanabara
(Rodrigues, 2003). No entanto, as referências à utilização direta das terras emersas do arquipélago são
praticamente inexistentes. Isto ocorre essencialmente por duas razões: de um lado, o desembarque
complicado, principalmente nos meses de inverno, pois inexistem praias abrigadas, e, de outro, a ausência
de fontes de água doce no local.
Por conta destas condições adversas, não foi pequena a surpresa de um grupo de pesquisadores1, em uma
expedição à Ilha Redonda em dezembro de 2011, com um achado inesperado. Após o difícil desembarque
e um trecho de escalada em rocha de cerca de 80 metros, com inclinações de até 55º, próximo ao contato
da rocha com a vegetação, pouco antes do limite com a floresta (que então segue contínua até o cume,
a 228m de altitude), foi encontrado na superfície do solo um machado de pedra, em meio aos ninhos
de atobás. Em seguida, mais artefatos apareceram: outro machado, uma mão de pilão, diversos “quebra-
coquinhos”, dezenas de cacos de cerâmica.
Em março de 2012, uma segunda visita à Ilha Redonda, agora com a presença da primeira autora,
arqueóloga do Museu Nacional, permitiu o reconhecimento de um sítio arqueológico Tupiguarani.
1 Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de Antropologia. Programa de Pós Graduação em Arqueologia. [email protected] 2 Laboratório de Arqueologia Brasileira (LAB).
3 Pontifícia Universidade Católica/RJ. Departamento de Geografia, Programa de Pós Graduação em Geografia.
Ilustracão de Pedro R. Pagnoncelli sobre foto de Fernando Moraes.
Rita Scheel-Ybert1; Angela Buarque2 & Rogério Oliveira3
1 Pesquisadores de diversas instituições de pesquisa da cidade do Rio de Janeiro, ligados ao Projeto Ilhas do Rio, realizado pelo Instituto Mar Adentro.
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Face sudoeste da Ilha Redonda, aonde o acesso é menos íngreme do que no restante da ilha, 11/11/11. À direita, nota-se a Ilhota Filhote da Redonda e ao fundo a Ilha Rasa. Foto: Fernando Moraes.
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Os íngremes paredões rochosos da Ilha Redonda restringem o acesso à parte alta, contribuindo para a preservação do ecossistema e do sítio arqueológico, 15/02/12. Certamente os antigos visitantes também utilizavam esta vertente, de acesso mais fácil ao cume, pois os artefatos estavam dispersos no final desta escalada. Foto: Fernando Moraes.
Os vestígios compreendem uma quantidade significativa de cacos de cerâmica
sem decoração, de tamanhos e formatos variados, certamente oriundos de
objetos diversos, alguns de grandes dimensões, além de uma variedade de
artefatos líticos, a maioria confeccionada em diabásio e gabro, mas com
raras peças em quartzo. Esta primeira prospecção, ainda preliminar, revelou
artefatos dispersos na superfície do solo, concentrados em uma área de cerca
de 1.400 m2, a uma altitude de cerca de 140 m, na face sudoeste da ilha.
O sítio foi registrado no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) e será objeto de pesquisas arqueológicas que, espera-se,
venham a esclarecer as inúmeras questões levantadas sobre a importância
e o significado destes vestígios.
Pois foram muitas as perguntas que apareceram junto com os objetos: o
que estas pessoas iam fazer naquela ilha do litoral carioca? Que motivações
as fizeram cruzar quase 10 km de mar aberto? Certamente não eram
moradores da ilha, pois não há na Redonda provisão de água doce. Nem
mesmo bromélias acumuladoras de água como Neoregelia cruenta ou
Alcantarea glaziouana, presentes nas ilhas Comprida e Palmas, existem ali.
Sendo habitantes da orla do Rio de Janeiro e margens de suas lagoas, teriam
estes Tupiguarani sido atraídos pela forte concentração de recursos neste
local, especialmente ovos das aves marinhas que lá nidificam, e coquinhos
da palmeira jerivá (Syagrus romanzoffiana)? Seria este um local ritual? O
arco de curvatura de alguns dos cacos de cerâmica permite supor que eram
recipientes de tamanho compatível com urnas funerárias.
Estes achados arqueológicos são como garrafas lançadas ao mar com mensagens,
mas que não trazem, neste momento, respostas claras a essas perguntas.
A forte inclinação do terreno era um dos principais obstáculos a ser transposto pelos antigos visitantes e, hoje em dia, é um complicador também para os pesquisadores interessados em conhecer os segredos da parte alta da Ilha Redonda, 06/03/12. Foto: Fernando Moraes.
Fragmento de cerâmica na parte alta da Ilha Redonda, 24/08/12. Ao fundo é possível ver o Arquipélago das Cagarras e o Maciço da Tijuca. Foto: Fernando Moraes.
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...revelando-se um extraordinário machado de pedra polida, 13/12/11. Fotos: Fernando Moraes.
A rocha extremamente lisa e parcialmente enterrada chamou a atenção dos pesquisadores no caminho para o cume da Ilha Redonda...
Artefato lítico com depressão central, conhecido como “quebra-coquinho”, Ilha Redonda, 23/08/12. A colocação do coquinho nesta região côncava impede que o mesmo deslize ao ser atacado por outra peça lítica. Foto: Fernando Moraes.
Artefato lítico com depressão central (“quebra-coquinho”), Ilha Redonda, 06/03/12. A utilização da barra de escala na fotografia permite que se visualize o real tamanho desta peça: 17 cm. Foto: Rita Scheel-Ybert.
Cacho de coquinhos da palmeira Jerivá (Syagrus romanzoffiana), típica de algumas ilhas do MoNa Cagarras, Ilha Redonda, 23/08/12. Os diversos “quebra-coquinhos” podem estar relacionados com a abundância deste recurso vegetal, caso se confirme esta função destes artefatos. Foto: Fernando Moraes.
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Perspectivas
Ocupação de ilhas – Um breve históricoIlhas, por suas características territoriais, oferecem desafios à presença de
populações humanas e, mais ainda, ao seu estabelecimento contínuo, em
razão das limitações impostas pela acessibilidade e por características físicas
e ambientais. Fatores como distância e condições de navegabilidade, assim
como o acesso à porção de terra emersa determinam a natureza e a frequência
das atividades humanas em cada local.
A Ilha Redonda, por ser totalmente desprovida de fontes autóctones de água
doce, não pode ter comportado ocupações humanas de longo prazo. Os
numerosos artefatos cerâmicos e líticos lá encontrados, no entanto, os quais
certamente foram para lá transportados, sugerem que a visitação humana é
uma prática antiga e, provavelmente, frequentemente repetida.
Em virtude da ocupação provavelmente episódica da ilha, quiçá de outras ilhas
do entorno, este trabalho não visa discutir sociedades insulares propriamente
ditas, cujo estudo envolve conceitos como maritimidade (conjunto de
práticas existentes, resultantes de uma relação social e simbólica com o mar,
que pode ocorrer ou não em sociedades insulares), insularidade (experiência
de se viver em um ambiente parcialmente isolado, cercando-se da própria
história do local e de seus antigos mitos; forma de se interagir socialmente
dentro de um espaço limitado) e ilheidade (identidade dos habitantes da ilha)
(Diegues, 1998), mas sim sociedades litorâneas que tiveram acesso a ilhas e
delas se aproveitaram de alguma maneira, incluindo-as em sua área de vida e
de captação de recursos.
Estudos de arqueologia insular são raros no Brasil. Ainda assim, um rápido
levantamento bibliográfico demonstra que a ocupação de ilhas no litoral
brasileiro é relativamente comum. No entanto, a imensa maioria dos
sítios relatados se refere a sambaquis, que foram monumentos funerários
construídos com conchas e sedimentos por populações anteriores aos
ceramistas Tupiguarani, as quais ocuparam a costa brasileira entre pelo
menos 8000 e 1000 anos antes do presente (Gaspar, 1996; Lima et al.,
2002 – para mais informações sobre os sambaquieiros, vide Gaspar, 2000 e
Scheel-Ybert et al., 2003).
No Estado do Rio de Janeiro, é bem conhecida a ocupação da Ilha
Grande, onde além de um sambaqui são relatados numerosos conjuntos de
amoladores-polidores fixos espalhados ao longo de todo o litoral da ilha, que
sugerem a existência de centros de produção e de distribuição de lâminas de
machados polidas (Tenório, 2003).
A presença de sambaquis em ilhas é um fato relativamente comum, relatada no
Estado do Rio de Janeiro para ilhas próximas à cidade de Paraty (Tenório, 2003),
em Arraial do Cabo (Tenório et al., 2008), Mangaratiba (Heredia et al., 1984),
na Baía da Ribeira, em Angra dos Reis (Andrade-Lima, 1995), no Arquipélago
de Santana, em Macaé (Andrade-Lima, 1995). No Estado de São Paulo,
a ocupação em ilhas por sambaquieiros é conhecida desde o final do século
XIX, destacando-se os sambaquis insulares de Itanhaém, Cubatão e Guarujá
(Calixto, 1904; Ihering, 1904; Guidon & Palestrini, 1962; Duarte, 1968; Figuti,
1992), de Ubatuba (Figuti, 1993; Nishida, 2001; Amenomori, 2005) e das ilhas
do Cardoso, de Cananéia e Comprida (Uchoa, 1978/79/80; Uchôa & Garcia,
1979; Calippo, 2004). No Estado de Santa Catarina, são relatados numerosos
sambaquis para a Ilha de Santa Catarina e ilhas adjacentes (Tiburtius &
Bigarella, 1953; Rohr, 1959, 1961; Beck, 1971; Duarte, 1971; Fossari et al., 1987,
1988, 1989 apud Tenório, 2003; Amaral, 1995), existindo registros também para
os Estados do Paraná (Bigarella, 1959) e Bahia (Calderon, 1969, 1974).
Segundo Nishida (2001), os registros de ocupação das grandes ilhas mais
próximas ao continente apresentam cronologias entre 5000 e 3000 BP, ao
passo que as ilhas menores e/ou mais afastadas do litoral registram idades de
menos de 3000 anos BP.
Registros da ocupação pré-histórica de ilhas por grupos ceramistas, por sua
vez, são mais raros. No Rio de Janeiro, no interior da Baía de Guanabara, a
presença de grupos Tupiguarani foi identificada na Ilha de Paquetá (Buarque,
2009) e na Ilha das Cobras (Neme & Rabello, 1995).
Na Ilha Grande, quatro cacos pertencentes a um mesmo vasilhame
associado à tradição tupiguarani foram encontrados na superfície
do sambaqui Ilhote do Leste (Tenório, 2003). Relatos de cronistas
e historiadores indicam que na época da chegada dos europeus a Ilha
Grande era ocupada, ou pelo menos visitada, por grupos indígenas
Tupinambá (Knivet, 1875, 1947; Staden, 1968; Souza, 1971; Thevet,
1978; Lery, 1980; Capaz, 1988; Nesi, 1990).
O pouco conhecimento que se tem da ocupação de ilhas por grupos
Tupiguarani, especialmente se comparada aos inúmeros registros de sambaquis
conhecidos, se deve principalmente a uma falta de investimento no estudo
destes grupos, cujo registro na paisagem é muito menos conspícuo que os
sambaquis. Relatos de cronistas e historiadores são claros em afirmar a extrema
habilidade dos nativos como remadores e seu intenso domínio da paisagem,
tanto do litoral quanto em ilhas (Staden, 1974, 1979; Gandavo, 1980).
O desenvolvimento de um projeto de estudo arqueológico que vise a
identificação e o conhecimento das áreas de atividade humana na Ilha Redonda
e no Arquipélago das Cagarras pode representar uma importante contribuição
para o entendimento de aspectos pouco conhecidos da pré-história. A partir da
prospecção e do estudo arqueológico dos sítios e dos materiais coletados, será
possível avançar na compreensão do significado e implicação desta atividade
no contexto da vida e das motivações destes visitantes.
Espera-se avançar também no que se refere à cronologia destes eventos.
Pouco se pode dizer até o momento, pois grupos Tupiguarani ocuparam a
costa do Estado do Rio de Janeiro por um longo tempo, havendo registros
que vão desde cerca de 3000 anos antes do presente, no município de
Araruama (Scheel-Ybert et al., 2008), até a época do contato com os
europeus (Buarque, 2009).
Independentemente de qual tenha sido sua duração no tempo, a frequentação
pré-colonial desta ilha pode estar associada à forte concentração de recursos,
cuja disponibilidade (ovos, aves, frutos de palmeiras - especialmente Syagrus
romanzoffianum - e pesca) é consideravelmente maior em termos de biomassa
do que a de uma área equivalente localizada no continente. Não se pode,
no entanto, descartar razões cerimoniais ou rituais, as quais inclusive podem
estar intrinsecamente relacionadas às razões econômicas, e que são sugeridas
pela presença de artefatos líticos não imediatamente relacionáveis com
atividades de coleta, como uma mão de pilão e grandes cacos de cerâmica -
provavelmente fragmentos de urnas.
A investigação das razões para tal prática e da função dos artefatos encontrados
no local são de grande importância para uma melhor compreensão do modo
de vida de populações que habitaram o litoral do Rio de Janeiro antes da
colonização europeia. Além de sua inegável importância intrínseca, as
evidências arqueológicas encontradas na Ilha Redonda realçam ainda mais o
alto valor do Monumento Natural das Ilhas Cagarras, que guarda inestimáveis
riquezas biológicas, mas também informações preciosas sobre o passado da
história humana, em particular dos antigos habitantes da orla carioca.
Cacos de cerâmica espalhados sobre o solo da parte alta da Ilha Redonda, 06/03/12. As marcas brancas são fezes das aves marinhas. Foto: Rita Scheel-Ybert.