capitulo 1. renascimento e humanismo

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  RENASCIMENTO  E HUMANISMO:  O IDEAL EXPANSIONISTA  PORTUGUÊS P AULO REIS 1  Este texto busca uma reflexão acerca da questão da emergência do Estado moderno português como parte importante do processo de constituição do Renascimento europeu. A expansão marítima criou um tipo novo de homem: os navegantes ou mareantes. Estes homens práticos do mar foram os principais agentes de transformação da cultura ibérica e, por conseguinte, europeia. A ampliação e complexificação dos espaços físicos e mentais são a chave deste processo histórico. O descobrimento do Brasil coloca-se como paradigma, que deve ser estudado e entendido não apenas em si, mas como elemento importante neste longo processo de transformação da sociedade medieval para a modernidade. 1  Professor da Universidade Estácio de Sá e membro do Laboratório Observatório de Estudos Sobre o Rio de Janeiro/FND/UFRJ

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Primeiro capitulo do livro organizado pelo Historiador Paulo Reis. Trata-se de uma coletânea de textos sobre a História do Brasil.

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  • RENASCIMENTO E HUMANISMO: O IDEAL EXPANSIONISTA PORTUGUS

    PAULO REIS1 Este texto busca uma reflexo acerca da questo da emergncia do Estado moderno portugus como parte importante do processo de constituio do Renascimento europeu. A expanso martima criou um tipo novo de homem: os navegantes ou mareantes. Estes homens prticos do mar foram os principais agentes de transformao da cultura ibrica e, por conseguinte, europeia. A ampliao e complexificao dos espaos fsicos e mentais so a chave deste processo histrico. O descobrimento do Brasil coloca-se como paradigma, que deve ser estudado e entendido no apenas em si, mas como elemento importante neste longo processo de transformao da sociedade medieval para a modernidade. 1 Professor da Universidade Estcio de S e membro do Laboratrio Observatrio de Estudos

    Sobre o Rio de Janeiro/FND/UFRJ

  • 1. REVOLUO DE AVIS: A VITRIA DA RAIA MIDA E O PROJETO DE ESTADO MODERNO PORTUGUS. A Histria da Cultura, do Conhecimento e dos saberes eruditos na Europa confunde-se com a Histria do processo de constituio/centralizao do reino de Portugal, que, dos sculos XII-XIV, conquistou sua autonomia poltica na, islamizada, Pennsula Ibrica, foco do desenvolvimento de um tipo de pensamento erudito inovador. JOS MATTOSO trabalhou a ideia de um processo de constituio de diversos saberes eruditos, em Portugal, a partir do movimento de autonomia poltica frente ao poder andaluz2 e ao poder castelhano. Somente com a consolidao da Reconquista Crist da Pennsula Ibrica podemos falar, de fato, em uma poltica sistemtica de fomento dos saberes, pelo menos por parte do Poder Rgio lusitano. Por outro lado, a Igreja crist, no perodo circunscrito entre o conclio de Toledo (527) e o conclio de Latro III (1179), teve como uma de suas principais polticas a instituio de escolas nos mosteiros, nas abadias e nas catedrais. Esta poltica teve papel preponderante na formao de uma rede escolar crist na Pennsula Ibrica, especialmente, em Portugal. Foi dada nfase a esta regio, justamente, por ser uma rea de contato mais imediato entre a cultura andaluza e a cultura crist. Formao do territrio portugus

    Mapa da Peninsula Ibrica ocupao islmica Mapa da Pennsula Ibrica perodo romano

    Segundo Jos MATTOSO, estas regies reconquistadas foram progressivamente ocupadas por mosteiros que emergiram como espaos privilegiados de produo e circulao dos saberes eruditos de tipo renovador. Foi no interior destes espaos, atravs dos ensinamentos de beneditinos, cluniacenses, cistercienses e franciscanos, que se constituiu uma verdadeira 2 Al Andaluz o nome dado parte da Pennsula Ibrica que foi conquistada pelos islmicos

    entre 711 e 1492. H uma srie de hipteses que cercam as origens etimolgicas de Al Andaluz; contudo, a ideia hegemnica est na nomenclatura dada pelos vndalos no perodo da conquista da regio romana da Batica entre 409-429 .

  • rede escolar que serviu de base para o desenvolvimento de uma Cultura erudita renovadora em Portugal. Os homens e os espaos privilegiados de produo e circulao destes saberes eruditos so os nossos protagonistas nesta Histria da emergncia do Estado Moderno portugus, cujo motor se encontra no ideal expansionista dos descobrimentos martimos. A partir destas colocaes teceremos, ao longo deste captulo, algumas reflexes acerca da emergncia do intelectual luso, que surgiu atrelado Igreja e ao Poder Rgio, em uma regio de fronteira cultural e que, por consequncia, ganhou contornos mais conservadores que o diferenciou dos demais eruditos europeus. Foi esta herana cultural que proporcionou ao homem lusitano a capacidade de transformao de suas concepes de mundo e de universo, ratificadas pelo pragmatismo das cincias fsico-matemticas.3 2. A CONSTITUIO DO ESTADO MODERNO

    Portugal constitui-se como o primeiro exemplo de Estado Moderno (com governo centralizado e estrutura poltica, administrativa e econmica bem definida) a partir da Revoluo de Avis (1383-1385), que se caracterizou pela vitria da raia mida (burguesia citadiana). A resultante desta revoluo foi uma poltica de Estado, cujo cerne estava no estabelecimento de estruturas administrativas e sociais que proporcionaram os devidos avanos da burguesia, que assumiu como vanguarda do Estado Moderno Portugus. Seus desejos foram contemplados pelo poder rgio ao instituir as polticas necessrias para o fomento do lucro incessante. Portanto, o Estado Moderno portugus ligou-se, prematuramente, burguesia mercantil citadina que lhe deu estes contornos que diferenciaram os lusitanos dos demais europeus do quatrocentos. Este lucro advm dos diversos processos de troca de mercadorias estabelecidas atravs das rotas comerciais, em reestruturao desde o sculo XIV. Da a busca por novos mercados e produtos que caracterizam assim, a expanso martima lusitana. No coincidncia ou acaso que o primeiro passo da Expanso Martima Portuguesa deu-se no governo de D. Joo I, o Mestre de Avis, em 1415 com a tomada da cidade mercantil de Ceuta (Norte da frica). Assim, o povo lusitano se descobriu como conquistador do Atlntico e do ndico. Assenhoreou-se, nos sculos XV-XVI, dos mundos novos, que se descortinavam diante dos olhos estupefatos dos cristos, que s conheciam estas maravilhas dos relatos de viagens fantsticas, atravs da descrio de 3 Nomeio como cincias fsico-matemticas: Geometria, Aritmtica, Astronomia e Msica. Estes

    saberes eruditos faziam parte do quadrivium dos cursos de Artes das universidades europeias medievais.

  • Marco Plo do reino de Cipango (China), do mito do reino cristo oriental de Preste Joo, dos relatos cruzadsticos e dos contos e fbulas de tradio arbico-islmica, que circulavam pela Pennsula Ibrica desde o sculo VIII, como As Mil e Uma Noites e as Disciplinas Clericais.4

    Vista por este ngulo, a conquista ultramarina lusitana transps o carter meramente mercantil; foi de fato, uma srie de descobertas que extrapolaram a esfera econmica alocando-se no campo do imaginrio cultural. S foi possvel este movimento transformador, por conta das questes materiais e mentais colocadas neste reino cristo a partir de sua prpria conquista e centralizao poltico-territorial e filosfico-cultural. Fez-se o reino e com ele os homens de grande cabedal erudito. Neste longo caminhar lusitano rumo modernizao do Estado, o sculo XVI foi por excelncia o sculo portugus, porque foi o sculo da hegemonia martima lusitana, e o reinado de D. Joo III, o Piedoso (N.1502-R.521-F.1557), constituiu o pice da magnificncia do domnio territorial e cultural deste povo ocenico. Porm, dentro deste processo de modernizao do reino, que se transformou em Imprio Ultramarino, esto algumas das principais linhas de fora que se colocaram antagonicamente e que hegemonizaram os debates acerca das diretrizes polticas e filosficas de Portugal para os sculos subsequentes. Portanto, D. Joo III passou para a Histria como o rei que promoveu a primeira grande reforma da Universidade de Portugal/Coimbra (1537) e criou o Colgio das Artes (1547). Ao mesmo tempo permitiu a instaurao do Tribunal do Santo Ofcio (1536), em terras portuguesas, e foi o responsvel direto pela entrada da Companhia de Jesus em Portugal (1540) e seus domnios no ultramar, o que significou, na prtica, a reestruturao do pensamento escolstico nos domnios lusitanos, alm de uma nova maneira de se olhar e explorar as conquistas territoriais. A chamada nova escolstica estruturou-se a partir de uma verdadeira releitura da filosofia de Santo Toms de Aquino, que buscou conciliar as correntes filosficas do naturalismo (racional e pragmtico) e do conceitualismo (ideolgico e mgico), isto , a F iluminada pela Razo. Os maiores representantes desta corrente de pensamento foram os jesutas, elemento estruturante da ltima fase da Expanso Martima: a colonizao. Portanto, o homem moderno em Portugal, se estruturou dentro de determinados paradigmas socioculturais e poltico-econmicos que fizeram do ibrico no sentido lato da palavra um homem pragmtico, que se diferenciou, dos demais da Europa, ao romper o Bojador em busca de riquezas e da disseminao da f crist. Este foi o principal fator que permitiu as condies objetivas e necessrias para a concretizao definitiva do 4 As Disciplinas Clericais (Contos Clericais) so um conjunto de obras literrias (contos e

    fbulas) de origem islmica que foram traduzidas para o latim por um cristo-novo chamado Pedro Afonso, no sculo XII.

  • processo de centralizao poltica e econmica precoce de Portugal frente aos outros estados europeus. 3. OS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES: NOVOS MUNDOS, NOVOS SABERES E NOVOS HOMENS Ao falarmos dos avanos cientfico-tecnolgicos e econmico-sociais nos sculos XV e XVI, logo remetemos ao senso comum das grandes navegaes. Mas haveria esta epopeia ibrica rumo costa africana e, posteriormente, s exticas ndias Orientais e o achamento de um novo continente (Amrica) se no houvesse as condies objetivas e necessrias para este processo de transformao dos homens e das sociedades europeias. A resposta para esta questo encontra-se no Renascimento. Movimento ocidental e geral que conduziu a Europa a um processo singular de transformao da maneira de ver e sentir as coisas. Humanismo, Classicismo e Individualismo fizeram parte deste processo que foi mais intenso nas pennsulas itlica e ibrica, esta ltima, nosso foco de anlise.

    OS TRS PILARES DO RENASCIMENTO

    Humanismo

    O homem como centro do mundo. O Teocentrismo superado pelo Antropocentrismo, que revela um novo homem que senhor de si e do mundo. No a morte de Deus, contudo uma redimenso cujos valores e atributos foram recolocados e reinterpretados (Deus feito a imagem e semelhana do homem).

    Classicismo

    A releitura dos antigos eruditos gregos e romanos. Arquitetura, artes, cincias e filosofia so colocados a partir de interpretaes cujo paradigma est na Antiguidade Clssica.

    Individualismo

    Capacidade de interpretar as coisas e o mundo que cercam o europeu trecentista. Individualismo e singularismo so pressupostos desta nova sociedade que matematiza, racionaliza o cotidiano vivido em sua plenitude.

    Portanto, nossas preocupaes, neste momento, direcionam-se para o entendimento das questes objetivas que fizeram da Pennsula Ibrica, mais precisamente de Portugal, o centro de um tipo de pensamento diferente, inovador e revolucionrio que teve como marca a transladao do pensamento cientfico medieval para o pensamento cientfico da modernidade que se agua nos chamados Descobrimentos martimos. Os Descobrimentos martimo-portugueses ligam-se, portanto, ao processo de mudana da concepo qualitativa e hierarquizadora da filosofia

  • mstico-religiosa medieval para a concepo quantitativista e horizontalizadora do humanismo europeu e da prxis da marinharia lusitana.

    Desde provavelmente o sculo XI, de meados do XII o mais tardar, do Guardalquivir s costas da Mancha e setentrional Irlanda, as populaes instalam-se ribeirinhas do mar, de todas as desembocaduras de rios, baas ou reduzidas abras fazendo portos para a navegao que na continuidade de modestas atividades pescaresas e outras ou emprios mercantis muulmanos, tece, entre esses primrdios e o sculo XIV, um complexo de rotas e circulaes: o ferro de Biscaia, o estanho de Cornualha, o sal de Andaluzia, Setbal, Tejo, Aveiro, Brouage e costa bret, os vinhos andaluzes, portugueses, bordaleses, as ls de Castela e Velha, Gales e Midlands, o linho da Irlanda e Minho, o pescado de todos esses ncleos, a construo naval que as madeiras cantbricas e das Landes e de outras regies mantm ativa. (Vitorino Magalhes apud GODINHO, p. 69).

    A Europa do sculo XI ao sculo XIII passou por um processo de revitalizao de suas rotas comercias de longo curso, que proporcionaram por um lado a emergncia do intelectual tradicional5 que se ligou estrutura burocrtico-administrativa do Clero, das cidades e dos reinos e, por outro lado, a emergncia do homem prtico em Portugal, como tipo sociolgico novo, que se ligou ao desenvolvimento dos saberes pragmticos circunscritos na navegao e no comrcio de longo curso. Luis Felipe BARRETO situa a discusso acerca da emergncia dos saberes cientfico-tecnolgicos na Pennsula Ibrica como parte inerente do processo dos Descobrimentos martimos que foram, hegemonicamente, portugueses. A abertura do mundo, a cosmoviso europeia acerca do orbe terrestre, a partir da nova Cartografia pautada nos relatos dos marinheiros e dos estudos astronmicos de Nicolau Coprnico (N.1473-F.1534), contribuiu decisivamente para o desenvolvimento dos chamados saberes do mar. A revoluo copernicana demonstrou uma inovadora maneira de olhar o mundo e o universo. O heliocentrismo foi muito alm da questo acerca da organizao dos corpos celestiais, foi de fato um dos pontos de ruptura entre a mentalidade mstico-religiosa medieval para a mentalidade emprico-naturalista do Renascimento. Praticamente todos os campos dos saberes eruditos sofreram de uma maneira ou de outra as influncias desta mudana de percepo como nos revela o Quaderni de Leonardo da Vinci ou a afirmativa de Duarte Pacheco Pereira no livro Esmeraldo de Situ Orbis, A experincia madre de todas as cousas. 5 Utilizamos o conceito de intelectual tradicional a partir das reflexes feitas por Antnio

    Gramsci acerca da caracterizao feita sobre o intelectual e suas intervenes no meio social. Cabe salientar que Gramsci buscou analisar o intelectual a partir de duas dimenses distintas: 1. o intelectual de tipo tradicional aquele de formao erudita que no se liga necessariamente a uma classe social predeterminada; 2. o intelectual orgnico, emerge das reentrncias da classe social a qual faz parte, caracteriza-se pela capacidade de mobilizao e representatividade frente aos seus pares sociais, exercendo papel de dirigente .

  • A Matemtica ergueu-se como a cincia precpua da longa revoluo erudita europeia circunscrita entre os sculos XIII-XVIII. Alfred CROSBY aproxima-se de BARRETO ao analisar o processo de mensurao da realidade na Europa entre os sculos XIII-XVIII para justificar a emergncia do pensamento quantitativista e fsico-racional dos intelectuais ligados a um tipo de humanismo6 prprio dos Descobrimentos7 que foi um dos fatores preponderantes para o desenvolvimento dos chamados saberes do mar, isto , todo tipo de conhecimento desenvolvido pelos marinheiros portugueses ou a servio de Portugal. A partir deste perodo, segundo CROSBY, h uma mudana qualitativa no processo de encadeamento do pensamento lgico do homem europeu que passou a matematizar (quantificar) o mundo e as coisas que o cercavam. A utilizao prtica dos conceitos matemticos no cotidiano das cidades europeias possibilitou uma virada na concepo da realidade concreta do homem medieval. Foi a partir desta utilidade dada a conceitos abstratos que o comrcio, gesto pblica das cidades, artes, engenharia, arquitetura, contabilidade, ofcios e artes mecnicas (marcenaria, carpintaria, olaria, entre outros), transformaram-se em mecanismos de legitimao do discurso humanista do Renascimento. Portanto, o homem foi individualizado, ganhando materialidade ao tomar o lugar de Deus que era um ser coletivizado e idealizado pelo discurso da Igreja crist medieval. No h o fim da crena em Deus, contudo o homem passou a racionalizar a imagem de Deus ao retirar as questes mgicas e idealizadas. Portugal destacou-se no Renascimento europeu, precisamente, por utilizar, de maneira mais racional e prtica, a herana intelectual deixada pela cultura andaluza, que foi explicitada no processo de transladao deste conhecimento a partir do circuito de tradues e posteriores publicaes destes saberes eruditos no sentido de constituio de uma fronteira cultural. Os Descobrimentos ibricos derivam, em grande parte, deste processo de mensurao da realidade concreta europeia no que GODINHO chamou de passagem da utopia para a realidade, isto , a Europa passou por um processo de mudana da concepo estruturante do conhecimento cientfico, 6 Humanismo - Humanismo dos Descobrimentos caracteriza-se pela relao do homem com a

    Natureza nestes novos espaos atravs de um ceticismo que se converteu em criticismo. 7 Descobrimentos - Para os portugueses Descobrir era o mesmo que traar uma rota, chegar a

    um determinado lugar de maneira racional a partir do uso de aparelhos de medio e localizao, alm de mapas que eram confeccionados para este fim. Descobrir tambm significava: renomear, tomar posse de algo, explorar de maneira sistemtica, tornar determinado lugar conhecido na Europa. Ex. Vasco da Gama descobriu o caminho para as ndias.E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que ns podamos saber, por irmos na nossa viagem. Carta de Caminha ao Rei D. Manuel.

  • que se encontrava no campo mstico e terico na medievalidade, passando assim, no Renascimento, para uma concepo prtico e experiencial. Constitui-se uma nova epistemologia do saber8 que se torna clara no processo de montagem de um mercado consumidor de livros que proporcionou os avanos nas tcnicas de impresso e no mercado editorial, como exemplos os tipos mveis de Gutenberg (1450) e os impressores italianos que reinventaram, concomitantemente, o livro e o pblico leitor como afirma Peter BURKE. Esta mudana conceitual do conhecimento como algo til e necessrio para as sociedades insere-se neste processo de abertura da Europa aos mundos novos proporcionados, em grande parte, pelos Descobrimentos ibricos. Portanto os Descobrimentos ibricos esto inseridos na vanguarda do processo de modificao e transformao intelectual europeia que dos sculos XV ao XVII viveu profundas mudanas que resultaram em novos rumos e perspectivas econmico-administrativas e socioculturais, que fez da Europa o centro econmico e cultural do mundo ao exercer a hegemonia destes campos a partir do sculo XVIII.

    Derrubando mitos: Sobre a esfericidade da terra

    A ideia de que o mundo esfrico no nova e nem foi concebida durante o processo das grandes navegaes ibricas. No foi Colombo e nem Vasco da Gama que concebeu esta ideia. Tales de Mileto (624 546 a.C), matemtico e astrnomo grego, concebeu a ideia de que a Terra era um disco plano cercado de gua (de acordo com a tradio da Astronomia egpcia). Pitgoras de Samos (572 497 a.C), igualmente matemtico e grego, concebeu a ideia da esfericidade da Terra, da Lua e de outros corpos celestes. A esfera o nico objeto geomtrico perfeito, sem ngulos ou distores; portanto, a Terra alm de ser um disco tambm esfrica e no chata. Dentro desta tradio destaca-se tambm Claudius Ptolomaeus (85 d.C 165 d.C). No se tem certeza se ele era egpcio ou romano, contudo sua influncia na astronomia ocidental imensa, suas principais ideias esto contidas no Almagesto (conjunto de 13 volumes sobre astronomia). O sistema ptolomaico utilizado por todos os grandes cientistas e navegadores europeus at o sculo XVI, com a confeco de mapas-mndi a partir dos descobrimentos ibricos. O oriente tambm produziu seus astrnomos e seus mapas-mndi. Segue um mapa confeccionado por chineses entre 1421-1423. H uma srie de especulaes acerca de mapas chineses terem servido de modelo para confeco de mapas europeus antes mesmo dos Descobrimentos ibricos.

    8 Teoria da filosofia da cincia, do conhecimento; seu estudo crtico. [Diz-se por crtica e

    criteriologia.] // F. gr. Episteme (cincia) + logos (tratado) + ia. Cf.

  • Mapa de Zheng He 1421-1423 expe uma viso diferenciada do orbe terrestre, colocando a sia acima e o Oceano Pacfico no centro, diferente do planisfrio europeu, que pe a Europa acima e o Oceano Atlntico no centro.

    4. A EMERGNCIA DO HOMEM PRTICO EM PORTUGAL A genealogia do processo dos Descobrimentos ibricos encontra-se na conjuntura de crise europeia derivada da longa depresso do sculo XIV e incio do XV: a Peste Negra, a Grande Fome e a Guerra dos Cem Anos, juntas, provocaram o extermnio de aproximadamente 1/3 da populao europia. As reas cultivadas foram drasticamente reduzidas e as populaes campesinas afluram para as cidades. Somente a partir de meados do sculo XV que ocorreu uma inverso desta tendncia de contrao da economia, tendo como motor impulsionador o advento da expanso martima ibrica, que no foi o nico fator, mais por certo foi preponderante nesta recuperao mental e econmica europeia como enfatiza GODINHO ao afirmar que,

    A desocultao do oculto, a ligao do desligado exigiram uma nova ferramenta mental e uma nova prtica que a palavra experincia consubstancia: de certo antes j muito empregada mas agora revestindo-se de novo sentido.

    A mxima de Duarte Pacheco Pereira A experincia madre de todas as cousas fundamental para a compreenso desta maneira inovadora de ver e sentir as coisas; o homem portugus deu novo sentido ao pragmatismo chartrense de Roger Bacon (1214-1292) ao colocar as viagens cientficas

  • como fator preponderante para o desenvolvimento destes saberes eruditos e dos Descobrimentos. A expanso martima lusitana foi, portanto, um movimento essencialmente tcnico-cientfico em que prevaleceu o acmulo de experincia. Surge no bojo desta discusso o homem prtico em Portugal, que soube conjugar o conhecimento emprico e historicamente construdo com a necessidade de romper as fronteiras naturais que separavam a Europa do resto do mundo conhecido e/ou por ainda conhecer. O esprito de aventura e ousadia consubstanciado lgica e racionalidade deste homem prtico lusitano. Este movimento portugus s foi possvel a partir da Revoluo de Avis que consolidou o ideal empreendedor do homem moderno lusitano, como observamos no incio deste captulo. Os Descobrimentos martimos portugueses, segundo GODINHO, perfizeram trs momentos distintos que se complementaram ao revelar o ideal da conquista mercantil lusitana dentro desta concepo de valorao do concreto, isto , a experincia e a prtica superaram a especulao e reflexes axiomticas da escolstica medieval que no desapareceu, mas refundou-se no Conclio de Trento. 4.1. OS TRS ESPAOS DA EXPANSO MARTIMA PORTUGUESA A. O Noroeste africano e ilhas ocenicas: a explorao atlntico-litornea O perodo circunscrito entre 1415-1450 teve por caracterstica a hegemonia do ideal cruzadstico de domnio sobre o infiel (islmico) e sua cultura, que estava incrustada no Noroeste africano desde o sculo VII. O cerne da lgica expansionista lusitana estava na explorao mediterrnico-atlntica que abarcava o Magreb (Norte da frica) e as ilhas ocenicas. A tomada da praa mercantil, moura, de Ceuta em 1415, foi o marco inicial deste perodo, abrindo para Portugal duas dimenses, no processo do empreendimento martimo, que se entrecruzaram no desenvolvimento histrico-social deste reino sacralizado pela Igreja e pela f do povo lusitano: a mercancia e a religio.

    A mercancia: Ceuta era um dos principais entrepostos comerciais da regio do Magreb, por conseguinte havia a possibilidade de obteno de altos lucros a partir da comercializao de especiarias vindas de vrias partes do interior da frica que tradicionalmente abastecia os mercados europeus. A afirmao da f crist sobre os infiis: Ceuta foi a principal base de assalto islmico para a Pennsula Ibrica. Desta cidade saiu a primeira expedio de ocupao da Europa em 711, por esta razo sua derrocada tornou-se o smbolo da supremacia blica e religiosa da civilizao crist sobre a islmica.

  • Para a concretizao destes dois ideais (comrcio e f), as cincias fsico-matemticas foram essenciais neste priplo cristo. Houve em Portugal a propagao de um conhecimento tcnico-cientfico ligado s cincias pragmticas a partir de determinados espaos organizados por burgueses ou gente ligada burguesia e, por conseguinte, aos empreendimentos comerciais. Estes espaos de produo e circulao destes saberes eruditos foram constitudos fora do ciclo universitrio, confirmando a hiptese de Simon SCHWARTZMAN de um desenvolvimento das cincias pragmticas em determinados espaos constitudos para este fim e com os devidos apoios clericais e rgios. A vanguarda portuguesa nos Descobrimentos deu-se, em boa parte, por conta deste processo de constituio de espaos destinados, exclusivamente, ao desenvolvimento dos saberes tcnico-cientficos, cabendo destacar a chamada Escola de Sagres (1418) como principal centro de desenvolvimento dos saberes do mar. LUIZ CARLOS SOARES chamou a ateno para a questo de que Sagres no produziu uma cincia inovadora ou revolucionria; na verdade foi um centro de aprimoramento de tcnicas e instrumentos nuticos alm da confeco de mapas, cartas nuticas e tabelas astronmicas. Este centro de ensino e pesquisa, organizado pelo infante D. Henrique (N.1394-F.1460), foi um espao privilegiado de produo e circulao dos saberes eruditos de cunho experiencialista9, responsvel por boa parte do sucesso dos intelectuais portugueses ou a servio da monarquia lusa no empreendimento da expanso martima. Cabe destacarmos que este processo secular de constituio destes espaos de sociabilizao dos saberes eruditos, ligados s cincias pragmticas, ocorreu concomitantemente ao processo de constituio do humanismo portugus entre os sculos XIV-XVI. Contudo, HOLANDA coloca que o movimento erudito da expanso martima portuguesa no pode ficar restrito a Sagres ou a D. Henrique, o que temos de fato um movimento coletivo capitaneado pelo Estado, principalmente durante a regncia de D. Pedro entre 1440-1448, perodo compreendido como o mais frtil da empresa lusitana, alm de ser o da reestruturao do ideal expansionista. 9 Termo ou conceito cunhado por Luis Felipe Barreto para a questo do processo de mudana

    da concepo expancionista lusitana. Os chamados saberes do mar ou da marinharia eram obtidos a partir de observaes feitas no cotidiano das viagens realizadas pelos navios portugueses, isto , os regimes de vento e mar, as profundidades do mar, os contornos do litoral, emprego de aparelhos novos ou renovados, melhorias do velame e cascos das naus entre outras coisas eram obtidas atravs desta experincia cotidiana destes navegadores.

  • B. A ROTA DO CABO: PORTUGAL E O ORIENTE Circunscreve-se entre 1450-1520, basicamente durante os reinados de D. Joo II, o Perfeito (1481-1495), D. Manuel I, o Venturoso, (1495-1521), houve uma virada nas concepes da expanso portuguesa. A nfase passou dos ideais de propagao e afirmao da f crist sobre os infiis para a realizao do comrcio com as ndias orientais como acentuou GODINHO. Entretanto, o ideal cruzadstico de propagao da f no acabou, continuou de forma mais tnue. A caravela portuguesa (Caravelo)10 que data de 1440-1450, a vela triangular11 ou latina e os progressos com a artilharia instalada a bordo das embarcaes foram as grandes inovaes que proporcionaram a navegao de longo curso, juntamente com uma srie de aparelhos inventados ou transformados/adaptados para a arte da marinharia, alm dos estudos cartogrficos e astronmicos que ganharam um status de cincias utilssimas navegao. Estas inovaes e invenes tiveram papel preponderante para o desenvolvimento desta nova concepo da empresa martima e mercantil ibrica que deixou de ser costeira transformando-se em ocenica.

    Representao da caravela portuguesa do sculo XV uso da vela triangular ou latina

    Representao do Dhow islmico

    Para GODINHO no se trata ainda de uma experimentao cientfica stricto sensu aos moldes dos sculos XVII e XVIII (Ps-Revoluo Cientfica 10

    Caravela Portuguesa: origina-se de um processo de adaptao de embarcaes utilizadas por muulmanos para navegao em golfos e mediterrneos. 11

    A vela triangular ou latina significou uma verdadeira revoluo na arte de navegar europeia, sua origem encontra-se no velame usado por embarcaes muulmanas como o Dhow. Seu formato permite que ventos tangenciais sejam usados para impulsionar a nau para frente.

  • inglesa), mas de uma explorao sistemtica em que a exatido da Matemtica cumpriu seu papel de racionalizadora das Descobertas ao confrontar a observao in loco aos mitos e tradies fantsticas e seculares da Europa. A cartografia dos descobrimentos (emprica e experiencial) toma o lugar da cartografia mtica (mgica e imaginativa). Segundo BARRETO criou-se uma cultura manuscrita da observao dos ventos e correntes martimas, das funduras e recifes, da medio da altura da estrela polar para determinar a posio das embarcaes mesmo afastadas da costa.

    Aprofundando o conhecimento: Como os portugueses navegavam?

    Os portugueses desenvolveram sua prtica nutica, basicamente com a experincia organizacional de navegadores genoveses e com as tcnicas muulmanas de orientao astronmica, utilizando para isto aparelhos como o astrolbio, bssola, sextante, quadrante entre outros. Um exemplo prtico destas influncias a medio do ZNITE.

    MEDIO DO ZNITE

    Para situar um astro no cu, seja ele o Sol, a Lua, ou qualquer planeta ou estrela, precisa-se indicar apenas duas coordenadas: Altura e Azimute. So estas coordenadas que davam a localizao das embarcaes lusitanas no mar.

    1. Altura o ngulo que a direo com que vemos o astro faz com o plano do horizonte. Vai de 0 a 90. Note-se que esta altura um ngulo, medido no sentido dos ponteiros do relgio, e o seu valor vem, por isso, dado em graus. A altura pode ser medida com um astrolbio.

    2. Azimute o ngulo que a direo do astro, marcada no cho, faz com a

    direo do Norte no mesmo plano do horizonte, medido tambm no sentido dos ponteiros do relgio. Vai de 0 a 360. O azimute pode ser medido tambm com uma bssola.

    Representao de um Astrolbio medindo o

    Znite Representao da medio do Znite

  • Os navegadores portugueses eram homens prticos e dedicados ao experimento, capazes de realizar viagens para medio das latitudes necessrias para a navegao por alturas ou para a notao dos contornos de uma ilha ou do litoral africano e, posteriormente, asitico e americano. O priplo martimo portugus revelou um novo homem que se ligou ao mar de maneira racional, pragmtica e sistemtica.

    C. A EXPANSO PARA O EXTREMO ORIENTE AT MACAU E A EXPLORAO DO NOVO CONTINENTE (AMRICA) Circunscreve-se entre 1520-1580, considerado o perodo final da expanso martima portuguesa, quando temos a concretizao do comrcio com as ndias orientais, o alargamento dos horizontes das Descobertas com as primeiras expedies ao extremo oriente at a China e o Japo e a explorao sistemtica do novo continente: Amrica. Em linhas gerais, este perodo circunscreve-se entre a constituio do Imprio da Pimenta12 at o domnio espanhol sobre Portugal ao qual a historiografia denominou de Unio Ibrica.

    DERRUBANDO MITOS: O TRATADO DE TORDESILHAS (1494)

    Foi o primeiro acordo feito entre dois monarcas sem a participao da Igreja crist (Papado). Ao analisarmos este tratado ficam bastante claras as intenes dos portugueses em consolidar a rota das especiarias, antes mesmo da chegada de Vasco da Gama em Calicute (Mapa do tratado de Tordesilhas e o anterior fazer comparao).

    Vimos neste captulo o grande acmulo de conhecimento sobre cartografia, astronomia e que os portugueses detinham mapas-mndi e relatos de circunavegao realizados por navegadores orientais. Ao analisarmos o Tratado de Tordesilhas, percebemos a nfase dada pelo portugus em fixar como ponto divisrio um semimeridiano que fica a 370 lguas da ilha de Cabo Verde (46 37 a Oeste do meridiano de Greenwich) que permite a posse de parte do litoral da Amrica, o continente Africano, praticamente toda a sia incluindo as ilhas Molucas, fonte das especiarias. Para os castelhanos, sobrava a Amrica (no se sabia da real dimenso do continente) e todo o Oceano Pacfico e uma pequena poro da sia (como no se sabia ao certo o tamanho deste continente tornava-se impossvel precisar as possesses castelhanas).

    A principal caracterstica deste perodo a concretizao do poder da Companhia de Jesus no processo de conquista cultural e ideolgica destes novos territrios. A nova escolstica capitaneada pelos irmos da Companhia 12

    Esta nomenclatura utilizada para denominar o perodo circunscrito entre a descoberta do caminho para as ndias orientais aos princpios do sculo XVII. Neste perodo, a nfase comercial lusitana estava no comrcio com as ndias orientais.

  • de Jesus13 ligou-se intimamente com as cincias pragmticas, sendo introdutores destes saberes eruditos nestas novas terras, como veremos no prximo captulo para o caso da Amrica portuguesa.

    13

    Companhia de Jesus: ordem religiosa militarizada. Surge em meio aos debates do Conclio de Trento como uma resposta aos avanos do protestantismo. Ligada diretamente ao vaticano, torna-se um dos principais instrumentos da reao catlica. Incio de Loyola, seu fundador, colocou como princpio norteador da Companhia o ensino.