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1 Capítulo 1. INTRODUÇÃO Os problemas decorrentes do tráfego nas vias urbanas ou rurais afetam de forma ampla a vida de quase todos os cidadãos, nos tempos atuais, nas sociedades modernas, e manifestam-se em dimensões diversas. O congestionamento das vias, entendido como um alto nível de utilização da capacidade das vias que leva à deterioração da qualidade da sua operação, embora cotidiano, é apenas um deles. Os acidentes de trânsito são reconhecidamente outro dos flagelos da civilização moderna. O uso do espaço urbano ou rural para construir vias ou terminais e servir à circulação de pessoas, bens e veículos é também um problema crucial. O conflito entre os fluxos de circulação e as atividades locais é mais outro aspecto importante. O consumo de energia envolvido nas atividades de transporte, e particularmente a dependência atual de fontes não renováveis, não deve ser menosprezado. Os impactos ambientais decorrentes de efeitos gerais, como a contribuição à poluição do ar e ao efeito estufa, ou de efeitos locais, como o ruído emitido e o potencial danoso das cargas perigosas, não é menos crítico. Em suma, o impacto na qualidade de vida e na sustentabilidade ambiental é motivo de grande preocupação em relação ao tráfego, que é um dos meios essenciais da vida social atual. Naturalmente, o enfrentamento de problemas de tamanha magnitude não pode ficar limitado ao campo da Engenharia, em geral, ou a qualquer dos seus ramos, sendo inútil buscar a sua solução total dentro de uma única área de conhecimento qualquer. A dinâmica complexa da vida social, como exemplificada pela dinâmica das cidades, combina uma articulação global (muitas vezes baseada no conflito) com as lógicas próprias do funcionamento específico de partes ou de componentes (embora nunca independentes). Portanto, sem perder de vista os problemas gerais e de mais ampla magnitude, deve-se também entender os objetivos específicos que podem ser atribuídos à ação em cada campo de atuação e às suas inter-relações mais importantes. O entendimento de cada área de conhecimento relevante (entre elas a Engenharia de Tráfego) é essencial para gerir seus aspectos específicos e para eventualmente integrá-las em ações mais compreensivas. Estes aspectos são o conteúdo básico a ser discutido neste capítulo introdutório. a. Definições Preliminares No estudo da Engenharia de Tráfego estão envolvidos diversos conceitos que participam no senso comum das pessoas ou que ocorrem em outras disciplinas ou no campo legal, nem sempre aplicados com o mesmo sentido ou utilizados com a mesma precisão. Por este motivo, convém fixar algumas idéias básicas antes de prosseguir. O escopo da Engenharia de Tráfego, entendida da forma mais usual, refere-se originalmente ao estudo da circulação dos veículos de Tráfego - problemas relacionados: - congestionamento (alto nível de utilização das vias); - acidentes de trânsito; - consumo de espaço urbano; - conflito com uso local; - consumo de energia (de fontes não renováveis); - impactos ambientais (gerais e locais); - entre outros ... Limites da Engenharia de Tráfego: - não é capaz de enfrentar os problemas enunciados sozinha (como nenhuma das outras dimensões, isoladas); - tem de ser entendida em si e como parte/componente da complexa dinâmica social para ser gerenciada e também integrada em ações globais.

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Capítulo 1. INTRODUÇÃO Os problemas decorrentes do tráfego nas vias urbanas ou rurais afetam de forma ampla a vida de quase todos os cidadãos, nos tempos atuais, nas sociedades modernas, e manifestam-se em dimensões diversas. O congestionamento das vias, entendido como um alto nível de utilização da capacidade das vias que leva à deterioração da qualidade da sua operação, embora cotidiano, é apenas um deles. Os acidentes de trânsito são reconhecidamente outro dos flagelos da civilização moderna. O uso do espaço urbano ou rural para construir vias ou terminais e servir à circulação de pessoas, bens e veículos é também um problema crucial. O conflito entre os fluxos de circulação e as atividades locais é mais outro aspecto importante. O consumo de energia envolvido nas atividades de transporte, e particularmente a dependência atual de fontes não renováveis, não

deve ser menosprezado. Os impactos ambientais decorrentes de efeitos gerais, como a contribuição à poluição do ar e ao efeito estufa, ou de efeitos locais, como o ruído emitido e o potencial danoso das cargas perigosas, não é menos crítico. Em suma, o impacto na qualidade de vida e na sustentabilidade ambiental é motivo de grande preocupação em relação ao tráfego, que é um dos meios essenciais da vida social atual. Naturalmente, o enfrentamento de problemas de tamanha magnitude não pode ficar limitado ao campo da Engenharia, em geral, ou a qualquer dos seus ramos, sendo inútil buscar a sua solução total dentro de uma única área de conhecimento qualquer. A dinâmica complexa da vida social, como exemplificada pela dinâmica das cidades, combina uma articulação global (muitas vezes baseada no conflito) com as lógicas próprias do funcionamento específico de partes ou de componentes (embora nunca independentes). Portanto, sem perder de vista os problemas gerais e de mais ampla magnitude, deve-se também entender os objetivos específicos que podem ser atribuídos à ação em cada campo de atuação e às suas inter-relações mais importantes. O entendimento de cada área de

conhecimento relevante (entre elas a Engenharia de Tráfego) é essencial para gerir seus aspectos específicos e para eventualmente integrá-las em ações mais compreensivas. Estes aspectos são o conteúdo básico a ser discutido neste capítulo introdutório.

a. Definições Preliminares No estudo da Engenharia de Tráfego estão envolvidos diversos conceitos que participam no senso comum das pessoas ou que ocorrem em outras disciplinas ou no campo legal, nem sempre aplicados com o mesmo sentido ou utilizados com a mesma precisão. Por este motivo, convém fixar algumas idéias básicas antes de prosseguir. O escopo da Engenharia de Tráfego, entendida da forma mais usual, refere-se originalmente ao estudo da circulação dos veículos de

Tráfego - problemas relacionados: - congestionamento (alto nível de

utilização das vias); - acidentes de trânsito; - consumo de espaço urbano; - conflito com uso local; - consumo de energia (de fontes

não renováveis); - impactos ambientais (gerais e

locais); - entre outros ...

Limites da Engenharia de Tráfego: - não é capaz de enfrentar os

problemas enunciados sozinha (como nenhuma das outras dimensões, isoladas);

- tem de ser entendida em si e como parte/componente da complexa dinâmica social para ser gerenciada e também integrada em ações globais.

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transporte nas vias de tráfego, reconhecendo a importância destes meios de apoio à locomoção humana (os veículos) e a onipresença de espaços especiais na ocupação humana reservados à sua circulação (as vias de tráfego). A convivência dos veículos com a circulação normal das pessoas ou com outros usos e fatos que influenciam a atividade nas vias e no seu entorno é também relevante ao seu escopo. A delimitação específica dos conceitos de via de tráfego (os espaços abertos à circulação preferencial de veículos dedicados ao transporte de pessoas ou bens, eventualmente compartilhados com fluxos de pedestres) e de veículos de transporte (os meios, motorizados ou não, utilizados para transporte de bens ou pessoas) pode variar entre países ou em diferentes períodos, sem alterar o sentido básico do conceito, e são usualmente restritos às vias terrestres abertas ao tráfego autônomo de veículos. Os espaços adaptados para as atividades locais (as edificações), as outras vias de transporte (dedicadas a veículos especiais e particulares, como as ferrovias, ou realizadas fora do meio terrestre, como as hidrovias e aerovias, ...) e os canais de escoamento de outros fluxos (de energia, de informação, etc...) são o campo de interesse de outras áreas. Entretanto, o conhecimento consolidado nas formulações práticas usuais pode não ser aplicável de forma tão geral quanto a sugerida pelo conceito enunciado e normalmente limita-se apenas ao fluxo de veículos motorizados, tendo de ser particularizado para analisar, por exemplo, o fluxo de pedestres ou de bicicletas. Como será discutido adiante, a esfera do transporte ou do trânsito (a movimentação de pessoas e bens na sociedade) envolve uma interação forte que exige uma regulação clara e detalhada no campo legal. Portanto, existe muitas vezes uma definição legal de cada conceito, que pode não corresponder à delimitação técnica mais adequada (delimitação que, aliás, pode variar segundo o problema específico em estudo). Por exemplo, o CTB-Código de Trânsito Brasileiro de 1997 restringe-se às vias terrestres abertas à circulação pública (mesmo que ocorram em áreas de propriedades privadas) de veículos (motorizados, de tração humana ou animal, incluindo a necessidade de ordenação dos seus conflitos com as necessidades dos pedestres e dos usos locais). Na Engenharia de Tráfego, entretanto, não é tecnicamente relevante o fato de ser a via aberta à circulação pública (visto que a operação do tráfego será semelhante nos demais casos). Interessa aqui fixar precipuamente a conceituação técnica. Esta distinção entre conceito técnico (ou científico, aplicado como categoria do conhecimento) e legal aparece diversas vezes. A Engenharia de Tráfego reconhece a distinção entre as condições específicas de operação no meio urbano (grande densidade de atividades) e no meio rural (baixa densidade de atividades) como entorno da via, independentemente da delimitação legal do perímetro urbano de uma cidade, que a divide em zona urbana e zona rural. De forma ambígua, termos como área urbana e área rural podem referir-se a uma ou outra caracterização. A jurisdição legal sobre uma via específica pode eventualmente, ser confundida ou não com a característica dominante da sua operação. Na Engenharia, também, muitas vezes uma lógica de sistema sobrepõe-se a uma análise local.

Conceito de Engenharia de Tráfego: - estudo da circulação dos

veículos de transporte nas vias de tráfego;

- vias de tráfego: espaços abertos à circulação preferencial de veículos dedicados ao transporte;

- veículos de transporte: meios, motorizados ou não, utilizados para transporte;

- tráfego: circulação de veículos; transporte/trânsito: movimento de bens e/ou pessoas.

Conceitos técnicos específicos podem diferir de conceitos legais e do significado comum. Exemplos:

- meio urbano/rural: alta/baixa densidade de atividades (difere de zona urbana/rural, segundo a definição legal);

- vias em geral/rodovias (estas dedicadas aos deslocamentos de longa distância, fora dos núcleos de ocupação contínua, ao invés de deslocamentos contíguos);

- congestionamento: operação com redução de velocidade decorrente da presença de outros usuários na via;

- saturação: operação com demanda de tráfego superior à capacidade da via.

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Por exemplo, o sistema de vias especializadas para o suporte aos deslocamentos de longa distância, usualmente entre áreas urbanas (ou ligando núcleos entre si ou com áreas de ocupação rarefeita), embora não cumpra exclusivamente esta função, é constituído pelas rodovias. São aspectos acessórios, mesmo que importantes à função das rodovias, os fatos de virem normalmente a ser pavimentadas ou cruzarem áreas rurais, terem interseções espaçadas e privilegiarem o deslocamento dos veículos em velocidades adequadas. Portanto, as rodovias urbanas ou não pavimentadas existem na conceituação da Engenharia (embora não existam segundo a conceituação adotada no CTB-Código de Trânsito Brasileiro de 1997). A conceituação técnica também distingue a pista (toda a área da via reservada para o uso de veículos, incluindo o acostamento) da pista de rolamento (reservada para o fluxo normal de veículos e dividida em faixas de tráfego), conceitos também confundidos na legislação atual (isto é, no CTB/1997). Outros conflitos terminológicos da mesma natureza ocorrem ao contrastar os conceitos da Engenharia com os de outras disciplinas (que apesar de similares podem expressar aspectos distintos) ou com o sentido usual das palavras (ao menos pela variedade de significados ou ambiguidade normal no uso coloquial dos termos). Na Engenharia de Tráfego, o termo congestionamento nas vias refere-se ao efeito de redução da velocidade média praticada em um elemento viário decorrente da presença de outros usuários. Este é um sentido restrito, mesmo para explicar as interações entre usuários nos elementos viários (por exemplo, a segurança também sofre efeitos dessa interação) e uma acepção mais ampla pode naturalmente ser utilizada em outros contextos. Entretanto, o aspecto que importa frisar aqui é relativo ao sentido distinto da associação do termo com a existência de excesso de demanda ou insuficiência de capacidade. Este regime de operação é normalmente associado ao termo saturação da via. Os efeitos de congestionamento podem ocorrer antes da saturação, embora normalmente piorem de forma significativa neste regime de maior solicitação da capacidade. Os efeitos de congestionamento relacionam-se com outros termos usuais na Economia, como as externalidades (que descrevem interações não intermediadas adequadamente pelos mecanismos de mercado). Este termo tem significado distinto em relação aos conceitos de efeitos externos (que atingem os não usuários das vias, tipicamente a comunidade ou os moradores do seu entorno) ou efeitos indiretos (que decorrem dos efeitos diretos através de uma cadeia intermediária de causalidades). O congestionamento é um claro exemplo de uma externalidade que não pode ser associado a um efeito externo ou indireto. Esta discussão terminológica inicial, mais do que esgotar todas as distinções relevantes de significados, muitos dos quais não estão totalmente assentados mesmo na Engenharia de Tráfego, visa chamar a atenção para a variação existente e para a observação da utilização diversa de termos e sentidos que substituem ou complementam os aqui adotados.

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Adendo - Conceitos do Código de Trânsito Brasileiro de 1997 (Anexo I) A seguir, são destacados alguns conceitos legais adotados pelo CTB/1997, cujo significado deve ser retido para interpretação da legislação e regulamentação decorrente atualmente em vigor no Brasil, a despeito de eventualmente diferirem dos conceitos técnicos classicamente adotados em Engenharia de Tráfego. O CTB/1997 rege o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres abertas à circulação do território nacional, entendendo como trânsito como a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada (imobilização do veículo para finalidade e tempo estritamente necessário ao embarque e desembarque de passageiros), estacionamento (imobilização do veículo por tempo superior ao necessário para parada) e operação de carga e descarga (equiparada ao estacionamento). De forma geral, o CTB/1997 distingue os veículos automotores (todo veículo com motor de propulsão, que circule por seus próprios meios) dos veículo de propulsão humana e de tração animal. Os veículos automotores são classificados em veículos de passageiros, sejam automóvel (com capacidade para até 8 pessoas e o condutor), bonde (de propulsão elétrica, que se move sobre trilhos), micro-ônibus (transporte coletivo, para 9 a 20 pessoas) ou ônibus (transporte coletivo, para 21 ou mais passageiros, ainda que adaptado para transportar um número menor de pessoas com maior comodidade), em veículos de carga (até 2 passageiros e o condutor), sejam caminhonete (até 3,5 toneladas) ou outro, incluindo trator (para trabalho agrícola, de construção e pavimentação, para tracionar outros veículos) ou veículos articulados, com caminhão-trator (para tracionar outros veículos), reboque (a ser engatado), semi-reboque (que se apoia sobre a unidade tratora), em veículos mistos, sejam camioneta (misto, para transporte de passageiros e de carga no mesmo compartimento) ou outro, incluindo casa-motor (com carroceria destinada a alojamento, escritório, comércio ...), com trailer (a ser adaptado na traseira dos automóveis ou camionetas), e em ciclomotores, sejam motocicleta (de 2 rodas, com ou sem carro lateral, dirigido em posição montada), motoneta (de 2 rodas, dirigido em posição sentada). Os veículos de propulsão humana são classificados em ciclos (de pelo menos duas rodas), sejam bicicleta (dotado de duas rodas) ou outro, e carro de mão (transporte de pequenas cargas). Os veículos de tração animal são classificados em carroça (transporte de carga) e charrete (transporte de passageiros). Além dos veículos, o tráfego naturalmente comporta os pedestres, sendo os ciclistas desmontados (empurrando a bicicleta) equiparados aos pedestres. A via, ou o espaço viário, nos termos do CTB/1997, é conceituado como a superfície destinada ao trânsito de pessoas, veículos e animais, incluindo a pista (parte da via normalmente destinada à circulação de veículos, delimitada pelo bordo da pista, fisicamente ou através de sinalização de solo, e dividida em faixas de trânsito, com largura suficiente para um veículo, incluindo ciclofaixas para circulação exclusiva de ciclos), a calçada (parte da via normalmente destinada à circulação de pedestres e implantação de mobiliário urbano, usualmente segregada e em nível diferente da pista e acostamento), o acostamento (parte diferenciada da via em relação à pista de rolamento, destinada à parada ou estacionamento de emergência para os veículos e à circulação de pedestres onde não houver calçada), canteiro e ilhas (dispositivos que separam as pistas de rolamento ou ordenam o movimento dos veículos, fisicamente ou através de sinalização de solo). Note que o CTB/1997 confunde pista com pista de rolamento (ou de tráfego), excluindo o acostamento da pista. O CTB/1997 distingue também o passeio, como área da calçada ou da pista de rolamento (separada fisicamente ou por sinalização de solo) destinada à circulação exclusiva de pedestres e, excepcionalmente, de ciclistas. O CTB/1997 distingue vias urbanas (situadas em áreas urbanas, caracterizadas principalmente por ter imóveis edificados ao longo da extensão) das vias rurais, estas classificadas em rodovias (pavimentadas) e estradas (não pavimentadas) e classifica as vias (urbanas, em particular) por suas características de operação em vias de trânsito rápido (com acessos especiais, sem interseções em nível, sem acesso direto aos lotes lindeiros e sem travessia de pedestres em nível), via arterial (com interseções em nível, em geral controladas por semáforos, e acesso direto aos lotes e vias secundárias e locais, mas destinada a ligação entre regiões das cidades), via coletora (destinada a coletar e distribuir os fluxos para as vias de trânsito rápido e arteriais e para trânsito dentro das regiões das cidades) e via local (destinada ao acesso local e às áreas restritas). Distingue também as vias (e áreas) de pedestres (com circulação prioritária de pedestres) e as ciclovias (para circulação de ciclos, separada do trânsito geral). Note-se que, ao contrário da terminologia técnica (que comporta variações decorrentes de distintas tradições técnicas e mesmo das idiossincrasias insuperáveis dos autores), a terminologia legal deve ser empregada de forma consistente e uniforme, em atendimento ao texto legal e sua interpretação plausível. No entanto, ao contrário da conceituação técnica (que subsiste às mudanças sociais e apenas adapta-se à evolução do conhecimento), a conceituação legal pode ser alterada de forma abrupta, pela edição de novos documentos legais ou seus regulamentos, devendo-se acompanhar sistematicamente sua atualidade (particularmente as Resoluções do CONTRAN).

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b. Missão da Engenharia de Tráfego

Como amplamente reconhecido, as demandas de transporte e de tráfego são derivadas de necessidades mais fundamentais das pessoas e da sociedade, em geral, que pela característica da distribuição distinta no espaço exigem a movimentação de pessoas e bens. A localização e intensidade das atividades sociais é, portanto, uma dimensão superior que condiciona as necessidades de transportes (mesmo sofrendo, por sua vez, a influência da qualidade da sua operação). Ainda antes de transformar-se em necessidade de circulação de veículos, o atendimento das necessidades de deslocamento de pessoas e bens (isto é, de transporte) pode ser realizado de diversas formas (tecnologias de transporte) e traduzir-se em necessidades de tráfego muito diferentes, em termos qualitativos ou quantitativos, de capacidade, velocidade, segurança. As discussões clássicas sobre o impacto da estrutura urbana na demanda de transportes e sobre a eficiência relativa do automóvel e do transporte de massa em atendê-las são ótimos exemplos. A especialização do espaço de atividades urbanas em áreas de moradia e de emprego reitera a criação de pesados fluxos pendulares casa-

trabalho em quase todas as cidades. O volume de tráfego gerado para atendê-los com o transporte por automóvel exige um espaço viário pelo menos 10 vezes maior que se forem atendidos com o transporte de massa. Portanto, mesmo ficando restrito aos problemas de operação do sistema viário, pode-se ver que os problemas de tráfego não exigem intervenções restritas ao campo da organização e da operação viária, ou seja, da Engenharia de Tráfego. Muitas vezes, além de possível, a intervenção em outros níveis ou campos é mesmo mais eficiente. A recorrência de problemas de congestionamento nas grandes cidades, por exemplo, não pode ser atribuída a falhas da Engenharia de Tráfego (embora estas falhas possam ocorrer e possam contribuir para piorar a situação existente). A muito percebeu-se que as intervenções de melhoria viária trazem consigo a realimentação de um processo de atração de atividades que recria demanda e congestionamento nas vias, pelo menos mantendo-se o padrão da dinâmica de ocupação decorrente das tendências e políticas vigentes até o início deste século. Este processo, esquematizado a seguir, é tanto mais rápido quanto maior o ritmo de crescimento urbano ou regional e quanto mais atrativa é a área beneficiada pela melhoria viária.

Locus da Engenharia de Tráfego: - necessidades de transporte e

tráfego são derivadas da realização de atividades sociais com distribuição distinta no espaço (localização e intensidade);

- necessidades de transporte podem ser atendidas de diferentes formas (tecnologias de transporte) e geram necessidades de tráfego distintas (tipo e quantidade de veículos);

- problemas no tráfego são o último nível de uma cadeia, não necessariamente o mais adequado para intervenção.

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Visto como elemento de uma estratégia de eliminação dos problemas de congestionamento, as melhorias viárias são presas fáceis de um círculo vicioso que acaba por anular os efeitos de melhoria pela atração de novas atividades. Esta orientação do crescimento das atividades é o único resultado final das intervenções viárias. Visto como elemento de uma estratégia de orientação do crescimento/ocupação, aí sim as intervenções viárias de porte podem trazer efeitos permanentes ou mais duradouros ao engendrar uma dinâmica forte, especialmente quando reitera a vocação de crescimento das áreas beneficiadas pela acessibilidade até que sobrevenha uma significativa saturação, normalmente observada em uma situação de ocupação amplamente consolidada. Desta forma, vocações favoráveis (que contribuem para a qualidade de vida ou eficiência econômica) podem ser incorporados em um círculo virtuoso, que os projetos viários precipitam e aceleram de forma eficaz (o que, infelizmente, também pode ocorrer com vocações indesejadas). A alteração de tendências e vocações de ocupação pode também ocorrer, de forma mais conflituosa (seja para o bem ou para o mal). É bem verdade que a identificação de cenários de ocupação desejados ou não é complexa e sujeita-se a um amplo embate social, no qual a implantação dos projetos viários podem marcar os momentos de inflexão (de difícil retroação). A deterioração da operação viária é um cenário corriqueiro (produto do círculo vicioso) que as sociedades modernas ainda não aprenderam a evitar. Já houve esperança nas obras viárias, no transporte de massa, nas restrições de circulação, como atualmente existe a proposição de mecanismos generalizados de cobrança pelo uso das vias nas cidades. Este último instrumento (a cobrança pelo uso) pode naturalmente reduzir os congestionamento mas introduz um custo adicional de deslocamento e pode ter efeitos significativos sobre a estrutura urbana (além de trazer custos de investimento e operação importantes). A deterioração do ambiente para as atividades urbanas, embora seja um perigo real, é verdade, está longe de ser um cenário provável, capaz de anular os benefícios de um padrão de ocupação favorável, mesmo diante da deterioração previsível da operação viária. A consolidação da ocupação nas áreas beneficiadas (produto do círculo virtuoso), é mais usual, mesmo se muito adensadas. A cidade responde descobrindo novas áreas de desenvolvimento, forçando novas obras viárias. Infelizmente, muito deste processo social pode conduzir a resultados inadequados se os padrões de ocupação induzidos não forem construídos de forma clarividente, produzidos por ações afoitas, em função do peso econômico e político de cada agente social. De qualquer forma, toda esta discussão tem apenas o objetivo de situar de forma mais restrita, a visão sobre o objetivo que se pode atribuir à Engenharia de Tráfego, especificamente. A missão da Engenharia de Tráfego é a de proporcionar um uso eficiente e seguro do sistema viário para a movimentação de pessoas e bens envolvida na atividade social, controlando os impactos sociais e ambientais gerados pelo tráfego urbano e contribuindo para universalizar o acesso às atividades sociais para os diferentes grupos sociais. Esta visão, ainda que restrita por deixar para um nível superior a articulação de políticas necessárias para lidar com problemas mais

Interação com Uso do Solo: - interação direta: atividades

geram necessidades de transporte/tráfego;

- interação indireta (ou realimentação): as condições de transporte/tráfego direcionam o uso do solo;

- círculo vicioso: a melhora das vias motivada por problemas de tráfego tende a recriá-los por atrair novas atividades;

- círculo virtuoso: projetos viários transformam o padrão de ocupação de forma eficaz (favorável se o novo padrão é sustentável/eficiente/justo ...);

- as estratégias da Engenharia de Tráfego não provaram ser capazes de garantir um cenário final sem problemas de congestionamento, o que não anula a influência sobre o padrão de ocupação do solo.

Missão da Engenharia de Tráfego: - proporcionar um uso eficiente e

seguro do sistema viário; - controlar os impactos sociais e

ambientais do tráfego; - contribuir para universalizar o

acesso às atividades sociais.

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globais em termos urbanos e de transportes, é a síntese de uma razoável evolução histórica. Por exemplo, a ênfase na missão de proporcionar segurança especificamente (embora esta dimensão esteja necessariamente entre os atributos de um sistema viário eficiente) foi adicionada nos primórdios da Engenharia de Tráfego, quando a busca de prover capacidade, velocidade, acessibilidade adequadas também gerou uma curva crescente de acidentes de trânsito (incluindo danos materiais, ferimentos, seqüelas, fatalidades). Da mesma forma, o reconhecimento da subordinação da Engenharia de Tráfego a objetivos mais amplos de políticas sociais e ambientais está claramente expresso no reconhecimento da necessidade de controlar seus impactos ambientais e sociais (em sentido amplo) e de contribuir para objetivos de equidade no acesso às atividades urbanas. As intervenções viárias são um forte fator de transformação dos padrões de ocupação e, independente da desejabilidade dos novos cenários futuros, são um gerador de tensão social. De forma geral, pode-se dizer que o sistema viário de uma área deve ser construído com uma clara visão prospectiva dos futuros cenários de ocupação, de forma a evitar transformações traumáticas, que violam expectativas dos ocupantes das áreas. Por mais que certas mudanças (como a valorização imobiliária) sejam vistas como desejáveis por parcelas, mesmo preponderantes, dos ocupantes de uma área, dificilmente deixarão de existir aqueles que construíram seus projetos de ocupação com aspirações distintas, violadas de forma avassaladora e irrecorrível pelas transformações induzidas. Em certa medida, deve-se considerar que os padrões de ocupação existentes constituem contratos sociais (tacitamente estabelecidos), a serem ponderados de forma civilizada (isto é, com forma justa e respeitosa para com os cidadãos).

c. Breve Histórico A Engenharia de Tráfego é uma atividade necessária quando se tem, em quantidade significativa, deslocamentos autônomos (isto é, viagens a pé ou de veículos sobre pneus, que devem/podem escolher livremente seu curso e ritmo nas vias). Neste caso é necessário estabelecer uma disciplina para evitar-se acidentes e melhorar a velocidade do transporte das pessoas ou mercadorias. O transporte sobre trilhos, por exemplo, devido à sua inflexibilidade na via e à sua condução por profissionais, tem recursos de controle específicos para áreas de circulação confinadas e, portanto, não é abrangido pela Engenharia de Tráfego convencional. Portanto, grandes quantidades de deslocamentos autônomos trazem a necessidade de disciplina. Na Roma antiga, o excesso de carroças com destino à capital do Império Romano, e o congestionamento decorrente, gerou a necessidade de regras de circulação, que regulavam a mão de direção e o horário de entrada de mercadorias na

cidade. As estradas romanas continham marcos e indicações sobre o destino. Pode-se dizer que esses foram os primeiros exemplos de sinalização. Desde então, todas as grandes aglomerações urbanas necessitaram, mesmo que de um modo rudimentar, algum tipo de medida para ordenação dos deslocamentos. Entretanto, a Engenharia de Tráfego, nos moldes como a conhecemos, surgiu com a popularização do automóvel, entre o final do Século XIX

Surgimento da Engenharia de Tráfego: - decorreu da necessidade de

disciplinar deslocamentos autônomos nas vias com maior utilização;

- deslocamentos autônomos: devem/podem escolher seu curso e ritmo nas vias; precisam ser disciplinados;

- nos moldes atuais, surgiu com a popularização do automóvel (EUA/Europa: final do século XIX e início do século XX).

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e o início do Século XX. Embora os automóveis tivessem baixas potência e velocidade naquela época, em relação aos de hoje, sua crescente presença no meio urbano trouxe os primeiros acidentes e, em decorrência, as primeiras tentativas de regulamentar seu deslocamento. Assim como na Roma antiga, os principais meios de controle do tráfego automotor foram a legislação e a sinalização. A sinalização e as regras de circulação foram sendo criadas segundo as condições particulares de cada localidade. Na Inglaterra, o “Man and Flag Act” de 1864 estabelecia uma velocidade máxima de 4 milhas por hora e ordenava-se que um homem com uma bandeira ou uma tocha marcasse a frente do carro. Em 1927, placas foram fixadas com a mensagem “Por favor, atravesse aqui”, como forma de alertar os pedestres. Na cidade de São Paulo, em 1903, o prefeito tornou obrigatória a inspeção dos automóveis e regulamentou a velocidade “nos lugares estreitos ou onde haja acumulação de pessoas”, onde seria restrita à velocidade de um homem a passo, estabelecendo que em caso algum poderia a velocidade ir além de 30 km por hora. Da mesma forma, meios de sinalização surgiram nos mais diversos locais. Com o aumento das viagens entre as cidades e países, a questão da padronização da sinalização foi ganhando cada vez mais importância. Especialmente na Europa, percebeu-se que situações de perigo precisavam ser sinalizadas através de uma linguagem simbólica, para superar o problema das diferenças entre os idiomas. Surgiram então os pictogramas, ou desenhos, com os símbolos que representavam esquematicamente a mensagem que se deseja passar ao usuário da via. Ainda assim, inicialmente, cada local adotava formas, cores e pictogramas variados para uma mesma situação, o que mantinha alguma dificuldade de compreensão para parte dos usuários. Várias tentativas de padronização foram feitas, sendo a mais importante realizada em 8 de novembro de 1968, em Viena, Áustria. Sob os auspícios da ONU, uma convenção internacional foi realizada para definir a adoção de regras uniformes de trânsito. Esse evento ficou conhecido como “Convenção de Viena” e propôs dois acordos internacionais: a Convenção sobre Trânsito Viário e a Convenção sobre Sinalização Viária. O Brasil foi um dos paises presentes. Os países signatários deveriam ratificar as convenções e implantar regras conformes, estabelecendo os pontos em que não aderissem às normas sugeridas e as regras específicas adotadas nestes casos. Infelizmente, não houve o efeito desejado e existem sinalizações das mais diversas ao redor do mundo. A situação brasileira pode ser utilizada para exemplificar as dificuldades de difusão de normas padronizadas. O Brasil foi pioneiro na padronização nacional, iniciada com as normas editadas por decretos federais, notadamente o Decreto-Lei 3651 de 25 de setembro de 1941, nossa primeira lei de trânsito, de inspiração européia (são mencionados também o Decreto Legislativo 4460 de 11 de janeiro de 1922 e o Decreto 18323 de 24 de julho de 1928), mas a adesão à padronização internacional tardou e ainda não é completa (como ocorre internacionalmente). A Convenção de Paris, de 1926, a Conferência Européia, de 1931, e a Convenção Inter-americana sobre a Regulamentação do Trânsito Automotor de Washington, 1943, precederam a primeira iniciativa realmente internacional, a Convenção sobre Circulação Rodoviária, realizada já sob os auspícios da Liga das Nações, em Genebra, 1949, e a Primeira Reunião Inter-americana de Especialistas de Trânsito, realizada no Panamá em 1957, que é tradicionalmente citada como a origem da manifestação de adesão às

Evolução da Engenharia de Tráfego: - inicialmente “urbana”,

regulando conflitos entre veículos e pedestres através de leis e sinalização “local”;

- padronização da sinalização e ênfase rodoviária decorreu do aumento das viagens entre cidades e países (em especial na Europa); linguagem simbólica;

- padronização internacional, sob os auspícios da ONU, com predominância européia, não foi adotada de forma ampla nos EUA e nos países que sofreram sua influência preponderante, como foi o caso do Brasil;

- documento mais importante: “Convenção de Viena”, de 08/11/1968; Convenção sobre Trânsito Viário (parcialmente ratificada, no Brasil, apenas no início dos anos 80) e Convenção sobre Sinalização Viária (não ratificada no Brasil);

- o Brasil foi um dos países pioneiros na padronização nacional: Decreto 18323, de 24/07/1928 e Decreto-Lei 3651 de 25/09/1941; CNT-Código Nacional de Trânsito, de 1966, consolidação de um modelo baseado no padrão americano; atualização e inovação com o CTB-Código de Trânsito Brasileiro, de 1997;

- técnicas e práticas de projeto viário e controle de tráfego seguiram tendências similares; as peculiaridades do país ensejaram a transformação do modelo inspirado nos EUA;

- tendências à internacionalização e à utilização de sistemas computacionais, com predomínio de “produtos globais”, estão presentes hoje.

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normas internacionais, feita no âmbito restrito do Conselho Nacional de Trânsito brasileiro. A legislação de trânsito posterior, instituída pelo CNT-Código Nacional de Trânsito implantado pela Lei 5108 de 21 de setembro de 1966 e regulamentado pelo Decreto 62127 de 16 de janeiro de 1968, estabeleceu uma sinalização de trânsito inspirada no modelo norte-americano, que difere em muitos pontos do padrão europeu (por exemplo, especialmente quanto aos modelos de placas utilizados na sinalização vertical). Preferiu, entretanto, manter a predominância da comunicação simbólica, difundida pelo modelo europeu, em diversos casos. Por estes motivos, a ratificação da Convenção sobre Sinalização Viária não ocorreu até hoje. A manifestação formal referente à Convenção sobre Trânsito Viário veio posteriormente, através do Decreto Legislativo 33 de 13 de maio de 1980 e do Decreto 86714 de 10 de dezembro de 1981. No entanto, pode-se dizer que a atenção real com as exigências da padronização internacional são muito mais recentes no Brasil, datando do final dos anos 90, e decorrem da integração econômica na América Latina. As técnicas e práticas relativas ao projeto viário seguiram tendências similares. Novamente, as opções nacionais aproximaram-se do modelo norte-americano que favorece projetos generosos para a circulação de veículos mas tiveram de adaptar-se a um contexto de maior restrição de recursos, onde a presença de veículos pesados (no transporte de passageiros ou de carga) é mais notável (pela maior quantidade e pelo pior desempenho), e a um contexto urbano diferenciado (com vias de padrões físicos menos generosos em áreas de adensamento significativo). Portanto, pôs-se uma clara necessidade de ter um padrão distinto do norte-americano e também do europeu (o que ocorreu, em menor grau, em outros países como Canadá e Austrália). Atualmente, a Engenharia de Tráfego tem experimentado uma crescente utilização dos mais recentes avanços da tecnologia, seja no desenvolvimento de novos materiais de sinalização seja no uso cada vez mais intensivo da eletrônica e da informática, através do processamento de informações via computador (sistemas de informação e/ou controle de tráfego em tempo real, programas para simulação macroscópica ou microscópica de intervenções na operação do tráfego ou no planejamento de transportes). Deve-se, no entanto, ver claramente que o ímpeto de padronização responde, muitas vezes, mais a uma pressão de fornecedores e prestadores de serviços, que pode ignorar as necessidades sociais e ainda assim atingir seus objetivos econômicos. Estas observações mostram a importância de construir uma visão da Engenharia de Tráfego consciente e capaz de desenvolver e/ou ao menos selecionar o curso de ação mais adequado.

d. Contexto Institucional. Poucas áreas de atuação da Engenharia são mais marcantemente relacionadas com o arcabouço institucional que as envolvem e que sempre trazem repercussões importantes para sua ação, quanto a Engenharia de Tráfego. Esta característica parece justificar uma análise e reflexão cuidadosa sobre este aspecto.

Contexto Institucional da Engenharia de Tráfego:

- necessidade de arcabouço legal: atribuições da administração pública e obrigações dos usuários da via (infrações);

- tensão entre as esferas judicial (veículos, condutores, infrações, policiamento) e de engenharia (projeto, construção, sinalização e operação das vias);

- tensão entre a necessidade de integração/uniformização e de adequação local nas vias.

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Vale comentar que, em geral, a coordenação da atividade normativa e executiva na área de trânsito oscila, entre diversos países e diferentes períodos, entre os órgãos das esferas judicial ou de engenharia. No Brasil, a organização da área de trânsito nasceu sob os auspícios do rodoviarismo e teve a predominância inicial da esfera da engenharia (como marca o Decreto de 18323 de 1928). No entanto, logo manifestou-se a tendência à supremacia da esfera judicial, consolidada pelo CNT de 1966. Esta característica trouxe diversos entraves ao aprimoramento técnico da Engenharia de Tráfego nacional, especialmente nas unidades menos organizadas dos níveis estaduais e municipais. Em certas cidades operou-se uma inversão de comando, como São Paulo, a partir da criação da Companhia de Engenharia de Tráfego-CET/Sp, em 1976. Como marca desta tensão subjacente, a Lei 9503 de 1997 que promulgou o CTB não definiu qual seria o órgão executivo máximo de trânsito na esfera da União (mantendo-se posteriormente este papel para o DENATRAN) e sua vinculação administrativa no SNT-Sistema Nacional de Trânsito e no Governo Federal (posteriormente decidida para o Ministério da Justiça, mas transferida diversas vezes, desde então). Em geral, a esfera do trânsito é marcada pela supremacia dos níveis federais e mesmo pela necessidade de adesão a acordos internacionais, pelo menos no que se refere à regulamentação da circulação viária (notadamente as normas gerais de circulação, os padrões de sinalização de trânsito, entre outros). Por exemplo, a atual Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, repetiu um dispositivo contido nas anteriores: legislar sobre trânsito e transportes é atribuição privativa na União. Ainda que seja admitida a competência suplementar de Estados e Municípios para legislar sobre pontos omissos na lei federal (uma questão jurídica controversa), este dispositivo é uma clara manifestação da supremacia mencionada. Entretanto, existe ao mesmo tempo a necessidade de adequar-se a situação existente em cada porção menor do território. As atribuições de gerir e fiscalizar o sistema viário, especificamente, têm de ser distribuídas coordenadamente entre diversos órgãos federais, estaduais e municipais (eventualmente auxiliados por empresas concessionárias de serviços públicos). Portanto, a atuação final é bastante descentralizada (a menos das rodovias estaduais e federais). Atualmente, existe uma razoável estrutura de órgãos normativos, executivos (de trânsito e rodoviários), fiscalizadores e recursais, cada qual com suas atribuições específicas (o que permite a constituição de uma estrutura de atuação condizente). No entanto, salvo onde a hierarquia de poder manifesta-se de forma mais forte, existe uma clara deficiência de integração entre órgãos. Pode-se mencionar a falta de integração horizontal entre os sistemas estaduais de registro de infrações (e de cobrança) e a falta de articulação entre os órgãos policiais de registro de acidentes e os órgãos responsáveis pela gestão do sistema viário (um dos mais importantes usuários técnicos desta informação). Evidenciou-se, portanto, que a supremacia de uma ou outra área é menos importante que a clara delimitação de responsabilidades e articulações entre as áreas.

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Como exemplo, a estrutura atual no Brasil, com base no CTB/1997, pode ser representada da seguinte forma:

Pode-se ver que a esfera do trânsito comporta a atuação de diversos órgãos, cuja ação deve integrar-se verticalmente (entre os diferentes níveis de governo) e horizontalmente (órgãos normativos, órgãos executivos de trânsito e rodoviários, órgãos policiais, instâncias de julgamento e recurso). Além disso, por dever estar estabelecido na esfera pública e vislumbrar a necessidade de impor normas de conduta às pessoas e aos órgãos envolvidos, a ordenação legal é imprescindível à sua atuação. Para a administração pública, somente podem ser exercidas as atribuições definidas em lei, nos limites

estabelecidos. Para a esfera privada, somente é proibido o que a lei especificamente restringir, na forma estabelecida. Estes aspectos constituem o marco institucional. Em função do impacto do tráfego na vida social, evidenciam-se tanto o potencial ofensivo dos eventos envolvidos na circulação viária (notadamente nos acidentes de trânsito) quanto a importância de organização das vias para operação adequada (especialmente nas interferências e congestionamentos). O potencial ofensivo acarreta uma participação importante dos órgãos policiais quanto à observância das normas de circulação no trânsito e à prática dos crimes de trânsito (ambos evidenciando a importância do impacto aludido). A operação adequada reclama uma atuação técnica eficiente e eficaz no projeto, construção, sinalização e operação das vias. Ao invés de adotar-se uma visão que atribui a ocorrência dos problemas de trânsito ao efeito preponderante de erros e violações humanas ou do projeto e operação das vias, cumpre integrar a esfera judicial e de engenharia.

A estrutura atual do SNT contém: - órgãos normativos,

especialmente o CONTRAN (cujas Resoluções são extensão da lei) e os CETRANs estaduais;

- órgãos executivos de trânsito, como o DENATRAN e os DETRANs estaduais, e rodoviários, atualmente o DNIT e os DERs estaduais;

- órgãos de policiamento e apoio à fiscalização do trânsito, como a Polícia Rodoviária Federal e as Polícias Militares conveniadas;

- órgãos de julgamento e recursos da esfera administrativa (as JARIs constituídas em cada órgão executivo processam os AITs);

- os municípios podem integrar-se ao SNT constituindo órgãos executivos (que podem ter conselho e corpo de fiscalização das normas de circulação, estacionamento e parada e/ou convênio com as Polícias Militares), desde que obtenham aprovação dos CETRANs.

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Adendo - Organização Institucional com o CTB/1997 Durante 21 anos (entre 1967 e 1997), o trânsito no Brasil foi regido pelo CNT-Código Nacional de Trânsito de 21 de setembro de 1966. Este dispositivo legal estabelecia uma organização institucional que, basicamente, prevalece até hoje com as alterações que serão mencionadas a seguir. No CNT/1966, a administração do trânsito foi atribuída aos integrantes do denominado Sistema Nacional de Trânsito-SNT, um conjunto de entidades federais, estaduais e municipais, com a seguinte composição:

- o CONTRAN-Conselho Nacional de Trânsito, órgão máximo normativo e coordenador do SNT. O CONTRAN foi subordinado ao Ministério da Justiça;

- os CETRANs-Conselhos Estaduais de Trânsito (juntamente com os conselhos correspondentes dos territórios e do Distrito Federal), estes também órgãos normativos das atribuições de âmbito estadual;

- o DENATRAN-Departamento Nacional de Trânsito, órgão executivo de trânsito federal que foi também subordinado ao Ministério da Justiça;

- os DETRANs-Departamentos Estaduais de Trânsito, órgãos executivos de trânsito estaduais (e os seus correspondentes nos territórios e no Distrito Federal);

- as CIRETRANs-Circunscrições Regionais de Trânsito, subordinadas aos DETRANs e responsáveis pela atuação no nível dos municípios;

- os órgãos rodoviários federais, estaduais e, eventualmente, municipais. O CONTRAN era formado por treze membros de áreas variadas, desde as governamentais, como da Presidência da República, DENATRAN e DETRANs, até representantes de entidades privadas de áreas afins (como da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores-Anfavea e do “Touring Club do Brasil”). O CONTRAN tinha entre suas atribuições a regulamentação da legislação de trânsito e a instituição de normas relativas à sua observação. O Conselho reunia-se periodicamente e suas decisões de caráter normativo eram transformados nas Resoluções do CONTRAN que, publicadas no Diário Oficial da União, eram obrigatórias e tinham abrangência nacional como extensão da lei. Além disso, o CONTRAN exercia suas atribuições administrativas, através da atuação direta ou da emissão de Portarias, de curso interno (dirigidas às entidades componentes do SNT), por exemplo, para estabelecer procedimentos para formação e registro de veículos e condutores ou para autorizar o uso experimental de um novo tipo de sinalização de trânsito. A introdução de uma ampla estrutura de apoio à fiscalização de trânsito, apoiado na criação das Juntas Administrativas de Recursos de Infrações-JARIs, como primeiro nível de recursos na esfera administrativa contra a autuação por infrações de trânsito, secundado pela possibilidade de recurso aos CETRANs ou ao CONTRAN (a instância superior imediata ao primeiro nível, configurando o hoje consagrado duplo nível de recurso de infrações), constitui um dos marcos principais de uma nova organização que foi destinada a tornar efetiva a fiscalização do trânsito, minimizando a necessidade de recurso às instâncias judiciais pela proposição de um canal direto de recurso na esfera administrativa (um modelo de organização sui generis no esforço de aplicação da lei e no provimento da justiça no Brasil). A atividade de fiscalização de trânsito era exclusiva das instâncias federal e estadual, normalmente exercido através das Polícias Rodoviária e Militares. Durante muito tempo, a cidade de São Paulo era a única a ter um convênio especial que permitia que um órgão municipal, o Departamento de Operações do Sistema Viário – DSV/Sp fosse não apenas o gestor mas também o fiscalizador do trânsito da capital paulista (delegando as atribuições de operação e planejamento à Companhia de Engenharia de Tráfego-CET/Sp). Pelo menos no Estado de São Paulo, a municipalização do trânsito estendeu-se a outros municípios no início dos anos 80 e tornou-se uma política explícita do Governo do Estado desde 1982. A estrutura estadual foi bastante fortalecida pelo CNT/1966, com a criação dos CETRANs e dos DETRANs (e seus congêneres nos territórios e no Distrito Federal). As atribuições relativas ao licenciamento de veículos e habilitações de condutores continuaram concedidas aos órgãos estaduais, mas foi criada uma ampla estrutura de atuação através dos DETRANs (infelizmente, atividades envoltas em suspeição de ampla corrupção e ineficiência). Mais recentemente evidenciou-se a necessidade de alguma centralização de informações no nível federal, notando-se em particular a criação e operacionalização do RENAVAM-Registro Nacional de Veículos Automotores (com menor sucesso, também do RENACH-Registro Nacional de Carteiras de Habilitação). Os problemas referentes aos roubos de veículos, mais que o enfrentamento do crescente flagelo decorrente dos acidentes de trânsito, foram a motivação original destes esforços. O novo código de trânsito, o CTB-Código de Trânsito Brasileiro, foi promulgado através da Lei 9503 de 23 de janeiro de 1997, estabelecendo-se a sua vigência a partir de 23 de janeiro de 1998, tendo sido complementada e modificada pela Lei 9602 de 21 de janeiro de 1998. O CTB substituiu o CNT anterior e trouxe uma série de modificações importantes. Na área institucional, o CTB/1997 manteve a figura do Sistema Nacional de Trânsito mas alterou sua composição. Permaneceram o CONTRAN, os CETRANs, os órgãos executivos de trânsito da União, dos

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Estados, Distrito Federal, os órgãos rodoviários da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Foram incorporados ao SNT os órgãos e entidades executivos de trânsito dos municípios (como coroação do intenso movimento pela municipalização do trânsito), além das entidades de fiscalização e recursos, isto é, a Polícia Rodoviária Federal; as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal e as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARIs, que antes participavam acessoriamente. Em termos de organização do SNT, uma significativa alteração decorreu do reconhecimento do movimento pela “municipalização” do trânsito. O CTB/1997 definiu as atribuições dos órgãos dos municípios na gestão do trânsito, ou seja, planejar, projetar e operar o trânsito nas vias sob sua jurisdição e, entre outras atividades também importantes, ser o responsável pela fiscalização das infrações relativas a circulação, estacionamento e parada. Os órgãos municipais admitidos no SNT, por aprovação dos CETRANs, podem exercer o papel fiscalizador e contam com parte da receita auferida, para aplicação exclusiva em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação do trânsito. Esse tratamento permitiu que os municípios investissem no aperfeiçoamento de seu corpo técnico e na melhoria da sinalização. Atualmente, todas as grandes cidades do país tem órgãos de gestão do trânsito estruturados. Outra modificação institucional importante decorrente da publicação do CTB/1997 foi a alteração da composição do CONTRAN, atualmente formado apenas por representantes de seis Ministérios e do órgão máximo executivo de trânsito da União (hoje o DENATRAN). O CTB/1977 criou Câmaras Temáticas, formadas por especialistas representantes dos vários participantes do SNT e de outros segmentos da sociedade, para subsidiar tecnicamente as decisões do CONTRAN. Diversas outras inovações (ainda em fase de amadurecimento) foram introduzidas no processo de habilitação dos condutores, sem deixar de mencionar a elevação geral dos valores das multas por infrações de trânsito, a introdução de critérios mais explícitos para punição pela suspensão ou cassação da habilitação, incluindo o sistema de pontuação por infrações de trânsito e a institucionalização dos sistemas de registro nacional de veículos e habilitações (o RENAVAM-Registro Nacional de Veículos Automotores e o RENACH-Registro Nacional de Carteiras de Habilitação), sem tocar nas atribuições estaduais referentes ao licenciamento de veículos e habilitação de condutores. Mencione-se também a vinculação da aplicação das receitas coletadas com multas por infrações exclusivamente para aplicações em “sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito”, reservada uma quota de 5% destinado a um fundo nacional destinado à segurança e educação de trânsito (com a criação do FUNSET-Fundo Nacional de Segurança e Educação de Trânsito) e uma quota de 10% do repasse à Previdência Social proveniente da arrecadação do DPVAT-Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre para programas de educação para o trânsito. Nesta estrutura, vale distinguir órgãos de gestão do trânsito, órgãos de fiscalização e instâncias de julgamento e recurso. A gestão do trânsito inclui o sistema viário, os veículos e os condutores, tanto nas atividades prévias quanto nas atividades regulares da operação do trânsito. A fiscalização do trânsito visa apurar infrações e, eventualmente, crimes cometidos pelos usuários da via. As instâncias de julgamento e recurso sobre infrações, na esfera administrativa, processam os autos de infração lavrados pelos agentes de fiscalização e as de interposições de recurso pelos usuários da via. No nível federal, o CTB/1997 estabelece que as atribuições principais dos órgãos componentes do SNT da União são a normatização e orientação geral referente ao tráfego, incluindo o processamento dos atos executivos de apoio à atuação geral, e a operação dos órgãos executivos rodoviários da União, incluindo o policiamento das rodovias sob administração federal. Em resumo, as principais atribuições no nível federal são:

- a normatização e orientação geral do trânsito, através do CONTRAN, em particular, regula a formação de condutores, dispositivos viários (incluindo sinalização), os dispositivos veiculares, além de procedimentos internos ao SNT, e tem a tarefa de coordenar a atuação dos órgãos do SNT (nos termos da lei), incluindo as diretrizes da Política Nacional de Trânsito;

- as decisões do CONTRAN são extensão da lei e devem conter normas de caráter geral; as normas destinadas aos agentes externos do SNT são editadas através de Resoluções e as normas destinadas aos agentes internos do SNT são editadas através de Deliberações;

- a atividade de normatização e coordenação conta com o apoio do DENATRAN, o órgão executivo de trânsito da União, que provê uma estrutura organizacional de apoio ao CONTRAN; o DENATRAN também processa atividades de administração geral no SNT, gerenciando sistemas de integração como o RENAVAM, o RENACH, além do FUNSET e dos sistemas de compensação de multas arrecadadas, entre outros; as normas de procedimentos decididas pelo DENATRAN, válidas no âmbito do SNT, são editadas através de Portarias;

- atividades gerais de emissão de documentos (Carteira Nacional de Habilitação, Permissão para Dirigir, Certificados de Registro e Licenciamento Anual de Veículos) também são atribuídos ao DENATRAN e delegadas aos Estados; o DENATRAN, entretanto, mantém a tarefa de supervisioná-los e intervir para regularizá-los, em caso de deficiência técnica ou administrativa;

- a operação dos órgãos executivos rodoviários da União é exercida atualmente pelo DNIT-Departamento

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Nacional de Infra-estrutura de Transportes (que incorporou o antigo DNER-Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, além dos antigos órgãos ferroviários, hidroviários e portuários correspondentes, não incluídos no SNT), órgão que responde pelas rodovias administradas diretamente pela União;

- embora não mencionada no CTB/1997, a ANTT-Agência Nacional de Transportes Terrestres, que responde pelas gestão das rodovias administradas por delegação (além de diversos outros serviços delegados, como os ferroviários, dutoviários, terminais e o transporte coletivo interestadual, não incluídos no SNT) tem atribuições complementares ao DNIT; do ponto de vista operacional, o mesmo aplica-se às empresas concessionárias (eventualmente, permissionárias ou autorizatárias, públicas ou privadas) responsáveis por cada via; na constituição atual do SNT, o DNIT seria o órgão a representar todas estes outros órgãos (apesar de não haver vinculação institucional entre eles);

- o apoio da Polícia Rodoviária Federal tem a tarefa de policiamento e fiscalização nas rodovias federais, incluindo as tarefas de processamento de infrações e arrecadação de multas e de registro e processamento de dados sobre acidentes de trânsito nas rodovias federais;

- as instâncias de julgamento e recursos administrativas correspondem, em primeiro nível, às JARIs de cada órgão executivo com poder de fiscalização (DENATRAN e DNIT, incluindo infrações autuadas pela Polícia Rodoviária Federal); em segundo nível, a atribuição cabe ao CONTRAN ou um órgão colegiado competente.

No nível estadual, o CTB/1997 estabelece que as atribuições principais dos órgãos componentes do SNT dos Estados são a administração dos sistemas de formação de condutores e registro de veículos, incluindo sua normatização complementar e a fiscalização das Entidades Satélite envolvidas, e a operação dos órgãos executivos rodoviários dos Estados. Em resumo, as principais atribuições no nível estadual são:

- a normatização complementar, através dos CETRANs (incluindo seu congênere relativo ao Distrito Federal), regula as atividades de competência do Estado (respeitadas as disposições do CONTRAN); sua atividade principal é, no entanto, julgar recursos;

- a administração dos serviços relacionado com o registro e fiscalização de veículos e condutores é exercida pelos DETRANs (o órgão executivo de trânsito dos Estados e do Distrito Federal), incluindo a emissão dos documentos oficiais (por delegação do DENATRAN) e a fiscalização das Entidades Satélites envolvidas nos processos de formação de condutores e registro de veículos;

- a operação dos órgãos executivos rodoviários dos estados é, em princípio, exercida pelos DERs-Departamentos Estradas de Rodagem estaduais, que respondem pelas rodovias estaduais administradas diretamente pelos Estados;

- da mesma forma que no nível federal, alguns estados possuem outros órgãos correspondentes à ANTT (por exemplo, no Estado de São Paulo existe a ARTESP, responsável por administrar as rodovias estaduais administradas por delegação) e às empresas delegatárias (no caso de São Paulo, novamente, existe uma empresa pública, a Dersa, e diversas empresas concessionárias privadas);

- as Polícias Militares tem a incumbência relacionada com o policiamento ostensivo das rodovias dos Estados; a ação fiscalizadora das normas referentes aos condutores e aos veículos é também exercida com apoio das Polícias Militares de cada Estado (suplementarmente também pelas Polícias Civis); a responsabilidade é dos DETRANs e DERs respectivos (incluindo a aplicação de multas e medidas administrativas cabíveis);

- a ação dos DETRANs e das Polícias Militares pode ser extendida aos Municípios, mediante convênio, como comentado adiante;

- as instâncias de julgamento e recursos administrativas correspondem, em primeiro nível, às JARIs de cada órgão executivo com poder de fiscalização (DETRANs e DERs); em segundo nível, a atribuição cabe aos CETRANs.

No nível municipal, o CTB/1997 estabelece que as atribuições principais dos órgãos componentes do SNT dos Municípios são relacionadas com operar as vias sob sua jurisdição. Em resumo, as principais atribuições no nível municipal são:

- pode instituir órgão de trânsito municipal (cuja integração ao SNT depende de aprovação dos CETRANs do respectivo Estado, responsável por analisar a infra-estrutura existente e nomear a Autoridade de Trânsito local) para exercer diretamente suas atribuições;

- a ação fiscalizadora correspondente ao âmbito municipal pode ser realizada por um corpo próprio de agentes de trânsito, limitada às infrações relativas à circulação, estacionamento e parada nas vias sob sua jurisdição (as demais cabem aos DETRANs e Polícias Militares);

- os municípios podem constituir órgãos rodoviários (responsáveis pelas rodovias e estradas municipais), previstos no SNT, e órgãos normativos municipais, estes representados no SNT pelo órgão de trânsito municipal correspondente;

- pode estabelecer convênio, usualmente com o Estado (com interveniência dos DETRANs ou das Polícias Militares), para ação suplementar na fiscalização e mesmo na gestão do trânsito (recriando a atividade exercida pelas CIRETRANs, na vigência do CNT/1966);

- as instâncias de julgamento e recursos administrativas correspondem, em primeiro nível, às JARIs de cada órgão com poder de fiscalização (órgãos executivos de trânsito e rodoviário municipais, se houver, DETRANs ou Polícias Militares, se estabelecido em convênio a atuação supletiva ao Município); em segundo

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e. Responsabilidades na Esfera do Trânsito.

A responsabilidade legal atinge, de forma específica, todos os agentes envolvidos no trânsito. É usual pensar, inicialmente, o autor da ação como sendo o usuário da via e o réu como sendo o gestor do sistema viário, embora, naturalmente, a situação inversa seja igualmente possível (além de poderem ser chamados outros agentes como os transportadores de bens ou de passageiros e os fabricantes de automóveis ou dispositivos de segurança). A discussão específica feita adiante tomará a forma da visão inicial, mas deve ser entendida de forma mais ampla, ponderando-se as peculiaridades da responsabilidade de cada agente, que serão comentadas. A seguir busca apenas ilustrar o amplo espectro de aspectos considerados no que tange à responsabilidade legal, de forma geral e no julgamento de casos específicos, distinguindo os campos da responsabilidade civil, penal (ou criminal) e disciplinar (ou infracional), ponderando os aspectos peculiares à gestão do sistema viário. Deve-se ressaltar, naturalmente, que este é um campo de especialização na área de Direito, que exige profundo entendimento como requisito para atuação profissional competente.

Adendo – Tipos e Modalidades de Responsabilidade Legal e sua Consideração. A Responsabilidade, em termos legais, refere-se à contrapartida por uma obrigação de conduta diante da sociedade, nos termos regidos pelas Leis. Esta obrigação legal vem regulada pela Constituição, pelos Códigos gerais (como o Penal e o Civil) e por diversas leis específicas que podem vigorar em certos contextos, notadamente o Código de Defesa do Consumidor e o Código de Trânsito Brasileiro. Toda responsabilidade legal decorre de uma obrigação legal. Por exemplo, a entidade ou órgão responsável pela gestão de uma parcela do sistema viário é responsável último pelo estado e operação adequados da parcela do sistema sob sua jurisdição ou administração, e desta obrigação decorre sua responsabilidade legal. Existem diversas áreas de responsabilidade. A responsabilidade civil decorre de prejuízos materiais ou morais causados a alguém e soluciona-se pela reparação do dano, usualmente mediante indenização pecuniária. A responsabilidade criminal ou penal decorre da ofensa à ordem social ou da produção de dano irreparável (parcialmente ao menos) e soluciona-se pelo cumprimento da pena (que pode ir da prestação de serviços ou pagamento de multa até o seqüestro de bens ou privação de liberdade). A responsabilidade disciplinar, especialmente na esfera social e pública, decorre de normas de conduta devidas, incluindo áreas diversas como a administrativa (pública, como a obrigação de dar a devida publicidade aos atos regulares de governo, nos prazos exigidos), de trânsito (como a obrigação de seguir as regras de preferência na circulação), entre outras (como trabalho, consumo). A responsabilidade é chamada quando um ato ou omissão de quem tem uma obrigação, e em decorrência dela, viola o direito de outrem ou uma norma de conduta devida. A responsabilidade decorrente de ato ilícito é a forma mais

nível, a atribuição cabe também aos CETRANs. O CTB/1997 pode ser criticado por estabelecer uma ordenação com significativa superposição e segmentação de atribuições (em alguns casos omissão), que desafia o poder de coordenação do CONTRAN. Deve-se notar que a tarefa efetiva de gerir o sistema viário reparte-se entre os órgãos executivos rodoviários (que cuidam das rodovias e estradas estaduais e federais) e os órgãos de trânsito municipais (que cuidam das demais vias, incluindo rodovias e estradas municipais). A definição de vias estaduais e federais decorre da assunção da tarefa de construção e operação estabelecida por lei. As demais vias são da circunscrição municipal. Nesta atividade, as dificuldades de integração são importantes, por exemplo, na articulação com as tarefas de policiamento, registro de acidentes, compensação de multas (parcialmente dependentes da coordenação do CONTRAN). Outras áreas, como a educação para o trânsito, são tarefa de todos e de ninguém (visto que não existem responsabilidades claramente definidas). A maior deficiência institucional da administração do trânsito no Brasil, no entanto, tem relação com outra esfera: a inoperância da justiça.

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usual mas existe também responsabilidade decorrente de ato lícito (legal), especificamente na esfera civil. Existem diversas fontes de obrigação (e de responsabilidade). A responsabilidade contratual é a que decorre explicitamente dos termos de um contrato entre partes. A responsabilidade extra-contratual é a que decorre do ordenamento geral da sociedade (notadamente das leis gerais). Os contratos podem matizar as responsabilidades extra-contratuais mas apenas dentro dos limites impostos pelas leis gerais. A discussão a seguir está limitada à responsabilidade extra-contratual. Na esfera civil, a responsabilidade extra-contratual do Estado é um tema tradicional de estudo na área jurídica. No entanto, a responsabilidade extra-contratual de entidades privadas é cada vez maior e vem tornando-se um tema presente e corriqueiro (como as responsabilidades decorrentes da Código de Defesa do Consumidor, por exemplo). A responsabilidade das pessoas, particularmente dos profissionais (funcionários ou autônomos), é também extra-contratual em boa medida, assim como é a dos usuários da via enquanto tal. O Estado pode delegar suas obrigações nos limites das leis que regulam a possibilidade utilizar mecanismos indiretos de atuação, usualmente concessão ou permissão a outras entidades, de direito público ou mais comumente privado. A transferência da responsabilidade civil por danos causados pelo executor, se autorizado pela lei, é regido pelo contrato específico. Usualmente, esta possibilidade de transferir uma vez mais as responsabilidades (subrogar) é vedada aos concessionários e permissionários (dentro dos limites estabelecidos nas leis regulamentadoras e nos contratos de concessão ou termos de permissão). Mesmo nos casos em que a responsabilidade primária é transferida ao executor, cabe a responsabilidade subsidiária do Estado (no impedimento do responsável primário), como caberia no caso de transferência de atribuição a terceiros, se admitida. A responsabilidade subsidiária é distinta da responsabilidade solidária (em que ambos repartem os encargos entre si) e somente é chamada na insolvência do responsável primário. Portanto, a questão de identificar a entidade ou órgão que deve responder pela obrigação e responsabilidade civil é, em geral, assentada. Por exemplo, a lei geral e os contratos ou termos que regem as atribuições de gestão do sistema viário é que definem quem tem a obrigação e, em consequência, a responsabilidade por cuidar do estado e operação adequados do sistema viário. Essa obrigação (e responsabilidade) seria, fora deste marco regulamentar e contratual, última e intransferível. A determinação específica da responsabilidade de reparar um dano depende de alguns aspectos preliminares: reconhecer a ocorrência do dano e sua natureza ligada ao serviço, e determinar que sua produção decorreu de um fato relacionado com a obrigação (nexo causal, pelo menos, e culpa, se aplicável, como será discutido logo a seguir). Esta determinação pode ser colocada em um entre diversos contextos, que configuram genericamente as modalidades de responsabilidade. Além da prova da ocorrência do dano e da sua natureza (relação com a obrigação), cada modalidade de responsabilidade identifica um elemento distinto adicional como determinante da responsabilidade por reparar o dano produzido a alguém. O fato objetivo que conecta a obrigação ao dano também é distinto em cada modalidade de responsabilidade. As duas modalidades de responsabilidade civil usualmente consideradas no Brasil, para diferentes contextos, são a responsabilidade subjetiva e a responsabilidade objetiva. A responsabilidade subjetiva relaciona a necessidade de reparar o dano comprovado a dois fatos: o nexo causal entre a ação ou omissão referente a uma obrigação e o dano produzido a alguém, e a culpa ou dolo em concorrer (total ou parcialmente) para a produção do dano. A culpa, em sentido jurídico (isto é, independente da intenção de produzir o dano), pode manifestar-se por diversas características da ação ou omissão, usualmente identificadas como imprudência (imprevidência), imperícia ou negligência. O dolo, no sentido jurídico, adiciona a intenção de produzir o dano (usualmente tomado como agravante na violação do direito de outrem, assim como a gravidade da culpa). A responsabilidade objetiva relaciona a necessidade de reparar o dano comprovado apenas ao nexo causal entre a ação ou omissão referente a uma obrigação e o dano produzido a alguém. Exclui-se, para a responsabilidade civil objetiva, qualquer discussão relativa à culpa como requisito (a culpa pode apenas interferir sobre o valor a indenizar). Em certos casos, a lei estabelece uma modalidade que supera esta responsabilidade dita objetiva, estabelecendo a responsabilidade integral (ou social) que relaciona a necessidade de reparar o dano apenas com a ocorrência do próprio dano a alguém, dentro do conjunto de eventos objeto de cobertura integral (independente de nexo causal ou culpa). Em geral, é o caso da responsabilidade de indenizar por danos

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decorrentes de atividades que manuseiam a energia nuclear. Este é também o caso relativo ao Seguro de Responsabilidade Civil Obrigatório para danos pessoais decorrentes de acidentes em vias terrestres (DPVAT), atualmente existente no Brasil Em ambos os casos, a responsabilidade é integral mas o montante a ressarcir é limitado (a reparação excedente pode ser invocada de outra fonte e modalidade). Na legislação brasileira, a responsabilidade objetiva é exceção (válida somente nos casos especificamente mencionados em lei). Esta é a situação clara pelo menos no que se refere a responsabilidade decorrente de ato ilícito. Boa parte dos casos excepcionais referem-se à Responsabilidade Civil do Estado diante de terceiros (estendido às empresas privadas prestadoras de serviços públicos desde a Constituição de 1988, como se verá adiante), pelo menos no que toca a ação (e não omissão). Também é regra separar a responsabilidade dos prepostos, especialmente dos empregados (que pode ser objeto de uma ação indenizatória regressiva, caso tenha havido a condenação do responsável primário), mantendo-a na modalidade subjetiva mesmo quando a responsabilidade primária é objetiva. A obrigação do profissional, em qualquer destes casos, pode assumir duas naturezas distintas: a obrigação de meios, na qual ele se obriga a utilizar os melhores meios disponíveis para realização dos trabalhos, ou a obrigação de resultados, na qual ele se obriga também a atingir resultados específicos. Uma ou outra situação decorre da definição do objeto do serviço (e pode ser explicitamente citado no contrato). Entretanto, numa e noutra situação, a responsabilidade do profissional decorre de dolo ou culpa na obrigação específica. A distinção é também relevante porque normalmente afeta quem tem o ônus da prova: na obrigação de meios, o cliente deve provar que o profissional atuou com dolo ou culpa; na obrigação de resultados, o cliente apenas precisa alegar a frustração dos resultados, ficando ao profissional o encargo de provar que os resultados foram atingidos ou que não puderam ser atingidos, independente de dolo ou culpa. O estabelecimento do nexo causal e da culpa (no sentido jurídico) nem sempre têm delimitação clara, em termos práticos. Um e outro aspecto são passíveis de extensa discussão e o julgamento específico de cada caso pode ponderar aspectos distintos de forma bastante diversa. Toda ocorrência tem, naturalmente, causas diversas (próximas ou remotas). Por esse motivo, diversos princípios práticos são essenciais para delimitar as causas preponderantes e identificar os responsáveis diretos por cada ocorrência específica. Por exemplo, o princípio da causa próxima e o princípio da ação razoável procuram delimitar a amplitude de análise aplicável a cada caso prático específico. Este é o campo em que a determinação específica da procedência das ações de reparação dos danos é discutida de forma mais ampla. A delimitação prática da obrigação de reparar o dano completa-se pela discussão de aspectos que poderiam ser invocados como excludentes de culpa (na modalidade subjetiva de responsabilidade) ou de responsabilidade (de forma geral). A culpa exclusiva de terceiro (em geral a vítima) é o caso mais típico (pois rompe o próprio nexo de causalidade com a obrigação legal). Outros aspectos são bastante discutidos, em especial quando se trata da responsabilidade objetiva (fato fortuito, força maior, entre outros). A solução do processo originado por motivação indenizatória ainda exige a determinação do montante. A obrigação de indenizar remete à idéia de recomposição de uma situação pré-existente em relação à ocorrência que produziu o dano. Esta ótica reparadora é a predominante na apuração do montante a indenizar nos casos em que os efeitos dos danos afetam material ou financeiramente as vítimas mas é complementada por óticas punitivas e compensatórias em casos específicos (como no dano moral). Em qualquer caso, diversas questões ainda interferem no julgamento relativo a quem deve indenizar ou a repartição do montante do valor devido como indenização (quando atribuível a mais de um responsável). Na esfera penal, normalmente distinguem-se crimes e contravenções, ambas entendidas como ofensas à ordem social, distinguindo-se apenas pela maior ou menor gravidade, a serem apenadas de forma mais rigorosa ou mais branda (em outros países, distinguem-se os delitos, como categoria intermediária entre crimes e contravenções). Em face da importância relativa da ofensa social, diante do conteúdo privado normalmente também envolvido, a iniciativa para a proposição da ação penal pode ser privada (motivada pela queixa da vítima ou parte legítima) ou pública (neste caso, sendo condicionada, se exige representação por parte da vítima, ou incondicionada, se não a exige, ambas sendo diretamente propostas pelo Ministério Público). A requisição de investigação (seja através da queixa da vítima ou da requisição direta do Ministério Público, acompanhada ou não de representação da vítima, conforme o caso) é encaminhado para a autoridade do policial que a realiza e envia ao poder judiciário (que instaura ou arquiva o processo, conforme seja pertinente). As penas são classificadas em penas privativas de liberdade (reclusão, detenção ou prisão simples) e penas privativas de direito (que incluem também os serviços prestados à comunidade, as penas pecuniárias de multas, a perda de bens e valores). Na privação de liberdade aplicam-se os regimes fechado (em penitenciárias), semi-aberto (em colônias agrícola, industrial ou similar) ou aberto (em casa de albergado ou similar).

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Tipicamente, os crimes têm penas de reclusão (iniciadas em regime fechado ou semi-aberto) ou detenção (iniciadas em regime semi-aberto ou aberto), alternativa ou cumulativamente com multas e outras penalidades, enquanto as contravenções têm penas de prisão simples (...) e/ou multa apenas. A progressão da pena pode, entretanto, alterar o regime prisional. Em que pese a conceituação genérica, a tradição brasileira é estritamente positiva no que diz respeito à delimitação dos crimes (e também das contravenções). Como é praxe dizer-se, não há crime sem lei anterior que o defina (nem há pena sem prévia cominação legal), estabelecendo os seguintes elementos: a conduta (ação ou omissão), o resultado, a relação de causalidade (nexo causal) e a tipicidade (definição legal). A conduta criminosa é, por conseqüência, intrinsecamente ilícita (contrária à lei). No entanto, existem excludentes de ilicitude: agir em estado de necessidade ou legítima defesa, ação em cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito, desde que os meios e seu uso não caracterizem abuso ou excesso. Embora semelhantes, nem sempre são também excludentes de culpa ou responsabilidade na esfera cível. Em casos excepcionais, pode-se discutir outros excludentes de ilicitude (como o consentimento do ofendido, exceto para bem jurídico indisponível). A conduta criminosa normalmente reveste-se de dolo, tendo como elementos a vontade, a finalidade, a exteriorização e a consciência. São exceções os crimes culposos (com resultado involuntário e não previsto, embora objetivamente previsível às pessoas de razoável diligência, caracterizando imprudência, negligência ou imperícia), somente reconhecidos quando explicitamente tipificados. Como regra, os crimes envolvem as etapas de cogitação, preparação, execução e consumação (ditos crimes consumados), sendo também punidos os crimes de tentativa (que iniciaram a execução mas não lograram consumar o resultado pretendido), quando for possível caracterizá-los. Ambas as condutas (culposas e tentativas) são afastados no caso das contravenções. Entretanto, nesta formulação, não existem crimes de cogitação ou de preparação apenas (embora a lei puna práticas correlatas, como a organização para o crime através da formação de quadrilhas que lograram atuar eventualmente). Pelo que foi dito, entende-se também que a imputabilidade penal pressupõe a capacidade de entender o caráter ilícito do fato, em vista do conhecimento do ordenamento legal existente. Além de condições gerais (menoridade penal, doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, embriaguez proveniente de fato fortuito ou força maior), a inimputabilidade pode decorrer de conduta eivada por erro de tipo (por não aperceber-se da prática do ilícito, por ser imperceptível), erro de proibição (por supor permitida o que é proibido, em face de juízo dominante nas condições do agente, mas falso no campo técnico-jurídico), além de coação física ou moral irresistível. No que se refere à natureza da ofensa, entre os crimes (as ofensas de maior gravidade), distinguem-se os crimes materiais (que produzem resultado naturalístico, que ocorre com modificação no mundo exterior, como nos homicídios ou latrocínios), formais (que não necessitam resultado naturalístico, embora este seja possível, como na violação de sigilo profissional) e de mera conduta (em que o resultado naturalístico não é possível, como na invasão de domicílio). Distinguem-se diversas outras tipologias, como os crimes comuns ou próprios (que podem ser praticados por qualquer pessoa ou exigem uma dada característica do agente, como estado ou cargo), entre outros. De forma geral, sobre o concurso de pessoas, a tradição brasileira adota como regra a visão unitária do crime e determina que todos os que concorrem para a sua produção respondem pelo mesmo crime, na medida da sua culpabilidade, tomado pelo tipo mais grave (em casos específicos, adota-se a visão pluralística, identificando um crime próprio para cada envolvido). Esta visão está refletida no princípio da comunicação penal (apenas são incomunicáveis as circunstâncias e condições pessoais, como a menoridade penal). A distinção entre o autor (aquele que realiza a conduta principal; co-autores quando a ação principal é realizada conjuntamente por mais de uma pessoa) e o participante (que sem praticar a ação principal, concorre com ação relevante para a produção do crime) afeta a gravidade da culpa e da pena decorrente. Reconhece-se, entretanto, a autoria mediata (que utiliza-se de outra pessoa, que atua sem culpabilidade, para produzir o crime), a autoria colateral (quando há ação independente de pessoas, produzindo resultados distintos) e a autoria incerta (quanto há autoria colateral e os resultados específicos produzidos por cada ação distinta não pode ser identificada). O campo penal comporta também a discussão sobre os tipos de dolo, reconhecendo situações limites em que o dolo não é direto (vontade de realizar a conduta e produzir o dano, conscientemente) mas indireto, quando o agente apenas aceita a possibilidade de produzir o dano (dolo eventual) ou não se importa com a possibilidade de produzir ou não o dano (dolo alternativo). Cabe ainda a delimitação e caracterização da culpa, quando são admitidos os crimes culposos, da tentativa, quando relevante para reconhecer crime efetivado mas não consumado, e do arrependimento, quando relevante para afastar ou minorar a pena, entre outros aspectos. a caracterização. Na esfera disciplinar, por fim, busca-se ir além da vigilância contra a ofensa ao patrimônio ou à ordem social através do estabelecimento de normas de obediência a procedimentos, determinados para prevenir potenciais ofensas, apurando-se as faltas ou infrações de conduta, mesmo na falta de dano ou ofensa a terceiros. Estes aspectos usualmente recebem pequena atenção na discussão sobre responsabilidade legal (muitas vezes limitada à

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No caso dos serviços públicos e do sistema viário aberto à circulação pública, em particular, a obrigação original de cuidar pelo estado e operação adequados cabe ao Estado, da esfera com jurisdição sobre a via considerada (municipal, estadual ou federal), atuando através de seus servidores. A atuação através de concessionárias ou permissionárias ou de empresas contratadas, como seus prepostos, é freqüente. No campo da responsabilidade civil, a tendência recente é ter, por legislação específica, a gestão do sistema viário está submetida à modalidade de responsabilidade objetiva. Por considerá-la uma atividade de risco intrínseco, as entidades que atuam no setor (gestores, concessionários, fabricantes, transportadores) recebem o encargo de indenizar por danos decorrentes da atividade e devem incorporá-lo aos seus custos. Por exemplo, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a prestadora do serviço público é a responsável última e a ação de regresso é limitada aos casos de dolo ou culpa, independente da modalidade de responsabilidade adotada para prestação de cada serviço público específico.1 O Código de Trânsito Brasileiro de 1997, que regula o trânsito de qualquer natureza nas vias abertas à circulação, é concordante2 e

1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – Artigo 37, parágrafo 6o. (redação original): “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.” 2 Código de Trânsito Brasileiro de 1997 – Artigo 1o., parágrafo 3o.:“Os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao SNT respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados ao cidadão em virtude da ação, omissão ou erro na execução ou manutenção de programas, projetos e serviços que

Quanto à responsabilidade civil por indenizar danos a terceiros:

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responsabilidade administrativa em sentido restrito, isto é, da administração pública) por ensejarem apenas potencial ofensivo (algumas faltas ou infrações de conduta mais graves são elevadas à categoria de crime ou contravenção), negligenciando-se seu caráter preventivo. As esferas administrativas (pública e privada) e sociais (das relações de consumo, comércio, trabalho, além da esfera de trânsito) destacam esta dimensão. A ineficácia da justiça, por outro lado, destaca de forma indevida a esfera disciplinar como forma de minorar a sensação de impunidade civil e penal. As faltas ou infrações de procedimento são normalmente punidas através de multas e diversas medidas administrativas e disciplinares, correspondentes à esfera administrativa ou social regulada. Na área administrativa, são usuais sanções disciplinares de advertência ou repreensão ou de suspensão ou demissão. Na área social, a suspensão de direitos ou a apreensão de bens ou documentos objetos de conduta irregular podem ser as alternativas usuais. Em ambos os casos, as sansões pecuniárias são o meio mais usual (e muitas vezes mais eficaz). A ministração da justiça, nesta esfera, usualmente recorre a procedimentos internos (pré-judiciais) da administração estatal, destinados a evitar que uma grande miríade de pequenas ofensas ocorra ou chegue aos juizados convencionais (ou mesmo especiais). A celeridade ou formalidade na apuração das violações de normas de conduta devidas varia de forma ampla. Em todos os casos, garante-se instâncias de recurso destinadas a permitir adequada defesa ao cidadão, ainda no nível pré-judicial (também garantida a possibilidade de recurso às instâncias judiciárias). Quando refere-se à própria administração pública, a apuração da responsabilidade e decisão sobre a pena exige a instauração de um processo administrativo destinado a apurar os fatos, assegurando-se o contraditório e amplo direito de defesa aos acusados (é o devido processo legal), admitindo-se em casos específicos a apuração sumária (sindicância, flagrância). Quando refere-se às áreas sociais, como o tráfego, o sistema administrativo é constituído para permitir a decisão célere sobre as penas e os recursos decorrentes dos Autos de Infração. Em um e outro caso, pode-se prever a possibilidade de recurso na esfera administrativa, além do recurso ao judiciário. Note-se que faltas graves, consideradas crimes ou contravenções, apuram-se judicialmente. Em conclusão, sublinhe-se que as esferas de responsabilidades não são mutuamente exclusivas nem devem ser concordantes no veredicto relacionado com a análise dos fatos. Uma mesma situação pode ensejar mais de uma ação de responsabilização. A decisão justa relativa à condenação ou absolvição pode diferir em cada esfera, face às peculiaridades de cada julgamento.

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bastaria para fixar o princípio da responsabilidade objetiva neste caso específico. De forma também específica, o Código de Defesa do Consumidor de 1990, que trata mais particularmente da proteção e defesa dos direitos de consumidores de produtos e serviços (entendidos esses últimos como as atividades fornecidas no mercado mediante remuneração), reafirma a mesma posição e ainda traz consigo a inversão do ônus da prova.3 Portanto, a responsabilidade dos gestores do sistema viário assume, segundo a legislação em vigor, a modalidade objetiva e isto tem uma clara implicação em estabelecer um regime mais rigoroso na apuração da obrigação de indenizar por danos causados aos usuários do sistema viário. Embora, a morosidade e arbitrariedade típicas da justiça no Brasil tenham corrido em favor da falta de reconhecimento das suas responsabilidades, esta situação tem-se alterado de forma significativa e rápida recentemente. No caso de empresas privadas que atuam como concessionárias de serviços de gestão do sistema viário, a situação é claramente mais exposta a ações indenizatórias. Em particular nos litígios menores, passíveis de proposição nos juizados especiais, a celeridade do processo recomenda reconhecer as falhas de serviço e somente levar adiante casos em que as excludentes de responsabilidade podem realmente ser invocadas (ou eventualmente a responsabilidade de indenizar pode ser repartida com a vítima ou com terceiros). Para a apuração da responsabilidade profissional envolvido na gestão do sistema viário, outras considerações podem ser pertinentes. Em geral, a situação do profissional é sempre a mesma mas, para o cliente dos serviços, é importante distinguir dois contextos: a contratação direta do profissional ou a contratação de uma empresa prestadora de serviços (como um firma de consultoria, projeto ou construção). Seja prestando serviço diretamente ao cliente ou seja atuando como contratado de uma entidade qualquer que intermedia a prestação do serviço, a responsabilidade profissional sempre aparece e normalmente é presidida pelo princípio da modalidade subjetiva, que pressupõe a garantam o exercício do direito ao trânsito seguro.”De forma redundante, o artigo 90, parágrafo 1o., do CTB estabelece que “O órgão ou entidade de trânsito com circunscrição sobre a via é responsável pela implantação da sinalização, respondendo pela sua falta, insuficiência ou incorreta colocação.” A sigla SNT refere-se ao Sistema Nacional de Trânsito, “o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que têm por finalidade o exercício de atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento das infrações e de recursos e aplicação das penalidades.” (artigo 5o.) 3 Código de Defesa do Consumidor de 1990 – Artigo 14 (redação original): “O fornecedor de serviços responde, independentemente de culpa, pela reparação por danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação do serviço, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. §1o. O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I- o modo de seu fornecimento; II- o resultado e os riscos que razoavelmente dele são esperados; III- a época em que foi fornecido. §2o. O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. §3o. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I- que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II- a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. §4o. A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.” A situação é similar, embora mais complexa, no que se refere aos produtos (não serviços). Mesmo sendo explícito na identificação dos excludentes de responsabilidade, estabelecendo o grau de responsabilidade objetiva pretendido, a aplicação da lei não é isenta de controvérsias.

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existência de dolo ou culpa (por negligência, imprudência ou imperícia) como fundamento da obrigação de indenizar.4 Na contratação direta, o profissional responde primariamente (se acionado pelo cliente), enquanto na contratação de uma empresa, o profissional responde regressivamente (isto é, se acionado pela empresa, para ressarcir-se diante da condenação para indenizar o cliente). A responsabilidade regressiva do servidor ou do empregado do órgão gestor do sistema viário, na medida em que aumente a exposição dos primariamente responsáveis, deverá crescer de forma correspondente. Como o servidor ou empregado responde na modalidade subjetiva, a ação idônea, prudente, cuidadosa e competente, configura a armadura capaz de protegê-lo da obrigação de ter ressarcir pelo dano causado. Vale lembrar que uma situação similar envolve os usuários da via. Embora usualmente tratadas de forma menos rigorosa (por exemplo, admitindo-se a modalidade subjetiva de responsabilidade), as obrigações recíprocas de comportamento no trânsito têm também sido cobradas de forma cada vez mais exigente e uniforme, tanto pelas leis quanto pela jurisprudência (em que pesem seus vícios sociais). A responsabilidade das empresas transportadoras e dos fabricantes de veículos, por sua vez, aproximam-se das que atingem os gestores do sistema viário, dado que as relações de consumo também implicam em responsabilidade objetiva da mesma forma. Quanto às empresas construtoras de vias e aos fabricantes de dispositivos viários, estes seriam responsáveis diante dos órgãos gestores, também regressivamente, mas objetivamente (ao contrário dos funcionários e dos profissionais autônomos). O campo da responsabilidade penal (ou criminal), de forma geral, não trata a esfera de trânsito de forma peculiar, exceto no que se relaciona a aplicar maior rigor aos crimes de trânsito, entendidos como aqueles praticados pelos usuários da via, e capitulados de forma específica no Código Brasileiro de Trânsito de 1997, e a incorporar sanções particularmente relacionadas com a esfera de trânsito, como suspensão ou cassação da habilitação para conduzir veículos automotores (a Permissão para Dirigir ou a Carteira de Habilitação, segundo o CTB/1997, que pode ser aplicada de forma isolada ou cumulativamente com outras penas). Pode-se distinguir, entre os crimes de trânsito enumerados no CTB/1997, os crimes materiais e os crimes formais. Entre os crimes materiais, o CTB/1997 aumenta o rigor da pena nos crimes de homicídio ou lesão corporal culposos (isto é, não intencional) cometido na direção de veículo automotor (entretanto, não se

pronuncia sobre teses, como a tese do dolo eventual, que agravariam ainda mais a pena potencial decorrente da existência de vítimas acidentes motivados por práticas reconhecidamente perigosas como a 4 A discussão referente a existência de culpa (evidenciada pela negligência, imprudência ou imperícia) toca duas questões comuns: a relativa ao erro do profissional e a relativa à negativa em agir segundo o desejo do cliente. O erro inescusável é a categoria usualmente associada à evidência de culpa por imperícia, julgada segundo o padrão de competência esperada de um profissional habilitado. A negativa em agir segundo o desejo do cliente, não somente admitida como exigida na conduta do profissional, apenas pode ser justificada se representar ação contrária à lei ou aos bons princípios, à ética ou dignidade profissional (da negativa não decorrem nem a renúncia do profissional nem o direito à destituição pelo cliente). Ambas as questões ficam submetidas ao julgamento social e ao princípio da ação ou conduta razoável.

Quanto à responsabilidade penal por ofensas à ordem social:

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direção após ingestão de álcool ou drogas e em velocidades incompatíveis com o tráfego normal). Entre os crimes formais, o CTB/1997 estabelece pena de detenção (além da suspensão ou cassação da habilitação) para o ato de dirigir sob a influência de álcool, expondo terceiros a risco, e de participar de rachas e competições não autorizadas em via pública, expondo terceiros a risco, e a pena de detenção ou multa para o ato de deixar de prestar socorro a vítimas ou de solicitar auxílio da autoridade pública, de abandonar o local de acidente para fugir à responsabilidade, de prestar informações falsas sobre acidente, de transitar em velocidade incompatível com a via, gerando riscos a terceiros, de dirigir sem habilitação ou com habilitação suspensa/cassada, de entregar o veículo a pessoa não habilitada. Note que diversos atos que constituem simples infração de trânsito transformam-se em crimes se for comprovado ter-se exposto terceiros a risco. O CTB/1997 também enumera, de forma genérica, as circunstâncias que agravam ou minoram a pena relacionada com crimes de trânsito. Os agravantes estão relacionados com ter cometido infração: com dano potencial a duas ou mais pessoais, com grande risco de grave dano potencial a terceiros, com utilização de veículo sem placas, com placas falsas ou adulteradas, sem possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação, quando a profissão exige cuidados especiais com o transporte de passageiros ou carga, com adulteração equipamentos ou características dos veículos que afetem sua segurança ou seu funcionamento de acordo com os limites de velocidade das especificações dos fabricantes, e invadindo a faixa de trânsito temporária ou permanentemente destinada aos pedestres. Em contrapartida, estabelece que não se imporá prisão em flagrante e nem se exigirá fiança de condutor que prestar pronto e integral socorre às vítimas de acidente. O campo da responsabilidade disciplinar deve distinguir as esferas relacionadas com os servidores e empregados das entidades envolvidas, por um lado, e com os usuários da via, por outro lado. No que tange aos servidores e empregados, não há peculiaridade relacionada com a área de trânsito, exceto por algumas disposições especiais inseridos no CTB/1997 que estabelecem multas diárias pela falta de serviço (alguns de responsabilidade de terceiros) e são de aplicabilidade duvidosa. De resto, os servidores e empregados sujeitam-se às infrações funcionais usuais da esfera pública ou privada, conforme sua modalidade de contratação. Em todos estes casos, deve-se instaurar o competente processo administrativo (garantido o direito de contraditório e ampla defesa) para apurar as responsabilidades e decidir as penas administrativas cabíveis, do qual usualmente cabe recurso à instância administrativa superior. Além disso, o servidor ou empregado sujeita-se a ação regressiva por indenização paga, se comprovado que o dado foi causado por sua ação ou omissão, em casos em que houve dolo ou culpa, e ações penais relativas aos crimes funcionais aplicáveis de forma geral (observada a ampliação do conceito de funcionário público para fins penais, estabelecida no Código Penal brasileiro, que inclui o empregado de empresa privada no exercício de função pública ou prestação de serviço público).oo que tange aos usuários da via, a esfera administrativa na área de trânsito normalmente assume uma organização peculiar. Face à freqüência e importância das infrações cometidas no trânsito e da apuração e aplicação das sanções correspondentes, parte substancial da estrutura

Quanto à responsabilidade disciplinar por conduta na esfera interna ou social:

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do SNT-Sistema Nacional de Trânsito refere-se à fiscalização, autuação e recurso relacionados com as infrações de trânsito. Face à baixa efetividade da justiça no Brasil, não é de estranhar-se que a sociedade tenha buscado enfatizar a atividade preventiva contida na esfera disciplinar. No contexto institucional do trânsito, os órgãos executivos de trânsito e rodoviários, nos níveis federal, estadual e municipal, tem amplos poderes de fiscalização (embasados em um arcabouço legal razoavelmente sólido, exceto em áreas específicas como o controle do uso de álcool no trânsito) e são apoiados pela ação dos órgãos policiais (notadamente as Polícias Militares dos Estados) e por corpos de fiscalização municipais, quando aprovados pelas CETRANs. Aplicação da lei, neste aspecto, segue um processo administrativo razoavelmente instrumentado e operacional, regulado detalhadamente pelo CONTRAN. Agentes de fiscalização, devidamente treinados, são responsáveis por apurar as infrações de trânsito e emitir os autos de infração correspondentes (AIT), dentro das atribuições definidas e seguindo os critérios de enquadramento que complementam a delimitação das circunstâncias práticas que caracterizam cada infração. O AIT é processado e, verificada a regularidade da autuação pelo órgão executivo correspondente, é enviada uma notificação ao infrator, cujo recebimento que inicia a contagem do prazo para recurso e identificação do infrator (exceto no caso de autuações em flagrante, cujo prazo inicia-se na data da ocorrência). A primeira instância de recurso está nas JARIs correspondentes aos órgãos executivos responsáveis pela autuação, sendo portanto interna, e pode ser exercido sem aplicação das penas (no caso de multa, o infrator pode optar por pagá-la com desconto nesta fase, sendo reembolsado em caso de anulação da autuação). Se a autuação for mantida, o infrator pode exercer seu direito de recurso ainda na esfera administrativa (caracterizando a dupla instância de recursos administrativos), recorrendo normalmente aos CETRANs (mesmo a exigência de pagamento, no caso de multa, antes de recorrer à segunda instância, exigida em certos regulamentos, não tem sido aplicada). Outro processo semelhante é inaugurado no caso da aplicação de penas decorrentes da acumulação de infrações, relacionado com o sistema de pontuação atual. Para certos casos, pode-se julgar que faltam, na esfera administrativa, o devido processo legal com direito ao contraditório e ampla defesa, e todos as usuais instâncias judiciais podem ser utilizadas. Nas penalidades mais drásticas, como a cassação da habilitação, a ação judicial pode ter efeito suspensivo (o juiz pode, também, decidir pela imediata aplicação se considerar que suspende-la acarreta algum grau de periculosidade). Na maior parte dos casos o processo parece revestir-se, portanto, de suficientes garantias aos usuários da via. Esta extensa discussão sobre a responsabilidade legal tem o objetivo de chamar a atenção sobre um aspecto em que a sociedade brasileira talvez precise evoluir para atingir um maior nível de civilidade no trânsito. Em certos casos, como no combate ao uso de álcool no trânsito e a proteção dos usuários vulneráveis (como os pedestres), o esforço de fiscalização parece ter o maior rigor da aplicação das leis de responsabilização como condição para uma eficácia suficiente. O mesmo aplica-se à responsabilização do poder público e seus prepostos. Em muitos países, as ações judiciais e os riscos de condenação (pelo menos no campo civil, isto é, na indenização por danos causados) são

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preocupações reais e que atingem todos os agentes do trânsito. Em certos países, tende-se até ao extremo oposto, em que uma indústria de indenizações serve-se dos órgãos gestores do sistema viário para auferir ganhos extraordinários. Se não se quer ir a estes extremos, naturalmente também não se quer manter um ambiente de irresponsabilidade no campo legal como regra igualmente perversa. O furor da atuação no campo disciplinar não substitui a eficácia da responsabilização civil e penal. A atuação desequilibrada, muitas vezes o único recurso viável a curto prazo, corre o risco de trocar a justiça efetiva pelo convívio com duas injustiças concretas: não responsabilizar civil e penalmente aquele que contribui com dolo ou culpa para a ocorrência dos acidentes e, em lugar disso, punir de forma exagerada pequenas infrações cometidas no trânsito, cuja frequência é também exagerada em face da aludida impunidade mas cujo potencial ofensivo é claramente bastante menor que aquele que justificaria penalidades rigorosas. O CTB de 1997 é um claro exemplo, inclusive por não distinguir as infrações pela produção efetiva de risco de acidentes. Os comportamentos de risco são, em princípio, elevados pelo CTB de 1997 a crimes formais (isto é, mesmo quando não chegam a produzir a concretização de uma ofensa a terceiros, como o ato de dirigir alcoolizado) mas aqui reaparece a impunidade e a aplicação da lei é muito menos efetiva que a aplicação de penas pelas infrações regulares.