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Michel Albert Capitalismo versus Capitalismo FdJçòes Loyoia I ^FUNDAÇÃO FIDES

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Michel Albert

Capitalismoversus

Capitalismo

FdJçòes LoyoiaI ^ F U N D A Ç Ã O FIDES

O OUTRO CAPITALISMO5

i;in economia como em tudo, as caricaturas marcam mais que os IfKiitos rebuscados; os exageros chamam melhor a atenção que as iiiillezas. Numa palavra, as lantejoulas e os bafafás de Bolsa da Honomia-cassino são mais célebres pelo mundo afora do que os M|iiilíbrios sutis da Sozialmarktwirtschaft (economia social de ihrrcado) alemã. Quando sonha com aquele capitalismo mítico ijur, segundo pensa, lhe abrirá em breve as portas da prosperidade,

I |i morador de Tirana (na Albânia), de Ulan-Bator (na Mongólia)

I| im de Bratislava (na Eslováquia) pensa naturalmente no universo iIiih novelas americanas. O mesmo que vinha sendo vilipendiado M meio século pela mentirosa propaganda do poder comunista. Se n antigo poder falava tão mal dele... Aliás, era em direção à América que queriam precipitar-se as poucas dezenas de refugia­dos albaneses, escapados da fortaleza stalinista e acolhidos pela hunça no verão de 1990. A abertura de uma «arena» de Bolsa em Itudapest, no início de 1990, foi vivida pelos húngaros como um «Inal indiscutível de que acediam, finalmente, ao paraíso capitalis- IN.

Seria, pois, uma surpresa para a maioria dos habitantes dos antigos países comunistas, se se lhes objetasse que o capitalismo não é «uno e indivisível», que vários modelos de economia de mercado coexistem, ou que, sem dúvida, o sistema americano não é o mais eficaz. E seguramente cumular-se-ia de felicidade a Lech Walesa, o novo Presidente da Polônia, ao assegurar-lhe que não

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está completamente equivocado quando sonha hoje - em alt» v - • com um «modelo» ideal que pudesse conciliar a eficácia > . suposta prosperidade do capitalismo americano com a - reliilh ■» segurança social do antigo regime comunista (ver Guy Soimmh, Sairão Socialismo, Fayard, 1991). Um modelo noqual, retomim-fci uma brincadeira muito difundida em Varsóvia, «as pessoas pn*l# riam viver como os japoneses, mas sem trabalhar mais quo •<« poloneses».

Fonte: Courfier International, nB 0,3 a 9 de janeiro de 1991, pg. 29.Com efeito, será que se sabe que a Alemanha não está tãodistante i

desta situação hipotética? Ao menos no que diz respeito à jornada I de trabalho. Com 1.633 horas anuais de trabalho real na indústria • manulatureira, a RFA satisfaz tranqüilamente ao paradoxo que consiste em «trabalhar menos que os franceses e ter, ao mesmo) tempo, um desempenho igual ao dos japoneses» (Futuribles, ja­neiro 1989). Na metalurgia alemã, a semana de 36,5 horas já vem sendo aplicada, à espera das «trinta e cinco horas», que talvez não l I sejam de aplicação geral em 1995 conforme previsto, mas que y

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Numnte virão um dia. (Há debates sobre o assunto). Entre todos , uImk industrializados, a RFA é aquele que tem, ao mesmo q«», os horários mais curtos e os salários mais elevados. O que

■ i h<inm nenhuma a impede de registrar um enorme excedente em i > docas com o estrangeiro.

W«u» a Alemanha é apenas um exemplo, uma encarnação parti- i" li deste «outro capitalismo», o modelo renano, mal conhecido fMHl compreendido, que se estende do norte da Europa até a Suíça «o qual filia-se também parcialmente o Japão. E um modelo

kltu utivelmente capitalista: a economia de mercado, a proprie- > uh* privada e a livre empresa são suas regras. Há uns dez ou ( iln/c anos, porém, o modelo neo-americano vem se singularizam >m nula vez mais em diversos pontos, sendo o mais marcante «pirlc que o sociólogo Jean Padioleau assim resume: «O especu- mIo i leva a melhor sobre o empresário industrial, os ganhos fáceis

I Mirto prazo solapam as riquezas coletivas do investimento a migo prazo.»Mas o modelo renano corresponde a uma visão completamente

lilcrente da organização econômica, a outras estruturas fi- hiiiiceiras, a um outro modo de regulação social. Evidentemente, tampouco deixa de ter defeitos. Mas as suas características parti- •wlures conferem-lhe uma estabilidade, um dinamismo, um pode-

Hocada vez mais notável. Poder-se-ia dizer deste modelo o que se ili/ da democracia em matéria de política: é seguramente o pior ilos sistemas econômicos, à exceção de todos os demais. Aliás, é hiistante curioso que se, junto à opinião pública internacional, o modelo renano não goza da mesma celebridade que o modelo neo-americano, não ocorre o mesmo quando a questão se‘coloca nos tomadores de decisão econômicos e não mais ao grande público. Um inquérito foi realizado, em agosto de 1988, pela SOERES (Sociedade Francesa de Estudos e Pesquisas de Opinião), Junto a 300 dirigentes de empresa europeus. Ora, apesar dos castos salariais serem nitidamente mais elevados na RFA que alhures, estes dirigentes dariam, maciça e espontaneamente a preferência à

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Alemanha para terceirizar ou importar um pouco mais (a Frmn,« vinha em segundo e o Benelux em terceiro lugar).

Em relação a um determinado número de pontos fundamental«, o modelo renano distingue-se do modelo neo-americano muiin mais radicalmente do que $e pensa.

O lugar do mercado nos dois modelosAssim como não existe nenhuma sociedade socialista onde todo«

os bens sejam gratuitos, nenhuma sociedade capitalista poderia, tampouco, pensar em conferir a todos os bens (e serviços) um caráter mercantil. Com efeito, existem bens que, por natureza, nao podem ser comprados nem vendidos. Alguns apresentam um caráter pessoa) como a amizade, o amor, a generosidade, a honra, outros, por natureza, são coletivos: a democracia, as liberdade« públicas, os direitos do homem, a justiça, etc.

Tais bens não mercantis são, na essência, os mesmos nos dois modelos de capitalismo. A única exceção importante, como vere­mos, diz respeito às religiões.

Os dois modelos diferenciam-se, porém, pelo lugarque atribuem aos bens mercantis, de um lado e aos bens mistos, do outro. E o que procuram ilustrar - de maneira grosseira - as duas figuras esquemáticas abaixo.

Antes de mais nada, as figuras indicam que no modelo nco-ame* ricano, as bens mercantis ocupam um espaço sensivelmente maior do que no modelo renano. Em contrapartida, os bens mistos, que dependem em parte do mercado e em parte das iniciativas públicas, são mais importantes no modelo renano.

Outrossim, as duas figuras fazem referência a oito exemplos de bens que são tratados de maneira diferente, em relação ao mercado, nos dois modelos.

1. As religiões. No modelo renano, elas funcionam essen­cialmente como instituições não mercantis (na Alemanha, os pa­dres e os pastores são inclusive remunerados como funcionários públicos, através do orçamento público). Nos Estados Unidos,

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Lugar do mercado no modelo neo-americano

•-•r mbcam» s15&

O Lugar do mercado no modelo rcnano

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aparentemente, pode-se considerar que as religiões, em número crescente, são cada vez mais geridas como instituições mistas, com métodos de divulgação publicitária pela mídia e de marketing cada vez mais sofisticados.

2. A empresa. No modelo neo-americano, a empresa é um bem mercantil como outros, enquanto, ao contrário, no modelo renano, é de natureza mista, uma community tanto quanto uma commodity.

3. Assim também os salários, que, no modelo neo-americano, dependem cada vez mais das condições momentâneas do mercado, no modelo renano são fixados em grande parte em função de fatores alheios à produtividade do assalariado (diploma, antigüi- dade, tabelas fixadas por convenções coletivas de nível nacional). De um lado são bens mercantis, do outro, mistos.

4. A habitação, nos Estados Unidos, também é um bem quase exclusivamente mercantil. Nos países renanos, ao contrário, a habitação social depende freqüentemente da iniciativa pública, quando então os aluguéis são geralmente subvencionados.

5. A situação é um pouco análoga no que diz respeito aos transportes urbanos, ainda que, mesmo nos Estados Unidos, estes sejam subordinados a regulamentação: um dos raros exemplos, de meu conhecimento, onde os transportes urbanos são inteiramente regidos pela livre concorrência, é a cidade de Santiago do Chile, onde os «Chicago Boys» do general Pinochet obtiveram que qualquer pessoa possa criar sua linha de ônibus e praticar a tarifa que quiser; a densidade dos ônibus é, em decorrência, a mais alta do mundo e a poluição agravada em consequência.

Mas os frequentes e crescentes déficits dos transportes públicos nos países do modelo renano fazem com que as autoridades tendam a priva tizá-los, o que é mostrado na figura por uma seta em direção ao retângulo dos «bens mercantis».

6. Da mesma forma a mídia, e em particular as emissoras de televisão, tradicionalmente públicas nos países renanos, deixam um espaço para uma privatizaçãocrescente, enquanto ao contrário, nos Estados Unidos, onde todas as redes são tradicionalmente

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comerciais, começa-se a assistir ao desenvolvimento de televisões financiadas segundo um modo associativo através de cotizações livres. Estas duas evoluções opostas são mostradas por setas de sentido contrário.

7 .0 ensino distribui-se, nos dois modelos, entre as três categorias de bens. Está claro, todavia, que no modelo neo-americano, a participação dos estabelecimentos de ensino regidos petas regras do mercado é muito maior e tende a crescer, como indicado pela seta dirigida para o retângulo dos «bens mercantis».

8. O setor da saúde, como o da habitação, está ligado às três categorias de bens. Mas neste ponto também, a originalidade do modelo renano é dupla: por um lado, o papel dos hospitais públicos e da medicina previdenciáría, ligada à seguridade social, é muito mais importante; por outro lado, não há, contrariamente ao que se constata nos países anglo-saxões - e também nos países latinos - tendência à redução do papel das autoridades públicas, em matéria de saúde como de habitação, em proveito do setor mercantil. Este ponto adquire maior importância, se considerar-se que, se por um lado o capitalismo é criador de riquezas a curto prazo, ele corre o risco, por outro lado, de tornar-se destruidor de valores sociais a longo prazo se não estiver suficientemente enquadrado pelos po­deres públicos e se não tiver a concorrência de valores sociais outros que os do dinheiro. François Perroux exprimiu o admira­velmente:

«Toda sociedade capitalista funciona regularmente, graças a setores sociais que n io estão nem impregnados nem animados pelo espírito dc lucro e pela busca do lucro maior. Quando o alto funcionário, o soldado, o magistrado, o padre, o artista, o cientista são dominados por este espírito, a sociedade desaba e todas as formas da economia estão ameaçadas. Os bens mais preciosos e mais nobres na vida dos homens, a honra, a alegria, a afeição, o respeito alheio, não devem vir para qualquer mercado; senão, qualquer grupo social treme cm suas bases. Um espírito anterior e estranho ao capitalismo sustenta, por unia duração variável, as balizas entre as quais funciona a economia capitalista. Esta, porém, por sua própria expansão e êxito, na medida em que se impõe à estima c ao reconhecimento das massas, na medida cm que nelas desenvolve o gosto pelo conforto e o bem-estar

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iiMlerial, arranha as iiistiiuições tradicionais c as estruturas mentais, sem as quais náo existe ordem social. O capitalismo desgasta c corrompe. É um cnonnc consumidor de seiva, cuja subida ele não comanda.» (O Capitalis­mo, col. «Saber», 1962).

Tal reflexão é verdadeiramente profética; eis um exemplo con­creto que, direta ou indiretamente, diz respeito a todos nós. E a passagem dos lawyers, nos Estados Unidos, para o lado dos bens mercantis do capitalismo.

No Japão, há algo de vergonhoso em mover um processo: deve-se procurar todos os compromissos para evitar chegar a este extremo. Na Europa, toda a tradição das profissões jurídicas - e de forma mais ampla, das profissões liberais - consiste em proteger seus membros das necessidades, para que possam consagrar-se livremente e de forma desinteressada - sem estarem «impregnados nem animados pelo espírito do lucro» - ao serviço do interesse geral: o direito, para as profissões jurídicas, a saúde, para as profissões médicas. Esta é sua deontologia, sua «honra». E esta noção de «honra» que explica que não se remunera um advogado ou um médico pelo pagamento do preço de seus serviços, mas por meio de «honorários».

Esta tradição milenar - para os médicos remonta ao juramento de Hipócrates - este princípio deontológico fundamental, que coloca as profissões liberais fora de mercados, acaba de sofrer, nos Estados Unidos, uma mudança radical: a profissão de advogado tornou-se uma indústria, «a indústria dos processos».

Esta nova conquista de um determinado tipo de capitalismo acaba de ser descrita em detalhes numa obra erudita de Walter Kolson, The Litigation Explosion (Tniman Talley Books - Nova York, 1991). Ao comentar esta obra na resenha de livros do New York Times, em 12 de maio de 1991, WarrenE. Burger, ex-«Chief Justice» dos Estados Unidos, sublinha que esta transformação sem precedentes remonta a 1977, quando a Corte Suprema autorizou os advogados a fazerem publicidade pela televisão. As conseqüên- cias foram imediatas: um desenvolvimento explosivo da técnica do contingency fee, na qual o advogado convence uma eventual

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vítima a confiar-lhe seueaso, através do seguinte raciocínio: «Farei todoo possível para obter uma indenização para você. Se eu perder o processo, você não perde nada; se eu ganhar, você me dá 20% (ou 50%) da indenização que você receber.» Isto tomou-se uma prática comum para os acidentes de estrada: um advogado senta ao lado do motorista da ambulância e apressa-se em fazer o ferido assinar um acordo de contingency fec ...

Foi assim que o número de processos contra as hospitais e contra as médicos aumentou em 300 vezes desde 1970 e que, para rcsguardarem-se contra as reclamações de que poderão ser objeto, alguns médicos pagam até 300.000 francos* de seguro por ano!

Como é lógico, alguns destes últimos também adotam hábitos capitalistas. São incontáveis as mulheres americanas que atingiram a idade da menopausa e às quais o ginecologista sugeriu: «Seu útero agora não serve mais para nada, achoque seria bom tirá-lo...»

Conseqüência social destes transbordamentos do capitalismo: durante os anos 80, o número de juízes federais condenados por corrupção e fraude fiscal foi mais alto do que nos primeiros 190 anos da história dos Estados Unidos... Também a ética dos magis­trados tem cada vez mais dificuldade em resistir ao «espírito de lucro». Mas a partir do momento em que seu advogado começa a trabalhar racionalmente, como «homo oeconomicus», procurando maximizar seu faturamento e, consequentemente, tratando você como uma mina de processos em potencial a ser racionalmente explorado; a partir do momento em que seu médico, seguindo a mesma lógica capitalista, passa a tratar você como um centro de lucro, em quem você pode ter confiança? E o que vale uma sociedade que destrói a confiança?

U m capitalism o bancário

No modelo renano, não há nem golden boys desenfreados, nem especulação ofegante: o capitalismo está essencialmente nas mãos dos bancos e o seu destino não se joga nas «arenas» das Bolsas.

* Fm tomo de 60.000 dólares (NT)

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Com efeito» os bancas desempenham em grande parte o papel que» no modelo anglo-saxão, cabe ao mercado financeiro e à Bolsa de Valores. As Bolsas de Frankfurt ou de Zurich são, aliás, de uma importância relativamente modesta, quando comparadas com suas contrapartes britânica ou mesmo francesa. A capitalização de Frankfurt é inferior em um terço à de Londres e nove vezes menos importante do que a de Nova York ou de Tóquio. Assim também, até um período muito recente, não existiam nem opções nem mercados a prazo nas praças do aiém-Reno. E, de maneira geral, os mercados financeiras alemães são limitados e pouco ativos. Na RFA, as empresas normalmente não vão à Bolsa nem ao público, mas aos seus banqueiros, para buscar os financiamentos de que precisam. Aliás, algumas delas - e não das menores, como Bertels- mann, o maior grupo europeu de edição e imprensa - não são sequer cotadas em Bolsa.

Deste ponto de vista, portanto, a situação é oposta à que se observa na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos. É um contraste perturbador, quando se pensa no poderio econômico da RFA ou no dinamismo da sua economia.

Por que esta diferença? Primeiro, por causa da importância do setor bancário na Alemanha. Todo mundo conhece os nomes do Deutsche Bank, que controla uma parte importante da economia alemã, ou ainda do Dresdner Bank ou do Commerzbank. Mas poucas pessoas imaginam a extensão exata de sua influência. Esta decorre sobretudo do fato de que, diferentemente do que se passa nos Estados Unidos, nenhuma regulamentação limita as suas ati­vidades. Os bancos alemães têm uma vocação chamada «univer­sal», ou seja, fazem de tudo. Concedem os créditos clássicos e arrecadam depósitos. Intervêm no mercado de ações e obrigações; gerenciam a tesouraria das empresas. Mas são também bancos de negócios, assessoram e operacionalizam fusões e aquisições. Man­têm, enfim, redes de informações econômicas, financeiras, indus­triais e comerciais, que colocam à disposição das empresas. Criam, portanto, com a sua clientela, relações duráveis e privilegiadas. Relações estas, marcadas por um espírito de cooperação recíproca.

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Ao substituir os mercados bolsísticos, os bancos alemães são antes de tudo os financiadores das empresas. A maioria destas tem seu «banco da casa», que trata das questões financeiras. Tudo se passa como se os banqueiros dissessem aos dirigentes das em­presas: produzam melhor, vendam muito e deixem-nos cuidar dos problemas de dinheiro! No Japão, como vimos, a integração é ainda mais forte, pois é freqüente os grupos possuírem seu próprio banco. Poder-se-ia quase dizer: os bancos (e as companhias de seguros) possuem os seus próprios grupos.

Redes de interesses cruzadosTambém na Alemanha, esta verdadeira comunidade de trabalho

entre bancos e empresas ultrapassa as estritas relações financeiras. Com efeito, é frequente que os bancos sejam acionistas de referên­cia das empresas. Isto ocorre de duas maneiras diferentes: pela propriedade direta de uma parte do capital ou pelo exercício do direito de voto das acionistas que mantêm contas com eles. Assim, através deste jogo de votas cumulativos, os bancos exercem uma influência muito importante no seio dos conselhos de administra­ção. Cito alguns exemplos. O Deutsche Bank detém um quarto (ou seja, uma minoria de controle) da gigante Daimler Benz, que fabrica automóveis mas também aviões e motores, da Philipp Holzmann, o maior grupo de construção civil e de obras públicas, ou da Karstadt, líder da grande distribuição, etc. Por sua vez, o Dresdner Bank e o Commerzbank controlam mais de um quarto do capital de uma dezena da grandes companhias.

Em contrapartida, porém, os grandes grupos industriais têm, muitas vezes, assento no conselho de supervisão dos bancos, dos quais são frequentemente os principais acionistas, apesar de sua participação unitária ultrapassar raramente a 5%. E o caso da Daimler-Benzcom o Deutsche Bank. Essas participações cruzadas criam um verdadeiro tecido, uma comunidade industrial-finances ray sólida e relativamente fechada. Esta situação leva a pelo menos três consequências - todas favoráveis - no plano econômico, que se encontram também em grande parte no Japão, como o mostra a

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fabulosa história do maior grupo industrial-financeiro do mundo, o grupo Mitsubishi.

Em primeiro lugar, por força da situação, os banqueiros terão a preocupação do desenvolvimento a longo prazo das empresas, com as quais estão ligados há muito tempo e estarão por muito tempo. Ao contrário dos especuladores de Bolsa que, a cada três meses, exigem resultados a todo custo, os bancos alemães apostam na duração, É a longo prazo que assumem riscos por vezes importan­tes, para dnrsustentaçãoaos projetos industriais mais delicados. A este respeito, pode-se citar o exemplo da Metallgesellschaft, que multiplicou a sua participação no setor mineiro, no mesmo mo­mento em que grassava a crise das matérias primas. E o dos bancos suíços que investiram somas consideráveis na indústria relojoeira nacional, quando esta parecia condenada.

A segunda conseqüência é que a estabilidade dos principais acionistas é um fator de segurança e de paz para os ad­ministradores. De forma geral, desempenha portanto um papel favorável para a empresa. Os dirigentes não vivem com uma ameaça de OPA, suspensa sobre suas cabeças como a espada de Damocles. Podem consagrar-se inteiramente à gestão de suas empresas, em vez de esgotar suas energias - e desperdiçar o seu tempo - com infindáveis combinações jurídicas destinadas a pro­tegê-los con tra tom adas de contro le « inam istosas». In­contestavelmente, pode-se perceber neste ponto um dos fatores de competitividade da economia alemã. E não somente dela. No Japão, como veremos, o capitalismo continua marcado por traços «feudais» que lhe são próprios. Mas naquele país também, os dirigentes não vivem sob a ameaça constante de uma reestrutura­ção imposta de fora. Da mesma forma na Suíça, os três grandes bancos helvéticos desempenham um papel sensivelmente diferen­te dos bancos alemães. Não obstante, o capital das empresas está igualmente bem trancado, pois o código comercial suíço permite que se outorgue o direito de voto de maneira muito restritiva. Os Países Baixos, por sua vez, dispõem de um arsenal ami-OPA que garante aos dirigentes de empresa uma segurança semelhante.

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Esta relativa tranquilidade, de que gozam os dirigentes de em­presa no modelo renano, não significa que podem acomodar-se ou cometer erros de gestão com total impunidade. Esteja ou não representado pelos bancos, o «núcleo sólido» dos acionistas de­sempenha o pape! de controlador e de contra-poder. Poderá per- feitamente tomar sanções contra os administradores ineficazes e assim proteger, indiretamente, os acionistas menores.

Terceira conseqüência, finalmente, do papel preponderante dos bancos: existe na RFA uma rede de interesses cruzados muito densa e muito difícil de penetrar de fora. Assim, a economia está, não dirigida - a palavra «dirigismo» provoca horror nos alemães, como veremos - mas animada consensuaImente por um pequeno número de pessoas que se conhecem, que se encontram regular­mente. A importância das relações pessoais é muitas vezes decisi­va. Contribui para fazer da Alemanha, como dos demais países renanos, economias que, por mais abertas que estejam para as trocas comerciais na escala mundial, continuam amplamente pro­tegidas financeiramente contra os investimentos estrangeiros dire­tos. Quando uma empresa está em dificuldade, os bancos esforçam-se espontaneamente para encontrar uma solução alemã para o problema. Foi o que aconteceu quando o grupo Klõckner- Werke encontrou-se em situação crítica: o Deutsche Bank correu em seu auxílio. Assim também a Nixdorf, empresa de informática em derrocada, foi adquirida pela Siemens, a gigante da eletrónica, por instigação dos bancos. Em matéria de fusões e aquisições (em inglês, mergers and acqwsitions, M+A). a situação é semelhante. Pode-se imaginar, portanto, as dificuldades com as quais se choca um comprador estrangeiro que queira lançar uma OPA neste contexto de controle bancário.

Toda regra, sem dúvida, sofre certas exceções e a reputação de invulnerabilidade das empresas alemãs face aos compradores es­trangeiros já não é tão sólida quanto no passado. Em 1989, das 3.000 empresas da RFA que trocaram de proprietário, 459 foram adquiridas por estrangeiros, por um montante avaliado em 20 bilhões de francos (duas vezes mais que em 1988). Deste total, 63

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operações de aquisição foram feitas por compradores... franceses (três vezes mais que em 1986). Mas estas cifras não devem criar ilusões. A maioria das aquisições tinha por objeto empresas mo­destas ou médias. Em 1989, uma única compra, a da Colonia pela companhia de seguros Victoire, representou mais da metade do total dos investimentos franceses na RFA. E estas implantações francesas na Alemanha continuam sendo duas vezes menos nume­rosas do que as implantações alemãs na França. Esta é uma desproporção que tem todas as possibilidades da agravar-se a favor da Alemanha.

O modelo renano continua sendo, no essencial, financeiramente trancado mas sólido. E a economia alemã encontra ali a estabili­dade necessária para o seu desenvolvimento a longo prazo e para a sua competitividade. Porém, por mais importante que seja, este não é o seu único trunfo.

U m consenso bem adm inistrado

Os autores de um relatório de novembro de 1986, dirigido ao Presidente da CEE, referente à «República Federal da Alemanha, seus ideais, seus interesses e suas inibições» (W. Hager e M. Noelke, European Research Associates), descobriam principal- mente na sociedade alemã «uma tendência a evitar questões que poderiam criar divisões e questionar o consenso». Uma tendência idêntica e de força pelo menos igual percebe-se na sociedade japonesa. Na verdade estes dois campeões da economia mundial, ambos vencidos na última guerra, têm em comum a mesma cons­ciência aguda de sua própria vulnerabilidade. Tanto num como noutro país, a democracia política e o bem-estar econômico são recentes demais para não serem frágeis. Advém daí a facilidade com a qual impõe-se uma disciplina social específica, que é um dos traços do modelo renano.

Com efeito, neste modelo, a estrutura do poder e a organização da gestão são tão peculiares quanto as do capital. A divisão das responsabilidades é mais acentuada do que em outros lugares. Não se trata, certamente, da «democradura» pregada porCIaude Bébéar

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mas, sob diversas formas, de uma verdadeira co-gestâo que associa à decisão todas as partes envolvidas: acionistas, dirigentes, geren­tes e sindicatos. Na Alemanha, esta co-gestão é imposta a todas as empresas com mais de 2.000 assalariados por uma lei de 1976. Uma palavra a define: Mitbestimmung, que, strictosensu> deveria traduzir-se não por co-gestão mas por «corresponsabilidade». Esta corresponsabilidade está claramente presente em todos os níveis da empresa.

Fonte: Plantu, Vn vague souvenir, Lc Monde Édtiof», 1990, pg.40.

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No topo, estão os dois organismos-chave: a diretoria, responsá­vel pela gestão propriamente dita, e o conselho de supervisão, eleito pela assembléia dos acionistas e encarregado de supervisio­nar a ação da diretoria. Estes dois órgãos devem manter uma colaboração permanente para assegurar à empresa uma direção harmoniosa. Existe, portanto, um sistema de check and balance entre acionistas e dirigentes, que dá a cada um a possibilidade de ser ouvido, sem que por isso um dos dois predomine.

Acresce-se a esta divisão dos poderes no topo a famosa co-gestão '- ou corresponsabilidade - com o pessoal. E fruto de uma longa tradição na Alemanha, que remonta a 1848. Exercita-se através do conselho de empresa, análogo às comissões de empresa francesas, dispondo, porém, de poderes nitidamente mais extensos. Este órgão é consultado a respeito de todas as questões sociais (forma­ção, demissões, horários, forma de pagamento dos salários, orga­nização do trabalho). E sobre estas questões, deve-se chegar obrigatoriamente a um acordo entre a direção e o conselho de empresa. Mas as assalariados alemães dispõem de um outro meio de expressão e de ação: o conselho de supervisão, no qual os seus representantes eleitos têm assento. Desde a lei de 1976queabrange as empresas com mais de 2.000 assalariados, estão em número igual ao dos acionistas. E verdade que o presidente do conselho de supervisão é obrigatoriamente escolhido entre os acionistas e, em caso de empate, tem voto de minerva. Mas assim mesmo, a representação e o peso dos assalariados num dos organismos de decisão da empresa são significativos. Em tais condições, o diálo- go social é visto como um imperativo, sem cuja presença as empresas não poderiam funcionar.

A partir de um ponto de vista francês, esta organização poderia parecer pesada e paralisante e os processos de decisão interminá­veis. Deve-se constatar, entretanto, que não entrava de forma alguma o dinamismo das empresas alemãs. Em contrapartida, fortalece o sentimento de pertencer, que faz da empresa uma verdadeira comunidade de interesses. Esta comunidade ou coleti­vidade de parceiros é hoje chamada, pelos sociólogos americanos

lie stakeholder model, por oposição ao stockholder model: este último só reconhece o acionista, o portador de ações (stock); o primeiro, ao contrário, trata cada um como verdadeiro parceiro, portador de responsabilidades que o comprometem (stake).

No Japão, noções mais específicas e mais ambíguas aos nossos olhos, levam ao mesmo resultado: o sentimento quase familial - ou feudal - de pertencer a uma comunidade. Assim, um termo especificamente japonês - amae - difícil de ser traduzido, exprime o desejo de solidariedade e de proteção, a procura quase afetiva que deve ser satisfeita pela empresa. Da mesma forma, a liderança do dirigente de empresa é definida por uma palavra • iemoto - na qual os especialistas detectam conotações famtliais. Segundo o sociólogo Marcei Bolle de Bal, «o amae e o iemoto completam-se e equilibram-se mutuamente: é a conjunção de um princípio femi­nino - o amor, o sentimento, a emoção, o grupo • e de um princípio masculino - a autoridade, a hierarquia, a produção, o indivíduo - estreitamente unidos na construção cotidiana de uma organização durável» (Revue Française de Gestion, fevereiro de 1988).

Os princípios básicos, constantemente citados, que regem a vida das empresas japonesas são apenas a tradução, no concreto, dessas peculiaridades culturais: emprego vitalício, remuneração por anti­guidade, sindicato por empresa, sistema comunitário de motiva­ção, etc.

Mas o resultado é o mesmo: o sentimento coletivo de pertencer à empresa, a affectio societath, tomou-se tão forte no modelo renano ou japonês quanto se tomou débil no modelo anglo-saxão.

O aumento da incerteza confere um papel crescente ao sentimen­to de confiança e de pertença. Tomou-se essencial, para uma empresa, que todos joguem pelas mesmas regras e compartilhem idéias e identidades que permitem chegar a um juízo comum e a uma mobilização natural. A instabilidade externa valoriza a esta­bilidade interna que, longe de criar obstáculos para a adaptação e a mudança, pode tomar-se um fator de competitividade. A este propósito, é importante notar que, da mesma forma que a América não é apenas Nova York nem Nova York apenas Wall Street, as

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grandes multinacionais americanas escaparam, na sua gestão so­cial mais ainda que na gestão financeira, das pressões novas do curto prazo, que estão na origem du evolução «neo-americana» do mcxie lo a nglo-saxáo. A IBM comoa ATT, a General Electric como a M cDonald^, evitam cuidadosamente cair no gênero economia- cassino, no qual as pessoas são como objetos de aposta na roleta. Para constituir e compor seus estados-maiores multinacionais, tiveram forçosamente que apostar na estabilidade, na participação, até mesmo na «corresponsabilidade».

Fidelidade e fo rm a çã o

A «corresponsabilidade», tradução da famosa Mitbestwmiung alemã, não se constitui apenas num trunfo maior para as empresas. Revela-se particularmente favorável para os assalariados. Para começar, de um ponto de vista estritamente aritmético, sua remu­neração está entre as mais altas do mundo: 33 marcos por hora, contra 25 nos Estados Unidos e no Japão e 22 na França (pela taxa de câmbio de 1988). As remunerações são mais homogêneas, também. A pirâmide salarial é muito mais achatada do que em outros países (vide B. Sausay, Le vertige allemand, Orban, 1985). Assim, a sociedade alemã é mais igualitária do que a americana, ou mesmo a francesa.

Fato mais surpreendente, porém, e menos conhecido: a par­ticipação dos salários no PIB alemão é, apesar de tudo, menor que nos outros países da CEE (67% em 1988, contra 71% na França, 72% na Itália, 73% na Grã-Bretanha). Mesmo tendo-se em conta que o excedente Comercial da RFA contribui para explicar este fenômeno, permanece o fato de que, com os salários mais elevados da Europa, as empresas alemãs conseguem assim mesmo obter margens de auto-financiamento mais amplas que as outras. En­quanto evitam os conflitos sociais.

Mesmo sendo melhor pagos, os assalariados alemães trabalham menos tempo, como foi dito, do que seus homólogos americanos ou franceses. No que diz respeito à estruturação das carreiras e ao sistema de promoções, estes privilegiam sistematicamente a qua-

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lificaçâot a antiguidade. Para progredir na hierarquia, é vantagem fazer o jogo da fidelidade eaum entaro nível da própria formação, o que é benéfico para todos. Não é raro encontrar nos escalões de direção das empresas alemãs - ou japonesas - dirigentes que fizeram toda a sua carreira na mesma companhia, subindo todos os degraus da hierarquia. Esta concepção opõe-se radicalmente aos valores de mobilidade que predominam nos Estados Unidos, que fazem da troca de emprego e de empresa um critério de dinamismo individual e de excelência. (Aliás, esta mobilidade do indivíduo transformada em sinônimo de excelência, esta auto-valorização através do nomadismo, estiveram muito na mexia na França, nestes últimos anos. Hoje, caíram um pouco, apesar de continuarem a ser ensinadas em certas grandes faculdades... com a costumeira defa- sagem).

Do ponto de vista macroeconômico, a co-gestão - ou cor- responsabilidade - revela-se favorável à competitividade da eco­nomia. No momento da crise dos anos 1981-82, os empregadores e os sindicatos chegaram a acordos que limitavam a elevação dos salários, para não agravar as dificuldades das empresas, chegando os assalariados até a aceitarem reduções de três a quatro pontos percentuais de seu poder aquisitivo. O resultado foi espetacular: já a partir de 1984 a economia alemã voltava a crescer, criava novos empregas e ganhava novas parcelas significativas de mercado. Da mesma forma, após a grande greve de 1984, os atrasos puderam ser recuperados graças a uma mobilização geral e conjugada de todos os assalariados. Já em 1975, na sequência do primeiro choque do petróleo, as empresas japonesas tinham obtido sacrifí­cios ainda maiores.

A co-gestão, portanto, se bem utilizada, é uma arma econômica temível. Aliás, um último exemplo, se ainda for necessário, mostra até que ponto pode tornar-se decisiva na competição internacional: o caso da formação. Conhece-se a sua importância. A verdadeira riqueza de uma empresa não é nem seu capital nem seus imóveis, mas a qualificação e o know-how de seus assalariados. Pois tam­bém neste campo, o modelo renano beneficia-se de vários corpos

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de vantagem. O sistema de formação baseia-se também numa cooperação muito estreita entre as empresas e os empregados. Considerada há várias unos*prioridade nacional, a formação apóia- se em três princípios essenciais.

1. Ela é ministrada ao maior número de pessoas. Assim, 20% da mão de obra ativa, na Alemanha, declara não possuir qualquer diploma, contra 41,7% na França. Além do que, privilegia a formação de aprendizes, que é notoriamente mais desenvolvida na RFA do que na França. No além-Reno, atinge a 50% dos jovens que, aos 16 anos, saem do sistema de escolaridade obrigatória, contra 14% na França e na Grã-Bretanha. Conseqüência: menos de 7% dos jovens de 16 anos estão sem emprego ou ocupam empregos sem formação complementar, quando esta proporção é de 19% na França e de 44% na Grã-Bretanha. Finalmente, as profissões técnicas que correspondem ao BEP ou ao CAP fran­cês**, são também privilegiadas. Compreendem 53% da mão de obra ativa na Alemanha, contra 25% na França.

2. De maneira gerai, o sistema de formação alemãoé nitidamente mais igualitário do que nos Estadas Unidas (v. Cap. 2) e mesmo na França. Se, por vezes, as elites americanas (ou francesas) são melhor formadas do que as alemãs, os níveis intermediários o são bem menos. Os sindicatos alemães são os primeiros a reconhecê- lo. O mais importante dentre eles, a DGB, constata que entre cem pessoas, os quinze mais qualificados o são mais na França do que na Alemanha, mas que os demais são bem melhores na RFA. Isto confirma bem que é na formação dos níveis intermediários que a Alemanha constróíb pedestal do seu dinamismo industrial e da sua competitividade. (Conforme relatório de 1990, de Alain Bucaille e Bérold Costa de Beauregard ao Ministério da Indústria da Fran­ça.) Nos países anglo-saxões, como na França, a formação profis­sional funciona bem apenas como esporte das elites. Nos países renanos, é o esporte das multidões.

3. Esta formação profissional é amplamente financiada pelas

• * ('unos colegiais técnicos (NT)

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empresas e por meio de subvenções federais. No que diz respeito ao seu conteúdo, acentua a aquisição de comportamentos: preci­são, pontualidade, confiabilidade. Na Alemanha, a aprendizagem é o verdadeiro filão das promoções, representa o caminho mais normal para o êxito profissional. Entre dez aprendizes, nove saem diplomados do aprendizado e 15% prosseguem na sua formação subsequente. Outrossim, o profissionalismo é sem dúvida melhor reconhecido que na França. Como se lê num recente estudo sobre a RFA, «de forma geral, as pessoas só tem acesso ao nível gerencial após os quarenta anos, em função de seu desempenhocomprovado e não de seus diplomas. Existe também um vínculo estreito entre as empresas e as universidades. Quase todos os principais diri­gentes exercem o magistério» (Michel Godet, Futuribles, abril 1989).

A formação profissional, em suas relações de fidelidade à em­presa, já é um dos principais campos de batalha entre os dois modelos de capitalismo. Aqui, todas as empresas estão engajadas, todos os assalariados estão interessados. A questão resume-se assim:

- Segundo o modelo anglo-saxão, para maximizar a competi­tividade de uma empresa, é preciso maximizar a competitividade de cada um de seus empregados. Logo, é necessário, sempre e em todo lugar, recrutar os melhorese, para evitar perdê-los, pagar-lhes a cada momento o seu valor de mercado. O salário toma-se então essencialmente individual e precário, assim como o próprio em­prego.

- Na concepção renano-nipônica, ao contrário, pensa-se que o essencial não está at. A empresa não tem o direito de trator seus empregados como um simples fator de produção, que ela pode vender ou comprar no mercado, como outra matéria prima qual­quer. Ao revés, ela tem um certo dever de segurança, de fidelidade, de formação profissional, que custa caro. Em conseqüência, ao invés de pagar a cada um o seu valor de momento no mercado, a empresa deve preparar as carreiras, quebrar as arestas, evitar as rivalidades destrutivas.

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O ordo-íiberalismo*A convicção liberal e a desconfiança em relação ao Estado são

sem dúvida tão enraizadas na RFA quanto nos Estados Unidos - senão mais. O dirigismo econômico é oficialmente visto como atributo história)dos regimes autoritários e notadamente do nazis­mo. Assim é que, desde a reforma monetária de Ludwig Erhard em 1948, a RFA rejeitou claramente o sistema de economia dirigida e adotou uma versão específica da economia liberal capi­talista: aSozialmarktwirtschaft(a economia social de mercado). É ela a base do credo ou da Weltanschauung (visão do mundo) defendida pela escola de Friburgo. Segundo esta escola, a econo­mia social de mercado caracteriza-se por dois princípio básicos:

• O dinamismo da economia deve ter seu fundamento no mer­cado, ao qual deve assegurar-se a maior liberdade de funcio­namento, visando-se em primeiro lugaros preços e os salários.

- O funcionamento do mercado não pode, por si só, reger o conjunto da vida social. Deve serequilibrado, contrabalançado por uma exigência social postulada a priori, garantida pelo Estado. O Estado alemão define-se, portanto, como um Estado social.

A Sozialntarktwirischaft constitui um am junto heterogêneo:- A corrente do Welfare State (Beveridge) faz do Sozial-Staat o

guardião da proteção social e da livre negociação entre os parceiros sociais.

- A corrente social-democrática (oriunda da República de Wei- mar) é a fundadora da participação dos assalariados na vida da empresa e das instituições. Foi sobre esta base que a legislação sobre co-gestão (Mitbestimmung) desenvolveu-se continuamente durante os dez primeiros anos da reconstrução alemã, e que ainda hoje é objeto de alentados debates na RFA.

- A lei fundamental de 1949 - e este sem dúvida é o elemento mais original - faz da gestão monetária a coluna mestre autônoma da estabilidade (uma outra palavra para dizer política anti-crise).

1 As considerações que seguem retomam, no essencial, um estudo feito por Jérôme Vignon, ao qual sou profiinaamcntc grato.

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O estatuto atual do Bundesbank« apesar de não ser diretamente constitucional, é uma vigorosa ilustração deste fato.

- A autonomia do banco central relaciona-se com a estrutura de conjunto dos bancos comerciais, levando estes últimos a desem­penhar um papel de destaque no financiamento das empresas: a política de estabilidade monetária alemã não seria tão eficaz, se os bancos comerciais não estivessem tão comprometidos com o fi­nanciamento da indústria a longo prazo.

- O intervencionismo do Estado, o dirigismo, são condenáveis, na medida em que levam a distorções no processo de concorrência. A idéia central está neste ponto, da igualdade das condições de concorrência.

Há mais de trinta anos que estudo a economia alemã e que venho trabalhandocom alemães,econtinuosurpresoem vera dificuldade que eles sentem em fazer compreender nos outros países que o seu sistema econômico é autenticamente liberal. Sem dúvida, não há quem conteste que, há meio século, a economia alemã esteja fundamentada na liberdade das trocas comerciais. A única crítica procedente a este respeito refere-se às questões de normalização. Há mais de um século, a indústria alemã elaborou normas profis­sionais, às quais está muito apegada, pois, por um lado, elas são geralmente muito exigentes do ponto de vista da qualidade e, por outro lado, elas são aceitas pelos importadores de produtos alemã­es, ou seja, uma clientela mundial.

Mas ao lado deste ponto, a doutrina da Sozialmarktwirtschafl considera que o Estado somente tem o direito de intervir na vida econômica ou social por duas razões, sendo que estas mesmas razões criam para ele verdadeiros deveres de intervenção.

A primeira razão é a igualação das condições de concorrência. Daí a importância do Bundeskartellamt, que zela cuidadosamente para evitar os acordos e os abusos de posições dominantes. Por outro lado, para que a igualdade da concorrência seja assegurada, é preciso que as pequenas e médias empresas sejam ajudadas contra o excesso de poder das grandes, donde decorrem condições creditícias e fiscais vantajosas (numa concepção um pouco pare-

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cicia com a Small Business Administration dos Estados Unidos). Assim também, para que as condições de concorrência sejam iguais nas diversas partes do país, é necessário que haja uma política de ordenação territorial que desenvolva, mais particular- mente, as infra-estruturas nas regiões menos favorecidas; a este respeito, a experiência alemã é exemplar. Finalmente, quando outros países financiam despesas com pesquisas, acobertando-as, notadamente, sob o orçamento militar, é normal que a República Federal aja da mesma forma.

O segundo fundamento para as intervenções do Estado tem caráter social. Daí, a nível conjuntural, as subvenções aos estalei­ros navais e às minerações, para «humanizar» o ritmo das adapta­ções tecnológicas; é a filosofia que prevaleceu, com grande êxito, na CECA (Comunidade Européia do Carvão e do Aço), en­carregada da modernização da maioria das atividades de mine­ração e de siderurgia européias. Por outro lado, estruturalmente, a doutrina alemã requer que os representantes dos trabalhadores possam desempenhar um papel ativo, primeiramente na gestão social das empresas e até mesmo, como acabamos de ver, pela participação na sua gestão econômica e financeira.

A adesão cada vez mais forte da Alemanha à Política Agrícola Comum (PAC) da CEE constitui, de certa forma, uma síntese desses diferentes motivos de intervenção: igualdade na concorrên­cia, preocupação pela evolução social e pela ordenação do territó­rio. Além do que, de uns tempos para cá, a agricultura alemã desempenha um papel cada vez mais positivo, graças às subven­ções que recebe a este título de Bruxelas, em favor da melhoria do meio ambiente e da proteção das paisagens rurais.

Por fim, como vimos, está claro que, no que diz respeito ao capital acionário de suas empresas, a Alemanha é um país de tendência fortemente protecionista.

Eis, em resumo, oque se chama por vezes de «ordo-liberalismo». Compreende-se que tal liberalismo não impede de forma nenhuma o Estado de cumprir sua função própria. E por esta razão que a

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participação das despesas públicas no PIB alemão (47 a 48%) é paradoxalmente quase tão alta quanto na França (51%) e nitida­mente superior à do Japão (33%). Na Alemanha como na França* as transferências públicas para asempresas representam aproxima­damente 2% do PIB. É verdade que os poderes públicos da RFA, um Estado federal, são fortemente descentralizados, o que lhes impõe a busca do diálogo e do consenso. Disse-se também que «o liberalismo federal encobria o intervencionismo dos Länder***». O que não é lota Imente verdadeiro.

Em contrapartida, o que, sim, é verdade, é que, como na Suíça dos cantões, o poder central na Alemanha provém das Länder e que as cidades possuem uma velha tradição de independência, com os poderes correspondentes. Assim, as competências de cada nível são bem estabelecidas, assim como é testemunhado pela repartição dos recursos orçamentários. O orçamento do Estado federal é de 280 bilhões de marcos alemães (DM), contra 270 para os Länder e 180 para os municípios. O Estado têderal assume os serviços administrativas gerais, as subvenções destinadas às rubricas so­ciais, e a defesa. Os Länder são responsáveis pela educação e a segurança pública. Quanto aos municípios, financiam a assistência social, as infra-estruturas esportivas e culturais, etc.

Esta divisão impõe um processo permanente de harmonização e de redistribuição dos recursos financeiros. Aliás, os recursos dos Länder são submetidos a uma igualação, a fim de evitar que qualquer um deles disponha de uma receita por habitante inferior em 5% à média do conjunto. Apenas 5%! Quando a diferença correspondente entre as regiões francesas é de 30 a 4Q%! Este é mais um ensinamento da experiência alemã que sempre Jive difi­culdade em fazer compreender na França. Os franceses, na sua maioria, continuam convencidos de que, sendo um país centrali­zado, no qual, apesar da lei Deferre sobre a descentralização, o papel das coletividades locais ainda é menor que o do poder central, a França é evidentemente o país de maior igualdade na repartição das riquezas, tanto no plano geográfico como social! Na

(.and. no plural I.ander, listados da Fcdcraçáo alemã (NT)

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realidade, tudo demonstra o contrário. E, especificamente, o notá­vel exemplo de solidariedade social e de política ativa de orga­nização do território, que é o da Alemanha.

Finalmente, para coordenar a ação das diferentes coletividades públicas, aciona-se um processo de planejamento harmônico. Este processo desenrola-se no quadro de acordos concluídos na pers­pectiva de um projeto comum. Todos os exemplos que cito aqui servem para mostrar até que ponto as administrações e os homens políticos de além-Reno são especialistas nos mecanismos do con­senso.

Eles aplicam estes métodos em quase todos os campos. Em matéria salarial, o governo não intervém diretamente, mas incita os parceiros sociais ao respeito de determinadas normas, ou a que não rompam os grandes equilíbrios econômicos e monetários. Em matéria de saúde, por exemplo, foi o chanceler Helmut Schmidt quem estimulou os empregadores, os sindicatos e as caixas de seguro-saúde a chegarem a um acordo sobre a redução das despe­sas com a saúde. Mas estamos longe da situação francesa na qual o setor público desempenhou durante muito tempo um papel diretivo na evolução das remunerações.

Sindicatos poderosos e responsáveisTal harmonização permanente e tal consenso modelar seriam

inimagináveis sem a presença ativa de sindicatos poderosas, repre­sentativos e responsáveis. O que, incontestavelmente, as sindica­tos alemães são. Enquanto em quase todas as partes da Europa observa-se uma espetacular desafeição pelas organizações sindi­cais, nos sindicatos alemães, após um ligeiro retrocesso no início dos anos 80, o número de membros está voltando a crescer. A taxa de sindicalização da população ativa, uma das mais altas do mundo, voltou ao nível dos anos 60, ou seja perto de 42%, contra apenas 10% na França. Ossindicatosdealém-Renoagrupam,desta forma, mais de 0 milhões de assalariados, dos quais 7,7 milhões

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só na Deutscher Gewerksehaftsbund (DGB). E seu poderio finan­ceiro está na medida de sua representatividade, levando em conta que as mensalidades são relativamente elevadas (2% do salário retido diretamente na fonte). Este poderio permite-lhes dispor de meios de ação invejados pela maioria de seus homólogos no mundo: mais de 3.(X)0 representantes sindicais permanentes nos serviços federais, um patrimônio ainda considerável, apesar das dificuldades enfrentadas por sua companhia de seguros Volkfur- sorge, seu banco BFG e sobretudo sua companhia imobiliária. Mas possuem, sobretudo, fundos de greve que lhes permitem, se for o caso, pagar até 60% dos salários de seus sindicalizados em greve ou vítimas de lockout. Um instrumento muito eficaz de dissuasão nas relações com os empregadores.

Os sindicatos alemães conseguiram também implantar proce­dimentos de seleção e de formação de seus eleitos nos diversos níveis de representação. Dispõem de centros de pesquisa econô­mica e social que lhes permitem acompanhar a atualidade. E, pois, particularmente elevado o nível de formação dos dirigentes sindi­cais em tempo integral. Estes estão em condições, quando de uma negociação, de apresentar cenários a médio prazo coerentes e fundamentados. Sem contar que eles dispõem de um meio de intervenção e de pressão suplementar: a sua presença, por intermé­dio dos eleitos, no Parlamento Federal. Com efeito, muitos depu­tados importantes provêm do mundo sindical: estima-se que, em m édia, 40% dos deputados das uniões dem ocrata-cristãs CDU/CSU pertencem a sindicatos. Esta interpenetração entre o mundo sindical e o mundo político favorece, sem qualquer dúvida, o consenso e o acordo ágil sobre as listas de reivindicações.

É frequente, porém, que ossindicatos coloquem seu considerável poder ao serviço da coletividade (vide Bérold Costa de Beauregard e Alain Bucaille, op.cii). Em outras palavras, os sindicatos ale­mães são economicamente mais «responsáveis» do que seus cor­respondentes em outros países. Em conjunto com as associações patronais, eles administram em grande parte o sistema de forma­ção; debatem a formação contínua e o conteúdo deste tipo de

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ensino; assumem os centros de qualificação para desempregados, reinserindo assim 150.000 pessoas por ano.

E depois, como se sabe, seu posicionamento ainda é, na maioria das vezes, comedido e razoável. Levam em conta os imperativos econômicos. Uma atitude favorável ao consenso é uma atitude compensadora, já que, como vimos, os salários alemães são ele­vados. Esta preocupação constante de não comprometer os grandes equilíbrios - e de não favorecera inflação, tão temida na Alemanha -é notadamente realçada por duas características do diálogo social no além-Reno.

1. Existe um processo regular de negociação. Abrange um perío­do de 3 ou 4 anos. A última grande rodada de negociações salariais remonta, assim a 1986-87.

2. Durante a vigência do contrato, os sindicatos comprometem-se a não contestar suas disposições de forma conflituosa. É assim que o número de dias de trabalho perdidos em função de greves é, na Alemanha, o menor do mundo ocidental. (28.000 em 1988, contra 568.000 na França, 1.920.000na Grã-Bretanha, 5.644.000 na Itália e 12.215.0CK) nos Estados Unidos).

Ao lado desses poderosos sindicatos, que jogam o jogo do consenso e da co-gestão, é preciso assinalar a extraordinária vita­lidade do sistema associativo alemão. As associações de pesquisa­dores, por exemplo, agrupam uns 80.000 cientistas em toda a Alemanha. Divulgam informações científicas, cuidam da carreira e das condições de trabalho de seus membros e constituem, assim, uma verdadeira administração informal, ágil e leve, da pesquisa científica. Para citar um outro exemplo, as associações de defesa do meio ambiente já demonstraram várias vezes seu poderio e sua seriedade na montagem dos dossiês reivindicativos.

Em suma, o movimento associativo que reúne e mobiliza as forças vivas da sociedade civil, desempenha um papel chave para o funcionamento do modelo renano na Alemanha: o de patamar institucional e de espaço de expressão das cidadãos.

Porém, todas estas iastituições, políticas ou associativas, nada

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representariam, se não alicerçassem sua ação sobre uma ética coletiva específica.

Valores partilhados

Os países que aqui englobamos no modelo renano têm em comum, finalmente • e sobretudo • um certo número de valores. Listemos os mais importantes.

1. Como vimos, trata-se em primeiro lugar, de sociedades rela­tivamente igualitárias. Nelas, a hierarquia dos rendimentos e os leques salariais são bem menos abertos que nos países anglo-sa- xões. Outrossim, têm sistemas fiscais nitidamente mais distributi­vos. Não somente a tributação direta é mais significativa que a tributação indireta, mas as alíquotas superiores máximas do im­posto sobre a renda são, nessas sociedades, mais elevadas que na Grã-Bretanha (40%) ou nos Estados Unidos (33%). Acresça-se a isto um imposto sobre o capital, aceito pela opinião pública.

2 .0 interesse coletivo prevalece, ordinariamente, sobre os inte­resses individuais, no sentido estrito do termo. Neste modelo, a comunidade em que o indivíduo está inserido, reveste-se de parti­cular importância: a empresa, a cidade, a associação, o sindicato, são todas estruturas protetoras e estabilizadoras. O primado do interesse geral é ilustrado por inúmeros exemplos, alguns dos quais surpreendentes. O poderoso sindicato IG Metal! aceitou, no m o mento da reunificação alemã, renunciar por sua própria iniciativa, à reivindicação da jornada de trabalho de 35 horas semanais. Havia três anos que esperava o término da vigência do acordo com os empregadores, para poder negociar. E o presidente de IG Metall declarou que seus membros achavam que era preciso, primeiro, enfrentar o desafio da reunificação.

Esta preferência que se dá ao «coletivo» não significa, entretanto, que os países que integram o modelo renano sejam adeptos do coletivismo ou mesmo da economia centralizada. Bem ao contrá­rio. O princípio do liberalismo e da economia de mercado está inscrito na Carta Fundamental da RFA. Como vimos, a livre concorrência é rigorosamente preservada pelo Departamento Fe­

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dera! dos Cartéis - o Bundeskartellamt • que conseguiu, por exem­plo, proibir a uma empresa alemã a aquisição de um concorrente estrangeiro, pelo motivo de que a livre concorrência corria o risco de não ficar assegurada. Seria difícil imaginar uma proibição deste tipo na França, onde cada aquisição de empresa estrangeira é saudada por cacarejos entusiastas. Não existe, tampouco, o plane­jamento • indicativo - do tipo francês, na RFA, na Suíça, no Japão ou nos Países Baixos. Nestes, o Estado nunca se substitui ao mercado. Na melhor das hipóteses, ajusta-o ou orienta-o. Sem mais.

E no entanto, como seu nome o indica na Alemanha, esta economia de mercado é também uma economia «social». O que quer dizer? Que as instituições sociais são, neste modelo, tradicio­nalmente poderosas. De há muito tempo. A seguridade social foi inventada por Bismarck em 1881. Na Alemanha, o seguro-enfer­midade exige uma participação apenas modesta dos segurados: aproximadamente 10%, contra 20% na França e 35% nos Estados Unidos. As aposentadorias são igualmente generosas, reforçadas, numa parte importante, pela poupança individual administrada pelas empresas.

Finalmente, este reequilíbrio social do capitalismo renano en- * contra sua tradução no nível político. Contrariamente ao que

acontece na América, constata-se nesses países uma participação ativa e maciça dos cidadãos na vida pública. Os índices de absten­ção eleitoral permanecem relativamente baixos. Os partidos são poderosos e bem estruturados. Podem, assim, garantir para seus filiados e seus eleitos uma formação de boa qualidade, no seio de organismos prestigiosos, como a Fundação Friedrich Ebert, para o SPD, ou a Fundação Konrad Adenauer para a CDU. Aliás, a lei impõe aos homens políticos a participação.ativa na vida das instituições: multas são previstas no caso de ausências no Parla­mento; o voto dos parlamentares é pessoal; os mandatos sucessivos são estritamente limitados a dois.

O modelo renano é, portanto, original. Encarna uma síntese bem sucedida do capitalismo com a social-democracia. A impressão de

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equilíbrio que traasmite é, a priori, sedutora. Mas a sua eficácia não é menor.

Tudo isto, porém, é surpreendentemente pouco conhecido. É verdade que os povos felizes não têm história. A felicidade não é uma success story.

A SUPERIORIDADE ECONÔMICA DO MODELO RENANO

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As situações mais incríveis, para serem corretamente apreciadas, requerem um esforço de memória. Procuremos lembrar-nos do que era o equilíbrio do mundo após a Segunda Guerra mundial. Os Estados Unidos triunfavam sem restrição e seu imperium sobre o planeta acabava de ser decretado pela arma atómica. Superpotência militar, poupada pela guerra em seu próprio solo, a América era também uma formidável superpotência econômica que, na época, em vez de reduzirseus impostos, liberou excedentes orçamentários para, no contexto do Plano Marshall, vir ao socorro da Europa devastada. A URSS ainda não era capaz - como seu viu na crise de Berlim - de desafiá-la de forma duradoura. E a cultura do vencedor • aquela American way o f life que os G.I. desembarcados em Omaha Beach pareciam literalmente levar com eles- fascinava o mundo inteiro. Inclusive seus antigos adversários. E por muito tempo.

Quanto às duas principais «potências do Eixo», a Alemanha e o Japão, sabe-se o preço terrível que pagavam por sua derrota. Países exangues, cidades em ruínas, indústrias destruídas e nações trau­matizadas no mais profundo do seu ser pela trágica aventura em que as tinham arrastado seus dirigentes. Os imensos e lúgubres campos de pedras queimadas em que se tinham transformado

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Dresden ou Nagasaki, Berlim ou Hiroshima, sublinhavam, por si mesmos, a incomensurável gravidade do desastre.

A vitória dos vencidosMenos de meio século mais tarde... Hm 19 de outubro de 1987,

um craque da Bolsa sacode subitamente as praças financeiras. Em Nova York, Wall Street é tomada de vertigem. Abalado pela catástrofe e para evitar o pior, o governo americano resolve injetar liquidez no circuito financeiro. Em outras palavras, via Reserva Federal, abre ao máximo a torneira dos dólares. Mas será que se soube que antes de fazê-lo, precisou pedir a opinião e até mesmo a concordância do... Banco do Japão e do Bundesbank alemão? Uma prodigiosa inversão da relação de forças: os derrotados de ontem impõem - educadamente - sua lei ao seu antigo vencedor. Um pouco mais tarde e da mesma maneira, a Alemanha Federal irá impor ao mundo, sem resistências, a reunificação, praticamente «recomprando» a RDA falida. E irá, ao mesmo tempo, provar que é capaz de suportar, sozinha, este fardo econômico. No final de 1989, Bonn não pede nem ajuda nem suporte. Bem ao contrário, no mesmo momento, os alemães assinam acordos de ajuda econô­mica com Moscou, que se traduzem - notadamente - pelo finan­ciamento pela Alemanha da... repatriação escalonada das divisões do Exército Vermelho estacionadas na antiga RDA. (Incluindo a construção futura de quartéis em solo soviético!) Em suma, a riquíssima Alemanha tem agora os meios de resgatara sua própria independência. E paga à vista.

Assim, os doKantigos vencidos, recém chegados ao capitalismo renano, tomaram-se, em menos de duas gerações, os dois gigantes econômicos do mundo, que competem diretamente com a antiga hegemonia americana. Sem dúvida, cada um deles tem as suas razões particulares para este grande êxito. Em outras palavras, existe uma especificidade da economia japonesa e uma especifici­dade da economia alemã, que diferem entre si e que não se pode englobar num mesmo esquema. Não importa, porém! Os traços comuns destes dois capitalismos triunfantes são suficientemente

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numerosos para que se possa postular a hipótese da superioridade global de um modelo. De uma ou, como veremos, de várias superioridades.

Mas comecemos pela economia propriamente dita. Ela é hoje a mãe - e a marca - do verdadeiro poder. Num mundo em que o capitalismo triunfa, mesmo que seja apenas graças à derrota de seu adversário ideológico, o poder irá para aqueles que, em primeiro lugar, sabem tirar deste capitalismo o melhor proveito econômico. E neste campo, a superioridade do modelo renano parece ser cada vez mais forte.

Mesmo que, desde 1971 - e o fim da convertibilidade do dólar o dólar não seja mais exatamente a moeda padrão que vinha sendo após Brelton Woods (1946), a América continua gozando de um verdadeiro privilégio monetário, herdado de seu antigo poderio (vide Capítulo 1). Que é bem real e que ainda dura. Mas está sendo cada vez mais ameaçado pela ascensão da Alemanha e do Japão ao status de potências monetárias. O marco e o iene estão arranham do aos poucos as posições do dólar.

No conjunto das reservas internacionais, as duas moedas repre­sentam perto de 20% das haveres em divisas dos bancos centrais. Este percentual duplicou em vinte anos. E ainda, o Bundesbank e o Banco do Japão vêm se esforçando permanentemente em frear a extensão internacional de sua moeda, a fim de poder conservar o seu controle. Imagina-se o que teria acontecido, qual seria o peso respectivo de cada uma, se as autoridades monetárias tivessem optado por uma política mais elástica.

A este peso real, já considerável, acresce-se, ainda, o que poderia chamar-se de «peso psicológico». E um fato que as duas moedas já gozam do status informal de moedas fortes. Na opinião pública, ativos cifrados em marcos, ou, se bem que em menor grau, em ienes, significam valores economicamente seguros. Progressiva- mente, os dois países tomaram-se assim centros de uma zona geográfica monetária, em torno dos quais gravitam as moedas dos países periféricos.

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Sua Majestade o marcoUm bom exemplo é a Europa, com seu Sistema Monetário

Europeu (SME), que é, de fato, uma espécie de zona do marco. O SME data de 1979. Por iniciativa do chanceler Helmut Schmidt e do presidente Giscard d ’EstaÍng, tratava-se para os países da Comunidade - exceto alguns, como a Grã-Bretanha - de criar um sistema de câmbio em que as moedas não mais poderiam «tlutuar» umas em relação às outras, a não ser dentro de estreitos limites. Além disso, criou-se uma unidade de referência o ECU, que representava uma «cesta» de moedas européias. Mais concreta­mente, o objetivo do SME era duplo:

1. Conter as flutuações erráticas dos câmbios, que prejudicavam a estabilidade das trocas no seio da Comunidade.

2. Impor uma disciplina comum a cada um dos países membros, obrigados a praticar uma política econômica compatível com os compromissos assumidos quanto às taxas de câmbio.

Este duplo objetivo foi atingido. E deste ponto de vista, o SME é um êxito incontestável. Sem dúvida, houve necessidade de reajustar algumas paridades, mas pode-se dizer que as moedas permaneceram relativamente estáveis entre si. Quanto à disciplina econômica que cada país membro se impos, recordemo-nos, a título de exemplo, que a «mudança para o rigor», decidida em 1983 pelo governo socialista francês, foi principalmente ditada pela vontade de manter-se dentro do SME, respeitando suas restrições e salvando o franco.

Apesar de tudo, porém, foi a Alemanha que tirou o maior proveito do SME. De que maneira? Pelo menos duas vantagens devem ser assinaladas em benefício dos alemães.

1. Durante todos estes anos, o marco foi afirmando-se cada vez mais como a moeda de referência na Europa. É por ele que se ajustam todas as demais moedas que fazem parte do SME. Assim, quer o queiram ou não, a política monetária de cada país vem sendo determinada em grande medida pela do parceiro alemão. Na França, por exemplo, o Banco da França vigia dia a dia, até mesmo

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hora a hora, a taxa de câmbio entre o marco e o franco. Quando constata um distanciamento excessivo, age imediatamente em conseqüência. E todos os demais bancos centrais europeus fazem o mesmo. Assim, cada vez que os alemães elevam suas taxas de juros, seus vizinhos da Comunidade são, na maioria das vezes, obrigados a agir no mesmo sentido. Da mesma forma, a implanta­rão da união econômica e monetária, uma etapa essencial em direção à Europa política, é grandemente subordinada à boa von­tade dos alemães. E não é por acaso que o Eurofed, o futuro banco central europeu, assume a maioria das estruturas e das regras de gestão do Bundesbank. É uma condição colocada pela Alemanha para avalizar a união monetária.

2. Segunda vantagem: a faculdade que tem a Alemanha, em função de seu poderio monetário, de manter taxas de juros relati­vamente baixas. Como a demanda pelo marco é grande, no mundo, em razão de seu prestígio, Bonn não tem nenhuma necessidade de aumentar o preço do dinheiro para atraircapitais estrangeiros. Este fator, acrescido à baixa inflação que garante ao marco um poder de compra estável, explica porque as taxas de juros alemãs são

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mais baixas que em outros países. Deve-se saber, a título de exemplo, que no final de 1990, a diferença era de 1,5 pontos percentuais com a França e de seis a sete pontos percentuais com a Grã-Bretanha. E fácil imaginar o benefício substancial que isto representa para as empresas e as famílias alemãs que desejam tomar um empréstimo.

A «base logística» monetáriaFenômenos comparáveis a este encontram-se no Japão. Em grau

menor, já que aquele país não pertence a qualquer sistema de câmbios fixos. Também em Tóquio, o iene é sub-nvaliado, as taxas de juros são baixas e a influência japonesa cresce no cenário econômico. Quanto à pequena Suíça, também possui uma mexida invejada pelos outros países. O francosuíçoainda éa quarta moeda das reservas mundiais. O franco suíço que foi criado na mesma época que o francês, mas cujo valor não foi dividido por 300, como é o caso deste último! Observe-se que também as taxas de juros suíças estão entre as mais baixas do mundo.

Alemanha, Japão, Suíça... Para estes países, o poderio monetário representa uma verdadeira força de choque. Para seus industriais, esta garante uma espécie de «base logística inexpugnável», de onde partem ofensivas econômicas difíceis de serem contidas.

Uma moeda forte permite que se compre barato no estrangeiro. E como se sabe, os japoneses aproveitam-se bem disto, ao apode- rarem-se, nos Estados Unidos e na Europa, dos mais belos florões do ramo industrial ou imobiliário. Os alemães dispõem da mesma capacidade de compra. Ninguém se surpreendeu ao saber que a Volkswagen havia conseguido fa2er, em Praga, uma oferta bem superior à da Renault, para a aquisição da indústria de automóveis checa Skoda. As empresas suíças, também dinâmicas e poderosas, a começar pelos gigantes Nestlé ou Ciba-Geigy, já investiram bilhões de dólares nos Estados Unidos.

Todos estes investimentos no exterior têm um objetivo e (ou) uma consequência: permitem aos países renanos controlarem mais de perto seus mercados de exportação. A estratégia japonesa na

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indústria automobilística é um bom exemplo. Ameaçados pelas tentações protecionistas do Congresso americano, os fabricantes nipônicos adotaram o método do «deslocamento» e optam por implantar suas fábricas em solo americano - ou britânico - e por produzir no local. Somente nos Estados Unidos, estima-se que em 1992 produzirão perto de 2 milhões de veículos por ano, ou seja, 16% da produção das firmas americanas. E o «desafio americano» ás avessas.

Em geral, na sua política de investimentos no exterior, as empre­sas do modelo renano preferem evitar tomar o controle de forma brutal e especulativa; implantam-se no exterior de forma progres­siva e metódica; constroem suas filiais segundo os seas próprios métodos, sua cultura e sob sua direção. Isto, por vezes, dá lugar a cenas pitorescas mas reveladoras. Na Normândia, por exemplo, pode-se ver todas as manhãs operários e funcionários franceses fazendo escrupulosamente sua ginástica à mexia japonesa antes de começar a jornada de trabalho: são os assalariados da fábrica Akai, na qual as técnicas de gestão japonesas foram implantadas com Uxla a naturalidade. Com resultados indiscutíveis e, por vezes, espetaculares: nos Estados Unidos, onde registra-se o mesmo fenômeno, estima-se que os japoneses conseguiram criar em suas fábricas americanas um «micro-clima» que lhes permitiu incre­mentar a produtividade em aproximadamente 50% em relação às fábricas americanas correspondentes. Pensando bem, a cena da ginástica é reveladora também por uma outra razão: os investimen­tos são realizadas no exterior para uma sólida ampliação da em­presa, e não para adquirir ativos que vão ser revendidos o mais rápido possível, para embolsar um lucro.

Tal estratégia é muito eficaz. A penetração progressiva das empresas do modelo renano apóia-se sobre uma base financeira sólida e poderosa. Isto lhes traz duas vantagens maiores.

1. O mercado é conquistado de forma duradoura. Após vários anos de implantação, a marca, os produtos, n empresa tornaram-se familiares no local. E, no sentido inverso, a empresa passou a

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dispor de um pessoal, de um local de produção e de uma rede de distribuição que conhece bem.

2. As medidas protecionistas tornam-se muito mais difíceis de aplicação contra essas empresas deslocadas. Há, mesmo, condição de aplicá-las? Este é o debate que opõe os europeus aos japoneses, a respeito das fábricas «montadoras» que estes últimos querem implantar na CEE, para ter acesso sem restrições ao mercado comunitário.

A expansão internacional, a influência econômica e política: estes são os dividendas que os países renanos obtêm em função de sua estabilidade monetária e de seu poderio financeiro. São essen­ciais, mas não são os únicos.

O círculo virtuoso da moeda forteEsta expressão é familiar para os economistas. O que significa?

Designa, de fato, todos os efeitos positivos que traz para um país a passe de uma moeda forte. Efeitos estes, que podem parecer paradoxais. Com efeito, à primeira vista, teria-se a tentação de pensar que uma moeda forte constitui um handicap econômico, por tornar mais caros os produtos do país no exterior e, logo, mais difíceis as exportações. Sabem-no bem os países que, de quando em quando, oferecem um sacrifício à desvalorização para «dopar» suas exportações. Não seria portanto mais lógico falar do «círculo virtuoso da moeda fraca»? Esta observação parece uma anedota. Mas não é. Com efeito, esta questão será decisiva para a maior parte dos temas internacionais que estarão em jogo nos anos 90. Merece, portanto, ser rapidamente «passada a limpo».

O que nos ensina a teoria econômica a respeito da depreciação da moeda? Que ela provoca imediatamente dois efeitos bem co­nhecidos sobra a balança comercial: as importações, expressas em moeda nacional, tomam-se mais caras, enquanto os preços dos produtos exportados, pagos em divisas estrangeiras, caem. Segue- se muito logicamente um esquema em dois tempos.

1. A curtíssimo prazo, a balança comercial é afetada ne­gativamente. Com efeito, é preciso pagar de imediato importações

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mais caras, quando os compradores estrangeiros ainda nem sequer se deram conta de que as exportações que se lhes destinam torna­ram-se mais baratas. 0 prazo de reação funciona num sentido mas não no outro. A balança comercial sofre as conseqüências.

2. A médio prazo, entretanto, ela recupera-se. O país importa menos produtos estrangeiros, que se tornaram caros demais, e melhora suas exportações. Esta recuperação ocorre geralmente bastante depressa e seus efeitos compensam a degradação inicial. No fim, pode-se chegar, realmente, a um fortalecimento da posição econômica internacional do país em questão.

Esta concatenação automática dos dois efeitos é chamada de «curva J» pelos economistas. Com efeito, ao representar-se grafi­camente a evolução da balança comercial em função do tempo, obtém-se um magnífico J maiusculo. Foi em função desta famosa curva que um grande número de políticas econômicas foram decididas nos anos 50, 60,70 e 80. Notadamente na França, com o plano Rueff de 1958-59 ou com as desvalorizações do governo Mauroy em 1981-83. Esta mesma «curva J» inspira, desde 1985, ii política americana: deixa-se cair o dólar para recuperar, a qual­quer preço, o vertiginoso déficit comercial. Poção mágica, remédio milagroso, a depreciação monetária aparenta, desta forma, estar adornada de todas as virtudes.

Sem nenhuma razão, porém. Pois o magnífico J, cuja perna, outrora, alçava literalmente vôoem direção ao radiante porvir dos excedentes comerciais, não mais cumpre suas promessas. A bela construção não resiste mais às provas dos fatos, nem sequer à crítica teórica. Os fatos? A Alemanha (antes da reunificação) e o Japão, países de moeda forte, não param de acumular excedentes comerciais. Em contrapartida, a França e a Itália, que recorreram muito à desvalorização, não conseguem restabelecer de forma durável seu saldo comercial. Quanto aos Estados Unidos, todos sabem que a queda regular do dólar desde 1985 ainda não conse­guiu reerguer suas trocas exteriores. Como é possível? Como podem os fatos desmentir de forma tão espetacular um mecanismo que, no papel, parece tão rigoroso?

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É neste ponto que a crítica teórica sugere alguns elementos de correção, a respeito das próprias hipóteses da «curva J». Três observações podem ser feitas.

Hm primeiro lugar, no caso de uma depreciação da moeda, nada prova que o preço das importações aumente, nem que o das exportações baixe nas mesmas proporções que a depreciação monetária. Os importadores e os exportadores podem, com efeito, ter comportamentos «à margem», indo no sentido contrário dos efeitos esperados. Os exportadores, por exemplo, podem perfeita- mente aproveitar-se do prêmio que lhes está sendo dado, para aumentar as seus preços e, portanto, suas margens. Quanto aos importadores, não é fora de propósito que prefiram fazer alguns sacrifícios em termos de preços, para conservarem suas parcelas de mercado de tal ou qual produto. Aliás, é mais ou menos o que aconteceu na França em 1981-83: as empresas exportadoras fran­cesas aproveitaram-se das desvalorizações para aumentar os seus preços, compensando desta forma os encargos suplementares que lhes impunham as medidas socialistas; enquanto os importadores comprimiam os seus preços, para não perderem seus clientes.

Segunda observação: uma queda do valor da moeda provoca, muitas vezes, o que os teóricos chamam de «inflação importada». As importações sendo mais caras, a alta repercute sobre o conjunto dos produtos. Este é naturalmente o caso, quando se trata de petróleo, matérias primas ou bens de capital. Com o tempo, con- segue-se, na melhor das hipóteses, voltar ao ponto de partida, e na pior, chega-se a uma aceleração da inflação. Aí, o governo não tem outra solução senão deixar novamente cair a moeda para «livrar a cara». E os déficits vão acumulando-se em cascata...

Terceira observação: para que uma desvalorização sirva real­mente para deslanchar novamente as exportações, é ainda preciso que as empresas tenham a capacidade e, sobretudo, a vontade de conquistar novos mercados. Caso contrário, não poderão aprovei­tar-se da oportunidade que lhes é oferecida e o reerguimento tão esperado da balança comercial não ocorrerá. Não se trata de uma hipótese escolar. Apenas para citar este exemplo, desde 1985, as

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Insuficiências da indústria americana impedem-na de aproveitar-se ilii baixa do dólar para reconquistar os mercados perdidos para os jit|)oneses e os europeus.

A conclusão de tudo isto é simples: uma queda da moeda, o •«remédio» da desvalorização é uma droga doce que vicia. É uma droga perigosa, porque impede os que a ela se abandonam de olharem de frente suas verdadeiras fraquezas. Assemelha-se a um elixir milagroso de efeitos fugazes, que provoca, por vezes, uma ilusão de «melhora». É o início de um círculo vicioso, cuja fatalidade os franceses conhecem bem: ficaram encerrados nele de I ‘>70 até 1983.

Ao revés, a estratégia da moeda forte pode parecer, à primeira vista, áspera e difícil, para não dizer heróica. Constitui um desafio temível para as empresas cujas exportações são penalizadas e com os quais os produtos estrangeiros, que se tornaram mais baratos, correm o risco de vir competir em sua própria casa. E igualmente um desafio para o próprio país, cuja balança comercial pode vir a pagar os custos deste rigor monetário. Mas, na economia como em tudo, os desafios tem seu lado bom. Permitem mobilizar energias, inibem o abandono à facilidade, são portadores de promessas. Aliás, constate-se que a «estratégia da moeda forte» é a dos países de maior êxito: a Alemanha, o Japão, a Suíça, os Países Baixos... Não é um acaso.

Além de permitir que se escape dos efeitos perversos da desva­lorização, que acabamos de enumerar, uma moeda forte comporta, a longo prazo, vantagens preciosas.

Obriga primeiramente as empresas a fazer esforços de pro­dutividade, que é seu único meio para compensar o encarecimento relativo de seus produtos. Para os seus dirigentes, é, de certa forma, um estímulo bem mais eficaz, a longo prazo, do que as ameaças de uma OPA. Pode-se constatar este fato no Japão. Em 1986 e 1987, para fazer frente aos inconvenientes da endaka (alta do iene em relação ao dólar), a indústria automobilística Nissan conseguiu melhorar sua produtividade em 10% por ano, o que lhe permitiu diminuir na mesma proporção o preço de seus carros. Na mesma

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época, como se sabe, a produtividade americana sucumbia. Ao ponto que Paul Gray, presidente do MIT, podia declarar, em outubro de 1990, ao jornal L ’Expansion: «O problema, para nós, não é recuperar a nossa competitividade, mas impedir que caia ainda mais.»

"HE IN 60TT, SCHON tflEOER EIN RÜtKfAU JaForte: Winxhaflswochc. »*31.27de julho de 1990, pg.90(«Mou Deus, mergulhou ouini vck!*)

Atém disto, uma moeda forte estimula as empresas a espe­cializarem-se em produtos chamados de ponta, para os quais não é, na realidade, o preço, mas a qualidade, a inovação, o serviço pós-venda quj? fazem a diferença. Coisas estas que implicam, todas, num esforço contínuo de pesquisa e que se revelam extre­mamente proveitosas para a empresa. As máquinas-ferramenta alemãs são um bom exemplo disto. São caras, mas representam o que há de melhor em sua categoria. Na indústria automobilística, da mesma forma, a Daimler-Benze a BMW especializaram-se em carros de luxo e são muito bem sucedidas. (Desde 1989, o valor global das carros vendidos pelos alemães aos japoneses é superior

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no üos carros japoneses vendidos na Alemanha. Um desempenho que não é de desprezar-se!)

Não é notável, aliás, que os dois países que, antes de 1940, eram os países da quinquilharia, do refugo, tenham hoje a reputação de dois campeões da qualidade: a Alemanha e o Japão? Não estaria ui um novo indício da existência de um modelogermano-nipòníco, cuja energia, outrora guerreira, canalizou-se para as proezas da conquista industrial via disciplina monetária?

Hm suma, a moeda forte, um caminho escarpado que exige esforço, perseverança, imaginação, é para a economia o melhor caminho para a excelência, sem cair no amolecimento. O círculo virtuoso da moeda forte é, portanto, compensador.

Hscrita hoje, esta conclusão pode parecer banal. Tanto melhor! Mas isto não deve levar-nos a esquecer que, durante uma geração, todas as mentes superiores, das quais a França é tão bem dotada, andaram explicando que, para o desenvolvimento econômico, era mais eficaz fazer do franco francês uma moeda débil, desvalori­zando-a a cada dois anos. Seu pretenso keynesianismo conseguiu, até 1975, ridicularizar o rigor estúpido dos alemães broncos, que deixavam de aproveitar-se das comodidades da inflação controlada para acelerar o seu crescimento econômico.

Ao lado de Raymond Barre, combati durante cinco anos pela causa desprezada, desacreditada, da moeda forte. A partir de 1983, esta causa foi vencedora, sustentada sucessivamente pelos Minis­tros das Finanças Jacques Delors, Edouard Balladur e, sobretudo, Pierre Bérégovoy. E certamente o mais belo presente que o exem­plo do modelo renano possa ter dado à França.

A s verdadeiras armas do poderO desempenho das economias renanas chega mesmo a estar, há

vários anos, na primeira página de nossos jornais. E a incansável celebração de seus êxitos serve de amargo contraponto às dificul­dades crescentes encontradas pelas economias «anglo-saxãs», pri­sioneiras do déficit ou da inflação. Uma questão, perfeitamente lógica, é, pois, reiterada constantemente na imprensa: Como fazem

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eles? Quais são as verdadeiras armas deste seu poder? Procuro responder a esta pergunta ao longo de todo este livro. Mas uma observação deve ser acrescentada neste ponto. A força dessas economias repousa antes de mais nada numa capacidade industrial ímpar e numa agressividade comercial obstinada.

A indústria dos países renanos é a melhor do mundo. Isto é um fato, e um fato que pesa muito. O peso relativo da indústria na economia é mais importante na Alemanha, no Japão ou na Suécia que nos demais países da OCDE. Representa em tomo de 30% do PIB e da mão de obra assalariada naqueles países, menos de 25% nestes. Nos Estadas Unidos, esta parcela é até inferior a 20%. À quantidade acresce-se, como foi dito, a qualidade. Na maioria dos i setores industriais, os países do tipo rcnano dominam: estão soli­damente ancorados nos ramos tradicionais e consagram um esfor­ço excepcional às indústrias do futuro. Assim, entre as dez maiores empresas mundiais dos setores siderúrgico, automobilístico, quí- | mico, têxtil, de construção naval, de eletricidade e de agro-in­dústria, encontra-se uma forte maioria de firmas renanas, quer sejam japonesas, alemãs, holandesas ou suíças (Toyota, Nissan, Daimler-Benz, Mitsubishi, Bayer, Hoechst, BASF, Nestlé, Hoff- mann-La Roche, Siemens, Matsushita, etc.)

Nos setores do futuro são, sem dúvida, menos fortes e os ameri­canos ainda dominam. Mas por quanto tempo? No campo da aeronáutica, da informática, da eletrônica ou da ótica, os progres­sos das indústrias japonesas e alemãs já são espetaculares. Na informática, por exemplo, que, há trinta anos, é um verdadeiro território de caçíTguardado pelos americanos (sete das dez maiores ; empresas mundiais são americanas), o avanço japonês preocupa j Washington. Com efeito, os japoneses adquiriram odomínio quase total dos periféricos (telas, discos, impressoras) e um quase mono­pólio das memórias e dos componentes. Praticamente, os compu­tadores continuam sendo americanos, mas o que está no seu interior é japonês.

Este dinamismo excepcional das indústrias do modelo renano alicerça-se sobre três fatores principais.

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1. Uma atenção muito especial é dada à produção. Os alemães, o h japoneses, os suíços ou os suecos procuram permanentemente melhorar a qualidade seus produtos, reduzir os custos aumentado u produtividade. Estes esforços implicam em investimentos sus- tentados em máquinas e equipamentos. Os quatro países acima citados têm taxas de investimento entre as mais altas da OCDE. (H bom saber que com uma economia duas vezes menor, os japoneses investem, desde 1989, mais que os americanos.) Esta política de

As despesas de P&D militares dos Estados Unidos comparadas com as despesas P&D totais

do Jap ão e da KFA, 1972-1988

Fonte: National Science Foundaiioa e O C D E

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produção e de managementé baseada em métodos de gestão muito modernos. E do Japão que provêm os famosos «círculos de quali­dade» ou o «just-in-time», utilizados agora na França por Citroen para fabricaro XM, ou por Renault para o R19. São, aliás, métodos que fazem apelo à participação e à inteligência de todos. Exigem que um consenso mínimo seja a regra e que as agentes da produção sejam escutadas. E ouvidos.

2. Tais métodos, que rompem definitivamente com o taylorismo caricatural do filme Tempos Modernos de Chaplin, no qual cada operário era apenas o executante mecânico de gestos repetitivos, supõem que, como vimos (v. Capítulo 5), um esforço particular seja consagrado à formação. Os sistemas de ensino profissional, que aliam a aprendizagem à formação contínua, mobilizam nos países rennnos montantes duas vezes maiores que em outros luga­res. Mas é um esforço eficaz: não há nenhuma falta de engenheiros na Alemanha ou no Japão. A formação é um dos fatores chaves do dinamismo industrial dos países renanos.

3. O nível dos esforços de pesquisa e desenvolvimento (P&D) a que se comprometem as empresas é um dos pontos de contraste mais marcantes entre o modelo atlânticoe o modelo rena no. Neste último, o investimento em P&D é incomparável: representa, a grosso modo, 3% do PIB na Alemanha, no Japão e na Suécia. Por outro lado, é antes de tudo consagrado à pesquisa civil e voltado para as tecnologias de base utilizáveis em toda a indústria. Nos Estados Unidos, em contrapartida, a P&D mobiliza 2,7% do PIB, porém mais de^um terço deste total (1 %) é alocado à indústria de armamentos.

Observe-se que, nos países renanos, a ação dos poderes públicas é muito fecunda neste campo: o auxílio à pesquisa, os programas tecnológicos civis absorvem somas consideráveis. Assim, o famo­so MIT1 japonês estabelece uma lista de dez programas prioritá­rias, em tomo dos quais as empresas privadas devem mobilizar-se. Um dos mais célebres foi o programa de robótica, lançado há uns vinte anos, que permite hoje que o Japão, tendo se tomado líder

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Excedente manufatureiro da RFA 1967 - 1987

Fonte: CEPII. O C D E

Excedente manufatureiro do Japâo 1967 - 1989

Fonte: CEPII, O C D E

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mundial neste campo, produza mais robôs do que o conjunto de seus parceiros da OCDE.

Reunidos todos os fatores» os países renanos dispõem, pois, da indústria mais poderosa. Eeste poderio produtivo é notavelmente bem servido por uma «força de choque» comercial muito eficaz. Não é de estranhar, nestas condições, que as países renanos se revelem campeões da exportação. Durante muito tempo, a Alema­nha era a primeira deles. Mas o Japão não fica atrás. Um exame mais atento das capacidades de exportação revela, por exemplo, que nas principais indústrias alemãs (automobilística, química, mecânica, eletrotécnica), a parcela do volume de negócios de exportação chega a quase 45%. Nos Estados Unidos, a parcela do PIB reservada à exportação não ultrapassa os 13% e as indústrias americanas sofrem do que um relatório do MIT chama de «espírito de campanário».

Cultura econômica e cultura da economiaA expressão pode parecer leviana. Ou apressada. «Cultura da

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economia» não seria um conceito vago ou tautológico, como os diagnósticos dos médicos de Molière? Não é tão certo assim. Se quiser qualificasse com uma palavra um conjunto de comporta­mentos individuais partilhados pelo maior número de pessoas, apoiados sobre instituições, regras reconhecidas por todos e um |tatrimônk> comum, então precisa-se falar de «cultura». Uma cul­tura da economia, própria do modelo renano e cujos principais traços podem ser enumerados.

A propensão das famílias à poupança é um destes traços. O Japão, a Alemanha ou a Suíça1 distinguem-se dos seus homólogos da OCDE por uma elevada taxa de poupança. Esta poupança é indispensável para financiar a economia e sua insuficiência traduz- se, em numerosos países, em termos de déficit externo. Quando o dinheiro falta em casa, é preciso ir buscá-lo fora. E o que faz a América, cujas famílias são as «cigarras» do mundo desenvolvido, comprando tudo a crédito e, por vezes, tão endividadas que devem consagrar 25% de seus rendimentos para pagar juros. A insuficiên­cia da poupança é uma das explicações dos déficits comerciais americanos. Ao revés, os alemães e os japoneses, que dispõem de uma poupança superabundante, podem ao mesmo tempo financiar os seus próprios investimentos e conceder empréstimos externos a taxas vantajosas. Daí seus excedentes externos consideráveis.

Os grandes autores do pensamento liberal sempre consideraram que o ritmo do progresso estava ligado à capacidade de poupar. Tal capacidade - da qual depende a evolução das taxas de juros • está por sua vez ligada a fatores culturais, a uma sensibilidade coletiva que pode mudar conforme as circunstâncias. Em 1930, na Universidade de Vale, o economista Irving Fisher havia citado um destes fatores: «A principal causa de uma baixa das taxas de juros [e, portanto, de um aumento da poupança], é o amor aos filhos e o desejo de prover ao seu bem-estar. Todas as vezes que estes sentimentos debilitam-se, como no fim do Império Romano, a impaciência e as taxas de juros tendem a crescer. A palavra de

A Itália também, mas na Itália a poupança serve antes dc mais nada para finandar um enorme déficit orçamentário.

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ordem passa a ser então "depois de nós, o dilúvio" e passa-se a dilapidar febrilmente.»

Sem ter a pretensão de tirar conclusões por demais apressadas a respeito do «amor aos filhos», constata-se que entre 1980 e 1990, a poupança nacional evoluiu em sentidos opostos nos países renanos e nos Estados Unidos. No primeiro caso, aumentou, passando de 31 a 35% do PIB no Japão e de 22 a 26% na Alemanha, enquanto na América diminuiu, caindo de 19 a 13% no mesmo período (fonte: OCDE).

Koatc: Deidonaux, 130 desenhas de observação feitos para o »ftouvel Observateur*. EdGttnat. (•ttnoMc. 1974, pg.123

Observe-se bem, para a sequência, esta oposição entre o capita­lismo das cigarras que vivem de um dia para o outro e o capitalismo das formigas, que preparam hoje o dia de amanhã. Diz possivel­mente respeitoso dilema mais fundamental deste fim de século e à ética da nossa civilização.

Nos países renanos, pode-se observar igualmente que a im­portância da economia é percebida por toda a população. Decorre daí um clima difuso de mobilização cívica cujo papel não se pode desprezar. Caçoa-se às vezes do comportamento dos japoneses que, ao viajar para o exterior, colocam-se espontaneamente à espreita de qualquer informação que possa ser útil à sua empresa. Vê-se nisso uma espécie «amenizada» de espionagem industrial.

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Sr ria preciso« antes« ver um estado de espírito peculiar« um civismo dr empresa, que os alemães também possuem. Aliás, o interesse do público peta economia nacional é cultivado, difundido, coorde­nado por instituições. Na Alemanha, por exemplo, os bancos fornecem regularmente a seus clientes análises econômicas varia­das e completas. No Japão, o MITI * e as casas de comércio coletam pelo mundo inteiro informações que podem ser úteis às empresas. De maneira geral, consagra-se um esforço contínuo e sistemático nas empresas, à análise do que se fazem «outros lugares». E mais especificamente nos laboratórios de pesquisa dos concorrentes.( ’orno qualificar esta curiosidade permanentemente desperta e esta abertura para o exterior, senão pela expressão «cultura da econo­mia»?

É, sem dúvida, essa «cultura» assim partilhada que explica como estes países, de certa forma, libertaram suas economias das fatali­dades eleitorais ou políticas tão conhecidas. Os ciclos políticos erráticos, que implicam em despesas suplementares antes das eleições e numa volta a um rigor maior logo depois, são pratica­mente banidos. Os bancos centrais da Alemanha e da Suíça - para citar um outro exemplo • gozam, frente ao poder político, de uma independência quase total. Esta permite-lhes assegurar, contra ventos e tempestades, uma boa administração da sua moeda e são os próprios estatutos do Bundesbank que impõemeste devera seus dirigentes. Estamos longe da tutela que exerce, tradicionalmente, o Ministério das Finanças sobre o Banco da França. Os cinco grandes institutos de previsão econômica da Alemanha benefi- ciam-se da mesma independência e as suas estatísticas servem como referências indiscutíveis, tanto para os governos como para os parceiros sociais.

É esta «cultura» comum que explica, igualmente, a maneira pela qual os poderes públicos subordinam sua política à permanente preocupação de fortalecer a posição internacional de sua econo­

* Ministry of International Trade and Industry (Ministériode Comércio Internacional c Indústria) (NT)

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mia. É a famosa «Japan Incorporated» que faz do Japão uma imensa empresa que se lança à conquista dos mercados mundiais.

É esta mesma «cultura» que justifica o status particular - e privilegiado - de que goza a empresa no modelo renano. Ela nunca é considerada como o simples encontro provisório de interesses convergentes, nem a m o uma simples «máquina de cash-flow». Ao contrário, ela é concebida como uma instituição, uma comuni­dade duradoura que é preciso proteger. Cabe a ela, em reciproci­dade, assegurar a proteção de seus membros.

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