capital nacional e capital estrangeiro - s. p. guimarães

Upload: danilo-amorim

Post on 01-Mar-2016

5 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

capital nacional e estrangeiro

TRANSCRIPT

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 143

    INSTABILIDADE gerada pela desregulamentao dos mercados decapitais, e os danos que teria trazido, e poderia trazer, para a eco-nomia mundial, em especial para os pases perifricos; e a possibi-

    lidade de disciplinar, em nvel internacional, os movimentos de capitaisprivados, para diminuir sua volatilidade, orient-los em direo produoe reduzir sua vocao especulativa, so dois dos temas mais importantes doatual debate econmico.

    Durante quatro anos o Brasil foi convencido de que, na era da globa-lizao, o que valia era o capital, sua eficincia e sua competitividade, que apreocupao com o emprego, razo que deve ser suprema para todo gover-no, era antiquada e desnecessria, enquanto o Estado e a soberania seriamrelquias de um passado ruim. Na base de tudo, estaria agora o capital semptria, abundante, progressista e capaz de tudo resolver desde que fossetratado sem distines e que no se colocassem restries aos seus movi-mentos.

    Acreditando na igualdade de capitais, o Brasil promoveu radicaldesregulamentao de seus movimentos, inclusive privilegiando ostensiva-mente o capital estrangeiro. A desregulamentao foi acompanhada porpoltica comercial de ampla abertura, caracterizada, do lado da importa-o, pela imprudncia e, do lado da exportao, pela passividade, combi-nada com uma poltica de cmbio valorizado e de juros elevados. O resul-tado desse conjunto de polticas a gravssima crise externa latente de pa-gamentos em que hoje se debate o Brasil, com suas conseqncias inter-nas: recesso, desemprego, violncia e inquietao poltica.

    Discutir o papel do capital estrangeiro e do capital nacional na eco-nomia brasileira, que se viu atingida subitamente pela volatilidade do capi-tal, torna-se urgente porque as propostas de regulamentar, em nvel inter-nacional, os movimentos de capital, sem que antes tenha ocorrido crise deextraordinrias dimenses, no prosperam diante dos interesses dos pasesexportadores de capital, os quais tm sido afetados pela sua volatilidade deforma mais positiva do que negativa.

    Capital nacionale capital estrangeiroSAMUEL PINHEIRO GUIMARES

    A

  • 144 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    Portanto, a disciplina dos movimentos de capital por taxas, comoproposto por Tobin, ou pelo Fundo Monetrio Internacional, tal comoeste existe ou reformado, advogada por economistas e polticos, em geralda periferia, no dever ocorrer em tempo previsvel pois os pases quecontrolam de fato e de direito o FMI no parecem ter interesse maior emsua reforma, ou na imposio de disciplina aos seus prprios capitais.

    Dessa forma, caso os pases da periferia, ilusoriamente chamados deemergentes ou realisticamente de subdesenvolvidos, desejarem se defenderdos gravssimos riscos e danos para suas sociedades e Estados que a opera-o do sistema financeiro internacional, pblico e privado, pode trazer, de-vem procurar faz-lo mediante polticas prprias, as quais devem partir dacompreenso, ctica e sbria, da distino entre capital nacional e capitalestrangeiro, e dos efeitos deste ltimo sobre a economia e a sociedade (1).

    Neste artigo examinam-se as diferenas entre o capital de investimentodireto estrangeiro e nacional, seus efeitos sobre a economia e as polticas decapital que sero cruciais para as perspectivas, no longo prazo, de desenvol-vimento da sociedade e o lugar do Estado brasileiro na esfera internacional.

    O capital estrangeiro hoje em dia corresponde, no caso dos investi-mentos e do comrcio, a megaempresas multinacionais; no caso dos finan-ciamentos, a megabancos; e no caso do capital especulativo, a megafundosde penso. Em sua esmagadora maioria, essas megaentidades tm sede nosprincipais pases desenvolvidos, que se encontram no centro do sistemaeconmico internacional e no centro das estruturas hegemnicas de poder.

    A compreenso das relaes entre capital estrangeiro e capital nacio-nal, entre tecnologia e emprego, entre coeso social e violncia, entre so-berania e subordinao, entre centro e periferia crucial para entender oprocesso de globalizao excludente e assimtrica no qual est inseridoo Brasil, e assim permitir a definio de polticas que faam com que asociedade brasileira se beneficie de seus aspectos positivos e se defenda deseus efeitos negativos.

    Todas essas questes esto profundamente interligadas e todas se re-lacionam com a formao dos mercados financeiros globais e com a polti-ca, impulsionada pelas megaempresas multinacionais e por seus respectivosgovernos, de forar e consolidar a liberdade total para os movimentos decapitais, quer sejam eles especulativos, quer sejam de financiamento, quersejam investimentos diretos (2).

    As negociaes na Organizao Mundial do Comrcio para a exten-so do Acordo sobre TRIMS (3), as negociaes da ALCA, as negociaes na

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 145

    OCDE do AMI (4) e os planos de ajuste do FMI so todos movimentos tticosdentro de uma estratgia geral cuja finalidade promover aquela liberdade, aqual beneficia essencial e logicamente os pases com excedente de capital, epor conseguinte exportadores de capital, suas empresas, e a sua mo-de-obra.

    Para que essa estratgia tenha sucesso essencial que todos, as elitese a populao em geral, nos pases da periferia, estejam convencidos de queo capital estrangeiro e o capital nacional so igualmente benficos para aeconomia e a sociedade locais, segundo argumentam a maioria dos econo-mistas dos pases exportadores de capital e seus discpulos na periferia.

    Para alguns apologistas radicais, o capital estrangeiro seria at superiorao capital nacional pois aumentaria a poupana disponvel para investimento,transferiria tecnologia, renovaria os mtodos empresariais, aumentaria a con-corrncia e ampliaria o acesso da produo do pas ao mercado internacional.

    No haveria assim razo para a legislao e a poltica discriminarementre capitais e empresas segundo sua origem, mas at se deveria, qui,oferecer e dar a ele, ao estrangeiro, condies mais favorveis do que aocapital local para, justamente, atra-lo a investir diretamente em zonas dealto risco, como so os pases da periferia, entre eles o Brasil.

    Apesar de a insistncia e a convico com que esses argumentos soveiculados por economistas, polticos e pela mdia, a atual crise torna ur-gente examin-los um a um, a partir da premissa de que a relao entrecapital nacional e estrangeiro varia de acordo com a estrutura scio-econ-mica do pas e a etapa de desenvolvimento em que se encontra (5).

    Capital estrangeiro,poupana e formao de capital

    O capital nacional, em pases subdesenvolvidos como o Brasil, tende-ria a buscar, em geral, as oportunidades de investimento mais seguras e comretorno mais rpido. De seu lado, e verificando essa tendncia, o Estadoperifrico ficaria sempre tentado a aumentar a carga tributria ou a dvidapblica (interna e externa) ou a utilizar mecanismos inflacionrios parafinanciar seus investimentos e assim alcanar uma taxa elevada de formaode capital. O capital estrangeiro permitiria aumentar o total de poupanadisponvel para investimento no pas subdesenvolvido, inclusive em reasnas quais detm a tecnologia mais avanada e tem experincia empresarialespecfica. O desenvolvimento nacional poderia assim ser acelerado commenor sacrifcio e dificuldade poltica no s para a populao em geralmas tambm para as elites econmicas.

  • 146 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    O bem-estar fsico dos indivduos na sociedade moderna decorre dovolume e da qualidade dos bens que podem consumir e que tm de ser poreles adquiridos em funo de sua renda, a qual pode provir de seu trabalhoou de transferncias, privadas ou estatais. Desconsideradas as transferncias,a capacidade de consumo de um indivduo est diretamente ligada suacapacidade produtiva e s estruturas de mercado que distribuem o resulta-do da produo entre trabalho e capital.

    A capacidade produtiva, por sua vez, depende da formao do indiv-duo e das mquinas e ferramentas lato sensu sua disposio, enquanto acapacidade de produo da sociedade, como um todo, depende da quanti-dade e da qualidade da mo-de-obra e de seu estoque de capital, nele in-cludos os recursos naturais (6).

    A questo central que se coloca para o processo de desenvolvimento(entendido como criao de infra-estrutura bsica, inclusive social, redu-o de desigualdades e preenchimento de lacunas nas cadeias produtivas) ede crescimento (aumento da produo) a ampliao da capacidade insta-lada, isto , do investimento em capital fsico instalado e, portanto, dacapacidade de produo, desde que tal ampliao corresponda ao aumentodo nmero de postos de trabalho e maior participao dos salrios noresultado da produo.

    Uma massa considervel de poupana para realizar esse investimentona ampliao da capacidade poderia vir da massa salarial ou do Estado pelatributao (ou pela inflao); porm, considerando o decrscimo gradualda massa de salrios no total do produto, a grande parcela dos salriosutilizada para consumo, devido ao baixo nvel de renda per capita, e aresistncia social inflao como mecanismo para financiar investimentos,a maior massa de poupana para investimento ter de provir, nas reasperifricas, da remunerao do capital, isto , do lucro, mediante investi-mento privado ou da sua tributao para fins de investimento pblico.

    portanto a destinao do lucro (do excedente) em termos de pou-pana e de investimento na economia na qual ele foi gerado que permiteestabelecer uma comparao entre a importncia do papel da empresa pri-vada nacional e o da empresa estrangeira, em uma economia perifrica,como a brasileira.

    As incertezas polticas e econmicas tpicas de pases da periferia emdesenvolvimento fazem com que as empresas estrangeiras procurem ter amais alta taxa de lucro a curto prazo para recuperar mais rapidamente ocapital investido, e remeter a maior parcela de lucros ao exterior (7), apsos investimentos indispensveis manuteno de sua faixa de mercado.

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 147

    Assim, do total da massa de excedente, de lucro gerado pelas ativida-des produtivas no pas, disponvel para poupana e investimento e portan-to para ampliao da capacidade instalada, uma parte corresponde ao exce-dente gerado pelas empresas de capital estrangeiro e se destina remunera-o dos acionistas no exterior.

    Ao contrrio, a massa de recursos excedentes gerada pelas empresasnacionais est toda, em princpio, disponvel para poupana e investimentono territrio nacional. Naturalmente, pode ocorrer evaso de capitais nacio-nais para o exterior, devido debilidade ou instabilidade da economia.Tal possibilidade, todavia, no afeta o raciocnio aqui desenvolvido.

    A anlise da origem dos recursos para investimento e ampliao dacapacidade instalada revela que as empresas privadas financiam parte im-portante e s vezes at o total de seus investimentos com emprstimosjunto a bancos, pblicos ou privados, nacionais ou estrangeiros.

    O investimento direto da empresa estrangeira se faz sob a forma deingresso de capital de risco ou financiado por emprstimos, internos ouexternos. No caso do investimento financiado externamente, quer d eleresultados positivos ou no, tero incio a curto prazo remessas correspon-dentes a juros e principal, enquanto que no caso do investimento de riscoas remessas se realizam a partir do momento em que h lucro.

    medida que as empresas estrangeiras no Brasil levantam recursosjunto a bancos pblicos ou privados brasileiros, isto , mobilizam a pou-pana nacional para financiar seus investimentos, esta passa a contribuirpara a remessa para o exterior de parte do total de lucros gerados na econo-mia e, portanto, para a reduo da taxa de expanso da capacidade instala-da e do emprego no pas.

    No caso de financiamento de empresas estrangeiras pelo Estado peri-frico por meio de emprstimos ou isenes fiscais, o resultado mais pa-radoxal pois o prprio Estado contribui para aumentar a transferncia deexcedente para o exterior e para a reduo da taxa de ampliao da capaci-dade instalada no pas.

    O capital estrangeiro e a mo-de-obra

    A empresa estrangeira seria superior empresa nacional porque almde contribuir para expandir a demanda global por trabalho, aumentando aremunerao relativa desse fator, habilitaria e qualificaria a mo-de-obranacional em tecnologias novas e remuneraria melhor a mo-de-obra queemprega.

  • 148 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    Ao realizar investimentos novos, a empresa estrangeira com capitalprprio, originrio do exterior, est criando ou expandindo a capacidadeinstalada de forma nova, mas no necessariamente ampliando a demandaglobal por mo-de-obra.

    Muitas vezes, o resultado do investimento estrangeiro ocasiona umareduo da demanda global quando este investimento novo elimina em-presa concorrente que utilizava tecnologia mais intensiva em mo-de-obra.

    Quando o investimento direto estrangeiro se faz por meio de aquisi-o de empresa brasileira, a modernizao de seus equipamentos pode con-duzir reduo do emprego. Do mesmo modo, quando o investimentoestrangeiro se faz para modernizar com tecnologia intensiva em capital ins-talaes suas j existentes, a produo da empresa estrangeira pode conti-nuar igual, porm utilizando menos trabalho e pagando uma massa salarialmenor.

    No processo recente de modernizao perifrica, o aumento da capa-cidade instalada ou a modernizao de instalaes existentes tm assimcorrespondido diminuio do nmero de empregos para igual ou maiorvolume de produo, com a conseqente maior remunerao do capital,reduo da massa salarial, aumento da concentrao de renda e lenta ex-panso do mercado consumidor interno.

    Ao procurar alcanar a mais alta taxa de lucro em seus investimentosna periferia, pagando como salrios menor parcela de suas receitas obtidasna rea perifrica, a filial da empresa estrangeira contribui para que a taxaglobal de lucro da empresa multinacional a que pertence seja alta o suficien-te para que possa assim realizar taxa de lucro menor no pas-sede e apesardisso continuar a remunerar seus acionistas de forma aceitvel e, simulta-neamente, manter salrios elevados para seus operrios e funcionrios nasunidades em seu pas-sede.

    Finalmente, o argumento de que as empresas multinacionais pagamsalrios mais altos do que as empresas concorrentes locais deve ser exami-nado luz da comparao entre a massa salarial total que pagam as empre-sas estrangeiras e as nacionais e suas respectivas receitas.

    Caso a massa salarial paga pelas empresas estrangeiras for uma parcelamenor de suas receitas, ainda que salrios individuais para uma mesma fun-o possam ser mais elevados, os efeitos da empresa estrangeira sobre oemprego, a massa salarial e a demanda global so menos positivos do queafirma o argumento.

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 149

    A empresa estrangeirae o desenvolvimento cientfico e tecnolgico

    A empresa nacional, pela sua dimenso, pelo custo mais baixo datecnologia importada, e pelo escasso apoio estatal pesquisa privada, ten-de a investir pouco em pesquisa tecnolgica enquanto o Estado perifricodedica, direta ou indiretamente, valores absolutos reduzidos, e quecorrespondem a pequena parcela dos recursos sua disposio, a progra-mas de cincia e tecnologia.

    O veculo principal de transferncia de tecnologia das economias avan-adas para as sociedades perifricas seria assim o investimento direto estran-geiro. O conhecimento cientfico e tecnolgico seria, como qualquer mer-cadoria, disponvel no mercado, bastando pagar o seu preo para adquiri-lo,ou bastando atrair a empresa que o detm para fazer com que tal conheci-mento se incorpore ao sistema econmico nacional. A atrao de capitaisestrangeiros permitiria a um pas perifrico, como o Brasil, evitar investi-mentos vultosos em cincia e tecnologia, queimar etapas de desenvolvimen-to, e finalmente no reinventar a roda, no dizer de economistas irnicos.

    Sem dvida, as grandes empresas multinacionais so as maiores in-vestidoras privadas em programas de cincia e tecnologia, dos quais sur-gem as inovaes que reduzem seus custos, criam novos produtos, geramlucros extraordinrios e permitem sua acelerada expanso em nvel mundial.

    Essas atividades e investimentos encontram-se, todavia, concentra-dos em unidades de pesquisa em seus pases de origem, ou em outros pa-ses desenvolvidos, por razes empresariais, entre elas realizar economias deescala na pesquisa, ter acesso a maior oferta de mo-de-obra altamentequalificada e situar-se em mercados maiores.

    A escassez de investimentos em pesquisa nas reas perifricas, comoo Brasil, constatada pelo pequeno registro de patentes, como resultadode pesquisa aqui realizada. Todavia, mesmo quando a pesquisa se realizaaqui, no caso da empresa estrangeira a patente ser registrada em nome dacompanhia e sua utilizao no Brasil, ou em qualquer pas, gerar paga-mentos e remessas para a sede da empresa, detentora da patente. Por outrolado, e corretamente, a filial da empresa estrangeira na periferia remeterecursos para sua sede sob a forma de pagamentos pela prestao de assis-tncia tcnica e pelo uso de marcas e patentes.

    Ademais, quando se vincula a fornecedores locais, a filial da mega-empresa multinacional leva adoo de um certo padro tecnolgico, de-

  • 150 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    vido a restries naturais do processo produtivo, e aprofunda a dependn-cia tecnolgica. Finalmente, sempre que sua presena amortece e desestimulao esforo de desenvolvimento tecnolgico no sistema econmico local, aempresa estrangeira desestimula a formao de uma indstria local de bensde capital, a qual essencial ao progresso tecnolgico autnomo, nicocapaz de tornar a empresa local competitiva de forma permanente no mer-cado internacional.

    A companhia de capital estrangeiro tende a reservar os cargos dedireo em suas filiais no exterior a executivos e funcionrios estrangeiros,inclusive como forma de preservar segredos industriais e evitar que atecnologia vaze, isto , realmente se transfira e venha a ser utilizada porempresas concorrentes locais ou estrangeiras.

    Outro argumento sobre a transferncia de tecnologia que ela ocor-reria pelo mercado, ou seja, pelo acesso do consumidor a produtos antesdesconhecidos ou de melhor qualidade. Em realidade, o fato de os consu-midores terem acesso a tais produtos apenas aumenta a importao dessesprodutos e diminui a produo local, mas no significa que se realizaroinvestimentos novos no pas para produzi-los, nem que empresrios locaispodero licenciar tais tecnologias ou desenvolv-las no pas. Esta viso so-bre a transferncia de tecnologia foi utilizada no Brasil como argumentoadicional para justificar a abertura radical do comrcio exterior como umaestratgia de modernizao tecnolgica da indstria brasileira.

    Caso tivesse havido transferncia significativa de tecnologia no Brasilaps o enorme ingresso de capital estrangeiro que se verificou nas ltimasdcadas, teriam surgido empresas brasileiras que, tendo absorvido aquelastecnologias, transferidas pelo capital estrangeiro, estariam hoje concorren-do com as empresas estrangeiras no mercado brasileiro e no mercado mun-dial, como ocorreu no caso do processo de expanso das empresas japonesas.

    Em resumo, o mito de que o capital estrangeiro necessariamente trans-fere tecnologia reflete uma confuso conceitual entre o acesso do consumi-dor a produtos gerados por tecnologia avanada, ou a produo desses bensno territrio do pas (com efeitos positivos sobre engenheiros e operrios) ea efetiva transferncia, isto , a aquisio pela empresa e a mo-de-obra nacio-nal com capacidade de produzir novos produtos. Tal confuso contribuipara dificultar o esforo prprio de desenvolvimento cientfico e tecnolgico,mantendo o pas em um patamar tecnolgico permanentemente inferior e,portanto, para que a economia permanea menos competitiva; alm de con-tribuir para um fluxo constante de pagamentos para o exterior e um dficitpermanente no item tecnologia do balano de transaes correntes.

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 151

    Capital estrangeiro,modernizao empresarial e concorrncia

    A principal vantagem das megaempresas multinacionais, em especialas norte-americanas, em sua competio com as demais empresas seria suasuperior capacidade de organizao das atividades empresariais. Ora, estacapacidade escassa nos pases subdesenvolvidos devido s suas menoresexperincia, diversificao empresarial e acumulao de capital. Assim, ocapital e a empresa estrangeira contribuiriam para modernizar, pelo exem-plo e pela difuso gradual, as prticas empresariais brasileiras e para tornar asempresas brasileiras mais competitivas e eficientes, interna e externamente.

    Os mercados dos pases perifricos subdesenvolvidos, e entre eles oBrasil, so reduzidos pela pequena populao ou pelo seu baixo poder aqui-sitivo ou pela elevada concentrao da renda. A pequena dimenso domercado , como ensinou Adam Smith, o principal obstculo diviso dotrabalho, especializao e ao aumento da produtividade e da acumulaode capital. Assim, os preos dos bens tendem a ser mais elevados (inclusiveo preo do dinheiro), a competio restrita a pequeno nmero de empre-sas, sendo o consumidor explorado e as presses inflacionrias permanen-tes. Os capitais e as empresas estrangeiras contribuiriam para aumentar aconcorrncia e reduzir os preos ou mant-los estveis, alm de geraremefeitos positivos sobre o emprego e os nveis salariais, ao melhorar a relaocapital/trabalho em favor da mo-de-obra.

    Ora, a empresa estrangeira , em sua grande maioria, uma empresamultinacional de grande porte, e detm capacidade organizacional, tec-nolgica e financeira maior do que as empresas nacionais do mesmo setor,em pas da periferia.

    Portanto, a entrada da empresa estrangeira no mercado nacional dopas perifrico, pequeno em termos de poder aquisitivo, se, no primeiromomento, tende a aumentar a concorrncia no segmento especfico emque atua, tende a reduzi-la no momento seguinte, ao absorver ou eliminara empresa nacional concorrente.

    Por outro lado, aps sua instalao, a empresa estrangeira, por suadimenso e acesso ao mercado internacional, aumenta as barreiras entra-da no mercado em que atua. Ficam criadas as condies para o surgimentode estruturas oligopolsticas no mercado perifrico e, portanto, para a ge-rao e remessa de lucros extraordinrios e diminuio da poupana dispo-nvel para ampliar a capacidade instalada.

  • 152 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    A idia de que seria vivel na periferia, para combater essas tendncias,utilizar a reduo de tarifas de importao, como instrumento de controleda formao de oligoplios e de aumento de preos, depende, para seuxito, da capacidade do pas de aumentar suas receitas de divisas de formacrescente e sustentada pela gerao de supervites nos itens de transaescorrentes. A estratgia de financiar elevados dficits comerciais pela atraode capitais de curto prazo utilizando o cmbio sobrevalorizado e fixo etaxas de juros extraordinariamente altas est fadada, a mdio prazo, aofracasso, como ocorreu no Brasil, no incio de 1999.

    A empresa estrangeira e a balana comercial

    A empresa perifrica de capital local , em geral, de pequena dimensoem termos internacionais e sua rea de operao raramente se estende a ou-tros mercados. Em contraste, as estrangeiras geralmente so empresas de gran-de porte, com grande experincia internacional, filiais em muitos pases ecanais estabelecidos de comercializao e distribuio de insumos e produ-tos. Assim, essas megaempresas multinacionais poderiam contribuir para aexpanso dos mercados externos para a produo nacional, com todos osefeitos favorveis sobre o grau de diviso do trabalho na economia, sobre oaproveitamento de economias de escala e sobre a expanso da receita cambial.

    Todavia, na prtica, a implantao da empresa estrangeira no pas pe-rifrico acarreta com freqncia o aumento das importaes de partes einsumos, em geral de seus fornecedores tradicionais no exterior, sejam elesa ela vinculados ou no, gerando assim dispndios adicionais de divisas en-quanto, muitas vezes, se desarticulam os produtores locais daquelas partes einsumos como ocorreu, entre outras, com a indstria de autopeas no Brasil.

    Por outro lado, e de uma forma geral, em especial em pases de am-plo mercado interno como o Brasil, a empresa estrangeira, a partir de suaestratgia global de produo e vendas, se implanta para atender ao merca-do interno e eventualmente a mercados nacionais, de dimenso menor, namesma regio e que por isto no justificam a instalao de unidades deproduo. Dificilmente a empresa estrangeira ir orientar, nesse caso espe-cfico, a sua produo para a exportao e obviamente jamais para merca-dos que so abastecidos por unidades suas neles instaladas.

    Por outro lado, uma parte crescente do comrcio exterior brasileiro,em especial de manufaturados, um comrcio intrafirma, isto , entre filiale matriz, e os preos que so declarados para as diversas finalidades cambiaise tributrias so preos escriturais e no preos de mercado. Portanto, asreceitas de exportao (e o ingresso de divisas) se reduzem e as despesas de

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 153

    importao (e a cobrana de direitos aduaneiros) tambm se reduzem,artificialmente.

    Assim, de forma geral, a empresa estrangeira tende a contribuir maispara o aumento das importaes do que das exportaes, colaborando deforma negativa para a balana comercial. O impacto da empresa estrangei-ra sobre o balano de pagamentos tende a ser, ademais, globalmente nega-tivo devido tendncia a resultados negativos no somente em sua balanacomercial individual mas tambm em diversos outros itens do balano detransaes correntes, como juros, lucros, assistncia tcnica, transporte etc.

    Efeitos polticos do capital estrangeiro

    Tradicionalmente, um dos argumentos contrrios no ao capital es-trangeiro mas sim desnacionalizao excessiva da economia tem sido deacarretar a transferncia para o exterior dos centros de deciso da atividadeeconmica, ou seja, as decises de investimento, de exportao, de impor-tao, de uso da tecnologia, de emprego passam a ser tomadas no apenasem funo das caractersticas e da situao da sociedade onde atuam asfiliais das megaempresas multinacionais mas tambm, e talvez principal-mente, em funo da estratgia global daquelas megaempresas.

    Por outro lado, a capacidade do governo do pas perifrico de en-frentar, de orientar e de eventualmente estimular ou punir uma filial demegaempresa multinacional, apoiada por seu governo de grande potncia, muito inferior quela de que dispe o governo diante de empresas decapital nacional.

    Considerando, como consideravam os principais tericos do desen-volvimento econmico, que cabe ao Estado do pas perifrico, diante desuas extraordinrias disparidades e vulnerabilidades, um papel estratgicona integrao da economia perifrica, no preenchimento de seus vazios pro-dutivos, no desenvolvimento e difuso de tecnologia, na expanso do em-prego, essa transferncia dos centros de deciso afeta consideravelmente acapacidade de cumprir tais funes e, portanto, retarda o ritmo de cresci-mento e aumenta o hiato entre o pas perifrico e os pases avanados. Na-turalmente, possvel acreditar que as foras de mercado, totalmente libe-radas na era da globalizao que hoje se verifica claramente ser assimtricae excludente, poderiam melhor cumprir aquelas funes. Nada indica estaristo ocorrendo nos principais pases subdesenvolvidos, chamados de emer-gentes, que se vem submergidos em crises extraordinrias por justamenteterem tentado, temerariamente, colocar em prtica tal viso idealista e qua-se-religiosa do sistema econmico internacional.

  • 154 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    Outro aspecto, bem menos considerado do que o da transfernciados centros de deciso econmica diz respeito aos efeitos propriamente pol-ticos da desnacionalizao excessiva do sistema produtivo nacional.

    Diversos setores do parque industrial brasileiro caracterizam-se pelapresena macia de empresas estrangeiras, sendo muitas delas filiais de mega-empresas multinacionais. Os dirigentes dessas empresas so, em muitos ca-sos, executivos estrangeiros que permanecem por perodos de tempo relati-vamente curtos no Brasil, no comando dessas empresas, em mais uma etapaintermediria no curso de sua carreira na megaempresa em que trabalham.

    O conhecimento desses executivos sobre o Brasil tende naturalmentea ser recente e relativamente superficial e explicvel que alguns venham ase enclausurar em quistos, at devido s dificuldades de lngua e s diferen-as de costumes, situao essa que tende a reforar os esteretipos sobre asociedade brasileira, to comuns em seus pases de origem, mesmo entreaqueles setores mais informados e cultos.

    Ora, o sistema poltico de qualquer pas, para ser eficientemente re-presentativo e legtimo, deve refletir, de forma transparente, os interesses eas aspiraes dos diversos segmentos da populao, quer sejam eles econ-micos, religiosos ou profissionais.

    Todavia, a dificuldade em se fazer presente nos processos legislativo eexecutivo por meio de representantes autnticos, j que cidados estrangei-ros no podem ser eleitos, nem exercer cargos na estrutura do Executivo,faz com que as filiais de empresas estrangeiras tendam a privilegiar, comoinstrumento de defesa e promoo de seus interesses, as articulaes buro-crticas dos lobbies junto aos distintos Poderes enquanto o setor industrial,como um todo, fica deficientemente representado nas estruturas do Execu-tivo ou Legislativo ou representado apenas de forma indireta e inadequada.

    Assim, segmentos econmicos e sociais com menor participao noPIB do que a indstria, como a agricultura e certas atividades de servios,entre eles educao, sade e bancos, mas onde se verifica uma presenamuito maior de empresas de capital nacional, tendem a ficar relativamentesuper-representados, e de forma mais autntica, do que o setor industrialbrasileiro.

    O preconceito anti-industrial na sociedade e mesmo entre as elitespolticas tende a se avolumar pela ausncia de vnculos mais profundos emais legtimos entre os principais executivos e lderes da indstria e as lide-ranas de outros setores da economia e da sociedade. Aquele desequilbriona representao dos setores econmicos no processo poltico de elabora-

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 155

    o de normas e de execuo de polticas pblicas e esse preconceito anti-industrial trazem srios prejuzos sociedade.

    Polticas pblicaspara o capital nacional e estrangeiro

    O capital estrangeiro trouxe, no passado, extraordinrias contribuiespara o desenvolvimento da economia brasileira, em especial para sua transfor-mao de economia agroexportadora rural em economia industrial urbana.

    Essa contribuio do capital estrangeiro verificou-se nos mais diver-sos setores da economia: na construo da infra-estrutura de portos e fer-rovias nas zonas do caf; na expanso da malha rodoviria e da indstriaautomobilstica, com financiamentos pblicos e investimentos privados; nainstalao das indstrias de bens de consumo; na participao significativana instalao de indstrias de base vitais como a siderurgia de aos no-planos e, finalmente, na petroqumica e no setor de bens de capital.

    A contribuio do capital estrangeiro para a formao da capacidadeinstalada no Brasil se, por um lado, historicamente correspondeu a umapequena parcela do total investido na formao de capital, por outro teve,muitas vezes, uma importncia estratgica, ao realizar investimentos que ocapital nacional no poderia realizar, por no dispor de tecnologia, ou he-sitava em realizar, pela dimenso do empreendimento.

    Todavia, preciso notar que, em diversos momentos da histria daformao industrial brasileira, a ao do Estado, construindo as bases fsi-cas para a atuao do capital privado nacional ou estrangeiro tais como ainfra-estrutura de energia e de comunicaes , ou implementando polti-cas regulatrias das atividades do capital, foi decisiva para superar estrangu-lamentos localizados ou para dotar a economia da base indispensvel aoseu desenvolvimento continuado e ao alcance de nveis mais elevados desofisticao e competitividade.

    No fora a ao pioneira dos investimentos estatais e hoje a economiabrasileira no disporia da energia eltrica e do petrleo necessrios a seufuncionamento; no fora a ao do Estado e a indstria de bens de capitalno teria surgido; no fora a ao disciplinadora e estimuladora do Estadoe no se teria diversificado de forma extraordinria o comrcio exterior pormeio da expanso das exportaes industriais.

    A contribuio do capital estrangeiro realizou-se assim no quadro depolticas ativas de estmulo, disciplina e orientao da ao do capital es-

  • 156 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    trangeiro e do capital nacional que se inseriam, por sua vez, em estratgiasde desenvolvimento de amplo alcance e viso, cujo objetivo bsico, manti-do com tenacidade, foi a construo de uma estrutura produtiva industrialmoderna no pas.

    A ttulo de exemplo, a determinao de ndices de contedo nacional(nacionalizao) para a produo das empresas estrangeiras fez com quesurgissem empresas fornecedoras nacionais ou estrangeiras instaladas noBrasil e acarretou o aperfeioamento tecnolgico e a integrao do parqueprodutivo, alm de ter induzido a formao de engenheiros e tcnicos nosmais diversos setores produtivos.

    As polticas de estmulo exportao e de vinculao da importao exportao foraram as megaempresas multinacionais a reestruturar seus es-quemas de diviso internacional de mercados para abrir espao para as expor-taes de suas unidades instaladas no Brasil e promover a gerao de divisas.

    A atual poltica de desregulamentao e de passividade do Estadoface ao capital estrangeiro e de paradoxal desprezo pelo capital nacionaltem contribudo fortemente para o agravamento da crise econmica inter-na e externa, que sucedeu subitamente a um perodo de iluses primeiro-mundistas. Caso mantida essa viso e essa poltica, no ser possvel superara fase de baixo crescimento e profunda recesso em que ingressamos e quese nos apresentada como indispensvel a uma retomada do desenvolvi-mento, sempre adiada e cada vez mais distante.

    Para que o capital estrangeiro possa dar no futuro contribuies ain-da mais extraordinrias ao desenvolvimento do pas sua ao tem de voltara ser disciplinada por uma legislao e polticas pblicas que o orientem asetores prioritrios e que fortaleam o capital nacional, os empresrios e asempresas brasileiras.

    Uma poltica de capital depende da capacidade fiscal do Estado, tan-to para arrecadar quanto para aplicar recursos de forma estratgica. Ora, aempresa de capital nacional favorvel, por definio e naturalmente, reduo dos tributos que sempre tende a considerar excessivos, pois redu-zem seu lucro. A empresa estrangeira tem a mesma posio inclusive por-que os servios pblicos locais, sustentados pelos tributos que recolhe, nobeneficiam seus nacionais (que esto obviamente em outros pases), nem ostributos contribuem para a defesa de seu pas de origem, enquanto fortale-cem o Estado que a empresa estrangeira v como seu antagonista principal.

    Assim, a megaempresa multinacional contra a interveno do Esta-do na economia, quer como regulador quer como empresrio, j que o

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 157

    Estado , na periferia, o nico ente capaz de enfrentar seu extraordinriopoder econmico, de assimilar sua tecnologia ou de induzir a sua transfe-rncia. Assim, a elaborao e a implantao de uma poltica de capitaiscontar com sua oposio, para a qual procurar o apoio do capital nacio-nal, que sendo ideologicamente contra o Estado, corre o risco de no per-ceber em tempo hbil que sem a ajuda deste ltimo desaparecer frente megaempresa multinacional, como est ocorrendo no Brasil.

    A empresa nacional dever ter um tratamento diferenciado e privile-giado, sempre que contribuir de forma significativa para a formao decapital no pas. Por outro lado, o objetivo maior de acelerar a expanso dacapacidade instalada deve motivar polticas que induzam as empresas es-trangeiras a reinvestir parcelas maiores de seus lucros no pas.

    A poltica de capitais no pode, como tem ocorrido, contribuir parao enfraquecimento e desaparecimento do capital e da empresa brasileiranem privilegiar o capital estrangeiro, de uma forma indita e excessiva,como revelam os contratos de instalao de novas megaempresas multina-cionais na rea automobilstica.

    Os compromissos internacionais, que foram sendo assumidos pelo Es-tado brasileiro em sua poca de fascnio neoliberal, iniciada em 1990, re-tomada com vigor em 1995 e vem at a crise de 1999, dificultam mas noimpedem a definio e execuo de uma poltica de investimentos e dedisciplina do capital nacional e estrangeiro, como alguns argumentam parajustificar a inrcia do Estado e declarar invivel e impossvel qualquer pol-tica industrial.

    Esta poltica pode e deve ter como seus principais instrumentos autilizao do crdito pblico diferenciado, a reduo e a iseno fiscal,como alis foi feito na indstria automobilstica, e as compras governa-mentais para aquelas empresas que

    reinvistam maiores parcelas de seus lucros na ampliao da capacida-de produtiva;

    invistam em programas de pesquisa cientfica e tecnolgica no Brasil;

    privilegiem a aquisio de partes e componentes de produtores insta-lados no Brasil;

    invistam em reas/setores definidos como prioritrios do ponto devista social ou tecnolgico ou ambiental;

    empreguem tecnologias eficientes intensivas em trabalho;

  • 158 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    ingressem efetivamente em novos mercados externos;

    apresentem uma balana comercial positiva.

    Algumas dessas polticas so aplicadas, de diversos modos e median-te diferentes instrumentos, em pases altamente desenvolvidos, como mos-tram estudos recentes realizados pelo IEDI (Instituto de Estudos de De-senvolvimento Industrial) e pela OCDE. Para que venham a ser definidas eaplicadas no Brasil, necessrio apenas se faz que a atual orientao de pol-tica econmica, idealista e ingnua, seja substituda por uma estratgia rea-lista que tenha como fundamento a percepo de que o desenvolvimentobrasileiro, em um mundo conturbado de globalizao assimtrica, deverter como sua base a indstria, o esforo cientfico e tecnolgico e a reduogradual de sua vulnerabilidade externa, e nunca uma eterna e utpica am-bio de especializao em agricultura e em indstrias de tecnologia co-nhecida e simples.

    Nota final sobre a prxima investidapara a desestruturao perifrica

    Durante a Rodada Uruguai, as agncias econmicas internacionais eos governos dos pases altamente industrializados desenvolveram amplacampanha de persuaso poltica junto s populaes e aos governos subde-senvolvidos de que aquelas negociaes eram vitais para os interesses des-ses ltimos. A reduo de tarifas e a eliminao de barreiras no-tarifriaspermitiriam a expanso extraordinria de suas exportaes, em especial deprodutos agrcolas e primrios em geral; a criao da OMC eliminaria ounilateralismo das retaliaes arbitrrias norte-americanas; as novas regrassobre propriedade intelectual estimulariam o desenvolvimento e a transfe-rncia de tecnologia na periferia.

    Infelizmente e, alis, como deveria ser de se esperar, os resultadosconcretos, objetivos, so que aumentaram em muito, isto sim, as exporta-es dos pases desenvolvidos e as nossas importaes; e assim, em vez degrande exportador agrcola, o Brasil se tornou um dos maiores importado-res mundiais de produtos agrcolas. As novas regras de propriedade inte-lectual em nada estimularam a gerao ou a transferncia de tecnologia,enquanto que os pagamentos pelo uso de patentes, marcas etc. subiramvertiginosamente em favor de seus detentores, isto , das empresas estran-geiras. O unilateralismo e as presses norte-americanas permaneceram emuma realidade que no se deixaria intimidar por uma organizao a OMC que os prprios Estados Unidos permitiram surgir.

  • ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000 159

    Agora, quando se inicia a campanha ideolgica que prepara a chama-da Rodada do Milnio da OMC, surgem os mesmos argumentos de que aeliminao dos obstculos exportao de produtos agrcolas, em especialna Unio Europia, permitir que o Brasil se torne um grande exportadorde produtos agropecurios e que, por tal razo, deve o Brasil participar deforma positiva daquelas negociaes. Assim, na viso idealista e ingnua, oBrasil continua a almejar uma integrao na economia mundial de formaarcaica e prejudicial aos interesses e s necessidades de economia do pas,devido s caractersticas dos mercados internacionais de produtos primrios,cujos preos, como hoje o FMI reconhece, no somente sofrem flutuaesexcessivas e desestabilizadoras, como apresentam tendncia secular baixa,com a conseqente deteriorao dos termos de intercmbio. A estratgiade desenvolvimento e de insero internacional que tem como fundamen-to a agricultura e mesmo o agribusiness sofisticado insuficiente para que oBrasil desenvolva suas potencialidades econmicas e polticas.

    Essa Rodada do Milnio, do ngulo de seus promotores altamentedesenvolvidos, visa a desregulamentar (e a consolidar juridicamente essadesregulamentao) as atividades econmicas na periferia com o objetivo deimpedir que os grandes Estados perifricos executem polticas ativas de de-senvolvimento. A Rodada do Milnio apenas uma vertente de uma amplaestratgia desenvolvida pelos Estados Unidos, em vrios nveis multilate-ral/ bilateral/ unilateral em seu esforo de organizao da economia mun-dial, permanecendo em seu centro, com os privilgios que lhe confere sualiderana das estruturas hegemnicas de poder.

    Notas

    1 No que diz respeito ao capital estrangeiro especulativo, a discusso poderia selimitar idia de jamais sustentar qualquer poltica de desenvolvimento sobre aatrao de tais capitais e que, para evitar os resultados perniciosos de sua ao,seria suficiente taxar sua permanncia no pas de modo a, tanto quanto poss-vel, evitar sua presena no sistema econmico. Pases de poltica econmicaconservadora, como o Chile, j o fazem h tempo e portanto essa taxao norepresentaria novidade, nem atrairia antagonismo insupervel. O Brasil, nadcada de 70, adotou tal medida. A procura por financiamento externo pelasempresas, estimulada pelo diferencial elevado entre as taxas de juros internas eexternas, deveria ser regulada e limitada s operaes que visam gerao dereceitas em dlares, e obedecido um limite global para o endividamento priva-do no exterior.

  • 160 ESTUDOS AVANADOS 14 (39), 2000

    2 A poltica de liberalizao dos mercados de capital parte da estratgica polti-ca e econmica de reincorporar ao sistema capitalista global as antigas reassocialistas e as reas da periferia subdesenvolvida que haviam conseguido im-plantar estruturas industriais relativamente avanadas, e detinham certa auto-nomia diante dos interesses das megaempresas multinacionais.

    3 TRIMS: Trade Related Investment Measures (Medidas Relativas a Investimen-tos que afetam o Comrcio).

    4 AMI: Acordo Multilateral sobre Investimentos.

    5 Assim, a relao entre capital e trabalho e entre capital estrangeiro e nacional eas polticas que devem ser adotadas tm de ser distintas entre pases altamentedesenvolvidos, onde o crescimento da populao (e da fora de trabalho) muito lento, e pases subdesenvolvidos, como o Brasil, onde anualmente in-gressam no mercado de trabalho cerca de 1,5 milhes de pessoas.

    6 A idia de que a educao, por si s, pode melhorar o nvel de renda dosindivduos e da sociedade como um todo e, portanto, seu bem-estar econmi-co ou que vai contribuir, por si s, para o aumento da produo um equvo-co. O processo educacional tem trs objetivos: o primeiro, contribuir para oaperfeioamento cultural, espiritual e intelectual do indivduo, de forma a quepossa desenvolver plenamente suas potencialidades, usufruir melhor de sua na-tureza humana e contribuir para o progresso de sua sociedade e da humanida-de; o segundo, formar um cidado, capaz de participar da sociedade e de seugoverno; e o terceiro formar um indivduo produtor de bens para o sistemaeconmico. No caso deste ensaio, estamos tratando apenas do ltimo objetivoda educao, que o menos importante: a formao do indivduo como pro-dutor de bens. Na ausncia de bens de capital em quantidade e qualidade sufi-cientes com os quais combinar o seu esforo, a melhor educao (econmica)dos indivduos, ao aumentar a oferta de trabalho qualificado, reduzir (ou man-ter) os salrios em cada segmento do mercado, mas aumentando a produtivi-dade aumentar a produo e os lucros.

    7 Os acionistas das grandes empresas de capital estrangeiro encontram-se no ex-terior, j que suas filiais nas reas perifricas so, em geral, empresas de capitalfechado, isto , sem acionistas locais. Uma prtica das empresas multinacionaisque deve ser mencionada a alocao contbil de lucros jurisdio onde somenores as alquotas de imposto de renda, o que provoca resultados negativossobre a arrecadao tributria.

    Samuel Pinheiro Guimares diretor do Instituto de Pesquisa de Relaes Inter-nacionais do Itamaraty (DF).