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Capas de livros insinuam-se. Um convite a quatro visitas. As capas zelam, aqui na Imprensa da Universidade de Coimbra, muitas das vezes, por divulgar ainda outros saberes além daqueles que as matérias expostas no corpo do livro convocam. Um exercício dinâmico onde a descoberta e a difusão de autores, e mesmo de valores artísticos, ganham forma. Todo um tempo onde o gesto, mais que ilustrativo, se pretende cirurgicamente galvanizador, pois criar uma capa não se reduz, em nós, a um ato meramente cosmético: procura, sim, atribuir uma função interventiva ao próprio rosto do livro. É esta uma prática experienciada na Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC), e já antes enunciada [ver: “Uma Galeria no Planeta Book Covers”, Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, #30, out. 2010], atitude salutarmente continuada ganhando progressivamente, e em momentos atuais, novas sinergias. A resultar como exemplo revelam-se, entre as dezenas de livros ultimamente aqui publicados, quatro capas na condição semântica de um dizer potenciado. Um dizer que traga novas valências, a par da enunciação de conteúdos que o rosto da publicação já em si veicula. 1. Estudos de Linguística, Volume I. Coordenação de Ana R. Luís. Série Investigação. IUC, 2012. Capa: Vitrais de João Vieira (1934-2009), Igreja de São Domingos, Sé Catedral de Vila Real, 2002-03. Como forma de exaltar a nossa lusa autoestima, a Universidade de Coimbra elegeu, para enunciar a imagem distintiva do Ciclo de Conferências de Estudos Europeus (agora com a sua primeira edição, mas prometendo apresentação anual continuada), um criador português, figura e obra que são orgulho nacional: o pintor João Vieira. Sendo uma das personalidades geradoras dos momentos mais significativos das artes plásticas portuguesas, com dimensão e reconhecimento internacionais, nas últimas décadas, João Vieira, com a sua pintura simbólico-performativa, empresta à sociedade de hoje uma força anímica ímpar. Um gesto de excelência que convoca uma reflexão vital sobre o cumprimento da presença de Portugal na União Europeia. E, com ele, solta-se um elogio vertical dos valores nacionais. João Vieira, sempre visionário desde os tempos do Café Gelo, conjugando os desígnios de artistas e escritores como Helder Macedo e Herberto Helder, soube estar com singular elevação e arte na Europa a partir de 1957, quando partiu do país, “expatriando-se”, à procura de novas expressões plásticas. Aí destacou-se como elemento fundamental do grupo fundador da revista KWY (Paris, 1958-1964), coletivo internacional que integrou nomes maiores da história da Arte, na Europa e no mundo, como Javachef Christo, Jan Voss, José Escada, Lourdes Castro e René Bertho- lo, entre muitos outros. Investigador consequente, vem a construir uma linguagem própria baseada na escrita (envolvente do alfabeto). Chega mesmo a explorar a pintura até aos seus limites, conjugando aí a nevralgia do texto, sem esquecer as performatividades do corpo, e mesmo uma vital inscrição nos desígnios do happening. Revisitando as palavras que me forneceu o, também pintor, Manuel João Vieira, filho do artista, colhemos uma premissa da sua exímia identidade: “O meu pai viveu muito tempo em Paris e Londres, fez parte de um grupo internacional – Europeu de Arte, os KWY, ia regularmente e fez um certo número de exposições em Espanha, participou em inúmeras exposições e conferências na Europa, ultimamente em Berlim, enfim, podia fazer um levantamento de tudo isso, mas, em última análise diria, como ele dizia, que o artista verdadeiramente europeu ou internacional é aquele que respeita e explora as suas raízes nacionais”. Exemplo fundamental deste princípio ét(n)ico e identitário, advogado por João Vieira, é a sua obra plena com os vitrais da Sé Catedral de Vila Real, intervenção edificada em 2003, em resposta a um convite do Instituto Português do Património Arquitectónico. Nesta revisitação à arte de sensibilidade “letrista” de João Vieira, que a Universidade de Coimbra traz a honra de sublinhar, inscreve-se também a edição (para capa do livro coordenado por Ana R. Luís) de um dos vitrais da Igreja de São Domingos - catedral agora singularmente valorizada, e que não dispensa uma visita. Em Vila Real uma paragem para colher este cenário onírico é obrigatória. Uma portentosa festa para os olhos. Quem não tem alma, ganha-a neste caleidoscópico berço. Lugar de iniciação até, pois como sublinha Umberto Eco, citando Suger, “as catedrais deviam tornar-se livros de pedra”. Mas os méritos não se esgotam por aqui. Uma das aprendizagens a colher, e que bem faz orgulhar a cultura lusa, é a prova de civilização que aqui reside – a salutar e sinergizante coabitação de linguagens, tempos e culturas artísticas com que esta ousada operação (também pedagógica) nos contempla. Todo um exemplo a seguir, e continuar, numa exaltação constante de um elevado diálogo dos tempos e formas do dizer. 2. A Vida nas Escolas. Casos para a Formação de Professores. La Práctica Cotidiana en los Colegios. Coordenação de Ana Rodríguez Marcos e Teresa Pessoa. IUC, 2012. Capa: Matadero Madrid – Centro de Creación Contemporánea, bid_07 – 1 Bienal Iberoamericana de Diseño, 2007. O primeiro contacto com a imagética que o rosto deste livro nos expõe pode parecer estranho, tratando-se de um livro do lugar escola. Mas é precisamente esse, o primeiro gesto que o ato propõe: o espanto. Dizia-me um dia o escritor Alberto Pimenta (sempre a procurar pedagogia nas suas substanciadas conversas), que “a função da Ciência é anular o espanto, a da Arte provocar o espanto”. Sinergizante, esta capa transporta-nos para um inédito lugar escola: o Matadero Madrid – Centro de Creación Contemporánea, e, o que aqui se infere, é fazer dialogar o lugar com uma comunidade específica – o mundo investigador circulante nas novas pedagogias de uma geografia ibérica. O Matadero Madrid surge no antigo Matadouro e Mercado do Gado de Arganzuela, construído entre 1908 e 1928 por encomenda do Ayuntamiento de Madrid, projeto do arquiteto Luis Bellido. Na origem, com cerca de 165m², a estrutura ganhou progressivamente novas edificações, e em 80, o arquiteto Rafael Fernández-Rañada transformou a Casa del Reloj na sede da Junta e em espaços de indole sóciocultural. Nos anos 90 o arquiteto Antonio Fernández Alba, a partir dos antigos estábulos, criou a sede do Ballet Nacional de Espanha e da Companhia Nacional de Dança. Original foi também a reabilitação, pelo arquiteto Arturo Franco, do vestíbulo (Paseo de la Chopera, 14) em Espaço Intermedia, em 2007, onde o ferro e o vidro são os materiais protagonistas. O trabalho conjugado do diretor de Teatro Mario Gas, com o cenógrafo Jean Guy Lecat (que trabalhou com Peter Brook) fez surgir, a partir de lugares abandonados, insólitos espaços cénicos. A Central de Diseño, projeto de José António Garcia Roldán, mantém a força da decomposição construtiva dos elementos, incorporando materiais reciclados. Mas outros novos programas estão em curso neste crescendo constante, num espaço singular que se afirma como um símbolo cultural da cidade. O Matadero Madrid, com uma missão que se enuncia pela criação em todas as formas e expressões, define-se em três eixos de atuação: formação, produção e difusão. Aposta numa dimensão integral e multidisciplinar da cultura, aspirando converter-se num laboratório único para a experimentação, e construção de novas fórmulas transdisciplinares. As artes cénicas, visuais, o design, a música, a dança, a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo, a moda, a literatura, o pensamento e o cinema definem as áreas de atividade já em curso do Matadero Madrid. Formulada esta apresentação, observamos que a imagem do espaço cénico, colhida num dos territórios do Matadero Madrid, e que a capa do livro expõe, resulta de uma estrutural “instalação” plástica (vestibular em “Utopías” de Santiago Cirugeda, Natalie Bookchin e Llorenç Bonet), suporte exploratório que é também um versátil lugar oficinal. Aí surgiam aulas de Desenho de alunos de Arquitetura e Design. O registo foi produzido na bid _ 07 – 1 Bienal Iberoamericana de Diseño, 2007 (onde estive presente como observador convidado). Edição bilingue (português/espanhol), com co-coordenação de Ana Rodríguez Marcos, Professora na Universidade Autónoma de Madrid, teve o livro distribuição em Espanha, e inscreve no seu conteúdo, além das ações dos autores lusos, experiências de campo e estudos de autores castelhanos. Também por isto, a IUC referencia (com imagem de capa nesta publicação) uma operação pedagógica por nós registada na cidade de Madrid. 3. Grandes Conflitos da História da Europa. De Alexandre Magno a Guilherme “o Conquistador”. João Gouveia Monteiro. Série Investigação. IUC, 2012. Capa: “Tapeçaria de Bayeux”, 1077. Espaço Museológico do Centre Guillaume le Conquérant, cidade de Bayeux. Esta “Tapeçaria de Bayeux”, por muitos considerada a mais antiga banda desenhada do mundo, transporta uma história invulgar. E ninguém melhor que o autor do livro que num dos seus momentos a narra, João Gouveia Monteiro, para nos contemplar com algumas preciosas passagens desta sua obra. Ela aborda este objeto misterioso – tapeçaria que é hoje um dos mais vultuosos tesouros visitáveis de Bayeux. Um bordado histórico que é considerado a melhor fonte iconográfica europeia de toda a Idade Média. "Falamos da Tapeçaria de Bayeux, na realidade um bordado histórico que deve ter sido fabricado com vista à cerimónia de dedicação da catedral de Bayeux (na Normandia, perto de Caen), que teve lugar em 1077. Consiste em oito peças cosidas umas às outras, formando um conjunto com cerca de 50 centímetros de altura e com mais de 70 metros de comprimento! A tela de suporte é de linho branco e o bordado foi feito com fios de lã de diversas cores ou tons diferentes: as cinco cores principais são o vermelho-tijolo, o verde-azulado, o verde-claro, o castanho-amarelado e o azul-acinzentado; como cores subsidiárias, utilizou-se o verde-sálvia, o amarelo e um azul muito escuro (quase preto). No entanto, não podemos ter a certeza absoluta de que estas fossem as cores originais, embora elas sejam notavelmente vivas e o desenho permaneça muito nítido, também devido ao facto de a peça ter sido bem restaurada e valorizada. Um artista desenhou as cenas e, depois, os artesãos executaram o bordado utilizando ponto pé de flor (para os contornos e as letras) e ponto cheio (entre nós também conhecido por “ponto de Castelo Branco”) para o resto. Para a maioria dos fundos ou para a representação da cor da pele das personagens, por exemplo, optou-se por manter a cor natural da tela (o linho branco). A Tapeçaria de Bayeux, um trabalho que se enquadra num conjunto de obras do mesmo tipo datáveis da segunda metade do séc. XI, deve ter sido fabricada em Inglaterra, possivelmente em Canterbury (Cantuária, no extremo sudeste), onde existia uma grande escola de bordado decorativo cujas peças apresentam um estilo e uma técnica semelhantes. Além disso, diversos motivos exibidos na tapeçaria, em especial nos seus frisos superior e inferior, inspiram-se claramente em manuscritos anglo-saxónicos dos sécs. X e XI, muitos dos quais pertenciam à rica coleção da catedral de Canterbury. A vida e o movimento da peça são próprios da tradição anglo-saxónica, e também há nomes com uma grafia não francesa inscritos na legenda em latim que acompanha a descrição da campanha de Guilherme em Inglaterra. Pensa-se que a peça pode ter sido desenhada por um só autor, dada a sua extraordinária unidade, provavelmente um homem, devido ao realismo das cenas de batalha e dos equipamentos militares representados. Nesta peça fabulosa, podemos apreciar cerca de 50 cenas, relativas não só a combates mas também a caçadas, a construção naval, a navegação no alto-mar, a culinária, a cerimónias religiosas, a construção de castelos, entre outras. Os pormenores incluem, por exemplo, armas, arreios de cavalos, vestuário e relicários. São representadas 623 personagens, 202 cavalos, 55 cães, 505 outros animais (ursos, lobos, raposas, pássaros e animais fabulosos, por vezes em breves ilustrações de fábulas célebres, como a do corvo e da raposa, de Esopo), 37 edifícios, 41 navios e barcos e 49 árvores. Há ainda perto de 2000 letras (elegantíssimas, com perto de 2,5 cm de altura), as quais compõem legendas em latim, que acompanham e enriquecem toda a narrativa visual. Estas legendas foram minuciosamente estudadas por Paula Dias, que destacou, entre outros aspetos interessantes, a sua interação com as imagens, a sua simplicidade, as flutuações na ortografia e as dificuldades sentidas pelo autor na adaptação da fonética germânica dos nomes bárbaros à fonética romana. A narrativa da Tapeçaria de Bayeux principia em 1064 e prolonga-se até ao termo da batalha de Hastings, mas o bordado, infelizmente, está incompleto e termina bruscamente: estima-se que faltem dois ou três metros, que talvez representassem a coroação de Guilherme em Londres, tal como parece poder deduzir-se de versos de Baudry de Bourgueil (bispo de Dol-en-Bretagne entre 1107 e 1130, poeta e historiador latino e autor de um poema dedicado a Adélia da Normandia, uma das filhas de Guilherme “o Conquistador”). A tapeçaria comporta um corpo principal, ao centro, completado por dois pequenos frisos (superior e inferior) com motivos diversos e, por vezes, bastante enigmáticos. As cenas são separadas por árvores estilizadas ou por letras, e o artista recorre a diversos efeitos plásticos e a outros truques para compensar a ausência de perspetiva. Documento excecional para ilustrar o quotidiano do mundo medieval (hábitos, costumes, diversões), este bordado histórico, dotado de apreciável sentido crítico e de humor, consta do inventário de 1476 da pequena cidade normanda de Bayeux. Nos primeiros séculos, deve, portanto, ter estado exibido na sua sumptuosa catedral, enfeitando as paredes verticais, preso de coluna em coluna. É geralmente admitido que a tapeçaria terá sido feita por encomenda e sob os auspícios do bispo Odão de Bayeux, irmão de Guilherme e participante direto na batalha, decerto sob instigação do duque e para legitimar a causa normanda e glorificar a coragem, o heroísmo e o sentido de justiça do seu líder. Claro que não se tratava apenas de decorar uma igreja, mas também de contar uma história gloriosa (para os Normandos) aos muitos analfabetos que a visitavam; como observou Paula Dias, o Concílio de Arras, reunido em 1025, voltou a permitir e recomendou mesmo o uso das artes visuais nas igrejas, com o objetivo de educar os fiéis, em especial os iletrados. Neste caso, trata-se também de uma história com moral, pois, como veremos, os Normandos acreditavam que, ao ser coroado rei de Inglaterra, Haroldo II cometera perjúrio, recebendo depois, na batalha de Hastings, o castigo adequado… Em 1792, em plena Revolução Francesa, a tapeçaria foi salva in extremis da destruição, quando alguns burgueses de Bayeux, que queriam lutar pela República, se preparavam para a utilizar como toldo de um carro que ia partir para Paris! Em 1803, suscitou o interesse de Napoleão (que queria conquistar a Inglaterra) e, em 1818, foi copiada para a Sociedade dos Antiquários de Londres, altura em que Charles Stothard a estudou com extrema minúcia (fios desaparecidos, marcas de agulha, por exemplo), o que seria precioso para o seu futuro restauro. Em 1870-71, quando o exército da Prússia ameaçava a Normandia, a valiosa tapeçaria foi escondida num reservatório de zinco e, nos inícios da Segunda Guerra Mundial, foi colocada num abrigo seguro, embora os Alemães tenham feito questão de a conhecer. Em junho de 1944, no “Dia D”, seria transferida à pressa para as caves do Louvre, em Paris, por causa do desembarque das tropas aliadas na Normandia, que teve lugar em Arromanches, escassos 10 km a norte de Bayeux. A tapeçaria foi depois exposta na capital francesa, regressando mais tarde à terra de origem, ao antigo palácio episcopal e, desde 1983, a um lugar (o antigo seminário grande) que foi especialmente preparado para a acolher. Hoje, é a cidade de Bayeux que cuida da preservação da tapeçaria, que pode ser visitada no espaço museológico do Centre Guillaume le Conquérant." 4. Triunfos de Uma Geografia Activa, Desenvolvimento Local, Ambiente, Ordenamento e Tecnologia. Norberto Santos e Lúcio Cunha (Coord.). Série Documentos. IUC, 2012. Capa: Fotografia de Ilda Castro Valor da geração emergente nas artes visuais em Portugal, Ilda Teresa Castro vem construindo uma linguagem particular. Explora as dinâmicas de práticas artísticas distintas: o desenho, a banda desenhada, a fotografia, webdesign, o filme, o vídeo e o cinema. Ilda Castro é doutorada em Cinema e Televisão pela Universidade Nova de Lisboa, e dedica-se à investiga- ção nos domínios do Cinema e Pensamento Ecocritico, do Cinema e Filosofia, e do Cinema Português. [Para melhor conhecer Ilda Castro, consultar uma oportuna apresentação que Vitor Rua, compositor, com quem tem trabalhado nos últimos anos em “composições pictográficas”, teve o cuidado de nos contemplar (1)]. Recordemos que a difusão de valores no domínio das artes visuais vem sendo já uma prática operativa da IUC, com a edição de obras plásticas de diferentes criadores na coleção Ciências e Culturas, coordenação de João Rui Pita e Ana Leonor Pereira. Com já 18 livros publicados e com 16 artistas plásticos divulgados nesta coleção, inscrevem-se nesta galeria, autores de referência como: Rui Chafes, Albuquerque Mendes, Ernesto Melo e Castro, Sofia Areal, Pedro Falcão, Miguelangelo Veiga ou António Dantas, mas é fundamentalmente a publicação de novos valores, sensibilizando o leitor para um olhar sobre a performatividade emergente, o que aqui se pretende numa eleição sensível. Ilda Teresa inscreve-se também nesta, já distinta, população que a IUC tende a exaltar, trazendo para as capas dos seus livros motivos de escrita plástica oriunda destes novos e promissores autores. Se em “Triunfos de uma Geografia Activa”, o que mereceu edição de rosto foi o territorio da Fotografia na obra de Ilda Castro, são contudo muitos, como antes referimos, os domínios de ação desta invulgar criadora. Atenção especial merecem ainda os seus objetos cinematográficos, mormente os que, numa soberba leitura, afirmam, iconicamente, um nobre referencial da música minimal, que são os “TELECTU” de Jorge Lima Barreto e Vitor Rua [Ver: “White Poem in a Black Wall”, Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, #33, nov. 2011]. Entregue-se ao desafio de observar o rosto de um livro. Ele pode levá-lo a novos objetos de contemplação. António Barros Diretor de Imagem Imprensa da Universidade de Coimbra. (1) A surpresa linear na obra poli-artística de Ilsa D´Orzac. Se a surpresa é um produto do pensamento linear, então o trabalho poli-artístico de Ilda Castro, alias, Ilsa D´Orzac, é definitivamente não linear. Numa análise à sua obra e vida (Arte é Vida & Vida é Arte), bem cedo se torna aparente que nelas, não existe uma necessidade primordial de visibilidade mediática. Quando essa idiossincrasia se torna evidente, necessitamos então de descobrir novas maneiras de visionar o seu espólio poli-artístico. O facto de Ilsa D´Orzac retirar à obra o comportamento mediático ritualista que caracteriza o trabalho dos seus potenciais colegas, vem alterar decisivamente a maneira “descontínua” de analisar a sua obra – o estilo zapping com que nos bombardeia com obras tão díspares e de variegados média, é paradigmático. Não é necessário estarmos horas consecutivas a ouvir um rouxinol a cantar para nos encantarmos com a beleza do seu canto: um chilrear isolado é suficiente; uns segundos a escutar o som das cigarras basta para nos deleitarmos com tão requintada textura; alguns instantes ouvindo as ondas do mar é relaxante. A obra de D´Orzac é edificada de uma forma – onde cada trabalho é auto-suficiente e independente dos outros. Imaginemos uma obra que não tenha início – apenas comece – e não tenha fim – somente pare; sem clímax ou qualquer intenção de atingir um fim; uma obra que não crie expectativas, sem mediatismos ou publicidades; sem show off ou necessidade de promoção; uma obra onde os eventos artísticos existam por eles mesmos em vez de participarem em qualquer mercado cultural ou em qualquer desejo de popularismo. O objectivo é assim o de, a um “módulo artístico” acrescentarmos um outro, depois outro e ainda outro e por aí progressivamente, sem qualquer relação aparente entre eles, excepto o puro encanto de construir coisas belas. Ilda Castro nasceu numa pequena aldeia no centro de Portugal e bem cedo tomou contacto com a pintura, pois a sua mãe fazia da pintura um hobbie. Aos 15 anos toma a corajosa ideia de viver só e parte para Coimbra para estudar Arte. Mais tarde já em Lisboa, tira o curso de cinema, publica como ilustradora em diversas publicações, vai pintando, e enquanto programadora de cinema e vídeo escreve três livros sobre cinema português: um sobre curtas-metragens; outro sobre realizadoras; e outro sobre filmes de animação. Tudo isto, sozinha, sem alaridos mediáticos, e por vezes, deixando até que outros oportunamente se aproveitem do seu trabalho ciclópico, para nele meterem a sua “marca”, através de uma simbólica e insignificante assinatura prefacial ou do “roubo” de créditos e do mérito. Na sua obra de BD, love letter, a ordem dos eventos pode ser definida pelo público, uma open form. Se os eventos visuais numa determinada pintura ou desenho se “colam” aos outros numa ordem em particular, então, é porque essa ordem teria obviamente de influenciar ou mesmo constituir o sentido da própria obra: abstrações visuais, movendo-se, criando tempo – tornando visível o tempo! O “tempo” nesta obra, é um “tempo virtual”; por contraste, a sequência dos actuais e concretos visionamentos por parte do público que admira a obra, é um tempo absoluto. Assim o “tempo”, torna-se no componente essencial para a compreensão da peça e o veículo pelo qual esse desenho faz um contacto profundo com o espírito humano. Por conseguinte, os eventos visuais que formam essa obra, tornam-se num fluxo e não o “tempo”, e o desenho transforma-se num encadeado de eventos que contêm em si não só o “tempo” como o “modelam” lentamente. Esta obra pode ser entendida como uma sucessão de “momentos” sem direcção ou movimento definidos. Mas será realmente que podemos falar de “movimento” nesta obra de Ilsa D´Orzac? Não será isso apenas uma metáfora? A única coisa que realmente se “move”, são os nossos olhos, tentando recriar a sequência que intuitivamente pretendemos optar. Aos seis anos realiza aquela que é a sua obra mais antiga ainda existente usando como matérias serapilheira, argila e fios de lã. Esta obra invoca já a Mãe Terra, a Natureza e todos os seres: um grande círculo ao centro (Sol? Lua? Terra?); uma série de traços paralelos (fios de lã) com bolas de argila nas pontas de forma a ficarem esticadas pelo peso (Árvores? Chuva? Humanos?); e cromaticamente usa o azul (Céu? Mar?) e o vermelho (Sangue? Morango? Vinho?). Nunca mais deixa de pintar, mas no entanto nunca expõe o seu trabalho. Até que em 2010 cria uma série de quadros usando uma invulgar técnica mista e realiza uma exposição multimédia mental noise. Em mental noise é visível o negro rasgado por traços vigorosos mecanizados e pede do espectador uma “visão criativa”, numa procura minuciosa de mínimas e subliminais alterações geométricas. Sendo um trabalho de duas dimensões, é-nos dada a ilusão de estarmos na presença de algo com volume. Pode-se afirmar que mental noise é uma obra que não pretende “comunicar”, mas sim tornar-se “perceptível” numa experiência visual diferente. A característica atemporal que podemos encontrar em mental noise, deve-se essencialmente à inclusão de longas reverberações de negro que contrastam com curtos riscos stacatos, que vão criando a sensação de descontinuidade, obliterando os eventos visuais precedentes. A textura em mental noise é o resultado da interacção das diversas camadas, das subtis mudanças cromáticas, do ritmo e da técnica original utilizada. Em mental noise não encontramos nem passado nem futuro – só presente. Na ópera uma vaca Flatterzungue os figurinos e joalharia por ela criados têm uma dupla função: a óbvia, de criar uma indumentária para os cantores e maestro e outra menos óbvia – mas de uma extrema imaginação e originalidade inventiva – a de criar uma “cenografia mobile”, ou seja, uma cenografia em movimento no espaço cénico. Realizou inúmeras bandas desenhadas com um traço idiossincrático, imaginação fértil e um humor requintado. Uma delas post scriptum é editada pela própria, numa edição de autor de exemplares limitados, continuidade agora em livro, da série de fanzines em papel higiénico da sua colecção não fazer nada é que é bom. Nos últimos seis anos – em colaboração com o compositor Vítor Rua – com ele participa em inúmeras composições pictográficas, adicionando desenhos a indicações textuais musicais do compositor. Realizou vários filmes em vídeo (abordando várias temáticas: da ecologia à maior das abstracções imagéticas), mas não sente necessidade de expor e divulgar esse trabalho. Ou talvez dito de outra forma: Ilsa não sente vontade de participar no mundo burocrático dos concursos ou atribuições de subsídios, das concorrências e competições, dos “dedinhos no ar” e por isso espera calmamente – tendo absoluta consciência de que a sua Arte não passa de moda com o tempo. Ilsa D´Orzac é uma pérola por abrir e que se urge redescobrir em nome da Arte. Vitor Rua, abril, 2012

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Capas de livros insinuam-se. Um convite a quatro visitas.As capas zelam, aqui na Imprensa da Universidade de Coimbra, muitas das vezes, por divulgar ainda outros saberes além daqueles que as matérias expostas no corpo do livro convocam. Um exercício dinâmico onde a descoberta e a difusão de autores, e mesmo de valores artísticos, ganham forma. Todo um tempo onde o gesto, mais que ilustrativo, se pretende cirurgicamente galvanizador, pois criar uma capa não se reduz, em nós, a um ato meramente cosmético: procura, sim, atribuir uma função interventiva ao próprio rosto do livro.

É esta uma prática experienciada na Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC), e já antes enunciada [ver: “Uma Galeria no Planeta Book Covers”, Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, #30, out. 2010], atitude salutarmente continuada ganhando progressivamente, e em momentos atuais, novas sinergias. A resultar como exemplo revelam-se, entre as dezenas de livros ultimamente aqui publicados, quatro capas na condição semântica de um dizer potenciado. Um dizer que traga novas valências, a par da enunciação de conteúdos que o rosto da publicação já em si veicula.

1. Estudos de Linguística, Volume I. Coordenação de Ana R. Luís. Série Investigação. IUC, 2012.Capa: Vitrais de João Vieira (1934-2009), Igreja de São Domingos, Sé Catedral de Vila Real, 2002-03.

Como forma de exaltar a nossa lusa autoestima, a Universidade de Coimbra elegeu, para enunciar a imagem distintiva do Ciclo de Conferências de Estudos Europeus (agora com a sua primeira edição, mas prometendo apresentação anual continuada), um criador português, figura e obra que são orgulho nacional: o pintor João Vieira.

Sendo uma das personalidades geradoras dos momentos mais significativos das artes plásticas portuguesas, com dimensão e reconhecimento internacionais, nas últimas décadas, João Vieira, com a sua pintura simbólico-performativa, empresta à sociedade de hoje uma força anímica ímpar. Um gesto de excelência que convoca uma reflexão vital sobre o cumprimento da presença de Portugal na União Europeia. E, com ele, solta-se um elogio vertical dos valores nacionais.João Vieira, sempre visionário desde os tempos do Café Gelo, conjugando os desígnios de artistas e escritores como Helder Macedo e Herberto Helder, soube estar com singular elevação e arte na Europa a partir de 1957, quando partiu do país, “expatriando-se”, à procura de novas expressões plásticas.Aí destacou-se como elemento fundamental do grupo fundador da revista KWY (Paris, 1958-1964), coletivo internacional que integrou nomes maiores da história da Arte, na Europa e no mundo, como Javachef Christo, Jan Voss, José Escada, Lourdes Castro e René Bertho-lo, entre muitos outros.Investigador consequente, vem a construir uma linguagem própria baseada na escrita (envolvente do alfabeto). Chega mesmo a explorar a pintura até aos seus limites, conjugando aí a nevralgia do texto, sem esquecer as performatividades do corpo, e mesmo uma vital inscrição nos desígnios do happening.

Revisitando as palavras que me forneceu o, também pintor, Manuel João Vieira, filho do artista, colhemos uma premissa da sua exímia identidade: “O meu pai viveu muito tempo em Paris e Londres, fez parte de um grupo internacional – Europeu de Arte, os KWY, ia regularmente e fez um certo número de exposições em Espanha, participou em inúmeras exposições e conferências na Europa, ultimamente em Berlim, enfim, podia fazer um levantamento de tudo isso, mas, em última análise diria, como ele dizia, que o artista verdadeiramente europeu ou internacional é aquele que respeita e explora as suas raízes nacionais”.Exemplo fundamental deste princípio ét(n)ico e identitário, advogado por João Vieira, é a sua obra plena com os vitrais da Sé Catedral de Vila Real, intervenção edificada em 2003, em resposta a um convite do Instituto Português do Património Arquitectónico.Nesta revisitação à arte de sensibilidade “letrista” de João Vieira, que a Universidade de Coimbra traz a honra de sublinhar, inscreve-se também a edição (para capa do livro coordenado por Ana R. Luís) de um dos vitrais da Igreja de São Domingos - catedral agora singularmente valorizada, e que não dispensa uma visita. Em Vila Real uma paragem para colher este cenário onírico é obrigatória. Uma portentosa festa para os olhos.Quem não tem alma, ganha-a neste caleidoscópico berço. Lugar de iniciação até, pois como sublinha Umberto Eco, citando Suger, “as catedrais deviam tornar-se livros de pedra”.

Mas os méritos não se esgotam por aqui. Uma das aprendizagens a colher, e que bem faz orgulhar a cultura lusa, é a prova de civilização que aqui reside – a salutar e sinergizante coabitação de linguagens, tempos e culturas artísticas com que esta ousada operação (também pedagógica) nos contempla. Todo um exemplo a seguir, e continuar, numa exaltação constante de um elevado diálogo dos tempos e formas do dizer.

2. A Vida nas Escolas. Casos para a Formação de Professores. La Práctica Cotidiana en los Colegios. Coordenação de Ana Rodríguez Marcos e Teresa Pessoa. IUC, 2012.Capa: Matadero Madrid – Centro de Creación Contemporánea, bid_07 – 1 Bienal Iberoamericana de Diseño, 2007.

O primeiro contacto com a imagética que o rosto deste livro nos expõe pode parecer estranho, tratando-se de um livro do lugar escola. Mas é precisamente esse, o primeiro gesto que o ato propõe: o espanto.Dizia-me um dia o escritor Alberto Pimenta (sempre a procurar pedagogia nas suas substanciadas conversas), que “a função da Ciência é anular o espanto, a da Arte provocar o espanto”.Sinergizante, esta capa transporta-nos para um inédito lugar escola: o Matadero Madrid – Centro de Creación Contemporánea, e, o que aqui se infere, é fazer dialogar o lugar com uma comunidade específica – o mundo investigador circulante nas novas pedagogias de uma geografia ibérica.

O Matadero Madrid surge no antigo Matadouro e Mercado do Gado de Arganzuela, construído entre 1908 e 1928 por encomenda do Ayuntamiento de Madrid, projeto do arquiteto Luis Bellido.Na origem, com cerca de 165m², a estrutura ganhou progressivamente novas edificações, e em 80, o arquiteto Rafael Fernández-Rañada transformou a Casa del Reloj na sede da Junta e em espaços de indole sóciocultural.Nos anos 90 o arquiteto Antonio Fernández Alba, a partir dos antigos estábulos, criou a sede do Ballet Nacional de Espanha e da Companhia Nacional de Dança.Original foi também a reabilitação, pelo arquiteto Arturo Franco, do vestíbulo (Paseo de la Chopera, 14) em Espaço Intermedia, em 2007, onde o ferro e o vidro são os materiais protagonistas.O trabalho conjugado do diretor de Teatro Mario Gas, com o cenógrafo Jean Guy Lecat (que trabalhou com Peter Brook) fez surgir, a partir de lugares abandonados, insólitos espaços cénicos.A Central de Diseño, projeto de José António Garcia Roldán, mantém a força da decomposição construtiva dos elementos, incorporando materiais reciclados. Mas outros novos programas estão em curso neste crescendo constante, num espaço singular que se afirma como um símbolo cultural da cidade.O Matadero Madrid, com uma missão que se enuncia pela criação em todas as formas e expressões, define-se em três eixos de atuação: formação, produção e difusão. Aposta numa dimensão integral e multidisciplinar da cultura, aspirando converter-se num laboratório único para a experimentação, e construção de novas fórmulas transdisciplinares.As artes cénicas, visuais, o design, a música, a dança, a arquitetura, o urbanismo, o paisagismo, a moda, a literatura, o pensamento e o cinema definem as áreas de atividade já em curso do Matadero Madrid.

Formulada esta apresentação, observamos que a imagem do espaço cénico, colhida num dos territórios do Matadero Madrid, e que a capa do livro expõe, resulta de uma estrutural “instalação” plástica (vestibular em “Utopías” de Santiago Cirugeda, Natalie Bookchin e Llorenç Bonet), suporte exploratório que é também um versátil lugar oficinal. Aí surgiam aulas de Desenho de alunos de Arquitetura e Design.O registo foi produzido na bid _ 07 – 1 Bienal Iberoamericana de Diseño, 2007 (onde estive presente como observador convidado).Edição bilingue (português/espanhol), com co-coordenação de Ana Rodríguez Marcos, Professora na Universidade Autónoma de Madrid, teve o livro distribuição em Espanha, e inscreve no seu conteúdo, além das ações dos autores lusos, experiências de campo e estudos de autores castelhanos. Também por isto, a IUC referencia (com imagem de capa nesta publicação) uma operação pedagógica por nós registada na cidade de Madrid.

3. Grandes Conflitos da História da Europa. De Alexandre Magno a Guilherme “o Conquistador”. João Gouveia Monteiro. Série Investigação. IUC, 2012.Capa: “Tapeçaria de Bayeux”, 1077. Espaço Museológico do Centre Guillaume le Conquérant, cidade de Bayeux.

Esta “Tapeçaria de Bayeux”, por muitos considerada a mais antiga banda desenhada do mundo, transporta uma história invulgar. E ninguém melhor que o autor do livro que num dos seus momentos a narra, João Gouveia Monteiro, para nos contemplar com algumas preciosas passagens desta sua obra. Ela aborda este objeto misterioso – tapeçaria que é hoje um dos mais vultuosos tesouros visitáveis de Bayeux. Um bordado histórico que é considerado a melhor fonte iconográfica europeia de toda a Idade Média.

"Falamos da Tapeçaria de Bayeux, na realidade um bordado histórico que deve ter sido fabricado com vista à cerimónia de dedicação da catedral de Bayeux (na Normandia, perto de Caen), que teve lugar em 1077. Consiste em oito peças cosidas umas às outras, formando um conjunto com cerca de 50 centímetros de altura e com mais de 70 metros de comprimento! A tela de suporte é de linho branco e o bordado foi feito com fios de lã de diversas cores ou tons diferentes: as cinco cores principais são o vermelho-tijolo, o verde-azulado, o verde-claro, o castanho-amarelado e o azul-acinzentado; como cores subsidiárias, utilizou-se o verde-sálvia, o amarelo e um azul muito escuro (quase preto). No entanto, não podemos ter a certeza absoluta de que estas fossem as cores originais, embora elas sejam notavelmente vivas e o desenho permaneça muito nítido, também devido ao facto de a peça ter sido bem restaurada e valorizada. Um artista desenhou as cenas e, depois, os artesãos executaram o bordado utilizando ponto pé de flor (para os contornos e as letras) e ponto cheio (entre nós também conhecido por “ponto de Castelo Branco”) para o resto. Para a maioria dos fundos ou para a representação da cor da pele das personagens, por exemplo, optou-se por manter a cor natural da tela (o linho branco). A Tapeçaria de Bayeux, um trabalho que se enquadra num conjunto de obras do mesmo tipo datáveis da segunda metade do séc. XI, deve ter sido fabricada em Inglaterra, possivelmente em Canterbury (Cantuária, no extremo sudeste), onde existia uma grande escola de bordado decorativo cujas peças apresentam um estilo e uma técnica semelhantes. Além disso, diversos motivos exibidos na tapeçaria, em especial nos seus frisos superior e inferior, inspiram-se claramente em manuscritos anglo-saxónicos dos sécs. X e XI, muitos dos quais pertenciam à rica coleção da catedral de Canterbury. A vida e o movimento da peça são próprios da tradição anglo-saxónica, e também há nomes com uma grafia não francesa inscritos na legenda em latim que acompanha a descrição da campanha de Guilherme em Inglaterra. Pensa-se que a peça pode ter sido desenhada por um só autor, dada a sua extraordinária unidade, provavelmente um homem, devido ao realismo das cenas de batalha e dos equipamentos militares representados. Nesta peça fabulosa, podemos apreciar cerca de 50 cenas, relativas não só a combates mas também a caçadas, a construção naval, a navegação no alto-mar, a culinária, a cerimónias religiosas, a construção de castelos, entre outras. Os pormenores incluem, por exemplo, armas, arreios de cavalos, vestuário e relicários. São representadas 623 personagens, 202 cavalos, 55 cães, 505 outros animais (ursos, lobos, raposas, pássaros e animais fabulosos, por vezes em breves ilustrações de fábulas célebres, como a do corvo e da raposa, de Esopo), 37 edifícios, 41 navios e barcos e 49 árvores. Há ainda perto de 2000 letras (elegantíssimas, com perto de 2,5 cm de altura), as quais compõem legendas em latim, que acompanham e enriquecem toda a narrativa visual. Estas legendas foram minuciosamente estudadas por Paula Dias, que destacou, entre outros aspetos interessantes, a sua interação com as imagens, a sua simplicidade, as flutuações na ortografia e as dificuldades sentidas pelo autor na adaptação da fonética germânica dos nomes bárbaros à fonética romana. A narrativa da Tapeçaria de Bayeux principia em 1064 e prolonga-se até ao termo da batalha de Hastings, mas o bordado, infelizmente, está incompleto e termina bruscamente: estima-se que faltem dois ou três metros, que talvez representassem a coroação de Guilherme em Londres, tal como parece poder deduzir-se de versos de Baudry de Bourgueil (bispo de Dol-en-Bretagne entre 1107 e 1130, poeta e historiador latino e autor de um poema dedicado a Adélia da Normandia, uma das filhas de Guilherme “o Conquistador”). A tapeçaria comporta um corpo principal, ao centro, completado por dois pequenos frisos (superior e inferior) com motivos diversos e, por vezes, bastante enigmáticos. As cenas são separadas por árvores estilizadas ou por letras, e o artista recorre a diversos efeitos plásticos e a outros truques para compensar a ausência de perspetiva. Documento excecional para ilustrar o quotidiano do mundo medieval (hábitos, costumes, diversões), este bordado histórico, dotado de apreciável sentido crítico e de humor, consta do inventário de 1476 da pequena cidade normanda de Bayeux. Nos primeiros séculos, deve, portanto, ter estado exibido na sua sumptuosa catedral, enfeitando as paredes verticais, preso de coluna em coluna. É geralmente admitido que a tapeçaria terá sido feita por encomenda e sob os auspícios do bispo Odão de Bayeux, irmão de Guilherme e participante direto na batalha, decerto sob instigação do duque e para legitimar a causa normanda e glorificar a coragem, o heroísmo e o sentido de justiça do seu líder. Claro que não se tratava apenas de decorar uma igreja, mas também de contar uma história gloriosa (para os Normandos) aos muitos analfabetos que a visitavam; como observou Paula Dias, o Concílio de Arras, reunido em 1025, voltou a permitir e recomendou mesmo o uso das artes visuais nas igrejas, com o objetivo de educar os fiéis, em especial os iletrados. Neste caso, trata-se também de uma história com moral, pois, como veremos, os Normandos acreditavam que, ao ser coroado rei de Inglaterra, Haroldo II cometera perjúrio, recebendo depois, na batalha de Hastings, o castigo adequado… Em 1792, em plena Revolução Francesa, a tapeçaria foi salva in extremis da destruição, quando alguns burgueses de Bayeux, que queriam lutar pela República, se preparavam para a utilizar como toldo de um carro que ia partir para Paris! Em 1803, suscitou o interesse de Napoleão (que queria conquistar a Inglaterra) e, em 1818, foi copiada para a Sociedade dos Antiquários de Londres, altura em que Charles Stothard a estudou com extrema minúcia (fios desaparecidos, marcas de agulha, por exemplo), o que seria precioso para o seu futuro restauro. Em 1870-71, quando o exército da Prússia ameaçava a Normandia, a valiosa tapeçaria foi escondida num reservatório de zinco e, nos inícios da Segunda Guerra Mundial, foi colocada num abrigo seguro, embora os Alemães tenham feito questão de a conhecer. Em junho de 1944, no “Dia D”, seria transferida à pressa para as caves do Louvre, em Paris, por causa do desembarque das tropas aliadas na Normandia, que teve lugar em Arromanches, escassos 10 km a norte de Bayeux. A tapeçaria foi depois exposta na capital francesa, regressando mais tarde à terra de origem, ao antigo palácio episcopal e, desde 1983, a um lugar (o antigo seminário grande) que foi especialmente preparado para a acolher. Hoje, é a cidade de Bayeux que cuida da preservação da tapeçaria, que pode ser visitada no espaço museológico do Centre Guillaume le Conquérant."

4. Triunfos de Uma Geografia Activa, Desenvolvimento Local, Ambiente, Ordenamento e Tecnologia. Norberto Santos e Lúcio Cunha (Coord.). Série Documentos. IUC, 2012.Capa: Fotografia de Ilda Castro

Valor da geração emergente nas artes visuais em Portugal, Ilda Teresa Castro vem construindo uma linguagem particular. Explora as dinâmicas de práticas artísticas distintas: o desenho, a banda desenhada, a fotografia, webdesign, o filme, o vídeo e o cinema.Ilda Castro é doutorada em Cinema e Televisão pela Universidade Nova de Lisboa, e dedica-se à investiga-ção nos domínios do Cinema e Pensamento Ecocritico, do Cinema e Filosofia, e do Cinema Português.[Para melhor conhecer Ilda Castro, consultar uma oportuna apresentação que Vitor Rua, compositor, com quem tem trabalhado nos últimos anos em “composições pictográficas”, teve o cuidado de nos contemplar (1)].

Recordemos que a difusão de valores no domínio das artes visuais vem sendo já uma prática operativa da IUC, com a edição de obras plásticas de diferentes criadores na coleção Ciências e Culturas, coordenação de João Rui Pita e Ana Leonor Pereira.Com já 18 livros publicados e com 16 artistas plásticos divulgados nesta coleção, inscrevem-se nesta galeria, autores de referência como: Rui Chafes, Albuquerque Mendes, Ernesto Melo e Castro, Sofia Areal, Pedro Falcão, Miguelangelo Veiga ou António Dantas, mas é fundamentalmente a publicação de novos valores, sensibilizando o leitor para um olhar sobre a performatividade emergente, o que aqui se pretende numa eleição sensível.Ilda Teresa inscreve-se também nesta, já distinta, população que a IUC tende a exaltar, trazendo para as capas dos seus livros motivos de escrita plástica oriunda destes novos e promissores autores.

Se em “Triunfos de uma Geografia Activa”, o que mereceu edição de rosto foi o territorio da Fotografia na obra de Ilda Castro, são contudo muitos, como antes referimos, os domínios de ação desta invulgar criadora.Atenção especial merecem ainda os seus objetos cinematográficos, mormente os que, numa soberba leitura, afirmam, iconicamente, um nobre referencial da música minimal, que são os “TELECTU” de Jorge Lima Barreto e Vitor Rua [Ver: “White Poem in a Black Wall”, Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra, #33, nov. 2011].

Entregue-se ao desafio de observar o rosto de um livro. Ele pode levá-lo a novos objetos de contemplação.

António BarrosDiretor de ImagemImprensa da Universidade de Coimbra.

(1) A surpresa linear na obra poli-artística de Ilsa D´Orzac.Se a surpresa é um produto do pensamento linear, então o trabalho poli-artístico de Ilda Castro, alias, Ilsa D´Orzac, é definitivamente não linear.Numa análise à sua obra e vida (Arte é Vida & Vida é Arte), bem cedo se torna aparente que nelas, não existe uma necessidade primordial de visibilidade mediática. Quando essa idiossincrasia se torna evidente, necessitamos então de descobrir novas maneiras de visionar o seu espólio poli-artístico. O facto de Ilsa D´Orzac retirar à obra o comportamento mediático ritualista que caracteriza o trabalho dos seus potenciais colegas, vem alterar decisivamente a maneira “descontínua” de analisar a sua obra – o estilo zapping com que nos bombardeia com obras tão díspares e de variegados média, é paradigmático.Não é necessário estarmos horas consecutivas a ouvir um rouxinol a cantar para nos encantarmos com a beleza do seu canto: um chilrear isolado é suficiente; uns segundos a escutar o som das cigarras basta para nos deleitarmos com tão requintada textura; alguns instantes ouvindo as ondas do mar é relaxante. A obra de D´Orzac é edificada de uma forma – onde cada trabalho é auto-suficiente e independente dos outros. Imaginemos uma obra que não tenha início – apenas comece – e não tenha fim – somente pare; sem clímax ou qualquer intenção de atingir um fim; uma obra que não crie expectativas, sem mediatismos ou publicidades; sem show off ou necessidade de promoção; uma obra onde os eventos artísticos existam por eles mesmos em vez de participarem em qualquer mercado cultural ou em qualquer desejo de popularismo. O objectivo é assim o de, a um “módulo artístico” acrescentarmos um outro, depois outro e ainda outro e por aí progressivamente, sem qualquer relação aparente entre eles, excepto o puro encanto de construir coisas belas.

Ilda Castro nasceu numa pequena aldeia no centro de Portugal e bem cedo tomou contacto com a pintura, pois a sua mãe fazia da pintura um hobbie. Aos 15 anos toma a corajosa ideia de viver só e parte para Coimbra para estudar Arte. Mais tarde já em Lisboa, tira o curso de cinema, publica como ilustradora em diversas publicações, vai pintando, e enquanto programadora de cinema e vídeo escreve três livros sobre cinema português: um sobre curtas-metragens; outro sobre realizadoras; e outro sobre filmes de animação. Tudo isto, sozinha, sem alaridos mediáticos, e por vezes, deixando até que outros oportunamente se aproveitem do seu trabalho ciclópico, para nele meterem a sua “marca”, através de uma simbólica e insignificante assinatura prefacial ou do “roubo” de créditos e do mérito.Na sua obra de BD, love letter, a ordem dos eventos pode ser definida pelo público, uma open form. Se os eventos visuais numa determinada pintura ou desenho se “colam” aos outros numa ordem em particular, então, é porque essa ordem teria obviamente de influenciar ou mesmo constituir o sentido da própria obra: abstrações visuais, movendo-se, criando tempo – tornando visível o tempo! O “tempo” nesta obra, é um “tempo virtual”; por contraste, a sequência dos actuais e concretos visionamentos por parte do público que admira a obra, é um tempo absoluto. Assim o “tempo”, torna-se no componente essencial para a compreensão da peça e o veículo pelo qual esse desenho faz um contacto profundo com o espírito humano. Por conseguinte, os eventos visuais que formam essa obra, tornam-se num fluxo e não o “tempo”, e o desenho transforma-se num encadeado de eventos que contêm em si não só o “tempo” como o “modelam” lentamente. Esta obra pode ser entendida como uma sucessão de “momentos” sem direcção ou movimento definidos. Mas será realmente que podemos falar de “movimento” nesta obra de Ilsa D´Orzac? Não será isso apenas uma metáfora? A única coisa que realmente se “move”, são os nossos olhos, tentando recriar a sequência que intuitivamente pretendemos optar.Aos seis anos realiza aquela que é a sua obra mais antiga ainda existente usando como matérias serapilheira, argila e fios de lã. Esta obra invoca já a Mãe Terra, a Natureza e todos os seres: um grande círculo ao centro (Sol? Lua? Terra?); uma série de traços paralelos (fios de lã) com bolas de argila nas pontas de forma a ficarem esticadas pelo peso (Árvores? Chuva? Humanos?); e cromaticamente usa o azul (Céu? Mar?) e o vermelho (Sangue? Morango? Vinho?). Nunca mais deixa de pintar, mas no entanto nunca expõe o seu trabalho. Até que em 2010 cria uma série de quadros usando uma invulgar técnica mista e realiza uma exposição multimédia mental noise.Em mental noise é visível o negro rasgado por traços vigorosos mecanizados e pede do espectador uma “visão criativa”, numa procura minuciosa de mínimas e subliminais alterações geométricas. Sendo um trabalho de duas dimensões, é-nos dada a ilusão de estarmos na presença de algo com volume. Pode-se afirmar que mental noise é uma obra que não pretende “comunicar”, mas sim tornar-se “perceptível” numa experiência visual diferente. A característica atemporal que podemos encontrar em mental noise, deve-se essencialmente à inclusão de longas reverberações de negro que contrastam com curtos riscos stacatos, que vão criando a sensação de descontinuidade, obliterando os eventos visuais precedentes. A textura em mental noise é o resultado da interacção das diversas camadas, das subtis mudanças cromáticas, do ritmo e da técnica original utilizada. Em mental noise não encontramos nem passado nem futuro – só presente.Na ópera uma vaca Flatterzungue os figurinos e joalharia por ela criados têm uma dupla função: a óbvia, de criar uma indumentária para os cantores e maestro e outra menos óbvia – mas de uma extrema imaginação e originalidade inventiva – a de criar uma “cenografia mobile”, ou seja, uma cenografia em movimento no espaço cénico.Realizou inúmeras bandas desenhadas com um traço idiossincrático, imaginação fértil e um humor requintado. Uma delas post scriptum é editada pela própria, numa edição de autor de exemplares limitados, continuidade agora em livro, da série de fanzines em papel higiénico da sua colecção não fazer nada é que é bom.Nos últimos seis anos – em colaboração com o compositor Vítor Rua – com ele participa em inúmeras composições pictográficas, adicionando desenhos a indicações textuais musicais do compositor.Realizou vários filmes em vídeo (abordando várias temáticas: da ecologia à maior das abstracções imagéticas), mas não sente necessidade de expor e divulgar esse trabalho. Ou talvez dito de outra forma: Ilsa não sente vontade de participar no mundo burocrático dos concursos ou atribuições de subsídios, das concorrências e competições, dos “dedinhos no ar” e por isso espera calmamente – tendo absoluta consciência de que a sua Arte não passa de moda com o tempo.Ilsa D´Orzac é uma pérola por abrir e que se urge redescobrir em nome da Arte.

Vitor Rua, abril, 2012