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[ 46 ] painel capa H istórias de crianças e adolescentes atuando irregularmente em diversos setores do mercado e falta de fiscalização nos postos de trabalho são situações comuns no Brasil. Em Piracicaba, o cenário não é diferente. Resultado desse descaso, no último dia 17 de outubro, após uma denúncia do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Piracicaba, a procuradoria do Ministério Público do Trabalho (MPT) visitou, na companhia do órgão municipal, uma olaria no bairro Campestre, em Piracicaba, e flagrou exploração de trabalho infantil e condições precárias de trabalho. A reportagem da Painel acompanhou a ação. Na abordagem, três adolescentes, com idade entre 15 e 16 anos, faziam trabalho braçal pesado com jornada LUCAS JACINTO [email protected] de nove horas por dia na área interna do barracão, abafado, manuseando máquinas e baldeando tijolos. Além dos menores, a abordagem encontrou na empresa máquinas que não possuíam grades, tampouco guarda-corpos adequados, o único equipamento de segurança que os funcionários usavam eram botas e calça. Osvaldo Airton Schiavolin, proprietário da olaria inspecionada, e presidente da Associação de Empresas e Empresários de Olarias e Cerâmicas Vermelhas de Piracicaba e Região (Asocerv), afirma que os meninos trabalhavam com consentimento da família. “Os pais me procuram para dar emprego a eles. Não fosse isso, eles estariam nas ruas”, comenta. Entretanto, a gravidade do problema é notável por conta do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que proíbe o trabalho de Reportagem da Painel flagra três menores em trabalho braçal pesado; mercado ainda se beneficia de mão de obra irregular TRABALHO INFANTIL Olaria explora em Piracicaba

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[ 46 ] painel

capa

H istórias de crianças e adolescentes atuando

irregularmente em diversos setores do mercado e falta de fiscalização nos postos de trabalho são situações comuns no Brasil. Em Piracicaba, o cenário não é diferente. Resultado desse descaso, no último dia 17 de outubro, após uma denúncia do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Piracicaba, a procuradoria do Ministério Público do Trabalho (MPT) visitou, na companhia do órgão municipal, uma olaria no bairro Campestre, em Piracicaba, e flagrou exploração de trabalho infantil e condições precárias de trabalho. A reportagem da Painel acompanhou a ação.

Na abordagem, três adolescentes, com idade entre 15 e 16 anos, faziam trabalho braçal pesado com jornada

LUCAS [email protected]

de nove horas por dia na área interna do barracão, abafado, manuseando máquinas e baldeando tijolos. Além dos menores, a abordagem encontrou na empresa máquinas que não possuíam grades, tampouco guarda-corpos adequados, o único equipamento de segurança que os funcionários usavam eram botas e calça.

Osvaldo Airton Schiavolin, proprietário da olaria inspecionada, e presidente da Associação de Empresas e Empresários de Olarias e Cerâmicas Vermelhas de Piracicaba e Região (Asocerv), afirma que os meninos trabalhavam com consentimento da família. “Os pais me procuram para dar emprego a eles. Não fosse isso, eles estariam nas ruas”, comenta. Entretanto, a gravidade do problema é notável por conta do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que proíbe o trabalho de

Reportagem da Painel flagra três menores em trabalho braçal pesado; mercado ainda se beneficia

de mão de obra irregular

TRABALHOINFANTIL

Olaria explora

em Piracicaba

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Três garotos, com idade entre 15 e 16, foram flagrados trabalhando em uma olaria em Piracicaba

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máquinas quanto dos menores, foi elaborado. “A partir desse documento, será aberto um procedimento para acompanhar se a empresa vai realmente se regularizar, caso isso não aconteça, podemos tomar outras medidas, como multa e até lacração”, explica o procurador. A olaria não foi autuada, pois o proprietário colaborou com a fiscalização e se comprometeu a dar atenção ao caso.

Semanas antes, no dia 2 de outubro, a reportagem da Painel também flagrou um funcionário calçando chinelos enquanto trabalhava no forno de tijolos, além de máquinas sem proteções, em uma olaria que fica na região do Pau Queimado, também em Piracicaba.

FiscalizaçãoEvidentemente, como confirma Heloisa Marques Miotto Fontanelli, chefe de fiscalizações do MTE de

Piracicaba, a falta de infraestrutura nos órgãos fiscalizadores é a deixa para que problemas como esses sejam cotidianos. “Temos poucos funcionários operando no MTE. São cinco servidores públicos para atender 15 cidades”, aponta Fontanelli.

A encarregada explica que a dificuldade em identificar e relacionar dados correspondentes aos índices de trabalho infantil no município existe por conta dos baixos números de infrações que envolvem este problema. “Recebemos muitas denúncias, mas nem todas são verdadeiras. Além disso, em muitos dos casos, são crianças trabalhando para familiares ou sem vínculo empregatício, o que dificulta nosso rastreamento”.

Ainda segundo Fontanelli, proporcionalmente, Piracicaba não está entre as cidades com grande número de ocorrências de exploração de trabalho infantil. “Existem cidades menores com um número muito maior de crianças trabalhando de forma irregular”, explica.

Provavelmente, por esta maneira de tratar o assunto – trabalho infantil – e por poucos investimentos em quadro de servidores para fiscalizações, foi registrado em 2012, que o Brasil empregava 900 mil crianças de 5 a 14 anos, segundo dados do IBGE apresentados pela Rádio Câmara. A nota aponta ainda que, adolescentes de 15 a 17 anos somavam mais de 2,5 milhões, mas nem um em cada quatro estava com a carteira assinada, como estabelece a lei.

MultaEm São Paulo, a multa para a exploração do trabalho infantil vai de R$ 810 a R$ 4 mil, atingindo R$ 8,1 mil apenas em casos de reincidência com

menores de 18 anos em olarias, na área de fornos, ou com exposição à umidade excessiva.

Sobre a falta de segurança das máquinas, o empresário se defende dizendo que para quem vê de fora é mais fácil indicar o que é ou não perigoso. “Nós que estamos acostumados com o trabalho não visualizamos o perigo”, conclui. Os três adolescentes foram acolhidos pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (Semdes) e pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), e serão encaminhados para projetos de acompanhamento para que não mais trabalhem de forma irregular.

“Fazemos intervenções repentinas para acompanhar o que tem sido feito nas olarias. É um setor muito importante para a economia da cidade, porém, devemos sempre orientá-los e fiscalizá-los para que não haja mais esse tipo de problema”, explica Marcos Hister, técnico de segurança do trabalho do Cerest. Segundo Everson Rossi, procurador do MPT, um relatório que inclui todas as irregularidades da olaria, tanto das

Menores são proibidos de trabalhar na produção das olarias, devido à exposição ao calor e à baixa umidade

“Os pais me procuram para dar

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mais de cinco crianças ou adolescentes vitimados. Em âmbito nacional, a multa varia de R$ 724 a R$ 3.620, atingindo R$ 7.240 apenas no caso de reincidência com mais de cinco crianças ou adolescentes vitimados. Consideradas insuficientes para a erradicação do trabalho infantil, as multas administrativas para estes casos poderão aumentar, de acordo com projeto de lei que esta para ser votado desde janeiro de 2014 na Assembleia Legislativa de São Paulo, que prevê o pagamento de multas entre R$ 10 mil e R$ 40 mil por menor empregado irregularmente.

O começo de tudoOs flagrantes chamam a atenção porque apresentam um contraste ao projeto do poder público realizado há oito anos para evitar irregularidades como essas. Exclusivamente no caso das olarias em Piracicaba, o fato de

ainda haver exploração de trabalho infantil no setor é marcante. Isso porque, contrariando o que aponta Heloisa Marques Miotto Fontanelli, chefe de fiscalizações do MTE de Piracicaba, após a implantação de políticas públicas e acompanhamento contínuo de órgãos como o Cerest e o próprio MTE, o setor já deveria ter se adequado ao mercado e às leis trabalhistas.Em 2006, a queixa de uma funcionária de olaria chegou ao Cerest de Piracicaba. Na ocasião, a mulher estava com grave doença muscular e mesmo assim não havia conseguido afastamento do trabalho. “Ela havia recebido alta do médico do Sistema Único de Saúde (SUS) e se queixava porrealmente não conseguir trabalhar”, diz Marcos Hister. Mas o chamariz da história era o fato dela trabalhar em

condição análoga à de escravidão. “Por ser analfabeta e não ter nenhum parente, essa mulher trabalhou por anos em troca de teto e comida. Doente, tinha medo de não conseguir nem mesmo se alimentar caso não pudesse mais trabalhar”, explica o técnico. De acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, condições degradantes de trabalho, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida são características de uma situação análoga à de escravidão. O artigo diz ainda que os elementos podem vir juntos ou isoladamente.

Para entender melhor o caso, fiscais do órgão municipal foram até a olaria onde trabalhava a mulher e, segundo

Flagrante na estrada velha do Pau Queimado revela homem abastecendo o forno de tijolos sem sapato de segurança

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Hister, se depararam com uma situação extrema. “A situação era de calamidade. Crianças trabalhando, esgoto a céu aberto. Os funcionários não usavam equipamentos de segurança e tampouco a própria instalação da olaria era segura”, relata. Naquele momento, Hister notava um desafio. “Já cheguei a autuar e interditar até oito empreendimentos em um único dia. Mas esse caso era diferente. Alguma coisa tinha que ser feita visando resultados a longo prazo”, conta. Segundo o fiscal, o local não tinha exploração, e sim desinformação. “Os oleiros não tinham conhecimento nenhum de administração, legislação trabalhista, segurança do trabalho e muito menos sobre o mercado da construção civil. A sensação era de que havíamos descoberto um ponto por onde a globalização e o capitalismo se esqueceram de passar”, desabafa.

O tamanho do problemaA partir da primeira visita, Marcos Hister acionou o Sinticomp (Sindicato

dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de Piracicaba) e o MTE. “Mapeamos as olarias da região, visitando uma a uma”. Segundo Hister, existiam na época 41 olarias na região de Piracicaba, sendo 31 no município. Ainda de acordo com o técnico, todas as olarias de Piracicaba estavam na mesma situação- irregulares, sem segurança e com crianças trabalhando.

Outro problema identificado era relacionado à legalidade da extração de argila para fabricar tijolos. “Tudo que está no solo é do proprietário do terreno demarcado. O que está no subsolo, é da União”, afirma Milton Costa, presidente do Sinticomp. Segundo os órgãos envolvidos, apenas uma minoria dos empresários estava em dia com o governo federal.

Buscando soluçãoPor meio de um acordo entre Cerest, MTE e Sinticomp, foi elaborado um projeto de futuro para o setor. “Passamos a realizar fóruns com estes empresários para informá-los sobre o mercado, segurança do trabalho e construção civil”, explica Antenor de Jesus Varola, gerente do MTE em Piracicaba. Segundo o gerente, o setor precisava de conhecimento, incentivo e investimento para depois buscar linhas de crédito para financiamento de máquinas e infraestrutura.

Decorrente desta ação conjunta foi fundada a Asocerv, em 2011. Alcides Benedito Canalle, um dos fundadores e atual vice-presidente da associação, lembra que os oleiros foram lesados por muitos anos por conta de orientações equivocadas.

Canalle, que teve parte de sua produção automatizada graças aos incentivos dos órgãos municipais, se diz grato pelo trabalho realizado. “A olaria está em minha família há 26 anos e se não fosse essa abordagem educativa, não sei o que seria de mim”, ressalta.

Fiscal do Cerest, Marcos Hister cobra melhorias do setor desde 2006

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Em contrapartida, Costa revela que o problema em relação a documentações e infraestrutura não está solucionado, e que irregularidades são frequentes no setor. “Até hoje os empresários sofrem os reflexos das más gestões realizadas no passado. Documentos perdidos, irregulares, estão atrapalhando o desenvolvimento econômico das olarias”, enfatiza.

De acordo com Costa, houve também vitórias dos trabalhadores nesse tempo. “Hoje, o piso do profissional da área é de R$ 1.476 e o salário pode chegar a R$ 5.912. Os trabalhadores têm direito a cesta básica e participação no rendimento anual da empresa. Além das horas extras, que rendem 60% em dias de semana, e 100% aos sábados e domingos”, conclui.

Resultado InsatisfatórioConforme os relatos, entre mudanças positivas e negativas no setor de olarias, por enquanto o saldo positivo esta voltado apenas à produção e lucro. “Hoje eles estão automatizados, possuem conhecimento para administrar suas produções. Conseguem financiamentos”, enfatiza Marcos Hister.

Para o técnico, existe um fator negativo neste contexto. “Capitalizados, agora eles buscam por mais lucro, o que está levando os funcionários à exaustão”, afirma Hister. O técnico revela ainda que a forma como são pagos é também um grande problema. “A maioria deles recebe por produção e não mais por carga horária, isso é um atentado contra a saúde de qualquer trabalhador”, comenta.

Contradizendo o flagrante realizado pela equipe da revista Painel, Milton Costa discorda. “Não há mais trabalho infantil, trabalho em condição análoga à de escravidão e houve implantação de equipamentos de segurança. A situação das olarias está regularizada”, afirma o sindicalista. ∆

S egundo o Censo, 3,4 milhões de crianças e adolescentes de 10 a

17 anos trabalhavam em 2010. Desde 2000, a redução foi de 13,4% mas a frequência aumentou 1,5% entre 10 a 13 anos. O estudo “Brasil livre de trabalho infantil”, realizado pela organização não governamental (ONG) Repórter Brasil, que tem como foco principal denunciar exploração de mão de obra infantil em todo o país, aponta que em diversos setores apresentam argumentos favoráveis às atividades laborais de crianças e adolescentes com a justificativa de mantê-los “longe do crime” ou “dignificá-los”.

A Justiça Estadual ainda concede autorizações prévias para que menores de 16 anos ingressem no mercado, medida considerada inconstitucional. Só em 2011, foram 3.134 casos. Há autorizações para adolescentes e crianças trabalharem em lixões, na pavimentação de ruas e em fábricas de fertilizantes.

Dados estatísticos apresentados pela ONG indicam que, atualmente, 3,6 milhões de menores estão trabalhando no país. Crianças com idade entre cinco e nove anos somam 89 mil, com idade entre 10 e 13 anos, 614 mil. Adolescentes com idade entre 14 e 17 anos, atingem a marca de 2,9 milhões. O material revela ainda que as regiões onde mais se encontra trabalho infantil são a nordeste, com 1,2 milhões de crianças empregadas, e a sudeste, com um milhão de menores exercendo atividades laborais. ∆

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Realidade do

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