capa - epsjv.fiocruz.br · elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta...

26

Upload: lamanh

Post on 09-Nov-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando
Page 2: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando
Page 3: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 3

Capa

Educação e saúde no campo

Políticas PúblicasCatálogo Nacional de Cursos Técnicos unifica nomedas carreiras

Em Dia com a História

Saúde em 1800

Almanaque

Entrevista

Ester Buffa - Anos de chumbo na educação

ProfissãoTrabalhadores de nível médio cuidam da gestão do SUS

Comemoração

Os 30 anos de Alma-Ata são comemorados com a voltada atenção básica para o centro da agenda mundial

Observatório dos Técnicos

Pesquisa analisa Política de Educação Permanenteem Saúde

LivrosMares nunca dantes navegados: as contas nacionaisda saúde - resenha do livro ‘Economia da Saúde:uma perspectiva macroeconômica 2000-2005’

Dicionário

Trabalho

Dois meses depois do seu lançamento, com umaedição especial sobre os 20 anos da Constituição brasileira,você está recebendo o segundo número da Revista Poli, quese propõe a discutir e promover, no diálogo, conhecimentosobre políticas de saúde, educação e trabalho.

Elementos de todas essas políticas, com suasdemandas e desafios, estão presentes na matéria de capadesta edição, que mapeia as principais iniciativas dosmovimentos sociais e dos governos na defesa do direito àsaúde e educação integral às populações do campo.

A seção de entrevista foi pensada como esforço denão deixar caírem no esquecimento as marcas que a ditaduramilitar deixou na história brasileira em diversos campos.Para isso, nesta última edição de 2008, quando completam40 anos exatos do Ato Institucional nº 5, conversamos coma pesquisadora Ester Buffa sobre as reformas que a educaçãosofreu pelo Golpe Militar. Para continuar no campo dasmemórias, a revista lembra os 30 anos de Alma-Ata,divulgando e discutindo um relatório da OrganizaçãoMundial de Saúde que retoma a importância da AtençãoPrimária em Saúde. E na seção ‘Em dia com a História’,contamos como eram as práticas e a divisão do trabalho emsaúde nos idos de 1800.

O Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, queunifica a nomenclatura dos cursos desse segmento daeducação, é tema das páginas sobre Políticas Públicas. Naseção dedicada ao Observatório de Técnicos em Saúde,uma Estação de Pesquisa da EPSJV que compõe a Rede deObservatório de Recursos Humanos em Saúde, falamos sobreos resultados de um estudo sobre outra política, a deEducação Permanente em Saúde.

O Dicionário, desta vez, discute o conceito detrabalho, dentro e fora da sociedade capitalista. A seção deprofissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ dotécnico em gerência de saúde, mostrando que, em grandemedida, são os trabalhadores de nível médio que cuidam dagestão do SUS.

Além do Almanaque e do Pra Lembrar, que trazemassuntos variados, completa este segundo número da revistaa resenha do livro ‘Políticas e sistema de saúde no Brasil’,feita por Lígia Bahia. Boa leitura.

04

10

12

14

15

18

20

22

24

25

EXPE

DIEN

TESU

MÁRI

O

EDITO

RIAL

Ano I - Nº 2 - nov./dez. 2008Revista POLI: saúde, educação e trabalho -jornalismo público para o fortalecimento daEducação Profissional em Saúde.ISSN 1983-909X

Conselho Editor ia lConselho Editor ia lConselho Editor ia lConselho Editor ia lConselho Editor ia l(Membros do Conselho Deliberativo da EPSJV)

André Malhão, Sergio Munck, Isabel Brasil,

Gustavo Matta, Gilberto Estrela, Arlinda Moreno,

Francisco Bueno, Etelcia Molinaro, Maurício

Monken, José Roberto Reis, Cristina Araripe,

Monica Vieira, Gisele de Souza, Ialê Braga,

Marcela Pronko, Jéssica de Paula, Mario Sergio

Homem, Cátia Guimarães, Anamaria Corbo.

E n d e r e ç oE n d e r e ç oE n d e r e ç oE n d e r e ç oE n d e r e ç oEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, sala 305 - Av, Brasil, 4.365 - Manguinhos, Rio de Janeiro

CEP.: 21040-360 - Tel.: (21) 3865-9718 - Fax: (21) 2560-7484

[email protected] | www.epsjv.fiocruz.br

E d i t o r aE d i t o r aE d i t o r aE d i t o r aE d i t o r aCátia Guimarães - MTB: 2265/RJRepórteres e redatorasRepórteres e redatorasRepórteres e redatorasRepórteres e redatorasRepórteres e redatorasJuliana ChagasRaquel TorresMaíra Mathias (estagiária)PPPPProjeto Gráf ico e Diagramaçãorojeto Gráf ico e Diagramaçãorojeto Gráf ico e Diagramaçãorojeto Gráf ico e Diagramaçãorojeto Gráf ico e DiagramaçãoZé Luiz FonsecaMarcelo PaixãoC a p aC a p aC a p aC a p aC a p aPedro Henrique Quadros (estagiário)

Assistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoSandra PereiraAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalLuciane VicenteEstela CarvalhoTTTTTi r a g e mi r a g e mi r a g e mi r a g e mi r a g e m5.000 exemplaresPPPPPe r i o d i c i d a d ee r i o d i c i d a d ee r i o d i c i d a d ee r i o d i c i d a d ee r i o d i c i d a d eBimestralA g r a d e c i m e n t oA g r a d e c i m e n t oA g r a d e c i m e n t oA g r a d e c i m e n t oA g r a d e c i m e n t oAgência Imagens do Povo (fotografias)

Page 4: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 20084

Educação e

Saúde no

CampoExperiência de

movimentos sociais

serve como ponto de

partida para a

formulação de

políticas públicasRaquel Torres

Aúltima Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em2007 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que cerca de 16% da população brasileira vive em zonas rurais. As grandes distân-

cias e o transporte precário dificultam o acesso dos moradores dessas regiões a doisdireitos constitucionais: saúde e educação. Nessa reportagem, você vai entender deque maneira os movimentos sociais do campo e o governo federal vêm tentandosolucionar esses problemas.

Desafios na educação

A PNAD mostra que, de cada 100 moradores de áreas rurais com mais de cincoanos de idade, 24 não são alfabetizados – nas cidades, esse número cai para nove. Otempo de estudo também é preocupante: enquanto na área urbana cerca de metadedos moradores estudou oito ou mais anos, 60% dos habitantes da área rural estudaramquatro anos ou menos. “Durante muito tempo, o campo foi tratado com descaso, sema devida valorização. Os resultados que se têm hoje comprovam isso”, reconheceArmênio Schmidt, diretor de Educação para a Diversidade da Secretaria de EducaçãoContinuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC).

MST: integração entre t rabalho e educação é um dos fundamentosMST: integração entre t rabalho e educação é um dos fundamentosMST: integração entre t rabalho e educação é um dos fundamentosMST: integração entre t rabalho e educação é um dos fundamentosMST: integração entre t rabalho e educação é um dos fundamentos

Fra

nc

isco

Va

lde

an

/Ima

ge

ns d

o P

ovo

Page 5: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 5

De acordo com ele, é preciso quese tenha uma atenção especial para con-tornar essa situação. E as saídas encon-tradas pelo governo têm vindo, em gran-de parte, da articulação com movimentossociais do campo. “Além do Conselho dosSecretários Estaduais de Educação, daUnião dos Dirigentes Municipais deEducação e das Secretarias Municipais deEducação, dialogamos de forma perma-nente com os movimentos sociais, comoo Movimento dos Trabalhadores RuraisSem Terra (MST), que tem construído,ao longo do tempo, uma educação demuita qualidade no campo”, diz, referin-do-se a alguns princípios que são usadospor esse movimento em seus cursos eque, hoje, fazem parte dos programasoficiais do governo.

A experiência do MST

O primeiro princípio da educaçãono MST diz respeito à necessidade deque os professores das escolas do campopossuam um olhar diferenciado, voltadopara as especificidades desse meio. Deacordo com Roseli Caldart, assessorapedagógica do Instituto Técnico deCapacitação e Pesquisa da Reforma Agrá-ria (Iterra), do MST, é preciso que todaescola tenha “o jeito do lugar onde está”,seja ela do meio rural ou do urbano. “Aescola é um dos espaços de formação dossujeitos. Portanto, ela não pode ser umcorpo estranho, algo que não tenha nadaa ver com aquilo que acontece nessacomunidade”, diz.

Uma escola que atenda a assen-tados não pode, segundo esse raciocí-nio, ficar descolada de todo o processode luta do MST. “Muitos se perguntamse a escola do MST é diferente. Talvezseja, assim como há tantas outras escolasdiferentes tentando construir propostas.Nossa escola opera naquela dialética en-tre incluir-se no sistema educacional queestá constituído, porque é um direito, eao mesmo tempo excluir-se, contestan-do essa própria lógica, porque muitos ele-mentos não são favoráveis às pessoas queestão ali, à classe trabalhadora”, analisaRoseli, afirmando que a luta pela educa-ção é um dos marcos do MST. “Não é tãousual que os movimentos sociais campo-neses tenham um trabalho específiconesse sentido. Até onde eu sei, isso nãoé comum na própria América Latina,embora haja alguns movimentos que tra-balham com comunidades e acabam sepreocupando com isso. O Movimento dosAtingidos por Barragens (MAB) é umexemplo: são pessoas que têm suas ter-ras alagadas, são reassentadas, precisamreconstruir uma comunidade e ter esco-

las. O MAB se tornou um movimen-to parceiro nas nossas reflexões sobre aeducação”, explica.

O segundo ‘mandamento’ é atentativa de não separar o trabalho ma-nual do intelectual. “Sempre buscamostrabalhar exatamente na lógica inversa aisso. A idéia é que é preciso desenvolveras diferentes dimensões da formaçãohumana: não adianta montar um cursotécnico sem o Ensino Médio, porque épreciso dar ao aluno conhecimentos ge-rais para que ele entenda como funcionaa sociedade. Muitas vezes, sem isso, elesequer sabe onde se encaixa o seu traba-lho. No caso do MST, acredito que a rea-lidade nos ajude um pouco porque ostrabalhadores detêm os seus meios deprodução e as decisões sobre o processode trabalho, o que facilita a formação. Maso processo de alienação nas cidades é tãoforte que, ainda que se detenham osmeios de produção, pode-se estar numprocesso muito grande de alienação, em-bora, em tese, existam condições parasuperar isso. É preciso potencializar umaformação que supere essa alienação",defende Roseli.

Ela explica que, no Iterra, os cur-sos técnicos sempre foram feitos deforma integrada ao Ensino Médio. “Sedesejamos formar trabalhadores capazesde questionar a ordem social vigente ede propor novas relações, precisamosoferecer uma formação mais ampla. Essaé a razão por que sempre trabalhamoscom o ensino integrado. Em alguns mo-mentos a legislação impunha restrições.Mas, mesmo nessa época, encontrávamosmaneiras para combinar ensino técnico ebásico: os alunos tinham duas matrículas,uma para o curso técnico e outra para oEnsino Médio mas, na prática, já traba-lhávamos de forma integrada”, conta.

Por fim, o MST aprendeu que nãoé nada simples formar turmas com umnúmero suficiente de alunos, de modoque a realização dos cursos se torne eco-nomicamente viável: por um lado, man-ter uma escola ou centro formador queatenda a poucos estudantes é muitooneroso; por outro, a precariedade dasestradas e dos transportes e as grandesdistâncias que separam as propriedadesno campo inviabilizam a construção deuma escola maior, pois os alunos não teri-am como chegar até ela todos os dias. Asolução encontrada pelo Movimento paradar conta disso é trabalhar em regime dealternância, dividindo os cursos em ‘tem-po escola’ e ‘tempo comunidade’.

O ‘tempo escola’ é realizado, emgeral, duas vezes por ano, e pode duraraté 60 ou 70 dias. Nesse período, os alu-nos ficam na escola ou universidade em

que o curso está sendo realizado (ou ain-da alojados em algum local próximo) paraterem aulas diárias. Já no ‘tempo comu-nidade’, esses alunos retornam ao lugaronde moram e, além de seguirem suarotina no trabalho, desenvolvem algumasatividades específicas estipuladas pelosprofessores. Alternando esses períodos,é possível formar os alunos sem que elestenham que fazer grandes deslocamen-tos todos os dias e sem que precisemdeixar de trabalhar nas suas terras.

Para Roseli, o ‘tempo escola’ trazainda um outro benefício: “Quando osalunos ficam um período na escola,intensivamente morando ali, isso exigeque prestemos maior atenção a eles.É bem diferente de quando um estudan-te vai à aula, fica algumas horas e depoisvolta para casa. Quando as coisas se dãodessa maneira, a escola pode até se darao direito de não saber o que acontececom seus alunos fora dali. Já no nossocaso não fazemos isso, porque eles estãoali conosco e constituem quase uma outrafamília”, observa.

Políticas públicas: o início

A importância de lutar pelo aces-so à escola pública sempre foi, segundoRoseli, uma preocupação do MST. “Issoexiste desde o princípio do movimento:o MST entendia que aquelas famílias ti-nham direito a que seus filhos e elas pró-prias tivessem acesso à educação e que,por conta da negação ao direito à terra,também lhes estava sendo negado o di-reito à educação”, explica ela. Do diálogoentre o MST e o governo federal surgiu,no final da década de 90, o ProgramaNacional de Educação na Reforma Agrá-ria, do Ministério do DesenvolvimentoAgrário (Pronera/MDA). “O pontapéinicial para a elaboração desse programaaconteceu em 1997. Foi quando se reali-zou o I Encontro Nacional de Educa-dores da Reforma Agrária (I Enera),organizado pelo MST e com o apoio deinstituições como o Fundo das NaçõesUnidas para a Educação, a Ciência e aCultura (Unesco). O encontro reuniu pro-fessores de escolas de assentamentos detodo o país. E foi aí que se começou apensar na necessidade de elaborar umprojeto de programa nacional voltadoespecificamente para os assentamentos”,conta Clarice Aparecida dos Santos,coordenadora-geral de Educação do Cam-po e Cidadania do Pronera.

Após o Encontro, um grupo detrabalho ficou responsável pela redaçãode um projeto para ser entregue aogoverno federal. Depois dessa etapa, jáem abril do ano seguinte o Pronera foi

Page 6: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 20086

Os currículos, segundo Clarice,são adaptados à realidade do campo.“Nossos cursos têm, normalmente, umacarga horária 50% maior que a dos cursosconvencionais. Isso para podermos in-cluir disciplinas que dêem conta dasespecificidades das áreas rurais”, diz.

Além dos assentamentos

Depois de criar o Pronera, o go-verno passou a elaborar projetos quese estendessem a todas as áreas rurais:em 2003, foi instituído o Grupo Perma-nente de Trabalho de Educação no Cam-po, com o objetivo de discutir a formula-ção de uma Política Nacional de Educa-ção no Campo articulada pelo MEC.Hoje, dois programas já estão se conso-lidando: O Programa de Apoio à For-mação Superior em Licenciatura emEducação no Campo (ProCampo) e oProJovem Campo.

O ProCampo tem como objetivoqualificar professores especificamentepara atuarem em escolas das áreas rurais.De acordo com Armênio Schmidt, o gran-de desafio do MEC tem sido garantir aformação adequada desses profissionais:o Censo escolar de 2006 revelou que,naquele ano, mais de 40% dos profes-sores que atuavam nos anos finais doensino fundamental, na zona rural, nãopossuíam formação em nível superior. Noensino médio, esse número era de 12,8%.

Segundo Armênio, mais do quefazer com que esses profissionais tenhamacesso a um curso universitário, é impor-tante garantir que essa formação dêconta das especificidades da zona rural.“Trabalhar a educação no campo é dife-rente de trabalhá-la na cidade. Não émelhor nem pior, mas diferente, e asdiferenças devem ser respeitadas. Além

de tratar de conteúdos universais, quetambém são debatidos nas cidades, é pre-ciso que se entenda a realidade do cam-po e que se respeite sua organização.É necessário tratar de forma adequada asdemandas e isso se faz, por exemplo, tra-balhando a interpretação de textos quefalem sobre o cotidiano do campo. Porisso, além de escolas em número sufici-ente, é preciso que haja professores qua-lificados”, afirma.

Atualmente, quatro universidadesestão realizando projetos-piloto doProCampo: a Universidade de Brasíliae as Federais de Minas Gerais, Bahia eSergipe. “Esperamos que, a partir do anoque vem, mais 26 universidades e umCentro Federal de Educação Tecnológica(Cefet) ofereçam o curso de Licenciatu-ra”, prevê Armênio. De acordo com ele, ocurso pretende atender principalmentea professores que já trabalham em esco-las do campo e ainda não possuem for-mação superior. O processo seletivo é feitode acordo com as normas das universida-des – em geral, o vestibular – e é aberto.“Mas cada instituição tem autonomiapara adotar critérios que priorizem aentrada daqueles que já atuem comoprofessores. Esse é o nosso público pre-ferencial”, explica.

Assim como os cursos realizadospelo Pronera, a Licenciatura em Educa-ção no Campo deve ser trabalhada emregime de alternância. “Para não prejudi-car o trabalho que esses profissionais járealizam, os ‘tempos escola’, que duramem média 45 dias, são feitos durante asférias. Já durante o ano letivo, os profes-sores das universidades vão periodica-mente ao campo, às escolas em que osalunos de Licenciatura trabalham, parafazer um acompanhamento. Os estu-dantes também têm um conjunto de

instituído, vinculado ao Instituto Nacio-nal de Colonização e Reforma Agrária(Incra). “Nessa época, havia uma grandemobilização nacional em favor da Refor-ma Agrária, em boa parte devido ao mas-sacre de Eldorado dos Carajás, em 1996.Além disso, havia o apoio da Unicef e daUnesco. Acredito que esses fatores fize-ram com que o governo aceitasse a pro-posta e criasse o Programa tão rapidamen-te”, diz Clarice. Ela explica que, inicial-mente, a intenção era conseguir avançosem relação à escolaridade nos assenta-mentos, principalmente na alfabetização.“Com o tempo, a demanda por níveismais altos de escolaridade começou a cres-cer e passaram a ser realizados cursos téc-nicos integrados ao nível médio e supe-riores”, explica.

Os cursos financiados peloPronera são feitos em parceria com insti-tuições de ensino públicas ou comunitá-rias, responsáveis pela certificação dosalunos. “Nossa exigência básica é que asinstituições tenham parceria com algummovimento social – a todos os projetosdeve ser anexada uma carta com a apro-vação do movimento parceiro”, dizClarice. Ela explica que os própriosmovimentos procuram as instituiçõesapresentando sua demanda por deter-minado curso. “As instituições apresen-tam seus projetos ao Pronera e umacomissão pedagógica nacional, compos-ta por professores de várias instituiçõesde ensino e também por representantesde movimentos sociais, é responsável poraprovar ou não os projetos. Depois daaprovação, os convênios são finalmentefirmados”, conta.

De acordo com Clarice, os cursostécnicos mais demandados são os de téc-nico em agropecuária, técnico emagroecologia, técnico em enfermagem etécnico em saúde comunitária, além domagistério. No nível superior, o Proneraoferece cursos nas áreas de pedagogia,direito, ciências sociais, agronomia, me-dicina veterinária e licenciaturas, entreoutros. O processo seletivo para cursosde nível médio e superior é feito de acor-do com as normas da instituição realiza-dora. “A única condição para fazer a ins-crição é que o candidato apresente umcomprovante, emitido pelo Incra, de queé assentado ou tem familiares assenta-dos. A exceção é a Educação de Jovens eAdultos (EJA): nesse caso não há seleçãoe, em geral, todos os assentados que de-sejam estudar podem fazer o curso. Alémdisso, como o índice de analfabetismoentre os acampados é muito alto, elestambém podem participar da EJA nasmoda-lidades de alfabetização e ensinofundamental”, observa.

Alunos da Escola F lorestan FAlunos da Escola F lorestan FAlunos da Escola F lorestan FAlunos da Escola F lorestan FAlunos da Escola F lorestan Fernandes, do MSTernandes, do MSTernandes, do MSTernandes, do MSTernandes, do MST, em São P, em São P, em São P, em São P, em São Pauloauloauloauloaulo

Fra

nc

isco

Va

lde

an

/Ima

ge

ns d

o P

ovo

Page 7: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 7

trabalhos e pesquisas a realizar duranteesse tempo”, diz Armênio, observandoque os planos de curso são desenvolvi-dos pelas próprias universidades e apro-vados pelo MEC.

Enquanto o ProCampo busca for-mar professores, o ProJovem Campo sur-giu em 2005 com o objetivo de aumentara escolarização de agricultores que tenhamentre 18 e 29 anos. De acordo comArmênio, as etapas do ensino básico emque há maior necessidade de investimen-tos são o Ensino Médio e os últimos anosdo Ensino Fundamental. Ele afirma queuma das maneiras encontradas para aten-der a essa demanda, especialmente nocaso de jovens e adultos, é a construçãode escolas que ofereçam a educação bá-sica integrada ao ensino técnico, a exem-plo do que ocorre no Pronera. “Com isso,atingimos dois grandes objetivos de umasó vez: a elevação da escolaridade e a qua-lificação técnica”, explica.

Os professores dos cursos vincu-lados ao programa recebem também umaformação específica através de cursos deespecialização desenvolvidos em univer-sidades públicas parceiras. “Essa forma-ção faz com que o ProJovem Campo nãoseja um EJA comum, mas um EJA comconhecimentos diferenciados – a forma-ção dos professores e os currículos sãofatores que vêm garantindo essa particu-laridade”, diz.

Profissionais para a saúde

Se a falta de profissionais qualifi-cados para atuarem nas escolas do cam-po é um problema, na saúde essa tam-bém é uma questão preocupante. “É ver-dade que há muitas semelhanças entre oatendimento prestado na área urbana eaquele que se espera desenvolver na árearural: deve haver preocupação com doen-ças como hipertensão e diabetes, assimcomo atenção especial a gestantes, cri-anças e idosos. Essas são questões queindependem do local onde se mora. Mascertos riscos a que as populações docampo se expõem diferem bastantedaqueles enfrentados nas áreas urbanas.Exemplos disso são problemas causadospor animais peçonhentos e pelo uso deagrotóxicos – são riscos além daquelescomuns ao envelhecimento e desen-volvimento natural das pessoas. Comogarantir profissionais qualificados paraatender a essas populações?”, indagaAntônio Alves, secretário de GestãoEstratégica e Participativa do Ministérioda Saúde (Segep/MS).

Para Gislei Siqueira, membro doColetivo Nacional de Saúde do MST, oideal seria que os profissionais de saúde

que atuam no campo morassem no seulocal de trabalho, justamente por enten-derem melhor essas especificidades.“Isso favoreceria a reflexão. Mas, no mo-mento, precisamos de profissionais qua-lificados, que morem ou não no campo.Essa é nossa urgência”, avalia.

Ela conta que, atualmente, é difí-cil que trabalhadores da zona rural consi-gam se tornar médicos no Brasil. “Osníveis de escolaridade no campo aindasão muito baixos e o vestibular para Me-dicina é sempre o mais concorrido emtoda universidade. Já formamos algunscamponeses através da Escola Latino-Americana, em Cuba, mas eles aindanão têm permissão para atuarem noBrasil”,diz.

Mas, de acordo com ela, o pró-prio MST já qualifica os assentados a partirda realização de cursos técnicos, finan-ciados, em grande parte, pelo Pronera.“Já temos os cursos de Técnico emSaúde Comunitária e Técnico em En-fermagem. Este ano, começamos umprojeto-piloto de Especialização Técni-ca em Saúde Ambiental, em parceria coma Escola Politécnica de Saúde JoaquimVenâncio (EPSJV/Fiocruz)”, diz Gislei,explicando que os cursos em saúdesão recentes e há poucas turmas jáformadas. “Esse processo começou hácerca de três anos. Temos alguns ex-alunos já trabalhando formalmente,enquanto outros trabalham informalmen-te para atender às demandas da comuni-dade, mesmo sem vínculo direto com osistema público”, diz.

Gislei observa que, assim comonos demais cursos técnicos realiza-dos no MST, é fundamental que hajauma integração com a educação básica.“Essa é uma condição indispensável: paraelevar a formação técnica, precisamoselevar também a escolarização. Existempoucas escolas de ensino médio no cam-po e precisamos avançar também nessesentido”, afirma.

Enquanto o MST aposta na reali-zação de cursos técnicos específicos paraa saúde no campo, Antônio Alves acredi-ta que esse assunto deve ser incluído nocurrículo dos cursos de graduação e pós-graduação. De acordo com ele, os profis-sionais de nível médio devem adquiriresse olhar especializado não durante oscursos, mas sim enquanto as equipes desaúde para as zonas rurais estiverem sen-do preparadas. “Quando esses técnicosforem destinados a fazer esse tipo deatendimento, será preciso aprofundar aformação. Nesse caso, iremos trabalharna preparação da equipe para o pronto-atendimento e para uma atenção dife-renciada.”, afirma, completando que

a formação de recursos humanos é umdos pontos principais da Política Nacio-nal de Saúde Integral para os Povos doCampo e da Floresta, que o Ministérioda Saúde pretende implantar.

Construindo uma Política Nacional

Em 2005, o Ministério da Saúdecriou o Grupo da Terra, que tinha comoobjetivo discutir as diretrizes de umapolítica nacional que desse conta daspopulações rurais. “Quando começamosa discutir essa Política, tivemos a preocu-pação de nos voltarmos não apenas paraaquilo que chamamos comumente ‘cam-po’ – as regiões que se dedicam à agri-cultura e à pecuária – mas de avançarnessa concepção. Hoje, entende-se queum projeto dessa dimensão não pode selimitar somente aos camponeses. Osmilitantes sociais desses espaços levan-taram a necessidade de que outrosgrupos populacionais também devam seratendidos, como os povos da floresta.Nessa categoria estão englobados osseringueiros, os quilombolas, os ca-tadores de castanha, alguns indígenas eos ribeirinhos”, diz Antônio Alves.

Por conta disso, o Grupo da Terrafoi formado por representantes dogoverno e de diversos movimentos soci-ais como o MST, a Coordenação Nacio-nal de Articulação das ComunidadesQuilombolas (Conaq) e o Conselho Na-cional de Seringueiros, além da Confe-deração Nacional dos Trabalhadores naAgricultura (Contag). A idéia é tambémenglobar municípios pequenos em que apopulação trabalha no campo. “O objeti-vo é alcançar cortadores de cana, bóias-frias, trabalhadores sazonais e quaisqueroutros que trabalhem na terra, mesmoque não morem no campo”, diz Gislei,que participou do Grupo da Terra. “Aslutas pontuais de cada um desses movi-mentos são diferentes. No entanto, den-tro do Grupo, conseguimos encontraruma mediação e construir idéias sólidas,pois nossos objetivos finais são muitopróximos. Trata-se de um exercício polí-tico interessante”, completa.

As demandas

“Na verdade, o que falta nas zo-nas rurais é o que falta também nas cida-des: gostaríamos que a rede de serviçosno campo fosse um espaço de produçãode saúde conectado aos desejos e àsnecessidades da população que está ali.Que não fosse um mero ‘balcão’ deproblemas e soluções, mas sim um espa-ço de vida”, diz Gislei. Por isso, umdos aspectos priorizados pela Política

Page 8: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 20088

blemas mais graves enfrentados pelaspopulações do campo. “Embora hajaexperiências positivas em alguns muni-cípios, de forma geral o Sistema Únicode Saúde (SUS) ainda não chega nessasáreas e, quando chega, normalmenteé apenas a atenção básica”, reconhece.“O acesso universal está previsto na Cons-tituição. E isso significa que as pessoasprecisam ter a possibilidade de conse-guir os serviços de que necessitam.No entanto, nas zonas rurais, os serviçosnão vão até as pessoas: elas que têm queir a eles.”, explica.

Gislei acredita que, para contor-nar essas dificuldades, uma das propos-tas é construir uma rede de serviços quechegue até a população rural. Ela afirmaque, mesmo que não seja economicamen-te viável manter unidades hospitalares oupostos de saúde fora dos municípios,é possível oferecer alguns serviços naszonas mais afastadas e mesmo nosassentamentos. “Alguns procedimentossimples podem ser realizados. É pos-sível, por exemplo, marcar um dia parafazer a coleta de sangue de um grupode pessoas e levar as amostras paraa unidade-referência mais próxima.Seguindo a mesma lógica, tambémse pode coletar material para o examepreventivo ginecológico das camponesas.E nada impede que exista uma uni-dade básica de saúde no campo, comprofissionais que saibam aplicar inje-ções, fazer curativos, imobilização enebulização, além de dar orientaçõesbásicas sobre medicamentos. Esse tipode atendimento é uma alternativa pos-sível para as áreas rurais e evita que osmoradores precisem fazer peregrinaçõesaté a cidade”, aponta.

Da elaboração à prática

Das reuniões do Grupo da Terraresultou um documento preliminar, de-batido e aprovado no colegiado políticodo Ministério da Saúde. Em seguida, odocumento foi aprovado pelo ConselhoNacional de Saúde. O passo seguinte é apactuação na Comissão IntergestoresTripartite. “Mas ainda é preciso que sejafeito um ‘plano operativo’, em que seexplicitem as metas, os indicadores, asformas de avaliação da política e as res-ponsabilidades diretas dos entes fede-rativos”, diz Antônio Alves.

De acordo com ele, esse plano éfundamental para direcionar o funciona-mento da Política. “No documento ela-borado, dizemos que é importante esta-

Nacional de Saúde Integral para osPovos do Campo e da Floresta é a in-tersetorialidade. “Muitas vezes, mesmotendo assegurado uma consulta na áreaurbana, as pessoas não têm como com-parecer porque o sistema de transporteda área rural para a cidade é precário enão existe uma periodicidade garantida.Assim, essas pessoas acabam perdendoa consulta. Essa é uma preocupação quea saúde não pode deixar de ter, embora asolução não esteja diretamente no setorsaúde”, exemplifica Antônio Alves.

De acordo com Gislei, o MSTsempre discutiu a necessidade de umapolítica de saúde específica para as áreasde Reforma Agrária. “Isso porque temosuma condição de vulnerabilidade das fa-mílias no momento em que estão nosacampamentos. São famílias itinerantesque, quando assentadas, levam muitotempo até que possam entrar nas contasdo município para a atenção básica – issosó acontece quando o IBGE realiza umanova contagem”, diz. Ela explica quealgumas políticas setoriais já haviam sidocriadas antes da instituição do Grupo daTerra: “Já se havia conseguido que osmunicípios que disponibilizassem equi-pes da Estratégia de Saúde da Família(ESF) nos assentamentos recebessemum incentivo financeiro a mais para man-ter a Estratégia. Mas era preciso fazer umacoisa mais coordenada e forte”, conta.

A situação dos assentados é, se-gundo Gislei, muito precária: “Nos as-sentamentos não há saneamento básicoe o atendimento em saúde é insuficien-te. Não existe uma rede estruturada nemsequer postos de saúde. É preciso quehaja essa rede de serviços diferenciadano campo e isso não significa apenas re-ceber a visita de médicos ou dentistas.Se um médico vai ao assentamento ediz que uma criança precisa fazer trêsnebulizações por dia, como cumprir arecomendação se muitas vezes não háacesso de transporte público a essasáreas? É impossível”, argumenta.

Ela também conta que, devido aessa dificuldade, algumas doenças sãotratadas pelos próprios camponeses. “Aspopulações do campo são, a um só tem-po, mais vulneráveis e também mais pro-tegidas. Isso porque existe uma vivênciacoletiva que ajuda a resolver muitos pro-blemas de saúde. Em geral, as pessoasprocuram resolvê-los através de sabedo-rias tradicionais que já estão presentesna comunidade, como massagens efitoterapia. Já doenças mais graves nãopodem ser tratadas pelos próprios cam-poneses e acabam levando à morte”, diz.

Para Antônio Alves, a falta de aces-so aos serviços de saúde é um dos pro-

belecer instrumentos indicadores paraacompanhamento, monitoramento e ava-liação das ações, e isso está previsto comouma responsabilidade da gestão estadu-al. Dizemos que é preciso ampliar a ofer-ta de consultas e exames. Dizemos que épreciso incentivar a permanência de equi-pes de saúde na família no campo. Mas oque significa tudo isso? É preciso esta-belecer os instrumentos necessários edizer exatamente de que forma isso vaiacontecer”, diz Antônio.

Ele explica que é importanteexplicitar que ações cabem ao muni-cípio, ao estado e ao governo federal.“O SUS não é feito por um, mas pormuitos. Em geral, o município é o gran-de executor, porque toda a área rural per-tence ao município. Ao estado devecaber o papel de fornecer apoio técnicoe financeiro e de organizar serviçosnecessários para atender a mais de ummunicípio. Já a União deve ser o grandefinanciador, já que metade dos recursosfinanceiros do SUS vêm dos cofres daUnião. Essas são as linhas gerais. Oplano de ação vai dizer exatamente qualserá a responsabilidade de cada umdesses entes”, afirma.

O caminho até a implantaçãooficial das ações é longo: “O planooperativo será elaborado pelas áreastécnicas do Ministério da Saúde, comrepresentantes das Secretarias de Aten-ção à Saúde (SAS), de Vigilância emSaúde (SVS), de Gestão do Trabalho eEducação em Saúde (SGTES) e da pró-pria Segep, entre outras. Depois de for-mulado, o plano será submetido ao Gru-po da Terra, ao Conselho Nacional deSaúde, aos gestores e, finalmente, àTripartite”, explica Antônio Alves.

Para Gislei, a Política já umgrande avanço no sentido de melhoraras condições no campo, mesmo enquan-to está só no papel. “Sabemos que aexistência formal de uma Política, porsi só, não vai garantir o atendimento eo acesso ao sistema. Mas acreditoque seu grande benefício é trazer visibi-lidade a populações que, hoje, são invi-síveis ao poder público. A formulaçãode uma política nacional é o primeiropasso para sensibilizar os gestores”,opina, completando: “O próprio SUSjá está com 20 anos e ainda não conse-guimos concretizá-lo por inteiro. Esperoque, para que essa Política se consolide,não precisemos esperar mais tanto tem-po. Mas sabemos que é um processo len-to e que é a luta da sociedade que dá oritmo da construção”.

Page 9: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 9

A Escola Politécnica deSaúde Joaquim Venâncio(EPSJV) começou a realizar,este ano, um projeto-piloto deespecialização técnica em saú-de ambiental para trabalhado-res do MST e do Movimentodos Atingidos por Barragens(MAB). O curso, desenvolvidopor meio de uma parceria en-tre a Fundação Oswaldo Cruz,a Coordenação Geral de Vigi-lância Ambiental e o Ministé-rio da Saúde (Fiocruz/CGVAM/MS), é produto de dois proje-tos: ‘Determinantes Sociais daSaúde nos Territórios de As-sentamentos do MST: ele-mentos para a elaboração deproposta de formação em saú-de ambiental para a populaçãodo campo’ e ‘Formação de For-madores em Saúde Ambientalnos Territórios dos Assenta-mentos do MST: uma estraté-

gia para o enfrentamento dos determinantes sociais da saúde da população docampo’. “Já havíamos realizado uma pesquisa para identificar as demandasde saúde dessas populações. No ano passado, nos reunimos com os dirigentes doColetivo Nacional de Saúde do MST para firmar uma parceria e montar um cursode vigilância ambiental”, conta Maurício Monken, coordenador do curso junto comJosé Paulo da Silva e Gladys Miyashiro.

O curso está sendo realizado no Centro de Formação Maria Olinda (umcentro do próprio MST localizado em São Mateus/ES) e é dividido em quatrounidades: ‘Conhecendo o lugar da produção social da saúde da população docampo’, ‘Analisando a saúde ambiental da população do campo’, ‘Analisando osproblemas de saúde ambiental da população do campo’ e ‘Intervindo sobre proble-mas de saúde ambiental da população do campo’. Cada etapa tem duração de trêssemanas e, entre uma e outra unidade, existe um ‘tempo comunidade’. “Nesseperíodo, os estudantes devem fazer trabalhos de pesquisa sobre o assentamentoem que vivem e os espaços adjacentes: eles fazem mapas artesanais dessas áreas,com um levantamento de características da população e de informações diversassobre saúde e sobre o terreno. Isso é feito por meio de entrevistas com os própriosassentados e com os gerentes dos postos de saúde mais próximos. Além disso,eles resenham livros pré-determinados, preparando-se para a próxima unidade docurso”, conta Maurício.

De acordo com ele, o MST possui um currículo mínimo que a EPSJVincorporou ao programa do curso. “Há áreas de conhecimento que são considera-das fundamentais pelo movimento, como filosofia e economia política. Nessecurso, especificamente, uma questão importante foi a introdução da agroecologia,que diz respeito a uma produção saudável, sem o uso de agrotóxicos”, diz.

Segundo Maurício, outra questão importante é que a vigilância em saúde vêo planejamento estratégico como base do processo de trabalho. “O planejamentofazia parte, portanto, da nossa proposta de curso, e o MST acabou também consi-derando que essa é uma questão fundamental para fazer com que o assentadotenha capacidade de planejar suas ações. Assim, o planejamento aparece em todasas unidades do curso, costurando as informações que eles adquirem”, explica.

Ao todo, participam 40 alunos oriundos de assentamentos e acampamen-tos dos estados do Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Espírito

Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro,São Paulo, Santa Catarina, Rio Grandedo Sul e Goiás. De acordo com Maurí-cio, esses estudantes foram indicadospelos coletivos estaduais de saúde domovimento. “Eles não são trabalhado-res da saúde, mas sim agricultores liga-dos ao Movimento. O que pretende-mos com esse curso é reforçar a atua-ção deles no assentamento: com osconteúdos que aprendem, eles vão po-der melhorar as condições de vida noslugares onde moram, no que diz res-peito ao saneamento e à produçãoagroecológica. Além disso, vão melho-rar sua capacidade técnica de diálogocom os setores dos governos munici-pais e estaduais, o que vai reforçar etornar mais efetiva sua luta política”,diz Maurício.

Além de subsídios para a elabo-ração do curso, a pesquisa realizada pelaEscola rendeu outro produto: um cur-ta-metragem chamado ‘Assentamento19 de setembro’, dirigido por ZecaBuarque Ferreira, também pesquisadorda EPSJV. O vídeo mostra as condiçõesde vida e saúde do assentamento deGuaíba, em Porto Alegre. “É importan-te porque a imagem que se constrói doMST é a pior possível: eles são, geral-mente, vistos como invasores violen-tos. Assistindo ao vídeo, percebe-seque eles são pessoas comuns – comuma realidade diferente da nossa, semdúvida, mas, definitivamente, esse nãoé o MST que costumamos ver na tele-visão”, analisa Maurício.

O vídeo está disponível no siteda EPSJV, (www.epsjv.fiocruz.br), nolink ‘Material Educativo’.

Esse curso é apenas um dos re-sultados da parceria entre a EPSJV e oMST, que se sustenta, sobretudo, peladefesa da educação integral. “Tanto oMST quanto a EPSJV trabalham naperspectiva da formação técnica inte-gral e da iniciação científica no EnsinoMédio e no técnico. Nossos projetosinstitucionais se assemelham tambémna construção coletiva do processoeducativo, na preocupação com a for-mação docente e no entendimento deque essas questões não são apartadasda crítica ao capital e da possibilidadede se construir um outro projeto de so-ciedade”, explica Isabel Brasil, vice-di-retora de Pesquisa e DesenvolvimentoTecnológico da EPSJV.

EPSJV e MST têm parceria em curso de Saúde Ambiental para a População do Campo

José Paulo S i lva or ienta alunos do MSTJosé Paulo S i lva or ienta alunos do MSTJosé Paulo S i lva or ienta alunos do MSTJosé Paulo S i lva or ienta alunos do MSTJosé Paulo S i lva or ienta alunos do MST

Page 10: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200810

Catálogo Nacional de Cursos Técnicos unifica nome das carreiras Documento fixou 185 nomes para os cursos profissionais de nível médio depois de ficar cinco meses em consulta pública

Juliana Chagas

No início de 2007, quando o Ministério da Educação (MEC) decidiu elaboraro Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, havia, no Brasil, 2.773 nomes decursos profissionalizantes. Um ano e meio depois – o catálogo foi lançado

dia 16 de julho de 2008 – e após ampla discussão com especialistas em educaçãoprofissional e consulta pública, concluiu-se que 185 denominações são suficientes.Isso porque existiam muitos nomes para determinar um mesmo curso. “Uma únicacarreira chegou a ter cerca de 70 nomes diferentes. A elaboração de uma nomenclaturanacional facilita a comparação dos currículos dos cursos pelo MEC, a mobilidade doaluno e permite que as empresas e os órgãos públicos no momento de um concursosaibam qual é o perfil daquele profissional. Também queremos que o catálogo sirvacomo guia de carreiras para os alunos que buscam o Ensino Médio Profissional”,explica Andréa Barros Andrade, diretora de regulação e supervisão da Secretaria deEducação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC) e coordenadora geral do Catálogo.

Especialistas se reúnem para decidir novos nomes

Depois de mapear o número de cursos técnicos cadastrados em todo o país, oMEC dividiu o Catálogo em 12 eixos: ambiente, saúde e segurança; apoio educacio-nal; controle e processos industriais; gestão e negócios; hospitalidade e lazer; infor-mação e comunicação; infra-estrutura; militar; produção alimentícia; produção culturale design; produção industrial; e recursos naturais.

Na etapa seguinte, foram convidados especialistas para decidir o melhor nomepara cada curso. “Identificamos os atores que nacionalmente poderiam ser ospareceristas de cada eixo. Para essa escolha, buscamos convergir o conhecimentotécnico, a experiência na prática da profissão e na coordenação do curso. Procuramospessoas com visão regional e nacional. Ao todo, foram identificados 300 profissio-nais”, esclarece Andréa. Além disso, os representantes dos Conselhos Nacional eEstadual de Educação também acompanharam o trabalho.

O grupo de especialistas se reuniu durante o ano de 2007 em diferentesestados brasileiros. “Convocamos todos os pareceristas para todas as reuniões. Comomuitos cursos têm interface com mais de uma área, foi preciso que eles discutissem edecidissem o melhor nome juntos. Às vezes, dois ou três eixos sentavam juntos parachegar a um consenso”, diz a coordenadora dos trabalhos. Caso houvesse impasse, adecisão era tomada no âmbito ministerial. O resultado, segundo Andréa, foi muitosatisfatório: “Colocamos o Catálogo em consulta pública de novembro de 2007 amarço de 2008 e tivemos muito poucas alterações”, diz ela.

Além da unificação dos nomes, o Catálogo traz também a carga horária mínimade cada curso, um resumo da habilitação técnica, as possibilidades de temas quedevem ser abordados na formação, os locais de atuação do profissional e a infra-estrutura recomendada para a escola que quiser oferecer a carreira de nível médio.“Isso é apenas um resumo. A formação vai muito além do que está escrito aqui.Pinçamos algumas características dos cursos apenas para que o aluno tenha uma idéiado que se trata e possa identificar o que deseja fazer”, afirma Andréa.

Mudanças nos cursos da saúde

Segundo o professor Marcos Antonio Pereira Marques, coordenador do cursoTécnico em Análises Clínicas da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e um dos especialistas convocados, as primeiras análises eram feitas emrelação aos currículos. “Nas reuniões, nós agrupávamos os currículos semelhantes.Depois, discutíamos o melhor nome para o curso. Análises Clínicas foi escolhido por

ser a denominação mais antiga”, diz ele,lembrando que essa carreira, além donome acordado para ser usado nacional-mente, já foi conhecida também comoPatologia Clínica, Análises Médicas eBiodiagnóstico em Saúde.

O Catálogo, que determinou 28habilitações técnicas para o eixo Ambien-te, Saúde e Segurança, ratificou comotécnico, por exemplo, o curso de AgenteComunitário de Saúde, que, apesar dasdiretrizes curriculares elaboradas pelosMinistérios da Saúde e da Educação de-terminando que o nível de escolaridadedo ACS deva ser o médio, ainda é ofere-cido por poucas escolas no país. A maio-ria das instituições de ensino ofereceapenas o primeiro módulo do curso, comaproximadamente 400 horas.

Outros cursos não sofreram alte-rações ou tiveram mudanças muito pe-quenas na nomenclatura, como o Técni-co em Enfermagem – que poderia serencontrado nas escolas com o nome deTécnico de ou na Enfermagem –, Técni-co em Farmácia, Técnico em HigieneDental (THD), Técnico em Imobiliza-ções Ortopédicas, Técnico em Nutriçãoe Dietética, Técnico em Radiologia, Téc-nico em Segurança do Trabalho, Técnicoem Vigilância em Saúde e Técnico emRegistros e Informações em Saúde.

Mas nem todos os nomes esco-lhidos agradaram a todos os especialis-tas. Muitos provocaram longas discussões,como conta Marcos Antonio: “Na minhaárea, defendi que o melhor seria termosduas denominações: Análises Clínicas,para o curso com o currículo tradicional, eBiodiagnóstico em Saúde, para aquelesque, além das disciplinas oferecidas naprimeira habilitação, ainda acrescentemoutras, ampliando o campo de atuação doaluno”, conta Marcos. Segundo ele, adiferença é que o curso de Biodiagnósticoprepara o estudante para trabalhar napesquisa e na produção de medica-mentos e vacinas, além dos laboratóriosde exames.

ilustração

Page 11: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 11

Catálogo Nacional de Cursos Técnicos unifica nome das carreiras Documento fixou 185 nomes para os cursos profissionais de nível médio depois de ficar cinco meses em consulta pública

Outra mudança que recebeu críticas foi o nome escolhido para o Técnico emGerência de Saúde, que tinha como outra opção a denominação de Gestão em Servi-ços de Saúde. “No campo da gestão, há um grande número de profissionais de nívelsuperior, principalmente nas unidades de maior complexidade. Nós não achamosque, pelo fato de trabalharmos com profissionais de nível médio, deveríamos ter umaoutra nomenclatura. Mas o MEC fez essa distinção”, explica Gilberto Estrela,parecerista da EPSJV nessa área. Para André Malhão, diretor da Escola Politécnica, adiferença de nível médio para superior deveria ser feita apenas com os nomes ‘técni-co’ e ‘tecnólogo’, que indicam os ‘níveis’: “A justificativa dada para que o curso técnicofosse chamado de gerência e não de gestão, como o superior, foi o fato de o primeiroser mais executivo. Penso que houve um equívoco e um preconceito nessa escolha. Oque define se é nível médio ou não é o nome que antecede. Ou seja: graduação,licenciatura, técnico em alguma coisa. Como é feito, por exemplo, com técnico emadministração. A graduação leva o mesmo nome. No caso discutido, gestão seriamelhor porque é uma área de conhecimento”, opina.

Mais um questionamento que apareceu durante as discussões foi a ratificaçãode cursos que deveriam ser especializações e não habilitações técnicas. “Foi aprovadoe consta do Catálogo o curso Técnico em Citopatologia, que existe em algumasescolas do Brasil, mas que, na nossa opinião, faz mais sentido como especialização.Isso porque para o profissional dar o diagnóstico de câncer, é preciso que ele tenhaum embasamento muito grande em outras disciplinas. O ideal é que, primeiro, elefaça o Técnico em Análises Clínicas ou Biodiagnóstico e, depois, a especialidade”,explica Marcos. Para André Malhão, essa discussão é uma das vitórias do Catálogo:“Daqui para frente, poderemos discutir outros cursos que foram denominados nesseprimeiro momento como técnicos, mas que talvez sejam, na verdade, especializações.Esse é o caso de outros cursos da saúde, como Citotecnia e Hemoterapia. São habili-tações que precisam de muito tempo de prática, mas isso, por si só, não justifica quesejam cursos técnicos. E esse é um debate interessante de ser feito nos próximosanos. A área de laboratório é cada vez mais importante, pois com o aumento daexpectativa de vida, o conhecimento novo impacta não só a assistência, mas tambémo apoio ao diagnóstico”, diz.

Além disso, como o Catálogo se propôs a colocar uma descrição do cursobaseada no currículo, algumas habilitações que não sofreram alteração de nome rece-beram sugestões de especialistas para mudança no perfil profissional. Esse foi o casodo Técnico em Radiologia. “O nome foi consolidado sem problema. A modificação foina descrição das atividades desse profissional. Conseguimos aprovar um perfil quedelimita bem a atuação do técnico, que antes se confundia com a do tecnólogo.

Acordamos que o profissional de nívelmédio fará apenas a radiografia tradicio-nal e auxiliará nas tomografias e demaisatividades da área”, conta Flávio AugustoSoares, chefe do Departamento Acadê-mico de Saúde e Serviços do CentroFederal de Educação Tecnológica deSanta Catarina (Cefet-SC), um dospareceristas do Catálogo.

Oportunidade para mudar

As instituições de ensino quequiserem sugerir alterações de nomen-clatura poderão, anualmente, nos mesesde agosto e setembro, encaminhar aoMEC suas propostas, com as devidas jus-tificativas técnicas. Este ano, isso já foicolocado em prática. “O formulário paraas propostas ficou no site do MEC e, osque desejaram sugerir alterações, envia-ram seus pareceres pelo correio para oministério. Para o ano que vem, preten-demos que isso tudo seja feito online”,informa a diretora da Setec. “Vamostentar nos associar a outras escolas esugerir a volta do curso Técnico emBiodiagnóstico no próximo ano. Essa re-visão anual é fundamental”, adianta oprofessor Marcos Antonio.

Para acompanhar a implementaçãodos novos nomes, assim como as pro-postas de alterações, o MEC irá criar aComissão Nacional de Acompanhamen-to do Catálogo que, segundo Andréa,deverá ser lançada até o início do próxi-mo ano. “Ela será responsável por verquais são as lacunas do Catálogo e anali-sar as sugestões enviadas. Além disso,queremos que esse grupo ajude na ela-boração de outras políticas públicas paraa educação”, afirma a diretora da Setec.

Para André Malhão, essa iniciativado Ministério da Educação é fundamen-tal. “O caráter nacional é muito impor-tante na medida que agora temos maisclareza de quais são as habilitações técni-cas de nível médio. Isso é um ganho.Abre-se a possibilidade do debate, quedeve prosseguir”, diz.

Habilitação e Especialização Técnica

Um curso técnico pode ser integrado, concomitante ou subseqüente ao EnsinoMédio. No primeiro caso, o aluno tem matrícula única. No segundo, ele faz o cursotécnico ao mesmo tempo em que o médio, mas tem duas matrículas, podendo inclu-sive estudar em diferentes escolas. A última modalidade é realizada pelos estudantesque já concluíram o Ensino Médio e fazem a habilitação profissional posteriormente.Cada área profissional tem uma carga horária mínima, determinada pela ResoluçãoCNE/CEB nº 04/99. No caso da saúde, os cursos de educação profissional devemter, no mínimo, 1.200 horas. As especializações técnicas buscam aprofundar conheci-mentos das habilitações profissionalizantes e devem ser realizadas após o EnsinoMédio Profissionalizante.

Page 12: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200812

Saúde em 1800Mesmo sem formação

oficial, terapeutas

não-acadêmicos se

inseriam nas práticas

médicas da época e

tinham grande

prestígio junto à

população Raquel Torres

Um homem com problemas nas vistas se dirige a uma loja de barbeiro. Com anavalha, o profissional faz um pequeno corte no canto da testa do enfermo,até que saia um pouco de sangue. O barbeiro toma então uma ventosa – um

pequeno cone feito de chifre, vazado nas duas extremidades – e coloca sua base sobrea região que está sangrando. Com a boca, suga a outra extremidade para que sejaretirado todo o ar e, por fim, cobre o orifício com argila. Repete o mesmo processo nooutro canto da testa e deixa as duas ventosas fazerem efeito: devido ao vácuo formadodentro delas, o sangue do paciente começa a sair. Com alguns mililitros de sangue amenos, o homem paga ao barbeiro e deixa a loja, aliviado.

Essa era uma cena comum alguns séculos atrás, quando a sangria era uma dasatividades mais importantes para as ciências médicas. Naquele tempo, os tratamen-tos se baseavam em uma teoria que vinha desde a Grécia Antiga: a dos humores. Deacordo com ela, o corpo humano era composto por quatro humores (ou líquidos): osangue, a fleuma (secreções mucosas), a bile amarela (secretada pelo fígado) e a bilenegra (secretada pelo baço). Acreditava-se que era preciso haver um equilíbrio entreesses líquidos. Então, se havia excesso de fluidos em uma parte do corpo, apareciamsintomas como tosse e vômito, o que significava que a natureza estava tentandoexpulsar esses humores e restabelecer a harmonia. “A sangria era uma das maneiras deacelerar a retomada do equilíbrio, daí sua importância”, explica Tânia Salgado Pimen-ta, historiadora e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Por isso, esse era um método muito utilizado para curar as mais variadas molés-tias: reumatismos, catarros, doenças nos olhos, asma, febres e dores de dente eramtratadas por meio da aplicação de ventosas ou sanguessugas. Muitas vezes, a sangriaera praticada por barbeiros – que cortavam cabelo e barba e ainda eram músicos econsertavam meias. Além das lojas, havia também barbeiros ambulantes, que atendi-am nas praças e ruas movimentadas.

A Fisicatura-mor

Mas os tratamentos médicos não podiam ser realizados por qualquer pessoa.No Brasil, entre 1808 e 1828, todas as atividades médicas – ou ‘artes de curar’, comose dizia – eram regulamentadas por uma instituição chamada Fisicatura-mor, órgãoresponsável por conceder autorizações e licenças para a atuação dos terapeutas. As-sim, tanto os curandeiros como os terapeutas acadêmicos – médicos e cirurgiões – epráticos – sangradores ou barbeiros, boticários e parteiras – precisavam ter autorizaçãopara atuarem. “E a Fisicatura-mor delimitava bem o que cada categoria podia fazer:a utilização de ervas medicinais nativas para curar doenças leves, por exemplo,era função do curandeiro; a parteira, por sua vez, só podia realizar partos; já asescarificações e a aplicação de ventosas e sanguessugas ficavam a cargo dos barbeirose sangradores”, diz Tânia.

Essas regras, no entanto, não eram seguidas à risca pelos terapeutas, que,mesmo com a existência da Fisicatura-mor, atuavam de maneira mais ampla. “Quandotrabalhavam sob as vistas dos fiscalizadores, eles exerciam apenas as atividades para as

Gravura de Jean Bapt i s te Debret , de 1826, most ra a prát ica da sangr iaGravura de Jean Bapt i s te Debret , de 1826, most ra a prát ica da sangr iaGravura de Jean Bapt i s te Debret , de 1826, most ra a prát ica da sangr iaGravura de Jean Bapt i s te Debret , de 1826, most ra a prát ica da sangr iaGravura de Jean Bapt i s te Debret , de 1826, most ra a prát ica da sangr ia

De

bre

t, Jea

n B

ap

tiste. ‘C

irurg

ião

ne

gro

co

loc

an

do

ve

nto

sa’. A

ce

rvo

do

mu

seu

Ch

ác

ara

do

u

Page 13: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 13

quais possuíam autorização. Mas, quan-do estavam em áreas mais afastadas, commenos médicos e menos fiscalização, re-alizavam outros papéis. Era comum quesangradores e parteiras atuassem comocurandeiros, administrando ervas e fazen-do diagnósticos”, conta a pesquisadora.

A formação

Médicos e cirurgiões só eram au-torizados se tivessem feito cursos for-mais, no Brasil ou na Europa. Os práticosprecisavam fazer uma prova para conse-guirem autorização na Fisicatura-mor e,embora não houvesse cursos para essasespecialidades, era necessária uma com-provação de que o ‘candidato’ havia pas-sado por algum aprendizado. “Para serconsiderado apto a fazer a prova, era pre-ciso ter um atestado assinado por algummestre que já exercesse a atividade afir-mando que o candidato havia aprendidoas técnicas”, explica Tânia.

Embora esses terapeutas não ti-vessem formação especializada e nenhumgrau de escolaridade fosse exigido, épossível pensar uma analogia entre as suasações e o trabalho dos técnicos em saúdehoje: mesmo sem o chamado saber aca-dêmico, eles exerciam atividades essen-ciais para os tratamentos e estavam deacordo com a ciência daquele tempo.

Mas Tânia conta que, apesar daimportância dessas práticas, elas eramconsideradas ‘menores’. A sangria, porexemplo, era estigmatizada por ser umaatividade manual em que se lidava dire-tamente com sangue. A lógica quehierarquizava as categorias médicas era,aliás, bastante centrada na divisão entretrabalho manual e intelectual. Nesse sen-tido, os médicos ocupavam uma posiçãode grande prestígio. Em seguida vinhamos cirurgiões, que, apesar de realizarematividades manuais, tinham um conheci-mento técnico mais amplo que o desangradores e parteiras. “É curioso ob-servar que os cirurgiões também precisa-vam saber sangrar: para conseguirem au-torização, era necessário que eles fizes-sem uma prova de capacidade parasangrador. Mas eles raramente exerciamessa atividade, justamente por contado preconceito que a envolvia. Na práti-ca, o cirurgião apenas recomendava otratamento ao paciente e indicava osangrador”, afirma.

Com menor prestígio estavam osterapeutas práticos e, por fim, os curan-

deiros, desvalorizados por trabalharemcom conhecimentos populares emrelação a medicamentos, ao contráriodos boticários. “As atividades ‘menores’eram, em geral, realizadas por escra-vos, ex-escravos e mulheres”, comentaa pesquisadora.

Diferentes motivações

Apesar de toda a concepção teó-rica por trás das práticas terapêuticas, nemsempre esses conceitos eram levados emconsideração pelos práticos. Isso porquea utilização da sangria e de ervas medici-nais estava longe de ser uma exclusivida-de da medicina tradicional.

Segundo Tânia, essas ações erammuito comuns tanto na medicina euro-péia quanto nas tradições africanas e in-dígenas, ainda que ocorressem por dife-rentes razões. Por isso, embora algunspráticos se aproximassem mais dos ci-rurgiões e médicos, atentos aos conheci-mentos acadêmicos, isso não era umaregra. “Essas práticas devem ter se espa-lhado pelo Brasil logo que os colonos eu-ropeus se instalaram, mas o uso de san-gria e ervas medicinais é muito mais anti-go. Aqui, certas comunidades indígenasjá faziam algo similar à sangria para retirarespíritos malignos. Na África, essa ativi-dade era realizada há muito tempo, coma mesma finalidade. E a própria culturapopular européia, de forma geral, associ-ava doenças à dimensão espiritual. Naverdade, indígenas, europeus e africanosagiam de forma parecida, mas com moti-vações diferentes. Como muitos práticoseram africanos, era comum que eles fi-zessem suas atividades pensando a do-ença em relação a questões espirituais”,observa Tânia.

O monopólio legal dos médicos

Enquanto funcionou a Fisicatura-mor, os terapeutas práticos eram reco-nhecidos como categorias legítimas, muitoembora seu trabalho não fosse valori-zado como o de médicos e cirurgiões.No entanto, o fim da década de 1820e o início dos anos 1830 trouxeram algu-mas novidades.

Quando a Fisicatura-mor foiextinta, em 1828, o governo começou aredefinir o que seriam práticas tera-peuticas legítimas e a fiscalização e auto-rização das atividades ficou por conta dasCâmaras Municipais. “Nessa época,

curandeiros e sangradores foramdesautorizados. Mas a proibição não con-seguia reprimir, de fato, a atuação dessesterapeutas, que continuaram realizandosuas atividades, com grande apoio dapopulação”, diz Tânia.

Em 1832, as Academias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e da Bahiaforam transformadas em Faculdades deMedicina. Os cirurgiões passaram a serenquadrados na categoria de médico euma preocupação maior com a formaçãopassou a existir. O problema é que nãoera simples ingressar nas faculdades:entre as exigências, estavam a apresen-tação de um atestado de bons costumesemitido pelo Juiz de Paz da freguesia e oconhecimento de latim e inglês ou fran-cês. Além disso, a taxa de matrícula eracara para os padrões da época.

De acordo com Tânia, a criaçãodas faculdades no Brasil marcou o iníciodo monopólio legal das artes de curar porparte dos médicos. Além do curso médi-co-cirúrgico, de seis anos, as faculdadespassaram a oferecer um curso de farmá-cia e um de partos. Assim, essas institui-ções ficaram responsáveis por certificarmédicos, farmacêuticos e parteiras.

A lei estabelecia ainda que nãoseriam mais concedidas licenças parasangrador. “Eles passaram a ser conside-rados ‘africanos boçais sem formaçãoadequada’. Depois que as faculdades co-meçaram a se estruturar, a receber maisalunos e atuar de formas mais diretas noshospitais da Santa Casa da Misericórdia,surgiram regras para que os próprios alu-nos passassem a ser responsáveis pelasangria. É claro que continuava sendo umaatividade menor, que não seria exercidapelos médicos, mas ela passou a ser con-siderada importante demais para serpraticada por pessoas sem nenhumaformação acadêmica”, conta.

Mas, apesar das novas leis, aatuação dos práticos não se esgotou:mesmo após a desautorização oficialde sangradores e curandeiros e da des-qualificação das parteiras, ainda foramconcedidas licenças a alguns deles.“Como nos tempos da Fisicatura-mor, emalguns casos eles ainda eram aceitos ondenão houvesse médicos e cirurgiões sufi-cientes. A verdade é que os terapeutasnão-acadêmicos continuaram a praticarsuas atividades, inclusive anunciando seusserviços nos jornais”, diz Tânia.

Page 14: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200814

21 / novembroFoi criado, em 1968, o Conselho Supe-rior de Censura.

26/ novembroCom o tema 'Efetivar o Sistema Nacio-nal de Vigilância Sanitária: proteger e pro-mover a saúde construindo cidadania', foirealizada, entre os dias 26 e 30 de no-vembro de 2001, em Brasília, a I Confe-rência Nacional de Vigilância Sanitária.

13 / dezembroEm 68, entrou em vigor o AtoInstitucional nº 5 (AI-5), que suprimiuas liberdades democráticas no Brasil.Com o AI-5, o Congresso Nacional foicolocado em recesso e vários parlamen-tares tiveram seus mandatos cassados.

PRA L

EMBR

AR

Cou

sas

da C

ôrte

Cou

sas

da C

ôrte

Cou

sas

da C

ôrte

Cou

sas

da C

ôrte

Cou

sas

da C

ôrte

- instrucção moral-instrucção religiosa-leitura-escripta-noções de cousas-noções essenciais de grammatica-princípios elementares dearithmetica

-systema legal de pesos e medidas-noções de historia e geographiado Brazil-elementos de desenho linear-rudimentos de musica, com exercí-cio de solfejo e canto-gymnastica-costura simples (para as meninas)

Em 1879, o decreto nº 7.247Em 1879, o decreto nº 7.247Em 1879, o decreto nº 7.247Em 1879, o decreto nº 7.247Em 1879, o decreto nº 7.247mudou o currículo do ensinomudou o currículo do ensinomudou o currículo do ensinomudou o currículo do ensinomudou o currículo do ensinoprimário, sem esquecer a for-primário, sem esquecer a for-primário, sem esquecer a for-primário, sem esquecer a for-primário, sem esquecer a for-mação das futruras ‘donas demação das futruras ‘donas demação das futruras ‘donas demação das futruras ‘donas demação das futruras ‘donas decasa’: elas aprendiam corte ecasa’: elas aprendiam corte ecasa’: elas aprendiam corte ecasa’: elas aprendiam corte ecasa’: elas aprendiam corte ecostura. Ao lado, a lista decostura. Ao lado, a lista decostura. Ao lado, a lista decostura. Ao lado, a lista decostura. Ao lado, a lista dematérias dadas para as crian-matérias dadas para as crian-matérias dadas para as crian-matérias dadas para as crian-matérias dadas para as crian-ças do Império.ças do Império.ças do Império.ças do Império.ças do Império.

Em 3 de outubro de 1832 foi referendada pelo ministrodo Império, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro,uma lei para reorganizar o ensino da saúde na Corte.Decidiu-se que o curso médico-cirúrgico passaria a serde seis anos (antes eram apenas quatro), que haveriaum curso de farmácia de três anos e um de formação departeiras. Mas, para que o aluno fosse aceito nos cursos,era preciso atender aos seguintes pré-requisitos: ter16 anos completos, saber latim e inglês ou francês,filosofia racional e moral, aritmética e geometria, alémde apresentar um Atestado de Bons Costumes, emitidopelo juiz da paz da freguesia.

Moral e Bons Costumes

ALM

ANAQ

UE

Din

acio

Page 15: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 15

ESTER BUFFA

Anos de chumbo na educaçãoJuliana Chagas

A no de 1968: revolução po- lítica e cultural mundial. No Brasil, ficou conheci-

do como o início dos Anos deChumbo, época do endurecimen-to da repressão da ditadura mili-tar, com o aumento de prisões etorturas. Um dos marcos dessemomento é o Ato Institucionalnº 5 (AI-5), de 13 de dezembro,que determinou o fechamento doCongresso Nacional, suspendeu ohabeas corpus para crimes políticose intensificou a censura, dentreoutras ações. Antes disso, as mu-danças que estavam por vir já ha-viam sido anunciadas no campoeducacional. No final de novem-bro, os militares promulgaram alei nº 5.540, da Reforma Universi-tária. O ensino profissional foimodificado em 1971, com a leinº 5.692, que instituiu o segun-do grau técnico obrigatório.Para falar sobre as mudanças napolítica educacional durante o re-gime militar, convidamos EsterBuffa, doutora em Ciências daEducação pela Université RenéDescartes – Paris V, Sorbonne,professora da Universidade Fede-ral de São Carlos e autora do livro‘A educação negada: introdução aoestudo da educação brasileira con-temporânea’, junto com PaoloNosella. Para a publicação, Esterentrevistou pessoas que partici-param da concepção de educaçãoda ditadura pós-64 e nomes daeducação, como Paulo Freire e JoelMartins. Nesta entrevista, Esteranalisa as políticas educacionaisinstituídas pelos militares, citan-do as principais mudanças e suasconseqüências e explica como foifeita a elaboração do livro.

Havia um movimento dos edu-

cadores nos anos 50/60 que foi

reprimido pela ditadura militar.

Que mudanças os professores

propunham para o sistema edu-

cacional brasileiro? Alguma

coisa foi implementada antes

de 1964?

Uma das reivindicações dos professo-res era a aprovação da Lei de Diretri-zes e Bases (LDB) da educação nacio-nal. A Constituição Federal de 1946já falava que ela deveria ser elaborada.Mas o primeiro projeto só foi apresen-tado em 1948. E sua aprovação é de1961. Ela foi fruto de muitos compro-missos e conciliações das diferentesforças que lutavam pela educação noBrasil. Por isso, a Lei, que deveria falarda escolarização como um todo, dei-xava de fora a pré-escola, por exemplo.

O que mudou depois do

Golpe de 1964 na educação

brasileira?

Com o início do regime ditatorial, osmilitares não revogaram a lei da edu-cação nacional, mas foram mudando aLDB progressivamente, por meio de

outras leis. A primeira modificaçãoaconteceu em 1968, ano da ReformaUniversitária, que era uma coisa pelaqual os estudantes reclamavam desdeo início dos anos 60. Os universitáriosqueriam mais verbas e mais vagas paraas instituições de ensino superior. En-tão, em novembro de 68, os militarespromulgaram a Lei nº 5.540, que éconsiderada a lei da modernização dauniversidade brasileira. Uma moder-nização entre aspas. De fato, ela aca-bou com a cátedra, instituiu os depar-tamentos e um novo tipo de vestibu-lar, classificatório. Mas também ten-tou desarticular politicamente os es-tudantes, já que mudou o modelo an-terior, em que uma turma freqüentavaas mesmas disciplinas até o fim docurso, sempre junta.Além disso, não acabou com o princi-pal problema apontado pelos jovens:os excedentes. Explico: uma pessoafazia o vestibular para uma determi-nada escola de uma universidade pú-blica; a de medicina, por exemplo.Digamos que naquela escola houves-se 50 vagas para o curso. E que, quan-do saiu o resultado, um aluno conse-guiu a média pra passar, mas ficou em70º lugar. Então, ele era consideradoum excedente. Passou na prova, masnão entrou na universidade por faltade vaga. Por causa disso, os estudantesfaziam muito barulho. Exigiam maisverbas e mais vagas.Então, veio a Reforma Universitária,mas ela não resolveu esse problema.Apenas acabou com a figura do exce-dente e não com o excedente propria-mente dito. Uma vez que o vestibularpassou a ser classificatório, se umadeterminada escola tem 50 vagas, são

Ce

sar S

pa

de

lla/U

FC

ar

Page 16: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200816

chamados os 50 primeiros. Os outrossequer ficam sabendo se foram apro-vados, que nota tiraram. Houve umamudança muito grande, mas não erana direção que os estudantes queriam.Como era um momento de grande re-pressão, a coisa teve que ser engolida.

Qual é a relação entre a lei da

Reforma Universitária e o Ato

Institucional nº 5 (AI-5)?

Segundo alguns estudiosos, a lei da Re-forma Universitária teria a função deaplacar os ânimos dos estudantes, queestavam bastante exaltados. Porque,apesar da repressão militar, os alunosprotestavam. Então, essa era mais umaforma de tentar silenciá-los.

Muitas pessoas falam da rela-

ção próxima dos militares bra-

sileiros com os Estados Unidos.

Os norte-americanos influenci-

aram a política educacional do

Brasil? Como?

Durante a ditadura, houve os famososacordos entre a USAID (Agência dosEstados Unidos para o Desenvolvi-mento) e o MEC para melhorar a edu-cação brasileira. Eram contratos maisou menos pontuais, que previam aportefinanceiro. O governo brasileiro tam-bém se cercou de consultores norte-americanos. Um deles, o RudolphAtcon, veio ao Brasil e visitou algu-mas universidades. Fez isso tambémem outros países da América Latina,como o Chile. E, depois disso, ele fezum relatório.Houve dois documentos básicos quesubsidiaram a elaboração da lei daReforma Universitária: os relatóriosMeira Mattos e Atcon. Os dois cita-vam as constantes manifestações dosestudantes, falavam que a universida-de brasileira era muito retrógrada epropunham uma modernização. OAtcon também tem outra publicação,menos conhecida, o ‘Manual sobre oplanejamento integral do campus uni-versitário’, que influenciou a nova or-ganização dos prédios das nossas uni-

versidades. Na sua concepção, a uni-versidade deve, por exemplo, colocarseus serviços nas extremidades paraevitar que gente de fora circule pelosprédios. Então, se existir um hospitaluniversitário, ele tem que estar logona entrada do campus. Outra regra, se-guida nos Estados Unidos, é afastar auniversidade da influência ‘pernicio-sa’ das cidades. Então, as instituiçõesde ensino superior ficam no campomesmo ou na periferia da cidade, si-mulando uma espacialidade rural.Os militares decidiram adotar essemodelo norte-americano e começarama construir o campus das universida-des, normalmente fora da cidade. An-tes da ditadura, os prédios ficavam nacidade mesmo. A Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro (UFRJ), porexemplo, tinha prédios na Praia Ver-melha e no Centro. E o que governoditatorial fez? Construiu a CidadeUniversitária na Ilha do Fundão, paraonde foram transferidos a maioria doscursos. A intenção era abafar a movi-mentação estudantil.

E o que mudou nos currículos?

A modificação mais significativa nocurrículo foi a instituição dos crédi-tos. Ou seja: antes um aluno que cur-sasse história, por exemplo, fazia to-das as disciplinas com a mesma tur-ma. Depois da lei nº 5.540, as disci-plinas do curso de história, continu-ando no mesmo exemplo, passaram areceber matrícula de estudantes dequalquer curso da área de humanas,misturando estudantes de diferentescursos e períodos. Isso esfacelou a uni-dade das turmas.

Em relação ao ensino profissio-

nal, em 1971, o governo promul-

gou a lei nº 5.692, que fixou

diretrizes para o 1º e 2º graus

(hoje Ensino Fundamental e

Médio). Na prática, quais fo-

ram as modificações feitas nos

cursos técnicos?

Antes da lei nº 5.692, havia o 2º grauclássico, voltado para aqueles que fa-riam um curso universitário da área dashumanidades, e científico, para as car-reiras de exatas. Mas o que começou aacontecer é que a pessoa fazia o clássi-co ou científico e não ia para o ensinosuperior. Ia trabalhar como secretária,por exemplo. E não tinha sido prepa-rada para exercer essa profissão.Então, essa questão de dar umaterminalidade para o 2º grau – discu-tida desde o Império – estava postanovamente.Os cursos técnicos, por sua vez, existi-am, mas eram paralelos ao 2º grau, ouseja, não se cruzavam nunca com o se-cundário. Isso acontecia desde o go-verno Vargas, quando GustavoCapanema era Ministro da Educaçãoe Saúde. Por exemplo: se você entras-se numa escola profissional e fizessequatro anos, que corresponderiam ao2º grau clássico ou científico, e depoisquisesse ir para a universidade, nãopoderia, teria que fazer tudo de novo.E os industriais criticavam isso, dizen-do que era escolar demais, que não pre-parava para o trabalho. Queriam que,em pouco tempo, as pessoas pudessemtrabalhar com as máquinas. Mas aescola, sobretudo a pública, não tinhaas máquinas mais modernas (o Senainasce como uma proposta dos in-dustriais de formar trabalhadoresespecializados em pouco tempo).Por isso, quando a lei 5.692 foi parao Congresso, os deputados acharammaravilhoso. Era a oportunidade deformar técnicos de nível médio, quesupostamente a sociedade estavaprecisando. Digo ‘supostamente’porque não havia nenhum estudoque comprovasse isso.Então, o que os militares fizeram? Ga-rantiram, em lei, uma terminalidadereal para o Ensino Médio, integrandoo ensino profissional a ele, obrigato-riamente. Existiam dois objetivos nis-so: o primeiro se refere ao fato de o

Page 17: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 17

ma

ra d

os D

ep

uta

do

s

Deputados e senadores promulgamDeputados e senadores promulgamDeputados e senadores promulgamDeputados e senadores promulgamDeputados e senadores promulgam

a Const i tu ição Cidadãa Const i tu ição Cidadãa Const i tu ição Cidadãa Const i tu ição Cidadãa Const i tu ição Cidadã

país estar se desenvolvendo e, por isso,precisar de mais técnicos. Em segun-do lugar, a lei nº 5.692 teve o que oprofessor Luiz Antônio Cunha, da Es-cola de Educação da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ), cha-ma de “função contentora da lei”. Querdizer: os militares acreditavam – mes-mo que isso não fosse verbalizado –que se os alunos do Ensino Médio,que estava sem dúvida alguma rece-bendo mais alunos do que antes,fossem preparados para uma profissão,muitos deixariam espontaneamentede procurar o ensino superior. E aque-les, que mesmo assim, se aventuras-sem, iriam se deparar com um vesti-bular classificatório.Só que a lei não pegou. O governo nãodestinou recursos suficientes. As es-colas particulares até tinham recursos,mas não tinham interesse em oferecero curso. E as escolas públicas não ti-nham recursos pra montar escolas pro-fissionais de verdade. Então, as esco-las escolhiam os cursos técnicos queiriam dar e, claro, quando era uma es-cola acostumada a preparar para o ves-tibular, oferecia, por exemplo, o técni-co em análises clínicas e dava aulasde biologia para o aluno passar novestibular da área da saúde. Assim,em 1982, foi promulgada a lei nº7.044, que desobriga que o ensinoprofissional seja junto com o médio,ficando a cargo da instituição de ensi-no fazê-lo ou não.

Com a lei nº 5.692, duas disci-

plinas se tornam obrigatórias:

educação moral e cívica e edu-

cação física. Isso ’pegou’?

Sim. Não só no 1º e 2º graus, como nauniversidade também. Os militaresachavam que no Brasil todo mundo eramuito relaxado com o civismo. Então,a obrigatoriedade de uma disciplinacomo Educação Moral e Cívica era ummeio de formar as pessoas para defen-der o seu país e obedecer às leis; detornar o cidadão menos questionador

e mais obediente. Isso continuou va-lendo mesmo depois da lei nº 7.044.No ensino superior, essa disciplinanormalmente era dada por professoresconvidados. E ela acabou indo de en-contro ao que os próprios militaresqueriam porque tinha docente queaproveitava esse espaço justamentepara fazer a crítica ao regime.

Outro ponto colocado na lei nº

5.692 é a relação entre desen-

volvimento e educação. Em

que ela é baseada?

Na época da ditadura, essa relação ficamuito clara. Os militares adotaram aTeoria do Capital Humano, que diziaque educação não é gasto, é investi-mento no desenvolvimento do país.

Outro programa educacional

do governo militar foi o Mobral

(Movimento Brasileiro de Al-

fabetização), implementado

pelo então ministro da Edu-

cação, Jarbas Passarinho. De

que forma esse projeto contri-

buía para a manutenção do

status quo da ditadura?

Os militares acabaram com todo o mo-vimento da educação de adultos doinício dos anos 60, liderado por PauloFreire, que tentava alfabetizar os adul-tos e, ao mesmo tempo, despertar suaconsciência política. Esse método dealfabetização foi substituído peloMobral, que é uma técnica desidrata-da. Trabalhava-se com palavras gera-doras, como Paulo Freire propunha, maseram palavras que não davam margema discussões muito elucidativas. Nãotinha nada a ver com aqueles movi-mentos mais contestatórios, que alfa-betizavam discutindo a política dopaís. E foi um fracasso.Por que, em geral, no mundo inteiro, oensino primário dura quatro ou cincoanos? Porque é o período necessáriopara que o aluno incorpore a leitura, aescrita, o cálculo e aprenda de uma

forma definitiva. O problema de cam-panhas de alfabetização, por melho-res que sejam, é que as pessoas atéaprendem, mas esquecem. O alunoque não é inserido num círculo alfabe-tizado em pouco tempo esquece. E oMobral foi apenas uma campanha. Nãodeu continuidade à educação.

Você é autora, junto com Paolo

Nosella, do livro ’A educação

negada: introdução ao estudo

da educação brasileira con-

temporânea’. Nele, vocês entre-

vistaram nomes importantes da

educação, como Paulo Freire,

e pessoas que participaram da

elaboração de políticas educa-

cionais, inclusive durante a di-

tadura militar, como Jarbas

Passarinho. Como foi a escolha

dos personagens?

Queríamos, na época, começo dos anos90, falar sobre a educação brasileiracom aqueles que tinham vivido as di-versas mudanças, seja como professor,seja como político. Buscávamos a his-tória oral, as memórias, mais do que as

correntes pedagógicas, que já tínha-

mos nos livros. Procuramos, então, pes-soas que quisessem contar o que vive-

ram e como enxergavam a educação.

Também era importante entrevistarpessoas com concepções de sociedade

e educação diferentes para não termos

um único discurso.O livro é resultado de uma pesquisa

financiada pelo Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas EducacionaisAnísio Teixeira (Inep). As entrevistas

foram bem longas, mas no livro há ape-

nas trechos delas. Conversamos com oPaulo Freire, por exemplo, durante

mais de quatro horas. O mesmo ocor-reu quando falamos com o Passarinho.Lembro que esta última entrevista foimuito boa, principalmente porque elenão estava com nenhum cargo políti-co e pôde falar de forma mais solta.

Page 18: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200818

Trabalhadores de nível mé dio cuidam da gestão do SUS Técnico em Gestão de Saúde atua no planeja mento, controle e avaliação das políticas públicas

Maíra Mathias

Imagine que uma unidade de saú-de seja como um castelo de car-tas. A última carta desse castelo é

o atendimento, que será chamado deatividade-fim. As cartas que estão nabase representam a infra-estrutura daunidade, ou seja, para que se possaconstruir um castelo sólido não hácomo abrir mão de uma estrutura pre-dial adequada. Afinal, rachaduras e in-filtrações não rimam com bom aten-dimento. Na medida em que avança-mos, encontramos cartas que tantodependem de sustentação quanto sus-tentam. Essas são as atividades-meiode um serviço, que em uma unidadecorrespondem aos setores administra-tivos: recursos humanos, compras,financeiro, almoxarifado, entre outros.Embora muitas vezes passe desa-percebido pelos usuários, o bomorquestramento dessas ações é indis-pensável para garantir o sucesso dasatividades-fim. Nesta edição, vamosconhecer melhor o trabalho de um dosprofissionais cuja função é garantir aresolutividade desses processos: otécnico em gerência de saúde.

Segundo o Catálogo Nacional deCursos Técnicos (ver pág. 8), o técni-co em gerência de saúde tem como atri-buições o planejamento, controle eavaliação da implementação de polí-ticas públicas de saúde. Para isso énecessário que ele conheça bem asespecificidades do Sistema Único deSaúde (SUS) e esteja a par de todas asatividades que constituem a gestão emsaúde. De acordo com Gilberto Estre-la, coordenador do Laboratório de Edu-cação Profissional em Gestão em Saú-de (Labgestão) da Escola Politécnicade Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o objetivo dessa formação écontribuir para que esse profissional

alie competências administrativas auma dimensão política. “Um bom téc-nico é aquele que, além de conhecermuito bem a sua função, também écapaz de entender a dinâmica de to-das as atividades desenvolvidas na suaunidade”, afirma, exemplificando: “Seele trabalha no setor de compras, devesaber quando fazer uma licitação ounão, controlar o que está em falta,otimizar os recursos. Mas nunca devese restringir a isso. Empoderar-se doprocesso significa construir um perfilde profissional que seja crítico, refle-xivo e tenha a capacidade de con-tribuir nos processos políticos da to-mada de decisão”, completa.

A guinada da gestão

Essa perspectiva política dagestão, no entanto, não esteve sempreem voga. Gilberto conta que, em suagênese, a concepção de gestão nadatinha a ver com emancipação. “Nomundo do trabalho, a partir da décadade 50, surgiu um campo de conheci-mento denominado administração ci-entífica, voltado, principalmente, paraa indústria. Ford, Taylor e Fayol intro-duziram a idéia de gerência. Para eles,o ideal era criar condições para quehouvesse mais produtividade. Comoeles planejavam fazer isso? Com ogerenciamento das ações, dos serviços,dos processos de trabalho”, informa.Segundo ele, o panorama começou amudar a partir dos anos 80. “Nessemomento, o campo da gestão passou aagregar não só uma concepção técni-ca, mas também um caráter político.O SUS foi pensado assim”, diz.

Gilberto lembra que, no cam-po da saúde, as mudanças acompanha-ram as bases sobre as quais o SUS foi

construído. “A década de 80 foi ummarco estratégico para as mudançasque ocorrem na organização do siste-

Frederick Taylor

Autor de “Os princípios daadministração científica”, de 1911, oengenheiro norte-americano inovouao propor estratégias que aumenta-vam a produtividade das indústrias,a partir da intensificação da divisãodo trabalho. Se para você soa absur-do que a tarefa de um trabalhadorseja apertar um único parafuso du-rante oito horas por dia, Taylor vianisso um processo produtivo racio-nalizado – e mais lucrativo. É do seunome que deriva a expressão‘taylorismo’.

Henry Ford

O industrial norte-americanoconseguiu superar Taylor ao organi-zar a produção de sua empresa, a FordMotor Company, em uma linha demontagem. A imagem não é desco-nhecida: uma enorme esteira, emtorno da qual os trabalhadores ficamposicionados esperando os produtoschegarem, para rapidamente, de-sempenharem sua tarefa. A idéia eracontrolar todos os movimentos dotrabalhador, para que nenhum gestofosse não produtivo. Seu nome deuorigem à expressão ‘fordismo’.

Henri Fayol

Terceiro pilar da administra-ção científica, o engenheiro de mi-nas francês propunha uma estruturaorganizacional que gerasse a máxi-ma eficiência. Para isso receitava quehouvesse um controle absoluto, in-clusive do afeto dos funcionários, quedeveriam ser mantidos satisfeitospara não gerarem desordem, e, con-seqüentemente, prejuízo.

Page 19: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 19

Trabalhadores de nível mé dio cuidam da gestão do SUS Técnico em Gestão de Saúde atua no planeja mento, controle e avaliação das políticas públicas

ma de saúde público brasileiro. O SUS jásurgiu com uma concepção ampliada degestão em saúde, em contraposição aomodelo anterior, hospitalocêntrico. Como SUS, outras estratégias foram criadas,como a atenção básica”, avalia o coordena-dor, que ressalta a importância de ligaresse contexto com as competênciasexigidas de um técnico em gestão hoje.Pedro Areas, técnico em gestão formadopela EPSJV e atual assessor de planeja-mento da direção do Hospital Geral deBonsucesso (HGB), no Rio de Janeiro,concorda: “Hoje, a partir da organizaçãoda atenção por níveis de complexidade, otrabalho do técnico envolve planejar e or-ganizar sistemas de referência e contra-referência”, afirma.

Funciona assim: vamos supor queum paciente atendido pela Estratégia deSaúde da Família (ESF) reclame de faltade ar, cansaço e tenha desmaios esporá-dicos. O procedimento da equipe deveser encaminhá-lo para uma unidade demédia complexidade, uma clínica, porexemplo, para que ele faça mais examesque facilitem o diagnóstico. A transiçãode um nível de atenção para outro se-guinte é chamado sistema de referência.Se os resultados indicarem um quadroque possa ser controlado sem precisarreferenciá-lo para uma unidade dealta complexidade, a clínica o contra-referencia de volta para a ESF, onde serámantida uma estratégia de vigilância. E éo técnico de gerência quem vai orques-trar essas idas e vindas, conectando-as.

Os desafios do técnico

“O maior desafio do trabalha-dor da gestão no SUS é fazer o SistemaÚnico funcionar”. A frase de GilbertoEstrela ilustra bem as contradições es-pecíficas da área. Formado pelo SUS, otécnico em gerência ainda é pouco

absorvido por ele. A resposta unânime

para o aparente paradoxo é a falta de

reconhecimento desse profissional.

Gilberto explica: “Na verdade, não há

um mercado constituído para o técnico

de gestão. Os trabalhadores são absorvidos

nos serviços de saúde através de concurso,

que, para as atividades de administração,

não exige formação específica. Em ge-

ral, eles recebem a denominação de au-

xiliar administrativo. O ideal seria a

criação de um plano de carreira es-

pecial para o técnico”. Bruna

Duque, recém-contratada pelo

HGB para a área de planeja-

mento e ex-aluna da EPSJV,

conta que quando come-

çou a estagiar, em 2007,

eram poucos os colegas que sabiam exatamente as atribuições de um técnico

em gerência. “A maioria das pessoas nunca tinha se deparado com esse tipo

de trabalhador e tinha dificuldade de entender o ganho que ele trazia para a

unidade de saúde”, lembra.

Uma das razões que explicam esse fenômeno é o fato de a própria forma-

ção não ser tão disseminada quanto deveria. Isa Chrisóstomo, coordenadora do

curso do Centro de Formação de Pessoal para os Serviços de Saúde Dr. Manuel

da Costa (CEFOPE/RN), uma das três Escolas Técnicas do SUS que oferecem

o curso, explica a importância de uma política de formação mais abrangente

para os trabalhadores da gestão: “O trabalhador sem formação aprende a fazer

observando os outros. Ele não vê o todo, pois só conhece a atividade que pratica.

Esse isolamento o leva a não saber o porquê da sua função, no que ela resulta e

qual a sua importância no processo. Não é raro um trabalhador da área de gestão

se sentir marginalizado. Nosso curso procura mostrar que sem as atividades-

meio seria impossível haver atendimento de qualidade, pois todas as partes do

processo são importantes para a eficiência da assistência”, destaca.

Um fator apontado pelos entrevistados como sendo decisivo para a cate-

goria é a falta de uma política pública mais consistente. Para Isa, a melhoria do

Sistema Único passa necessariamente pela educação: “Sabemos que só a for-

mação não vai resolver o problema, mas ela já melhora muito. Nós temos visto

uma melhoria, principalmente na tomada de consciência do trabalhador, que

passa a ter uma outra visão ao conhecer todo o processo de trabalho. Até o

relacionamento dele com a instituição muda. Então, não podemos pensar que

investir nas atividades finalísticas é o único caminho. Prestar atenção também

na gestão é uma opção nada desprezível de fazer um SUS melhor”.

Ed

uard

o C

ast

elo

Page 20: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200820

30 anos de Alma-Ata são comemorados com a volta da atenção básica para o centro da agenda mundial Relatório Mundial de Saúde 2008 critica modelo hospitalocê ntrico e propõe mudanças para superar condições sanitárias

Juliana Chagas

Em 1978, ministros de saúdedos países membros da Orga-nização Mundial de Saúde

(OMS) se reuniram em Alma-Ata, noCazaquistão, entre os dias 6 e 12 de se-tembro. O motivo era a Conferência In-ternacional sobre os Cuidados Primáriosde Saúde, que marcou a grande mudançamundial em relação à definição do con-ceito de saúde. Ela passou a ser entendi-da como “estado de completo bem-estarfísico, mental e social, e não simplesmen-te a ausência de doença ou enfermida-de”. Com esse significado amplo, veio apreocupação em estruturar bem o primei-ro nível de assistência, que integraria umsistema de saúde universal. A intençãoera que, até o ano 2000, a saúde fosseigual para todos. Mas, apesar das orien-tações da OMS, a mudança política e apredominância dos governos neoliberaisnos anos 80 não permitiram que as ini-qüidades fossem superadas. Ao contrá-rio. Elas se aprofundaram com o cresci-mento da assistência privada. “A AtençãoPrimária era vista como mais um progra-ma de saúde, que daria assistência defi-ciente a pessoas pobres”, diz o relatório.Três décadas depois, a OMS comemoraos 30 anos de Alma-Ata chamando a aten-ção do mundo novamente para a impor-tância da atenção básica. Foi esse o temado relatório anual de 2008, intitulado‘Atenção Primária: agora mais do que nun-ca’. Por que esse apelo ainda vale? “Por-que os sistemas de saúde têm que res-ponder melhor e com maior rapidez aosproblemas do mundo em transformação.E a Atenção Primária pode enfrentar es-ses desafios”, diz o documento.

Segundo Eugênio Vilaça, consul-tor da Secretaria Estadual de Saúde deMinas Gerais, a urgência colocada pelaOMS é pertinente por causa das mudan-ças epidemiológicas e demográficas dosúltimos 30 anos. “Na época de Alma-Ata,vivíamos uma Guerra Fria e a globalizaçãoainda não era uma realidade. Os maioresproblemas, em relação à situação sanitá-ria, eram as doenças infecciosas. Hoje,

são o envelhecimento, a urbanização e asdoenças crônicas. Isso exige uma novaatenção primária, que seja o centro daassistência à saúde”, defende.

A nova situação sanitária

Segundo o relatório, a atenção pri-mária que se começou a fazer após Alma-Ata era focalizada. Havia uma preocupa-ção com o combate de um número redu-zido de doenças – principalmente infec-ciosas –, a saúde materno-infantil e amelhoria do abastecimento de água e sa-neamento. Por isso, de acordo com aOMS, é preciso acabar com as três prin-cipais tendências que derivam desse mo-delo: a centralidade em uma oferta res-trita à atenção curativa especializada; afragmentação dos serviços; e a não inter-venção dos governos, que abre espaçopara a assistência comercial.

Se a saúde ainda não é para to-dos, como queriam os participantes deAlma-Ata, pelo menos é possível come-morar algumas melhoras nesses 30 anos.Hoje, por exemplo, a mortalidade infan-til mundial caiu de 16,2 milhões, em1978, para 9,5 milhões, em 2006. “Têmsido registrados avanços notáveis tambémno acesso à água, saneamento e atençãopré-natal. Isso mostra que é possível terprogresso”, diz o texto. Segundo o docu-mento, é necessário levar em conta, ain-da, o aumento dos investimentos em saú-de – de 35% entre 2000 e 2005 – e osnovos conhecimentos científicos.

Mas esses avanços aconteceramde maneira desigual no mundo e novosproblemas têm avançado rapidamente.“O envelhecimento e as conseqüênciasda má gestão dos processos de urbaniza-ção e globalização aceleram a propagaçãodas doenças transmitidas em nível mun-dial e aumentam os casos de transtornoscrônicos”. De acordo com o relatório, ossistemas de saúde precisam ter uma ges-tão integrada e integral. “Existe tambémuma assistência de caráter comercial, oslimites entre público e privado não estão

claros e as negociações da prestação dosserviços estão cada vez mais des-politizadas. Ao invés de reforçar sua ca-pacidade de resposta e prever novos de-safios, os sistemas sanitários parecemestar à deriva, trabalhando com priorida-des de curto prazo, de maneira fragmen-tada”, avalia a OMS.

No caso do Brasil, como lembraEugênio, o gasto da saúde aumentou umpouco em relação ao que se tinha há 30anos, mais ainda é insuficiente. “Paraenfrentar as doenças crônicas, quecorrespondem a 66% da carga de patolo-gias – a das transmissíveis é de 10% – épreciso gastar mais recursos na atençãoprimária. A Estratégia de Saúde da Famí-lia (ESF) não está dando conta do enve-lhecimento da população e das condiçõessanitárias atuais. Isso porque a ESF quepraticamos hoje tem subfinanciamento,equipes centradas no cuidado de médi-cos e enfermeiros, precarização dos con-tratos e uma lista de medicamentos res-trita. Não é possível dar conta do novocontexto sanitário dessa forma”, diz.

Para ele, é necessário que o pri-meiro nível de assistência cumpra trêsfunções: “Resolva de 90 a 95% dos pro-blemas de saúde mais comuns; ordenetoda a rede, ou seja, coordene o fluxo depessoas, produtos e informações; e se res-ponsabilize pela saúde da população”,explica. E completa: “O documento daOMS nos ajuda na medida que explicitaque a atenção primária não é barata. Au-mentar os investimentos maiores no pri-meiro nível de assistência significa, po-rém, economizar recursos nos outros ní-veis. Um real empregado na atenção pri-mária vale muito mais do que um real in-vestido num centro de saúde”.

Mas, para Eugênio, ter pouco re-curso não é o único problema para que aatenção básica se torne uma prioridadeno Brasil. “Penso que aqui, como emmuitos países, os governantes estão dei-xando a atenção primária um pouco delado. E fazendo propostas mirabolantes,como as Unidades de Pronto Atendimen-

Page 21: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 21

30 anos de Alma-Ata são comemorados com a volta da atenção básica para o centro da agenda mundial Relatório Mundial de Saúde 2008 critica modelo hospitalocê ntrico e propõe mudanças para superar condições sanitárias

to (UPAs), por exemplo, que não dãoconta da situação. Promovem, sim, resul-tados políticos em curto prazo. Mas de-terminarão conseqüências econômicas esanitárias desastrosas no futuro”, critica.

Atenção Primária: uma solução?

Para a OMS, a resposta à pergun-ta acima é positiva. “É uma demanda dapopulação mundial a melhoria da eqüi-dade sanitária e o fim da exclusão, que osserviços sejam centrados nas necessida-des dos indivíduos, que haja segurançasanitária em suas comunidades e que elaspossam participar das decisões sobre asquestões que afetam a sua saúde. Essasexpectativas coincidem com os valoresem que se baseou Alma-Ata e explicam aatual exigência da reformulação dos sis-temas a partir da atenção primária”. Issosignifica, por exemplo, ter equipesmultidisciplinares cuidando de um de-terminado grupo, colaborando com osserviços sociais e coordenando as açõesdos hospitais, dos especialistas e das or-ganizações comunitárias.

Para que isso aconteça, o estudopropõe realizar uma mudança estruturalbaseada em quatro pontos principais: ga-rantia de sistemas de saúde que contri-buam para a eqüidade sanitária, a justiçasocial e o fim da exclusão, em prol dacobertura universal; organização dos ser-viços pela atenção primária, isto é, emtorno das necessidades e expectativas daspessoas; elaboração de novas políticas pú-blicas; e fim da falta de controle do Esta-do, dando lugar a uma liderança capazde enfrentar a complexidade dos pro-blemas de saúde. O mais importante,porém, é a universalização dos servi-ços.“Esse é o objetivo prioritário, comohá 30 anos”, diz a OMS.

Segundo Eugênio, quando a aten-ção primária recebe um “choque de qua-lidade”, a melhora nas condições de saú-de é evidente. “Aqui em Minas, por exem-plo, o município de Janaúba, que tem 70

mil habitantes, melhorou sua assistênciaprimária e conseguiu reduzir a mortalida-de infantil de 30 para 4 óbitos por milcrianças. Curitiba também tem ótimosresultados na ESF. Isso mostra que semais dinheiro do SUS fosse investido naatenção primária, a situação melhoraria ex-cepcionalmente”, avalia.

O relatório também cita como umbom exemplo de atenção primária a ESF:“Em muitos países desenvolvidos, o Pro-grama de Atenção Primária dos anos 80 e90 foi capaz de contribuir para um apri-moramento nos serviços prestados. Maisrecentemente, os países em desenvolvi-mento, como o Chile e sua Atención Pri-

maria de Salud, o Brasil e seu Saúde daFamília, e a Tailândia com a cobertura uni-versal têm tido resultados encorajadores:melhora dos indicadores combinada comaumento da satisfação dos cidadãos”. Emtodos os casos, o sucesso dos programasde atenção primária se dá, principalmen-te, porque a cobertura nesses países éuniversal. Para Gustavo Matta, coordena-dor do Laboratório de Educação Profissi-onal em Saúde (Laborat) da Escola Poli-técnica de Saúde Joaquim Venâncio(EPSJV/Fiocruz), o exemplo do Chile ci-tado pela OMS deve ser visto com caute-la: “O Chile realizou uma grandeprivatização do seu sistema de saúde nosanos 80. Eles têm uma parte pública quetrabalha ações essenciais, incluindo o pro-grama de atenção primária, e outra parteé a compra de serviço privado pelo públi-co. É preciso ter cuidado para não acharque só a atenção primária deve ser uni-versal”, alerta ele.

Complementando a resposta aoquestionamento do entretítulo, a OMSlembra que a solução apenas começa naatenção primária. “A atenção primáriapode contribuir em grande medida paramelhorar a saúde das comunidades, masnão basta para garantir a eqüidade sani-tária. É preciso que os governos adotemuma série de políticas públicas para en-frentar os desafios da área da saúde. Será

necessário reinvestir em uma liderançapública”, responde o relatório anual.

Para mudar o sistema

Universalizar o sistema de saúdee mudar as demais políticas públicas,porém, não é fácil. “Nos países com gas-tos elevados com a saúde, caso de quasetodos os países desenvolvidos, há amplamargem financeira para acelerar a mudan-ça do enfoque da atenção terciária para aprimária, regular o sistema de maneirasaudável, e reduzir a exclusão a partir deuma assistência universal. O desafio émuito maior para os dois bilhões de pes-soas que vivem nos países da África e Ásiaoriental, onde o setor saúde cresce len-tamente, e para os 500 milhões que mo-ram em Estados frágeis. E esses lugarestêm a necessidade, mais que nenhumoutro, de começar a mudança na atençãoprimária imediatamente”, avalia a OMS.

Além disso, para que a coberturaseja universal é preciso que a sociedadeentre em um consenso. “Isso raramenteé uma questão de fácil acordo social. Defato, mesmo nos países onde a assistên-cia para todos é um projeto de Estado, aassociação dos médicos e alguns especi-alistas em economia, por exemplo, sem-pre atacaram essa idéia. A saúde univer-sal é conseguida, geralmente, através daluta dos movimentos sociais e não de umavontade política espontânea”. Mas, se-gundo o documento, atualmente há umconsenso mundial de que oferecer umacobertura de saúde universal faz parte dopacote de obrigações que legitima umgoverno. “É uma conquista política quemolda a modernização da sociedade”.

Segundo o texto, o mundo passapor um momento propício para esse tipode reforma. “A saúde mundial é objetivode atenção sem precedentes, destacan-do-se o aumento dos pedidos por umaatenção integral e universal. Há sinais cla-ros e positivos do desejo de colaborar parao estabelecimento de sistemas sustentá-veis para a saúde, em lugar dos enfoquesparciais e fragmentados”.

Page 22: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200822

Pesquisa analisa Política de Ed ucação Permanente em Saúde Estudo da Estação Observatório dos Técnicos em Saú de faz levantamento dos projetos pactuados nos pólos

Cátia Guimarães e Maíra Mathias

Cerca de 40% dos projetos aprovados pelo Ministério da Saúde apartir da pactuação nos Pólos de

Educação Permanente em Saúde doBrasil inteiro atendiam às áreas de Aten-ção Básica e Saúde da Família. Sessentae seis porcento das ações executadaseram cursos e outros 24% foram eventoseducativos, como oficinas, seminá-rios, dinâmicas, fóruns de discussão evídeos-debates. Oito porcento significa-ram investimento em estrutura e aquisi-ção de equipamentos das instituiçõesenvolvidas. A maior parte das ações foiexecutada por instituições públicas, mastambém houve uma grande participaçãodas fundações de apoio, em geral, dandosuporte ao trabalho das universidades. Es-sas são algumas das informações levanta-das pela pesquisa ‘Análise da Política deEducação Permanente em Saúde: umestudo exploratório de projetos aprova-dos pelo Ministério da Saúde’, desen-volvida pela Estação de Trabalho Obser-vatório dos Técnicos em Saúde, daEscola Politécnica de Saúde JoaquimVenâncio (EPSJV).

A pesquisa, que teve duração dedois anos, analisou 238 ações a partir domapeamento dos 165 pareceres aprova-dos pelo Ministério da Saúde, entre ju-nho de 2004 e junho de 2005.

Educação permanente e educaçãocontinuada

O estudo recupera a origem doconceito de educação permanente e seusmarcos. Lembra, por exemplo, que a pri-meira menção à educação permanente foifeita pela Organização Pan-Americana deSaúde (Opas), representação regional daOrganização Mundial de Saúde (OMS),em 1984, exatamente buscando se dis-tinguir da idéia de educação continuada,que, segundo a Organização, marcava aformação de trabalhadores até aquelemomento. “Mas o salto realmente se deuquando a Educação Permanente em Saú-de (EPS) passou a se referir ao sistemacomo um todo”, afirma Carlos Maurício,um dos integrantes da pesquisa, que ain-da contou com a participação de AnnaVioleta Ribeiro, Monica Vieira e Valéria

Carvalho. Ele explica que essa mudançacomeçou em 2003, quando foi criada aSecretaria de Gestão do Trabalho e daEducação na Saúde (SGTES/MS).

A contextualização que a pesqui-sa faz, no entanto, vai além. Mostra, porexemplo, que a noção de educação con-tinuada foi muitas vezes acompanhadado incentivo à formação em serviço, apartir de cursos de curta duração —um movimento que ajuda a esvaziar aimportância da escola. A idéia de Educa-ção Permanente em Saúde teria, a prin-cípio, outra lógica. Distinguia-se, sobre-tudo, por colocar o trabalho no centro doprocesso educativo e buscar soluções deforma coletiva, e não em pacotes fecha-dos de treinamento.

De acordo com a pesquisa, noentanto, essas diferenças não foramtão perceptíveis na prática da Política.“A educação permanente, ao colocar mui-ta ênfase nas práticas construídas nosprocessos de trabalho e ressaltar a ne-gatividade do viés tecnicista das organi-zações de ensino, pode engendrar umavisão distorcida e privilegiar a aprendi-zagem em serviço ou a potencialidadeda sociedade civil em detrimento da edu-cação formal. Nesse sentido, o problemaa equacionar não diz respeito somente auma questão metodológica em que osproblemas dos serviços viriam à tona, massim a detectar e aprofundar conteúdosque permitem uma melhor compre-

ensão da saúde atualmente”, diz o rela-tório.

E Monica Vieira, coordenadorada pesquisa, completa: “Cerca de 70%dos projetos aprovados não contem-plavam a mudança proposta pela Políti-ca. A maioria se referia a ações pontuais:justamente o que ela propunha evitar”.

O estudo ressalta ainda que essasdiferenças conceituais entre educaçãocontinuada e permanente referem-se aocontexto da saúde porque, no campoda educação, esses conceitos não sãotão exatos assim: algumas vezes apare-cem como sinônimos e, em outras, têmsentidos contrários ao que a saúde es-tabeleceu, ou seja, educação permanen-te é vista como voltada para o mercadode trabalho e educação continuada comoformação integral.

A pesquisa chama atenção para ofato de que a noção de educação perma-nente propõe mudanças que dependemde mais do que essa política, sozinha,pode viabilizar. “Uma das possibilidadesque a educação permanente traz é cons-truir no interior dos serviços laços maisefetivos de luta para a melhoria do siste-ma de saúde. No entanto, a luta não podeficar restrita a uma melhor conformaçãoao trabalho, e sim deve romper com osmecanismos de exploração que circuns-crevem o trabalho e a vida”, diz o relató-rio. E continua: “Nesse sentido, desta-ca-se que algumas ações de educação

Page 23: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 23

Pesquisa analisa Política de Ed ucação Permanente em Saúde Estudo da Estação Observatório dos Técnicos em Saú de faz levantamento dos projetos pactuados nos pólos

permanente podem favorecer umaruptura com o modelo hegemônico, noentanto, se ficarem circunscritos às açõesno trabalho, podem ser caracterizadasmais por um mecanismo de ‘apassiva-mento’ dos conflitos do que pela capaci-dade de transformação”.

Público e privado

Outra constatação do estudo é quea prática frustrou a expectativa declaradada Política de romper com a lógica “dacompra de produtos e pagamentos porprocedimentos educacionais”. Isso por-que a maior parte das ações de EPS fo-ram executadas por fundações de apoioque, criadas com o argumento de des-burocratizar as instituições públicas, cap-tam recursos de forma independente e,geralmente, cobram pelos serviços pres-tados. Para Monica, a questão a ser anali-sada é até que ponto a pactuação nos pó-los permitia um maior controle social so-bre as propostas das fundações.

Desafios

Nas considerações finais, o rela-tório do estudo destaca oito pontos queos pesquisadores consideram importan-tes como resultado da análise. Um delesdiz que os projetos pactuados nos pólos— considerando-se a amostragem dapesquisa — têm, de modo geral, uma frá-gil orientação conceitual. Utilizam, porexemplo, expressões como ‘humanização,acolhimento e vínculo’, sem definiçõesmais precisas de referenciais. “As propos-tas práticas denunciam a pulverização efragmentação das ações de Educação Per-manente em Saúde em um mesmo pro-jeto”, conclui o texto. Monica exem-plifica: “Não se pode deixar de levar emconsideração a precarização do trabalho edo estudo atuais. Os espaços formativose os serviços de saúde, em geral, não ofe-recem boas condições. A quantidade detrabalhadores com vínculo precário é alar-mante”, pondera. “Como um trabalhadorvai mudar seu processo de trabalho,humanizar seu atendimento dentro doSistema Único se o próprio SUS não ohumaniza?”, completa a pesquisadora.

Outro tópico sugere que a políti-ca poderia ter criado um componente es-pecífico de fortalecimento das institui-ções, condicionando a ‘aprovação’ dosprojetos a uma infra-estrutura mínima queas capacitasse a realizá-los.

Levando em conta o referencialteórico da pesquisa, que identifica a de-sigualdade de interesses, recursos e po-der como um obstáculo à estratégia dabusca do consenso, o relatório chama aten-ção ainda para os riscos de sustentaçãoda política. “A SGTES abriu um espaçoimportante para se repensarem as ques-tões de recursos humanos, ao pautar naagenda a problemática do trabalho e daeducação. Entretanto, a Política Nacionalde Educação Permanente em Saúde, aonão atentar para os determinantes socio-políticos que se expressam nessa rela-ção, corre o risco de não se sustentar,levando a um refluxo do processo deconstrução do campo trabalho e educa-ção na saúde”, diz o texto. Esse trechoem especial reitera o reconhecimento,que atravessou todas as fases da pesqui-sa, do caráter inovador e radical daproposta, que se opunha ao ideárioneoliberal. “Nesse contexto de disputa,conforma-se a política de Educação Per-manente em Saúde, que busca retomar osentido ético-político da Reforma Sani-tária. No entanto, por tratar-se de umapolítica ainda em construção, inseridanuma conjuntura desfavorável à amplia-ção dos direitos sociais, seus rumos ain-da estão por definir-se”, diz o relatório.

Mudanças

Em 2007, foi editada uma novaportaria, a nº 1996, que reformulavaalguns instrumentos da Política Nacionalde Educação Permanente (PNEPS). Fo-ram criadas, por exemplo, as ComissõesPermanentes de Integração Ensino-Serviço (CIES), constituídas por repre-sentantes da gestão do SUS e da educa-ção, entidades profissionais, instituiçõesde ensino e movimentos sociais.

O trâmite dos projetos tambémmudou. Antes, a partir do debate geradonos pólos, os projetos vencedores eramencaminhados a um Conselho Gestor

Estadual (CGE), com direção das Secre-tarias Estaduais de Saúde. Essa era a últi-ma instância deliberativa capaz de deci-dir quais projetos seriam iriam para o MSe quais teriam que esperar. A nova Porta-ria vincula a condução da Política aosColegiados de Gestão Regional, compos-tos por gestores municipais e estaduais.São esses Colegiados que constroem oPlano de Ação Regional de Educação Per-manente em Saúde e o submetem à Co-missão Intergestores Bipartite para ho-mologação.

Uma outra diferença entre os doismomentos diz respeito ao financiamen-to: atualmente, os recursos para as açõesde Educação Permanente em Saúde sãodefinidos no Pacto de Gestão do SUS.

A pesquisa desenvolvida peloObservatório dos Técnicos, no entanto,não estudou essa nova fase. São necessá-rios agora outros estudos, que ajudem acompreender os rumos que, afinal, essaPolítica tomou.

Conheça a pesquisa

A pesquisa realizada pela EstaçãoObservatório da EPSJV foi financiadacom recursos do Ministério da Saúde eda Opas. O relatório, na íntegra, podeser acessado no link ‘projetos’ do site:www.observatorio.epsjv.fiocruz.br.

Pacto de Gestão do SUS

É um dos três pilares que estru-turam o Pacto pela Saúde, política fir-mada em 2006 para promover inova-ções na gestão, que ainda engloba oPacto pela Defesa do SUS e o Pacto pelaVida. Uma das principais mudanças pre-vistas no Pacto de Gestão diz respeitoao financiamento das ações de saúde. Atransferência fundo a fundo de recur-sos federais para estados e municípiospassa a ser estruturada em cinco blocos:atenção à saúde, média e alta complexi-dade, vigilância em saúde, assistênciafarmacêutica e gestão do SUS - nesseúltimo, estão alocados recursos para vá-rias políticas, dentre elas a PNEPS.

Page 24: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200824

Mares nunca dantes navegados: as contas nacionais da Saúde

Com o livro ‘Economia da Saú-de: uma perspectiva macroeconô-mica 2000-2005’, o IBGE reafirma

seu papel na geração de informações paraorientar e aprimorar as políticas públicas. Oinventariamento de informações sobre a ofer-ta (produção) e demanda (uso) de bens eserviços de saúde, antecipando as futuras con-tas satélites da saúde, descortina perspecti-vas inéditas à análise setorial. Passaremos adispor de estimativas precisas sobre as di-mensões econômicas da saúde bem como dasinter-relações de seus agregados setoriais.

Mas certamente encontraremos al-

famílias), que redunda na reduzida propor-ção dos gastos governamentais com saúde(3,2% do PIB) e na relativamente elevadaparticipação das despesas das famílias(4,9%), foi tomada pela grande imprensacomo sinal inequívoco de uma generalizadaprecariedade da proteção pública aos proble-mas de saúde. Embora tal interpretação nãoseja exatamente incorreta, as informações daPesquisa de Orçamentos Familiares, maisadequadas para dimensionar tal fenômeno,relativizam a importância dos gastos diretosno total dos gastos privados com saúde.

A análise de outras dimensões dasatividades de saúde, como emprego e renda,explicita os valores médios mais elevados dorendimento auferido nas atividades mercan-tis (especialmente fabricação de produtosfarmacêuticos, atividades de atendimentohospitalar privado e assistência médica su-plementar) por referência àquelas provenien-tes da saúde pública. Os dados sobre o tipode inserção no mercado de trabalho (formal,sem carteira, autônomo) indicam que cercade 24% dos postos de trabalho de serviçosambulatoriais privados e 16% dos postos dasatividades de saúde pública correspondem avínculos precários (sem carteira).

Todas essas variáveis contábeis, aolado das informações sobre importação e ex-portação, impostos e cálculo de excedentes,conformam a matriz das contas econômicasintegradas da saúde, um resumo de opera-ções e saldos da produção (que inclui gera-ção de renda) e consumo de atividades desaúde. Trata-se de uma síntese extremamenteútil à análise da dinâmica setorial e ao deli-neamento de tendências.

Uma vez reconhecida a relevância ea importância da publicação, resta desejar-lhe vida longa. E, desde logo, assinalar que anatureza e a complexidade da produção dascontas satélites da saúde recomendam a ob-servância de um preceito bastante óbvio, noentanto essencial ao aprimoramento contí-nuo das estimativas da oferta e demanda dasatividades de saúde – a ampliação da parti-cipação efetiva dos potenciais usuários dasinformações, como a Anvisa, outras institui-ções executivas e de ensino e pesquisa, noredesenho e crítica da publicação.

Ligia BahiaLigia BahiaLigia BahiaLigia BahiaLigia BahiaMédica sanitarista, doutora em Saúde Pú-blica pela Fiocruz, professora-adjunta daFaculdade de Medicina e do Núcleo de Es-tudos de Saúde Coletiva da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (Nesc/UFRJ).

gumas dificuldades iniciais para manejar e,sobretudo, apropriar com a devida profundi-dade o conjunto das informações contidas napublicação. Nós, que trabalhamos com e na

saúde, temos pouca familiaridade com a lógica e operacionalização dos sistemas de contasnacionais, embora saibamos que constituem indispensável elemento de análise macroeconômica.

Em termos gerais, a análise dos grandes agregados financeiros, expressa como ofertae demanda, inspira-se no conceito abstrato de equilíbrio geral da economia, conferindo-lheconteúdo empírico. A noção de que a economia pode ser traduzida como um sistema integra-do de fluxos e transferências de um setor a outro e como circulação de bens e produtosprocessados e consumidos fundamenta a construção de um quadro que permite detectar asconseqüências que uma mudança num setor traz para os outros setores e para o conjunto.

As contas nacionais obedecem a uma padronização internacional estabelecida pelaONU e inventariam o PIB, impostos sobre produtos, valor adicionado a preços básicos,consumo pessoal, consumo do governo, formação bruta de capital fixo, variação de estoques,exportações e importações de bens e serviços. O Sistema de Contas Nacionais permite nãosomente analisar, de forma integrada, a participação por atividade e instituições da geração,apropriação, distribuição e uso da renda nacional e da acumulação de ativos não-financeiros,como também evidencia as dimensões de cada economia nacional com as dos demais países.

O processo de construção das contas de saúde requer a definição da abrangência eseleção das atividades de saúde, passa pela consulta a fontes de informações gerais e especí-ficas, pela elaboração de parâmetros para estimar volume e preços de determinadas ativida-des e implica ainda a assunção de pressupostos ad hoc para a classificação institucional(pública ou privada) do consumo. Essa seqüência de categorizações e, em especial, suas regrasde constituição, acrescidas ao pouco domínio sobre a origem e qualidade de várias das fontesde informações das contas nacionais da saúde, dificultam a compreensão imediata dametodologia e dos resultados agregados segundo produção e consumo das atividades de saúde.

A primeira leitura, dadas as agruras para concatenar os resultados apresentados comos critérios de elaboração das trajetórias que subsidiaram as estimativas dos produtos e usosdas atividades de saúde, e ainda com uma reflexão sobre limites das fontes que originaram asinformações, pode ser muito árdua; em certa medida desestimulante. Mas, em função darelevância das contas da saúde, essa impressão preliminar deve ser superada pelo reexame dospassos de construção das estatísticas, pelo debate coletivo e, evidentemente, pelo compromis-so com a divulgação sistemática e aprimoramento das informações e análise dos resultados.

Em relação à produção, destacam-se: a importância das atividades mercantis, inclu-indo os bens e serviços, por referência àquelas designadas como saúde pública (apenas 32,3%do total); e os diferentes pesos dos salários e contribuições sociais na composição do valoradicionado bruto nas distintas atividades de saúde (31,4% na fabricação de produtos farma-cêuticos, 91,4% na saúde pública e 38,7% nos estabelecimentos ambulatoriais mercantis).

No que se refere ao consumo final, que inclui produtos nacionais e importados, oSistema Nacional de Contas o atribui às famílias. Porém, o consumo pode ser financiado pelogoverno, pelas empresas empregadoras e diretamente pelas famílias. O Brasil não dispõeainda de fontes de informações sobre as despesas das empresas empregadoras. Nesta publi-cação, a opção pela dicotomização das despesas em públicas (governamentais) e privadas (das

Page 25: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 2008 25

O trabalho educa. E não só a aper- tar parafuso ou aplicar injeção.Na idéia de trabalho como ‘prin-

cípio educativo’, que faz esse conceito sertão importante para o campo da educa-ção profissional, o trabalho ajuda a formarpara a liberdade e a transformação da vidae das condições sociais. “Considerar otrabalho como princípio educativo equi-vale dizer que o ser humano é produtorde sua realidade e, por isto, se apropriadela e pode transformá-la. Equivale di-zer, ainda, que nós somos sujeitos denossa história e de nossa realidade”, ex-plica Marise Ramos, professora-pesqui-sadora da Escola Politécnica de SaúdeJoaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e daUniversidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ), no artigo ‘Concepções do Ensi-no Médio Integrado’.

Diferentemente do que possaparecer, esta não é uma matéria sobre ‘co-nhecimento prático’ ou metodologias decomo ‘aprender fazendo’. Ao contrário:como princípio educativo, o trabalho (e aformação para ele) precisa perder qual-quer sentido utilitário. Mas como essa in-versão é possível? Afinal, não é por pra-zer que a maioria das pessoas passa horaspor dia sobre o arado, dentro das fábricasou pelas ruas, escritórios e outros espa-ços. Como uma relação desse tipo podenão ser utilitarista? Gaudêncio Frigotto,professor da Universidade FederalFluminense e da UERJ, nos ajuda a en-tender: “O trabalho não se reduz à ‘ativi-dade laborativa ou emprego’, mas à pro-dução de todas as dimensões da vida hu-mana”, explica no verbete ‘Trabalho’ doDicionário de Educação Profissional emSaúde. Isso significa que, como conceito

mais amplo, trabalho não é sinônimo detrabalho assalariado, desenvolvido em tro-ca de um pagamento. E nos remete à suadefinição ontológica: como relação e açãodo homem sobre a natureza. Visto dessaforma, o trabalho aparece como ação cons-ciente, que diferencia o ser humano dosoutros animais, ressaltando sua capacida-de de modificar a realidade em que vive,em vez de se adaptar a ela. Transformarem vez de se adaptar: não é exatamenteessa a função da educação? “O trabalhocomo princípio educativo, então, não é,primeiro e sobretudo, uma técnica didá-tica ou metodológica no processo deaprendizagem, mas um princípio ético-político”, explica Gaudêncio, no texto.

Trabalho no capitalismo

A venda da força de trabalho emtroca de pagamento é, então, apenas umadas formas do trabalho, num contextosocial específico. Executamos hoje, diari-amente, o formato que o sistema capita-lista de produção criou para o trabalho.Períodos históricos anteriores tiveramoutros, como o trabalho escravo.

O que há de mais marcante notrabalho inventado pelo capitalismo é oque o filósofo Karl Marx identificou, noséculo XIX, como produção de ‘mais-valia’. “Mais-valia é uma forma específicade extração de sobretrabalho e, diferen-temente das formas precedentes, ela vemoculta sob a forma salário, na produção demercadorias”, explica Virgínia Fontes,pesquisadora da Universidade FederalFluminense (UFF) e da EPSJV. A lógicaé a seguinte: quando você compra umcarro, por exemplo, sabe que está pagan-

do um valor mais alto do que o custo deprodução daquele bem. É dessa diferen-ça entre valor de venda e preço de pro-dução, além da exploração do trabalho,que sai o ‘lucro’ das empresas no sistemacapitalista. Com o trabalho, o processo éexatamente o mesmo: o trabalhador ven-de sua força de trabalho em troca de umsalário. Ele deveria trabalhar, então, o tem-po suficiente para ‘devolver’ ao empre-sário o valor exato do seu pagamento, naforma de produção de mercadorias ouserviços. Mas essa conta nunca se equili-bra, nem tampouco fecha a favor do tra-balhador. “A mais-valia é a diferençaentre (...) o valor produzido pelo traba-lhador que é apropriado pelo capitalistasem que um equivalente seja dado emtroca. Não há, aqui, uma troca injusta, mas

“Antes, o trabalho é um processoentre o homem e a natureza, umprocesso em que o homem, por suaprópria ação, medeia, regula e con-trola seu metabolismo com a Na-tureza. Ele mesmo se defronta coma matéria natural como uma forçanatural. Ele põe em movimento asforças naturais pertencentes à suacorporeidade, braços, pernas, cabe-ça e mãos, a fim de se apropriar damatéria natural numa forma útil àprópria vida. Ao atuar, por meiodesse movimento, sobre a nature-za externa a ele e ao modificá-la,ele modifica, ao mesmo tempo, suaprópria natureza”

Karl Marx – O Capital

Page 26: Capa - epsjv.fiocruz.br · Elementos de todas essas políticas, com suas ... profissões apresenta os conhecimentos e ‘afazeres’ do técnico em gerência de saúde, mostrando

Poli | nov./dez. 200826

o capitalista se apropria dos resultadosdo trabalho excedente não-pago”, expli-ca o verbete ‘mais-valia’ do Dicionário doPensamento Marxista. E completa, maisadiante, dizendo que é possível dividir ajornada de trabalho em duas partes: “tra-balho necessário (no tempo a ele dedica-do, o trabalhador produz um equivalentedo que recebe como salário) e trabalhoexcedente (no tempo a ele dedicado, otrabalhador está produzindo apenas parao capitalista)”. Esse trabalho, que alguémvende e alguém compra, gerando ‘lucro’,é sinônimo de mercadoria.

Diferente daquele sentido de

trabalho do início deste texto, aqui não

se age sobre a natureza para criar seus

próprios meios de sobrevivência. Traba-

lho, nesse sentido, está mais relacionado

à exploração e à adequação do que à trans-

formação. “Porque os trabalhadores não

têm outro acesso aos meios de produ-

ção e precisam vender algo para que

possam viver, são forçados a vender sua

força de trabalho e não podem fazer uso

dessa sua propriedade criadora de valor

em benefício próprio”, explica o Dicio-

nário marxista. Esse processo institui

“o que Marx chamou de dupla liber-

dade do trabalhador: a liberdade de

vender sua força de trabalho ou a liber-

dade de morrer de fome”, como diz o

mesmo texto.E o que tudo isso tem a ver com a

educação? “É fundamentalsocializar, desde a infân-cia, o princípio de que atarefa de prover a subsis-tência e outras esferas davida pelo trabalho é co-mum a todos os sereshumanos, evitando-se,dessa forma, criar indiví-duos, grupos ou classes

sociais que naturalizama exploração do trabalhode outros”, explica Gaudêncio,

no verbete.

Variações?

Isso não significa que não haja

variações nesse esquema. Por um lado,

há processos, como os de agricultura fa-

miliar resultante de políticas de Reforma

Agrária, nos quais o trabalhador é dono

dos meios de produção — nesse caso, a

terra. Por outro, há pequenas distinções

relacionadas à relação público-privado e à

existência de diferentes setores na eco-

nomia capitalista.

Existe produção de mais-valia, por

exemplo, no setor público? Segundo

Virgínia Fontes, em princípio, não, por-

que ele não produz mercadorias. “Pode,

entretanto, extrair sobretrabalho (explo-

rar), mas sob outra forma, complementar

à forma mercantil salarial”, diz. E no se-

tor de serviços? “‘Serviços’ designa a tro-

ca de renda (dinheiro consumido em va-

lor de uso) por uma atividade. Se uma

atividade ('serviço') se converte em for-

ma de extração de mais-valor pela produ-

ção de uma certa mercadoria (por exem-

plo, aulas), trata-se de extração de mais-

valia equivalente à forma fabril”, explica

Virgínia. Mas alerta: “Essas são defini-

ções muito amplas e que precisam ser

avaliadas nas circunstâncias sociais dadas,

e não simplesmente aplicadas de manei-

ra mecânica, pois referem-se sempre tan-

to ao conjunto das relações sociais quan-

to às relações específicas que tratamos”.

De acordo com essa distinção, o

trabalho que cada um de nós realiza diari-

amente pode ser considerado produtivo

ou improdutivo. “O trabalho produtivo é

contratado pelo capital no processo de

produção com o objetivo de criar mais-

valia. Como tal, o trabalho produtivo diz

respeito apenas às relações sob as quais

os trabalhadores são organizados, e não à

natureza do produto”, explica o Dicioná-rio do pensamento marxista. Nessa ‘clas-

sificação’, onde se localizam, então, osprofissionais de saúde e educação? “Can-tores de ópera, professores e pintores

de parede, tanto quanto mecânicos deautomóveis ou mineiros, podem ser em-pregados pelos capitalistas tendo em vista

o lucro. É isso que determina se são tra-balhadores produtivos ou improdutivos”,exemplifica o Dicionário.

Mas será que toda essa discussãoainda faz sentido em tempos como es-ses, em que o desemprego estrutural

insiste em anunciar o fim do trabalho?De tão atual, a discussão sobre a cen-tralidade da categoria ‘trabalho’ ainda está

em aberto. Recuperando o conceitooriginal de trabalho, Gaudêncio, no arti-go do Dicionário de Educação Profissio-

nal, diz: “As teses sobre o fim do trabalhoe uma vida dedicada ao ócio não têm omenor fundamento. É a mesma coisa

que afirmar que a vida humana desapare-ceu da face da Terra ou que todos osseres humanos se metamorfosearam em

anjos e já não precisam mais mover-see buscar seus meios de vida. Outra coisaé o desaparecimento de formas históri-

cas de como o trabalho se efetiva nosdiferentes modos sociais de produçãoda existência humana”.

Saiba Mais

Dicionário de Educação Profissio-nal em Saúde – editado pela Esco-la Politécnica de Saúde JoaquimVenâncio/Fiocruz, em 2006.

Dicionário do Pensamento Marxis-ta. Editado por Tom Bottomore.

Estado, Sociedade e formação pro-fissional em saúde: contradições edesafios em 20 anos de SUS, daEPSJV e Editora Fiocruz. Artigo:‘Trabalho e sujeito revolucionário:a classe operária’, de Sergio Lessa.