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SOCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO OCIALISMO EM EM EM EM EM DISC DISC DISC DISC DISCUSSÃO SÃO SÃO SÃO SÃO classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo Francisco de oliveira joão pedro stedile - josé genoino

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SABEMOS QUE O PRAGMATISMO DAS AÇÕES POLÍTICAS DEVE SER EQUILIBRADO

PELA REFERÊNCIA CONSTANTE AOS PRINCÍPIOS TEÓRICOS, QUE PARA NÓS SE

ENCARNAM NA PALAVRA SOCIALISMO. SABEMOS TAMBÉM QUE NO MOMENTO HÁ

MUITA HESITAÇÃO E MUITA DÚVIDA A RESPEITO DO SOCIALISMO. A DERROCADA

DA UNIÃO SOVIÉTICA E A DESCARACTERIZAÇÃO DA SOCIAL-DEMOCRACIA NA

EUROPA SÃO FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA GERAR ESSES SENTIMENTOS.MAS O SOCIALISMO É ALGO MAIS VASTO QUE SUAS MANIFESTAÇÕES

HISTÓRICAS E CONTINUA A SER O CAMINHO MAIS ADEQUADO ÀS LUTAS SOCIAIS

QUE TENHAM COMO FINALIDADE ESTABELECER O MÁXIMO POSSÍVEL DE

IGUALDADE ECONÔMICA, SOCIAL, EDUCACIONAL COMO REQUISITO PARA ACONQUISTA DA LIBERDADE DE TODOS E DE CADA UM.

Antonio CandidoAntonio CandidoAntonio CandidoAntonio CandidoAntonio Candido

classes sociais emmudança e a lutap e lo soc ia l i smo

Francisco de oliveirajoão pedro stedile - josé genoino

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SABEMOS QUE O PRAGMATISMO DAS AÇÕES POLÍTICAS DEVE SER EQUILIBRADO

PELA REFERÊNCIA CONSTANTE AOS PRINCÍPIOS TEÓRICOS, QUE PARA NÓS SE

ENCARNAM NA PALAVRA SOCIALISMO. SABEMOS TAMBÉM QUE NO MOMENTO HÁ

MUITA HESITAÇÃO E MUITA DÚVIDA A RESPEITO DO SOCIALISMO. A DERROCADA

DA UNIÃO SOVIÉTICA E A DESCARACTERIZAÇÃO DA SOCIAL-DEMOCRACIA NA

EUROPA SÃO FATORES QUE CONTRIBUÍRAM PARA GERAR ESSES SENTIMENTOS.MAS O SOCIALISMO É ALGO MAIS VASTO QUE SUAS MANIFESTAÇÕES

HISTÓRICAS E CONTINUA A SER O CAMINHO MAIS ADEQUADO ÀS LUTAS SOCIAIS

QUE TENHAM COMO FINALIDADE ESTABELECER O MÁXIMO POSSÍVEL DE

IGUALDADE ECONÔMICA, SOCIAL, EDUCACIONAL COMO REQUISITO PARA ACONQUISTA DA LIBERDADE DE TODOS E DE CADA UM.

Antonio CandidoAntonio CandidoAntonio CandidoAntonio CandidoAntonio Candido

classes sociais emmudança e a lutap e lo soc ia l i smo

Francisco de oliveirajoão pedro stedile - josé genoino

Francisco de Oliveira

João Pedro Stedile

José Genoino

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Socialismo em discussão

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO

Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional

do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996

DiretoriaLuiz Dulci – presidente

Zilah Abramo – vice-presidenteHamilton Pereira – diretor

Ricardo de Azevedo – diretor

Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação EditorialFlamarion Maués

RevisãoCandice Quinelato Baptista

Maurício Balthazar LealMaria Vianna

Capa, projeto gráfico e ilustraçõesGilberto Maringoni

Ilustração da capaMário Pizzignacco

Editoração Eletrônica Augusto Gomes

Impressão Cromosete Gráfica

1a edição: outubro de 20001a reimpressão: junho de 2002 – Tiragem: 2 mil exemplares

Todos os direitos reservados àEditora Fundação Perseu Abramo

Rua Francisco Cruz, 224 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – BrasilTelefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910

Na internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: [email protected]

Copyright © 2000 by Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-39-4

Sumário

ApresentaçãoLuiz Inácio Lula da Silva ........................................................................ 5

Passagem na neblinaFrancisco de Oliveira ................................................................................. 7Uma relação reciprocamente fundadora ............................................................... 7Centralidade do trabalho e crítica da revolução ................................................... 9A dança frenética das aparências .......................................................................... 10O movimento do real ............................................................................................ 14Passagem na neblina ............................................................................................. 17Bibliografia ........................................................................................................... 21

ComentáriosJoão Pedro Stedile ...................................................................................... 23Os desvios de análise da década de 1990 ............................................................. 24As transformações recentes .................................................................................. 27As mudanças sociais no campo ............................................................................ 29Os desafios do futuro ............................................................................................ 30

4 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

ComentáriosJosé Genoino ............................................................................................... 33Crítica e resgate .................................................................................................... 33A luta de classes e as dimensões da luta política .................................................. 34Socialismo e classe operária ................................................................................. 35Partidos socialistas no continente americano ....................................................... 37Trabalho e revolução ............................................................................................ 39Igualdade e diversidade ........................................................................................ 40Revolucionar a revolução ..................................................................................... 41

Intervenções do público ............................................................................. 43Paul Singer ............................................................................................................ 43Max Altman .......................................................................................................... 44Terezinha Vicente Ferreira .................................................................................... 45Valter Pomar ......................................................................................................... 45José Graziano da Silva .......................................................................................... 47Darci Passos .......................................................................................................... 47

Comentários finais ....................................................................................... 49

Classes sociais e socialismo – Francisco de Oliveira ........................................... 49Trabalhadores da cidade e do campo – João Pedro Stedile .................................. 52Classes sociais e partido – José Genoino ............................................................ 54

Sobre os autores ............................................................................................ 57

5SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Apresentação

Luiz Inácio Lula da Silva

Em meados de 1999, visitei Antonio Candido para conversar um pouco sobrenosso país, nossos desafios e nossas esperanças. Além de saborear as deliciosashistórias que ele sempre conta, fui brindado com algumas doses da espantosasabedoria que jorra do alto daqueles 82 anos de uma vida bem vivida, repleta delutas e marcada por absoluta coerência de ponta a ponta.

Fiz a ele um pedido que apresentei como convocação. Solicitei que empres-tasse sua enorme autoridade intelectual, moral e política para estimular a reto-mada de alguns debates fundamentais para despertar a criatividade e reanimar oímpeto de uma esquerda que, mesmo representando o que há de mais promissorem nossa terra, nunca está imune aos vícios do acomodamento e ao apego àrotina.

Trocamos idéias sobre alguns temas prioritários e sobre possíveis alternativaspara romper o marasmo intelectual que vinha caracterizando nosso país, sob o jálongo reinado de FHC.

Antonio Candido ficou de pensar. Algum tempo depois, convidou Paul Singere Francisco de Oliveira, e eles três, junto com Paulo Vannuchi, meu assessor noInstituto Cidadania, realizaram inúmeras reuniões e consultas até conceber osSeminários Socialismo e Democracia, que o Instituto promoveu em parceria coma Fundação Perseu Abramo e a Secretaria Nacional de Formação do PT, de abrila junho de 2000.

6 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

Foram realizados seis seminários que abordaram o socialismo a partir de vári-os ângulos, para um plenário sempre superior a cem pessoas, entre dirigentes doPT, da CUT, parlamentares, lideranças de movimentos populares, membros deequipes de governo, ONGs, intelectuais, estudantes e convidados em geral. Já nacarta-convite para o evento, explicamos que nossa idéia era discutir o que quere-mos entender por socialismo hoje, para o Brasil e para o mundo. E que nãoexistia, de nossa parte, qualquer concepção prévia de socialismo e de comoalcançá-lo. Queríamos retomar um clima de discussão aberta, no qual pudésse-mos expor livremente todas as nossas certezas e dúvidas. Sem exclusão de ne-nhuma corrente ou facção.

Com a coleção Socialismo em Discussão publicamos o conteúdo básico des-ses seminários. Queremos que este material seja amplamente divulgado em todoo país, que seja reproduzido, que estimule outros textos e publicações, afastan-do todas as ameaças de inércia e de mesmice. Queremos que seminários dessetipo sejam realizados nos vários estados, repetindo o produtivo ambiente de fran-queza, polêmica, respeito e seriedade que marcou os seminários. Sobretudo nasatividades de formação política, a contribuição destes cadernos pode ser muitogrande.

O êxito e a ampla aprovação obtidos nesta primeira fase tornam obrigatório oprosseguimento das discussões em 2001, focalizando aspectos cada vez maisconcretos e específicos do tema. Já era essa a idéia dos organizadores dos semi-nários. Eles agora cuidarão da tarefa com ânimo redobrado, escalando adequa-damente a rica pluralidade de craques ainda não convocados, entre dirigentespartidários, sindicalistas e intelectuais.

Penso que dessa forma estaremos construindo, juntos, uma compreensão dosocialismo que esteja realmente à altura das exigências do novo século e que noshabilite a lutar por vitórias que são imperativas e inadiáveis no grave cenário decrise social, injustiças e desigualdades que vem sendo imposto aos brasileiros jáde longa data.

São Paulo, junho de 2000

7SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Passagem na neblina

Uma relação reciprocamente fundadora – As relações entre classes so-ciais e socialismo são reciprocamente fundadoras. É com a emergência de no-vas presenças na sociedade, enigmáticas quanto ao seu lugar e ao seu futuro,desenraizadas, para as quais a designação de pobres no sentido medieval tor-nou-se inadequada – posto que livres e, portanto, perigosas,– que o léxico polí-tico moldou novos termos para designá-las. A evidente ligação entre a desor-dem social e a pobreza desses novos e formidáveis contingentes levou à buscada designação de uma nova ordem, voltada para resolver os problemas da novapobreza. Houve uma clara percepção, notável entre os socialistas utópicos, deque a persistência da ordem que mal se instaurara levaria à eternidade da apa-rente desordem. Há uma contradição, pois – que, ademais, é também caracte-rístico da fundação da sociologia, contemporânea da nova pobreza –, um de-bruçar-se para entender a desordem, cujo telos necessariamente se resolvia naproposição de uma nova ordem.

Francisco de Oliveira

Para Theo Angelopoulos,Luiz Inácio Lula da Silva e João Pedro Stedile

8 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

O socialismo aparece, então, como a formulação dessa nova ordem destinadaa resolver as questões exponencialmente agravadas. Não é à toa que os utópi-cos desenham, quase sempre, formações muito semelhantes às militares comoparadigma de uma ordem racional; mesmo Marx e Engels não escaparam a essasedução.

A nova classe social foi, por excelência, o operariado industrial. Apesar deuma insistente crítica ao que é apontado como um equívoco, não sem conse-qüências, dessa centralidade, é inegável que ela se constituía na nova e inespe-rada presença na estrutura social, anunciada havia muito nas hordas errantes domedievo. A própria social-democracia, na formulação kautskiana, sustentava-se numa espécie de demografia social, em que a tendência do operariado deconstituir-se em maioria social orientava o trabalho do partido para as tarefasde convertê-lo em maioria política. Isto não se opunha, em nada, às posiçõesdos pais fundadores do marxismo, sobretudo do último Engels, já então inteira-mente empenhado na consolidação da social-democracia alemã. E levou águaao moinho da relação fundadora entre socialismo e classe, posto que o partidose entendia como emanação da classe e a classe era o fundamento do partido.Essa é, sem equívoco, uma concepção majoritariamente marxista, o que nãonega que outras orientações doutrinárias tenham atuado intensamente na “for-mação” da classe operária. Qualquer esforço empírico demonstraria a veraci-dade daquela tendência demográfico-política. A vastíssima literatura está à dis-posição. Não se tratava, pois, de um equívoco. Mesmo no Brasil, pelo menosaté a década de 1970, o crescimento dos contingentes do assalariado industrial,nicho principal do operariado, apontava firmemente na mesma direção.

A história político-social do Ocidente no século que vai desde a Revoluçãode 1848 até os anos 50 do século XX, é a do desdobramento dessa demografiapolítica. Seria ocioso repetir a formação de todos os partidos à esquerda, comprograma socialista, ancorados em parte expressiva da classe operária e, desdeos finais do século XIX, em seus votos; isto inclui também os partidos comunis-

9SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

tas. A única exceção, sobejamente conhecida e que, de fato, introduz umcomplicador não menos perturbador, são os Estados Unidos, onde um formidá-vel operariado nunca produziu um partido de classe relevante politicamente. Eo paradoxo é constituído pelas revoluções socialistas, em cujas formações so-ciais o operariado era ainda figura rara, do que se serviu Lenin para fundamen-tar a origem “externa” do socialismo em relação à classe e, em conseqüência, ateoria do partido como vanguarda, a qual também deitava raízes em Marx eEngels. Em uma palavra, para arrematar uma longa discussão, o que se conhe-ce, hoje, como classe operária é a representação da interação sindicato–classe–partido – e, mais especificamente, essa automútua construção “classe–socialis-mo”. O PT é a última floração dessa tradição.

Centralidade do trabalho e crítica da revolução – Desde Bernstein,faz-se uma crítica à centralidade do operariado, a partir das novas estruturassociais gestadas no movimento da reprodução do capital. De fato, a crítica àcentralidade operária, apresentada como crítica da progressão da divisão socialdo trabalho – assinalando-se o descentramento da indústria nessa divisão –,prossegue, conseqüentemente, com o deslocamento do operário industrial comosujeito da transformação, vale dizer, da revolução. Essa crítica é antiga, de umséculo. Nela destacava-se, de um lado, a progressiva aparição e consolidaçãodo que a teoria chamou insuficientemente de “classe média” ou seu plural e,de outro – confundindo-se, na maior parte das vezes, ambos os fenômenos –, odeslocamento da divisão social do trabalho em direção à terceirização da eco-nomia, aos novos serviços e ao lugar do trabalho nestes. Em Bernstein, o alvoda crítica é claríssimo: não sendo o operariado predominante na estrutura dasociedade, foi-se também a revolução. Habermas, de fato, retoma a crítica deBernstein, entre os modernos, assim como todos os que se enfileiram na críticaà chamada sociedade do trabalho. Destes, um dos mais conhecidos e populari-zados é Claus Offe, de cujas conclusões empíricas parte, declaradamente,

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Habermas. Para Offe só existem, hoje, trabalhos concretos, específicos, parti-culares, não universalizáveis na prática e tampouco na teoria, do que ele con-clui que sem o trabalho abstrato – cimento unificador da classe, não sendo maispossível nem como prática nem como operação teórica – já não existe mais“classe operária”. Já Kurz assinala o equívoco produzido pela teoria do valor-trabalho de Marx nos programas social-democrata e comunista, o que os levou,segundo Kurz, a lutar pelos aumentos salariais, reiterando, com isso, a aliena-ção. Em sua crítica, Kurz freqüentemente se esquece de outra lição de Marx eEngels, sobre a forma ou a aparência como a única via pela qual o real se dá e seapresenta.

A dança frenética das aparências – A economia e a sociologia política dotrabalho fundamentam empiricamente os argumentos da perda de centralidadedo trabalho e, especificamente, do trabalho industrial. Para citar só o caso bra-sileiro, desde os anos 70 o emprego industrial deixou de se afirmar como tendên-cia dominante; ao contrário, assistimos a um movimento de desindustrializaçãono sentido da predominância dos serviços, desde os mais elaborados até os decaráter pessoal, que, aliás, estão em franco crescimento. Esta é, praticamente, arepetição de uma tendência mundial.

Como uma hélice de dupla pá, a esse movimento sobrepõe-se outro, geral-mente denominado de “reestruturação produtiva”, que não é outra coisa senãoa reiteração dos processos de concentração do capital, vale dizer, a forma técni-ca em que se dá o aumento do capital por trabalhador ou, em outro registro, oaumento da produtividade do trabalho. A reestruturação produtiva enxuga osquadros no interior do próprio emprego industrial. Uma certa proporção desseenxugamento deve-se ao que a literatura chama de “reengenharia”, ou mudan-ças nas formas organizacionais da produção. Tudo isso leva a que, mesmo comcrescimento econômico tanto em números absolutos como em proporção, oemprego industrial esteja francamente declinante no mundo todo. Mesmo nos

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serviços, que apareceram inicialmente como uma desindustrialização e comouma contrafação do emprego industrial, a tendência é declinante: basta citar oexemplo da categoria dos bancários, reduzida na região de São Paulo a menosde um terço do que era há apenas uma década e meia. Isso acarreta conseqüên-cias para o movimento sindical, como bem o sabe a CUT (Central Única dosTrabalhadores), para o partido e também para o socialismo.

Uma poderosa mudança nos processos de trabalho está em curso,exemplificada, por excelência, na revolução da microeletrônica. Ela tanto en-xuga os quadros do trabalho em geral como redefine funções, lugares, hierar-quias, relações, transitando do que se chamou de regras tayloristas-fordistas,do trabalho em posição fixa, em cadeia, para o trabalho chamado flexível,polivalente, autônomo, móvel, resumido no que já é denominado de paradigmamolecular-digital, cujas formações disciplinares-produtivas são a célula e aequipe, e não mais o trabalhador isolado em funções prescritas e fixas. É bemverdade que a real porcentagem do trabalho que se organiza sob os novos crité-rios não constitui a maior parte no coração mesmo do emprego industrial, e quetampouco as pesquisas demonstraram haver, de fato, autonomia e ausência deprescrições. O poder real, imediato, ainda está e continuará a estar na gerênciae não ao nível de cada célula. Mas também é verdade que, nos termos deThompson, a experiência de constituição da classe está se alterando.

O toyotismo apresenta-se tanto como uma reestruturação em direção ao tra-balho flexível e autônomo – mais ideologia que realidade – quanto como umaestratégia de des-identidade, ou de redefinição das identidades no mundo ope-rário. Para resumir uma longa literatura, é uma operação ideológica no sentidode operar a transferência da identidade da classe e do sindicato para a empresa.A reengenharia é simultaneamente, pois, a nova forma técnica e a nova formaideológica. Este é o terreno onde está se travando uma das lutas decisivas parao futuro do trabalho ou, melhor dizendo, para se definir o que quer dizer traba-lho. Todas as medidas vão no sentido de abalar e romper a relação classe –

12 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

sindicato. Por exemplo, entre nós, a legislação sobre a participação dos empre-gados nos lucros das empresas transferiu as atribuições que regulam tal partici-pação dos sindicatos para as empresas, que estabelecem com seus quadros deoperários e de funcionários em geral as regras da participação; o sindicato estáfora das negociações.

A propósito, resta fazer menção, na discussão das aparências, ao intenso mo-vimento de informalização das relações de trabalho, uma tendência mundialque se mostra de maneira mais grave, certamente, na periferia. O que se passano centro contribui para esclarecer uma permanente ambigüidade sobre ainformalização: na periferia ela era considerada uma herança de formações pré-capitalistas. Tentei contrapor-me a essa interpretação com o livro A economiabrasileira: crítica à razão dualista, em que argumentei no sentido de propor ainformalização como produto da própria industrialização. As economias maisdesenvolvidas do centro capitalista estão confirmando essa proposição. Os Es-tados Unidos – com um mercado de trabalho classicamente dual, não no senti-do de incomunicabilidade dos dois mercados, mas da divisão entre o setoroligopolista e o não-oligopolista (James O’Connor) – exemplificam melhor quequalquer outro país a nova tendência de informalização, que vai muito além dadivisão proposta por O’Connor.

De fato, a informalidade penetra em uma crescente parcela das ocupações –não do emprego em sentido estrito – nos Estados Unidos, preenchidas, princi-pal mas não exclusivamente, pela grande hispanização da sociedade norte-ame-ricana. Aos já quase seculares mexicanos agregou-se toda a diáspora latino-americana, a ponto de o espanhol ser, hoje, a segunda língua nos Estados Uni-dos, com toda uma rede de mídia voltada para os falantes de espanhol. Os imi-grantes latino-americanos praticamente não necessitam falar inglês; reafirma-se, agora, com esses imigrantes, uma velha característica da imigração queaportou aos Estados Unidos: uma sociedade de guetos nacionais e até regio-nais. Na região de Boston existe um gueto de brasileiros originários sobretudo

13SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

de Governador Valadares (MG) e ali fala-se português correntemente, o que éfacilitado por uma antiga imigração portuguesa na região. Todas as ocupaçõesde baixo conteúdo, baixa qualificação, baixa escolaridade, ilegais, clandestinasconstituem o “mercado” para latino-americanos.

Essa tendência também está presente na Europa, em menor escala e devidoao caráter ainda estruturado do Estado do Bem-Estar, mas na Inglaterra a situa-ção escapa, crescentemente, ao seu disciplinamento.

É na periferia que a informalização ganha velocidade e abrangência incom-paráveis. No Brasil, depois de 60 anos de CLT (Consolidação das Leis do Traba-lho), menos da metade da População Economicamente Ativa (PEA) ocupadaestá regida por um contrato formal de trabalho, cerca de 48%. Descontando-seos empregos no setor público regidos pelos estatutos do serviço público, tem-se ainda que mais de 40% das ocupações no total nacional não têm qualquerforma de contrato. E esse processo está em crescimento, não apenas como umaforma de subemprego disfarçado, mas como a tendência central no mundo dotrabalho no Brasil.

Por último, mas não menos importante, no movimento mais geral de “per-da da centralidade”, para falar nos termos da discussão contemporânea, apre-senta-se o próprio desemprego aberto. Nos Estados Unidos, registra-se a menortaxa entre todos os centros do capitalismo desenvolvido, mas essa taxa – nes-sa conjuntura de apenas 3,9%, e oscilando sempre no máximo até 5% – nãodeve surpreender, pois a metodologia norte-americana incorpora como em-prego o que noutras partes está no desemprego disfarçado; as únicas ocupa-ções consideradas clandestinas nos Estados Unidos são as exercidas pelosnão-possuidores do greencard, direito de permanência naquele país, que quaseequivale a um contrato de trabalho. Na Europa, o desemprego mantém-sepraticamente irredutível, sendo que a Inglaterra apresenta uma taxa de cercade 7% e o restante da União Européia taxas entre 10% a 20%, com uma mé-dia de 12%.

14 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

No Brasil, quando se trabalha com a metodologia da Fundap/Dieese (Funda-ção do Desenvolvimento Administrativo/ Departamento Intersindical de Esta-tísticas e Estudos Socioeconômicos), chega-se aos níveis de 18,6% em São Pau-lo, 20% em Recife e Belo Horizonte e 25% em Salvador. Não há estimativanacional. Com outra metodologia, que subestima gravemente o desemprego aber-to, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estima o desempregonacional em torno de 8% da força de trabalho. Deve-se dizer que tais níveisforam alcançados no governo F. H. Cardoso e mantêm-se irredutíveis desde 1997,oscilando, levemente, em torno dessa nova média. O número de semanas deprocura de emprego vem se elevando sistematicamente e hoje já chega a cercade 36 semanas, o que equivale, em grandes números, à média de meses em queas pessoas se mantêm desempregadas e/ou desocupadas. Vale dizer que o índicede “desalento”, conceito que enquadra as pessoas que não mais procuram em-prego depois de tê-lo procurado por mais de 36 semanas, está aumentando. EmRecife, em janeiro de 2000, tal porcentagem abrangia 4,2% da força de trabalho/PEA. Trata-se, portanto, de um fenômeno de longa duração.

O movimento do real – A dança das aparências, brevemente resumida noitem anterior, resolve-se em dois movimentos mais amplos, reais. O primei-ro diz respeito à extensão do assalariamento, nos termos de Robert Castel.De fato, em que pesem as aparências e a discussão sobre a perda dacentralidade do trabalho, o movimento mais importante segue a direção opos-ta à de uma ampliação do assalariamento, sem paralelo mesmo se for consi-derada a “idade de ouro” do fordismo industrial. A primeira onda de expan-são do assalariamento dá-se com a incorporação das antigas profissões libe-rais: médicos, dentistas, arquitetos, engenheiros, advogados. Os emblemasdas profissões são, agora, assalariados, mesmo que alguns ainda mantenhamatividades “autônomas”. O grande contingente é assalariado do setor priva-do, o que é mais surpreendente.

15SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

A segunda onda de expansão do assalariamento dá-se com a incorporaçãodas categorias genericamente denominadas de “executivos”. Estes, em suasprimeiras aparições na economia capitalista, já neste século, correspondiam acategorias que eram remuneradas segundo seu desempenho, mediante comis-sões, porcentagens sobre vendas e outras modalidades. Mesmo tratando-se desalários realmente, eles tinham a forma disfarçada de “lucro” do empreendi-mento. Essa diferença de forma tornou-se importante porque com a expansãodessas “ocupações” – que, de fato, são formas de substituição do trabalhadordireto e de um novo controle social – a remuneração pelo “lucro” tornou-sepesada, de um lado, e dificultou o planejamento, de outro, além de não refletir,imediatamente, o ciclo de negócios. Agora, a forma é assalariada, com comple-mentos que dizem respeito ao desempenho. A competição foi instalada no pró-prio núcleo dos novos contingentes.

Essas duas novas formas de assalariamento vão na direção oposta, pela mes-ma razão, da redução dos contingentes assalariados do antigo operariado emesmo dos assalariados dos serviços. Em geral, apesar de toda a literatura dasociologia do trabalho, que pensou ter corrigido os “excessos simplificatórios”de Braverman, o movimento segue a direção apontada por ele. É de uma recor-rente desqualificação que se trata. Aqui entra uma questão importante para aformação da classe: se pode-se falar de uma vasta classe de assalariados, postoque a clivagem da propriedade dos meios de produção permanece, no plano dailusão a classe não se completa e é inadequado falar de uma expansãoexponencial da “classe dos assalariados”.

O segundo grande movimento real dá-se com as simultâneas ampliação eprivatização do tempo de trabalho, o que, outra vez, está em contradição com aanálise das aparências. A ampliação se dá em todos os horizontes, começandopor vastas categorias de trabalhadores, sobretudo dos serviços, que têm suajornada de trabalho ampliada (movimento de ampliação da mais-valia absolu-ta): shoppings, hiper e supermercados, redes de farmácia e videolocadoras, lo-

16 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

jas de fábrica, butiques de griffes, postos de gasolina, padarias incrementadas euma imensa coorte de praticamente todos os ramos dos serviços. O paradoxoaqui é que quem está nas novas ocupações é quem trabalha mais, enquanto nasvelhas ocupações ou nos velhos ramos trabalha-se menos: veja, por exemplo,os centros velhos das cidades.

A outra ampliação se dá com os trabalhadores just in time ou on line, valedizer, numa massa crescente de trabalhadores que devem estar à disposição 24horas por dia, embora concretamente isso ocorra apenas ocasionalmente. Sãoos trabalhadores do celular ligado e do pager. Já aparecem em certas categorias– entre as quais o médico assalariado, que trabalha simultaneamente em várioslocais, hospitais e consultórios – é o profissional antecipatório. A tensão doestar à disposição soma-se à negação de qualquer privacidade.

O movimento de ampliação do assalariamento é a outra face de sua privatiza-ção, em sentido rigoroso. Mesmo no que ainda se define como emprego, dá-seuma privatização, que não quer dizer estritamente emprego no setor privado:quer dizer ausência da dimensão pública. A primeira dimensão dessa privatiza-ção ocorre também nos empregos on line: aqui, acaba a distinção entre tempopúblico, o do contrato, e tempo privado, o do não-trabalho. O empregador, ou oEstado, tem direito de invadir o tempo que era, antes, de fruição privada. Podeocorrer, levando para a galhofa, que se esteja na melhor atividade, e aí... toca ocelular!

A mais radical ampliação do trabalho e de sua privatização, mas não doassalariamento, expressa-se na extensão do trabalho ao interior das residên-cias, onde ele se apresenta como um consumo: estou me referindo à utilizaçãode softs com os quais, a partir de nosso computador pessoal, ou nas empresas,acessamos seja dados de pesquisa e intercâmbio de conhecimentos – a internet–, seja nossas contas bancárias, e operamos nossa conta corrente, nossas dívi-das e nossas – de quem, cara pálida? – aplicações; fazemos compras nos super-mercados, solicitamos ingressos para espetáculos, pedimos reserva de vôos,

17SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

com o e-mail substituímos os serviços do correio – e a lista alonga-se diaria-mente. Trata-se, a rigor, de uma substituição do trabalhador do banco e de ou-tros serviços pelos clientes, aos quais nada é pago: ao contrário, pagamos portais serviços. Isto não aparece, absolutamente, seja como trabalho, seja comoemprego, seja como ocupação. E, no entanto, sem essa nova categoria não secompreenderia a enorme redução de contingentes de trabalhadores desses ra-mos de serviço, tais como os bancários, já referidos. A economia que a empresafaz na folha de salários e na planta de trabalho, fábrica e/ou escritório, aindanão foi calculada, mas é fantasticamente ampla. Importa assinalar que tais mo-dificações, ampliações e diluições das fronteiras do trabalho têm uma elevadaincidência na formação da taxa de salário, enviesando-a para uma tendênciadeclinante. De fato, apesar dessa expansão, assinala-se uma estagnação dossalários reais como fenômeno mundial, mesmo nos Estados Unidos. No Brasil,tal tendência declinante é claramente visível.

Passagem na neblina – Esse conjunto de modificações pede, evidentemen-te, uma nova abordagem sobre o trabalho e as categorias de trabalhadores que oexercem, ou dos que trabalham mas não são trabalhadores. Necessariamente,isto terá impacto sobre a classe social e, por conseqüência, sobre a relação en-tre classe e socialismo. Ninguém dispõe da resposta, para não prometermos oque não se pode oferecer. Por isso, estamos em meio à neblina e, como noslembrava Paulinho da Viola, nessas condições, “levemos o barco devagar”...1 Olongo movimento industrializante da primeira e da segunda revoluções indus-triais, por suas formas técnicas, virtualmente abriu o caminho para a formaçãode grandes massas de trabalhadores que, apropriando-se dessa relação, emdialética com o socialismo, deram lugar à classe operária. Tratou-se de ummovimento no sentido da publicização das relações. O Estado do Bem-Estarsurge na esteira desse processo: aprofundamento da situação operária, proleta-rização dos serviços, ampliação do assalariamento; por isso a rede pode tornar-

1. Referência à música ”Argu-mento”, de Paulinho da Viola,que diz: “Sem preconceito oumania de passado/ sem quererficar do lado de quem não quernavegar/ Faça como o velhomarinheiro/ Que durante onevoeiro/ Leva o barco deva-gar”.

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se universal. A publicização aparece como um processo em que os canais pri-vados são insuficientes para o processamento das relações operário/assalaria-do/patrão, seja do ponto de vista da enorme ampliação do conflito, seja do pon-to de vista da acumulação do capital. Sabem-se os resultados que produziu: aconstituição de uma sólida classe social, o deslocamento do conflito do contra-to mercantil para o campo dos direitos sociais, e, no limite, pelo papel do fundopúblico na acumulação, uma espécie de poder de veto sobre o capital. Este é ofundo do conflito do qual emergiu, como reação, o neoliberalismo.

De outro lado, conforme o breve resgate anterior, um movimento de pinçasleva simultaneamente à ampliação quase sem fronteiras do assalariamento e àrevolução eletrônica. Esse duplo movimento conduz, paradoxalmente, a umanova virtualidade de privatização das relações sociais, seja pelo deslocamentoda centralidade do operário industrial, pela des-localização do trabalhador deserviços, pela anulação da diferença entre espaço público e espaço privado oupela junção entre trabalho-coerção e trabalho-consumo. Amplia-se o tempo detrabalho total, como resultado mais geral.

Teoricamente, o esquema de Marx do “exército industrial” parece ser maisatual do que nunca, mas sua compreensão requer uma nova interpretação. Aampliação do assalariamento operou uma fusão entre as frações intermitente elatente do exército industrial: praticamente todos os trabalhadores converte-ram-se em membros intermitentes/latentes pela permanente desqualificação epela informalização. A fração propriamente ativa tornou-se minoritária, enquantoa fração estagnada ou lúmpen tende a crescer. Essa extraordinária mudançaopera perversamente no sentido da transformação social revolucionária, a qualsignifica, como sempre, uma mudança radical na direção do socialismo. Se amudança revolucionária ganha virtualidade na medida em que se amplia a basesocial assalariada, esta contém novos elementos que dificilmente podem serrevolucionários, uma vez que a eles não interessa nenhuma modificação. Essajunção não é sem conseqüências: o fundo público não se constitui, posto que

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essa negatividade permanente transforma-se numa exceção permanente, a qualfrustra precisamente o contraditório: tudo se passa como se o trabalhador fosseseu próprio adversário. A trajetória dos trabalhadores – que o são – do informalatesta isso todos os dias. Aí surgem tendências irracionais, para as quais Fer-nando Haddad chamou a atenção em artigo publicado na revista Praga. O Esta-do capitalista retira desse movimento sua justificativa para a desestruturaçãodo Estado do Bem-Estar ou de seu arremedo no Brasil: um eterno movimento“pendular”, como o chama o filósofo da corte, impede qualquer previsibilidade,e o Estado se dissolve: sem previsibilidade, não há Estado como “conforma-ção” da sociedade. A fração ativa, tornando-se minoritária, perde em influên-cia, pelo seu número reduzido, e em radicalidade, porque os fundos públicosque se originam da relação contratual, que se reitera como estruturante da re-produção do capital, transformam-na numa espécie de “sujeitos monetários”,como os chamou Robert Kurz. A gestão dos fundos públicos torna-se seu obje-tivo maior, em vez de estabelecerem o objetivo político de sua apropriação.Entre nós, isto é exemplificado pela gestão do FAT, PIS-PASEP (Plano de Integra-ção Social-Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público), FGTS

(Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). A fração lúmpen da reserva, forada reserva, que cresce exponencialmente sob todas as formas degeneradas, écriada e reproduzida pelo fato de ser excluída: ela é excluída peladescartabilidade permanente, a qual se transforma numa ausência de formas. Otráfico de drogas, que está longe de ser o único emblema dessa nova situação,não cria nem pode criar nenhuma relação, posto que alimenta-se de sua própriaexceção. O lúmpen tampouco pode ser considerado como parte do conjunto detrabalhadores, a não ser num vago sentido moral, já que também é vítima dosistema.

Na política, tais tendências levaram à extensão do espectro político dos par-tidos de esquerda na direção da inclusão do voto das chamadas “classes mé-dias” sobre a base material do assalariamento dos antigos profissionais libe-

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rais. E, dessa forma, o Estado do Bem-Estar também se universalizou, tornan-do-se o principal financiador da acumulação de capital. A expressão do movi-mento de ampliação da base assalariada, com a inclusão dos “executivos”, le-vou aos partidos-ônibus, refletindo a aparência da indiferenciação. A “terceiravia” é a forma contemporânea dessa tendência e, não à toa, o tucanato é expres-sivamente na história política brasileira a indiferenciação entre empresariado eExecutivo. O PT apresenta também, em graus atenuados, essa indiferenciação,que se expressa, de maneira não isenta de conseqüências, na perplexidade dopartido.

Há contratendências em andamento. A mais citada é certamente o MST (Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que realiza, por seu lado, a fu-são entre o operariado rural e os pequenos empresários despojados. Aradicalidade do MST é dada, um tanto paradoxalmente, pela sua ala de “proprie-tários”, com o programa da propriedade da terra de forma ampla. É aí que resi-de sua radicalidade. No que diz respeito ao movimento sindical que representaa fração ativa do exército industrial, há, por um lado, um programa tipicamentede “sujeitos monetários” sem radicalidade política e, de outro, a disposiçãopara implementar contratos nacionais, o que se transforma numa operação deradical transversalidade, pois significaria a redução do espectro de desigualda-des regionais e setoriais que o capital aproveita para manter a taxa de lucro.Aponta também para a redefinição das relações verticais entre os vários níveisde poder, com o que refaz o pacto federativo, a relação com o Mercosul e arelação com o capital internacional-globalizado. O conflito de classes tem comoclivagem principal a utilização do fundo público. A orientação da esquerda aesse respeito será decisiva para a fundamentação de um projeto socialista alter-nativo, pois sem base material unificadora não há classe social no sentido polí-tico; sem ela, o movimento da dança frenética se imporá.

Não se trata, pois, apenas de valores e de radicalização da democracia: essaradicalização ultrapassará rapidamente os limites da política, ou regredirá como

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um movimento de retroalimentação da dança frenética. Na história das rela-ções classe – socialismo nada foi automático e, se o capitalismo criou as condi-ções virtuais da classe com a industrialização e a proletarização, o movimentocontestador de parte dos trabalhadores criou o socialismo e a classe. Agora,pede-se a reprodução da mesma relação: há bases materiais que ampliam nãoapenas a desigualdade mas a irredutibilidade de interesses, porém, outra vez, seesta é a condição necessária, a elaboração da alternativa política, de um novomodo de produção fundado nos próprios valores do trabalho e na sua dimensãocivilizatória, será condição suficiente. Em direção ao Santo Graal, na passagemna neblina.

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23SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

Comentários

Alegro-me em estar neste debate com antigos e jovens militantes da causasocialista e alegro-me também pelo fato de os coordenadores terem cons-tituído, em minha opinião, uma mesa plural, no sentido de que os que estamosaqui podemos contribuir olhando a luta de classes de trincheiras diferencia-das, seja do ponto de vista da pesquisa, seja do parlamento, seja do partidoou das lutas sociais.

De minha parte não quero ter a pretensão de comentar os ensinamentos doprofessor Francisco de Oliveira, embora tenha recebido o texto de sua palestracom antecedência. Quero trazer uma contribuição como militante social. Maisdo que respostas ou interpretações da realidade, como o professor apresentoumuito bem, quero trazer indagações e reflexões para que possamos encontrarrespostas para os nossos desafios. Respostas que nós, dos movimentos sociais,vemos como necessárias para sabermos como conduzir a luta social rumo aosocialismo.

Gostaria de lembrar, até em homenagem aos jovens que têm acompanhadoestes debates, que houve, na tradição da esquerda brasileira e dos partidos quenos antecederam, muitos equívocos de interpretação da nossa sociedade. Eumesmo vivi ou estudei muitos desses equívocos, entre os quais poderia citar o

João Pedro Stedile

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peso excessivo que se dava, nas décadas de 1960 e 1970, ao caráter revolucio-nário do operariado industrial em si, e um certo desprezo em relação aos cam-poneses, que naquela época eram ainda 50% ou 60% da nossa população.

O velho Partidão (Partido Comunista Brasileiro) também cometeu os equí-vocos da sua tradicional ilusão sobre o papel da burguesia nacional no processode transformação do país. Da mesma forma, não conseguiu interpretar as rela-ções sociais no campo e atribuiu ao caráter latifundiário da nossa burguesiaagrária um conteúdo feudal; e por isso defendia a aliança com a burguesia na-cional para fazer uma reforma agrária antifeudal.

De certa forma, o PCdoB (Partido Comunista do Brasil) cometeu os mesmosequívocos, com o sinal trocado, quando adotou a estratégia de guerra popularprolongada e passou a considerar os camponeses do Brasil como se fossem aforça principal e dirigente do processo revolucionário.

Felizmente, naquele mesmo período, alguns intelectuais de esquerda comoRui Mauro Marini, o querido professor Florestan Fernandes e Caio Prado Jr.travaram um intenso debate que nos ajudou a compreender os equívocos quehavia nas interpretações das lutas de classes e da natureza da realidade socialdaquele tempo, de maneira que acredito já ter sido feito um acerto de contasteórico com a esquerda da década de 1960.

Os desvios de análise da década de 1990 – O segundo elemento a serconsiderado é que estamos assistindo a um processo de mudança do modeloeconômico. O modelo de industrialização entrou em crise e as elites estãoimplementando outro modelo, que subordina a nossa economia ao capital fi-nanceiro internacional.

Esse novo modelo – que ainda está em curso – foi hegemonizado ideologica-mente pelo neoliberalismo e trouxe muitas conseqüências perversas às análisesdas classes sociais no Brasil. Aliás, acho que ainda não fizemos um acerto decontas com o que podemos chamar de equívocos de análise da década de 1990.

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Esses equívocos, pelo que tenho lido e estudado, têm várias origens, a começarpelo processo de cooptação da intelectualidade universitária.

Houve também um processo de influência das idéias difundidas pelo BancoMundial, que, em muitos casos, passou a ser o centro gerador de ideologias; emoutros, o centro gerador estava nas universidades do exterior, especialmente asnorte-americanas. Isso causou, na minha opinião, uma influência negativa naforma como a esquerda, ou alguns setores da esquerda, passaram a analisar asociedade brasileira.

E, de 1990 para cá, assistimos ao abandono de conceitos clássicos elabora-dos por Marx e ao surgimento de terminologias como “sociedade civil”, queescondem a verdadeira face da sociedade, como se ela fosse um aglomerado deinteresses comuns, como se não estivesse mais dividida em classes com inte-resses diferenciados e às vezes antagônicos. Então, tudo se resumia à tal socie-dade civil, que ninguém entendia o que era, assim como se começou a dar umaproeminência maior a um ente chamado “opinião pública”, como se a “opiniãopública” virasse um referencial de lutas e um indicador da ideologia corretapoliticamente para os interesses da classe trabalhadora.

Da parte dos trabalhadores, começaram a ser defendidas idéias de“pluralidade”, como se fosse moderno que cada um pudesse dizer qualquerbesteira, como se a pluralidade fosse sinônimo de idéias justas e necessárias.

O Banco Mundial começou a definir os pobres e os trabalhadores comopopulação de “baixa renda”, de maneira que, de uma hora para outra, o nos-so proletariado, os nossos pobres do campo passaram a ser apelidados comesse conceito que ninguém sabe o que é – trabalhadores de baixa renda –, eesse conceito foi multiplicado em muitos documentos divulgados. Entre a classemédia e/ou entre os profissionais liberais proliferaram outras idéias genéri-cas, como a de cidadania, fazendo com que se esquecesse ou se escondessepor trás dela a contradição que existe em nossa sociedade entre capital e traba-lho. Parecia, então, que a cidadania, o direito de falar em público, o direito de

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pensar livremente resolveriam por si só as contradições fundamentais da so-ciedade.

Também vimos muitos setores de esquerda apresentarem agora, como ques-tões centrais para as transformações sociais, as questões de gênero e de raça.Embora tenha havido também grupos e intelectuais que conseguiram formularuma interpretação que casava as questões de gênero e de raça com a luta declasses. Mas, em muitos grupos feministas que proliferaram pelo Brasil afora,é impressionante o desvio ideológico que isso causou. Como se a nossa compa-nheira Dorcelina Folador – prefeita da cidade de Mundo Novo, no Mato Grossodo Sul, líder dos sem-terra, assassinada pelas oligarquias locais – tivesse asmesmas contradições de classe que dona Tânia, presidente da UDR (União De-mocrática Ruralista).

Por último, falando desse abalo ideológico da interpretação das classes noBrasil, considero que o Banco Mundial e outros organismos internacionais con-seguiram fazer um estrago muito grande com a criação das ONGs (organizaçõesnão-governamentais).

A maioria delas, mesmo com boas intenções – embora o inferno esteja cheiode gente bem-intencionada –, acabou apenas servindo como uma espécie decabide de emprego confortável em que os intelectuais se afastaram da luta declasses. Não existe coisa melhor neste país de pobres e miseráveis do que um“estudado” egresso da universidade tornar-se dirigente de ONG: ele ganha mui-to bem, não precisa se preocupar com nada, limita-se a redigir artigos que sãopublicados na Folha de S. Paulo ou em revistas da moda.

Acredito que isso foi um estrago porque, na tradição de esquerda, todos sabe-mos que é necessária a constituição do que poderíamos chamar de intelectuaisorgânicos. E as ONGs, o que fizeram? Os intelectuais foram separados da lutade classes para ficarem em uma entidade que não tem compromisso nenhumcom a transformação da sociedade, tem compromisso apenas com o seu bem-estar social e pessoal.

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Acho que, no campo da esquerda, devemos ainda produzir um balanço críti-co, uma resposta a esses elementos, assim como já fizemos em relação à décadade 1960. Não temos, por enquanto, uma resposta científica e ideológica a essesdesvios que, na minha opinião, ainda influenciam a organização dos trabalha-dores no Brasil.

As transformações recentes – Há um terceiro elemento que gostaria dediscutir. É evidente que a realidade brasileira mudou muito nos últimos 20anos, e o professor Francisco de Oliveira descreveu com muita propriedadealgumas das transformações que aconteceram. Certamente, a base destas trans-formações está no que foi referido antes, na mudança no modo de acumulaçãopredominante na sociedade, pois saímos de um modelo industrial, que geravamais empregos e entrou em crise, e entramos num modelo de acumulação emque o capital financeiro e estrangeiro tem a hegemonia. Esta forma de reorga-nização do processo de acumulação no Brasil acarreta conseqüências imedia-tas nas relações sociais, no trabalho, no emprego e nas classes sociais deleresultantes.

Assim, podemos concordar que o operariado industrial perdeu o seu pesorelativo na nossa sociedade, mas isso não significa que o trabalho tenha perdi-do o seu carácter gerador de riqueza. Nada ainda é criado neste mundo emtermos de riqueza e bem-estar que não seja fruto do trabalho. Portanto, a basede qualquer sociedade, da produção e das relações econômicas é ainda o ho-mem que produz, o homem que trabalha e vive do trabalho.

É certo que a classe trabalhadora, neste sentido genérico, se multiplicou emdiferentes grupos sociais, uns talvez mais atomizados ou desorganizados, mastodos ainda vivendo do seu trabalho. Esse novo modelo introduziu novas for-mas de trabalho que ampliam a parte do capital constante e diminuem a parterelativa ao capital variável, mas, em essência, nada se produz sem que hajatrabalho morto ou vivo.

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Também percebe-se, nessa mudança da realidade, que houve um processo definanceirização da classe hegemônica brasileira, que acabou reduzindo aindamais os setores dominantes, sobretudo entre os banqueiros, as multinacionais eos grupos econômicos, mesclados entre si com o capital financeiro e o capitalinternacional.

Talvez desta análise de classe possamos entender essa vontade incontestá-vel que os tucanos têm de também se transformarem em banqueiros. No fun-do, eles sabem que só assim serão classe dominante neste país. Afinal de con-tas, o que controla o modo de acumulação predominante atualmente é o capi-tal financeiro.

Mas também assistimos a outras mudanças importantes em termos de reali-dade brasileira, que podemos chamar de “lumpenização” da nossa sociedade.(A expressão lumpenização refere-se à ampliação do setor social classificadopor Marx como lúmpen, que existiria em todas as classes sociais. Ele atribuíaaos lúmpens características do setor social miserável, que não vive do trabalho,mas do oportunismo social e de negócios ilícitos.) Há uma lumpenização dossetores mais pobres, sobretudo nas periferias das cidades, e há também alumpenização da classe dominante: um grande setor da burguesia brasileiradeixou de acumular dinheiro na produção, na exploração do trabalho, e passoua dedicar-se a negócios ilícitos.

É impressionante o volume de dinheiro que circula nesses negócios ilícitos.Recentemente, o historiador Valter Pomar comentava em um debate que hoje,para operar o negócio de narcotráfico, é preciso ter um capital inicial de pelomenos R$ 7 milhões. Não é negócio para quem mora na periferia. Na semanapassada, estive com o brigadeiro Sergio Ferola, num intervalo de um debate naTV Senado, e ele falou sobre a entrada de aviões ilegais, na fronteira brasileira,carregados de armas e cocaína, que, infelizmente, a aeronáutica não pode inter-ceptar e derrubar, porque a lei proíbe. (Há um projeto para mudar esta lei trami-tando no Congresso há mais de dez anos. Por que ele está parado há tanto tem-

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po?) Ora, são 300 aviões carregados de cocaína e armas por mês, que realizamviagens ilegais a partir do Paraguai e da Bolívia para o Brasil.

Certamente as nossas elites estão envolvidas até o nariz com esse processode lumpenização, que envolve não só o comércio mas, sobretudo, a lavagem dedinheiro em nossos melhores bancos.

Finalmente, é um debate interessante o que o professor Francisco de Oliveirapropõe: qual seria, então, o nosso exército industrial de reserva? Na época deMarx era chamado industrial, hoje não mais. Talvez o exército industrial dereserva seja constituído pelos jovens que estão nas faculdades. Os migrantesdo campo não são mais exército industrial: uma população em que 65% sãosemi-analfabetos ou têm até o 3º ano primário completo não consegue maisdisputar emprego nas grandes cidades, de maneira que vem para a cidade nãomais como um exército industrial de reserva, mas como um grupo de excluí-dos, pessoas descartáveis que não cumprem mais nenhum papel neste processode acumulação que as elites estão coordenando.

As mudanças sociais no campo – Um quarto elemento que gostaria decomentar diz respeito às mudanças no campo.

Certamente, o professor José Graziano da Silva, que está aqui conosco naplatéia, está muito mais capacitado para comentá-las, porque as tem estudadocom rigor, mas, em termos gerais, nós do MST temos percebido que, do pontode vista da produção agrícola, as mudanças que aconteceram deixaram as clas-ses sociais mais nítidas do que em relação à década de 1960. Houve uma espé-cie de peneira nas relações sociais, talvez o processo de modernização do cam-po as tenha levado a se tornarem mais claras.

Assim, grosso modo, posso dizer que existe hoje no Brasil uma burguesiaagrária proprietária. A natureza principal dessa burguesia é que ela se misturacom o capital industrial, financeiro e comercial, não tem necessariamente ori-gem no campo, mas coordena o processo produtivo da agricultura brasileira,

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chamada moderna. Há também uma outra fração da burguesia agrária que po-demos chamar de burguesia agrária rentista, atrasada – os latifundiários – e queem sua maioria vive com base na pecuária extensiva.

Existe ainda uma pequena burguesia que se modernizou, que seria mais oumenos do tipo farmer norte-americanos – e em geral possui em torno de 100 a500 hectares, se mecanizou, tem poucos empregados e também trabalha. Tor-na-se uma classe, usando um termo da moda, emergente – uma pequena-bur-guesia no meio rural.

Há uma quarta classe que poderíamos definir como a dos camponeses quetrabalham por conta própria ou são sem-terra e trabalham como parceiros,meeieros, arrendatários etc. Essa classe está em franca decadência, diminuin-do em número expressivo a cada censo, porque ela não consegue, nesse mode-lo econômico, se reproduzir como camponeses. Há também um proletariadorural formado pelos assalariados temporários e permanentes, que, tambémsegundo dados estatísticos, vem tendo o seu peso social diminuído na agri-cultura brasileira.

E, finalmente, extrapolando a atividade produtiva agrícola, como bem temnotado o professor José Graziano, o que se percebe de novo é que, no meiorural, multiplicaram-se outras atividades não-agrícolas que estão gerando ou-tras relações sociais. Esses trabalhadores podem ser chamados, genericamente,de rurais, porque estão nesse meio, mas não são trabalhadores agrícolas e nãoestão ligados a atividades produtivas da agricultura. Podemos dizer que cercade 30% da população que vive no meio rural realiza atividades não-agrícolas, oque é uma tendência recente e crescente

Os desafios do futuro – Finalmente, quero trazer para consideração de to-dos outra reflexão para o debate sobre classes sociais e socialismo. Estamosinteressados e preocupados em compreender quais são as classes, quais são osinteresses políticos e particulares que a nova realidade brasileira produziu. Se-

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ria também importante que trilhássemos outro caminho complementar, que é ode tentar descobrir quais são as principais contradições que o nosso povo vivehoje. A superação dessas contradições é que pode nos levar a um processo detransformação social ou ao socialismo. Para não cairmos num processo doutri-nário de classificar as classes sociais e depois ficar procurando qual delas é amais importante, qual é a revolucionária, qual é a dirigente.

Talvez o melhor caminho seja, então, debater e refletir sobre quais são ascontradições fundamentais que o nosso povo, a classe trabalhadora, enfrenta nasociedade atual. Temos, sem dúvida nenhuma, uma contradição gerada pelanossa dependência externa que não foi resolvida, ou seja, mais do que nunca aidéia de um projeto nacional está presente em nossa sociedade, porque as elitesimplantaram um modelo que aprofundou ainda mais a dependência – e pior, emrelação ao capital internacional financeiro.

Segunda contradição: é impossível considerarmos um processo de desenvol-vimento econômico igualitário, que consiga gerar um Estado de Bem-EstarSocial para a população, distribuir riqueza e renda sem enfrentarmos a contra-dição entre capital e trabalho. Essa é uma contradição presente, pois sabemosque não será o projeto de renda mínima que irá resolver o problema de desen-volvimento econômico do país e gerar uma sociedade igualitária. O programade renda mínima é importante e necessário para que os mais pobres não mor-ram de fome e tenham o mínimo de dignidade em suas condições de vida.

Poderíamos classificar uma terceira contradição como a revolução democrá-tica, que a burguesia não resolveu no país; mais especificamente, a questão dosdireitos democráticos da nossa sociedade. O primeiro deles é o da terra. A terraé um bem da natureza, não há necessidade de uma revolução socialista para sefazer a reforma agrária. A expressão reforma agrária foi cunhada pela própriaburguesia industrial, na Europa, mas a burguesia brasileira não quis, não quer enão vai fazer uma reforma agrária, daí esse conflito permanente que temos comela. O MST é odiado não porque tem um peso social importante, não porque

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somos tão radicais quanto eles falam, mas, na verdade, porque a burguesia nãoquer resolver essa questão e distribuir a propriedade da terra, que é uma ban-deira democrática, assim como a moradia e a escola pública e gratuita pelasquais os companheiros lutam.

A burguesia não quis e não vai resolver essa contradição e, portanto, noscoloca na ordem do dia.

Por último, há a contradição do monopólio dos meios de comunicação e dacultura, que é exercido por um grupo minoritário da burguesia e que manipulamentes e corações. Manipula o lazer da população e, sobretudo, transforma-seem cultura de massas, que retira até mesmo a dignidade do povo, impede queele se desenvolva cultural e espiritualmente de uma maneira digna. Então,proponho que incluamos neste debate sobre classes sociais rumo ao socialis-mo o debate sobre como enfrentar as contradições que estão presentes emnossa sociedade.

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Comentários

Crítica e resgate – Boa tarde. Ao ser convidado para este debate, confesseiaos organizadores que teria dificuldades para expressar o meu ponto de vistasobre o tema de que tratam este seminário e esta mesa, pois a temática talveznão fosse a mais adequada para mim na medida em que minhas formulações sesituam em outro terreno: a crítica ou o resgate. Mas fiz um esforço para mesituar neste debate e vou usar com toda a cautela a frase do Paulinho da Viola,citada pelo professor Francisco de Oliveira, que, numa leitura livre, diz: “Nascondições dos desafios, devemos levar o barco devagar”. Então, se eu entrar nacontramão e fizer algumas sinalizações que incomodem os corações e as men-tes deste auditório, será de uma forma muito aberta – até mesmo uma ousadia,porque pretendo expressar o que tenho dito nos debates sobre o PT.

Como se trata de um debate, devemos dar prioridade aos pontos de discor-dância. Toda a parte do texto do professor Francisco de Oliveira que analisa osprocessos de mudanças das relações e dos padrões de trabalho e suas implica-ções na organização dos trabalhadores está magnificamente bem elaborada. Bastaapenas registrar essas concordâncias, pontuá-las seria estender mais o assuntofazendo apenas reafirmações. Peço, então, ao professor, permissão para entrarnos pontos polêmicos deste debate, que é muito caro para nós de esquerda.

José Genoino

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Todos sabem que não tenho nenhuma formação ou experiência que me dêcondições de aprofundar temas extremamente complicados como este, classessociais e socialismo. Porém, é um tema que, no meu entender, é o mais delicadoda esquerda e vou ousar discorrer sobre ele.

Um ponto de discordância que tenho em relação ao texto do professor dizrespeito à relação funcional entre as classes sociais e o socialismo, ou aindaentre a classe operária e o socialismo, em particular na visão marxista. Prelimi-narmente, trata-se de reconhecer que há uma relação de indeterminação de mútuocondicionamento entre a realidade social e econômica e a esfera política, masesse mútuo condicionamento não pode ser lido como uma relação causal oucomo nexo de causa e efeito. Pelo contrário, é preciso notar a relativa autono-mia do social, do econômico e do político.

A luta de classes e as dimensões da luta política – Dito isso, parecerazoável supor que as classes sociais pertencem às esferas da realidade social eeconômica da sociedade, mas, claramente, as classes sociais são realidades so-ciais empíricas que não pertencem à esfera da política no sentido estrito doconceito.

Assim, uma classe social não é um sujeito político que define programas,ações e ideologias. Os indivíduos que pertencem a uma classe têm um campode interesses comuns que podem ser articulados e apresentados de forma cons-ciente por organismos de natureza associativa ou política, como associações,ligas, sindicatos e partidos. Mas todos esses organismos são esferas de repre-sentações de interesses, não se reduzem e também não se confundem com aclasse em relação à luta de classes, no sentido que foi dado à primeira pelateoria da vertente mais dogmática do marxismo.

A luta de classes é um fenômeno real e operante na política e devemosreconhecê-la como ponto fundamental para entender a sociedade. Mas a luta declasses não constitui, na minha opinião, um paradigma para vislumbrar uma

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racionalidade última e não abrange todas as dimensões da luta política dos ho-mens no final do século XX. Nesse ponto, posso dizer a todos claramente quefazem parte da disputa política realidades e problemas que não se explicampela luta de classes.

Fazendo uma brincadeira com o Stedile, vou proferir uma frase que já foidita por mim num debate sobre o aborto, em que havia um público formado porum grupo de mulheres ricas e outro de mulheres pobres. Eu disse que a gaiolade ouro e a gaiola de papelão que oprime as mulheres da favela e as mulheresdo Morumbi são ambas opressoras e discriminam as mulheres pela sua condi-ção feminina. Isto é, a explicação da questão de gênero pelo conceito de luta declasse reduz, do ponto de vista dos valores, nossa interpretação dos seres hu-manos. Inclusive, esse é um dos pontos que devemos, no meu modo de ver,criticar radicalmente nas experiências socialistas no mundo.

Por sua vez, os partidos são organismos de natureza política vinculados auma dimensão intersubjetiva, ética, estatutária e programática. Estabelecemações de adesão, de afinidades e de objetivos comuns, e se definem por seusprogramas e por suas ideologias.

Dessa forma, não são organismos de classe nem suas encarnações, apenas seremetem programaticamente às classes e procuram conferir racionalidade aosseus interesses, além de se auto-atribuírem a missão de representá-los. Masessa representação de interesses é sempre uma auto-atribuição e somente isso,nunca uma decorrência causal radicada em algum princípio ontológico funda-dor da classe.

Socialismo e classe operária – O socialismo como proposta de organizaçãode uma nova ordem social, econômica e política é o resultado de atividadesteóricas de indivíduos e de ações políticas de partidos, não podendo, portanto,ser entendido como uma substância secretada pela própria classe operária. Odesenvolvimento das forças produtivas não faz surgir a base social do socialis-

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mo, assim como a classe operária não tem a missão histórica de formar umreino universal humano que transcenda os seus próprios integrantes. Voltarei aesse tema mais tarde, para dizer como Lenin tratou do partido e da classe dedentro para fora.

Portanto, na minha avaliação desta relação, não reconheço uma verdade in-trínseca à classe capaz de emancipar toda a sociedade, negando, em seu ser, oseu próprio ser de classe. Acho que esse problema aconteceu fundamentalmen-te nos países desenvolvidos quando a classe operária optou por reformas docapitalismo, principalmente pela via da social-democracia. A relação entre classeoperária e socialismo se reduz ao simples fato de que a primeira constitui oambiente empírico sobre o qual a teoria e a proposta política do segundo seelaboram, mas o socialismo não é uma produção da classe, até porque as clas-ses sociais com determinações empíricas da sociedade não constroem elabora-ções teóricas nem programas políticos. A meu ver, foi uma das vertentes domarxismo que definiu a verdade e a missão da classe operária, prevendo o seucurso na história.

Nesse sentido, parece não haver uma relação reciprocamente fundadora, nemno sentido que vai da classe operária ao socialismo nem no que percorre ocaminho contrário. Esses dois elementos, do ponto de vista de sua constituição,originam-se de forma autônoma. A classe surge por conta de determinações ecircunstâncias históricas e o socialismo a partir de atividades conscientes deindivíduos, movimentos e partidos políticos.

O que há entre ambos os termos são relações de mútuos condicionamentos;assim as relações empíricas entre forma de existência, constituição e organiza-ção das classes, como as que foram observadas pelo professor Francisco deOliveira, podem suscitar reelaborações das teorias socialistas.

Mas estas reelaborações não são uma decorrência necessária das mudançasque ocorrem no contexto das classes. Uma mesma mudança pode suscitar in-terpretações diferentes, inclusive dentro de um partido como o PT, e podem

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suscitar em alguns a afirmação dos princípios clássicos do socialismo, e emoutros tentativas de reelaborar posições socialistas e de criticar não só a verten-te do socialismo/comunismo em fase de transição, mas, até mesmo, a perspec-tiva socialista.

Portanto, a idéia de que a classe tem consciência de si como tal, de uma linhajusta, de um espírito de classe, origina-se do fato de esta classe ter (acreditarem) uma verdade, que terá de ser representada por um partido político. Até opróprio Lenin percebeu o caráter problemático da suposição de uma relaçãocausal entre classe e socialismo e entre classe e partido ao elaborar a teoria daexternalidade do partido em relação à classe. Porém, a saída que ofereceu paraum problema corretamente percebido não deixou de ser problemática, pois odogma de a classe ser o sujeito da revolução propunha que a verdadeira cons-ciência revolucionária fosse reelaborada por um organismo político, um parti-do situado fora do contexto da existência empírica da classe. Trata-se de umaespécie de transmutação da teoria mística da encarnação para a esfera do parti-do e das classes.

A classe encarnaria o povo e vice-versa. A classe, o verdadeiro sujeito darevolução, não é capaz de formular a verdadeira consciência revolucionária; énecessário o seu órgão encarnador, o partido, para que esta formulação aconte-ça. As decorrências do ponto de vista prático e teórico deste tipo de partidosão bem conhecidas, tanto nos países em que houve uma relação entre classeoperária e partido como nos países em que esta não existia, e a missão históri-ca dos partidos de vanguarda foi realizar, nesses países que não tinham classeoperária industrial, a missão histórica, como foi o caso da revolução campo-nesa na China.

Partidos socialistas no continente americano – O professor Francisco deOliveira percebe muito bem que, no Ocidente, os Estados Unidos foram a gran-de exceção na coincidência histórica entre a expansão do operariado industrial

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e o crescimento dos partidos socialistas, mas pode-se dizer que todo o conti-nente americano se inscreve nessa exceção, incluindo o Brasil com o PT. O PT

não é um partido cuja atividade política está centrada na proposição do socia-lismo. Na sua essência, o PT é um partido de esquerda que procura oferecersaídas e alternativas políticas no contexto da reforma da democracia, no senti-do de sua radicalização, de afirmação e de ampliação de direitos individuais,num contexto de luta contra o capitalismo, de democratização da propriedade,da riqueza e do poder. Nesse sentido, entendo que as referências do PT ao socia-lismo no VII Encontro e no II Congresso do partido são um referencial impor-tante, na medida em que estou aqui questionando, ou ousando questionar, abase científica do modelo econômico do socialismo, mas não estou deixandode tomar como referência paradigmas, valores, causas e adesões.

Os vínculos mais fortes entre socialismo e classe operária foram criados ondeo feudalismo foi particularmente marcante, onde os privilégios sociais se pro-longaram por muito tempo. Nesses países, o liberalismo desenvolveu-se tantocomo reação aos privilégios feudais quanto como alternativa às monarquiasabsolutistas. Lenin e o próprio Marx consideravam o socialismo uma espéciede brotação política do liberalismo no momento do industrialismo e dos traba-lhadores industriais.

Entendo, portanto, que o PT procura representar interesses sociais mais am-plos, fazendo uma opção, na defesa desses interesses, por aquela representaçãode setores de classes que chamamos de explorados e oprimidos. Talvez seja porisso que o PT consegue afirmar-se e crescer como partido de esquerda nesteambiente pós-queda do muro de Berlim e talvez seja isso também o que impedeo PT de centrar sua atividade política cotidiana em torno do socialismo. Porém,é preciso reconhecer que os elementos de estudo do PT em torno de suaespecificidade são precários e não passam de hipóteses. A hipótese mais ricado PT é exatamente a sua proposta laica pluralista em relação à teoria de não serportador de uma verdade científica como partido político.

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Trabalho e revolução – Ao sumariar de forma simples e eficaz a crítica àcentralidade do trabalho e da revolução, o professor Francisco de Oliveira mostraque ela se remete às tendências de progressão da vida social do trabalho, dadiminuição relativa da atividade industrial, do crescimento dos setores de ser-viço e, contemporaneamente, à revolução eletrônica, à automação e às teleco-municações. De fato, esses processos produziram, no terreno social, uma des-centralização da clivagem tradicional entre classe operária e burguesia, parti-cularmente visível já no final do século XIX e nas primeiras décadas do séculoXX. Seja qual for a denominação que possamos dar a este conceito de socieda-de, o certo é que ele se caracteriza por clivagens múltiplas e plurais, o queconstitui identidades igualmente múltiplas e plurais, ou seja, as entidades tra-dicionais do mundo do trabalho se dissolveram e isso repercutiu tanto no recru-descimento do individualismo como no enfraquecimento de valores coletivosde solidariedade. A informalização do trabalho articula tanto o individualismocomo a dissolução das identidades tradicionais do mundo do trabalho. As no-vas identidades são plurais e, muitas vezes, temáticas em torno dos problemasdas minorias, da ecologia, o que vale dizer que as identidades são, em certascircunstâncias, voláteis e passageiras. A identidade mais permanente econstitutiva de um projeto político de disputa do poder é dada pelo programado partido.

As mudanças em curso não abalam apenas as relações entre classe e sindica-tos e classe e partido, elas abalam também as perspectivas e, no mínimo, enfra-quecem os sistema tradicionais de representação. O desafio que é posto para aesquerda consiste em reinventar tanto as formas de organização social como dodiscurso político, e em redescobrir temas programáticos que possam definir umsentido coletivo democratizador, ético, de defesa dos direitos sociais eemancipador em relação à sociedade humana, em todo o sentido intrínseco dapalavra emancipador.

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Igualdade e diversidade – Minha segunda adesão é lutar contra o capitalis-mo, principalmente na sua forma neoliberal, e a terceira é disputar (na socieda-de) as melhores possibilidades de uma sociedade democrática livre e justa. Nesseponto, pode surgir a pergunta: por que não uma sociedade socialista? Porque,para mim, o socialismo é uma referência valorativa que busca resgatar, na his-tória do século XIX, a principal marca da esquerda, que foi exatamente recolocaro tema da igualdade dentro da democracia.

Historicamente, ela germinou com as aspirações humanas de liberdade depensamento, de consciência, de religião etc., e, finalmente, consagrou-se comoliberdade política, sendo entendida como liberdade de participação igual paratodos. A liberdade representa hoje o acesso a direitos fundamentais imprescri-tíveis e não passíveis de superação. Mas, sem qualidade de vida, as classessociais e os indivíduos não têm capacidade de assegurar a liberdade, por isso ospartidos de esquerda como o PT lutam por uma sociedade que proporcione osbens materiais necessários para que indivíduos e grupos sejam livres.

Considero que é impossível garantir o bem-estar de todos à custa da violaçãodas liberdades. A igualdade, em sentido amplo, não pode sacrificar a liberdadede poucos em nome do bem-estar de muitos, nem o bem-estar de muitos emnome da liberdade de todos. A justiça deve ser o valor supremo e fundador dasorientações e das instituições políticas e sociais de um sistema democrático, oqual estamos construindo permanentemente. Em minha concepção, apluralidade, no sentido radical de política, de religião, de costumes, de aspira-ções, é um valor fundamental para uma sociedade democrática, livre e justa.Isso porque somos radicalmente humanos, porque, felizmente, somos diferen-tes e o respeito à diferença é fundamental na concepção de democracia.

O caráter da vida política na sociedade fundamenta-se na diversidade de inte-resses, valores, opiniões, inerente à própria natureza. Quero dizer, então, queminha visão tem conseqüências na concepção de caminhos, de lutas pelo socia-lismo e de lutas por sonhos e utopias que expus aqui. E, quanto à revolução,

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temos de discutir o próprio conceito de revolução, porque na história da es-querda esse conceito está associado ou a uma rebelião das forças produtivas emface às relações de produção ou a um momento em que a conquista do poderrealiza a revolução.

Revolucionar a revolução – As experiências mostram que as grandes revo-luções não construíram, de maneira permanente e para o futuro, grandes expe-riências de organização e harmonização dos seres humanos. Devemos nos in-dagar, por exemplo, sobre as razões por que uma das maiores revoluções – quefoi a de 1917 na União Soviética – produziu uma sociedade onde até experiên-cias elementares de democracia e liberdade inexistiram.

Portanto, temos de revolucionar até o conceito de revolução, considerandoque é uma postura, uma identidade, um programa, um processo infinitamenterico que sempre combina rupturas com reformas e também conquistas de go-vernos... E não é por acaso que dizemos que conquista-se o governo, mas não opoder, porque ainda alimentamos a idéia de que um dia pegaremos o poder eele não sairá de nossas mãos.

Finalmente, quero agradecer a oportunidade de ter falado com todos de ma-neira muito franca. Costumo sempre lembrar uma frase de Marx – um homemque deu uma contribuição fundamental para a história da humanidade e, sedevemos criticar algumas de suas idéias, não podemos deixar de reconhecer opapel que ele teve – que me confortou muito em momentos dramáticos da mi-nha vida, quando comecei a pensar de modo diferente e era mal-interpretado noPT: “Para o indivíduo, a pior pressão é o juízo dos mortos, aprisionando naforma de pesadelo a consciência dos vivos”.

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Intervenções do público

Paul SingerHá um ponto, em particular, no textodo professor Francisco de Oliveira, queme preocupa muito. Não tenho nenhu-ma discordância, mas acho que ele de-veria ser aprofundado, como váriosoutros: é quando ele trata dos executi-vos. A empresa capitalista moderna éprofundamente burocratizada, e, naminha visão, é uma transformação narealidade de classes que precisamosentender melhor, pois não existe umadistinção tão nítida como imaginamosentre os proprietários dos meios de pro-dução e os assalariados da empresa ca-pitalista de hoje.

Existe uma hierarquia e uma difusãode poder que é muito estranha. Na ver-dade, não é simples entender quem real-mente domina. Sim, é o capital, mas

quem concretamente representa o capi-tal nestas imensas formações? Formal-mente, todos os executivos são assala-riados, podem entrar em sindicatos e têmtodos os direitos de qualquer trabalha-dor. Mas esta é a parte meramente for-mal e jurídica. Na prática, onde está opoder de decisão e onde está a opressão?Na época do neoliberalismo, existe, evi-dentemente, uma sobra de mão-de-obra.Temos hoje desemprego em massa tam-bém de pessoas com formação de exe-cutivos. O executivo não é mais o queera antes, uma pessoa de grande valorpara o capital e para a empresa, que lhedava muitas condições e privilégios, nãoapenas salariais. Acho que o texto doprofessor Francisco de Oliveira sugereum pouco isso, que houve umaproletarização dos executivos. A meu

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ver, isso faz parte das mudanças estrutu-rais, sociais, culturais, econômicas e po-líticas nas empresas modernas.

A relação contratual entre a empresae os executivos está mudando. Por cau-sa deste enorme desemprego, temoshoje executivos sem emprego, que es-tão em casa, trabalhando com compu-tadores, encarregando-se de certas ope-rações. Enfim, o que gostaria de per-guntar é para onde vão as relações so-ciais de produção? Essa continua sen-do, a meu ver, uma questão essencialpara entender a transformação da natu-reza de classe. Como se desenvolverá arelação entre a grande empresa e as inú-meras pequenas empresas que ela con-trata, a relação entre a empresa e o ca-pital financeiro que teoricamente a di-rige? Essas questões, a meu ver, têm deser discutidas, sobretudo do ponto devista de quem dirige governos, e tam-bém dos sindicatos. Acho que esse é umdesafio para nós que pretendemos ele-ger prefeitos: concretamente, quemmanda no aparelho de Estado? Essa per-gunta é quase análoga à anterior, quemmanda na grande empresa.

A suposição de que cada prefeito ougovernador dá ordens e elas se transfor-mam no que ele está pretendendo não éverdadeira, tivemos uma experiência dis-

so no governo da cidade de São Paulo.São questões em que a discussão políti-ca poderia ajudar muito.

Max AltmanVou formular uma questão ao Franciscode Oliveira: há um autor que aborda osocialismo e diz que a classe operária,ou o operário, é ontologicamente refor-mista. Além disso, em relação à idéia deque a classe operária seria fundamental-mente revolucionária, a história mostrouum caminho diferente.

Ao Genoino, eu proponho aprofundarum pouco mais a questão de governo epoder. Como ele imagina o PT assumin-do o poder de acordo com as regras dosistema? Poderemos encaminhar o regi-me rumo a uma sociedade socialistaquando as forças dominantes atuais de-têm o poder dos meios de comunicação,o poder econômico e, internacionalmen-te, detêm o poder militar e a hegemoniacomo nunca?

Ao Stedile, proponho o seguinte: eli-minada a concepção de vanguarda,onde se localiza a força motora de umarevolução rumo ao socialismo? Imagi-namos que todo movimento revolucio-nário tem uma liderança, tem uma for-ça que o leva, que o organiza; onde

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você localizaria essa força revolucio-nária em direção a uma sociedade so-cialista?

Terezinha Vicente FerreiraHá um ponto que há muito tento discutirdentro do PT e não consigo: é a questãodas ONGs, mencionada por Stedile. Con-cordo com ele e vou até além: as ONGssurgem para assumir o papel assistencia-lista que o Estado deixou de cumprir. Ini-cialmente, elas realmente prestam assis-tência, mas depois vem tudo o que co-nhecemos, a criação de várias entidadespara roubar dinheiro. Hoje considero queo papel ideológico dessas ONGs é o maissutil e perigoso desse chamado terceirosetor. Também estou de acordo com oStedile quando ele trata da dimensão es-piritual dessas organizações, porque hávárias pessoas que estão nelas para ali-viar a consciência. Há muitas pessoas daprópria burguesia que estão nessas or-ganizações, e a burguesia está se apro-priando ideologicamente da idéia de ci-dadania. Na medida em que investe di-nheiro nas ONGs, ela prepara estas pes-soas e passa a sua ideologia, que é a quelhe interessa. Acho que precisamos dis-cutir bastante sobre o que é ser cidadão.

Valter PomarBoa tarde. Foram apresentadas tantasquestões que temos de escolher umtema de preferência no debate. Queriaprimeiro dizer que, dependendo decomo observamos a realidade, pode-mos ficar absolutamente confusos ouas coisas podem ficar muito mais sim-ples do que eram antes. É verdade quehá uma complicação no que se refereàs formas de trabalho, quer dizer, a fi-gura do trabalhador típico de anos atrásera a do operário industrial, mas hojecada um de nós pode escolher qual é oseu modelo de trabalhador. E, pelomenos para a maioria, não irá mais sero operário de macacão.

Por outro lado, nunca vi tanta simpli-ficação naquilo que Marx chamava detrabalho abstrato. Apesar de existiremvárias formas concretas de existência dotrabalhador, isso não elimina o fato deque o trabalho está ficando cada vez maissimplificado, a propriedade do trabalha-dor sobre o processo de trabalho está di-minuindo, é mais fácil substituir um tra-balhador por outro do que era antes, poisas habilidades técnicas necessárias, aocontrário do que diz a propaganda, têmcaído, e acontece a mesma coisa no ladodo capital, quer dizer, a forma dominan-te do capital hoje, que é a forma finan-

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ceira, é a forma mais simplificada e maisabstrata do capital.

Acho que, dependendo do ângulo deque olhamos, as coisas são mais simplese polarizadas do que há 30 ou 40 anos.

Gostaria que o professor Francisco deOliveira e o João Pedro Stedile comen-tassem uma afirmação do Genoino. Elenão se apresenta como defensor de umasociedade socialista, mas como defen-sor de valores socialistas. Compreendoque na opinião dele não existe uma basematerial para a luta pelo socialismo,como era a forma clássica do marxismo,uma vez que o marxismo construiu a tesede que há uma base material para a lutapelo socialismo e que existe uma basematerial para construir uma sociedadesocialista. Essa base material é aquelaque o próprio capitalismo vai criando, ea base material para se lutar por umasociedade socialista é a existência de umaclasse que não tem outra possibilidadena história de existir e sobreviver a nãoser lutando pela transformação social.Gostaria que vocês comentassem isso demaneira mais direta, me parece que esseé o tema central do debate.

Acredito que uma das fontes de con-fusão que existem é que o marxismo,neste século, identificou esta base mate-rial com a classe operária, quando na

verdade a classe operária foi uma formade existência dos trabalhadores assala-riados, e hoje há mais trabalhadores as-salariados, embora haja menos operá-rios que antes. Qual é a conseqüência dis-to? É uma coisa que não foi tocada aquie que, para mim, é um dos paradoxos dateoria marxista: a maioria das revoluçõessocialistas ocorridas neste século não sedeu em países onde o capitalismo estavamais avançado, e a única em que a clas-se operária teve um papel como forçadirigente – ainda que não majoritaria-mente do ponto de vista numérico – foia Revolução Russa, porque nas demaisrevoluções socialistas a maioria dos re-volucionários, e mesmo a base social dospartidos revolucionários, era compostade camponeses.

Nesse ponto, surge a questão de que agrande transformação social deste sécu-lo não é a transformação da classe ope-rária, o desaparecimento desta classe,mas o desaparecimento ou a redução auma escala nunca vista do campesinato.João Pedro Stedile tocou nisso, no quediz respeito ao Brasil, e se um dos prin-cipais dirigentes do MST diz aqui – seeu entendi corretamente – que o setorsocial que ele representa está em francadecadência, e se é verdade que a base doradicalismo revolucionário tem a ver

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com a existência do campesinato, qual éo impacto do desaparecimento ou da re-dução do campesinato sobre o potencialrevolucionário?

Não foi o socialismo que inventou asrevoluções, foi a burguesia. Porque re-voluções existem, elas acontecem, nãosão produto da nossa vontade indivi-dual; mesmo que todos aqui não qui-sessem elas existiriam. Então, a ques-tão é saber se elas entram no nosso es-quema político ou não. Acho muito di-fícil, se quisermos transformar o capi-talismo em alguma outra coisa, que nãoesteja no nosso esquema a revoluçãosocial e política.

José Graziano da SilvaQueria perguntar ao João Pedro Stedilese, quando ele fala de acerto de contascom os anos 60, ele também inclui aaliança operário–camponesa.

Tenho visto algumas tentativas de jun-tar os sem-terra com os sem-teto. Gosta-ria de saber se essa é uma tentativa deestabelecer uma aliança entre operáriose camponeses, ou se, no fundo, estamosconstituindo uma grande aliança daqui-lo que eu chamo de “sem sem”, quer di-zer, sem terra, sem emprego, sem saúde,sem pertencer ao MST, sem sindicato,dessa indiferenciação total que faz dos

pobres miseráveis e maltrapilhos... Nãoestamos falando do lúmpen, porque, peloque vejo, o lúmpen é uma categoria pri-vilegiada, que tem uma proteção social,dinheiro etc. Estamos falando do “semsem” mesmo, que não consegue nem serflanelinha.

Se for isso que estamos constituindocomo base da nova sociedade, todos osnossos valores, não só o socialismo comoa luta pelos direitos, estão condenados,estão ameaçados fortemente como pro-jeto alternativo viável.

Darci PassosPensei que deveria começar falando emdesatenções minhas, mas acho que fuibem atento. Não ouvi, na fala do profes-sor Francisco de Oliveira, menção aoproblema da diferenciação entre o eco-nômico e o político. A classe operáriatem condições objetivas que criam a con-dição proletária; é o trabalho político quefaz com que a condição proletária vireconsciência operária. Portanto, a passa-gem do econômico para o político não éautomática. Mas há condições objetivasque diferenciam os assalariados dos quetrabalham, e falta o trabalho político. Épreciso que um partido político assumaque é preciso fazer esse trabalho, não bas-

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ta o papel reivindicatório. Sem trabalhopolítico não se cria a consciência de trans-formação. Por que a classe média é cha-mada de uma classe alienada? Porque elavive em condições muito próximas à con-dição proletária e tem a ilusão – que aideologia dominante alimenta – de quepode se tornar classe dominante. Sentifalta, nas palavras do Francisco de Oli-veira, dessa passagem do econômico parao político.

Agora, na fala do Genoino – que foi oprimeiro voto que eu dei para o PT, quan-do eu ainda era candidato de um outropartido – o que vi foram sofismas numoutro sentido. Ele não faz a passagemdo político para o econômico. Acho lin-do e assino embaixo que devemos am-

pliar os direitos sociais para toda a po-pulação brasileira, mas quais são os di-reitos sociais? Salário mínimo, salário-família, salário-habitação saem do bol-so de quem? Então, o Genoino sofismaporque diz não à democracia radical edefende os direitos, sobretudo direitossociais, mais respeito aos direitos, o di-reito à terra, mas a terra vem de quem?Dos que têm. Se forem tiradas de alguém,o que o Genoino falou, a meu ver, é umsofisma. E, para mim, será tirada de al-guém. A luta é socialista, temos que suara camisa porque o trabalho é político. Areivindicação econômica não constrói osocialismo, o socialismo é construídocom suor sempre, com lágrimas em ge-ral e com sangue muitas vezes.

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Comentários finais

Evidentemente, acho que o objetivodeste seminário, que é perturbar o PT, jáestá plenamente alcançado. Então, nin-guém vai ter a pretensão de respondertaxativamente às questões levantadas.Vou me referir rapidamente a algumasdelas.

Primeiro, os comentários do JoãoPedro Stedile. Acho que ele tocou numponto importante, a tentativa de no-mear as classes sociais. Só que isso éapenas uma taxonomia, não tem poderexplicativo maior: nomearíamos assimtambém as classes sociais no Brasil deantes da industrialização. A cobrança

Francisco de Oliveira

Classes sociais e socialismo

é correta, porque classe também é umarelação, e falta, portanto, discutir olado do capital, coisa que demandatempo, não se pode tentar assim... Maisprecisamente, o que você colocou naúltima parte do ponto de vista da revo-lução nacional pede, requer, a clarifi-cação do movimento da outra classe,da burguesia e inclusive de sua fraçãonacional.

Vamos à questão da revolução demo-crática, apresentada pelo Genoino, e dadependência. Se a revolução é um pro-cesso eminentemente dependente dasforças dominadas, chamá-la de “revo-

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lução nacional” é um eufemismo parauma falta de centralidade, pois supõeque é o conjunto da sociedade que érevolucionário, o que está longe de sero caso brasileiro, nessa quadra. Nenhu-ma classe é intrinsecamente revolucio-nária; ela se faz revolucionária. Numarevolução democrática, qual é a relaçãoentre os dominados e a burguesia, hoje,concretamente, no Brasil? Sabemos emque deu depositar as esperanças numdesempenho revolucionário da burgue-sia nacional. Essa era a aposta do PCB.Você facilitou sua crítica ao erigir umboneco de palha para bater, isto é, aoafirmar que na minha fala há uma rela-ção de causalidade entre a classe e osocialismo. O que eu anotei, e isso éanotado não apenas no campo marxis-ta, isso é anotado por um autor comoWeber, que sabia muito de Marx por-que o leu bastante, foram afinidades.

Não é possível negar que o tema clas-se surge exatamente quando surge otema do socialismo. Negar essa afini-dade seria ir contra as evidências his-tóricas. Quis chamar a atenção sobreafinidades, que são operadas por sujei-tos em relação; aparecem primeirocomo virtualidade, mas são as classesque fazem o socialismo. Eu pergunta-ria: e os Estados Unidos? E como você

responde? Há oportunidade, há esco-lha do carro último modelo, do ham-búrguer e deu em quê? Portanto, a re-lação entre socialismo e classe não éuma relação causal como você coloca.Eu não estabeleci nenhuma causalida-de, apenas afinidades.

Não podemos entrar neste relativismode que qualquer coisa pode dar em qual-quer coisa, isso não é verdade: o temaclasse surge com a industrialização eponto. O socialismo surge e se trans-porta para um programa político exata-mente quando a classe fornece a basematerial para ele operar.

Não há relação reciprocamente causa-dora. Desculpe-me Genoino, mas histo-ricamente você não vê movimento socia-lista no século XIV, assim como não vêoperariado.

Agora, sobre o tema que o Paul Singerabordou. Gostaria de dizer que pode-mos chamar todos de assalariados noplano material, exatamente para mos-trar que não é causalidade. Estudanteproduz uma classe social? Não, porquelhe falta o projeto político, a dimensãopolítica, não adianta só a vontade, e lhefalta a materialidade da ação quedesestabiliza o sistema. O político, paramim, está aí. Não faço a passagem doeconômico para o político porque não

51SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

vejo essa dicotomia, acho que há con-dições virtuais e elas são operadas poraqueles que se entendem como sujeitosda história. É fácil fazer a crítica de-pois que os experimentos socialistas fra-cassaram. Temos de ter cuidado, nãoporque tenham sido uma maravilha, masporque, de seu lado, também criaram ascondições virtuais de mudanças impor-tantes na sociedade. Temos um velhovício – você entrou nessa e o Stediletambém está entrando – de considerarque revolução é como tourada naEspanha, dos dois, um sai morto, ou otoureiro ou o touro. Revolução é muitomais que isso. É preciso dizer que to-das as transformações que levaram aoEstado do Bem-Estar simplesmente nãosão compreensíveis sem a ação da clas-se operária.

Foi esta ação que levou a profundastransformações; é isso que é classe, vir-tualidade e capacidade política, no meumodo de ver.

A visão de que o operariado é onto-logicamente reformista, é a mesma coi-sa, só que com sinal trocado, ou seja,antes ele era ontologicamente revolu-cionário e agora é reformista. É umaforma simplista que, do meu ponto devista, não busca as determinações.

Valter Pomar tem razão, o trabalhoabstrato é cada vez mais dominante. Dequalquer maneira a política é mais doque isso, é exatamente a representação,e é nesse ponto que incide a questão daclasse. Há um passo além, que é o su-jeito atuando na base de um projeto quenão foi feito por um intelectual, mas quetrata-se de virtualidade da história queé criada de maneiras diferenciadas. Épor isso que insisto: é preciso uma basematerial, valores somente não bastam.São importantes, mas eles só não bas-tam. Se não houver base material capazde operar, ficamos com valores, mas épreciso juntar as duas coisas para se tor-nar eficaz. Obrigado.

52 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

João Pedro Stedile

Trabalhadores da cidade e do campo

Algumas questões foram colocadas di-retamente a mim, e gostaria de aprovei-tar este tempo para dar minha opinião,sem a pretensão, evidentemente, de res-ponder de forma suficiente.

O professor José Graziano da Silvatem razão, acho que esqueci de dizerque já fizemos um acerto com a “alian-ça operário-camponesa”, da formacomo ela era propagandeada na déca-da de 1960, o que, na prática, significaque o campo entraria com as pessoas ea cidade com o partido e com a dire-ção. Essa visão simplória foi supera-da, mas isso não significa que esta gran-de aliança dos trabalhadores que vivemna cidade e dos que vivem no meio ru-ral tenha sido superada; ao contrário,acredito que ela está presente mais doque nunca.

De fato, concordo que temos que es-tudar mais as transformações na clas-se trabalhadora para perceber quais sãoos setores interessados em mudançase alianças, mas acho que temos que ter

mais cuidado no trato com os excluí-dos de forma genérica, porque muitagente os confunde com o processo delumpenização.

Com estes setores sociais que estãolumpenizados, dificilmente vamos con-seguir transformar algo socialmente; aocontrário, cada vez mais eles tornam-semassa de manobra da classe dominantee da direita.

Há um outro tema que não apareceu nodebate, mas considero que devemosentendê-lo mais: a ascensão social, no âm-bito da sociedade brasileira. No modelode industrialização que vigorou de 1930a 1980, diversos setores da classe traba-lhadora alimentavam esperanças de as-censão social, e ela efetivamente ocorria.Concretamente, para os camponeses quevinham para a cidade e tornavam-se ope-rários, isso era considerado uma ascen-são social, pois passavam a viver melhor.No operariado existia também uma espé-cie de escala social que permitia ao ope-rário melhorar suas condições de vida,

53SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

além de um processo de ascensão socialpor meio do sistema educacional.

Parece-me que neste novo modelo doneoliberalismo esses mecanismos de as-censão social, que iludiam grandes par-celas da população, estão descartados. Eisso é um ponto positivo para nós, poisao menos nos traz uma base social maisampla, que pode estar interessada emtransformações.

Outro elemento com o qual a esquer-da, de certa forma, acertou contas histo-ricamente, foi a confusão entre insurrei-ção, ou a tomada do palácio, e revolu-ção. Pelo que tenho visto nos debates,este balanço crítico já foi feito, as pes-soas não confundem processos de revo-lução com aquele simplismo de tomar opalácio, com a idéia de insurreição. Nesteaspecto, nós do MST temos tomado comoreferência teórica os conceitos que CaioPrado Jr. e Florestan Fernandes desen-volveram. Encontramos aí as explicaçõessatisfatórias para entender o que é real-mente o processo revolucionário no casobrasileiro, e que ele implica um longoprocesso histórico de transformação dasestruturas econômicas e sociais da so-ciedade e da propriedade dos meios deprodução.

Um dos companheiros levantou o temada vanguarda. Na nossa forma de enten-

der, esse não é o tema principal; acha-mos que está tão difícil construir umaforça social unitária rumo à luta pelosocialismo que há outros desafios queprecisam ser explicados e melhor enten-didos, tanto do ponto de vista teóricocomo do ponto de vista organizativo, eque remetem a outras questões mais im-portantes do que simplesmente cair noreducionismo de quem é que vai ser avanguarda. Neste ponto, acho que já foifeito um balanço também.

Acredito que o processo brasileirovai nessa direção, que a vanguarda vaiser construída de uma forma ampla, porvários mecanismos políticos, ao longodo processo de luta. Qual é, então, odebate que entendemos ser prioritáriopara relacionar classe social e socialis-mo? Esse é um desafio para os nossosintelectuais orgânicos. Temos de com-preender não unicamente qual vai sera classe social revolucionária e nos ape-garmos a ela – como se fosse possíveldefinir isso a priori –, mas entender, apartir daquelas contradições sociais queexistem na nossa sociedade – a depen-dência externa, a contradição capital–trabalho, os direitos democráticos co-letivos e individuais – e da contradi-ção do monopólio dos meios de comu-nicação de massa, quais são as forças

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sociais que têm interesse em superaressas contradições. Quais delas pode-rão superar as demandas corporativase estarão dispostas a se organizar emtorno de um projeto político para a so-ciedade. Aqueles setores sociais que ti-verem vontade política e capacidadeorganizativa para debater e se organi-zar em torno deste projeto político cer-tamente se transformarão em revolucio-

nários, e participarão das transforma-ções sociais.

Desta forma, não é necessário predi-zer quais vão ser as forças revolucioná-rias. Ao longo da luta, as forças que lu-tarem por transformações radicais é quede fato se transformarão em revolucio-nárias, na medida em que tiverem a ca-pacidade de superar as contradições fun-damentais que há na sociedade.

José Genoino

Classes sociais e partido

Gostaria de situar bem qual foi a di-vergência entre mim e o professor Fran-cisco de Oliveira em relação à opinião,que eu respeito, sobre a razão fundado-ra. A base material tem de ser levadaem conta, não nego que ela seja o pon-to de partida para construir as soluçõese os partidos.

O meu ponto de divergência é colo-car como razão fundadora uma classe;ela não tem uma verdade intrínseca quetemos que descobrir, da qual devemosnos apossar... Estou numa polêmica so-bre o socialismo e, estando em um de-

bate sobre socialismo, tenho que levan-tar as várias questões que estão coloca-das... Ou os companheiros e compa-nheiras não sabem que existe umagrande polêmica na esquerda que en-volve a questão de classe em relaçãoao partido?

Não disse que o professor Franciscode Oliveira defende uma classe operá-ria portadora de uma verdade univer-sal; eu critiquei a razão fundadora, e há,no seu pensamento, três possibilidadesde até reelaborar a teoria socialista.Gostaria, assim, de fazer uma crítica a

55SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

uma concepção que está presente nahistória da esquerda.

Outra questão levantada foi sobre di-reitos. Quando falo em direitos consi-dero que, ao longo de sua evolução, ahistória da sociedade humana instituiudireitos. Quando direitos são constituí-dos, há quebra de privilégios, de pro-priedades e de direitos absolutos. Issoé um processo de reformas, de ruptu-ras, de conquistas e recuos. Portanto,quando falo de sociedade de direitosnão é no sentido de sociedade de rei-vindicações que se domestica dentro deuma ordem capitalista. Nesse ponto, osEstados Unidos não são paradigma deum modelo de sociedade humana, atéporque a sociedade humana não se en-cerra num modelo de país ou num mo-delo econômico, uma vez que ela vaicriando novas carências, vai construin-do, nessa concepção de direitos inter-mináveis para os seres humanos, asmelhores possibilidades.

Gostaria de deixar claro que o capi-talismo não é referência para mim. Po-rém, não imagino legislar em nome deum modelo de sociedade futura queconsidero socialista.

A militância política é um processo derupturas, reformas, consensos, descen-sos, momentos de recuo e momentos de

avanço. Não dá para entender a revolu-ção nem como sendo uma única formade luta e nem um único momento, nemapenas como um desabrochar de relaçõeseconômicas ou economicistas.

Para mim, a revolução comporta vá-rias formas de luta, vários instrumen-tos de ruptura. O que estou questionan-do, em relação aos caminhos para a lutarumo ao socialismo, é a existência deum modelo de revolução que, primei-ro, seja inevitável – e que tenhamosque nos preparar para essa inevita-bilidade. Segundo, temos de trabalharneste processo com várias possibilida-des e vários cenários, temos de com-binar um pé na luta social e um pé naluta eleitoral. Não é participar de elei-ção e achar que vamos chegar ao po-der e nem achar que é fazendo movi-mentos sociais que vamos ganhar opoder, porque nós nos embrenhamosno movimento social e, quando chegana hora, eles votam no Maluf, no FHC.Porque não existe essa consciênciacomo um produto, um milagre natural.Temos de construir um processo deluta, entre eleições e voto.

Não adianta chegar ao governo e nãochegar ao poder, porque estamos com aidéia de que chegar lá é um ato de con-quista, de assalto ao poder. Estou colo-

56 CLASSES SOCIAIS EM MUDANÇA E A LUTA PELO SOCIALISMO

cando a possibilidade de se iniciar, coma força de um governo, instituições, for-ça social, cultural e ideológica, um pro-cesso de construção de hegemonia nasociedade.

Sobre o que diz meu amigo Darci Pas-sos – com quem convivi na Câmara dosdeputados, eu na primeira bancada doPT e ele no PMDB –, gostaria de afirmarque não estou sofismando no que dizrespeito à relação entre o econômico eo político. Para mim, o econômico deveser levado em conta como base, e o po-lítico tem autonomia. Acho até que ogrande problema da esquerda foi não tercompreendido o desenvolvimento dassuperestruturas, das formas de Estado,das formas de poder. E a idéia de tratara questão do poder político com nívelde autonomia em relação à base materi-al, isso, no meu modo de entender, é umacrítica feita por vertentes do própriomarxismo.

Quero ainda dizer que, quando fala-mos em cidadania, me recuso a dar à di-

reita o conceito de cidadania, como gê-nero ou como direitos sociais. Recuso-me a isso porque, no fundo, temos a se-guinte idéia: se resolvermos o problemada base material automaticamente serãoresolvidos outros problemas, e não faço(não é preciso) uma disputa nos planosda consciência, das idéias, da cultura, dasdimensões humanistas, das possibilida-des de transformação que se colocamperante os indivíduos. Isso não foi fala-do, mas levo para esse terreno; por issoas experiências socialistas que foramderrotadas não construíram um exercí-cio político nesses países.

O PT não caiu no cretinismo eleitoralou na comodidade da luta parlamentar,nem acho que o caminho para transfor-mar o país seja simplesmente a eleiçãode deputados, prefeitos e governadores.Temos que combinar esses dois aspec-tos: uma perna na luta política e outrana luta eleitoral.

É só isso que eu queria deixar claro,sincera e francamente. Obrigado.

57SOCIALISMO EM DISCUSSÃO

FRANSCICO DE OLIVEIRA nasceu em Recife, Pernambuco, em 7 de novem-bro de 1933. Formou-se em ciências sociais na Faculdade Filosofia da Univer-sidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco.Foi superintendente-substituto da Sudene (Superintendência de Desenvolvimentodo Nordeste), na gestão de Celso Furtado, até o golpe militar de 1964. Perseguidopelo novo regime, foi em 1965 para a Guatemala, a serviço das Nações Unidas, eem 1966 para o México, para trabalhar no Centro de Estudos Monetários Latino-Americanos. De volta ao Brasil, atuou no Centro Brasileiro de Análise e Planeja-mento (Cebrap) de 1970 a 1995, sendo seu presidente no período 1993-95.Foi professor de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC-SP), e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo (USP)até 1998, quando se aposentou. É diretor do Centro de Estudos dos Direitos daCidadania da USP e fundador do Partido dos Trabalhadores.Entre suas principais obras destacam-se: A economia brasileira: crítica à razãodualista (Vozes), Elegia para uma re(li)gião (Paz e Terra), O elo perdido: classee identidade de classe em Salvador (Brasiliense), Os direitos do antivalor (Vo-zes), Os cavaleiros do antiapocalipse, em colaboração com Álvaro Comin (En-trelinhas/Cebrap), Os sentidos da democracia, em colaboração com Maria CéliaPaoli (Vozes).

Sobre os autores

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JOÃO PEDRO STEDILE nasceu em 25 de dezembro de 1953 em Lagoa Ver-melha (RS). Filho de pequenos agricultores de origem trentina italiana, casado,pai de quatro filhos, reside atualmente na cidade de São Paulo.É formado em economia pela PUC-RS, com pós-graduação na UNAM (México).Atuou como membro da Comissão de Produtores de Uva dos Sindicatos deTrabalhadores Rurais do Rio Grande do Sul. Assessorou a Comissão Pastoralda Terra no Rio Grande do Sul e trabalhou na Secretaria da Agricultura desseestado. Participa desde 1979 das atividades da luta pela reforma agrária, sendoum dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)e membro de sua direção nacional.É autor dos livros Brava gente: A trajetória do MST e a luta pela terra no Bra-sil, em colaboração com Bernardo Mançano Fernandes (Editora Fundação PerseuAbramo), Assentamentos: Uma resposta econômica da reforma agrária e Lutapela terra no Brasil, ambos em co-autoria com Frei Sérgio Görgen; A questãoagrária hoje; Questão agrária no Brasil e A reforma agrária e a luta do MST(organizador).

JOSÉ GENOINO é cearense de Quixeramobim, nascido em 3 de maio de 1946.É deputado federal pelo Partido dos trabalhadores desde 1983, exercendo atu-al-mente seu quinto mandato.Foi líder estudantil no final dos anos 60 e integrou a diretoria da União Nacio-nal dos Estudantes (UNE), tendo se engajado ativamente na resistência à ditadu-ra militar. Participou da Guerrilha do Araguaia, foi preso em 1972 e libertadoem 1977.Em 1979, ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores e, em 1982, foi eleitopara seu primeiro mandato. Teve atuação destacada na Campanha das DiretasJá, no processo de impeachment de Fernando Collor e na CPI do Orçamento. Éum dos mais atuantes e respeitados parlamentares brasileiros.

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Programa dos semináriosSocialismo e Democracia

realizados no primeiro semestre de 2000

Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramoe pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT

10 de abril – Socialismo no ano 2000 – uma visão panorâmicaExpositora: Marilena Chauí

Debatedores: Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Garcia

24 de abril – Economia socialistaExpositor: Paul Singer

Debatedor: João Machado

8 de maio – O indivíduo no socialismoExpositor: Leandro Konder

Debatedores: Frei Betto e Lula

22 de maio – Instituições políticas no socialismoExpositor: Tarso Genro

Debatedores: Edmilson Rodrigues e José Dirceu

5 de junho – Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismoExpositor: Francisco de Oliveira

Debatedores: João Pedro Stedile e José Genoíno

19 de junho – Globalização e socialismoExpositora: Maria da Conceição Tavares

Caso não encontre este livro nas livrarias,solicite-o diretamente a:

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 224

04417-091 – São Paulo – SPFone: (11) 5571-4299Fax: (11) 5571-0910

Correio Eletrônico: [email protected] internet: http://www.fpabramo.org.br

Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo foi impressona cidade de São Paulo em junho de 2002 pela Cromosete Gráfica eEditora Ltda. para a Editora Fundação Perseu Abramo. A tiragemfoi de 2.000 exemplares. O texto foi composto em Times New Ro-man no corpo 11/13,3/90%. Os fotolitos da capa e das entradas decapítulo foram executados pela Graphbox e os laserfilms forneci-dos pela Editora. A capa foi impressa em papel Cartão Supremo250g; o miolo foi impresso em Offset 75g.