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  • Belo Horizonte, Maro/Abril 2015Edio n 1.359Secretaria de Estado de Cultura

  • Capa: Adriano Gomide

    A vida e a obra de Pedro Nava foram observadas pelo professor da USP Joaquim Alves de Aguiar, que aqui apresenta suas notas para uma biografia inaca-bada do nosso maior memorialista. Outro professor, Amador Ribeiro Neto, comenta o novo livro de Augusto de Campos, poeta bsico do concretismo.O gacho Luis Augusto Fischer, considerado uma voz dissonante na cr-tica literria brasileira, diz o que pensa em entrevista a Joo Pombo Barile, e o crtico de cinema e jornalista Marcelo Miranda analisa a crise da reflexo e do pensamento.

    Os contos dos jovens Gabriel Leite e Marcela Dants, que estreiam no SLMG, acompanham a narrativa do contista paulista Luiz Roberto Guedes, escritor de nome firmado na literatura na-cional e da mineira Cristina Garcia Lopes.

    Nosso espao de poesia exibe mais um poema de Elosio Paulo e tambm se abre para os pri-meiros passos de Kaio Carmona e Guilherme Semionato, que nos mostram seus trabalhos ao lado do consagrado poeta britnico Ted Hugues (1930-1998), vertido para o portugus pelo professor Srgio Alcides, tambm poeta.

    Assina a capa o artista plstico Adriano Gomide.

    Governador do Estado de Minas GeraisSecretrio Estadual de Cultura

    Diretor-geral da Imprensa Oficial de Minas Gerais Superintendente de Bibliotecas Pblicas e Suplemento Literrio

    DiretorCoordenador de Apoio Tcnico

    Coordenador de Promoo e Articulao LiterriaProjeto Grfico

    Escritrio de DesignDiagramao

    Conselho Editorial

    Equipe de Apoio

    Jornalista Responsvel

    Fernando Damata PimentelAngelo Oswaldo de Arajo Santos Eugnio FerrazLucas GuimaraensJaime Prado GouvaMarcelo MirandaJoo Pombo BarilePlnio FernandesGria Design e ComunicaoCarolina Lentz - Gria Design e ComunicaoHumberto Werneck, Sebastio Nunes, Eneida Maria de Souza, Carlos Wolney Soares, Fabrcio MarquesElizabeth Neves, Aparecida Barbosa, Ana Maria Leite Pereira, Andr Luiz Martins dos Santos

    Marcelo Miranda JP 66716 MG

    Textos assinados so de responsabilidade dos autoresAcesse o Suplemento online: www.cultura.mg.gov.br

    Suplemento Literrio de Minas GeraisAv. Joo Pinheiro, 342 Anexo CEP: 30130-180Belo Horizonte, MG Telefax: 31 3269 [email protected]

    O SUPLEMENTO impresso nas oficinas da

    Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais

    Apoio Institucional:

  • maro/abril 2015 3

    NOTCIAS DE

    UMA BIOGRAFIA

    INACABADA DE

    PEDRO NAVA

    Q uem leu Galo-das-Trevas (1981), quinto volume das Memrias de Pedro Nava, vai se lembrar de que a certa altura do pri-meiro captulo o memorialista d notcias de trabalho seu sobre a vida do maior mestre de nossa Medicina esse que foi

    no sculo passado [o XIX] um fenmeno brasileiro da cin-cia, como Machado de Assis o foi nas letras Joo Vicente Torres Homem. impossvel que a passagem no chame ateno e no desperte a curiosidade do leitor: um mdico comparado no seu ofcio ao nosso maior escritor? Como seria? No mesmo trecho, Nava dizia ter na gaveta dois ca-ptulos prontos, formando dois ensaios que nas quase tre-zentas pginas podem dar livro de tamanho apresentvel. Um livro que no havia terminado, nem terminaria.

    Do seu plano original de escrever uma biografia de Torres Homem, restaram uma introduo e os dois cap-tulos por ele referidos, os quais Nava nunca publicou. O manuscrito, parte escrita mo e parte datilografada, se encontra no arquivo do escritor na Casa de Rui Barbosa. Tive acesso ao material, faz alguns anos, e cheguei a me debruar no texto. De fato, teria dado um livro bastante original e muito bem urdido. Nava, como lhe era prprio, empreendeu um trabalho srio, bonito e profundo sobre o mdico de sua admirao. Mais que isto, a biografia inaca-bada revela muito da histria da Medicina brasileira, alm de mostrar uma crnica bastante aprecivel da vida ca-rioca e brasileira do Segundo Reinado.

    JOAqUIM AlVES DE AGUIAR

  • 4

    Como era do seu costume, Nava escreveu em papel almao, com a folha aberta, usando s a frente, e sempre do lado esquerdo, deixando o outro para acrscimos e correes. O total compreende 251 pginas. As notas de rodap so quase um captulo parte. Mais de 1000. Elas indicam o extremo rigor do bigrafo, sua preocupao em basear-se o mais possvel na obra de Torres Homem para a reconstituio exata do perfil e sobretudo da cincia do seu biografado.

    Obviamente, vasta a gama dos termos mdicos empregados, o que, na parte escrita mo (190 pginas daquele total de 251) di-ficulta, no leigo, a decifrao do manuscrito. Mas quem sabe agora, dando notcias de um trabalho to interessante, algum da rea, com conhecimentos especficos, possa se dispor a enfrentar o texto, trazendo-o luz para o comum dos leitores. Falo assim porque a biografia interessa, e no somente aos his-toriadores da Medicina.

    A figura de Torres Homem descrita pela Arte que praticou. No toa o primeiro ca-ptulo se chama Inspeo e o segundo Interrogatrio. na vida do clnico em ao que Nava se detm, e com um mtodo admi-rvel, pois inspecionar e interrogar so etapas fundamentais para se produzir diagnsticos e prognsticos eficientes. Qualquer um sabe disso, mas isto, que deve fazer parte do dia--a-dia nas salas de consulta, se converte em mtodo de exposio, da resultando uma biografia fora dos padres e muito original.

    Com efeito, Nava comea inspecionando a cabea, em seguida o tronco, depois os mem-bros, tudo bastante detalhado, conforme os procedimentos colhidos obra de Torres Homem. como se reexaminasse um corpo, de alto a baixo, pelas mos do Mestre. Quem quiser saber mais da vida do biografado vai precisar recorrer a outras fontes. Torres Homem era ca-rioca, nasceu em 1837, vindo a falecer em 1887, pouco antes de completar cinquenta anos. Era casado e pai de quatro filhos. Alm de cardaco, se-gundo consta, parecia sofrer do mal de Thomsen ou miotonia, doena que inibe os movimentos musculares. Ruivo, atarracado e movendo-se com dificuldade, estava longe de ser um modelo de sade ou beleza. Sua fora estava na competncia e no amor que devotava ao seu ofcio, na sa-bedoria, na clareza da exposio (escreveu vrios livros) e na eloqncia.

    Era realmente uma celebridade mdica do seu tempo. Atraa sempre platia considervel nas suas prelees e palestras, o que devia causar inveja nos seus desafetos. Foi alvo de alcunhas como apoplexia am-bulante (por causa do vermelho no rosto, provavelmente provocado pelos problemas cardacos), valete de copas (talvez pelo mesmo mo-tivo), porco em p (devido atrofia dos membros). Consta que tinha o temperamento retrado, embora fosse grande causeur, alm de comilo e amante de sorvetes.

    No encontrei no arquivo um plano ou roteiro que desse idia do ponto a que Nava pretendia chegar com seu livro. Todavia, numa carta

    dirigida a um neto de Torres Homem, o escritor expe seus objetivos na fase de coleta de informaes: Estou atualmente em estudos e reunindo documentos para a publicao de um livro sobre o Dr. Joo Vicente Torres Homem. O meu trabalho ter um trplice aspecto: biogrfico, de crtica da obra mdica e finalmente o da apreciao da evoluo da Medicina Clnica no II Reinado e da influncia sobre a mesma daquele extraordi-

    nrio internista brasileiro. No difcil ver, nos captulos que Nava escreveu, o segundo e o terceiro aspectos. Quanto ao primeiro, pode ser que o tenha deixado para o fim, ou mesmo desistido de contar a vida do biografado fora da esfera de sua profisso. Digo isto porque nos questionrios que enviou aos seus infor-mantes h vrias indagaes sobre a vida pri-vada do renomado clnico, embora o bigrafo seja muito discreto, ou mesmo econmico a esse respeito.

    Torres Homem foi mdico da Santa Casa de Misericrdia e da Casa de Sade Nossa Senhora da Ajuda; foi tambm professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. E fundou, com outros colegas de ofcio, a Gazeta Mdica do Rio de Janeiro. Pertenceu Imperial Academia de Medicina e, tendo assistido Pedro II, recebeu do imperador o ttulo de Baro de Torres Homem. Publicou bastante. Por volta de 150 trabalhos cientficos, e mais os livros Elementos de clnica mdica, Anurio de Clnica Mdica: 1868 e 1860, Lies de clnica sobre a febre amarela, Estudo clnico sobre as febres do Rio de Janeiro, Lies sobre as molstias do sis-tema nervoso e Lies de clnica mdica, este em trs volumes. So essas obras a base da pes-quisa de Nava.

    * * *

    Nava iniciou a redao da Biografia em 1945. Escreveu o primeiro captulo em dois anos. Retomou o trabalho em 1959, para interromp-lo outra vez, voltando a ele em 1964. Quatro anos depois, em 1968, comea-ria a redigir suas Memrias, abandonando-o de vez. Largas interrupes decerto o desestimularam. Mas interessante notar que o comeo de sua pesquisa sobre Torres Homem coincide com a publicao dos seus dois livros na rea mdica: Territrio de Epidauro, de 1947, e Captulos de histria da medicina no Brasil, de 1949. Naquela altura no era ainda um escritor plenamente desabrochado. Dispunha de um punhado de poemas modernistas, incluindo O defunto, de 1938, poema bastante estimado, e sua interveno literria mais conhecida depois de sua participao no Modernismo mineiro e antes da publicao das Memrias. Talvez esti-vesse amadurecendo seu processo criativo, dando tempo ao vinho, que j era bom, para, anos depois, servi-lo aos leitores.

    pensando assim que esses seus escritos de medicina funcionam como vestbulo do casaro que ergueria mais tarde, ao entregar-se de vez ao memorialismo. Com efeito, o leitor no demora a reconhecer na

    Torres Homem atraa sempre

    platia considervel nas

    suas prelees e palestras,

    o que devia causar inveja

    nos seus desafetos. Foi

    alvo de alcunhas como

    apoplexia ambulante(por

    causa do vermelho no

    rosto), valete de copas

    (talvez pelo mesmo motivo),

    porco em p (devido

    atrofia dos membros).

    Consta que tinha o t

    emperamento retrado,

    embora fosse grande

    causeur, alm de comilo e

    amante de sorvetes.

  • maro/abril 2015 5

    Biografia a imponncia do estilo de Nava, suas entusias-madas reverncias figura admirada, a sintaxe exube-rante, os perodos espessos, a farta adjetivao, a paixo enumerativa, a lngua solta, o apego s metforas, o gosto pelos casos pitorescos, sua vasta cultura, sua francofilia etc. E talvez se possa dizer que o memorialista se adestra na escrita, diga-se, algo barroca do mdico que biografa.

    Nava defende a tese de que Torres Homem teria sido um bom escritor, ao lado do mdico importante e ilustre que foi. Obviamente, vai muito dele nisto. Sobre a francofilia, no se pense que se tratava de modismo, menos ainda de devo-o colonizada, como costuma acontecer em certos nichos intelectuais brasileiros. O escritor, leitor de Montaigne, ad-mirava o humanismo da tradio mdica francesa. No por acaso a Biografia comea citando Louis-Lon Rostan, mes-tre entre outros mestres do velho clnico carioca.

    Poderamos imaginar uma linha que viesse do mdico francs, passando por Torres Homem, cujo pai tambm era mdico, formado na terra de Rostan, at chegar em Nava, reumatologista de renome e professor de Medicina, antes de tornar-se memorialista consagrado? Sim, porque so muitas as consideraes de Nava sobre sua filiao, bem como a do segmento mais culto e preparado da medicina de sua gerao, tradio hipocrtica francesa. Biografar Torres Homem, por via do exerccio de sua profisso, no deixou de ser busca de paternidade intelectual e cientfica, reconstituindo, no processo de busca, os passos daquela tradio, o que de resto tpico dos grandes memorialis-tas: a histria pessoal crivada pela histria do seu tempo.

    O escritor lamentava a influncia de outras culturas no campo mdico brasileiro, sobretudo a norte-americana, uma escola aliengena e descultivada, rida e quantitativa, deslatinizada e literalmente escrava da inteno estats-tica. Uma escola, no seu modo de ver e sentir, em tudo contrria outra, que seguia, abraando os seus antepas-sados. Um dos aspectos que caracteriza a tradio huma-nstica francesa , como se sabe, a arte do bem escrever. Os exemplos de graa e beleza recolhidos pelo bigrafo na obra de Torres Homem so inumerveis. Vejamos somente alguns, a ttulo de demonstrao.

    O primeiro refere-se ao uso dos adjetivos atribudos lngua na vistoria dos pacientes. Nava capta a riqueza vocabular e a preciso verbal nas pginas do mdico, e o leitor observa que a explorao da lngua, rgo bucal, vira explorao da lngua, idioma: o professor carioca se servia das gradaes de sua cor (descorada, plida, ict-rica, avermelhada, rubra, excessivamente rubra, escarlate, escura, enegrecida); das modificaes de sua superfcie (acetinada, luzidia, spera, encarquilhada, crestada, sul-cada, fendida, descamada, ulcerada); das variaes de sua forma (pontiaguda, larga, esplanada, volumosa, trgida); das perturbaes de sua posio, mobilidade e motilidade (retrada, partica, paraltica, desviada, imobilizada, tr-mula); e da qualidade, quantidade e colorao dos seus No Parque Halfeld, Juiz de Fora, 1907.

  • 6

    depsitos (tnues, espessos, glutinosos, mucosos, sanguinolentos, pul-tceos, pastosos, viscosos, saburros, espumosos, pseudo-membranosos, cor de calia, amarelados, cor de ferrugem e denegridos.

    O segundo refere-se aos vrios tipos de dor: ele nos fala nas sensa-es vagas do mal-estar, sufocao, estrangulao, ansiedade, cansao e torpor dos membros; nas menos obscuras de calafrio e horripilao; nas mais precisas de formigamento, prurido, ardor e picada; nas j bem de-finidas dores gravativa, pulsativa, pungitiva, lancinante, tensiva, contu-siva, mordicante e terebrante; nas extremamente diferenciadas da clica, das dores nervosa, reumtica e constritiva da angina no peito.

    Para terceiro exemplo, bem mais leve e meio divertido, sirvam as in-dagaes de Torres Homem dos seus pacientes etlicos, da quantidade e dos tipos de bebida que consumiam: suas observaes, diz o bigrafo, nos oferecem uma curiosa e alegre ementa da bebida popular sua

    poca. Vinha em primeiro lugar a democrtica e canalha gua-bruta, ou caxaramba, ou uca nas suas formas de aguardente laranjinha ou aguar-dente de cana, e em seguida a amistosa cerveja e os mostos ou palhetos e donzis, ou machos e duros: vinho branco, vinho do Porto, vinhos ge-nerosos, vinhos capitosos. Tudo isto tinha importncia porque o clnico eminente atribua a cada um desses nctares valor etiolgico especfico.

    O leitor veja se os exemplos no lembram com nitidez o inconfundvel narrador das Memrias. Crticos como Antonio Candido e Davi Arrigucci Jnior j examinaram a fora e o papel das enumeraes na prosa do nosso memorialista. Com efeito, a enumerao um trao marcante no estilo de Nava. Em Torres Homem ele admira o emprego preciso e literrio do mesmo recurso. Referindo-se ao hbito que o mdico tinha de ligar o doente e a molstia ao local de moradia, o escritor chega a su-gerir a possibilidade de uma toponmia de Torres Homem, ou seja, um

    Pedro Nava aos 28 anos. Com a turma de Medicina, 1927.

    Com Oscar Niemeyer, 1934.

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    mapa mdico e social da cidade capaz de convidar o leitor a um autntico passeio pelo Rio antigo, atravs dos nomes das suas localidades.

    Bairros e ruas so enumerados a partir das indicaes do clnico: Ilha do Governador, Jardim Botnico, So Cristvo, Cidade Nova, Ilha das Cobras, Pilar, Vila Nova, Maxambemba, Andara Grande, Pedregulho, S. Francisco Xavier, ou mais precisamente as ruas da Assemblia, da Alfndega, do Ipiranga, Sade, S. Diego, D. Manoel, Lavradio, Machado Coelho, Ourives e Santa Luzia. E mais vias hoje desaparecidas ou reba-tizadas como o Cais da Imperatriz, a rua da Pedreira da Glria, a rua das Violas, ou as de Santa Isabel, Prainha, Ajuda, Mataporcos, Areal, Conde dEu, Lampadosa, Nova do Ouvidor, Partilhas e Princesa dos Cajueiros.

    Para o escritor, enumeraes como estas revelam-se prenhes de po-esia. Por um lado acentuam o pitoresco das palavras, por outro esto cheias de reminiscncias e tradies. No so, portanto, aleatrias nem mero jogo de estilo: A repetio do nome dos largos, morros, estradas, becos, travessas, praias e praas da velha cidade carioca funciona en-to com valor esttico semelhante ao do verso interativo de Pguy ou do poema enumerativo de Walt Whitman. o que compreende Manuel Bandeira na sua prodigiosa Tragdia brasileira, onde a citao sucessiva e marcada dos bairros de moradia de Misael e Maria Elvira preparam , prolongam e acentuam a expectativa do desfecho dramtico.

    O trecho diz tudo: a prosa do bigrafo era assoprada pela do escritor. No mais, vale registro o tanto de histria social que vai embrenhado na pesquisa. Largas passagens sobre as ocupaes dos pacientes, tra-balhadores humildes em maioria, grassados por molstias de todo tipo, do provas do estado de calamidade e desamparo em que viviam os po-bres daquela Corte mal ajambrada. Humanista por natureza e formao, Torres Homem se indignava em face da condio do escravo. Talvez o caso mais impressionante seja o de uma mulher preta e liberta, com ape-nas 26 anos e j multpara, reumtica, cardaca, tuberculosa, cachaceira, que ao ser examinada no hospital apresentava-se com o corpo coberto de suor, o estado geral mau, a cor da pele descorada, ps e pernas edema-ciados, e com sinais muito numerosos e salientes de antigas sevcias em toda a face posterior do tronco, sobretudo nas espduas. Carne jovem e j apodrecida, como se v, pronta para ser devorada em cova rasa depois de ser triturada na curta vida.

    Bom, como o espao limitado do artigo no permite ir mais longe, fico por aqui, frisando a tese de que o interesse pela Biografia de Torres Homem ultrapassa os limites, j ilimitados, da histria da medicina, po-dendo revelar aos leitores de Pedro Nava que o escritor das Memrias se antecipava na pesquisa biogrfica que empreendeu e largou antes de se tornar o grande memorialista das nossas letras. Naquela altura, como j foi dito, Nava se espelhava no mdico que, como ele, no escondia seu talento de escritor, mesmo sob os rigores da cincia que praticava: certos perodos de Torres Homem, onde sua emotividade sempre pronta transborda no verbo copioso e fcil, so (sem que nisto entre a vontade deliberada do autor) pginas da melhor qualidade literria. O leitor, diz ele em seguida, encontra nos escritos de Torres Homem personagens habitando uma cidade de romance, um Rio machadiano, da a crnica palpitante e verdadeira de sua populao de escravos, titulares, forros, mulatos, doutores, embarcadios e lusitanos considerada do ponto de vista de seu contato com a doena, de sua luta com a pestilncia, de seu tormento diante da dor e da morte.

    JOAqUIM AlVES DE AGUIARprofessor de Teoria Literria e Literatura Comparada da USP, autor de Espaos da Memria: Um estudo sobre Pedro Nava.

    No Rio de Janeiro, 1973.

    Na Argentina, anos 80.

  • 8

    AgrAndeAtrAodAvidAAlheiA

    Histrias querem ser contadas(sio Macedo Ribeiro)

    CONTO DE lUIz ROBERTO GUEDES

    O CASAL ERA JOVEM, BONITO, DISCRETO. Sempre vestidos de branco, o que chamou a ateno da vizinhana. Tinham se mudado, fa-zia pouco tempo, para a cobertura de um prdio baixo, com dez andares. Ficava na esquina de duas ruas estreitas, oposto a um edifcio com uma extensa fachada, e uma dezena de apar-tamentos de frente. To panormicos que os moradores de l e de c tinham ampla viso da vida alheia.

    Cedo se descobriu que o rapaz era dentista, porque instalou seu consultrio numa via prin-cipal do bairro: Dr. Fernando Ramos Porto. A moa s podia ser mdica ou, no mnimo, enfermeira.

    Logo ficaram sabendo seu nome e sua espe-cialidade: Fabiana, veterinria numa pet shop chique dos Jardins, frequentada pelos bichos de artistas e celebridades. E a comunidade envol-veu o casal de branco numa bolha de calorosa simpatia. Davam classe ao quarteiro.

    O apartamento dos Ramos Porto tinha uma sacada espaosa, adornada com samambaias e uma rede. No fim de semana, a jovem esposa punha um biquni e se estendia ao sol, numa es-preguiadeira. Ou ento, enfiava-se num shor-tinho agarrado e empunhava um esfrego para lavar o piso.

    Uma tarde, Fabiana notou que um homem de cabelos brancos a observava com bincu-los, numa das ltimas janelas do prdio fron-teiro. Aquilo a incomodou, e ela contou para o marido.

    Nando, tem um velho l naquela janela que fica me espiando.

    Liga no, Bibica. Tambm, voc fica a, de biquininho, mostrando esse corpitcho, deixando

    o velho com teso. Ningum aguenta, neguinha. Um homem daquela idade devia ter

    compostura. A culpa sua, neguinha, quem manda ser

    gostosa. Vem aqui, minha Bibiquinha, vou te dar o que voc t precisando.

    Espera, Nando, me deixa fechar a cortina!Os sbados se sucederam, e o observador

    continuou firme em seu posto. At acenou para Fabiana e esticou polegar e mindinho num gesto muito popular: me liga.

    Ofendida, ela voltou para a sala e correu a cortina da porta corredia de vidro. Na hora do jantar, reportou o incidente:

    Nando, hoje o velho fez sinal pra eu tele-fonar pra ele! Voc acredita nisso? uma inde-cncia! Vou dar queixa dele na delegacia!

    , esse cara pirou. Deve ter alguma fanta-sia com enfermeira. Mas o melhor ignorar o maluco, neguinha. Ele acaba cansando. Agora, se ele te abordar na rua, a diferente: a gente denuncia esse tarado polcia.

    Porm, o homem no dava trgua, insistia no gesto cafajeste: me liga. E passou a exibir uma enorme cartolina branca com o nmero de seu telefone. Em resposta, Fabiana apenas gi-rava o indicador direito junto tmpora: voc louco.

    Mas o espio nunca desanimou: encarniou no assdio. Era caso de internao.

    Numa tarde de sexta-feira, a veterinria es-tava aplicando soro num gato idoso, com insu-ficincia renal, quando recebeu um telefonema de uma mulher desconhecida.

    Voc pensa que seu marido muito san-tinho? Est muito enganada. Se duvida do que eu digo, vai l na sua casa agora.

    Ela nem tirou o guarda-p: pegou um txi e disse ao motorista que era uma emergncia mdica. Entrou no apartamento pisando como um gato, ouvindo rudos no quarto, rangidos de madeira, tilintar de vidros.

    E encontrou seu marido executando uma posio avanada do Kama Sutra com uma loira volumosa, exuberante, espetacular.

    Ele estava em p, e a parceira, sentada na penteadeira com espelho um mvel frgil, de antiqurio , apoiava as pernas nos ombros dele. Fabiana arrancou o cinto branco das cal-as imaculadas do dentista, penduradas no es-paldar de uma poltrona, e largou a chibata em seu lombo:

    Fora da minha casa! Agora! Os dois! Nando pulava, protegendo os genitais com a

    mo direita, o brao esquerdo em defesa, apa-rando as lambadas.

    S voltou a dar as caras uns dias depois, para recolher roupas e objetos pessoais. Tinha per-dido seu ninho. O apartamento ainda pertencia ao pai de Fabiana.

    A velhota vizinha do apartamento em frente logo veio em sua cadeira de rodas prestar soli-dariedade Fabiana. Informou que Nando cos-tumava trazer mulheres diferentes para casa, no meio da tarde, em dia til. Fabiana descon-fiou que tantas vagabundas assim s podiam ser clientes do garanho de branco.

    Imaginou quantas posies avanadas a ca-deira odontolgica no teria propiciado ao pri-pico profissional.

    Num sbado glido de junho, a descasada estava escolhendo cebolas no supermercado quando um homem de cabelos brancos tocou em seu brao e disse com voz grave:

  • maro/abril 2015 9

    Com licena, doutora? Eu gostaria de lhe falar um instante.

    O estranho vestia um palet de l cinza, tinha um cachecol vermelho enrolado no pes-coo. Parecia um gal antigo de filme europeu.

    Desculpe, mas... eu soube que a doutora se separou de seu marido. Eu s quero dizer que lamento muito, mas a senhora jovem, bo-nita, com toda a certeza vai encontrar algum que merea o seu amor. o meu desejo.

    Fabiana arregalou os olhos, perplexa. Como aquele desconhecido se achava no direito de comentar sua vida ntima?

    Eu sei que a senhora ainda deve estar so-frendo muito, mas o tempo vai apagar essa dor, pode acreditar. A doutora ainda vai ser muito feliz.

    Ficou estarrecida. Aquele sujeito inconve-niente era algum conselheiro sentimental? Ela no pretendia chorar suas mgoas no ombro de ningum. Menos ainda no ombro de um Don Juan enrugado, sem um pingo de vergonha na cara.

    Vejo que a senhora no est me reconhe-cendo. Meu nome Nelson Franco, somos vi-zinhos. Moro naquele prdio em frente ao seu. Lembra agora?

    Ela continuou muda, agora de queixo cado. At agarrou a gola de seu casaco de inverno, num gesto instintivo de proteo.

    Sim, era eu que fazia sinal pra doutora me telefonar. Queria muito falar com a senhora. Fiquei noites pensando num modo de entrar em contato, de tocar no assunto, pensei em es-crever uma carta, mas... eu no sei lidar com uma situao assim, que envolve tanto senti-mento, entende?

    Ela teve medo de ouvir a provvel declara-o romntica que se seguiria. Deu-lhe as cos-tas e saiu empurrando apressada o carrinho de compras. Nelson hesitou um segundo, mas logo marchou atrs dela, determinado a concluir o seu monlogo:

    Eu s queria lhe contar o que se passava em sua casa, na sua ausncia ele elevou a voz, competindo com o locutor do supermercado, que exaltava ao microfone as ofertas-relm-pago da tarde.

    Assustada, Fabiana disparou por entre as gndolas e virou esquerda, mas Nelson Franco queria deixar uma coisa bem clara:

    Eu s quis ajudar! Infelizmente, a dou-tora entendeu errado! Levou a mal minha boa inteno! uma pena! Teria sabido de tudo h muito mais tempo!

    O que aquele maluco esperava dela? Um agradecimento? Ou queria fornecer um relat-rio detalhado? Fabiana estava quase em pnico. Abandonou o carrinho de compras e procurou perder-se em meio multido que aproveitava o Sabado da Economia.

    A caminho do estacionamento, sufocando o choro, ela se deu conta de que os malditos vizi-nhos solidrios nunca a deixariam esquecer sua infelicidade. A nica soluo era mudar de bairro.

    Antes que aquele pateta com pinta de gal italiano viesse fazer uma serenata debaixo da sua sacada.

    lUIz ROBERTO GUEDES paulistano, jornalista, letrista de msica e poeta. Autor da novela O mamaluco voador (Travessa dos Editores, 2006) e dos contos de Algum para amar no fim de semana (Annablume, 2010)

    Carl

    os W

    olne

    y

  • 10

    andando por pontes arqueadasadmiramos qualquer ornamento da domesticidade

    e damos boas-vindasa um passante qualquers runas de nossa casa

    h tantos espelhos dguaneste jardim japons

    mas no vemos azaleiasem cerimonioso desabrochar

    nem viveiros de bonsaisdando vida miniatura

    passeamos pelas aleiase alamedasem silncio

    cerejeiras em flor veneramos o que germinae prontamente termina

    cismamos com olmosbambus, pinheiros

    monumentos supremosque engolfaro nosso jardimnossa curiosidade mirim

    como escarpado e abrupto este jardim japons

    comandantes pacficos,navios-baleeiros nadam entre carpas

    JArdiM JAPonS

    um dos meus melhores poemasfoi escrito num jardim secreto

    tive vontade de experimentar todos os seus banquinhose achei por bem registraro que eles me trariam

    os bancos eram mais verdes que a folhagempensando bem, no era um jardim frondoso

    o primeiro me trouxeuma memria tronchada infncia

    quando bati com a minha bicicletacontra uma rvore, e na manh seguintefui escola vermelho de mercurocromonos dois joelhos e cotovelos

    o segundo descortinou para mimalgumas pessoas prximas chorando no meu enterroningum havia envelhecido

    no terceiro banco, escutei algum que amodizer que queria envelhecer comigo

    no quis deix-lo, mas fui empurradopara a promessa do ltimo banco

    no caminho, vi a primeira sequoia da minha vidaarranhando o cu

    um sagui perdido e um morcego diurno depoischeguei a uma clareira

    o quarto banco era um tronco descascadoe os veios da madeira eram as linhasda palma da minha mo

    QUAtro BAnCoS

    Po

    eM

    AS

    de

    GUIlHERME

    SEMIONATO

    GUIlHERME SEMIONATO carioca, formado em Comunicao na UFRJ. Tem um livro de poemas e cinco infanto-juvenis espera de editora.

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    DE FRENTE PARA O MAR,

    DE COSTAS PRO BRASIlENTREVISTA A JOO POMBO BARIlE

    Para o escritor luis Augusto

    Fischer, nossa crtica

    at hoje no se livrou do

    fantasma de Mrio de Andrade,

    d excessiva importncia ao

    modernismo paulista e no

    consegue pensar a cultura

    brasileira fora do eixo

    Rio-So Paulo

  • 12

    Somos um gigantesco terreno baldio. Temos imensas Sibrias florestais que jamais viram um nico e escasso brasileiro. S uma estreita orla litornea habitada e, as-sim mesmo, por causa do banho de mar A frase do ines-quecvel Nelson Rodrigues, escrita h mais de 50 anos, define bem a maneira como o pas ainda hoje pen-sado. De frente para o mar, de costas pro Brasil, como escreveu o poeta Fernando Brant, at hoje no conseguimos nos libertar da concepo de uma cultura que s se enxerga a partir do eixo Rio-So Paulo (ou hoje seria melhor dizer So Paulo-Rio?).

    Da a importncia da obra do escritor Luis Augusto Fischer. Voz dis-sonante na crtica literria brasileira, este gacho nascido em 1958 na cidade de Novo Hamburgo no tem medo de pensar este imenso conti-nente a partir de outro ponto de vista. Fora do antigo eixo.

    E o que o leitor confere a partir de agora nesta entrevista. Na con-versa, feita por email com Fischer que atualmente mora em Paris, ele analisa, entre outros assuntos, as limitaes do modernismo tupiniquim e o atual momento da literatura brasileira.

    Numa palestra feita na Academia Brasileira de Letras, em 2012, voc chamava ateno para os estragos que o Modernismo fez na cultura e literatura brasileira. Uma viso incomum, j que, em ge-ral, a maioria da nossa crtica fala do movimento de 1922 de forma positiva e sempre com grande reverncia. Poderia explicitar melhor seu argumento?

    Assunto grande este, mas ainda necessrio, a meu juzo. Naquela mesa, na ABL em 2012, eu estabeleci um paralelo entre dois textos, duas conferncias, pronunciadas ambas no Rio de Janeiro, em 1942, a con-vite da ento Unio Nacional dos Estudantes. Uma foi a depois clebre fala do Mrio de Andrade, dando um balano dos 20 anos da Semana de Arte Moderna, que ento comeava a se configurar como um marco (retrospectivo, como todo marco) do sculo; outra foi a conferncia do ento famoso Vianna Moog, escritor gacho que estava no auge por ter publicado, em 1939, um romance antirracista que fez a embaixada alem, comandada pelo nazismo naquele momento, pedir sua interdio. A conferncia do Vianna Moog ficou com certa fama com o nome de Um arquiplago cultural, e tratava de uma visada de conjunto sobre a lite-ratura brasileira, mesmo tema da conferncia do Mrio. Ento so mui-tos paralelos, muitas coincidncias. E, no entanto, vises divergentes. Para o Mrio, a ideia de uma literatura brasileira como unidade, a cara, a identidade da literatura brasileira estava clara e definida - a literatura brasileira era o modernismo (o paulistano, centrado na famosa semana, protagonizada por ele mesmo), ou aquilo que o modernismo tinha, se-gundo ele, proporcionado.

    E para o Vianna Moog?J o Moog, baseado, ao que consta, em certas ideias do Gilberto Freyre

    (que era inimigo do Mrio de Andrade desde os anos 1920, e que ti-nha estado em Porto Alegre para uma conferncia em 1934), postulou a

    seguinte tese: no existe algo que se possa chamar de literatura brasi-leira. O que h so sete ilhas, formando um arquiplago que o Brasil. As sete ilhas seriam o Norte, a Bahia, o Nordeste, Minas e seu entorno, So Paulo, o Sul, com centro no Rio Grande do Sul, e o Distrito Federal, o Rio, a antiga Corte. Moog diferenciava a Bahia do Nordeste, coisa para ns estranha, mas bem cabvel ento. A Bahia era a tradio da grande retrica, o padre Vieira e Ruy Barbosa, ao passo que o Nordeste era o romance realista daquele momento, Lins do Rego, Graciliano, etc.

    Duas vises bem distintas...Exato. Este paralelo me parece muito sugestivo porque, nas duas

    conferncias, nas divergncias que elas expem, estava-se decidindo o futuro no da literatura brasileira em si, mas o modo como a literatura brasileira seria vista, a partir de ento. A viso unitarista, subordinada a certa perspectiva de vanguarda (nacionalista), de experimentao e tal, apresentada pelo Mrio, viria a triunfar, na universidade, nas escolas, nos manuais, nos vestibulares, finalmente no modo como todo mundo pensa na literatura brasileira. E esse triunfo no se deu pela fora do indivduo Mrio, mas pelo que ele representava naquele contexto, a irresistvel ascenso de So Paulo (a economia paulista, mas tambm a Universidade de So Paulo (USP), a viso de Brasil a construda). J a viso de Vianna Moog, menos fechada, mais pluralista, no sentido de acolher as varian-tes regionais como vlidas, sem nada que convergisse obrigatoriamente, essa viso restou como uma curiosidade de museu, uma ideia vencida.

    como se a verso da histria do modernismo contada pelos intelec-tuais paulistanos tivesse se tornada hegemnica...

    Mas preste ateno bem ateno: no quero com isso dizer que um tinha razo e outro no. Meu ponto que ali, em 1942, d pra flagrar bem um momento de virada da viso que o Brasil fazia de si. E bem, para quem, como eu, tem grande resistncia ao triunfo da visada modernista sobre o conjunto do Brasil, sobre o conjunto da literatura brasileira, esse momento deveria ser mais estudado e mais retomado. Ali estava ainda em jogo, em disputa, a interpretao do pas; dali por diante, com a mar montante dos estudos brasileiros concebidos na USP, muitos deles a par-tir do mesmo Mrio, o modernismocentrismo triunfou, impondo uma viso que me parece muito restritiva, muito limitada historicamente, e muito cruel. Dali por diante, escritor que queira ser bem visto tem que rezar pela cartilha marioandradina, porque do contrrio vai ser conside-rado antigo, pr-modernista, qualquer coisa dessas. Uma pena, mas foi este o processo.

    No Brasil, a universidade s comea no sculo 20. E de maneira mais estruturada, com os chamados herdeiros do modernismo. O modernismo funda a academia no Brasil. Ou estou errado?

    bem isso. A universidade moderna brasileira quer dizer, com en-sino e pesquisa, e no apenas como distribuidora de diplomas em viso escolstica lusitana comea com a USP, e no campo das humanidades foram pensadores paulistas, ou identificados com os pontos de vista pau-listas, que se impuseram. Um exemplo o que aconteceu com Gilberto

  • maro/abril 2015 13

    Freyre, que foi hostilizado pela USP, em geral, porque era um ensasta, pouco rigoroso, coisa e tal. Quem passou a jogar de mo foram os Srgio Buarque de Holanda, os Caio Prado Jnior, depois a gerao do Antonio Candido, Florestan Fernandes e tal. Todos eles, me apresso a esclare-cer, gente muito interessante. Para mim pessoalmente uma figura como Candido vital, um dos centros do debate historiogrfico e crtico na literatura brasileira. Mas o caso que eles no habitavam o cu, no esta-vam nem esto isentos do custo de pensar, que o preo de serem, como todos ns, dependentes das circunstncias. No caso deles, me parece que todos eles lutaram para impor o modernismo literrio (e uma srie de coisas em torno disso) como lei geral de validao da literatura, o que influiu decisivamente no modo como foram se formando as primeiras ge-raes de mestres e doutores, que depois espalhavam a mesma perspec-tiva, quase sempre acriticamente, em suas universidades, nos estados.

    Na Histria esta hegemonia modernista, penso sobretudo em Caio Prado Jr., ainda perdura?

    No campo da Histria, a centralidade do Caio Prado e de sua viso (de que o Brasil colonial era apenas o mundo da plantation, sem mercado interno e tal) j faz algum tempo que comeou a ser der-rubada, com os trabalhos pioneiros do Manolo Florentino, do Joo Luis Fragoso, da Hebe Matos e tantos outros. No campo da histo-riografia literria, porm, para minha grande lstima (e apesar dos meus modestos esforos, por certo limitados e falveis), continua totalmente triunfante a visada modernistocntrica sobre o conjunto da literatura brasileira. At um cara como, por exemplo, Guimares Rosa, de enorme originalidade (embora ligado ao passado de alguns escritores tambm dedicados matria rural e ao ponto de vista dos caboclos, como o gacho Simes Lopes Neto), s ganhou validao mediante comparaes com Joyce e coisa e tal. O crime que essa visada continua a cometer o de submeter todos os escritores do sculo 20 mesma rgua. E por ela casos to dspares como Simes Lopes Neto, Lima Barreto ou Joo do Rio recebem um carimbo de-preciativo de pr-modernistas, uma das categorias mais cretinas que se pode conceber, e que s tm curso porque a perspectiva moder-nistocntrica foi naturalizada, passou a ser algo como o sol e a lua, que nascem e passam por ns por foras misteriosas e irrecusveis. De todo modo, creio que alguma conscincia sobre a necessidade de desnatura-lizar essa percepo comea a ganhar terreno, mesmo no campo muito, muitssimo acrtico malgrado as alegaes em contrrio das Letras acadmicas.

    Poderamos dizer ento que a histria do modernismo brasileiro a histria contada a partir de So Paulo? A partir da USP?

    Como j disse antes, sim. Mas podemos especificar mais ainda e dizer que a interpretao dominante da literatura brasileira marioandradina, e no genericamente paulista. Foi o ponto de vista de Mrio que se con-sagrou, no o de Oswald, por sinal um escritor bem mais interessante, a meu juzo. H um exemplo notvel das limitaes crticas de Mrio de

    Andrade, que pode ilustrar o que quero dizer: em 1939, ele publicou um longo ensaio sobre Machado de Assis. Era o ano de centenrio de nasci-mento dele, de forma que houve uma enxurrada de ensaios, livros, etc., e Mrio entrou nessa. Em suma, Mrio diz que sabe que Machado um bom escritor, mas que ele prefere Alencar. Machado lhe parece muito racionalista, ao passo que Alencar tem a fora da brasilidade, coisa e tal. Bem, uma opinio dessas terrvel para o currculo de qualquer um, em 1939. Certo que Machado ainda no era to evidentemente um nome de validade ocidental, quanto agora ; mas todos os bons crticos (Lcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Alceu Amoroso Lima) j sabiam que o papo no era um Fla x Flu, um Grenal entre Machado e Alencar; este, com todos os mritos que indiscutivelmente tm de ter sido um pioneiro do romance, um excelente escritor em seu tempo e sua lngua, no tem flego para nada, em comparao com Machado. V l que nessa gera-

    o ainda houvesse quem colocava Ea de Queirs ao lado de Machado, quando no acima dele - era uma patetice essa opinio, mas faz mais sentido, compara dois contemporneos, com obra ampla e vasta, grande capacidade crtica etc. Pois bem: o que dizer dessa opinio do Mrio? Eu acho que esta opinio expressa bem um dos limites da visada mo-dernistocntrica, que no sabe o que fazer diante de um valor superior, realmente superior, como Machado, e aplaude o nacionalismo de curto alcance de Alencar. Por a se pode pensar muito, inclusive sobre o modo como a histria da literatura brasileira se conta, se pensa, vive, enfim, num isolamento pattico, sem se pensar em contexto com a mesma ln-gua, com o mesmo continente em que vive, etc.

    Gostaria que voc falasse do seu livro Literatura Brasileira Modos de Usar. Ele de 2007. uma introduo literatura brasi-leira com uma viso bastante crtica da cultura brasileira. Pensando,

    Os modernistas de 1922.

  • 14

    sobretudo na ltima dcada, e no aumento de estudantes nas nos-sas universidades, o que pensa do livro?

    Seria uma tima coisa voltar ao livro e repens-lo. Tenho algumas anotaes, mas ainda no parei para botar a mo na massa. Naquele ensaio, eu tentei fazer uma apresentao da literatura brasileira para leitores no profissionais, quer dizer, para leitores que no fossem pro-fessores e estudantes de Letras. Alis, o livro nasceu de um curso de gra-duao que por muitos anos eu ministrei na faculdade de Comunicao da UFRGS, e l eu tentava pensar como que eu poderia facilitar o acesso daquela garotada, futuros jornalistas e publicitrios, ao patrimnio comum que a literatura feita no pas. Por isso eu desenhei algumas linhagens temticas ou estilsticas, por fora da visada cronolgica e mo-dernista que eles aprenderam na escola e foram obrigados a decorar para passar no vestibular - bem, e a mesmo temos uma imensa novidade, j que agora quem manda neste terreno o ENEM, que tem vrios mritos e alguns defeitos perversos, entre os quais o modo como aborda a litera-tura, de um modo iliterrio, ou antiliterrio, porque em geral rebaixa o texto literrio a um texto qualquer entre quaisquer outros, numa pers-pectiva anticultural que me parece fruto de concepes ruins do campo da lingustica. Alm disso, temos novidades. H uma nova gerao de vigorosos romancistas, que apareceram na ltima dcada mesmo, como, para dizer dois nomes, Daniel Galera e Tatiana Salem Levy. Alm disso, hoje me parece mais claro o que alguns consideram um fim de ciclo da cano no Brasil, e este final de ciclo (no quer dizer fim de mundo, nem fim das possibilidades da cano) tambm permite ver com mais clareza a fora literria que ela carrega. Enfim, muita coisa a pensar.

    Na ltima dcada os encontros literrios se tornaram uma febre nacional. Que viso tem destes eventos? s festa e serve para transformar o escritor em pop star? Ou aumenta o nmero de leitores?

    As festas, como em geral as feiras, tm em vista circular o objeto li-vro. Algumas delas acrescentam interesse no contedo dos livros, mas em geral o interesse fica mesmo nos autores, vistos quase do mesmo jeito como so vistas as celebridades. No acho de todo ruim que isso acontea, porque podem derivar benefcios para o sistema como um todo - maior circulao do livro e do autor gera mais renda, e mais se remu-neram os escritores, etc. Mas de fato o foco dessas festas pouco ligado com a leitura em si mas preciso dizer que a leitura coisa muito mais difcil de promover do que o livro. Leitura aquele procedimento que a escola e a famlia e o contexto, idealmente, favorecem e ensinam na prtica. Em nosso pas, em regra apenas a escola faz isso, e a tarefa fica bem mais difcil de cumprir.

    Voc est morando na Frana. E viu de perto o Salo do Livro de Paris, cujo tema este ano foi o Brasil. Gostou do que viu?

    O Salo do Livro em Paris teve um bom impacto na divulgao de autores brasileiros, de fato. Os maiores jornais do pas deram destaque presena brasileira, resenharam escritores que estavam aqui para di-vulgar tradues e tal. Mas isso , como sempre e inevitavelmente, uma gota no oceano da literatura praticada em francs, em Paris e noutras partes. Aqui se l muito, numa quantidade incalculvel para as nossas

    condies. (Mas volta e meia a imprensa d dados mostrando que as no-vas geraes leem menos livros do que antes.) Uma coisa bem legal foi que uma editora francesa resolveu bancar novas tradues do Machado de Assis, que passa a ser visto como um dos grandes da virada do sculo 19, e no raro comearem a falar nele em parceria com o Proust, por exemplo, ou com o Henry James. Mas em geral o que se disse da nova literatura brasileira aqui foi quase um clich - que se trata de literatura de denncia da pobreza e da violncia, por a. No que isso no exista, na literatura e na vida diria brasileira. Mas isso uma parte da coisa, no ? Segundo esse critrio, quem brilha aqui Paulo Lins e Luiz Rufatto, por exemplo. No acho errado, nem ruim, mas preciso enxergar esse limite. At mesmo Bernardo Carvalho me parece que ganhou mais destaque aqui pela (tima) novela recente dele, que faz uma inteligente denncia do preconceito arraigado nas classes mdias brasileiras, do que por sua literatura costumeira, que mais sutil, menos voltada para a denncia e tal. Pensando por um outro vrtice ainda, compreensvel que a crtica francesa tenha tentado achar um denominador comum entre os escrito-res que aqui vieram, porque eles so obcecados pelo tema da identidade (coisa que os modernistas paulistas aprenderam com gente francesa, em boa parte) a comear pela deles, claro, que anda mal das pernas e cheia de problemas, especialmente pela coisa da imigrao recente e dos particularismos, que passaram a dar o tom no debate cultural. Um interessante socilogo francs publicou um livro (Linscurit culturelle, de Laurent Bouvet, editora Fayard), que li faz pouco, dizendo que agora, depois da instaurao da lgica multicultural, as pessoas no pensam mais naquilo que tm em comum com todas as outras, procedimento que a base da visada republicana (que aqui de verdade), mas sim pensam na afirmao de sua diferena em relao s outras, num particularismo que em parte solapa a prpria origem da repblica. Uma sinuca de bico. Enfim, foi por isso, por essa caracterstica, que eles tentaram encontrar o que havia de mais tpico entre os escritores, e a chegaram a tal da denncia. Mas certo que temos, em ao, creio que trs geraes de escritores de boa e tima qualidade. Acima dos 70, temos Cony, Lya Luft, Srgio SantAnna, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, gente provada; en-tre os 40 e os 60, todo um grupo, Rubens Figueiredo, Joo Gilberto Noll, Milton Hatoum, Cristvo Tezza, alm dos j citados antes; abaixo dos 40, uma penca de gente interessante - alm dos acima citados, temos o Marcelino Freire, o Paulo Scott, e assim vamos. Curioso que no ro-mance, ou na narrativa longa, que est o melhor do Brasil hoje em dia; h poucos poetas se apresentando com flego e capacidade de imantar a opinio. De todo modo, creio que estamos numa fase tima, de produo, traduo e circulao da literatura feita no Brasil.

    lUIS AUGUSTO FISCHER realizou sua formao acadmica na UFRGS. Sua tese, defendida em 1998 junto ao programa de ps-graduao em Letras, versou sobre Nelson Rodrigues. Atua como professor naquela Universidade desde 1984. Escreveu e organizou vrios livros de literatura e publicaes acadmicas, entre os quais Filosofia mnima - ler, escrever, ensinar, aprender, Machado de Assis & Borges y ms ensayos sobre Machado de Assis e Dicionrio Colorado.

  • CAno DE AMoR

    Ele a amava e ela a eleOs beijos dele sugavam o passado e o futuro dela ou tentavam sug-losEle no tinha apetite para mais nadaEla o mordia roa sugavaEla o queria inteiro dentro delaSo e salvo para todo o sempreOs gritos deles esvoaavam pelas cortinas.

    Os olhos dela no queriam desperdiar nadaCom suas miradas ela pregou as mos dele os pulsos os cotovelosEle a apertou com fora para que a vidaNo a levasse embora daquele momentoEle queria que todo o futuro parasseEle queria atirar-se com os braos em volta delaDa beirada daquele momento rumo ao nadaAo eterno ou aonde quer que fosseO abrao dela era uma enorme prensaQue o estampava nos ossos delaOs sorrisos dele eram guas-furtadas de um palcio encantadoAonde o mundo real nunca chegariaOs sorrisos dela eram picadas de aranhaA fim de deit-lo imvel at chegar a fome delaAs palavras dele eram tropas de ocupaoAs risadas dela eram tentativas de um assassinoAs miradas dele eram balas adagas de vendetasOs olhares dela eram fantasmas de esquina com segredos horrveisOs suspiros dele eram aoites e coturnosOs beijos dela eram advogados escrevendo sem pararAs carcias dele eram os ltimos anzis de um nufragoOs truques de amor dela eram o rangido de trancasE os agudos gritos deles se arrastavam pelo choComo um animal que puxasse uma grande armadilha

    As promessas dele eram tenazes de cirurgioAs promessas dela arrancaram a calota do crnio deleCom a qual ela faria um brocheAs juras dele tiraram todos os tendes dela

    Ele mostrou a ela como se faz um n de amorAs juras dela puseram os olhos dele no formolNo fundo da gaveta secreta delaOs berros deles grudaram na parede

    As cabeas deles caram no sono como se fossem metadesDe um melo partido, mas difcil deter o amor

    No seu sono enroscado, eles trocaram braos e pernasNos seus sonhos, seus crebros fizeram-se refns um do outro

    De manh estavam vestindo cada um a cara do outro

    LOVESONG

    He loved her and she loved himHis kisses sucked out her whole past and future or tried to

    He had no other appetiteShe bit him she gnawed him she sucked

    She wanted him complete inside herSafe and sure forever and ever

    Their little cries fluttered into the curtains

    Her eyes wanted nothing to get awayHer looks nailed down his hands his wrists his elbows

    He gripped her hard so that lifeShould not drag her from that moment

    He wanted all future to ceaseHe wanted to topple with his arms round her

    Off that moments brink and into nothingOr everlasting or whatever there wasHer embrace was an immense press

    To print him into her bonesHis smiles were the garrets of a fairy palace

    Where the real world would never comeHer smiles were spider bites

    So he would lie still till she felt hungryHis words were occupying armies

    Her laughs were an assassins attemptsHis looks were bullets daggers of revenge

    Her glances were ghosts in the corner with horrible secretsHis whispers were whips and jackbootsHer kisses were lawyers steadily writing

    His caresses were the last hooks of a castawayHer love-tricks were the grinding of locks

    And their deep cries crawled over the floorsLike an animal dragging a great trap

    His promises were the surgeons gagHer promises took the top off his skull

    She would get a brooch made of itHis vows pulled out all her sinews

    He showed her how to make a love-knotHer vows put his eyes in formalin

    At the back of her secret drawerTheir screams stuck in the wall

    Their heads fell apart into sleep like the two halvesOf a lopped melon, but love is hard to stop

    In their entwined sleep they exchanged arms and legsIn their dreams their brains took each other hostage

    In the morning they wore each others face

    (Tra

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    15maro/abril 2015U

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    TED HUGHES(1930-1988) considerado um dos melhores poetas britnicos de sua gerao.

  • 16

    ABrAode AzUleJoCONTO DE MARCElA DANTS

    Trancou-se no banheiro enquanto pen-sava que, se no fosse alrgica, teria uma gata chamada Expectativa afinal, j estava acos-tumada a aliment-las. Assustou-se com os prprios pensamentos em um momento como aquele, to mais srio e to maior que um felino ou um edema de glote. No se achava egosta (ela nunca achava nada sobre si), mas lembrou com certo incmodo de dois ou trs ex-namo-rados que haviam dito alguma coisa parecida em uma, em vrias brigas. Ou em um fim. Por onde andavam os seus romances passados? O que foi feito das pessoas que j ocuparam a parte principal da sua vida e o lado direito da sua cama? Nunca conseguiu entender o porqu de seus relacionamentos sempre acabarem de maneira to ruim. Ou trgica, como tudo indi-cava agora. Mas no esperava uma epifania ali, trancada no banheiro, encostada no azulejo frio e azul e to fora de moda.

    Detestava tudo naquele apartamento, aquele cmodo em especial. Era s um banheiro, um odivel banheiro. Detestava tudo, menos a man-cha marrom que descia por baixo da torneira de gua quente na banheira branca. J fazia trs anos que ela ocupava o terceiro andar daquele prdio desbotado na Avenida Brasil e no passou um dia sem que amaldioasse a deciso do an-tigo dono de colocar uma banheira ali. Tinha um tamanho medocre pequena demais para um

    banho confortvel e muito grande para a meia dzia de metros quadrados do banheiro. Mas a mancha da torneira ela achava linda. Uma cica-triz sincera naquela superfcie fria, uma prova in-discutvel de que at a porcelana plida tem um pouco de vida, um pouco de histria e alguma imperfeio. No era uma pessoa supersticiosa, ou era exatamente o oposto disso: s acreditava naquilo que podia entender, mas era inegvel que coisas estranhas estavam acontecendo.

    J havia se decidido: no contaria nada. Se o destino resolvera brincar com ela, e era s com ela, ningum tinha que saber que ela no sabia brincar. Que ele a procurasse, ento (ele, no o destino). Cedo ou tarde isso aconteceria e ela tinha certeza que seu silncio faria sentido. Luto pra quando estamos ss. Podemos at chorar os nossos mortos de mos dadas, mas na hora de fechar os olhos e esperar por um novo dia, quando cada um sozinho, que a dor vem forte. quando sentimos o que s a gente sabe. Ali, naquele banheiro duvidoso, o azu-lejo devolvendo a presso das suas costas nuas, era frio, gelava at as veias. Instintivamente puxou uma toalha e a jogou nos ombros, at se lembrar de que no havia mais nada a ser pro-tegido. Foi quando comeou a doer. No eram os gatos, os ex-namorados, o maldito azulejo, claro demais para ser ousado, feio demais para ser despretensioso. Era uma dor dentro. Doa

    o tero, doam os ovrios, doa um tanto, uma vida. Diria que doa o corao, mas no era dada a essas metforas romanceadas o que sentia era uma presso no peito que a deixava sem ar. E soluar sem ar tarefa muito difcil.

    Chorar a dor de um filho perdido um fardo muito grande, at pra quem sente que no cabe no mundo. Ainda carregava o envelope que a se-cretria do laboratrio lhe entregara uma hora antes. Ainda sentia na garganta o incmodo ras-gado de cada palavra daquela mulher. Procure o seu mdico o mais rpido possvel. E muito mais grampos que o necessrio. Ela no se lembrava da ltima vez em que seu corao disparara. Mas ele permaneceu assim, numa batida acelerada durante os dois minutos e meio que ela demo-rou pra tirar todos aqueles grampos. Um furo no dedo da aliana a lembraria de tudo o que precisava ser esquecido por mais alguns dias. No asseguramos vitalidade fetal. Ns quem? Um plural inconveniente que s faz lembrar o quanto ela est sozinha. Essa merda de ultras-som no deveria servir pra isso? E meu filho no um feto, ele tem nome. Vicente, como o av. Um nome importante para o futuro que nunca chegou. Obedeceu a ordem desajeitada da secre-tria, mas antes de chegar, um sangramento to forte lavava a ltima sombra de esperana. Foi quando tantos sonhos ficaram ali, midos, no banco traseiro de um txi preto.

  • maro/abril 2015 17

    MARCElA DANTS mineira de Belo Horizonte, scia de um estdio de design e autora da novela indita A Velocidade Instvel dos Aflitos.

    Abli

    o Ab

    do

  • 18 DOIS POEMAS DE K

    AIO

    CARM

    ONA

    Penso o amor em trs atos:

    Horizonte

    Plpebras baixando

    Mos que se entrelaam, danando.

    Penso o amor em dois atos:

    A pele suada

    O flego por um triz

    Penso o amor em um ato:

    A palavra que no se diz.

    Suza

    na D

    anta

    s

  • maro/abril 2015 19

    Chamem mdicos, psiclogos, engenheiros,

    matemticos, cientistas!

    Uni-vos!

    preciso rgua, compasso,

    auscultador, todas as medidas,

    precisas.

    Tragam lpis, papel, planilhas.

    Tragam microscpio, lunetas,

    toda a quinquilharia.

    preciso medir o seu contorno, testar os seus limites.

    Acompanhar o seu crescimento, marcar-lhe as transformaes.

    preciso muito bem examinar,

    decompor, desconstruir, desmedir.

    Chamem padres, mes de santo,

    pensadores, professores,

    toda a sorte de prostitutas.

    preciso compreender muito bem sua conduta.

    Recolher relatos, pesquisas, tabelas.

    preciso muito bem esmiuar suas entranhas.

    Tragam calculadoras, fita mtrica,

    bisturi.

    preciso medir sua fora tamanha,

    seu flego.

    Venham fillogos, gramticos e historiadores.

    Farmacuticos, feiticeiras e druidas.

    Uni-vos!

    preciso capturar, estudar.

    preciso entender-lhe o comportamento,

    prever seus movimentos.

    preciso cortar suas asas, atear fogo aos seus ps,

    decifrar-lhe a lngua.

    preciso descobrir o momento em que nasce e

    cronometrar a sua morte.

    Vamos todos!

    preciso descobrir o que h por detrs da palavra

    amor.

    KAIO CARMONA vive em Belo Horizonte. Publicou Compndios de amor, pela Scriptum, em 2013.

    Suza

    na D

    anta

    s

  • 20

    A contagem estava comeando e tudo o que se ouvia eram passos pequenos, apressados e errantes. Cada criana seguia at seu abrigo com desespero e emoo. Tinham trinta segun-dos. E a cada nmero cantado, menos gente se via. s vezes uma perna, logo mais nem isso. At que a vizinhana fosse puro esconderijo. As rvores, carros, becos e moitas guarda-vam seus meninos com compaixo. Eram todos cmplices de um crime invisvel. Silncio. Silncio.

    Luana tentava prender a respirao entre os arbustos. Sua posio era desconfortvel e os galhos lhe rasgavam a bondade pelas costas. Devia ter escolhido outro lugar pra se esconder. De repente Dudu aparece, esbaforido, com cara de socorro.

    Sai, Dudu... Eu j t aqui. sussurrou. No d mais tempo, ele j parou de contar. Vou ter que

    caber.Vou ter que caber... Luana achou graa do menino, que-

    rendo se enfiar onde, obviamente, no havia espao. Mas pensou que, se no admitisse Dudu, estaria cometendo algum tipo de pecado. Como se, dona de um hospital, negasse aten-dimento a um homem moribundo. Dudu era seu moribundo.

    Que saco... No t vendo que no cabe? Ah, Luana... Chega pra l, empurra esse galho. Isso.

    Pronto.Os dois conseguiram se espremer entre as rvores. Agora

    eram obrigados a ficar numa posio terrivelmente vulner-vel. Seus pequenos corpos de dez anos estavam amontoados no interior da moita e os galhos e folhas funcionavam como uma cabana escura e volumosa. L fora, o menino gordinho comeava a procurar.

    Os dois ficaram em silncio. Um silncio to grande que chegava a assustar. Cada movimento era um escndalo. Os gravetos no rangiam, berravam. O cho era uma sinfonia de pequenos e tremendos barulhos. Luana estava incomodada. Precisava respirar, mudar de posio, espantar uma formiga, mas Dudu parecia um rob, vidrado, acompanhando o gordi-nho com a ateno de um predador. Por um momento pensou que brincar de esconde-esconde era mesmo coisa de menino. Eles eram mais rpidos, silenciosos e levavam a brincadeira

    lAtnCiACONTO DE GABRIEl lEITE

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    mais a srio. Ela, se estivesse sozinha, por certo j teria per-dido. No levava muita coisa a srio. Mas Dudu era um guer-reiro; desses impvidos.

    Aos poucos Luana percebeu o que lhe ocorria e com es-panto se deu conta do absurdo que era estar espremida com um garoto no meio do mato. Pra logo mais, no se espantar. E at gostar. E achar estranho. Abusado. Tinha dez anos e es-tava espremida com um menino no meio do mato. O horror. Mas Dudu parecia concentrado, s tinha olhos pro jogo. Ele jamais perceberia o que estava acontecendo.

    Viu que seu short terminava no meio das coxas, a bermuda dele tambm, de um jeito que, mais cedo ou mais tarde, suas pernas se encostariam. Acabaram se encostando como um

    Mar

    cos

    Venu

    to

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    arrepio, mas ele parecia no se dar conta. Estava entretido no jogo. E Luana adorou a sensao da panturrilha dele contra a dela. Quente e spera, com uma cicatriz do futebol bordando as beiradas. Uma pressio-nava a outra. Cada vez mais forte.

    Dudu tinha o cabelo anelado, mas de um jeito que s possvel se ter aos dez anos de idade, quando os hormnios da puberdade ainda no es-tragaram a maciez da vida. Seus olhos eram escuros, mas no chegavam a ser pretos. E ele todo era bastante bonito, o que incomodava Luana h dias. Porque ele era bonito, mas parecia no fazer ideia disso. E quanto menos fazia ideia, mais bonito era. E s vezes sorria de um jeito pateta e ficava incrivelmente adorvel. s vezes se irritava com algum e che-gava a esbravejar, mas tinha a lngua presa, o que tornava seu discurso engraado na maioria das vezes. E Luana fingia nada ver por baixo de sua franja marrom. Suas observaes e impresses eram silenciosas, como se, admitindo sua admirao por um garoto, tivesse que admitir tambm que estava crescendo.

    Teve seus devaneios interrompidos pelo cotovelo de Dudu, que fin-cava sua costela.

    Dudu, seu cotovelo t me machucan...A mo dele veio tapar sua boca. O gordinho estava a poucos metros.

    Caminhava lentamente, com um olhar de guia. Os dois prenderam a respirao. Qualquer barulho seria fatal. E Luana pensou que seu corao colocaria tudo a perder. Batia rpido demais, forte demais, fundo demais. O que significava aquilo tudo? Eram os dedos de Dudu que agora esta-vam em sua boca? Tapando-lhe os lbios? Fazendo tremer? Aos poucos, toda sua sensibilidade fora transferida para a ponta da boca e ela j podia sentir cada risco da pequena mo de Dudu. Sentia o cheiro de menino nos seus dedos e pensou que fosse desmaiar de embriaguez. Era refm. E precisava esperar que o gordinho se afastasse para tentar um acordo pacfico.

    Ufa. Quase, hein?Dudu tirou a mo da boca de Luana e tentou ficar numa posio mais

    confortvel. Foi quando ela percebeu, com pavor, uma mancha de sangue nas costas do menino. Enorme, como uma flor. Teve vontade de chorar, mas se controlou. Era preciso falar baixo.

    Sua blusa t cheia de sangue! Qu?Ele tambm pareceu assustado. Colocou a mo nas costas para se

    certificar e voltou com os dedos vermelhos. Sem pensar duas vezes, Dudu tirou a camiseta. Agora dava pra ver o corte. Transversal e reto. E fundo.

    Acho que esbarrei em alguma coisa afiada quando entrei aqui... ele parecia tranquilo, mas suas costas sangravam. Lenta e continuamente.

    Luana no conseguia falar. Sentia-se atordoada e confusa. Olhava para Dudu e s conseguia enxergar seu corpo de criana que, naquele momento, parecia to errado e desejvel. Sua pele clara, o pequeno pei-toral infantil que era a promessa de um adulto saudvel e forte, o corte nas costas. Tudo vermelho, sujo, suado. E alguma coisa entre suas pernas lhe atraia profundamente, como um m.

    Acho que vou ter que me entregar. Ir pra casa... disse ele, tristo-nho com fim da brincadeira.

    Luana no respondeu. E atendendo a um impulso animalesco e vio-lento, virou Dudu de costas e foi estancar seu sangue. Com a boca. Ele deixou, sem entender muito bem que espcie de tcnica era aquela. E ela

    sugava cada vez mais forte. Sentia o gosto do sangue na lngua. Abraava todo o menino por trs e se sentia vampiresca, mas no podia parar. Teve tonturas de prazer, desfaleceu, revirou os olhos, conheceu a morte e voltou saciada. Tirou os lbios de suas costas.

    Valeu, mas acho que preciso mesmo ir embora. No havia cons-trangimento entre os dois. Ele sorriu, como se agradecesse o servio de uma enfermeira; e ela continuou calada. A boca manchada de sangue. Diria pra me que comera amoras do p.

    E Dudu se entregou. Foi pra casa carregando a camiseta na mo es-querda e um segredo na outra. Ningum saberia que ele s havia apa-recido ali, no esconderijo apertado, porque momentos antes vira Luana entrando e queria ficar perto dela. E que passara a brincadeira inteira com o corao aos pulos, sentindo seu perfume, reparando em sua pele, sua franja, seus olhos, e que quis perder a vida quando ela beijou suas costas feridas. Mas Luana parecia sempre concentrada, s tinha olhos pro jogo. Ela jamais perceberia o que estava acontecendo.

    GABRIEl lEITE mineiro de Belo Horizonte e estuda Letras na Universidade de Braslia. Esta sua primeira publicao.

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    OUTRODO

    MESMOAUGUSTO

    POETA

    AMADOR RIBEIRO NETO

    Em 1953 Augusto de Campos publica poetamenos, livro an-terior ao lanamento da Poesia Concreta, que a antecipa em muitos procedimentos, como quebra da sintaxe tradicional, espacializao vocabular, condensao, termos substanti-vos, uso de variadas fontes, inclusive coloridas, etc. Em 2015, com outro (So Paulo: Perspectiva) ele reafirma que seu tra-balho continua incorporando cores, variados tipos de fontes tipogrficas, rompimento com o verso tradicional e palavras organizadas em estruturas grfico-espaciais. Um arco une as duas obras, distantes entre si 62 anos. Apenas por este dado, dentre tantos outros, fica evidente que o poeta sabe, h d-cadas, o que sempre quis fazer. E o fez e o faz com admirvel desempenho.

    No somente estes dois livros de sua obra complementam--se: eles desenham o plano potico por onde os outros ttulos transitam, com linguagens e projetos grfico-formais prxi-mos. Consideremos suas tradues. Convertidas em intra-dues dada a singularidade que encerram, numa parceria legtima com o poeta traduzido , esto presentes em seus livros desde 1974, quando publicou intraduo, de Bernart

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    de Ventadorn, a partir de um poema escrito h exatos 800 anos: se eu no vejo / a mulher / que eu mais desejo / nada que eu veja / vale o que / eu no vejo. Desde ento, o poeta tem se dedicado a inserir em seus livros poemas da prpria feitura, e outros, ainda que sob fragmentos, a quatro mos.

    Encontramos o mesmo procedimento em despoesia (1994), de onde destacamos nuvem-espelho para sinisgalli, poeta italiano conhecido como poeta engenheiro, tal sua engenhosidade. No preto da pgina fontes vazadas e fontes cheias, em reflexo, configuram o isomorfismo de nuvem e espelho numa noite de corvos. No h como no vibrar com as solues do poeta brasileiro. Em so l(a, de cummings, do mesmo volume, o branco da pgina destaca fontes em dois tons de verde, ico-nizando as folhas que caem e, metaforicamente, a solido do inverno.

    As intradues tambm aparecem em no (2003), de onde selecio-namos r de bash, que toma o clebre poema do grande haicasta japons, recriando-o numa estrutura de formas, cores, sons e movi-mentos instigantemente interligados. Igualmente dodeschoenberg, que se delineia dentro de uma das marcas da poesia augustiana: o poema-linguagem-indagao. No recente outro, este procedimento aparece em dois poemas. Em isto: ? // um psiu de pedra psi // que esquiso aqui este // quisto esquisito // poesia ou sou eu que ex // isto //?. E em d?vida: que / poesia / poderia / dizer / a / d vida / d / ser.

    A intraduo, presente no livro recm-lanado, vem acompanhada de outradio, novo modo de parceria. Modo que tanto pode ser a recriao de autores de lngua portuguesa como Euclides da Cunha, Fernando Pessoa, Vieira como o resgate de uma fala-protesto da cantora Erykah Badu. Ou mesmo um poema inspirado em Maiakvski, Magritte e na civilizao maia que dialoga, na forma, com o poema contemporneos, retirado de uma afirmao de Mallarm: (...) pre-firo, diante da agresso, retorquir que alguns contemporneos no sa-bem ler a no ser no jornal. O poema de Augusto, grafado em fontes que decrescem, verticalmente, ao longo da pgina, diz: osc/ont/emp/ora/neo/sn/osa/bem/ler. Temos, entre outras, estas possibilidades de leitura: os contemporneos, neo no, no sabem, sabem, sabem bem, bem ler. A disposio da frase na folha, semelhana de um diagrama de mdico-oftalmolgico, exige que o leitor leia do grande ao mido. Mas, adentrando filigranas da linguagem.

    Temos um quadro abstrato em occhiocanto (omaggio a scelsi 2), cujo ttulo remete a olhoumsica, na acepo de ver-msica, to em voga com as novas mdias. Com o advento do videoclips, Dcio Pignatari costumava dizer que j no se perguntava mais: voc ouviu a nova msica de fulano?, mas sim: voc viu a nova msica de fu-lano?. Augusto parece ratificar a observao do amigo.

    outro est dividido em quatro sesses: outro/poemas, que rene a poesia do prprio Augusto; intro/intradues, com fragmentos de poetas traduzidos por ele e sob suas intervenes visuais; extro/ou-tradues, que transforma em imagens textos de poetas, prosadores e artistas plsticos; clip-poemas 2, com poemas para serem acessados pela internet. H prefcio, notas elucidativas e deserrata a bem da

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    verdade, o poema que encerra o livro. E que reverencia o famoso neologismo pig-natariano vler. Diz o poema de Augusto, escrito em fonte la braille: on/de/se//l//le/ia/se//le/ia/se//v. Est dito: um livro para ler e ver.

    O poema humano, estruturado com hexa-gramas do I Ching, um convite ao olhar, ao si-lncio e ao manuseio das mos para ser melhor frudo. Sabedoria oracular e filosofal parecem convi-ver num yin-yang de infindvel bumerangue potico.

    O pensamento valryano, em especial no quesito inspirao potica, professa que o poeta no precisa ser inspirado, mas deve levar o leitor a sentir-se como tal. Ou seja, o poeta deve ter conscincia de seu pro-cesso criador: Sentir no significa tornar sensvel e menos ainda, belamente sensvel..., nos ensina, grifando os termos essenciais da sentena. Para ele, apoesia uma arte da linguagem. A literatura s lhe interessa na me-dida em que cultiva o esprito em certas transformaes aquelas nas quais as propriedades excitantes da linguagem desempenham um papel fundamental.

    Tendo em seu horizonte a poesia e o pensamento valerya-nos, Augusto toma o aforismo Ser poeta, no. Poder s-lo, e produz o poema poder ser: no/ser/poe/tap/ode/rse/rpo/eta. No, contra, des, anti. Outra poesia. Aquela que contraria a poe-sia dita profunda, para nos valermos de outro mestre, Joo Cabral. Enfim: no ser poeta; poder ser poeta.

    A srie de poemas intitulada tvgrama, iniciada no livro despoesia (1994) com tvgrama1 (tombeau de mallarm) e tvgrama2 (antenae of the race), prossegue com tvgrama3 e tvgrama4 erratum, em outro.

    Se tvgrama1 diz ah mallarm / a carne triste / e ningum te l / tudo existe/ pra acabar em tv. No recente tvgrama4 ele dir: ah mallarm / a poesia resiste / se a tv no te v / o cibercu te assiste / em quick time e fly / j pairas sobre os sub / tudo existe / pra acabar em you-tube. Antenado, o poeta vai da era da tv da Internet. Sempre insistindo na poesia que dialoga com Mallarm.

    Em odi et amo, de Catulo, insere o vocbulo amo dentro de odeio, de tal forma que o poema funciona como um oroboro, num mo-vimento continuado e infinito. A disposio grfica das letras do poema brinda o leitor com um possvel ttulo ode.

    Ao escolher Catulo, defensor de uma poesia com termos, temas e for-mas no convencionais, e por isto mesmo fortemente criticado por Ccero, Augusto traz tona o velho embate entre conservadorismo e vanguarda. Com sutileza. No fundo negro da pgina as palavras odeio e ode destacam--se em verde. E amo, em vermelho. Ambas as cores so tomadas da capa do livro: sob fundo verde, nome do poeta e da obra destacam-se em ver-melho. Assim, podemos ler psicanaliticamente: amar como verso de odiar. E, semioticamente: vanguarda como verso de conservadorismo.

    O poema brazilian football, escrito em 1964, ganha novo layout em 2014, ano da Copa: 1958 goal ! goal! goal! / 1962 goal ! goal! goal! /

    1964 gaol! gaol! gaol!. O trocadilho se faz entre goal (gol) e gaol (priso).

    Segundo Augusto, ao revisitar o poema teve como objetivo fazer uma desome-

    nagem ao golpe de 64, bem como aos golpistas de todos os matizes do presente,

    chupins desmemoriados do poder. Este po-ema, como outro seu, greve (1962), investe

    na linguagem potica engajada, protestando dentro da mxima maiakovskiana aposta ao

    plano piloto da poesia concreta : sem forma revolucionria no h arte revolucionria.

    O poema ter remoto, desde o ttulo remete o leitor ao processo estruturante do poema terra, de

    Dcio Pignatari. A fonte grfica verde, arredondada e espelhada, sobre o fundo azul, remete ao movimento

    do bater de asas da borboleta. O poeta brinca com as letras, fazendo delas o corpo da borboleta. Mais, ainda:

    remetendo a outro poema de Dcio, borboletra. Alm de estabelecer elo direto com borboleta-p de khlibnikov

    (de despoesia), montado com fontes pontilhadas. Mais tarde, em borboleta de khlibnikov II, do livro no, o poema rea-

    parece, agora sob forma caligrfica e colorida. As letras manus-critas conferem dramaticidade ao voo cego da borboleta atravs

    do espelhamentos da letra /c/ cone do bater de asas contra a vidraa. O mesmo movimento que reverbera sonora e visualmente

    em ter remoto.Em tntaro, quatro substantivos trissilbicos, proparoxtonos,

    rimando toantemente entre si, so colocados em ordem alfabtica. Esta aproximao sonora e visual refere-se, nos trs primeiros vocbulos, a elementos naturais e, no quarto, a um componente qumico. Cito o po-ema: cntaro / pntano / sndalo / tntalo. O neologismo do ttulo mescla vaso, lama, perfume e metal numa argamassa compacta. Por ou-tro lado, se considerarmos o mito de Tntalo, cntaro e sndalo podem referenciar o mundo dos deuses, e pntano, o de Tntalo, que nele foi lanado como punio divina.

    Augusto de Campos toma a palavra como matria concreta, e a conforma a seus quereres que so muitos, ao longo de seis dcadas de poesia. Sua produo ensinamento de como usar a palavra com rigor, parcimnia e sensibilidade caractersticos complementares. Um poeta digital avant la lettre, cuja obra negao da facilidade. E confirmao da felicidade de criar. L-lo aceitar o desafio de ser provocado a cada poema, a cada livro. Minimalista ao grau zero da palavra, toma-a em suas dimenses mais radicais de msica, imagem e ideia. Sem concesso, cutuca a ona retr da poesia com vara curta. Feliz dono de admirvel erudio, assusta acomodados e deleita in-quietos. Vem operando um tsunami, no somente na poesia de lngua portuguesa, mas, segundo vrios crticos, em toda a poesia contem-pornea universal.

    outro fascinante. o seguinte e o diverso. Do mesmo augusto. Do outro augusto. Do sempre augusto e desafiador Augusto.

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    AMADOR RIBEIRO NETO professor do curso de Letras da Universidade Federal da Paraba. Autor de Lirismo com siso - notas sobre poesia brasileira contempornea (crtica, 2015); Ah---oxe (poesia, 2015); Barrocidade (poesia 2003).

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    Aquela queimadura devia ter dodo muito. Assim devia pensar a mulher sua frente. Fez uma cara de espanto meio engraada. Ele pensou que se lembraria daqueles olhos arregalados. Contaria para o irmo depois, para rirem juntos.

    - Quem fez isso com voc?Ele pensou se respondia. Depois resolveu falar.- Minha me...- Sua me??Os olhos ainda mais arregalados. Ele quis consertar.- O que a senhora est pensando da minha me?- Nada. S sei que as mes no andam fazendo isso com os filhos.Ele abaixou os olhos.- J passou, no importa mais.Ela prosseguiu, enquanto anotava tudo em um bloco de papel. Ele ardia de curiosidade tentando ver o

    que estava escrito.- Quantos anos voc tem?- Tenho onze.- E o seu irmo?- Nove.- So s vocs dois?- ... Tinha minha av, mas morreu ano passado.Ele esticava o pescoo, querendo ler o que ela escrevia. - Que hora que a sua me est em casa?- Sei l... tem dia que ela sai pra fazer faxina, no sempre. Deve de estar em casa agora. A senhora vai

    querer falar com ela?- Talvez, mas vou avisar antes. Voc pode ir. Se precisar, a gente te chama de novo.Ele voltou pra sala de aula, pensando no que contaria para o irmo quando chegasse. Tambm iria falar

    pros colegas sobre os olhos arregalados daquela mulher, vendo a queimadura. Eles o tinham visto sair da sala pelo chamado da diretora e deviam estar curiosos. Ia ser engraado dizer que no era nada, s aquela mulher perguntando e olhando pro seu brao com os olhos arregalados. Ela anotou um monte de coisas, no sei pra que, ele contaria depois. No consegui ler, mas ela escreveu muita coisa.

    MeiA tArde de vertigeM

    CONTO DE CRISTINA GARCIA lOPES

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    J passava da uma hora da tarde quando o carro estacionou em uma rua de pouco movimento. Depois de dar algumas voltas pelas ruas adjacentes, finalmente parecia terem localizado o endereo. A moa desceu apreensiva, pedindo ao motorista que a aguardasse. Era a primeira vez que visitava aquele bairro. Tinha ouvido falar que era um lugar violento, mas j estava acostumada a fazer aquele tipo de visita em locais assim. O caso parecia grave e a diretora da escola estava preocupada. Por isso, pediu que ela interviesse.

    Conferiu novamente o endereo. As ruas eram estreitas e tortuosas e as casas muito pequenas, amontoadas umas s outras. Era difcil re-conhecer o nmero em cada uma delas. Mas havia buscado indicaes e acreditava estar diante da casa correta. Nmero 35. Uma pequena casa sem pintura, com os tijolos ainda visveis na maior parte, quase sem reboco. Apenas um porto de ferro a separava da rua.

    Naquela hora, o sol era intenso. Ela sentiu como uma pequena verti-gem, com toda aquela luminosidade da tarde sobre as casas baixas, sem nenhum anteparo ou proteo para o sol. Ainda estava um pouco tonta pelas inmeras voltas que o carro havia dado dentro do bairro, buscando aquela rua. Bateu porta da casa indicada. No demorou muito para que algum a abrisse.

    - Boa tarde, sou da prefeitura. Queria falar com a Rosrio, a senhora?- Sou eu sim. Mas voc, quem ?- Meu nome Sandra, trabalho na secretaria de educao. A senhora tem

    um filho que estuda na escola municipal Coronel Tobias de Freitas, no ?- Tenho sim, por que? Ele fez alguma coisa errada l?- No, no... Pelo contrrio, no temos queixa dele. outra coisa.

    Podemos conversar?- J que a senhora veio at aqui, por favor, entre. Vamos conversar

    aqui dentro. s na reparar que a casa simples...- No precisa se incomodar. A conversa no ser demorada. No pre-

    tendo incomodar.J dentro da casa, a moa procurou aparentar tranquilidade; afinal,

    imaginava que a situao fosse grave, como a diretora da escola infor-mou. Reparou rapidamente nos pequenos detalhes da casa. Um sof j bastante gasto como nico mvel da sala estreita; em frente a ele, um antigo criado servia de apoio a uma televiso. Ela tentou encontrar algum indcio, alguma pista que a fi-zesse compreender como era a vida das pessoas ali dentro, compartilhando um espao to pequeno. Algo que pudesse denunciar as relaes ali existentes entre aquela me e os seus filhos. Ainda assim, procurava aparentar tranquilidade, enquanto se sentava.

    A outra mulher trouxe uma cadeira de dentro do outro cmodo e se sentou diante dela. - A senhora ento da escola onde o Cssio estuda? professora dele?- Eu j fui professora, agora trabalho na secretaria de educao. Foi a diretora da escola onde ele estuda

    que me pediu para vir aqui.- Mas ento ele no fez nada? Olha, eu sei que ele no fcil... Tem me dado trabalho.A moa a olhava apreensiva, como se tentasse medir cada palavra pronunciada. Pensou em como seria o

    dia-a-dia daquela mulher, a forma como conduzia a sua vida e a dos seus filhos. Que sentimento existia ali que havia feito o filho no denunciar a me. Pelo contrrio, tentara fazer como se parecesse algo normal. Que me faria o que ela fez? E que tipo de cumplicidade era aquela? Em nenhum momento viu estampada a revolta nos olhos do menino.

    Aps se sentar, tentou tornar a conversa mais amena, procurando ganhar a confiana da outra mulher.- Pelo que sei, no h nenhuma reclamao quanto ao Cssio. Parece que ele est indo bem na escola.

    Ainda estava um pouco

    tonta pelas inmeras

    voltas que o carro havia

    dado dentro do bairro,

    buscando aquela rua.

    Bateu porta da casa

    indicada. No demorou

    muito para que algum

    a abrisse.

  • 30

    - Ainda bem... Afinal de contas, eu trabalho muito pra sustentar esses dois meninos. Sou sozinha, no tenho ningum. O pai deles sumiu faz tempo, nem sei mais se est vivo. Melhor assim, nunca serviu pra nada, s me perturbava. Prefiro assim, dou conta das coisas sozinha e ningum me perturba. Mas a ltima coisa que quero que eles fiquem por a dando problema pros outros. Mas o que a senhora veio realmente fazer aqui?

    - Pode me chamar de voc, fique vontade. Ento eles no tm contato com o pai?- Nem nunca tiveram direito. Quando ele foi embora, o menor ainda era beb. Nunca mais deu notcia.

    S sei que no mora mais na cidade. Pra mim, foi at melhor.- Olha, Senhora Rosrio, eu vim mesmo foi por causa daquela queimadura no brao dele.- O que foi que ele andou falando?- Ele contou pros colegas da sala que a senhora jogou gua fervendo no brao dele. verdade?- Ento ele contou que fui eu?- Contou. Isso chegou at a diretora da escola, ela chamou ele l pra conversar... Eu tambm vi o brao

    dele. Bem, ficamos preocupadas e ela me pediu que viesse conversar com a senhora.- Pois bem, a senhora... quer dizer, voc, vai ouvir ento a histria toda, pra no falarem que eu fiz isso

    sem motivo. Esse menino chegou aqui em casa com umas coisas que eu nem bem sabia o que era. Coisas de computador, DVDs, essas coisas... Perguntei quem tinha dado isto pra ele. No soube dizer direito, veio com uma conversa de que era de um colega da escola. Fiquei desconfiada. Ento eu apertei, fiz ele contar tudo, do meu jeito. Era roubo, acredita? Ele tinha roubado aquilo tudo da casa de um conhecido nosso. Isso eu no aceito. Somos pobres, mas temos que viver do jeito que d, sem tirar nada de ningum.

    A outra moa a olhava, ainda mais apreensiva. Ficou tentando imaginar a cena que a mulher sua frente descrevia. Observou que, apesar daquela voz firme, vibrante, ela tinha uma estrutura delicada, os braos finos, as mos pequenas. Pensou em como uma criatura, aparentemente to frgil, poderia portar tamanha eloquncia para defender aquilo em que acreditava. Mas a expresso do olhar era dura, ressentida. A vida lhe dera aquele olhar que entregava, facilmente, um acordo no escrito, porm visvel, entre a viso das coisas e o sentimento de um mundo ao avesso, como se as coisas fossem percebidas a partir do seu traado inicial, como um contorno primitivo, sem os retoques das delicadezas que portamos.

    - Foi a que a senhora queimou o brao dele?- No, foi bem depois. Da primeira vez, fiz ele devolver, zanguei, fiz o que toda me deve fazer. E disse

    que no aceitaria mais isso aqui em casa. Mas no teve jeito. Ele fez de novo. Bati, ameacei, no teve jeito. Ento eu falei, da prxima vez que chegar em casa com coisa roubada, jogo gua quente em voc.

    - E foi o que fez?- Foi isso mesmo, eu falei que ia fazer e fiz. Mas resolveu. Depois disto, no apareceu mais com nada

    aqui em casa. Agora voc no vai vir aqui me dizer que estou errada, vai? Porque quem sabe da educao do filho a me. E sou sozinha. Ningum nunca veio na minha casa saber se os meus filhos precisavam de alguma coisa. Por isso mesmo, no aceito que venham falar agora. Eu educo do meu jeito. E no trabalho tanto pra criar ladro.

    A moa pensou no que diria. J ouvira histrias como aquela, mas a expresso do rosto daquela mulher a surpreendeu. Havia uma verdade naqueles olhos que a impressionou. Ficou por um momento sem resposta. Depois pensou em dizer o que seria mais apropriado.

    - Senhora Rosrio, ele ainda um menino, precisa de ateno. E eu vejo que a senhora se preocupa re-almente com ele. Mas pense bem. No haveria uma forma de lidar com isso? Jogar gua quente no brao dele resolve?

    - Queria que eu fizesse o que? Chamasse a polcia pro meu filho? - No, claro que. E ele s tem onze anos. Mas precisa conversar com ele, procurar entender os motivos

    que ele teve...- Bem se v que voc no mora por aqui. No sabe como as coisas so. Se deixo o meu filho crescer assim,

    daqui a pouco vira ladro de verdade. E se a polcia pegar, vai fazer pior do que eu fiz. Por isso mesmo, se algum tem que fazer alguma coisa, tem que ser eu, do meu jeito. assim que ele entende. Sabe que, no fundo, fao pro bem dele.

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    Ang

    lica

    Adve

    rse

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    CRISTINA GARCIA lOPES mineira de Leopoldina, formada em Nutrio pela Universidade Federal de Viosa/MG. Tem um livro de poemas publicado, O Continente e outros poemas (2004.)

    - Ento, se ele chegar em casa com alguma coisa roubada, a senhora vai fazer isto de novo?- Se precisar, fao de novo. Fao quantas vezes precisar. Melhor ser eu. Assim, no precisa de ningum

    colocar a mo nele. Isto eu no vou deixar.Depois de algum tempo de silncio, ela continuou.- E tem mais. Isto serve de lio pro mais novo. Aprende o que acontece com quem rouba.A moa ficou pensativa, sem saber o que dizer. Tentou argumentar sobre a crueldade daquela ao sobre

    o menino, mas viu que pouco resolvia. A outra parecia inchada pelas suas verdades enquanto falava. Tinha a seu favor uma sensao de dever cumprido, de uma responsabilidade de me que se faz exerccio da dor. Chegou a sentir medo daquele sentimento exacerbado, que na nsia de proteo chegava ao extremo de ferir primeiro. Poderia chamar isto de coragem? Talvez se tratasse de um sentimento mais profundo, invi-svel, para o qual j havamos expulsado toda e qualquer nomeao.

    De repente, aquela sensao de vertigem voltou. A fala daquela mulher, repetida em sua cabea, formava como um redemoinho que a projetava para o fundo, onde aquelas palavras ganhavam eco. Comeava a se mesclar com sua prpria fala, com as palavras que repetia a si mesmo, incessantemente, sobre o seu pr-prio senso de justia, sobre a defesa de tudo aquilo em que sempre acreditara. No encontrava, naquele momento, nenhuma verdade to grandiosa que pudesse se contrapor s certezas daquela me. Por um momento, sentiu-me pequena, incapaz de cumprir o papel ao qual fora destinada. Deveria haver algum que pudesse enfrentar aquilo, que suportaria arrancar pedaos daquela certeza, desmembrando-a, trans-figurando, tornando-a mais aceitvel aos olhos humanos, j desacostumados s cores de uma violncia tardia, feita com os tons do desamparo, da desesperana.

    Viu que era a hora de ir. Levantou-se do sof ainda meio tonta pela vertigem que a dominava. Tentou, novamente, dizer o que parecia mais bvio.

    - Senhora Rosrio, eu agradeo pela ateno e peo desculpas se tomei muito o seu tempo. Mas ns iremos conversar mais, em outros momentos. Foi s uma primeira visita. Como eu te disse, o caso do seu filho tem sido comentado na escola e a diretora pediu acompanhamento do caso. No sei se ser comigo, mas a senhora ser chamada para conversar l na escola.

    - No tem problema, eu vou se chamarem. No nego o que fiz.- Mas sabe que, se houver uma denncia... A senhora pode responder a um processo...- Olha, deixem denunciar, deixem processar. Eu no ligo. Gostaria que essa gente toda, que agora se

    preocupa com ele, estivesse preocupada antes, toda vez que ele precisou...A outra achou melhor no comentar.- Bem, possvel que a gente volte a se ver, Rosrio. Passe bem. Em breve, devem te chamar l na escola.Despediram-se. A moa sentiu aumentar a sensao de vertigem com a intensa claridade do meio da

    tarde. Os olhos haviam se acostumado pouca iluminao existente naquela sala estreita, sem janela, e agora se mostravam reticentes luz. Percebeu que passara mais tempo ali dentro do que o planejado. O carro da prefeitura a esperava. O motorista a lembrou do outro compromisso que ainda havia para aquela tarde. J estava atrasada. Precisava partir, deixar apagar da memria os traos profundos que aquela con-versa deixara. Como se houvesse sido contaminada por aquele sentimento de princpio, de coisa comeada ao avesso, ainda prevendo uma palavra que lhe desse nome. Era preciso retomar o percurso de antes, das coisas sabidas e nomeadas, que traziam conforto razo. Mas levaria, ao menos, aquela sobra de vertigem da tarde que passava veloz.

  • maro/abril 2015 33

    A crtica como exPerinCiA

    Uma breve anlise sobre a crise da reflexo e do pensamento em tempos hipermodernos

    MARCElO MIRANDA

    Nestes ainda primeiros anos do sculo 21, vive-se uma grave crise nas percepes dos meios de comunicao. Sente-se no limtrofe, tal como os conhecamos tradicionalmente, o jornalismo, a criao de arte, a recepo dos produtos culturais, a troca de informaes. Entre hiperestmulos de tecnologias das mais infinitas variantes, estamos numa poca que valoriza o aproveitamento mximo de tudo, marcada pela deglutio acelerada, pela gula onvora da novidade, um tempo sem tempo, um tempo sem demarcao material ou iden-tificvel, um tempo sem sequncia nem recor-rncia, como escreve Jonathan Crary. como se, diante de tantas opes e possibilidades disponveis na internet, nos videogames, no ci-nema blockbuster, na literatura best seller, nos aparelhos MP-3, tudo precisasse ser consumido agora, j, sem demora, para que o prato seguinte seja logo servido antes que outro dia comece e volte-se de novo a ser sugado pelo trabalho e pelas demandas de uma vida mais e mais acele-rada que exige uma perfeio de atuao digna de um ciborgue programado para no falhar.

    Diante de um cenrio em que a incapaci-dade de o cotidiano traduzir-se em experin-cia torna-o insuportvel como em momento algum do passado (na percepo do filsofo Giorgio Agamben), discutir a crtica de arte

    parece se tornar uma questo quase secundria, prximo da irrelevncia e do contrassenso. Ser mesmo? Quando o mundo se movimenta como uma locomotiva descontrolada e o pensamento continuamente empurrado pela ambio de um grande sistema capitalista cujo maior inte-resse o consumo sem questionamento, falar de crtica p