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1 CANTIGAS DE ROMARIA: QUANDO O SAGRADO E O PROFANO SE ENCONTRAM doi: 10.4025/XIIjeam2013.rosa44 ROSA, Célia Santos da INTRODUÇÃO As primeiras manifestações literárias da poesia lírica trovadoresca galego- portuguesa, cantigas de amor e cantigas de amigo, na Península Ibérica, datam, provavelmente, dos fins do século XII. As cantigas de amigo testemunham a existência no Noroeste da Península Ibérica de um lirismo muito antigo. Lirismo não importado, como os gêneros cultos importados da Provença, essa modalidade lírica é considerada autóctone, própria da terra. A jovem solteira é a protagonista destas composições. Ela anda pela ribeira a cantar, a lavar roupa ou a dançar com as amigas confidentes, sob os ramos floridos das avelaneiras. A moça num discurso simples, apaixonado e emotivo, exprime os seus sentimentos, todas as preocupações, ao seu amigo (namorado) que se foi para a guerra, deixando-a muito infeliz. O grande tema das cantigas de amigo é a saudade. Há repercussão da realidade social nestas composições, “porque as expedições militares e marítimas, as retiradas para cas d'el-rei (casa do rei), mais de uma vez provocaram os dramas da ausência saudosa – ou esquecimento infiel” (CIDADE, 1997, p. VIII). As cantigas de amigo constituem a expressão da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, ao transmitirem com verossimilhança o estado da alma das moças apaixonadas. A presença do espaço ocupa um lugar de destaque nas composições. Abdala Junior e Paschoalir (1994) enfatizam que as paisagens naturais como o riacho, a fonte (local dos encontros amorosos ou de lavar os cabelos e as roupas), as praias (quando há referência às ondas do mar) e as árvores (os ramos floridos das avelaneiras, por exemplo) contextualizam o ambiente e atuam sobre o “eu” feminino, despertando o amor, ou a confissão do desejo, “é o ambiente com a atuação animista integrando sentimentos e objetos” (ABDALA JUNIOR; PASCHOALIR, 1994, p. 15). Maleval (1999) explica que a

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CANTIGAS DE ROMARIA: QUANDO O SAGRADO E O PROFANO

SE ENCONTRAM doi: 10.4025/XIIjeam2013.rosa44

ROSA, Célia Santos da

INTRODUÇÃO

As primeiras manifestações literárias da poesia lírica trovadoresca galego-

portuguesa, cantigas de amor e cantigas de amigo, na Península Ibérica, datam,

provavelmente, dos fins do século XII. As cantigas de amigo testemunham a existência no

Noroeste da Península Ibérica de um lirismo muito antigo. Lirismo não importado, como

os gêneros cultos importados da Provença, essa modalidade lírica é considerada autóctone,

própria da terra. A jovem solteira é a protagonista destas composições. Ela anda pela

ribeira a cantar, a lavar roupa ou a dançar com as amigas confidentes, sob os ramos

floridos das avelaneiras. A moça num discurso simples, apaixonado e emotivo, exprime os

seus sentimentos, todas as preocupações, ao seu amigo (namorado) que se foi para a

guerra, deixando-a muito infeliz.

O grande tema das cantigas de amigo é a saudade. Há repercussão da realidade

social nestas composições, “porque as expedições militares e marítimas, as retiradas para

cas d'el-rei (casa do rei), mais de uma vez provocaram os dramas da ausência saudosa – ou

esquecimento infiel” (CIDADE, 1997, p. VIII). As cantigas de amigo constituem a

expressão da vida dos namorados, em tom de confidência espontânea, ao transmitirem com

verossimilhança o estado da alma das moças apaixonadas.

A presença do espaço ocupa um lugar de destaque nas composições. Abdala Junior

e Paschoalir (1994) enfatizam que as paisagens naturais como o riacho, a fonte (local dos

encontros amorosos ou de lavar os cabelos e as roupas), as praias (quando há referência às

ondas do mar) e as árvores (os ramos floridos das avelaneiras, por exemplo)

contextualizam o ambiente e atuam sobre o “eu” feminino, despertando o amor, ou a

confissão do desejo, “é o ambiente com a atuação animista integrando sentimentos e

objetos” (ABDALA JUNIOR; PASCHOALIR, 1994, p. 15). Maleval (1999) explica que a

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ambientação, os lugares como ermidas, fontes e mar, árvores floridas, locais de encontros

dos namorados, levam o leitor ao estabelecimento de subgêneros. Um destes subgêneros é

a cantiga de romaria, foco de nosso estudo.

1. REFERENCIAL TEORICO

1.1 PEREGRINAÇÃO

A busca por lugares em que se possa entrar em contato com o sagrado é uma prática

comum nas culturas de todos os tempos, "a peregrinação é um fenômeno quase universal

na antropologia religiosa" (SOT, 2002, p.353). A peregrinação se caracteriza por ser uma

viagem, uma caminhada, uma prova física do espaço. Esta faz com que o peregrino seja

um estrangeiro por onde passe, não só aos olhos dos outros, mas também em relação ao

que era antes de colocar a caminho, explica Sot (2002). Etimologicamente peregrino

(peregrinus) significa expatriado ou exilado. A peregrinação é uma prova espiritual. A

caminhada possui um fim especifico no final da jornada o peregrino participara de uma

realidade diferente da profana, encontrando o sobrenatural num lugar determinado. Em

suma, a peregrinação é um tempo de festa e celebração.

De acordo com Baschet (2006), há vários motivos que levam a peregrinação,

promessas, esperança de cura. No século XI e XII, a peregrinação poderia também ser

realizada devido à imposição do clero, como forma de penitência. No entanto, qualquer

que seja o motivo que leve a peregrinação, ela se reveste de um contorno penitencial, no

mínimo em função das penas e sofrimentos que o caminho impõe.

Segundo Flori (2002), o primeiro impulso da peregrinação situa-se no século VIII

com o desenvolvimento das penitências tarifadas. A Igreja exigia a realização de uma

penitência como forma de obter remissão plena dos pecados revelados em confissão. Flori

(2002) afirma que estas penitências iriam desde a entrada num mosteiro até o exílio. Em

casos graves, como assassinato, adultério e incesto, cada vez mais a Igreja exigia a viagem

como penitência até um lugar santificado, por exemplo, o túmulo de um santo. Jerusalém é

a peregrinação acima de todas, devido ao túmulo do ressuscitado. As peregrinações são

objetos de votos individuais, com motivações diversas, voluntárias, intelectuais ou

místicas.

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O sucesso da peregrinação, segundo Flori (2002), deve-se a uma mudança de

mentalidade religiosa.

A peregrinação corresponde perfeitamente bem à espiritualidade dos leigos que aspiravam pela salvação, particularmente os guerreiros, os cavaleiros, que a Igreja manteve por muito tempo sob suspeita em razão de sua profissão (FLORI, 2002, p. 11).

Toda a peregrinação é na Idade Média, uma aventura, um risco. Muitas vezes,

quando o destino é longínquo, as pessoas redigem seu testamento antes da partida, e

colocam em ordem os seus negócios, como se viagem fosse sem volta, constata Baschet

(2006). De certa maneira o peregrino morre para o mundo ao iniciar a caminhada rumo aos

locais sagrados, ao retornar é outro homem, declara Sot (2002).

Somente, na época carolíngia é que a peregrinação a um lugar fixado

antecipadamente e regida por critérios estritos, a indispensável autorização clerical, toma o

lugar da andança errante penitencial, sem objetivo. Nos primeiros séculos da Idade Média,

a viagem penitencial era mais importante que o destino da viagem. Sot (2002) ressalta que

somente nos séculos XI e XII que a palavra peregrinus deixou de significar o expatriado

para assumir o sentido de "viajante religioso". Contudo, a peregrinação cristã enfatiza mais

a pessoa que se pretende encontrar do que o lugar em que ela se encontra, Cristo na Terra

Santa, Tiago, o Maior, em Compostela, ou Pedro e Paulo em Roma. É a união entre o ideal

de expatriação e a busca de um lugar santificado que confere à peregrinação cristã o

sentido pelo qual é concebida ainda hoje.

Os corpos dos santos permitem constituir através de toda a Europa, uma rede de

lugares sagrados que atraem peregrinações. Baschet (2006) explica que as cidades, que

atraem as grandes peregrinações, não se encontram geograficamente no centro da

cristandade, mas em suas margens ou mesmo fora dela. Este é o caso de Jerusalém e dos

lugares santos da Palestina, locais de peregrinação por excelência, pela distância e pela

dificuldade do caminho, que fazem a provação mais alta. Além disto, permite ao peregrino

entrar em comunhão direta com o próprio Cristo.

A peregrinação a Santiago de Compostela, para Baschet (2006), é a grande

invenção medieval. Ela repousa sobre um conjunto de fatos lendários, desprovidas de

fundamentos históricos, que se forma entre os séculos VIII e XI. Segundo o pesquisador,

surgem as narrativas da invenção das relíquias identificadas como sendo as de São Tiago, e

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também a lenda de uma pregação do apóstolo na Península Ibérica.

A lenda da pregação do apóstolo Santiago na Espanha foi elaborada entre os

séculos VII e XIII, de acordo com Sot (2002), e apoia-se na descoberta de relíquias

consideradas de Tiago, o Maior, entre 788 e 838. Inspirado por visões um eremita chamado

Pelágio teria descoberto o corpo do apóstolo num túmulo de mármore. Os historiadores

não acreditam mais que se tratasse do corpo do santo, que dificilmente teria ido à Espanha.

Possivelmente, um corpo descoberto em um antigo cemitério cristão em torno do ano 800,

devido à má interpretação de uma inscrição teria sido relacionado com a lenda

preexistente.

Baschet (2006) considera que a invenção e a promoção de Compostela podem ser

postas em relação a sua localização marginal. A Galícia é um fim de mundo, e abre-se para

o desconhecido oceano, além disso, é uma fronteira com o mundo infiel. Há o vínculo da

peregrinação com a Reconquista. A peregrinação a Compostela é favorecida pelos

soberanos hispânicos, pois reforça os reinos e manifesta a unidade da cristandade,

simbolicamente convocada para fazer face aos mulçumanos.

A peregrinação constitui um fator de unidade. O peregrino é um estrangeiro, que

percorre por lugares diversos, com povos que falam uma língua diferente da sua. No

entanto, o peregrino pode constatar que se encontra em terra cristã, contando sempre com

asilo nas Igrejas. A fé é partilhada por todos os povos, apesar de suas línguas serem

diferentes. A travessia dos territórios e a convergência implicada pela peregrinação

desenham pela própria forma dos itinerários, a unidade da cristandade.

Segundo Baschet (2006), na Idade Média, a peregrinação não é apenas um

deslocamento material, ela também é uma metáfora, toda a vida terrestre é pensada como

uma peregrinação. O homem na terra é um peregrino caminhando em meio às provações

mundanas e desejando atingir sua pátria celeste. A vida na terra é vista como passagem,

uma vez que a verdadeira moradia é o além celeste.

1.2 CANTIGAS DE ROMARIA

A designação poesia trovadoresca abrange as composições em verso, líricas e

satíricas, a lírica refere-se às cantigas de amigo e as cantigas de amor, e a satírica designa

as cantigas de escárnio e maldizer. Ferreira (s/d) afirma que as primeiras manifestações

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literárias da poesia lírica trovadoresca galego-portuguesa, na Península Ibérica, datam,

provavelmente, dos fins do século XII.

O nome trovadorismo deriva de trovador, maneira pelo qual o poeta era chamado

em Portugal. Na Provença, grande centro de atividade lírica, o poeta recebia o nome de

troubador. Segundo Moisés (1986), o radical da palavra troubador vem de trouver (achar),

significando que o poeta devia ser capaz de compor, achar sua canção, cantiga ou cantar. A

poesia trovadoresca era cantada com acompanhamento musical e possuíam uma estreita

aliança com a música, o canto e a dança. As composições eram acompanhadas de

instrumentos de sopro, corda e percussão, de acordo Moisés (1986). O trovador tocava o

instrumento, especialmente os de corda, ou deixava a parte instrumental para um

acompanhante, jogral ou menestrel.

Carvalho (1995) explica que a designação trovador servia para todos aqueles que

compunham cantigas, trovas e que as cantavam. No entanto, o termo foi reservado apenas

àqueles poetas de alta estirpe social, que não tinham necessidades econômicas, por isso,

trovavam só pelo amor de poetar. O poeta que trovava por dinheiro recebia o nome de

segrel e compunha textos poéticos quando lhe pagavam por isto. Os segreis eram homens

de origem nobre, mas de nobreza decadente. Percorriam as cortes em busca de meios de

subsistência, apresentando as cantigas na companhia de instrumentistas e cantores. Havia

também os menestreis, homens sem nobreza que geralmente não compunham as cantigas,

porém, tocavam instrumentos e cantavam trovas compostas por outros. Os jograis eram

acompanhados por mulheres que dançavam, cantavam e tocavam pandeiros e castanholas.

Elas recebiam como pagamento o soldo, devido a isto eram conhecidas como soldadeiras,

explica Carvalho (1995). Estas mulheres eram mais conhecidas pelo seu comportamento

licencioso do que pela qualidade das suas apresentações artísticas.

A poesia trovadoresca por ser transmitida oralmente, passou a ser transcrita em

pequenos cadernos, com a finalidade de impedir a perda. Um pouco mais tarde, com o

objetivo de guardar esta poesia, definitivamente, contra qualquer perda, as letras das

cantigas foram transcritas em coletâneas de canções denominadas cancioneiros. Isto era

realizado por ordem do mecenas, especialmente os reis. Desses cancioneiros, três merecem

destaque Cancioneiro da Ajuda, composto nos fins do século XIII, contendo 1310 cantigas,

quase todas de amor; Cancioneiro da Biblioteca Nacional que contém 1647 cantigas de

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todos os tipos, englobando trovadores dos reinados de Afonso III e de D. Dinis; e o

Cancioneiro da Vaticana com 1205 cantigas de todos os gêneros.

A religiosidade das populações, segundo Ferreira (s/d), se traduz nas romarias às

numerosas ermidas, as cantigas de romaria apresentam uma estreita ligação com a

realidade peninsular. Nestas composições, a moça se propõe a comparecer no santuário

para rezar e cumprir promessas ou relata a sua peregrinação, “os motivos dessas romarias

nem sempre são de pura devoção (...) é apenas a ocasião de um encontro com o namorado,

muitas vezes no dia da festa do patrono, outras vezes um disfarce do ato de devoção”

(LEMOS, 1990, p. 48). Os encontros amorosos em festas e locais de culto cristão

pertencem a uma longa tradição popular, de acordo com Maleval (1999). Cidade (1972)

constata que como ainda hoje, frequentemente, sucede, a devoção pelo santo é inferior à

obsessão amorosa.

As entrevistas amorosas, geralmente, ocorrem nas romarias junto ao santuário. As

moças nessas ocasiões podem exibir suas habilidades coreográficas, seus vestidos novos,

para o amigo. Enquanto a mãe se entrega às devoções, as moças aproveitam para encontrar

o namorado, ou avistar-se com ele.

Maleval (1999) considera que os encontros amorosos em festas e locais de culto

cristão, representados nas catingas de romarias, possuem uma longa tradição popular. Os

santuários, peregrinações e feiras eram lugares em que o povo se encontrava. De acordo

com Vasconcelos (1999):

São em países de pequenos agricultores, dispersos em casais, como a Galicia e o norte de Portugal, o centro principal e quase único de grandes reuniões festivais de gente de todas as classes, com predomínio da Arrais miúda. Em plena natureza é que a alma ingênua e rude do povo manifesta as suas tendências e aspirações. (...); é aí que a mocidade de ambos os sexos conversa e namora com maior liberdade, consagrada pela tradição. (VASCONCELOS, 1904-1990 apud MALEVAL, 1999, p. 34).

As romarias se apresentam como resquícios do sincretismo religioso. Na

oportunidade de participar das rezas, fazer ou cumprir promessas em locais privilegiados

incluía-se o desejo de encontrar (ou conhecer) o amigo ou namorado, segundo Maleval

(1999), sem o estigma da culpa ou do pecado. Assim, o motivo religioso e o tema

sentimental são unidos nas cantigas de romaria.

O trovadorismo ibérico apresenta como fator de desenvolvimento a peregrinação a

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Santiago de Compostela e a outras cidades famosas pelos seus santuários, de acordo com

Maleval (1999).

O prestígio jacobeo muito contribuíra para o desenvolvimento do Trovadorismo ibérico [...] o Caminho permitira a interação entre os trovadores occitanos, mestres na arte de trovar sobre "fin' amors", e a tradição poética autóctone, a que certamente se filiam os peculiares "cantos de mulher" desse noroeste da Península Ibérica (MALEVAL, 1999, p. 23).

Carvalho (1995) constata que o norte de Portugal continua ainda nos dias atuais a

ser um importante lugar de romarias tradicionais, onde a alegria do povo se manifesta sob a

proteção dos santos e das santas que propiciam o pretexto do encontro. Os modelos de

canções populares, segundo Carvalho (1995), cantadas nas romarias na vida cotidiana nos

campos, teriam inspirado os poetas posteriores. O tema das romarias proporciona aos

poetas belíssimas descrições líricas com pormenores de grande sentimento estético.

As cantigas de romaria são originárias do Ocidente da Península, refletindo as

tendências naturais e o modo de vida do povo dessa região. As composições documentam a

religiosidade das populações manifestadas nas romarias às numerosas capelas das

pequenas localidades e também às cidades maiores como Santiago de Compostela, Lisboa,

Faro entre outras.

Os lugares de romaria e peregrinação, espaços sagrados, eram buscados com a

intenção de fazer ou de cumprir promessas. Contudo, como demonstram as cantigas de

romaria, essa busca não era movida apenas pela fé religiosa, pois havia também as causas

sentimentais. De acordo com Correia (1978), nas cantigas de romaria, as preces da jovem

ao santo para que este lhe traga o namorado, estão relacionadas com os rituais antigos,

talvez célticos e, quem sabe, romanos ou até mesmo africanos, implorando aos

antepassados ou forças da natureza, proteção e ajuda. Segundo a autora, as cantigas,

realmente, tinham estreita relação com rituais onde a mulher exerce um papel muito

importante. Ainda hoje nas comunidades africanas são reservados a ela certos papéis,

inclusive os relacionados com o fogo.

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3. OBJETIVO

Objetivamos apresentar uma leitura das cantigas líricas trovadorescas,

especificamente em cantigas de romaria, tendo como foco o espaço sagrado. Informações

sobre o contexto histórico, cultural e religioso medieval dos séculos XIII e XIV foram

importantes para a concretização deste estudo.

4. METODOLOGIA

Para que o estudo em questão se concretize, metodologicamente, as noções teóricas

sobre espaço estão contempladas no projeto. O estudo do espaço sagrado nas cantigas de

romaria faz-se necessário pelo fato de que o espaço é uma importante categoria tanto na

narrativa literária como na poesia, uma vez que tem a função de revelar o caráter e o

comportamento das personagens. Assim não é indiferente a localização da ação num

espaço natural ou construído, num espaço rural (aldeia) ou num espaço urbano (a cidade).

A articulação entre micro-espaço, como a rua ou a praça, a alternância entre o espaço

interior e o exterior, tudo se conjuga na narrativa e no texto poético para lhes conferir

significado coerente e uma determinada visão do mundo. Santos e Oliveira (2001)

distinguem o espaço da narrativa e o espaço no texto poético, enquanto aquele tende a estar

associado a referências internas ao plano ficcional, o espaço no texto poético pode eleger a

própria palavra como um espaço “o signo verbal não é apenas decodificado

intelectualmente, mas também sentido em sua concretude” (p.74).

A base que nos orientará, no que diz respeito ao efeito do texto sobre o leitor, será a

Estética da Recepção. A história literária articula tanto a recepção atual de um texto quanto

sua recepção ao longo da história, e ainda a relação da literatura com o processo de

construção da experiência de vida do leitor. O texto só adquire existência no momento da

leitura e os “resultados” ou “efeitos” dessa leitura são fundamentais para que se pense seu

sentido.

Os textos são passíveis de diferentes recepções porque lidos por públicos diferentes

no tempo e no espaço, o status desses textos também se modifica. O valor estético de um

texto é medido pela recepção inicial do público, que o compara com outras obras já lidas.

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5. DESENVOLVIMENTO

As cantigas de romaria fazem referência às cidades e locais de intensa romaria e

peregrinação na Idade Média. Esses espaços, considerados sagrados, eram procurados com

a intenção de fazer e cumprir promessas. Contudo, determinados textos demostram que o

motivo da busca destes lugares não era apenas religioso, pois havia também o motivo

sentimental. Na cantiga de Airas Corpancho a moça deseja ir em romaria a Santiago de

Compostela:

De fazer romaria pug'en meu coraçon a Sant' Iag' un dia, por fazer oraçon e por ueer meu amigo logu'i. E se fezer [bon] tempo e mha madre non fôr, querrey andar mui leda, por parecer melhor e por ueer meu amigo logu'i. Quer'eu ora mui cedo prouar se poderey hir queymar mhas candeas con gran coita que ey, e por ueer meu amigo logu'i. (Nunes, 1970, p. 192)

Nesta composição a jovem revela o motivo que a leva procurar Santiago de

Compostela, fazer oração e encontrar-se com o namorado que estaria neste local. A

romaria é a ocasião esperada para ver e se exibir ao amado. A jovem vai bela para o

encontro, como demonstra o seguinte trecho da cantiga de D. Afonso Lopes de Baian:

Hyr quer' oi' eu, fremosa, de coraçon, por fazer romaria e oraçon, a sancta Maria das Leyras, poys meu amigo hy uen. (NUNES, 1970, p.238).

A donzela dirige-se a Santa Maria das Leiras. A ocasião exige que a jovem

apresente-se bela, “fremosa”, não para cumprir as exigências da romaria e fazer oração,

mas para ver o namorado que está no local. O encontro com o amado proporciona grande

felicidade a jovem. Visitar o espaço sagrado era uma das raras oportunidades da jovem sair

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de casa para realizar conquistas ou encontros amorosos, como monstra este trecho da

composição de Joan de Requeixo:

Fui eu, madr', em romaria a Faro com meu amigo e uenho d'el namorada, por quanto falou comigo, ca mi iurou morria por mi: tal bem mi queria! (NUNES, 1970, p.219).

A menina sente-se muito feliz devido ao fato de ter falado com o amado. A procura

pelo espaço sagrado de Faro – cidade portuguesa, capital do Distrito de Faro – foi o que

proporcionou o encontro com o namorado. Neste local os namorados puderam confessar

seus sentimentos, o amigo finalmente revela o amor que sente pela jovem, um sentimento

tão profundo que o faria morrer pela moça. É nos locais de romaria e peregrinação que os

jovens enamorados se encontram, como podemos averiguar na cantiga de Martin de

Guinzo:

Non mi digades, madre, mal(s) e irei vee-lo sem verdade que namorei na ermida do soveral u m'el fez muitas vezes coitad'estar, na ermida do soveral (CORREIA, 1978, p.148)

A ermida de Soveral – localizado na aldeia de Sobral, em Santa Marina de Guinzo

– é o local de encontro dos enamorados nesta cantiga de romaria. A jovem confessa a mãe

que namorou na ermida de Soveral. Porém, ao contrário da cantiga de Joan de Requeixo,

em que a moça sente alegria por ter ido a Faro e falado com o amigo, nessa composição o

local de encontro não trás apenas felicidade, mas também sofrimento, “coitad'estar”. No

entanto, mesmo sofrendo a moça deseja ir à ermida de Soveral para encontrar-se com a

amado. Ela pede que mãe não recrimine sua atitude em encontra-se com o amado, mesmo

após o sofrimento que ele lhe causou. Em certas cantigas o sofrimento da jovem é causado

pela recusa da mãe em não permitir a menina ir em romaria.

Non poss-er, madre, ir a Santa Cecilia ca me guardades a noit'e o dia do meu amigo.

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(…) Ca me guardades a noit'e o dia; morrer-vos ei com aquesta perfia por meu amigo. (CORREIA, 1978, p.150).

Nesta outra cantiga de Martin de Guinzo, a moça em tom lamentoso queixa-se da

proibição da mãe que não a deixa ir a Santa Cecília. A moça deseja ir até o local com o

intuito de encontrar o namorado. A menina se encontra sob vigilância da mãe, que não a

permite ver o namorado. O sofrimento da jovem é tal, devido a não se encontrar com seu

amado, que a levará a um fim trágico, a morte por amor, “morrer-vos ei com aquesta perfia

/ por meu amigo” (CORREIA, 1978, p.150). A mãe nesta cantiga é opositora da jovem,

pois não permite a ida a Santa Cecília, consequentemente o encontro dos namorados.

Maleval (1999) afirma que a mãe na maioria das cantigas de romaria funcionará como

opositora da moça, proibindo-lhe a ida. Certas cantigas registram o momento em que a

menina pede permissão à mãe para ir encontrar-se com o amigo na romaria, como na

cantiga de Joam Servando:

A San Seruand', u ora uan todas orar; madre uelida, por Deus uin uo-lo roguar que me leixedes alá hir, a San seruand', e, se o meu amigo ui, leda serey, por non mentir. (NUNES, 1970, p.215).

A menina pede permissão da mãe para ir até San Servando – antiga basílica

construída na cidade de Toledo, em uma comunidade autônoma de Castilha de La Mancha,

na Espanha. O tratamento que a moça utiliza-se com mãe é um forte indício do quanto ela

pretende ser persuasiva, par convencer a mãe a lhe deixar ir à romaria “madre uelida, por

Deus uin uo-lo roguar” (NUNES, 1970, p.215). O motivo que leva a jovem a ir até San

Servando, além do religioso, é o sentimental. O amigo da jovem estará neste local, ela diz

que ficará feliz se o encontrar, “a San Seruand', e, se o meu amigo iur, / leda serey, por non

mentir.” (NUNES, 1970, p.215). A moça anseia tanto pela permissão da mãe que roga por

Deus “por Deus uin uo-lo roguar” (NUNES, 1970, p.215). De acordo com Lemos (1990), a

religiosidade da rapariga, em certas cantigas, apresenta-se ingênua e simplória, quando se

aborrece com o santo porque ele não ouve os seus pedidos, como ocorre na cantiga de

Nuno Fernandez Torneol:

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Non uou eu a San Clemenço orar e faço gram razon, ca el non mi tolh' a coyta que trago' no meu coraçon, nen mh-aduz o meu amigo, pero lho rogu ' lho digo. Non uou a San Clemenço nen el non se nenbra de mi, nen mh-aduz o meu amigo, que sempr' amey, des que o ui, nen mh-aduz o meu amigo, pero lho rogu ' lho digo. (NUNES, 1970, p.226).

Há um grande sofrimento, “coyta”, provocado pela ausência do namorado, a jovem

roga ao santo que lhe traga o amado, porém como ele não a atende, ela se queixa

afirmando que o santo não se lembra dela, “non el non se nenbra de mi” (NUNES, 1970,

p.226). A jovem se revolta contra o santo e nega-se a participar da romaria.

Por meio das romarias as moças adquirem maior liberdade, “é quase sempre na

romaria, junto do santuário, que a entrevista amorosa se realiza, lá que as habilidades

coreográficas, os vestidos novos se exibem, para encanto do amigo” (CIDADE, 1972, p.

VII).

Poys nossas madres uam a Sam Simon de Val de Prados candeas queymar, nós, as meninhas, punhemos d ' andar con nossas madres, e elas enton queymen candeas por nós e por ssy, e nós, meninhas, baylaremos hy (NUNES, 1970, p.215).

A cantiga de Pero Viviaez demonstra que as moças ao procurar o espaço sagrado,

no caso San Simon de Val de Prados, possuem o intuito de se divertirem. É neste local que

elas poderão se exibirem para os amigos, longe do olhar protetor da mãe. Enquanto as

mães vão em romaria com a intenção de acender velas, as filhas desejam andarem

livremente. Nesta cantiga há união entre o sentimento religioso, expresso pelas mãe, e o

sentimento amoroso, representado pelas filhas. Portanto, é nas romarias que as jovens

adquirem uma maior liberdade. Lembrando que no período medieval, as moças raramente

tinham liberdade para sair de casa e realizar suas conquistas e encontros amorosos.

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CONCLUSÕES

As peregrinações são extrema importância na época medieval, importância que se

estende até os dias atuais. A peregrinação é um fenômeno que atinge grande parte das

culturas, seja ocidental ou oriental. Nas cantigas de romaria as peregrinações surgem não

apenas com fins religiosos, mas também com finalidades profanas, isto, o encontro

amoroso. O sagrado e o profano se encontram nas cantigas de romaria, a linha que separa

estes dois polos é tênue nas cantigas de romaria. A jovem, que participa das romarias e

peregrinações, não procura o espaço sagrado apenas com finalidades religiosas. Ela busca

o espaço sagrado com intenções consideradas profanas. Nestes locais, os jovens podem

encontrar-se sem o estigma da culpa e do pecado. É importante, ressaltar que as romarias

são uma das raras ocasiões em que a jovem adquire certa liberdade, longe dos olhares

maternos, ela pode se exibir aos olhares do namorado, sem sofrer reprimendas da mãe.

Portanto, nas cantigas romaria ocorre o encontro entre o sagrado e o profano.

REFERÊNCIAS:

ABDALA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALIR, Maria Aparecida. História social da literatura portuguesa. São Paulo: Ática, 1994.

BASCHET, Jérônimo. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

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CIDADE, Hernani. Poesia medieval - cantigas de amigo. Lisboa: Serra Nova, 1972.

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