canções da meia noite - teste02

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Canções

da

Meia Noite

1ª Edição

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Este é um produto RPGVale

Copyright©RPGVale, 2012São Paulo, 2012, para a presente edição

1“ Edição

Artur me passe os nomese informações técnicas

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IO Nascer de um novo mundo

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Capítulo 1 - O despertar do Bellfarn

Estavam todos sentados ao redor da fogueira. Praticamente toda a aldeia estava presente. No centro, ao lado da fogueira, estava o chefe da tribo, conhecido como Dellion, o Senhor Lobo de Creeddon. Ele segurava um pacote pequeno na mão esquerda, e o cajado com um crânio na mão direita. O espaço havia sido dividido em três círculos: no primeiro ficavam os jovens que seriam iniciados na vida adulta. No segundo ficavam os anciões e os guardiões de tradição da tribo. No terceiro ficava o resto da tribo, incluindo alguns convidados de outras tribos vizinhas. A cerimônia de iniciação já iria começar. O chefe da tribo dirigiu-se

para mais perto da fogueira e sentou-se sobre um pequeno toco do lado. — Antes de começar, gostaria de agradecer pela presença de nosso

vizinho e irmão da tribo de Reffin. — um homem velho, atarracado e cego que estava no último círculo levantou-se com dificuldade para que todos o vissem. — Bom, vamos começar então. “Há muito, muito tempo atrás, tempos que não podemos expressar com números e nem palavras, não existia nada. Apenas os deuses, que são o Sol e a Lua, caminhavam neste vasto universo em que vivemos, só que mais longe da terra do que podemos figurar em nossas mentes. Durante eras e mais eras a Terra havia ficado perdida no universo. Até este momento nenhum dos deuses havia visto a Terra. “Porém, um dia o Sol voltou seus olhos para este lado do universo e, então, avistou-a. Não se pode descrever a paixão que invadiu o coração do deus Sol. Logo, ele voltou todas suas atenções para o nosso mundo, deixando de lado a Lua. A Lua, por sua vez, enciumou-se da terra, que recebia mais atenção do Sol do que devia. Pelo menos assim ela pensava. “Sabem por quê? Por que ela amava o Sol, ela realmente o amava. Só que o Sol não. Ele sentia repulsa por ela. Ele, um ser perfeito, Senhor do Fogo e da Sabedoria, e ela, Senhora do Frio, da Inveja, da Luxúria e da Discórdia. Eram seres opostos, que não podiam viver juntos e em harmonia ao mesmo tempo. “Durante eras e mais eras longuíssimas o Sol observou a Terra, pensando em muitas coisas relacionadas a ela. Esse tempo só serviu para que o ódio da Lua pela Terra aumentasse. Um dia, porém, o Sol se ergueu de seu trono resplandecente no alto dos céus e, em um salto repentino, atirou-se em direção a Terra. Seu tamanho diminuía à medida que se aproximava da Terra. “Quando todo seu corpo, que ainda irradiava um grande calor, tocou o solo da terra, uma sensação imensa de solidão tomou seu coração. A Lua, que assistiu tudo de seu trono, encheu-se de fúria principalmente por que o Sol, mesmo depois de eras admirando a terra, não havia diminuído seu desprezo pela deusa. “Vendo então o Sol que o planeta que tanto amava estava vazio, resolveu que deveria haver seres, que

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fossem semelhantes entre si, para povoar e viver na terra. Então, da luz que seu corpo emanava criou os homens, que deveriam servir-lhe e adorar-lhe para todo o sempre. “Porém, o Sol, após um pequeno espaço de tempo, que ele chamou de dia, viu que os homens não estavam satisfeitos, pareciam inquietos. Descobriu então que esta inquietação se devia ao que ele chamou de fome. “Parecia ao Sol que os homens não viveriam muito tempo se não pudessem se alimentar. Então ele resolveu colocar os homens para dormir, enquanto ele tentava resolver esse pequeno problema. Primeiro criou a água, um líquido que não tinha sabor e nem cor, muito menos cheiro. Acordou ele os homens, e deu-lhes de beber desta água. No mesmo momento eles sorriram e se alegraram. Um deles olhou para o Sol, que agora andava na forma humana, e curvou-se perante ele”. O chefe da tribo fez uma pausa, pegou um saquinho de couro velho. Colocou a mão dentro e retirou um punhado de sal. “Essa foi a primeira reverencia que o Sol recebeu de sua criação”. Jogou o sal na fogueira. As chamas e labaredas dela subiram rapidamente, alcançando quase dois metros de altura. Os jovens, que sentavam no primeiro círculo olharam admirados para as chamas, que haviam diminuído tão rápido quanto tinham se erguido. Parecia a todos que o velho havia crescido de tamanho. — É assim que começou nossa história, meus queridos, — deu uns passos para trás e sentou em um banco baixinho. — e é assim que irá se findar!

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IIEx malum, scientia

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Capitulo 2 - Ex malum, scientia

Essa história começa há muito, muito tempo, mais do que se possa lembrar. Antes do vapor e das lamparinas. Antes da música, da roda e até mesmo do fogo e das rochas pintadas. A história começa quando não havia história alguma sobre a Terra. Quando o equilíbrio da natureza era perfeito e Deus contemplava sua mais nova criação, sob os olhares arregalados e espantados de seus Anjos, que viam aqueles corpos, tão parecidos com os seus, tomarem vida e se desenrolarem como fora de um casulo, pelos jardins do Éden. A ignorância dos novos seres, chamados de humanos, não era apenas uma bênção, mas uma obrigação. Corriam pelos campos verdejantes até chegarem à grande árvore, da qual colhiam os frutos que usavam para sobreviver. A Árvore da Vida. Tais ações cotidianas eram monitoradas diariamente, afinal havia muito a ser levado em consideração. A criação do homem era o maior dos testes da criação da vida e, assim sendo, qualquer erro poderia custar centenas de milhares de anos. A perfeição de uma evolução inteira, o auge do equilíbrio entre os seres vivos de todo um planeta. Invisível ao olhar dos novos mortais, um dos grandes generais do Paraíso foi incumbido daquela não tão lisonjeira missão. Lucifel. O belo anjo, de longos cabelos louros e reluzentes, com sua armadura que brilhava feito ouro passava boa parte dos dias apenas observando os humanos. Apesar do Pai ter lhes dado a mesma condição de qualquer outro dos animais, eles pareciam ser diferentes. Não tinha nada a ver com aquela baboseira de alma. Era algo que despertava em seus corações sempre que, ao colher os frutos da grande Árvore, se aproximavam do Vale das Sombras, onde se encontrava uma macieira. A Árvore da Ciência, cujos frutos eram completamente proibidos. Em um dos dias, como tantos outros, Lucifel não pôde conter sua própria curiosidade. Queria saber o que é que tornava os seres humanos tão diferentes dos outros, o que é que significavam aqueles sentimentos inquietos que afloravam em seus peitos. Abrindo um caminho entre as réstias e um facho de luz que levava até a intocada árvore, o general viu com um sorriso quando os pés descalços seguiram as trilhas, deslumbrados pelas novas cores que se abriam. Com as mãos quase trêmulas num fervor de excitação, uma maçã foi arrancada. A primeira vez que apenas uma fruta mudou o curso da humanidade inteira. Com a queda dos homens, houve também uma queda dos Anjos. Punido por sua irresponsabilidade e mesquinhez, Lucifel foi banido do Paraíso com a horda de seus seguidores. Michael, seu irmão, foi quem trancafiou o ex-general, o condenando à eternidade em um mundo sem luz. Deixando para trás tudo o que conhecia -até mesmo seu nome, que se tornou Lúcifer - o Anjo Caído absorveu

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completamente as Trevas ao redor de si, transformando aquele inferno em seu reino. Seus cabelos se tornaram negros como as sombras e seus olhos brilhavam com as cores do fogo. A Guerra Eterna havia conhecido seu início.

Como um reflexo da batalha, a Terra também começou a tremer. A natureza foi atingida pelo furacão arrebatador do desequilíbrio. A inocência não mais existia. Os homens migraram, expulsos do Éden, espalhando-se pelo mundo inteiro, buscando por comida e pela própria sobrevivência. Os primeiros grupos se tornaram sociedades. As sociedades cresceram e se tornaram vilarejos. O conhecimento adquirido pela primeira maçã se espalhou e se aperfeiçoou, permitindo a criação das primeiras ferramentas, da canalização de água, da utilização do fogo e, assim, os vilarejos se tornaram cidades. Os principais pais de família se tornaram líderes, encarregados de distribuir as demais funções. Com esse pequeno vislumbre de poder, nasceu também o primeiro vislumbre da corrupção. Àquela altura, os humanos, em sua tão pobre consciência sobre o mundo, sequer desconfiavam que já eram o maior instrumento da luta entre Anjos e Demônios. Apesar de terem sido expulsos por sua própria imprudência, clamando assim o chamado pacto do Livre-arbítrio, Deus jamais abandonou nenhum de seus filhos. Mesmo não tendo mais controle algum sobre as decisões tomadas pelos homens, era a função dos generais e soldados do Paraíso proteger os humanos, conduzindo-os para os caminhos de luz. Obviamente aquela tarefa não era assim tão simples, especialmente ao adicionar a essa pequena equação um fator igualmente influente e totalmente indesejado: Lúcifer, que havia descoberto um novo tipo de prazer nos sentimentos humanos. Gostava de assistir às suas dúvidas e desesperos como se assistisse a um espetáculo, incitando ainda mais a discórdia para contemplar a reação dos mortais, que eram tão facilmente influenciáveis. Quebrando o pacto celeste, Lúcifer garantiu passagens à Terra para todo e qualquer Demônio que quisesse se infiltrar em meio aos humanos e transformar o mundo também em seu próprio território.

Mesmo estando em meio à encruzilhada, as grandes cidades se expandiram ainda mais. Grandes e fortes nações surgiram, desbravando oceanos e realizando feitos cada vez mais incríveis, ao mesmo tempo em que a crueldade e o egoísmo também atingiram seu ápice. Em uma das mais árduas e desastrosas batalhas pela liderança do mundo mortal, os Anjos perderam para o Inferno, cuja tática havia sido absolutamente infalível. A Idade das Trevas, como ficou conhecida nos arais da história da civilização, foi cenário de guerras sangrentas, da ignorância e da bestialidade dos homens. Tendo perdido o controle de toda a raça humana, o exército celeste apenas

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podia agir de forma a conter as conseqüências ainda mais catastróficas que aquele rumo poderia acarretar. Lançaram, então, a Peste. Milhares de homens pereceram, para que novos homens pudessem nascer. As idéias antigas dariam espaço a idéias novas, que os Anjos tentariam implantar. E a ciência, antes vista pelos olhos de Deus como a verdadeira causadora do desequilíbrio mundial, se tornou sua salvação. Combatendo a ignorância, a sabedoria poderia desabrochar. Assim, a Árvore da Ciência deu mais um fruto. Uma nova maçã, que caiu às vistas de um grande homem, conhecido como Isaac Newton. A segunda vez que uma fruta mudou o curso da humanidade inteira. A partir daí, uma nova era começou para o mundo terrestre. Focados no conhecimento, nos estudos e nas mais novas descobertas físicas e matemáticas, a ciência evoluiu, trazendo consigo o que ficou conhecido como tecnologia. A partir de elementos naturais, como carvão e vapor, grandes máquinas foram inventadas. Máquinas capazes de diminuir o esforço do trabalho humano e melhorar exponencialmente a qualidade de vida dos homens. Máquinas capazes de condensar e armazenar a energia existente no planeta, fazendo um uso mais moderado e sem desperdícios da natureza, criando um benefício mútuo e o início de um equilíbrio que parecia retornar.

Foi quase que de repente que o mundo explodiu com o brilho do bronze e do latão. As antigas caravelas, cujos cascos de madeira lotavam todos os portos europeus, foram trocadas pelos grandes navios a vapor. Imponentes e colossais, suas estruturas em ligas metálicas e seu sistema de motor, abastecido a carvão para gerar calor e energia, não mais necessitavam da velocidade do vento. As grandes hélices douradas atingiam velocidades surpreendentes, capazes de darem a volta ao mundo, explorando novos mares nunca dantes navegados. Ainda nos portos, um novo meio de locomoção marítimo havia sido criado. Os barcos submarinos, compostos de chapas de metal e um formato muito parecido ao do corpo dos grandes cetáceos, eram os mais utilizados pelos exploradores, que buscavam novas relíquias e novos materiais, perdidos no fundo do mar. Algumas vezes eram utilizados em viagens à longa distância, já que sua velocidade era reconhecida e acabava por ser menos abalado em tempestades e ciclones. Nem mesmo o céu era livre da nova e estupenda expansão, quando os seres humanos descobriram que não havia limites para sua própria existência. Planadores e monomotores, que nem mesmo Da Vinci teria imaginado, cruzavam as nuvens, de ponta à outra, como se os homens fossem pássaros, com asas de níquel e madeira envernizada. Balões de ar também decoravam o céu enquanto as novas carruagens deslizavam sobre as ruas de paralelepípedos, trazendo,

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não mais cavalos à sua fronte, mas apenas o chofer que a dirigia e controlava seu motor, também movido a vapor natural. Nos quarteirões, dividindo espaço com as modestas casas de tijolos vermelhos, grandes fábricas e indústrias se erguiam. As chaminés revelavam o incessante trabalho da sociedade que crescia a cada dia. Postes com fios de cobre levavam uma das mais novas descobertas para o desfrute da civilização: A eletricidade, que trazia a luz noite e dia, para esclarecer ainda mais a mentalidade do homem e, finalmente, gerar o progresso das nações.

Mas é claro que tudo seria simples demais, se não fosse complicado. Uma maçã inteira poderia ser um punhal de dois gumes. Ou seria um fruto abençoado a ser dividido entre todos que dele precisavam, ou seria um fruto que despertaria a ganância e o desejo de manter a abundância toda apenas para si. Era para incitar o impasse e a dúvida, que Lúcifer tanto se esforçava. A nova Era do Vapor era a menina dos olhos de qualquer lado do exército, que lutava tanto para manter sua soberania. Com seus soldados infiltrados entre os homens e mulheres, Lúcifer tinha uma grande vantagem. Os Anjos não tinham a permissão de fazer o mesmo e, além disso, os homens de Deus na Terra, incapazes de compreender que era a própria vontade do Pai a criação de tal inteligência, iam cada vez mais contra a ciência, fazendo com que a religião fosse negligenciada por uma sociedade sedenta de crescimento. Assim sendo, as mensagens celestiais eram cada vez mais difíceis de serem passadas sem um canal limpo de comunicação, e o que sobrava? Sim. O poder da tecnologia sendo transformado em corrupção pelas classes mais altas da sociedade.

- Não consigo acreditar nisso! – Michael exclama, com sua voz grave e retumbante ecoando entre as pilastras brancas do salão do palácio celestial e amassando o pedaço de papel, que ele acabara de ler, entre seus dedos largos e robustos. – Agora começam a criar máquinas escravas para tirar o emprego dos próprios irmãos que precisam do dinheiro?

- Qual a novidade nisso? Eles são burros feitos pedras. Já era de se esperar que cedo ou tarde algo assim aconteceria.- A figura plácida, de cabelos louros e levemente encaracolados, mas de corpo alto e forte como o de um soldado, nem mesmo se moveu.

- Mas já basta disso, Gabriel! Quantas Eras mais iremos perder? E tudo por quê? Porque o Pai não quer quebrar o pacto e não nos deixa descer para intervir! Se eu tivesse apenas um dia, eu pegaria Lúcifer pelos cabelos e esfolaria aquele sorriso com cada uma daquelas porcarias de tijolos!

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- Vê? É por isso que Ele não nos permite descer. – Gabriel diz inalterado. Uma perfeita antítese do outro general-arcanjo, não apenas na postura, mas também na aparência, uma vez que Michael era ainda mais alto e corpulento, com cabelos castanhos e barba firme.

- Você precisa pedir permissão para descer e conversar com Lúcifer! Basta dessa guerra fria! Se meu irmão negar, enviaremos a Ira do Paraíso!

Não é preciso deixar ainda mais claro a relutância de Gabriel em descer à Terra. Nunca teve (e não iria agora começar a ter) simpatia pelos humanos. Apesar de cumprir sua missão com perfeição, não nutria por aqueles seres o menor sentimento de compaixão. Não compreendia o motivo de sua existência ou porque haviam sido criados e considerados uma das prioridades do Paraíso. Mesmo assim, naquela noite, Gabriel atravessou a camada fina e alva como um véu de seda, que separava o mundo celestial do mundo coberto de roldanas e engrenagens. Quase podia se passar por um homem normal. Alinhando os fios de cabelo como um cavalheiro, vestindo uma farda pesada e encorpada, com toda a pompa que um militar humano teria, o Arcanjo percorreu as ruas de pedra irregular, permitindo que seus olhos mirassem as construções ao redor de si. Era como um grande maquinário desligado. As carcaças de carruagens vazias, por conta da hora, tangenciavam as calçadas. Nos telhados, instrumentos gigantescos giravam, com pêndulos e pequenos guindastes, alguns ainda trabalhando na captação de energia, outros servindo para prevenir contra o mau tempo, caso ele chegasse. As fábricas ainda pareciam trabalhar, as chaminés quase tão temíveis quanto os antigos dragões. Gabriel atravessou os caminhos, sem interesse, chegando a uma catedral quase escondida entre um imenso hangar de zepelins. Abrindo a porta, como se fosse sua própria casa, seus passos quebraram o silêncio. Tomou o rumo da esquerda, subindo um lance de escadas em espiral que levava a uma das torres e, dali, chegou ao telhado. Não se surpreendeu nem um pouco ao ver o Anjo Caído ali. O fitando de costas, podia ver seus cabelos, ainda mais longos e negros que da última vez que o vira, com a pele tão pálida quanto a lua que os admirava de cima.

- Há quanto tempo, Gabriel. Senti falta de te ver. Como estão as coisas no céu? – Lúcifer ironizou, ainda sem virar para encarar o Arcanjo, sorrindo largamente como se uma fenda se abrisse em seu rosto. – A que devo o prazer de sua ilustre visita?

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- Não tenho a intenção de perder mais meu tempo nesse lugar. – Gabriel respondeu seca e diretamente, caminhando para o lado de Lúcifer, levando o olhar ao mesmo ponto que ele observava. – Sabe muito bem porque vim.

- Eu sei? Quando me disseram que o grande Gabriel queria me ver, senti uma esperança de que finalmente chegado a hora de sua libertação. Não finja que não sabe do que estou falando. Você sabe, melhor do que ninguém, que apenas uma linha muito tênue separa nossos caminhos. – A voz de Lúcifer era melodiosa e perigosa como o sibilar de uma serpente. Seu sorriso chegava a ser sensual quando ele virou o rosto para, finalmente, observar o general. – Você os despreza. Despreza o fato de terem sido criados. Seres limitados e incompetentes. E você detesta ainda mais o fato de ter que passar milênios apenas olhando por eles. Lutando por um grupo de almas que não vale uma lira celeste. Mas Deus acha os feitos deles muito importantes, não é? Olhe ao seu redor. Isso foi o que o homem construiu com uma pequena gota, um pequeno fruto de toda a árvore do conhecimento divino. Creio que, depois de todas essas Eras, essa facilmente pode ser considerada a mais ilustre delas. Tudo parece funcionar perfeitamente. A evolução e o aprendizado trouxeram a descoberta da energia. Os números desvendaram o funcionamento da natureza e não há limites para o que eles podem criar. Mas é justamente aí que mora o problema. Tudo funciona perfeitamente, exceto seus corações. – Ele diz, com a risada ainda mais suave, mostrando uma pequena parte de seus dentes caninos levemente afiados. – Toda a dúvida, a curiosidade e a discórdia não vem de mim ou de meus soldados. É intrínseco. Eles nascem assim e sua natureza os impulsiona sempre a buscar nada senão o próprio conforto. Essa é a verdadeira base de toda a corrupção. Eu apenas crio algumas situações. Afinal, o livre-arbítrio vale para os dois lados. Acho que eles esqueceram de mencionar isso na cartilha da Guerra Santa.

- Já terminou o discurso? – A voz do Arcanjo Gabriel era impassível e fria como o azul de seu olhar. Seu rosto virou-se apenas o necessário para encarar a figura daquele que um dia lutara ao seu lado – Esse sempre foi seu problema, Lúcifer. Fala demais quando ninguém lhe perguntou nada. Guarde suas palavras e idéias para quem se importa com o que você pensa ou com o que os humanos acreditam. Não foi para isso que desci. Vim para te informar que Michael conseguiu a autorização do Pai para enviar o exército celeste e expulsar seus demônios da Terra. Você sabe no que isso implica. A destruição de tudo, a menos que você retire seus homens infiltrados e contenha suas tentativas de dominação direta aos homens mortais.

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- Ora, Gabe, não me faça rir. – O riso do comandante do Inferno foi quente e irônico. Os dentes, tão brancos e brilhantes como o marfim, morderam com leveza o próprio lábio inferior enquanto seus olhos se inflamaram ainda mais na direção de Gabriel – Por que eu faria isso? Vocês ainda não aprenderam nada sobre mim? Quando irão entender que eu pouco me importo com os seres humanos? Que eu pouco me importo com essa Guerra? A única coisa que eu quero é quebrar a ilusão do Paraíso. Eu sinto prazer em mostrar aos céus a grande antítese que o próprio Pai criou, ao criar os seres humanos. Vocês querem descer e expulsar os meus demônios? Ótimo. Uma vez que a Terra for destruída, ela entrará em processo de renascimento e lá estaremos nós novamente. É um ciclo sem fim, Gabriel. Espero que você se divirta no caminho, pois eu com certeza me divertirei...

Com os lábios distorcidos e alongados, formando um sorriso certamente maquiavélico, Lúcifer viu a figura do Anjo saltar do telhado da abadia, para o solo de paralelepípedos. Seu casaco abriu-se como um par de asas e seus sapatos mal fizeram barulho ao tocar o chão. Caminhando sem olhar para trás, Gabriel desapareceu em meio à névoa da noite, como se tragado pelas sombras. Era tempo de se prepararem. O rebuliço no templo celeste começou assim que repercutiu, por todos os cantos, a notícia de que o Anjo Caído não retiraria seu exército, apesar daquilo não ser bem uma surpresa. Se fosse fácil assim, aquela com certeza teria sido a solução desde o início. No entanto, a constatação de que os soldados do Paraíso iriam, de fato, descer à Terra e expulsar, com as próprias mãos, as entidades das Trevas, era um evento homérico. Aquela estava longe de ser a épica batalha do Apocalipse, mas era certamente um grande marco na história divina e na luta dos poderes opostos que regiam todo o mundo.À chegada do sétimo dia, depois de declarada oficial a decisão de ataque, o Céu fervia em espírito de luta. Sobre o chão de nuvens, o exército marchava e entoava seu hino. Suas vozes eram graves e o tom angelical tinha gosto de batalha. O som do mexer de suas armaduras e do preparar de suas armas e escudos retumbava como trovões. A fúria dos anjos, que agora trajavam suas vestes de ouro e bronze. Seus elmos brilhavam como o sol e suas armaduras traziam um invólucro de metal sobre as asas, para protegê-las das injúrias. Roldanas feitas de metais nobres auxiliavam em seu abrir e fechar, e a estrutura aerodinâmica permitia que nada de seu vôo fosse afetado. As espadas haviam sido abençoadas pela energia do próprio Criador e, assim, estava quase tudo pronto para a partida. Faltava apenas um detalhe final.

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- Chamem São Pedro. Diga-lhe que estamos prontos.

Logo, o pequeno grupo de subordinados retornou ao lado de um anjo colossal. Era mais alto que os próprios generais. Seu peito nu e de músculos definidos não trazia nada senão um peitoral metálico e um grande punhado de chaves. Vestindo sandálias de ouro e um enorme cinturão, São Pedro caminhou em frente ao exército, abrindo os grandes portões dourados que selavam o Paraíso. Ainda sem dar a permissão para a descida, ele caminhou até um maquinário, que constituía em uma gigantesca roda, feita de madeira e ferro. Quando girada, a força acionava engrenagens e pistões que ativavam um enorme sistema de água. A geração de chuvas e tempestades e, naquele caso, um dilúvio de água benta.

As nuvens, antes tão serenas, se tornaram negras e devoraram o céu como ondas de uma torrente. Ao explodirem, se chocando umas com as outras, formavam os relâmpagos que assolaram os homens, iniciando os primeiros incêndios. Ao que o Paraíso finalmente derramou sua Ira sobre o mundo, o exército desceu em meio às gotas, invisíveis ao olho do homem, mas visíveis aos olhos dos Demônios, que já estavam prontos. Como em uma perfeita oposição aos soldados celestiais, os ordenados por Lúcifer haviam também se protegido em armaduras de metal envelhecidos e escuros como a noite que os recepcionava. Seus capacetes formavam sombras em seus olhos, mas não podiam esconder os dentes, que se fechavam em um rosnado. As luvas deixavam expostas as garras que se abriram assim que olharam para o alto e avistaram o inimigo. Os seres humanos também ergueram seus olhares para o céu, que parecia girar, como se as nuvens fossem formar um incrível e imenso vortex. Nem mesmo os requintados instrumentos e aparelhos criados com tamanha tecnologia haviam previsto aquela tragédia. As gotas caíam com tanta força que destruíram os inquebráveis maquinários, levando todo o progresso de um século ao chão. Os rios e os mares se encheram tão depressa que não puderam conter as enchentes. Os gritos e o pânico se espalhavam com a mesma facilidade com que a água devorava tudo. E em meio a tamanho acontecimento, muitos homens se indagaram se, factualmente, não era a justiça divina se fazendo valer. Afinal, o que haviam feito com todo o progresso que haviam alcançado? Criação de classes sociais, subordinação de outros seres humanos, a fraternidade desaparecendo no mesmo momento em que a moeda nasceu. Mesmo assim, a moral daquela história não era aguardar o julgamento final, e sim lutar pela própria sobrevivência.

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Lutar.

Lutar como, agora, os Anjos e Demônios se digladiavam. Não havia mais Céu ou Inferno, ou a quem servir. Era apenas a batalha. Apenas a espada cortando as gotas da tempestade, atingindo a pele do oponente. Apenas o sangue que jorrava, a boca que se abria ao exprimir a dor. Era apenas a sede da guerra percorrendo seus corpos, aguçando seus olhares. Apenas as plumas, negras ou brancas, que voavam, partidas e em lágrimas. O tilintar das armaduras aos se encontrarem, os escudos que se amassavam ao reprimir um outro golpe. E enquanto isso, os mortais lutavam para sobreviver. Donos de fábricas e indústrias pereciam ao tentar salvar as grandes máquinas, enquanto outros salvavam apenas o que podiam, preenchendo os navios e os submarinos com livros e estudos. Afinal, o conhecimento era a única coisa que jamais se poderia destruir. A única coisa que ninguém jamais poderia roubar e a única coisa que merecia sobreviver.Ao final da tempestade, o imenso olho do redemoinho do céu se encheu de luz, mostrando o que havia restado do campo de batalha. As ruas, uma vez povoadas de belas construções de tijolos e uma tecnologia arrebatadora, estavam imersas no grande rio que se formara. Objetos, que foram certamente tão importantes para alguém, flutuavam perdidos pela correnteza, rumando para lugar algum, talvez jamais encontrando a quem pertenciam. Grande parte das, até então, maiores invenções feitas pelo homem, estavam para sempre inutilizáveis no fundo das águas. E, entre tantos corpos que não conseguiram a salvação, estavam também o de muitos soldados, do céu e do inferno, que pereceram na batalha. A Guerra que foi esquecida, quando ambos os lados entraram em luto, com a expressão da derrota estampada em seus semblantes. Era uma luta sem vencedores. Sempre fora uma luta sem vencedores. Tão devastados estavam os homens. Mesmo com a calmaria depois do dilúvio, ainda sofriam com o choque pelo qual passaram. Abraçavam seus entes queridos com força, enquanto admiravam, assustados, no que havia se tornado tudo o que conheciam. No final, era só aquilo que importava, não? Poder abraçar a quem se ama. Talvez, se pensassem nisso conforme o mundo crescia, o destino das futuras gerações poderia ser diferente. Agora era a função deles de passar a mensagem, através do conhecimento que se tornou sua redenção.

Navegando em seus navios e barcos submarinos, buscaram por novas terras. Por novos sobreviventes. Por uma nova forma de viver. E seus olhos se encheram de alegria, seus corações bateram depressa quando avistaram, pela primeira vez em tanto tempo, o que parecia ser um novo lugar em terra firme. Um lugar repleto de verde e de esperança. De árvores que davam novos frutos. Um fruto que, esperava-se, pudesse mudar o curso da humanidade inteira, mais uma vez.