cancioneiro poetico infantil

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Page 1: Cancioneiro Poetico Infantil

Cancioneiro Poético Infantil

As palavras

São como um cristal,as palavras.

Algumas, um punhal,um incêndio.

Outras,orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.Inseguras navegam:

barcos ou beijos,as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,leves.

Tecidas são de luze são a noite.

E mesmo pálidasverdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quemas recolhe, assim,cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

Page 2: Cancioneiro Poetico Infantil

Urgentemente

É urgente o Amor,É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavrasódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,muitas espadas.

É urgente inventar alegria,multiplicar os beijos, as searas,é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,e a luz impura até doer.

É urgente o amor,É urgente permanecer.

Eugénio de Andrade

As Amoras

O meu país sabe as amoras bravasno verão.

Ninguém ignora que não é grande,

Page 3: Cancioneiro Poetico Infantil

nem inteligente, nem elegante o meu país,mas tem esta voz doce

de quem acorda cedo para cantar nas silvas.Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigome traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade ("O Outro Nome daTerra")

GatoQue fazes por aqui, ó gato?

Que ambiguidade vens explorar?Senhor de ti, avanças, cauto,

meio agastado e sempre a disfarçaro que afinal não tens e eu te empresto,

ó gato, pesadelo lento e lesto,fofo no pêlo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?Qual o crime de que foste testemunha?

Que deus te deu a repentina unhaque rubrica esta mão, aquela cara?

Gato, cúmplice de um medoainda sem palavras, sem enredos,

Page 4: Cancioneiro Poetico Infantil

quem somos nós, teus donos ou teusservos?

(Alexandre O'Neil)

Cão

Cão passageiro, cão estritoCão rasteiro cor de luva amarela,

Apara lápis, fraldiqueiro,Cão liquefeito, cão estafado

Cão de gravata pendente,Cão de orelhas engomadas,de remexido rabo ausente,

Cão ululante, cão coruscante,Cão magro, tétrico, maldito,

a desfazer-se num ganido,a refazer-se num latido,

Page 5: Cancioneiro Poetico Infantil

cão disparado: cão aqui,cão ali, e sempre cão.

Cão marrado, preso a um fio de cheiro,cão a esburgar o ossoessencial do dia a dia,

cão estouvado de alegria,cão formal de poesia,

cão-soneto de ão-ão bem martelado,cão moido de pancadae condoído do dono,cão: esfera do sono,

cão de pura invenção,cão pré fabricado,

cão espelho, cão cinzeiro, cão botija,cão de olhos que afligem,

cão problema...Sai depressa, ó cão, deste poema!

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugalin "Abandono Vigiado")

Amigo

Mal nos conhecemosInaugurámos a palavra amigo!

Amigo é um sorrisoDe boca em boca,

Um olhar bem limpo,

Page 6: Cancioneiro Poetico Infantil

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.Um coração pronto a pulsar

Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,Escrupulosos detritos?)

Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,Não o erro perseguido, explorado.É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,Um trabalho sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,Amigo vai ser, é já uma grande festa!

(Alexandre O'Neill, 1924-1986, Portugalin "No Reino da Dinamarca")

Poema do Menino JesusNum meio-dia de fim de Primavera

Tive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra.Veio pela encosta de um monte

Tornado outra vez menino,

Page 7: Cancioneiro Poetico Infantil

A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.No céu tudo era falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.No céu tinha que estar sempre sério

E de vez em quando de se tornar outra vez homemE subir para a cruz, e estar sempre a morrer

Com uma coroa toda à roda de espinhosE os pés espetados por um prego com cabeça,

E até com um trapo à roda da cinturaComo os pretos nas ilustrações.

Nem sequer o deixavam ter pai e mãeComo as outras crianças.

O seu pai era duas pessoas -Um velho chamado José, que era carpinteiro,

E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,

A única pomba feia do mundoPorque nem era do mundo nem era pomba.

E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.Não era mulher: era uma mala

Em que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,

E que nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir

Page 8: Cancioneiro Poetico Infantil

E o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras.

Depois fugiu para o SolE desceu no primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros,Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostam

E que toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigas

Que vão em ranchos pelas estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mãoE olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.

Page 9: Cancioneiro Poetico Infantil

Diz que ele é um velho estúpido e doente,Sempre a escarrar para o chão

E a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.

E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.Diz-me que Deus não percebe nada

Das coisas que criou -"Se é que ele as criou, do que duvido." -

"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,Mas os seres não cantam nada.Se cantassem seriam cantores.Os seres existem e mais nada,E por isso se chamam seres."

E depois, cansado de dizer mal de Deus,O Menino Jesus adormece nos meus braços

E eu levo-o ao colo para casa.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.

Ele é o humano que é natural.Ele é o divino que sorri e que brinca.

E por isso é que eu sei com toda a certezaQue ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divinaÉ esta minha quotidiana vida de poeta,

E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.E que o meu mínimo olhar

Page 10: Cancioneiro Poetico Infantil

Me enche de sensação,E o mais pequeno som, seja do que for,

Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mim

E outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,

Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é saber por toda a parteQue não há mistério no mundo

E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.O meu ouvido atento alegremente a todos os sons

São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outroNa companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimoComo a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhasNo degrau da porta de casa,

Graves como convém a um deus e a um poeta,E como se cada pedraFosse todo o universo

E fosse por isso um grande perigo para ela

Page 11: Cancioneiro Poetico Infantil

Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homensE ele sorri porque tudo é incrível.Ri dos reis e dos que não são reis,

E tem pena de ouvir falar das guerras,E dos comércios, e dos navios

Que ficam fumo no ar dos altos mares.Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescerE que anda com a luz do Sol

A variar os montes e os valesE a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.Levo-o ao colo para dentro de casaE deito-o, despindo-o lentamente

E como seguindo um ritual muito limpoE todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha almaE às vezes acorda de noite

E brinca com os meus sonhos.Vira uns de pernas para o ar,Põe uns em cima dos outros

E bate palmas sozinhoSorrindo para o meu sono.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,Seja eu a criança, o mais pequeno.

Page 12: Cancioneiro Poetico Infantil

Pega-me tu ao coloE leva-me para dentro da tua casa.Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer diaQue tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.Por que razão que se perceba

Não há-de ser ela mais verdadeiraQue tudo quanto os filósofos pensamE tudo quanto as religiões ensinam ?

Alberto Caeiro

Levava um JarrinhoLevava um jarrinho

para ir buscar vinho.Levava um tostãopara comprar pãoe levava uma fitapara ir bonita.Correu atrás

De mim um rapaz:Foi o jarro para o chão.

Page 13: Cancioneiro Poetico Infantil

Perdi o tostão,Rasgou-se-me a fita...

Vejam que desdita!Se eu não levasse um jarrinho

nem fosse buscar vinhonem trouxesse a fita

para ir bonitanem corresse atrásde mim um rapaz

para ver o que eu fazianada disto acontecia.

Fernando Pessoa

Sei um ninho

Sei um ninho.E o ninho tem um ovo.E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinhoNovo.

Mas escusam de me atentar:Nem o tiro, nem o ensino.Quero ser um bom menino

E guardarEste segredo comigo.

E ter depois um amigoQue faça o pino

A voar...

Page 14: Cancioneiro Poetico Infantil

Miguel Torga

Frutos

Pêssegos, pêras, laranjas,morangos, cerejas, figos,maçãs, melão, melancia,

ó música de meus sentidos,pura delícia da língua;deixai-me agora falar

do fruto que me fascina,pelo sabor, pela cor,

pelo aroma das sílabas:tangerina, tangerina.

Eugénio de Andrade

Trabalho elaborado por:Maria José Lopes

e

Maria Manuela Rodrigues

endereço electrónico: http://docs.google.com/Doc?id=ddhd7g8m_1ff3mrbfp