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Campo literário e convergência: representações da infância e da adolescência nos games “Child of Light” e “Rain” Mario Lousada de ANDRADE 1 Resumo No atual contexto, as reflexões concernentes ao estabelecimento do campo literário e ao ensino da literatura trazem consigo a necessidade de se pensar tais problemas através de uma abordagem cada vez mais dialógica e convergencial. Com o dilúvio informacional, tal qual mencionado por Lévy (1999), e sua concludente expansão tecnológica, acompanhou-se o aparecimento de novos espaços possíveis para produções ficcionais particulares que, não raras vezes, estabelecem diálogos com a literatura. Diante disso, apresentamos neste trabalho algumas considerações sobre a convergência entre a literatura e os games. Como recorte, apontamos games que representam a infância e a adolescência, aplicando ao corpus as contribuições filosóficas de Bachelard (1988). Palavras-chave: Campo Literário. Games. Convergência. Infância. Adolescência. Abstract Nowadays, reflections about literary field and literature teaching bring with them the need to think about such problems through an increasingly dialogic approach. The informational flood, as mentioned by Levy (1999), and its conclusive technological expansion, have been followed with the emergence of new possible spaces for fictional productions. Therefore, we present in this paper some reflections upon the convergence between games and literature. For instance, one has pointed out games that represent childhood and adolescence, applying them to the corpus the philosophical contributions of Bachelard (1998). Keywords: Literary field. Games. Convergence. Childhood. Adolescence. 1 Doutorando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá UEM, na linha de pesquisa “Literatura e Historicidade”. É mestre em Letras (Estudos Literários) pela mesma instituição, na área linha de pesquisa “Campo Literário e Formação de Leitores”. CEP: 87895-000, Terra Rica, PR. Email: [email protected].

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Campo literário e convergência: representações da infância e da adolescência nos

games “Child of Light” e “Rain”

Mario Lousada de ANDRADE1

Resumo

No atual contexto, as reflexões concernentes ao estabelecimento do campo literário e ao

ensino da literatura trazem consigo a necessidade de se pensar tais problemas através de

uma abordagem cada vez mais dialógica e convergencial. Com o dilúvio informacional,

tal qual mencionado por Lévy (1999), e sua concludente expansão tecnológica,

acompanhou-se o aparecimento de novos espaços possíveis para produções ficcionais

particulares que, não raras vezes, estabelecem diálogos com a literatura. Diante disso,

apresentamos neste trabalho algumas considerações sobre a convergência entre a

literatura e os games. Como recorte, apontamos games que representam a infância e a

adolescência, aplicando ao corpus as contribuições filosóficas de Bachelard (1988).

Palavras-chave: Campo Literário. Games. Convergência. Infância. Adolescência.

Abstract

Nowadays, reflections about literary field and literature teaching bring with them the

need to think about such problems through an increasingly dialogic approach. The

informational flood, as mentioned by Levy (1999), and its conclusive technological

expansion, have been followed with the emergence of new possible spaces for fictional

productions. Therefore, we present in this paper some reflections upon the convergence

between games and literature. For instance, one has pointed out games that represent

childhood and adolescence, applying them to the corpus the philosophical contributions

of Bachelard (1998).

Keywords: Literary field. Games. Convergence. Childhood. Adolescence.

1 Doutorando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Estadual de Maringá – UEM, na linha de

pesquisa “Literatura e Historicidade”. É mestre em Letras (Estudos Literários) pela mesma instituição, na

área linha de pesquisa “Campo Literário e Formação de Leitores”. CEP: 87895-000, Terra Rica, PR.

Email: [email protected].

O Campo literário em convergência

Os professores continuam falando de um divórcio ou curto-circuito

entre, de um lado, a escola e leitura e, de outro, o mundo da televisão,

cinema e outros passatempos audiovisuais. Essa visão antagônica

entre leitura e tecnologias midiáticas vem sendo recolocada há vários

anos, tanto nos estudos sobre cultura como nos que são feitos sobre

comunicação. (CANCLINI, 2008, p. 33)

A epígrafe com a qual iniciamos esta seção é bastante emblemática no que tange

ao impasse que ainda se faz presente quando o assunto é a educação e novas

tecnologias. No panorama da contemporaneidade, as opções para a produção e

disseminação de narrativas ficcionais estão cada vez mais amplas. O cenário implica

diretamente na formação de novas demandas de leitores que, por apresentarem gostos

por formas narrativas multimodais, estão imersos em culturas específicas. A

problemática, consequentemente, nos traz a necessidade de pensarmos o ensino da

literatura através de uma abordagem cada vez mais dialógica e convergencial capaz de,

na medida do possível, reconhecer o repertório desses leitores.

Na introdução de seu Cibercultura, Pierre Lévy (1999) nos apresenta a metáfora

do “segundo dilúvio”. Para o autor, a sociedade passou por um segundo dilúvio, o da

informação. “Trata-se do transbordamento das informações, a inundação dos dados, as

águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação” (LÉVY, 1999, p. 14).

A metáfora utilizada por Lévy (1999) simboliza uma transformação tecnológica

que abre espaço para um conglomerado de reflexões socioculturais. Soares (2002) ao

refletir sobre as novas práticas de letramento na cibercultura, não deixa de mencionar a

questão das transformações relativas aos espaços possíveis para a inserção da escrita.

De acordo com a autora:

Todas as formas de escrita são espaciais, todas exigem um “lugar” em

que a escrita se inscreva/escreva, mas a cada tecnologia corresponde

um espaço de escrita diferente. Nos primórdios a história da escrita, o

espaço de escrita foi a superfície de uma tabuinha de argila ou madeira

ou a superfície polida de uma pedra; mais tarde, foi a superfície

interna contínua de um rolo de papiro ou de pergaminho, que o escriba

dividia em colunas; finalmente, com a descoberta do códice, foi, e é, a

superfície bem delimitada da página – inicialmente de papiro, de

pergaminho, finalmente a superfície branca da página de papel.

Atualmente, com a escrita digital, surge este novo espaço de escrita: a

tela do computador. (SOARES, 2002, p. 149)

Para cada espaço de escrita nos deparamos com peculiaridades, isto é,

características próprias que trazem novos problemas tanto para o âmbito da poética

dessas novas formas de narrativas ficcionais quanto para o da estética. Soares (2002)

afirma que a tela como um novo espaço possível para a produção e consumo da escrita

traz não só novas formas de acesso à informação, como também novos processos

cognitivos, ampliando as possibilidades de manifestação do conhecimento.

Com a consolidação desses novos espaços (embora reconhecemos a existência

de uma lacuna no que tange ao julgamento valorativo das obras geradas dessas novas

formas) acompanhou-se o surgimento de uma nova cultura, a qual Jenkins (2006)

problematiza em seu Cultura da Convergência. Para o autor, o termo convergência é

capaz de definir mudanças tecnológicas que (re)configuram o cenário mercadológico e

artístico como um todo. Sobre o termo, o autor esclarece que:

Por convergência refiro-me ao fluxo de conteúdos através de

múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados

midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de

comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das

experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma

palavra que consegue definir transformações tecnológicas,

mercadológicas, culturais e sociais. (JENKINS, 2006, p. 27)

Não devemos desconsiderar toda a questão mercadológica por trás desse

processo, mas pensar este cenário sob a ótica da formação de novas demandas de

leitores também se faz pertinente. Como o autor bem afirma, existe um comportamento

migratório no leitor/consumidor inserido nessa cultura que o impulsiona em uma busca

constante de ampliação da experiência de um determinado universo ficcional. Jenkins

(2006), posteriormente, reitera a definição destacando que a convergência não ocorre

por meio de aparelhos, independente de quão sofisticados sejam, mas dentro dos

cérebros dos consumidores que transitam por diferentes segmentos de um universo e em

interação com outros, construindo, dessa forma, a própria mitologia pessoal.

O autor dialoga com Lévy (1999) que expõe o conceito de Inteligência Coletiva.

No processo de Inteligência Coletiva “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós

sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e

unirmos nossas habilidades” (LÉVY, 1999, p. 28).

Em Negroponte (1995), encontramos reflexões sobre as perspectivas do futuro

no que se refere à tecnologia digital. O autor aponta não só a tecnologia em si, mas

também prevê modificações nos hábitos pessoais e sociais decorrentes da apropriação

dos recursos tecnológicos pela humanidade. Acompanhamos, a partir de então,

mudanças bastante significativas nos modos possíveis de interação entre leitores e

conteúdos ficcionais.

Canclini (2008) menciona que desde o aparecimento da internet, seus usos e

prioridades têm mudado:

Primeiro, a decisão era tê-la ou não. Depois, dar mais velocidade à

conexão. Em seguida, melhorar a rapidez e a interação com banda

larga e, para muitos, estar sempre conectado, incorporando a internet

ao celular. Em meio a tal expansão, a posição local e os aspectos

peculiares de cada usuário não desaparecem, mas se redimensionam

ao interagir com gente de outros países ou baixar músicas em várias

línguas. (CANCLINI, 2008, p. 60)

Postas essas reflexões, percebemos que o leitor no contexto convergencial possui

a seu dispor novos meios de realizar a leitura, configurando-se como um leitor que

busca informações relativas a um determinado universo ficcional em diversas mídias.

Percebemos também que o campo literário se abre, em termos dialógicos, para novas

formas de narrativas ficcionais que mesmo não sendo literatura apresentam pontos de

convergência com a arte literária.

Narrativa Literária e Narrativa de Games: relações possíveis?

Videogames are a new form of art. They will not replace books;

they will sit beside them, interact with them, and change them

and their role in society in various ways2. (GEE, 2007, p. 204)

O videogame, tendo em vista o seu potencial como mídia expressiva, configura-

se a partir de uma dinâmica comunicacional de ampla disseminação. Compreender os

games como um novo espaço possível para a inserção da escrita exige que

consideremos algumas implicações que se fazem obrigatórias. É necessário admitir que

games não são narrativas e, portanto, o que caracteriza um game não é a narrativa, mas

seu sistema de jogabilidade. Não podemos deixar de olhar, no entanto, para o avanço

tecnológico conquistado pela indústria que possibilitou aos jogadores não só um sistema

2 Videogames são uma nova forma de arte. Eles não substituirão livros; sentarão ao lado deles,

interagindo com eles e alternando-os, bem como os seus papéis na sociedade, em várias maneiras.

(Tradução livre).

de jogabilidade mais sofisticado como também uma experiência narrativa particular,

abrindo espaço para reflexões no tocante à problemática narratológica como um todo.

Hoje, temos contato com uma imensa quantidade de jogos que apresentam narrativas

em suas poéticas. É, inclusive, olhando para o avanço tecnológico que Tavinor (2009)

encontra subsídio para responder a uma questão colocada por ele próprio: por que os

games estão, cada vez mais, apresentando uma tendência à sofisticação artística?

Hoje, os dispositivos utilizados para o desenvolvimento dos games são capazes

de criar universos ficcionais sofisticados, sensíveis e com alto grau de imersão e toda

essa tecnologia tornou-se um pré-requisito para os games atuais. Tavinor (2009) afirma

que, em seu aspecto artístico, os videogames convergem com outras formas de arte mais

tradicionais ao envolver questões estéticas, representativas, abarcando a ética e a moral.

Nas palavras do autor:

Videogames are a growing phenomenon and influence in the modern

world, and are displaying new levels of artistic sophistication. As such

they seem to engage many of the same issues as do the traditional arts,

raising questions about aesthetics, representation, narrative, emotional

engagement, and morality, that have been the focus of the philosophy

of the arts3 (TAVINOR, 2009, p.13)

Não é raro encontrarmos posturas apocalípticas em relação aos games. Uma das

principais acusações consiste na deturpação que os jogos “podem” causar na sociedade,

em especial nos adolescentes, sendo considerados objetos de risco que atacam

violentamente a fibra moral dos costumes. Dentre os ataques mais comuns estão:

videogames são um desperdício de tempo, são ofensivos, misóginos, imaturos,

viciantes, incentivam comportamentos sedentários, envolvem os jogadores em práticas

ocultistas e atacam a fibra moral da nossa sociedade. Alguns ainda consideram os

videogames como transmissores de violência, agressão e como deturpadores da

juventude.

Sobre a problemática da violência, Alves (2009) esclarece que, como produto

cultural, as narrativas dos games podem reproduzir conteúdos presentes na sociedade,

mas a autora destaca que a interação com estes diferentes conteúdos e, em especial, os

3 Videogames são um fenômeno crescente que possui grande influência no mundo moderno e estão

exibindo novos níveis de sofisticação artística. Como tal, eles parecem envolver muitas das mesmas

questões que as artes tradicionais, levantando questões sobre estética, representação, narrativa,

engajamento emocional e moral, que tem sido o foco da filosofia das artes. (Tradução livre).

relacionados à violência, não resultam em comportamentos agressivos com outros

sujeitos, mas propiciam a elaboração dos aspectos subjetivos de cada indivíduo na

medida em que os games se constituem em espaços de catarse, nos quais a violência é

uma linguagem, uma forma de dizer o não dito.

De acordo com a autora, os videogames, com suas diferentes possibilidades de

imersão, permitem aos usuários vivenciar situações que não podem ser concretizadas no

cotidiano, exigindo tomada de decisão, planejamento, desenvolvimento de estratégias e

antecipações que vão além do aspecto cognitivo. É possível elaborar perdas, medos e

outras emoções e sentimentos sem correr riscos.

Na história literária, encontramos acusações muito semelhantes no momento

genesíaco do romance. Tendo sido considerado, pelos críticos da época, um gênero

menor, o romance sofreu severas acusações, dentre as quais o condenavam como sendo

apenas leitura de entretenimento, sem conteúdo estético, desprovido de uma perspectiva

firmada pela tradição clássica, confeccionado especificamente para um público carente

de gosto literário. Tavinor (2009), ao abordar sobre a ficção dos games, afirma que

certamente esses apresentam uma dinâmica muito mais interativa que a televisão e o

cinema. Ao invés de assistidos, os games são jogados o que compete ao jogador a

função de “agente”. O conceito de agência foi definido por Murray (2003) como “a

capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas

decisões e escolhas”. (MURRAY, 2003, p. 127). A agência está fundamentada nesta

dinâmica de interação. O indivíduo deve participar ativa e constantemente do game.

Tavinor (2009) aborda que não podemos negar a existência de uma relação entre

videogames e outras formas de arte, mas que há a necessidade de analisar os games

através de uma abordagem particular, sendo inadequado estabelecer julgamentos a partir

de instrumentais teóricos de outras artes. De acordo com o autor:

Comparing games to previous forms of art really is a cross-cultural

endeavor, but the comparison is not with the culture of a newly

discovered geographically isolated way of life, but with an interstitial

culture to which many people are oblivious. There are intersections

between cultural worlds – of course, videogames are informed by

mainstream film – but much of what happens in games and gaming is

generated by their own distinctive and semi-isolated cultural history.

This is an important reason why we should approach videogames on

their own terms, and not always judge them by more familiar forms of

culture that philosophers of the arts and other theorists have typically

dealt with4. (TAVINOR, 2009, p. 190)

Eskelinen (2006), ao se posicionar contra a abordagem puramente narratológica,

aponta que deveria ser óbvio que não se pode aplicar a narratologia impressa da

literatura, teoria do hipertexto, teatro e cinema diretamente aos games, mas não é.

Isso posto, compreendemos que narrativas de games e narrativa impressa – em

especial a legitimamente reconhecida como literária – podem possuir pontos de

convergência, mas estão inseridas em espaços específicos. Aplicar a narratologia

impressa diretamente aos games ocasionaria, inclusive, um grande problema no que

concerne ao julgamento valorativo do objeto.

Mediante tal cenário, compreendemos que o videogame é uma nova forma de

arte capaz de dialogar com formas artísticas mais tradicionais. A indústria dos games

continua crescendo a cada dia e possibilitando novas formas de interação, oferecendo

também potencialidades para a construção de universos ficcionais, o que desperta cada

vez mais interesses e ações em diversos setores culturais.

Representações da infância e da adolescência nos games.

Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou

não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à

incompetência ou a falta de habilidade. É mais provável que não

houvesse lugar para infância nesse mundo. (ÁRIES, 1981, p. 17)

A discussão que envolve as particularidades da infância e suas representações

nas artes é, atualmente, profícua. Diferentemente do século XII, a representação da

infância é hoje não só uma realidade efetiva, como também muito problematizada em

espaço acadêmico. Andrade (2012) aponta que “a infância sofreu e vêm sofrendo um

processo que decorre historicamente dos modos como foram criadas as suas imagens

sociais” (ANDRADE, 2012, p. 1).

4 Comparar os games com as formas anteriores de arte é realmente um esforço transcultural, mas a

comparação não é com a cultura de um modo de vida, recentemente descoberto, geograficamente isolado,

mas sim com uma cultura intersticial a que muitas pessoas são inconscientes. Existem interseções entre os

mundos culturais - é claro, os videogames são informados pelo filme convencional - mas o que acontece

nos games e, neste caso, games criados por sua própria história cultural específica e semi-isolada. Esta é

uma razão importante pela qual devemos abordar os videogames em seus próprios termos, e nem sempre

os julgamos por formas de cultura mais familiares que os filósofos das artes e outros teóricos lidam

tipicamente. (Tradução livre).

O problema da representação da infância na produção de obras disseminadas

especificamente para o público infantil tem levantado sérias discussões. A temática abre

espaço para discussões densas que procuram criticar, visando provocar interesses e

ações, o rumo da produção para o público infantil. Abramovich (1983) expõe

claramente o seu desprezo por obras que se propõem como infantis, mas que apresentam

adultos em miniatura exercendo funções completamente dissociadas de suas realidades.

É o que de modo muito semelhante nos apresenta Wenzel (2006):

(...) não se trata apenas da ausência da criança na produção feita

especialmente para ela. É necessário denunciar como já não se pode

mais falar de imaginação sem considerar como as condições objetivas

produzem condições subjetivas e uma percepção historicamente

diferenciada. Benjamin suspeita da produção cultural para a criança,

em particular dos livros infantis, por trabalhar com uma noção

idealizada de infância, quer por sua formulação cientificista, quer por

sua visão aistórica. (WENZEL, 2006, p. 34)

A visão idealizada da infância é muito criticada por subverter a própria

representação da infância, tornando-a artificial. E a questão não se encerra por aí.

Temos presenciado tons bastante alarmistas no que concerne à capacidade da criança de

imaginar, o que geralmente vem acompanhado de uma crítica aos meios digitais. É o

que vemos nas palavras de Wenzel (2006) que ao se remeter à crítica de Abramovich,

considera que a perda da imaginação é, de certa maneira, “sintomática da ausência de

uma experiência viva, aquela tão esquecida e já substituída pela experiência virtual,

digital, televisiva, entre outros simulacros de experiência” (WENZEL, 2006, p. 35).

Consideramos, em tom otimista, que os novos meios de comunicação, ao invés

de eliminarem a imaginação, criam novas possibilidades e novas formas de

representação. O que temos são novos universos construídos a partir de novos sistemas

semióticos e que formam e atualizam uma nova dinâmica de interação. Como um

recorte exemplificativo, podemos lançar um olhar para o game Child of Light (2014).

Conforme constatamos em Andrade (2014):

O enredo de Child of Light se assemelha aos contos de fadas

tradicionais. O jogo se passa no ano de 1895 e apresenta o dramático

desenvolvimento de Aurora, filha de um duque austríaco. Uma criança

que inicialmente possui uma personalidade frágil e inocente. Além de

sofrer com a perda da mãe, a menina, por artimanhas da madrasta, cai

em um sono profundo e vê-se em um mundo diferente e mágico

chamado Lemuria. Nesse novo mundo, Aurora deve superar a sua

fragilidade e combater as forças maléficas da Rainha Misteriosa da

Noite para libertar os povos por ela amaldiçoados. Também deve

resgatar o Sol, a Lua e as estrelas e, dessa forma, restabelecer a ordem

de Lemuria. Paralelamente a isso, a heroína anseia o retorno ao lar

para que possa novamente se juntar ao pai e libertá-lo da paixão

envenenada que este sente por Umbra, a madrasta. Durante a jornada,

Aurora conta com a ajuda de outros personagens, cada um com

habilidades específicas.(ANDRADE, 2014, p. 5)

Isoladamente, o enredo de Child of Light (2014) retrata fórmulas clichês que

podem ser encontradas em inúmeras produções do gênero. No entanto, ao analisarmos o

enredo em conjunto com as particularidades do game, presenciamos um objeto

diferenciado e que apresenta potencialidades estéticas valorativas. Em síntese, Aurora é

uma criança que, em estado inicial de crise solitária, transita em um mundo paralelo e

imaginário. O amadurecimento da protagonista se dará por meio de uma trajetória

fantasiosa repleta de perigo e descobertas. Um ponto muito notável do game é, sem

sombra de dúvida, o seu ambiente de imersão. Observamos a seguinte imagem:

Figura 1: Aurora e Igniculus no bosque de Lemuria. Fonte: Imagem capturada do game.

Como podemos observar, a representação do ambiente é semelhante a uma

pintura. O mundo pelo qual a personagem transita é um mundo distorcidamente criativo

e fantasioso. Percebemos, ainda nessa imagem, elementos que caracterizam a

personagem em termos de diegese, como por exemplo: “a delicadeza infantil de seus

trajes, o movimento suavizado dos cabelos, os pés descalços e tudo inserido em uma

paisagem clara e serena que remete à pureza e inocência” (ANDRADE, 2014, p. 7).

Além das imagens, o ambiente também é composto pela sonoplastia que, em

geral, é intensamente melancólica e revela o estado emocional da personagem. Também

o sistema de jogabilidade é importante tendo em vista que a personagem vai adquirindo

novos itens, novos poderes, novas habilidades e evoluindo de nível conforme vence os

desafios. Tudo isso contribui diegeticamente. A infância de Autora é poeticamente

retratada no game.

Outro game a ser mencionado é Rain (2013). O jogo, que assim como Child of

Light foi comercializado via download e traduzido para o português do Brasil, também

opera a partir do imaginário de uma criança, dessa vez um menino na fase da

adolescência. O protagonista do game é um adolescente que vagueia por um mundo

misterioso enquanto dorme. Tudo começa quando o protagonista vê a silhueta de uma

garota misteriosa, quase sem forma, e decide segui-la. O garoto percebe que, assim

como a menina misteriosa, está invisível e seu corpo é somente revelado através das

gotas da chuva. Sendo assim, o mesmo embarca em uma jornada rumo a uma

explicação para o que está acontecendo e enfrenta os desafios gerados pela sua própria

imaginação. Num mundo repleto de mistério, permeado por monstros, o game

questiona, dentre outros aspectos, quais são as vantagens e as desvantagens da

invisibilidade.

Figura 2: imagem representativa do universo de Rain. Fonte: imagem capturada do game.

Na Figura 2, podemos perceber que as personagens são representadas somente

através das silhuetas que se revelam apenas em contato com a chuva. O ambiente de

imersão de Rain apresenta sempre a mesma tonalidade sombria e, como não poderia ser

diferente, chove o tempo todo. O mundo sombrio é reflexo do imaginário que, assim

como em Child of Light, flui a partir da crise solitária. A sonoridade também apresenta

aspectos relevantes para o efeito poético e estético do game. São toques densamente

melancólicos que auxiliam na construção representativa. O sistema de jogabilidade de

Rain foi criticado por ser bastante simples e não apresentar grau elevado de dificuldade.

Tanto o game Child of Light (2014) como Rain (2013) representam a infância e

a adolescência através da construção de mundos paralelos. A construção de mundos

paralelos é, aliás, inerente à infância. De acordo com Bachelard (1988), as solidões

primeiras deixam, em certas almas, marcas profundas. A partir dessas marcas, o

indivíduo mergulha no mais profundo de si e sua vida passa a ser sensibilizada pelo o

que o autor chama de devaneio poético. Em seu A Poética do Devaneio, Gaston

Bachelard elucida que:

Na solidão, a criança pode acalmar seus sofrimentos. Ali ela se sente

filha do cosmos, quando o mundo humano lhe deixa a paz. E é assim

que nas suas solidões, desde que se torna dona de seus devaneios, a

criança conhece a ventura de sonhar, que será mais tarde a ventura dos

poetas. Como não sentir que há comunicação entre a nossa solidão de

sonhador e as solidões da infância? E não é à toa que, num devaneio

tranquilo, seguimos muitas vezes a inclinação que nos restitui às

nossas solidões de infância. (BACHELARD, 1998, p. 94)

A fantasia é, em geral, associada à infância. A criança possui grande facilidade

em construir o seu próprio universo ficcional, em que interage e vive profundamente a

sua fantasia. É pertinente, nesse ponto, ressaltar a seguinte consideração feita por

Gaston Bachelard (1988) que “quando sonhava em sua solidão, a criança conhecia uma

existência sem limites. Seu devaneio não era simplesmente um devaneio de fuga. Era

um devaneio de alçar voo” (BACHELARD, 1988, p. 94).

A solidão, na perspectiva bachelardiana, é uma das principais tensões

impulsionadoras do voo. O ser em estado de solidão necessita de um mundo paralelo,

completamente idealizado por ele mesmo. Sair do devaneio implica não sonhar, isto é,

viver a realidade objetiva com suas imperfeições. Voar implica deixar, por momentos, o

solo. Deve-se considerar que o voo é sempre limitado, sendo obrigatório o retorno,

mesmo que se pouse em outro lugar que não seja o ponto de partida. Nesse caso, é

intrínseca a metáfora da mudança. Uma poética do devaneio se conscientiza de suas

tarefas que seriam, segundo Bachelard:

determinar consolidações dos mundos imaginários, desenvolver a

audácia do devaneio construtivo, afirmar-se numa boa consciência de

sonhador, coordenar liberdades, encontrar o verdadeiro em todas as

indisciplinas da linguagem, abrir todas as prisões do ser para que o

humano tenha todos os devires. Tarefas todas frequentemente

contraditórias entre aquele que concentra o ser e aquele que o exalta.

(BACHELARD, 1988, p. 152)

Um sonhador de devaneios quando se afasta de todas as preocupações que

perturbavam a vida cotidiana e quando se aparta da inquietação que lhe advém da

inquietação alheia, quando é realmente autor da sua solidão, e, enfim, pode contemplar

a vida sem contar as horas, então, sente esse sonhador um ser que “de repente, se faz

sonhador do mundo. Abre-se para o mundo e o mundo se abre para ele. Nunca teremos

visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que víamos” (BACHELARD, 1988,

p. 165).

Portanto, compreende-se que o mundo sonhado, em especial na infância,

interfere diretamente na construção da identidade do sujeito. O mergulho no

subconsciente permite ao sonhador em devaneio conhecer o âmago de si mesmo. Os

dois games aqui mencionados representam a infância e a adolescência nesses termos. A

solidão de ambas as personagens abrem espaço para diferentes mundos sonhados e

idealizados por elas mesmas. No caso de aurora, temos um mundo mais colorido e

mágico. Já o protagonista de Rain, adentra em um mundo mais obscuro, muito mais

parecido com a realidade e apresenta maiores indagações, dentre elas, o sentimento

confuso do amor e sua paradoxal invisibilidade.

Considerações finais

A partir das reflexões realizadas neste trabalho, pode-se compreender que, no

contexto atual, é necessário levarmos em consideração as múltiplas formas de leitura

presentes no cotidiano dos leitores. O campo literário dialoga com novas formas

artísticas que emergem do cenário cibercultural. Compreendeu-se também que o

videogame é uma mídia expressiva e que apresenta particularidades, configurando-se,

entre outros aspectos, como um espaço possível para a criação de universos ficcionais

complexos e imersivos.

As discussões concernentes às representações da infância e da adolescência nas

novas mídias continuam abertas para futuras análises. Pretendeu-se, neste trabalho,

demonstrar que existem questões poéticas pertinentes de serem averiguadas nos games.

Cada vez mais estão sendo instauradas políticas que favorecem a utilização das novas

tecnologias no ensino e, no tocante aos games, temos presenciado um grande aumento

nas pesquisas acadêmicas empenhadas em refletir tanto sobre as pertinências de se

trabalhar com os games em sala de aula, como também interrogações concernentes às

possibilidades de sua inclusão na sala de aula.

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