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Corpo de baileTRANSCRIPT
ESTÓRIA DE UM CERTO MIGUILIM
Seu ato é, pois, um ato de artista, comparável ao movimento do dansador; o dansador é a imagem desta vida, que procede com arte; a arte da dança dirige os seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente.
Plotino.
UM CERTO MIGUILIM morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutum. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos.
Guimarães Rosa.
1. CORPO DE BAILE
O nome “Corpo de baile” dado ao conjunto de sete narrativas,
independentes do ponto de vista do enredo, publicadas em 1956, inscreve, desde
o título, o sentido meta poético dessa obra emblemática de João Guimarães Rosa
que traz na abertura a estória de Miguilim. Como metáfora musical evocadora da
dança, “corpo de baile” articula as categorias de tempo e espaço ao fenômeno do
movimento, dando conta da economia narrativa de um universo social
heterogêneo em plena transfiguração. As estórias se situam em um universo
geocultural bem delimitado, uma área de transição que abarca terras situadas
entre rios e serras, do rio Urucuia ao Abaeté, espaço de intersecção, entre o
agreste e o sertão: as veredas dos Campos Gerais.1 Mais que um cenário
contingente, esse mundo, em que os valores arcaicos se encontram em estado de
dissolução, particular quanto universal em sua plenitude poética, complexo dada
a sua heterogeneidade geocultural, constitui um elemento fundamental dos
dramas individuais e, ao mesmo tempo, coletivos, narrados nas diferentes
estórias. Essas narrativas se situam temporalmente em momentos distintos das
transformações operadas nesse universo.
1 A propósito, ver SOARES, 2008.
A metáfora “corpo de baile” evoca a ideia da transitoriedade na duração,
a diversidade na unidade, o movimento como efeito da relação sincrônica dos
corpos no espaço e no tempo presente de cada narrativa e o movimento enquanto
fluxo duração, considerando-se a projeção dos corpos num período de tempo que
ultrapassa o compreendido em cada estória. Se a unidade de sentido das
narrativas, tomadas isoladamente, nos permite concebê-las em sua autonomia
em relação ao todo, o aparecimento de algumas personagens em diferentes
estórias, situadas em tempos e lugares distintos, permite estabelecer, temporal e
espacialmente, a unidade semântica do conjunto.
O tecido da obra é plural (ora apresentado como novela, ora poema, ora
romance), assim como o é o corpo narrativo, se concebemos a singularidade dos
dramas humanos que o compõem. Por outro lado, o tecido no fluxo do
movimento que situa as personagens no ambiente comum que as abriga, não
deixa de constituir-se como unidade temática e estética. Nesse contexto, a
estória de Miguilim é emblemática, como o demonstra uma leitura atenta das
estórias em sequência.
também esquematizado no plano editorial original da obra Quanto a
isso, importa atentar para alguns detalhes referentes à organização da primeira
edição de Corpo de Baile, que teve duas reedições com o consentimento do
autor, nas quais a configuração original sofre alterações por razões comerciais.2
Na primeira edição, publicada em dois volumes, apresenta-se, na folha de rosto
de ambos, a designação “novelas”, atribuída às narrativas, seguindo-se à folha de
rosto uma página com uma sequência de epígrafes e, após essa página, o índice
com as sete estórias na seguinte sequência: “Campo Geral”, “Uma Estória de
amor”, “A Estória de Lélio e Lina”, “O Recado do Morro”, “Lão-Dalalão (Dão-
Lalalão)”, “Cara-de-Bronze” e “Buriti”. Agora, as narrativas, anunciadas na
folha de rosto como novelas, são, emblematicamente, chamadas de poemas.
Dessas, as três primeiras compõem o primeiro volume e as quatro últimas o
segundo. Já no segundo volume, concluindo o livro, aparece o segundo índice de
Corpo de Baile, nos quais as novelas-poemas são classificadas como
romances/“Gerais” e contos/parábase. São designados de romances e “Gerais”:
“Campo Geral”, “A Estória de Lélio e Lina”, “Dão-Lalalão” e “Buriti”; de
2 Para uma crítica genética de Corpo de Baile, ver CALZOLARI, 2010.
contos e parábase: “Uma estória de amor”, “O Recado do Morro” e “Cara-de-
Bronze”. Os textos classificados como contos e parábase, respectivamente, o
segundo, o quarto e o sexto, na ordem apresentada no primeiro índice, ao
contrário dos demais, apresentam epígrafes próprias. A observação desses
detalhes nos permite conceber o projeto arquitetônico da obra, o qual orienta a
leitura das narrativas, independentes entre si, no sentido da unidade estrutural do
conjunto. Além das designações encontradas nos índices e na folha de rosto, as
epígrafes iniciais dão conta dessa unidade/pluralidade em um nível filosófico e
no que concerne ao imaginário cultural representado nas estórias.
A seguir à folha de rosto, epígrafes de Plotino e Ruysbroeck O Admirável, além
do ““Côco de festa”, do Chico Barbós”, distribuem-se por três páginas.
Guimarães Rosa, no projeto original do livro, reforçou
conscientemente a flutuação entre diferentes gêneros. Os textos são
novelas, poemas, alguns romances e “Gerais”, outros contos e
parábase. Logo, fica evidente a preocupação do autor em salientar
tais classificações e sua relação com o todo da obra que, não à toa,
se chama Corpo de Baile.
Um segundo aspecto digno de nota se refere ao diálogo entre os
dois índices e, portanto, a importância de sua manutenção, bem
como da seqüência em que se acham as narrativas. Não é demais
lembrarmos que muitas personagens migram de um texto para outro.
O menino Miguilim de “Campo Geral”, primeira novela de Corpo de
Baile, por exemplo, ressurge em “Buriti”, a sétima e última narrativa,
como o adulto Miguel, fechando o ciclo de estórias.
no primeiro dos quais, na abertura, encontra-se a novela-poema-romance
“Campo Geral”, Corpo de Baile, a obra, se contrapõe à Grande Sertão Veredas
2. CAMPO GERAL
2.1. MIGUILIM
2.2. MUTUM
2.3. OS DO MUTUM
3. O FOCO, O TEMPO E O LUGAR DA ENUNCIAÇÃO: A ESTÓRIA NÃO QUER SER HISTÓRIA
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221
CALZOLARI, Tereza Paula Alves. Considerações acerca do texto de base de Corpo de baile, de Guimarães Rosa. Disponível em: HTTP://WWW.FILOLOGIA.ORG.BR/IXSENEFIL/ANAIS/09.HTM. ACESSADO EM 09/11/2014.
CALZOLARI, Tereza Paula Alves. Três livros distintos e um só verdadeiro: a unidade de Corpo de baile, de João Guimarães Rosa./Tereza Paula Alves. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2010.
ROSA, Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. 2v.
SOARES, Claudia Campos. Considerações sobre Corpo de baile. Itinerários, 25, 2007, p.41-68.
--------- Corpo de baile: um mundo em transformação. Ângulo, 115, out/dez., 2008, p. 40-47.