caminhos da mudanÇa: joÃo toledo e a renovaÇÃo ... · o processo de difusão das ideias...
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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017
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CAMINHOS DA MUDANÇA: JOÃO TOLEDO E A RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA (1919-1930)1
Vera Teresa Valdemarin2
Introdução
O processo de difusão das ideias pedagógicas é bastante complexo e seu movimento
não linear entrelaça atores, instituições e um conjunto de ações que se ramificam em
mudanças legais, iniciativas editoriais e ocupação de posições no sistema educacional. A
compreensão dessa dinâmica tem mobilizado o interesse de pesquisadores brasileiros, de
modo especial, quando se trata do processo de renovação das concepções tributárias da
Escola Nova ou Educação Progressiva, que teve seu auge nos anos de 1930.
Estudos sobre essa temática demarcaram o itinerário das realizações mais significativas
e as lideranças mais expressivas na difusão das ideias e dos valores alinhados com as
transformações então pretendidas no sistema educacional e na sociedade (pode-se
mencionar, principalmente, as análises de NAGLE, 1974; NUNES, 1991; CARVALHO, 1989 e
1998; SAVIANI, 2007; XAVIER, 2004; CUNHA, 2008). Outras investigações focalizaram
especificamente lugares institucionais a partir dos quais as mudanças foram irradiadas
(VIDAL, 2001; LOPES, 2006; PINTO, 2006; ARCE e NERY, 2011), as iniciativas editoriais
destinadas à difusão das concepções consideradas inovadoras (BASTOS, 1994; CARVALHO e
TOLEDO, 2006; TOLEDO, 2001; NERY, 1994; VALDEMARIN, 2011, MATE, 2002; BICCAS,
2001) e os autores e textos que se tornaram emblemáticos na proposição de novos rumos
educacionais (NUNES, 2001; MONARCHA, 1997; CUNHA, 1999, 2005). Estes estudos
indicam que, sob a adesão aos propósitos renovadores, os sentidos da inovação foram
construídos em diferentes contextos de recepção e de interpretação.
Inserindo-se nessa temática, o presente artigo focaliza a circulação das concepções
educacionais vinculadas ao ideário da Escola Nova na educação brasileira, na perspectiva da
1 Este texto é constituído por resultados parciais do projeto de pesquisa Ideias em movimento, financiado pelo CNPq, na modalidade Produtividade em Pesquisa.
2 Professora Livre Docente em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora Adjunta do Departamento de Ciências da Educação a Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Biociências de Rio Claro. E-Mail: [email protected].
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relação que exerceram sobre as práticas pedagógicas. Seguindo as indicações de Michel de
Certeau (1994), objetiva-se analisar a correlação entre maneiras de pensar e modos de fazer,
a fim de compreender a complexa combinação entre práticas emergentes e residuais, que
caracterizam os períodos de transição. Considera-se ainda que as inovações ocorrem numa
rede de relações marcada por apropriações, recusas, divergências e consensos (conforme
apontado por DEPAEPE & SMEYERS, 2008; VIÑAO, 2001 e WILLIAMS, 1979)
equacionadas nas instituições e postas em circulação por meio de diferentes dispositivos,
principalmente os impressos pedagógicos.
Esse processo é discutido aqui tendo como fonte documental escritos de João Toledo,
intelectual que, em livros e artigos, procurou combinar referenciais teóricos emergentes com
as limitações institucionais então existentes e produziu “uma inovação infiltrada nos termos
de uma tradição” (CERTEAU, 1994, p. 50) que, nos processos culturais, caracteriza-se como
antítese da ruptura.
Para tanto, selecionamos na produção do autor, textos publicados entre 1919 e 1930 a
fim de compreender as complexas inter-relações estabelecidas entre tendências e variações
que antecedem a conquista da hegemonia em contextos de mudança educacional.
Caminhos da mudança
João Toledo obteve a certificação para o magistério em 1900 e iniciou suas atividades
profissionais como diretor de Grupo Escolar nas cidades de Serra Negra (em 1901) e Rio
Claro (1908), ambas localizadas no interior do estado de São Paulo. Em 1913, deixou a
direção de estabelecimentos de ensino elementar e passou a atuar como professor da Escola
Normal Secundária da cidade de São Carlos, ministrando as disciplinas Psicologia
Experimental e Pedagogia e Educação Cívica3. João Toledo fazia parte, portanto, do seleto
grupo de profissionais dedicados à execução de uma das mais propaladas ações do governo
republicano paulista: a difusão da instrução.
Para afiançar as esperanças depositadas no regime republicano, o estado de São Paulo
implementou política educacional assentada na ampliação das oportunidades educacionais e
na melhoria de sua qualidade, traduzida na criação de unidades escolares voltadas para a
educação primária e para a formação de professores. As iniciativas mais emblemáticas
situavam-se na cidade de São Paulo, capital do estado, e eram paulatinamente instaladas em
algumas cidades promissoras do interior, como a desenhar o futuro pretendido: organização
3 Análises da trajetória professional de João Toledo e de sua atuação no magistério do estado de São Paulo, podem ser encontradas em Pinheiro, 2009; Monarcha, 2011; Santos, 2005 e Frutuoso, 1999.
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graduada da instrução, suportes materiais diversificados e professores bem qualificados.
Rosa Souza assim sintetiza as realizações republicanas paulistas:
... foi o conjunto das medidas (construção de prédios escolares, expansão do número de escolas e vagas, elevação do nível de formação dos professores) que legitimou a percepção positiva dos educadores da época sobre os avanços do ensino público. Tratava-se de um sistema de ensino modelar visto que todas as instituições estavam organizadas nos moldes dos mais avançados processos pedagógicos (SOUZA, 2009, p. 30).
Inserida nesse conjunto de iniciativas, a Escola Normal Secundária de São Carlos, foi
construída entre 1913 e 1916 e era devidamente equipada com “Gabinetes de Física, de
Ciências Físicas e Naturais, de Química, uma ampla biblioteca, uma sala para o Museu
Escolar e um Gabinete Odontológico” (NERY, 2011, p. 34), bem como um Gabinete de
Psicologia Experimental. O cuidado dispensado às suntuosas instalações era estendido à
composição do corpo docente, pois para lá foram nomeados jovens professores que
implementaram realizações similares àquelas que distinguiam a Escola Normal da capital,
tais como: a criação do Grêmio Normalista; a publicação de um periódico, no caso a Revista
da Escola Normal de São Carlos e a realização de eventos cívicos e educacionais que
ampliavam seu raio de influência e visibilidade, angariando prestígio para a instituição e para
seus profissionais.
Pode-se dizer, portanto, que a mudança da direção do Grupo Escolar para a docência
na Escola Normal Secundária implicou, para João Toledo, ascensão na carreira e maior
destaque na rede de sociabilidade profissional, quer pela seletividade do recrutamento, quer
pela possibilidade de amplificação de sua atuação (SIRINELLI, 1998). A Revista da Escola
Normal de São Carlos, criada em 1916 e destinada à publicação de iniciativas e proposições
do corpo docente, constituiu veículo para que ele pudesse, simultaneamente, participar do
debate educacional em curso e contribuir para configurá-lo.
Quando João Toledo iniciou suas atividades como professor da Escola Normal, já
despontavam problemas que se agravariam nos anos seguintes, entre eles, o fato de que a
expansão de vagas na escola primária e no curso Normal se dava num ritmo mais lento do
que o crescimento da demanda, impondo ajustes nas expectativas republicanas. Além disso,
de acordo com o Anuário Estatístico do estado de São Paulo, no ano de 1913 era grande a
diferença entre o número de crianças matriculadas e o número de crianças que frequentavam
efetivamente a escola, indicando alto percentual de desistência e reprovação. A política para a
formação de professores também avançava pouco, pois estavam em funcionamento no estado
de São Paulo três Escolas Normais Secundárias – uma na capital e as outras duas nas cidades
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de Itapetininga e São Carlos – e outras sete Escolas Normais Primárias, que ofereciam
formação profissional mais restrita.
Essas dificuldades não escapavam ao autor e tornaram-se objeto de suas reflexões. Até
1922 publicou 12 artigos na Revista da Escola Normal de São Carlos4 e neles, a formação de
professores era tema central relacionado ora ao nacionalismo, ora ao combate ao
analfabetismo, mas sempre perspectivado pelos aspectos práticos do ensino.
Em dois artigos publicados no ano de 1919 – Aprendizado Ativo (I e II) – João Toledo
criticou a instrução oferecida nas escolas públicas argumentando que sua melhoria não se
limitava à abertura de mais vagas, mas deveria incidir também sobre a qualidade do ensino,
cuja consecução não dependeria apenas da simplificação dos programas ou da ampliação dos
anos de escolaridade.
Para o autor, a baixa qualidade estava relacionada ao fato do ensino ministrado nas
escolas elementares basear-se na passividade do aluno e amparar-se nos processos de
memorização, produzindo apenas “sabedoria verbal” que se esgota na repetição: “memória,
livros e apontamentos – eis tudo” (TOLEDO, 1919 a, p. 41). Para reverter esse quadro,
professores e poder público deveriam assentar as bases da aprendizagem num ensino que
pusesse “a criança em ação, movendo-se no meio de objetos, tocando-os, examinando-os,
manuseando-os e, ao mesmo tempo, pensando, induzindo, apenas guiada pelo mestre e
nunca ensinada por ele” (TOLEDO, 1919 a, p. 42, grifo do autor).
Na mudança proposta pode-se perceber o sopro renovador que entrava em circulação
preconizando o protagonismo dos alunos no processo de aprendizagem. Na junção elaborada
pelo autor, Pestalozzi é invocado para afirmar a necessidade de ensinar as “coisas antes das
palavras”, e é corroborado por Payot que advoga a necessidade de desenvolver a observação,
a capacidade de julgar e de raciocinar; John Dewey é citado para redirecionar essas
habilidades e justificar que o pensamento “surge da necessidade de refletir sobre o melhor
meio de dominar uma dificuldade qualquer encontrada, e assim conduz o indivíduo a fazer
planos, a projetar mentalmente o resultado a ser alcançado e decidir sobre os passos
necessários e sua seriação em ordem” (TOLEDO, 1919a, p. 48).
4 Durante sua permanência na Escola Normal Secundária de São Carlos, João Toledo publicou na Revista os seguintes artigos: Linguagem (1916); Evolução e Pedagogia (1917); A escola brasileira (1917); Hereditariedade e educação (1918); Nossa gente (1918); Aprendizado ativo (I) (1919); Aprendizado ativo (II) (1919); Os ideais nacionais e as escolas elementares (1920); Bases para a elaboração e execução de um programa de história em nossas escolas primárias e normais (1920); D. Pedro através do sentimento (1921); Introdução aos programas de psicologia, pedagogia e metodologia das escolas normais paulistas (1921) e Sugestões e programas para o ensino de francês nas escolas elementares, complementares e normais (1922).
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Leitor aplicado de diferentes vertentes, João Toledo criva a literatura de acordo com
seu potencial para provocar mudanças nas práticas pedagógicas e, por meio delas, melhorar a
qualidade do ensino. As diferenças existentes entre as concepções teóricas adquirem pouca
relevância uma vez que a referência aos autores, além de fortalecer o argumento, resulta num
quadro explicativo no qual o elemento novo, amparado em John Dewey, por exemplo, é
explicado como evolução e melhoria das prescrições já existentes.
Na segunda parte do artigo, publicada no mesmo ano, João Toledo focaliza
especificamente o método de ensino, isto é, “o ponto de convergência de todos os estudos
pedagógicos”, pois, “o modo de apresentar uma lição a criança, bem como o tempo
apropriado ao estudo da mesma são questões essenciais de pedagogia” (TOLEDO, 1919b, p.
30).
Métodos e procedimentos de ensino, segundo o autor, decorrem do conhecimento
sobre a natureza infantil e sobre as finalidades sociais e as contribuições de Herbart,
cientificamente elaboradas, alargam as possibilidades da iniciativa dos mestres; na mesma
direção, as explicações de Claparède sobre o espírito infantil concedem primazia ao interesse,
tendência biológica fundamental, que deve ser sistematizada e coordenada na escola para
ampliar as bases aperceptivas. Essas indicações sustentam as diretrizes gerais a serem
adotadas no ensino: “nosso ponto de partida será – o fácil, o concreto, o próximo, o todo, o
particular, o que é mais ou menos conhecido; e caminharemos para o difficil, o abstracto, o
remoto, as partes, o geral, para o que é desconhecido” (TOLEDO, 1919b, p. 43).
Tais diretrizes são, a seguir, objetivadas na sequência que deve presidir o trabalho do
professor (ensino) e a aquisição de conhecimento pelo aluno (aprendizagem): preparação e
apresentação do novo conteúdo, comparação entre o já sabido e o conhecimento novo,
generalização para outros fatos e aplicação do que foi aprendido a novas questões.
Criando uma simbiose entre procedimentos didáticos, o autor explicita por meio de um
neologismo sua adesão aos passos formais metodológicos criados por Herbart. Segundo ele,
os leitores “notam logo que também eu herbartizo largamente, como o faz todo o mundo
pedagógico contemporâneo. O egrégio mestre já dominou os países mais avançados em
civilização e invade agora as nossas escolas, abrindo a professores uma vereda nova e
convertendo em prazer para os alunos o que outr’ora lhes foi pesado encargo” (TOLEDO,
1919b, p. 43, grifo do autor).
Nessa explicação estão reunidas indicações facilmente identificadas com as lições de
coisas, um dos símbolos da modernidade metodológica republicana, valorado desde as
décadas finais do século XIX. No entanto, João Toledo recorre à John Dewey para sustentar
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que esses passos são coerentes com a natureza infantil e que a escola deve ser uma sociedade
em miniatura. Os passos formais de Herbart, apropriados a partir da leitura de um de seus
maiores divulgadores, Charles de Garmo, são associados às proposições de John Dewey que,
no cenário educacional norte-americano constituíam tendências opostas (cf. em NULL &
RAVITCH, 2006). Na elaboração do autor, novamente, o antagonismo entre vertentes
educacionais é eliminado na busca da eficiência da instrução. No detalhamento da prescrição
metodológica prevalecem procedimentos já conhecidos pelos professores combinados a
objetivos educacionais que preconizam a renovação.
As preocupações expressas por João Toledo nesses artigos dialogavam com problemas
educacionais de difícil solução. Em 1920, um recenseamento escolar5 tornou evidente que o
sistema então mantido pelo poder público estadual não atendia à demanda e que deveriam
ser ampliadas as vagas e modificados os programas e métodos de ensino. “O recenseamento
que se ultimou, imperfeito necessariamente, acusa o número espantoso de 407.083 crianças
entre 7 e 12 anos de idade que não sabem ler” (DORIA, 1923, p. 58), e marcava, portanto, a
grande distância entre as aspirações e as realizações republicanas transcorridas três décadas
de sua implantação.
Nesse cenário de dificuldades, João Toledo deixou a Escola Normal Secundária de São
Carlos, em 1921, sendo nomeado professor de Prática Pedagógica e Diretor da Escola Normal
de Campinas (cidade mais próspera e mais próxima à capital), permanecendo pouco tempo
no cargo, pois em 1925 passou a ocupar a função de inspetor de ensino. A produção de João
Toledo, certamente, contribuiu para angariar “uma certa capacidade de ressonância e de
amplificação, noutros termos, um poder de influência” (SIRINELLI, 1998, p. 261) que foi
objetivada na ascensão funcional e na autoridade própria do novo cargo.
Entre as atribuições do inspetor de ensino estavam a fiscalização do trabalho realizado
por diretores e professores, a verificação dos recursos materiais e pedagógicos existentes, a
participação na elaboração dos programas e na escolha de livros didáticos. Além de aulas-
modelo, palestras e conferências (recursos utilizados pelos inspetores para disseminar
práticas mais eficientes entre os professores), João Toledo alargou a repercussão de suas
proposições com a publicação de diferentes livros para uso nos cursos de formação de
5 Trata-se de recenseamento organizado por Sampaio Doria ao assumir o comando da educação paulista. Frente ao dilema de “alfabetizar 50% com a dádiva de mais algumas noções, e alfabetizar o total sem esta dádiva, o bem do povo se inclina pela última alternativa” (DORIA, 1923, p. 21). Sampaio Doria desencadeou reforma da educação que reduziu o ensino primário de 4 para 2 anos, desdobrou os turnos das escolas para ampliar a oferta de vagas, enfatizou a necessidade da educação moral e cívica, reorganizou o sistema de inspeção escolar por meio da criação das Delegacias Regionais de Ensino e concedeu autonomia didática aos professores na escolha de livros didáticos e métodos de ensino (SÃO PAULO, 1920).
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professores. Esses manuais eram vinculados a disciplinas específicas do currículo, valiam-se
e contribuíam para a expansão do mercado editorial profissional e constituíam veículos
propícios para uma exposição mais densa e abrangente dos pontos de vista do autor.
A primeira edição do livro Escola Brasileira, que repete o título de um artigo, foi
publicada em 1925 (em 1929 e 1932 saíram a segunda e a terceira edições, respectivamente,
conforme informações de SANTOS, 2005), e é indicada para uso na disciplina Pedagogia, dos
Cursos Normais. Nele, são priorizadas as questões doutrinárias, pois “a solução prática da
correlação de estudos é da esfera exclusiva da didática; à pedagogia geral cumpre apenas
definir o problema e salientar suas vantagens sobre o sistema oposto em que as matérias
guardam entre si inteira independência” (TOLEDO, 1925, p. 303).
Após o índice da obra é apresentado um Plano-Programa para a compreensão da
educação do ponto de vista brasileiro, alinhando-se às discussões sobre a nacionalidade e a
regeneração pela educação, temática com forte presença no contexto do período (cf. em
CARVALHO, 1989 e 1998; NAGLE, 1974 e BOTO, 1990).
Nessa obra, além de reiterar a marcha do aprendizado e a importância das operações
dos sentidos descritas nos artigos já citados, há um capítulo dedicado à aquisição de
experiências e ao desenvolvimento do interesse do aluno, expressões caracterizadoras da
renovação pedagógica, assim explicadas pelo autor: “Nas experiências que a própria criança
realiza, estão os meios de seu preparo para a vida. O mestre não as substitue, quaisquer que
sejam sua arte e seu programma. Pode ele conduzir o aluno às fontes do conhecimento, mas
não o pode obrigar a beber, nem pode beber por ele” (TOLEDO, 1925, p. 216).
E em outro trecho reafirma que: “Só o aprendizado ativo é fonte de experiências reais,
porque aí o próprio esforço do aluno impulsiona suas atividades; e estas, uma vez em
movimento, obedecem á atração do interesse crescente, que, nos pequeninos, se aviva pelo
exercício dos sentidos e aumenta com ele” (TOLEDO, 1925, p. 216).
Comparadas com as proposições dos artigos aqui analisados, verifica-se que nessa obra
os passos formais de Herbart não foram enfatizados e que na fundamentação conceitual
foram atentamente incorporados alguns conceitos que começavam a ganhar força na cena
pedagógica estrangeira, tais como a experiência e o interesse do aluno como fatores
importantes no processo de ensino. No âmbito das práticas, no entanto, predomina no livro a
recomendação de procedimentos formais já conhecidos. O autor indica ao professor o uso da
arguição, seguindo as seguintes regras: a pergunta deve ser dirigida para toda a classe e, após
uma pausa, deve ser chamado uma aluno para responde-la; se este aluno não souber a
resposta, outro deve ser chamado sem que a pergunta seja repetida (e, se três ou quatro
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alunos não souberem responder, torna-se evidente que ela foi mal formulada); a primeira
resposta dada não deve ser repetida pelo mestre e pode ser melhorada por outros estudantes
escolhidos aleatoriamente.
Entre as mudanças que considera necessárias para a melhoria da escola estão a
homogeneização das turmas escolares organizando-as por idade e pela semelhança das
condições familiares e, quanto ao conteúdo, reafirma que o ensino na escola elementar deve
continuar priorizando a leitura, a escrita, o cálculo, a geografia, a história, o desenho e as
noções comuns que, juntos, propiciam a formação do caráter e dos hábitos necessários à
regulação da vida social.
Além dos novos ventos pedagógicos, importam à João Toledo a exequibilidade das
mudanças preconizadas pelas novas proposições. Na interpretação produzida, o critério
determinante parece ser o conhecimento do autor sobre as condições institucionais,
adquirido tanto no exercício do magistério quanto em sua fiscalização e orientação. Em suas
obras estão presentes o empenho intelectual para a compreensão das inovações pedagógicas
em circulação, mas também o esforço para torna-las praticáveis. Nessa apropriação seletiva
da teoria, a sintaxe educacional é alinhada ao pensamento renovador sem que sejam
abandonados procedimentos metódicos consagrados pelo uso, isto é, sem provocar rupturas
com as práticas já estabelecidas.
Diferentes percursos
No final da década de 1920, a renovação parcial e gradual das práticas pedagógicas
exemplificada nas proposições de João Toledo é confrontada por outras estratégias
destinadas a amplificar o alcance das mudanças pretendidas na educação. Após a publicação
de Escola Brasileira, em 1925, a ocorrência de diversos eventos deu visibilidade a ações que
se tornaram polos irradiadores de influência criando-se lugares de instauração do novo,
valendo-se de diferentes dispositivos. Nesse embate, tornaram-se mais explícitos os
diferentes sentidos adquiridos pela inovação, assim como as diversas possibilidades
projetadas para articular maneiras de pensar e modos de fazer.
Em 1926, Fernando de Azevedo realizou, a pedido do jornal O Estado de São Paulo, um
inquérito para avaliar a educação pública coletando opinião de eminentes educadores.6 O
meio jornalístico, a formulação hábil das questões e as sínteses comentadas do autor
6 Após a publicação no jornal, essas matérias foram reunidas no livro A educação pública em São Paulo. Problemas e discussões. Inquérito para o Estado de São Paulo (AZEVEDO, 1937). Em 1957, o livro foi novamente publicado com o título A educação na encruzilhada (AZEVEDO, 1957)
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conferiram acidez ao resultado da avaliação e potencial para sua generalização.
Especificamente sobre o ensino primário e normal foram apontadas a rigidez dos currículos e
dos programas, a ausência de vínculo com o meio social e com a vida e a desarticulação entre
ramos e graus de instrução, indicadores contundentes, segundo o coordenador do inquérito,
da necessidade de reforma.
As iniciativas em prol da renovação extrapolaram os limites estaduais, deslocando-se a
caixa de ressonância das mudanças para a então capital do país – o Rio de Janeiro. Por meio
de reformas em instituições, do investimento em reuniões de associações profissionais com
grande repercussão e do lançamento de coleções pedagógicas, a disseminação das novas
concepções foi amplificada. Em 1927, Lourenço Filho, um dos professores consultados no
Inquérito acima referido, lançou o primeiro volume da Biblioteca de Educação, coleção
dedicada aos conhecimentos que possibilitariam a formação de uma nova cultura pedagógica
do professorado. A Associação Brasileira de Educação deu início à realização das
Conferências Nacionais (analisadas por CARVALHO, 1998) e Fernando de Azevedo assumiu
a Diretoria da Instrução Pública do Distrito Federal e reestruturou a Escola Normal de modo
a criar um ambiente educativo propício ao aprimoramento da prática docente, implementar
os princípios científicos por meio da pesquisa e organizar o currículo para oferecer sólida
formação geral aliada aos aspectos técnicos (cf. Em VIDAL, 2001).
Uma das iniciativas mais emblemáticas para a definição dos novos rumos educacionais
então pretendidos foi a publicação, em 1930, do livro de Lourenço Filho Introdução ao
estudo da Escola Nova que explicitava a necessidade de mudança na mentalidade do
professorado como condição para a adoção de bases científicas no processo educativo.
Carvalho e Toledo assim sintetizam os propósitos dessa publicação:
o livro pode ser lido como dispositivo de luta pela hegemonia doutrinária no campo da pedagogia no conturbado cenário político dos anos iniciais da década de 1930. Tratava-se de pôr em cena, seletivamente, em linguagem acessível e de modo sistematizado, os novos sistemas de educação renovada, exibindo-lhes os fundamentos e fixando-lhes o sentido, de modo a demarcar sua diferença relativamente à pedagogia tradicional, mas também torná-los palatáveis a seus mais ferrenhos críticos. […] o livro é dispositivo eficaz de fixação do sentido do novo, no cipoal das proposições pedagógicas que, concorrentemente, reivindicavam para si o estatuto de pedagogia da escola nova ou da escola ativa (CARVALHO E TOLEDO, 2006, p. 58).
Nessa obra, as bases educacionais são apresentadas como tributárias de um conjunto
de conhecimentos então recentes, provenientes da história, da biologia, da psicologia e da
sociologia. Estão aí articuladas a concepção de aprendizagem pautada nas variações do
desenvolvimento físico e mental da criança, os procedimentos e técnicas mais propícios para
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a mudança de comportamentos e os resultados esperados com sua aplicação. Nessa
interpretação, os métodos de ensino decorrem da reflexão filosófica e não consistem na
aplicação de um conjunto metódico de regras previamente determinadas, embora estejam
descritas algumas iniciativas experimentais e, entre elas, destacam-se as propostas de Maria
Montessori, de Ovide Decroly e de William Kilpatrick. Entretanto, as formulações
metodológicas de Montessori são criticadas por limitarem-se ao uso de material didático
específico e os centros de interesse de Ovide Decroly por requererem professores com
preparo especial; à Kilpatrick é atribuído o fato de ter aperfeiçoado as intervenções didáticas
decorrentes das proposições de John Dewey, principalmente o ensino baseado no sistema de
projetos. Lourenço Filho descreve também iniciativas pontuais baseadas nesses sistemas que
foram desenvolvidas em escolas brasileiras e, da exposição, pode-se depreender que
Kilpatrick teria captado com mais acuidade a flexibilidade requerida pelos propósitos que se
pretendia alcançar.
Essa perspectiva de transformação pedagógica, que consiste em mudar as práticas por
meio da mudança da mentalidade do professorado, e que, por força dos dispositivos e das
posições que ocupam no sistema educacional seus porta vozes, foi se fortalecendo ao longo
dos anos de 1930, evidencia a adoção de uma estratégia diferente daquela veiculada nas obras
de João Toledo, centrada primordialmente na introdução de inovações graduais nas práticas
e nos modos de ensinar como indicadores da renovação. A coexistência das várias tendências,
registrada na literatura destinada aos professores, ilustra a complexa disputa de significados
travada entre variações engajadas na mesma tendência reformadora.
Participante ativo de uma conjuntura que demandava mudanças educacionais, João
Toledo explicitou tendência divergente sem, contudo, romper com o grupo de educadores
que assumiu os postos com maior poder de influência política no período e sem abandonar a
disputa pelos significados da renovação. Em meio a reformas, ao adensamento do volume de
publicações e ao acirramento da disputa por significados, passou a exercer a função de
Assistente Técnico do Ensino Normal no Serviço de Assistência Técnica e nesse cargo
continuava a traduzir, em termos metodológicos, possibilidades para mudança nos modos de
ensinar.
No prolífico ano de 1930 publicou o manual Didáctia (nas Escolas Primárias) e nessa
obra, destinada ao desenvolvimento dos programas e da metodologia de ensino para a escola
primária, reafirma convicções e detalha procedimentos.
O título e a organização do conteúdo, apresentados no Índice do livro, expressam
claramente o propósito de intervenção no âmbito das práticas dos professores, dada a
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referência recorrente aos programas, aos métodos e aos processos de ensino aplicados a cada
um dos conteúdos presentes no currículo da escola primária.
No primeiro capítulo, sugestivamente denominado de “Novo rumo didático”, João
Toledo afirma que a questão central para a educação é como educar e não como ensinar e,
com esse objetivo, devem perder a primazia dois elementos da escola tradicional: o programa
rigidamente estabelecido e a transmissão do conhecimento como responsabilidade do
professor. A nova escola, segundo o autor, propõe duas orientações fundamentais “a criança é
o centro das preocupações educativas” e “o próprio aluno realiza seu aprendizado” (TOLEDO,
1930, p. 11), amparado pelo mestre. Nessa perspectiva, o programa deve ser considerado um
instrumento a serviço do desenvolvimento do aluno que elabora os conhecimentos por meio
de observações, comparações e análises, tendo como objetos as coisas da escola, os arredores
e as situações propícias à observação.
Compartilhando os termos gerais do movimento reformador, o autor, no entanto, não
adota a ruptura como estratégia para a mudança pois entende que todas as realizações
educacionais do estado de São Paulo desde o início do período republicano, são esforços,
embora lentos, para a construção desses novos rumos e, com sinceridade experiente, afirma
que “como todas as transformações sociais, nossa passagem, do que fazíamos para o que
devemos fazer, reclama tempo, e, além de tempo, reclama preparação do professorado e da
mentalidade dos pais, adaptação de nossas instalações escolares e remodelação do material
de ensino” (TOLEDO, 1930, p. 13). Quanto ao professorado, deposita confiança em sua
dedicação e considera a transição uma etapa necessária pois, “mudar de rumo agora e
assumir atitudes diferentes, correspondem a abandonar velhos hábitos e iniciar novos, em
um mesmo gênero de atividade, o que toda gente sabe que é difícil” (TOLEDO, 1930, p. 14).
Para o autor, os novos procedimentos são passíveis de tempo, mas não de discussão e,
integrado nessa empreitada, oferece aos estudantes do Curso Normal e aos professores em
exercício, alternativas para facilitar a etapa de transição entre velhos e novos modos de
ensinar.
A estratégia avessa à ruptura é particularmente exemplificada no manual Didáctica
(nas Escolas Primárias) para o desenvolvimento do programa de Noções Comuns que
“enfeixa coisas em cujo contato, mais ou menos constante, as crianças se acham, e também
fenômenos naturais e fatos sociais ocorrentes no meio em que elas vivem” (TOLEDO, 1930,
p. 61). Apresentado como primeiro capítulo do livro, esse conteúdo, que já estava presente
nos programas escolares e remonta às práticas intuitivas, recebe tratamento metodológico
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renovado ao ser concebido como propício para o desenvolvimento de centros de interesse e
do ensino globalizado.
Nesse arranjo curricular devem ser priorizadas a nutrição, a vestimenta e a habitação
que, por serem necessidades humanas oferecem fatos que se tornam a base para o
conhecimento subsequente. Depois desses centros vêm aqueles ligados aos fenômenos
naturais e aos animais ligados à vida humana, seguidos daqueles referentes aos valores e
relações com os outros e, por fim, as grandes ocupações e os benefícios do trabalho.
Esse conteúdo, segundo o autor, de excepcional importância, “diz respeito à adaptação
do educando às condições gerais do meio físico” (TOLEDO, 1930, p. 111) e para ele
convergem informações provenientes da zoologia, da botânica, da física, da química, da
higiene e da moral sem, no entanto, estarem discriminadas como disciplinas. Além de estar
subordinado aos interesses e necessidades infantis, o autor articula o programa de Noções
Comuns com atividades de linguagem, escrita e leitura.
Orienta que quando não for possível trabalhar exclusivamente por meio de observação
direta “substitua o mestre a natureza e os produtos industriais pelas suas palavras; quando
não o for, lance mão de gravuras, de amostras, de comparações com animais e cousas já bem
conhecidas e ... passe um pouquinho mais rápido sobre estes itens“ (TOLEDO, 1930: 74). Em
outra situação, incentiva o professor a não se deixar levar “pelas tentações do mais fácil, que
o mais fácil é conversar acerca do objeto da lição; pratique alguma coisa, faça que os alunos
pratiquem vendo e fazendo, que uma prática vale mais que um longo discurso. Não se
aprenda pelos ouvidos o que tem de ser aprendido pelas mãos e pelos olhos” (TOLEDO,
1930: 79/80, grifo do autor).
O autor esclarece que os centros de interesse descritos para cada uma das séries já
estão presentes no programa da escola primária, embora discriminados como tópicos de
diferentes disciplinas; o tratamento metodológico proposto afiança que toda lição pode ser
abordada por mais de uma perspectiva e que os conhecimentos devem crescer em espiral
quer pela justaposição de noções novas às já existentes, quer pela seriação escolar.
O léxico flexível utilizado pelo autor conjuga elementos reconhecíveis e imposições do
contexto inovador. Trata-se, portanto, de uma globalização parcial (se a expressão for
possível) presidida pela ordem psicológica e com círculos de atividades voltados para as
exigências da vida prática que, no entanto, preserva as disciplinas escolares já estabelecidas,
descritas nos capítulos subsequentes do manual. Na exposição dos programas das matérias
do curso primário estão presentes os objetivos a serem alcançados, o conteúdo a ser
desenvolvido em cada uma das séries e o método a ser seguido, com farta exemplificação de
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procedimentos e situações. Os materiais a serem usados pelos professores, os exercícios a
serem feitos pelos alunos, os destaques e as ênfases em atendimento ao programa, são
apresentados simultaneamente. Fazendo referências a situações rotineiras na sala de aula, o
autor se aproxima do leitor amparado em sua experiência no magistério para selecionar as
situações propícias para a inovação e de sua posição na hierarquia para convencê-lo.
Publicados no mesmo ano, Introdução ao Estudo da Escola Nova e Didática (nas
escolas primárias), explicitam diferentes possibilidades para realizar as mesmas pretensões.
O primeiro, advogava a necessidade da mudança de mentalidade do professorado e ruptura
com as práticas então em vigor; o segundo advogava um processo de mudança gradual nas
práticas docentes atribuindo-lhes um sentido de progresso e aperfeiçoamento.
A estratégia defendida por João Toledo – mudança gradual das práticas pedagógicas –
é percebida em sua própria obra aqui analisada. Herbartiano convicto a princípio, vai aos
poucos incorporando novos procedimentos – os centros de interesse, por exemplo – de modo
a dar coerência ao léxico renovador, pano de fundo incontornável na conjuntura educacional
do período. Tendo ingressado na profissão no auge das mudanças promovidas pelo governo
republicano no estado de São Paulo que se apresentavam como modelares e símbolos da
modernização do país, atuou na educação tempo suficiente para ver vê-las criticadas e reagir.
Como aponta Marta Carvalho (2002), trata-se, ao mesmo tempo, de defender o modelo
escolar paulista contra os ataques da Escola Nova e distanciar-se da escola tradicional.
A forma adotada – manuais oferecidos aos professores com prescrições detalhadas para
a prática de ensino – revela o apego aos “velhos rumos”. No entanto, organizar o conteúdo
das noções comuns em centros de interesse exemplifica a possibilidade de inovar no método,
sem que o conteúdo conhecido pelos professores seja desqualificado. A produção de João
Toledo exemplifica a força do que Raymond Williams (p. 144) denominou de tradição
seletiva, isto é, quando os elementos residuais constituídos no passado ainda estão operantes
no processo cultural como modeladores do presente.
Entre divergências e consensos: a renovação das práticas pedagógicas
Nos anos de 1930, as propostas para a renovação educacional ganham força,
visibilidade e operacionalização. Foi lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
as lideranças escolanovistas assumem postos chave no sistema educacional e desencadeiam
reformas de grande impacto pedagógico, organizacional e político. A partir dos Institutos de
Educação, então criados, as práticas condizentes com a nova concepção deveriam ser
irradiadas para todo o sistema educacional e, nessa estratégia, a produção de impressos
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(coleções, periódicos, manuais didáticos, relatórios, entre outros) ampliou sua função
norteadora.
Na disputa entre tendências, “os propagandistas da chamada pedagogia da escola nova
reivindicam o monopólio do novo e do moderno, produzindo, pejorativamente, os saberes
pedagógicos concorrentes como pedagogia tradicional” (CARVALHO, 2012, p. 107) e, nessa
disputa entre concepções, as proposições de João Toledo foram consideradas pelo grupo
hegemônico como tradicionais (conforme detalha o estudo de PINHEIRO). No entanto,
permaneceram em circulação, atestando as contradições e conflitos inerentes ao processo de
mudança cultural, composto tanto por concepções doutrinárias quanto pela inovação nas
práticas.
A atuação professional de João Toledo prosseguiu nos anos seguintes7 tendo ocupado
por um curto período o cargo de Diretor Geral do Ensino e participado da elaboração do
Código de Educação, em 1933, dispositivo legal que introduziu oficialmente a concepção
escolanovista no estado de São Paulo.
Em 1934, João Toledo publicou o manual Planos de Lição. Noções comuns, que reúne
prescrições detalhadas para o desenvolvimento do programa de Noções Comuns, organizado
na forma dos centros de interesse. Trata-se de uma síntese do livro anterior, do qual são
eliminadas as reflexões teóricas e ampliadas as descrições dos procedimentos didáticos. O
autor justifica essa publicação argumentando que, embora os programas coercitivos não
atendam aos interesses de alunos e escolas específicos (como preconizavam as diretrizes
escolanovistas), são indispensáveis para garantir as finalidades de cada disciplina, indicar as
atitudes mentais a serem desenvolvidas e ordenar o horário escolar.
Os manuais de João Toledo, modulados pela crescente especialização profissional do
autor, são expressões autorizadas das discussões pedagógicas do período e, por meio delas,
revelam-se a lógica e as dificuldades presentes nessa construção. Sem abrir mão dos
programas prescritos, organização racionalizada e propícia ao controle do trabalho docente
(exigência dos cargos por ele ocupados no sistema), o autor elabora uma interpretação da
pedagogia renovada que é expressa em seus aspectos doutrinários por meio da incorporação
de ideias sínteses e prescreve ensaios das novas práticas nos conteúdos secundários do
currículo. Desde que preservados os horários específicos para o ensino de leitura, escrita e
cálculo pode-se experimentar o método globalizado e os centros de interesse com as Noções
7 nota com os dados da carreira Evangelista e outras
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Comuns e a Geografia, de modo a concretizar uma das principais diretrizes do movimento
renovador – a ligação entre a escola e a vida com ênfase no ambiente da criança.
As pretensões renovadoras de João Toledo, bem mais modestas do que aquelas do
grupo hegemônico, parecem ser coerentes com as condições presentes nas escolas paulistas,
dado o contraste existente entre as grandes as grandes discussões e as pequenas mudanças
na escola primária desse período, conforme indicado por Rosa Souza:
No território da sala de aula, o sopro da renovação se insinua lentamente. O ensino globalizado, os centros de interesse e o método de projetos são, muitas vezes, tímidos ensaios. A diretoria do ensino incentiva delegados e inspetores que sugerem, orientam, dizem aos diretores e professores como fazer. A prescrição de novas práticas se impõe insistentemente. Mas há tantas dificuldades a debelar! As poucas imagens de salas de aula (universo raramente fotografado talvez porque entretecido continuamente nas tramas do cotidiano) não destacam as atividades inovadoras, ao contrário, perenizam os aspectos mais simbólicos constitutivos da vida escolar. (SOUZA, 2006: 172)
A forma do discurso sobre as novas concepções é o elemento mais revelador do tipo de
apropriação feita e da preponderância de antigas práticas e concepções: o discurso dos livros
destinados aos professores é organizado na forma de lições a serem aprendidas, de regras a
serem obedecidas, de sequências a serem adotadas. O significado das novas concepções,
portanto, é determinado por práticas já consolidadas apoiadas no arranjo curricular
existente.
Intelectuais como João Toledo exerceram função de mediadores (conforme definição
de Sirinelli, 1998) pois ocupam uma posição específica no campo educacional: são leitores de
bibliografia especializada e de conjunturas, compõem um discurso que incorpora as palavras-
chave da teoria, adotando as expressões caracterizadoras de determinadas concepções e, num
contexto de inovação, contribuem para divulgá-las. A produção de manuais didáticos e os
processos formativos institucionais são entrelaçados nos movimentos do autor: são
professores que atuam na formação de professores, mas também orientam
institucionalmente o trabalho docente pela ocupação de cargos que é referendada com a
produção do manual, que também consolida uma área de conhecimentos institucionalizada.
Nos textos produzidos, são encontradas referências das práticas estabelecidas e daquelas
emergentes, cuja compatibilização resulta na atribuição de significados para as novas
tendências que surgem no cenário intelectual e, por isso, têm influência decisiva no
desenvolvimento da cultura pedagógica, contribuindo para que determinadas proposições
sejam incorporadas por um grande contingente de leitores.
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Ao estabelecer modos de emprego, as prescrições fabricam sentidos que combinam
modos de pensar com sua utilização e, além das sínteses teóricas, consideram a legislação e,
principalmente, fornecem aos professores um sentido de continuidade entre o que já fazem e
as inovações pretendidas, sem ameaçá-los com a necessidade de ruptura. Com esses
procedimentos assemelham a teoria ao já sabido e “criam lugares segundo modelos
abstratos” (CERTEAU, 1994: 92) a partir dos quais a inovação pode se concretizar e, assim,
configuram um novo repertório de conhecimentos.
As doutrinas funcionam como um estoque de referências que possibilita a esse leitor
especializado criar contextos de uso e concretizar a teoria em dois níveis: o primeiro deles é o
fornecimento de respaldo teórico para as atividades docentes e o segundo é a recriação da
teoria pela síntese de um conjunto de leituras e de autores que retira as concepções da
atemporalidade que lhe é própria, trazendo-as para o tempo presente. Essa síntese adota os
elementos comuns das diversas concepções e seleciona-as de acordo com seu ajustamento ao
contexto de uso que é balizado pela experiência.
Apropriando-se das referências contextuais e conjunturais, o autor elabora um produto
didático destinado a provocar mudanças no sistema, investido da autoridade proveniente da
posição que ocupa nesse mesmo sistema - dirigente e conhecedor do dia a dia escolar - que
lhe permite, ao mesmo tempo, acompanhar e afiançar a mudança.
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