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RSP 465 Camile Sahb Mesquita Revista do Serviço Público Brasília 57 (4): 465-487 Out/Dez 2006 Contradições do processo de implementação de políticas públicas: uma análise do Programa Bolsa Família 2003 – 2006 Camile Sahb Mesquita Introdução O Brasil, ao longo da sua trajetória histórica, alternou momentos de maior e menor centralização política. No período da redemocratização brasileira, ocorrido na década de 80, a reivindicação pela adoção de um modelo de políticas públicas descentralizado ecoava como solução para a ineficiência, a corrupção e a ausência de participação social resultantes da excessiva centralização decisória do regime militar. Havia identificação entre a luta contra o autoritarismo e a luta pela descentralização. A Constituição Federal de 1988, ao definir a redistribuição de recursos fiscais e de funções administrativas entre os três níveis de governo, ratificou e aprofundou a descentralização. Ao ampliar a parcela dos tributos federais automaticamente transferida para os governos subnacionais e dar, a esses últimos, autoridade tributária sobre impostos de significativa importância, expandiu expressivamente a autoridade de governadores e prefeitos sobre os recursos fiscais.

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Contradições do processode implementação de políticas

públicas: uma análisedo Programa Bolsa Família

2003 – 2006

Camile Sahb Mesquita

Introdução

O Brasil, ao longo da sua trajetória histórica, alternou momentos de maior e

menor centralização política. No período da redemocratização brasileira, ocorrido

na década de 80, a reivindicação pela adoção de um modelo de políticas públicas

descentralizado ecoava como solução para a ineficiência, a corrupção e a

ausência de participação social resultantes da excessiva centralização decisória

do regime militar. Havia identificação entre a luta contra o autoritarismo e a

luta pela descentralização.

A Constituição Federal de 1988, ao definir a redistribuição de recursos fiscais

e de funções administrativas entre os três níveis de governo, ratificou e

aprofundou a descentralização. Ao ampliar a parcela dos tributos federais

automaticamente transferida para os governos subnacionais e dar, a esses

últimos, autoridade tributária sobre impostos de significativa importância,

expandiu expressivamente a autoridade de governadores e prefeitos sobre os

recursos fiscais.

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À repartição da receita não se seguiuuma definição clara de competências eatribuições no texto constitucional. Almeida(1995) aponta que a Constituição estabe-leceu cerca de 30 funções concorrentesentre a União, os estados e os municípios,quase todas na área social. É nesse contextoque as relações intergovernamentaisganham relevância e a conformação fede-rativa brasileira exerce grande influência naimplementação de políticas sociais. Ainda,a realidade de escassez de recursos presentenas administrações públicas leva à necessi-dade de coordenação cada vez maior, emnome da eficiência, efetividade e eficácia.

O texto busca analisar a implemen-tação do Programa Bolsa Família noperíodo que vai desde a sua instituição, em2003, até 2006, à luz do pacto federativoestabelecido a partir de 1988, ressaltandoas contradições e avanços desse processo.O Bolsa Família é um programa nacional,que, para ser operado, precisa estabelecerestratégia de cooperação com as outrasesferas governamentais. Deve, no entanto,cuidar para não cair na armadilha dacooperação verticalizada, que acaba poresbarrar mais em subordinação do que emparceria, fenômeno já identificado naimplementação de outras políticas sociais.

Baseado essencialmente nas conclusõesdas pesquisas sobre o federalismo desen-volvidas por Fernando Luiz Abrucio1, otexto discorre sobre as condições necessáriaspara o funcionamento do pacto federativo.Em seguida, ainda apoiado nesse autor,caracteriza o modelo brasileiro, ressaltandoos efeitos das suas peculiaridades no desen-volvimento de políticas sociais. Por fim,analisa as relações intergovernamentais quese estabelecem no âmbito do ProgramaBolsa Família para a sua operacionalização,passando por um breve histórico dosprogramas de transferência de renda.

Federalismo: o desafio daautonomia e da interdependência

Falar sobre federalismo imediatamentenos remete à idéia de repartição de podere de autoridade, que deve estar ligada aum contrato garantido por sólidoarcabouço institucional, capaz de preservarparte dos interesses individuais, ao mesmotempo em que estabelece novas metas,agora comuns. A definição de DanielElazar, trazida por Abrucio (2002, p. 26),traduz exatamente esse princípio:

“o termo federal é derivado do latim“foedus” o qual (...) significa pacto.Em essência, um arranjo federal é umaparcela estabelecida e regulada por umpacto, cujas conexões internas refletemum tipo especial de divisão depoder entre os parceiros baseada noreconhecimento mútuo da integridadede cada um e no esforço de favoreceruma unidade especial entre eles”.

No Brasil, a exemplo de diversosoutros países, a federação está asseguradapela Carta Magna, inclusive como cláusulapétrea, não podendo, portanto, ser extintapor emenda constitucional. Isso, no entanto,não é suficiente para sustentar, no longoprazo, o contrato federativo, sendo impor-tante a existência de instituições fortes paraprotegê-lo, especialmente no que tange osprincípios da autonomia e da interdepen-dência que ele encerra.

A autonomia caracteriza-se pela nãocentralização2 do poder, ou seja, “peladifusão de poderes de governo entremuitos centros, nos quais a autoridade nãoresulta da delegação de um poder central,mas é conferida por sufrágio popular”(ALMEIDA, 1995, p. 3). Trata-se, pois, dereconhecer a legitimidade e a capacidade

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de autogoverno das esferas subnacionais.Abrucio (2006) lembra que o podernacional deriva de um acordo entre aspartes e que a formação de uma federaçãonão elimina direitos originários dospactuantes subnacionais, sejam estados oumunicípios, como no caso do Brasil. “Taisdireitos não podem ser arbitrariamenteretirados pela União” (ABRUCIO, 2006,p. 43). Diante dessa afirmação, o autorelenca os diversos instrumentos políticosque os governos subnacionais têm ao seudispor para defender seus interesses edireitos originários, quais sejam, a existênciade cortes constitucionais; uma segunda casalegislativa, como o Senado, que representaos interesses regionais; a representaçãoexistente na Câmara dos Deputados, naqual os estados menos populosos têmbancadas proporcionalmente maiores;e um processo decisório baseado emmaiorias qualificadas, implicando umabusca constante de consensos possíveis.

Desse modo, em toda federação, aautonomia dos governos subnacionais nãoé absoluta, nem poderia ser, já que issosignificaria não uma federação, mas, sim,uma confederação, da qual o exemplo maiscomum é a União Européia, que seconfigura como uma aliança entre naçõessoberanas para a execução de determinadoobjetivo comum. Trata-se, pois, deassegurar, além da autonomia, as relaçõesde interdependência entre os entesfederados. Apontam-se três desafios parao estabelecimento da interdependência,também citados por Abrucio (2005).

O primeiro é o caráter matricial dasfederações. No federalismo, a interde-pendência não é estabelecida em umaabordagem top down, isto é, a partir dedeterminações do governo central. Aliás,Abrucio esclarece que, em um modelofederalista, esse termo, governo central,

não é utilizado, mas, sim, União ou governofederal. Como dito anteriormente, osdireitos originários dos entes federadose os instrumentos disponíveis paraassegurá-los criam uma relação horizontalentre eles, em que se pese a existência dealguma hierarquia, como a prerrogativa dogoverno federal em manter o equilíbrio dafederação ou o forte grau de autoridadeque os governos intermediários possuemsobre os governos locais. Abrucio resume:

“em poucas palavras, processos debarganha afetam decisivamente as relaçõesverticais num sistema federal” (2005, p. 43).

O segundo desafio é a necessidade dechecks and balances entre os níveis de governo,cujo objetivo é a fiscalização recíprocapelos entes federados de modo quenenhum deles fique com poder além dopactuado e acabe com a autonomia dosdemais. Novamente, aqui, o que está

No ProgramaBolsa Família, opúblico alvo passoua ser a família comoum todo e não maisos indivíduosseparadamente. Ascondicionalidades,agora integradas,foram estendidas atodos os membrosdo grupo familiarbeneficiário

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presente é a preocupação em assegurar osdireitos originários e a autonomia.

Por último, e fundamental para aimplementação de políticas públicas, é odesafio da coordenação federativa,refletindo o compartilhamento de decisõese responsabilidades (shared decision making).É necessário ter em mente que um entefederado somente participa de uma políticase assim o desejar. “O dilema do shareddecision making surge porque é precisocompartilhar políticas entre entes federa-tivos que, por natureza, só entram nesseesquema conjunto se assim o desejarem”(ABRUCIO, 2005, p. 44).

Tendo em vista os princípios daautonomia e da interdependência,percebe-se que, uma vez estabelecido, opacto federativo dá início a uma série derelações intergovernamentais, que Abrucio(1998) chamou de jogo federativo, cujoobjetivo é encontrar uma solução deequilíbrio a fim de garantir a própriaexistência da federação. Esse jogo éregulado por mecanismos competitivose cooperativos.

A existência de mecanismos de competi-ção proporciona o estabelecimento decontrole mútuo do poder contra a domi-nância de um nível de governo sobre osoutros. Também acredita-se que a competi-ção é capaz de aumentar a responsividadedos governos, no sentido de satisfazer oscidadãos com políticas públicas de melhorqualidade. A lógica por trás desse pressu-posto é a mesma lógica do mercado. Ouseja, as chances de satisfação aumentamquando há um sistema de múltiplosgovernos competindo entre si.

Esse ponto é bastante controverso, emespecial quando se verificam os efeitos daadoção dessa lógica de mercado para aeqüidade. Interessante notar que o próprioAbrucio (1997, p. 25), em estudo sobre o

modelo gerencial da AdministraçãoPública, faz essa ressalva. Segundo ele,

“a unidade de serviço público queobtiver a melhor classificação nacompetição receberá provavelmentemais recursos (...) e portanto os mesmosconsumidores que o aprovaramtenderão a utilizar este serviçocontinuadamente. A premiação reflete,sem dúvida, um círculo virtuoso,saudável como técnica para tornar oEstado mais capaz de responder àsdemandas da população. Mas, poroutro lado, os equipamentos sociais quenão conseguirem as melhores avaliaçõesdos consumidores caminharão para umcírculo vicioso, ou seja, receberãomenos recursos, os seus funcionáriosnão terão incentivos financeiros e ficarãodesmotivados, e seus consumidorescontinuarão insatisfeitos”.

A crítica usual a esse modelo é que nemsempre é dado aos cidadãos o poder deescolha dos serviços a utilizar, pelo simplesfato da inexistência de alternativas. Acompetição, desse modo, não traz osefeitos desejados e, contrariamente, produzum jogo conhecido como “soma zero”.

Isto é, afirma Abrucio (1997, p. 25),“o equipamento social vencedor (aprovadopela população) no começo do jogo, ‘levatudo’ (takes all), ganhando todos os incen-tivos para continuar sendo o melhor. Já aunidade de serviço público que obtiver aspiores ‘notas’ dos consumidores, ‘perdetudo’, o que resultará indiretamente naaplicação de incentivos para que este equi-pamento social continue sendo o pior. Nestejogo, o maior perdedor é o princípio daeqüidade na prestação dos serviços públicos,transformando alguns consumidores emmais cidadãos do que os outros”.

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Além do jogo de soma zero, acompetição exarcebada pode levar ao queAbrucio (1998; 2002) denominou defederalismo predatório, que se manifesta demodo freqüente no Brasil, materializando-se, por exemplo, na guerra fiscal estabelecidaentre si pelos estados; no surgimentodesordenado de novos municípios3, quepulveriza os escassos recursos públicos ebeneficia as localidades de pequeno porteem detrimento daquelas maiores, nas quaisse verifica a ocorrência de problemas sociaismais graves; ou na transferência de custosde uma esfera de governo para outra4.

Por seu turno, a cooperação tambémtem lados positivo e negativo. Positi-vamente, Abrucio (2005) aponta a otimi-zação no uso de recursos comuns, comonas questões ambientais ou de ação coletiva,que cobrem mais de uma jurisdição(transportes metropolitanos e saneamentobásico, por exemplo); o auxílio a governosmenos capacitados ou mais pobres narealização de determinadas tarefas; e aintegração de políticas públicas comparti-lhadas. O autor ainda ressalta que o modelocooperativo contribui para elevar aesperança quanto à simetria entre os entesterritoriais, fator fundamental para oequilíbrio de uma federação. Negati-vamente, porém, deve-se atentar para umapossível uniformização das políticas,diminuindo o ímpeto inovador dos níveisde governo, enfraquecimento dos checksand balances intergovernamentais e dificul-dades para a responsabilização da adminis-tração pública (ABRUCIO, 2005).

Para que a interdependência exista eseja estabelecido um jogo competitivo/cooperativo saudável, espaços decoordenação fazem-se imprescindíveis.Abrucio (2005, p. 45-36) indica as prin-cipais estratégias para a realização dessacoordenação:

“A coordenação federativa poderealizar-se, em primeiro lugar, pormeio de regras legais que obriguem osatores a compartilhar decisões e tarefas– definição de competências noterreno das políticas públicas, porexemplo. Além disso, podem existirfóruns federativos, com a participaçãodos próprios entes – como os senadosem geral – ou que eles possam acionarna defesa de seus direitos – como ascortes constitucionais. A construção deuma cultura política baseada norespeito mútuo e na negociação noplano intergovernamental é outroelemento importante”.

Os elementos trazidos à tona nestaseção permitirão realizar, a seguir, umabreve análise das peculiaridades do modelofederativo brasileiro e o seu rebatimentono desenvolvimento de políticas sociais,notadamente de educação e saúde.

Até aqui, procurou-se esclarecer que,no Brasil, o contrato federativo está asse-gurado constitucionalmente, com aexistência de diversos instrumentosdisponíveis para o exercício da autonomiae a preservação de direitos originários dosentes federados. No entanto, as relaçõesde interdependência são marcadas por ummodelo competitivo, pouco cooperativo,muitas vezes predatório. Essas infor-mações auxiliarão no entendimento acercadas relações estabelecidas no âmbito dosprogramas de transferência de renda, nota-damente do Bolsa Família.

Políticas sociais no desenhofederativo brasileiro: a busca porcoordenação e cooperação

O modelo federativo implementadono Brasil a partir de 1988 traz como

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principal marca a descentralização políticae administrativa, refletida na perda depoderes da União e na transferência deatribuições para as esferas subnacionais,extinguindo o modelo unionista-autoritário,em vigor desde o golpe de 1964. Opróprio reconhecimento dos municípioscomo entes autônomos e independentes,fato inédito no federalismo mundial, cons-titui-se uma constatação do espíritodescentralizador da Assembléia Consti-tuinte de então. Abrucio (2003) destaca doisfenômenos nesse novo federalismobrasileiro: o estabelecimento de um amploprocesso de descentralização, tanto emtermos financeiros e políticos, comotambém no que se refere à criação de novasformas de relação entre os governos locaise a sociedade; e a criação de um modelopredatório e não-cooperativo de relaçõesintergovernamentais, com predomíniopara o componente estadualista, comen-tado anteriormente.

Entretanto, a descentralização enfrentou(e enfrenta) diversos obstáculos, quesegundo Abrucio (2005, p. 48) são emnúmero de cinco:

“a desigualdade de condições eco-nômicas e administrativas; o discurso do“municipalismo autárquico”; a “metro-polização” acelerada; os resquícios aindaexistentes tanto de uma cultura políticacomo de instituições que dificultam aaccountability democrática e o padrãode relações intergovernamentais”.

O primeiro obstáculo evidencia aquestão das desigualdades regionaispresentes historicamente no Brasil desde aformação da federação e que, nem adesconcentração econômica promovidapela Constituição de 1988 em favor dasregiões mais pobres, nem os instrumentos

políticos de representação legislativa, foramcapazes de resolver. Conjuga, desse modo,a incapacidade financeira e a precariedadeda máquina administrativa da grandemaioria dos municípios brasileiros, o queleva a um esforço adicional do governofederal ou estadual, “os quais devemoferecer auxílio intergovernamental, mastambém incentivos para que as própriasgestões locais alterem sua estrutura. Casocontrário, essa “falha seqüencial” criará umaeterna dependência dos municípios emrelação aos estados e à União” (ABRUCIO,2003, p. 48).

Pode-se dizer que tanto o municipa-lismo autárquico quanto a metropolizaçãoacelerada são obstáculos resultantes domesmo mal: a insuficiência de mecanismosde coordenação e cooperação para oenfrentamento dos problemas sociais,econômicos e de desenvolvimento embase territorial estratégica. São, também,reflexo do reforço da municipalização emdetrimento de formas associativas, estimu-lando um comportamento predatório emque cada prefeitura disputa os recursosfinanceiros disponíveis nos níveis degoverno superiores e na iniciativa privadapara, assim, agir isoladamente sobre seusproblemas, sem preocupações regionais.Aqui, é importante destacar a previsão deinstrumentos consorciais para a gestãoassociada5 e o estabelecimento de algumasexperiências nesse sentido, em especial naárea de saúde, embora ainda localizadas.

Novamente, o quarto e o quintoobstáculos à descentralização apontadospor Abrucio (2005) estão relacionadosentre si. Dizem respeito às práticas anti-republicanas ainda freqüentes em âmbitolocal, da qual são marcas o clientelismo, aoligarquia e a corrupção, e ao padrão dasrelações intergovernamentais, em especialas travadas entre o nível estadual e o

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municipal em que se sobressai a cooptaçãoe a tutela, em nítido desrespeito àautonomia federativa. O autor, bem comoSouza (1998), também indica a associaçãodos poderes executivo e legislativo locais,dificultando o papel fiscalizador desteúltimo.

Do ponto de vista da implementaçãode políticas sociais, a descentralização nomodelo federativo não ocorre de formaautomática, em uma abordagem de cimapara baixo. Pressupõe adesão, barganhas,estratégias de indução, espaços decoordenação intergovernamental. Arretche(1999, p. 2) mostra que esse processodepende da participação efetiva dos entesfederados:

“nas condições brasileiras, não ésuficiente que a União se retire da cenapara que, por efeito das novas prerro-gativas fiscais e políticas de estados emunicípios, estes passem a assumir demodo mais ou menos espontâneocompetências de gestão. Na mesmadireção, a descentralização das políticassociais não é simplesmente umsubproduto da descentralização fiscal,nem das novas disposições constitu-cionais derivadas da Carta de 1988. Aocontrário, ela ocorreu nas políticas enos estados em que a ação políticadeliberada operou de modo eficiente”.

A despeito de todo o incentivo àdescentralização dado pelo processo deredemocratização dos anos 80, o textoconstitucional deixou um vácuo de compe-tências, que faz com que as atribuiçõessejam negociadas a cada caso, de formadiferente em cada área específica deatuação, como bem mostram os estudosde Almeida (1995), Arretche (2004) e tantosoutros. “Assim, qualquer ente federativo

estava constitucionalmente autorizado aimplementar programas nas áreas de saúde,educação, assistência social, habitação esaneamento. Simetricamente, nenhum entefederativo estava constitucionalmenteobrigado a implementar programas nestaárea” (ARRETCHE, 2004, p. 22)

Essa característica é para muitosestudiosos o principal problema da descen-tralização. Abrucio (2005) denominou-ade federalismo compartimentalizado,em que cada nível de governo busca

encontrar seu papel específico, e ainexistência de incentivos à atuação conjuntaestabelece um jogo de empurra entre asesferas de governo.

A questão da indefinição de papéis éparticularmente delicada no que dizrespeito aos estados, identificando-se duasposições polares: de um lado, a munici-palização, e de outro, a coordenação das

“Percebe-se apreponderância donível federal noestabelecimento daagenda do BolsaFamília, fato acentuadopela transferência derecursos para a gestãodescentralizada, queaumenta a capacidadede atuação dasprefeituras, mas que ascoloca totalmenteenvolvidas em aspectosoperacionais.”

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políticas gerais sob responsabilidade daUnião. O nível intermediário não apareceno debate com qualquer delimitaçãoprópria de atribuições:

“as unidades estaduais ficaram, coma Constituição de 1988, num quadrode indefinição de suas competências eda maneira como se relacionariamcom os outros níveis de governo. Estevazio institucional favoreceu umaposição “flexível” dos governosestaduais: quando as políticas tinhamfinanciamento da União, elesprocuravam participar; caso contrário,eximiam-se de atuar ou repassavamas atribuições para os governos locais”(ABRUCIO, 2003, p. 52).

A indefinição do papel dos estados,na opinião de Afonso (2006), é ainda maisagravada pelo relacionamento direto daUnião com as instâncias municipais, que,no caso brasileiro, constituem entefederativo, independente e autônomocomo as outras duas esferas.

Além desse aspecto, Almeida (1995)também aponta a indefinição quanto aograu de envolvimento das diversas instânciasno financiamento das políticas sociais, bemcomo quanto às formas de repasse dosrecursos da União como problema para aconstrução de um pacto federativo decaráter cooperativo na área social.

O governo federal, por meio dacriação de contribuições sociais, garantiupara si recursos voltados para área social,mas cujo repasse para as esferas subna-cionais supõe transferências negociadas,quase sempre sem regras de partilhapreestabelecidas. Com essa estratégia, alémde recuperar parte das receitas perdidas napartilha fiscal promovida pela ConstituiçãoFederal, a União estabeleceu seu papel de

comando no processo de descentralizaçãodas políticas sociais. Assim , na área social,não se efetivou a limitação de autoridadedo governo federal para induzir as decisõesdos governos locais ao encontro das suasprioridades, apesar da prerrogativa dosmesmos em não aderir aos programasfederais garantida pela autonomia política(ARRETCHE, 2004).

Almeida (1995) destaca que nãoexiste, no processo de descentralização daspolíticas públicas, esforço do governofederal em redefinir as funções dos trêsníveis de governo. Em que medida issofoi intencional? Arretche (2002, p. 451)afirma que

“o governo federal excluiu a possibi-lidade de atribuir competênciasexclusivas ou obrigações constitu-cionais aos governos subnacionais,buscando a aprovação de medidas cujaestrutura de incentivos tornasseatraente a subordinação de estados e/ou municípios a seus objetivos dereforma”.

Arrisco dizer que, em geral, as relaçõesgovernamentais brasileiras na área socialcaracterizam-se pelo que Almeida (1995)definiu como federalismo centralizado, istoé, transformação dos governos estaduaise municipais em agentes administrativos dogoverno federal, que possui forte envolvi-mento nos assuntos das unidades subna-cionais, primazia decisória e de recursos.Mesmo na política de saúde, que pareceser o caso mais bem sucedido de descen-tralização, percebe-se a condução firme dogoverno federal (estabelecendo limites deatuação, regras e parâmetros de funciona-mento do Sistema Único de Saúde), oesvaziamento do papel dos estados e fortedependência dos municípios em relação

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aos recursos da União. Isso sem falar naopção, tantas vezes criticada, da construçãode um modelo nacional por meio dasNormas Operacionais Básicas (NOBs), adespeito das desigualdades regionais e emdetrimento de pactuações mais pontuais.

Na área de transferência direta derenda, esse federalismo centralizado nãodeixa dúvida quanto à sua existência. Aliás,os programas dessa natureza, implantadospelo governo federal desde 2001,reforçam esse caráter centralizador. Naspalavras de Afonso (2006, p. 4):

“o governo central passa a pagarbenefícios (fora da previdência social)diretamente aos indivíduos, relegandoos governos subnacionais a um papelsecundário (para não dizer, ausência defunção no caso dos estados brasileirosem relação ao Programa BolsaFamília). Em outras e bem simplóriaspalavras, é rompida a tradicional idéiade que o pobre pertence ao governolocal”.

A seguir, será analisada a implemen-tação do Programa Bolsa Família sob oaspecto federativo.

Breve histórico da transferênciade renda no Brasil

A adoção de políticas de redistribuiçãode renda, por intermédio da garantia deum rendimento monetário mínimodesvinculado das relações trabalhistas, érelativamente recente no Brasil. Remontaaos anos 1970, às aposentadorias e pensõesaos trabalhadores/as rurais e à RendaMensal Vitalícia.

Para isso, o orçamento público passoua conceder parcela orçamentária nofinanciamento desse novo contingente

populacional, uma vez que não mais setratava de recursos contributivos, como asformas de garantia de renda aosempregados formais. Essas novas medidasde garantia de renda passaram a constituirum novo flanco de ações de políticaspúblicas direcionadas ao enfrentamento dapobreza, desvinculada da prévia condiçãode trabalho. Até então, na experiênciabrasileira, o requisito para ter acesso a algumbenefício monetário não era ser origi-nalmente pobre, mas, em primeiro lugar,estar no mercado de trabalho ou ter umatrajetória de emprego assalariado comcarteira assinada. Era o princípio da cida-dania regulada que definia a condição deacesso às políticas sociais e trabalhistasdesenvolvidas fundamentalmente a partirda década de 1930 (SANTOS, 1979).

Com a Constituição Federal de 1988e, posteriormente, com a Lei Orgânica daAssistência Social, novas e diversas medidaslegais foram aprovadas visando à garantiade renda sem prévia contribuição. Esse éo caso do Benefício de Prestação Conti-nuada (BPC) destinado aos idosos e àspessoas com deficiências pertencentes afamílias de baixa renda. Essa perspectivade ampliação do campo dos direitos decidadania favoreceu a incorporação denovos segmentos sociais, até então margi-nalizados das políticas públicas, salvo aspolíticas marcadamente assistencialistas.

O agravamento do cenário macroeco-nômico, ocasionado pela implementaçãodas políticas de corte neoliberal, quepromoveram o aprofundamento daexclusão social no Brasil6, desencadeou, noinício dos anos 90, um amplo debate sobrepolíticas públicas de natureza redistributivade renda. As primeiras iniciativas datam de1995 e fugiram às regras das políticassociais, uma vez que se deram nas esferasmunicipais e estaduais, conforme

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comprovam as experiências dosmunicípios de Campinas e Ribeirão Preto,além de Brasília. De modo geral, osprogramas implantados por eles adotaramcontrapartidas obrigatórias, tais comofreqüência escolar, cumprimento de agendade saúde ou participação em cursos detreinamento profissional, seleção por rendafamiliar per capita inferior a um limitedefinido localmente, existência de filhos emidade escolar ou pré-escolar e comprovaçãode tempo mínimo de residência no local(LAVINAS, 1998). Direcionados ao enfren-tamento da exclusão social e, principalmente,com a expectativa da possibilidade dequebrar o ciclo intergeracional da pobreza,tinham ainda como requisito a saída domercado de trabalho de crianças e adoles-centes para a ampliação da escolaridadedesses indivíduos e, portanto, a postergaçãodo ingresso na vida laboral em melhorescondições de competição.

Somente depois de várias experiênciasmunicipais e estaduais de implantação dosprogramas de garantia de renda à popu-lação pobre é que o governo federal aderiua essa modalidade de política pública. Em19987, foi aprovada a Lei de RendaMínima, que tinha como objetivo ajudaros municípios mais pobres de cada estadoa desenvolver programas de transferênciadireta de renda. Nesse modelo, a Uniãocofinanciava 50% dos benefícios, assimcalculados: R$ 15,00 x (número de criançaspor família) – 0,5 x (renda familiar percapita de até ½ salário mínimo). Lício(2004) aponta as principais críticas a essainiciativa: baixo valor do benefício(R$ 38,58, em média), critérios restritivosà participação dos municípios, deixandofora do programa cerca de 40% dosmunicípios brasileiros, e o percentual fixode 50% para a repartição das despesas entrea União e os municípios, que não levava

em conta os desníveis na capacidadefinanceira de cada localidade.

Somente em abril de 2001, com olançamento do Programa Nacional deBolsa Escola, que o governo federal tevea sua primeira experiência mais consistentecom programas dessa natureza. A partirdaí, dois outros grandes programas foramcriados: o Bolsa Alimentação e o AuxílioGás. Sob a responsabilidade de diferentesministérios, esses programas estavamvoltados para segmentos diferentes damesma população pobre, mas com estra-tégias de operacionalização e gestão muitoparecidas. Todos esses programas visavamà garantia de renda vinculada à família, àeducação, à saúde e ao não exercício dotrabalho pelas crianças e adolescentes.Como nos programas municipais eestaduais, essa seria uma estratégia para orompimento com o ciclo da reproduçãointergeracional da pobreza, posto que asfamílias pobres teriam um complementode renda para que suas crianças eadolescentes freqüentassem a escola emelhorassem a situação da saúde (COHN,2003). Em termos gerais, os programasviabilizariam o exercício de direitosuniversais: educação e saúde.

O Bolsa Escola, ligado ao Ministérioda Educação, tinha como público-alvofamílias com renda mensal per capita deaté R$ 90,00, equivalente a meio saláriomínimo na época, e com crianças eadolescentes entre 7 e 14 anos matriculadosna rede regular de ensino. O benefício, novalor de R$ 15,00 por criança e/ouadolescente, até o limite de três por família,era pago mensalmente por meio de cartãomagnético e seu recebimento estavaassociado à freqüência escolar superior a85% das aulas ministradas.

O Bolsa Alimentação, do Ministério daSaúde, adotou o mesmo patamar de renda

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para a seleção de seus beneficiários. Noentanto, o segmento que este programa sepropôs atender é de crianças com até 7anos de idade, nutrizes e gestantes. Obenefício, também de R$ 15,00 e com amesma restrição do número de benefi-ciários por família, era associado aocumprimento, por parte da família, decompromissos na área de saúde: manter acarteira de vacinação em dia, acompanharo desenvolvimento nutricional das criançase, no caso das gestantes, realizar consultasde pré-natal.

Já o Auxílio Gás, criado pelo Minis-tério das Minas e Energia, em 2002,propunha-se a transferir R$ 15,00, a cadadois meses, como subsídio para a comprade botijão de gás às famílias que já erambeneficiárias do Bolsa Escola e/ou BolsaAlimentação, ou que se apresentavamcomo beneficiárias potenciais dessesprogramas, inscritas no Cadastro Único.Não exigia contrapartidas. A motivaçãopara a implementação dessa ação foicompensar as famílias de baixa renda emrelação ao aumento, naquele ano, do valordo botijão de gás, aproximando-se maisde um subsídio do que de política de rendamínima, fato inclusive explícito na legislaçãodo Programa.

Em 2003, o governo Lula, contrariandotodas as expectativas e as recomendaçõesda equipe de transição para a unificação dealguns programas sociais, criou o ProgramaCartão Alimentação como uma das açõesemergenciais do Programa Fome Zero parao combate à fome. O benefício, no valorde R$ 50,00 por família, destinava-se àquelesgrupos em situação de risco alimentar e,depois de uma grande polêmica em queintelectuais, mídia e governo se enfrentaram,manteve-se a imposição para as famílias decomprovação de gastos com a compra dealimentos.

Da breve descrição acima, pode-seobservar algumas características da políticade transferência de renda no Brasil:concorrência institucional, dificultando oumesmo inviabilizando a coordenação deações de caráter intersetorial para ocombate da pobreza; sobreposição debeneficiários, possibilitando que umamesma família participasse de dois ou trêsprogramas, enquanto outros grupos, namesma localidade e em situaçãosemelhante, não recebiam nenhum apoio;

e valor da transferência muito baixo.Diante deste retrato, em outubro de 2003,o governo federal unificou os procedi-mentos de execução e gestão dessesprogramas de transferência de renda pormeio do Programa Bolsa Família.

A partir dessa unificação, a unidadedo público-alvo passou a ser a famíliacomo um todo e não mais os indivíduos

“A articulação comas políticascomplementaresrepresenta o maiordesafio. Por dependeressencialmente devisão territorial e daidentificação depotencialidadesregionais, talvez sejao ingrediente capazde trazer os governossubnacionais para ocentro das decisões.”

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separadamente. As contrapartidas(condicionalidades), agora integradas,foram estendidas a todos os membrosdo grupo familiar beneficiário doprograma. Aumentaram-se não somenteos valores dos benefícios, que passarama variar de R$ 15 a R$ 95, contra osR$ 15 a R$ 45, mas também a meta deatendimento do programa: 11 milhões defamílias até 2006, praticamente o dobroem relação ao Bolsa Escola, o maisabrangente até então. É importanteressaltar que o usuários dos programasunificados pelo Bolsa Família foramtransferidos ao longo do tempo para onovo programa.

Do ponto de vista orçamentário, oBolsa Família, em 2005, aumentou em 88%os recursos destinados para os antigosprogramas de transferência de renda,conforme mostra a tabela 1.

O Bolsa Família é a proposta maisampla de transferência direta de renda jáimplementada no Brasil, presente em todoo território nacional, residindo aí a suarelevância. Mesmo o Benefício de Prestação

Continuada (BPC), com 1,138 milhão debeneficiários idosos e 1,26 milhão debeneficiários deficientes8 não é tão expres-sivo na sua abrangência, apesar de ter umbenefício igual ao salário mínimo, em valor.

A execução de um programa federaldessa natureza não poderia prescindir daparticipação dos outros níveis de governo,sob pena de inviabilizá-lo devido aoselevados custos operacionais que seseguiriam a uma estrutura centralizada. Dessemodo, é importante analisar as estratégiasda União para “convencer”os estados e osmunicípios a atuar nesse programa.

Relações intergovernamentais noâmbito do Programa Bolsa Família:a busca da gestão compartilhada

A erradicação da extrema pobreza eda marginalização e a redução das desi-gualdades sociais e regionais são objetivosfundamentais da República Federativa doBrasil. O texto constitucional estabelece queesse compromisso deve ser perseguido pormeio da conjugação de esforços entre os

Programas 2002 2003 2004 2005 2006

Bolsa Escola 1.537,10 1.429,50 - - -

Bolsa Alimentaçao 121,7 264,4 - - -

Auxílio Gás 609,2 800,2 - - -

Cartão Alimentaçao - 290,6 - - -

Bolsa Família - 572,4 5.308,80 6.537,80 8.303,00

Total 2.268,00 3.357,10 5.308,80 6.537,80 8.303,00

Variação anual - 48,00% 58,10% 23,20% 27,00%

R$ em milhão2002 a 2005 – valores executados2006 – PLOAFonte: SENARC/MDS

Tabela 1: Evolução dos recursos orçamentários destinados a programas detransferência de renda – 2002 a 2005

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três níveis de governo, ao prever que ocombate às causas da pobreza e aos fatoresde marginalização e a promoção daintegração social dos setores desfavo-recidos é competência comum da União,estados, Distrito Federal e municípios.

Partindo desse preceito constitucional,mas apoiado principalmente em aspectosde ordem prática e operacional, osprogramas de transferência de rendaimplantados pelo governo federal, desde2001, tinham em seu desenho umanecessária articulação entre a esferanacional e as esferas subnacionais, emespecial os municípios. É impensávelimaginar que a União seja capaz isola-damente de realizar programas dessanatureza sem que os governos municipaisestivessem dispostos a assumir as tarefasde cadastramento das famílias, deacompanhamento das condicionalidades,de fiscalização, bem como de atendi-mento da população.

O desafio posto para o sucessodesses programas está em como fazercom que os governos locais efetivamenteparticipem de um programa federal,levando em consideração que o ônusfinanceiro, até então, do cadastramento edemais ações, recaía sobre eles, ao mesmotempo em que os ganhos políticos paraesses atores são praticamente nulos, umavez que o benefício estava associado aogoverno federal. Ou seja, aos encargosassumidos pelos municípios não corres-ponde o bônus político correspondentesegundo os padrões clássicos de imple-mentação de políticas sociais até entãovigentes no país (por exemplo, a interme-diação do governo local na distribuiçãodos recursos). A questão resolve-se namedida em que a própria populaçãopotencialmente beneficiária dosprogramas pressiona para que os

benefícios sejam viabilizados para eles.Situação muito confortável para a União,que praticamente não necessita de negociarapoios e estabelecer consensos.

Uma das conseqüências desse quadrofoi que os estados e municípios que tinhamcondição financeira para tal criaram seuspróprios programas de transferência derenda, gerando mais sobreposições deações e clientelas, fracionamento das açõese pulverização dos benefícios, dificultandouma ação articulada na área de transfe-rência de renda que conjugasse as trêsesferas de governo. Isso pode ser consta-tado pelo grande número de programasde transferência de renda implementadospor governos subnacionais.

Com a criação do ProgramaBolsa Família e tendo em vista a suauniversalização entre as famílias comrenda compatível ao critério deelegibilidade previsto para o programa,a possibilidade de sobreposição de açãoe público ficou mais evidente.Mesmo porque, com o crescimento doprograma, mais se exigia dos municípiosem termos de desenvolvimento deatividades acerca do programa(cadastramento de famílias pobres,focalização, controle das condiciona-lidades). Portanto, além da questão daduplicidade de ação e beneficiários, aexistência de programas de renda locaisdesarticulados com o federal disputa osparcos recursos humanos e financeirosdos municípios.

A fim de evitar a competição entreos programas e a desmobilização dosmunicípios na implementação de umprograma da magnitude do BolsaFamília, o governo federal utilizou-se detrês estratégias. A primeira foi a possibi-lidade da integração de programas detransferência de renda locais com o Bolsa

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Família. Ou seja, municípios e estados quese interessassem em participar dofinanciamento do benefício podiamfazê-lo. Assim, desde 2004, algunsgovernos subnacionais, na sua maioriamunicípios , contr ibuem f inan-ceiramente, aumentando o valor domontante destinado às famílias. Comoforma de incentivar essa participação, ocartão magnético de saque do dinheiro éconfeccionado com a logomarca dosgovernos participantes.

Apesar do caráter inovador dessaação, atualmente seu alcance é poucorepresentativo em função do baixonúmero de pactuações firmadas, bemcomo das metas acordadas, que, namaioria dos casos, não são atingidas. Astabelas 2 e 3 apontam os municípios eestados que possuem Termo deCooperação em vigor para a comple-mentação do benefício financeiro dasfamílias do Bolsa Família.

Importante ressaltar que a União nãoestabeleceu uma forma padronizada decofinanciamento do Programa, permitindoque os entes federados adequassem odesenho de seus programas ao do BolsaFamília. Os termos da integração são,portanto, definidos caso a caso, com cadaente federado separadamente, e de acordocom a capacidade de negociação de cadaum. Assim, embora todas as famíliasrecebam da União os benefícios segundoas regras e os critérios estabelecidos nacio-nalmente, cada estado ou município possuicritérios próprios de complementação: unsestabeleceram um piso mínimo dobenefício, como o Acre, outros elevaramos valores do benefício, como o DistritoFederal e Recife. Essa flexibilidade, aomesmo tempo em que cria espaçosimportantes de interlocução com os entesfederados e estabelece importante coor-denação cooperativa, também deixa a certovoluntarismo dos estados e municípios sua

Sem pactuação Com pactuação

Famílias

26.56319.67012.5748.21289.43465.5732.456224.482

Município

Aracaju (AL)Boa Vista (RR)Niterói (RJ)Palmas (TO)Recife (PE)São Luis (MA)Nova Lima (MG)Total

R$

1.464.996,001.354.736,00 712.138,00 462.694,005.388.399,004.066.277,00 114.242,0013.563.482,00

Famílias

842298

1.0522.2312.2734.274

25111.221

Valorescomplementadospelos municípios

R$10.610,004.835,00

24.640,00 46.081,00485.881,00222.049,00 25.696,00819.792,00

Tabela 2: Total de famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família e número defamílias atendidas pelos municípios (pactuação)

Fonte: SENARC/MDS – Ref. Set/06

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participação financeira no Programa, semo esforço do governo federal em induzirtais processos. Além, é claro, decomplexificar a gestão federal do programa.

As duas outras estratégias estão relacio-nadas. Dizem respeito ao processo deadesão formal dos municípios ao ProgramaBolsa Família, realizado pelo governofederal em 2005, e ao estabelecimento desistemáticas de apoio financeiro para agestão local. Com a assinatura desse instru-mento, os municípios formalizaram a suaparticipação no programa, comprome-tendo-se com a realização das atividades alicolocadas. Em troca, o governo federaldisponibilizou sistemas de gestão e transferiu,pela primeira vez, recursos aos governosmunicipais para a atualização cadastral dosbeneficiários, no valor de R$ 6,00 porcadastro válido atualizado.

A adesão estava condicionada a doisrequisitos: a indicação de um interlocutorem âmbito local (gestor municipal) e aindicação da instância de controle social.O primeiro requisito veio suprir a

necessidade de identificar o lócus insti-tucional do Programa Bolsa Família que,devido ao seu forte componente interse-torial, mas principalmente por ter tidoorigem na unificação de programasoriundos de diversas áreas, não estabeleceuma relação unívoca com uma área espe-cífica, como as secretarias municipais desaúde e o Bolsa Alimentação, por exemplo.Isso permitiu identificar que 80% dosmunicípios optaram pela área de assistênciasocial como responsável pela gestão doprograma. Os demais municípiosescolheram as áreas de educação (8%) esaúde (5%) como gestoras do programa9.

Não causa espanto a área de assistênciasocial ter sido a principal escolha dosmunicípios para a alocação do ProgramaBolsa Família. Desde a implantação dosprogramas anteriores, havia uma discussãose programas dessa natureza não seriamafetos àquela área. Na Lei de Orçamento,o próprio Bolsa Escola, do Ministério daEducação, tinha como função orçamen-tária a assistência social. Porém, a escolha

Governo federal Estados (pactuação)

Famílias

54.157

116.133

908.483

79.312

1.158.085

Estado

Acre

Mato Grossodo Sul

Ceará

DistritoFederal

Total

R$

3.561.013,00

6.412.639,00

58.187.347,00

4.439.235,00

72.600.234,00

Famílias

18.991

2.207

28.396

36.745

86.339

Valorescomplementados

pelos estadosR$

538.416,00

178.927,00

440.850,00

2.038.355,00

3.196.548,00

Tabela 3: Total de famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família e número defamílias atendidas pelos estados (pactuação)

Fonte: SENARC/MDS – Ref. Set/06

Municípiosbeneficiados

22

1

41

1

65

Totalmunicípios

22

77

184

1

376

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dessa área pelos governos municipais nãoé tão isenta assim. O fato de o programano nível federal estar no Ministério deDesenvolvimento Social por si só já davaum indicativo aos municípios. Além disso,a sistemática escolhida para as transferênciasde recursos destinados à gestão doprograma é fundo a fundo: do FundoNacional de Assistência Social para osfundos municipais de assistência social.

A definição das instâncias de controlesocial também responde uma demanda dodesenho legal do programa, que estabelecea participação e o controle social naimplementação do programa. Novamente,a União não definiu qual instância deveriaser utilizada para essa tarefa, cabendo aomunicípio a indicação de um conselho jáexistente ou a criação de uma nova estrutura.Cerca de 58% dos municípios escolherama primeira opção, sendo que 87% dele-garam ao conselho municipal de assistênciasocial o controle social do programa10.

Teoricamente, o estabelecimento dessesespaços na estrutura municipal comopossibilidade de participação e controlesocial são fundamentais para democratizare republicanizar a esfera local. Há dúvidas,no entanto, sobre a efetividade dessainiciativa, principalmente por dois motivos.O primeiro, devido à possível cooptaçãodos membros dessas instâncias pelo poderpúblico, inclusive a partir da nomeação dospróprios conselheiros, o que comprometea atuação dos mesmos. Nesse sentido, épositiva a opção tomada pelos prefeitos dedelegar essa atribuição a conselhos oucomitês já existentes, com procedimentosjá formatados e testados. O segundo, a faltade informação, de maneira sistemática, tantosobre a população beneficiária, masprincipalmente sobre o funcionamento dopróprio Programa. Sem que isso se resolva,as instâncias de controle social não

cumprirão seu papel, que vai além dafiscalização da atuação municipal. Não sediminui o mérito e a importância disso, masdeve-se envolver também a participação dosconselheiros na definição de diretrizes doPrograma, promovendo a apropriaçãode seus valores pela sociedade local.Ressaltam-se algumas iniciativas, emboratímidas, por meio da realização de eventos,em parceria com estados e municípios, emtodas as unidades da federação, para amobilização desses atores, bem como avinculação de informativo via Internetdestinado a esse público.

Os estados também passaram por umprocesso de adesão ao Programa BolsaFamília e foram beneficiados com a trans-ferência de recursos da União. No entanto,a adesão dos estados foi mais restrita,apenas ao processo de atualização cadastraldeflagrado pelo MDS em julho de 2005.Naquela ocasião, os recursos destinados aosestados, na proporção de 10% do que foitransferido aos municípios, estava condi-cionado à adesão ao programa no prazoestabelecido da totalidade dos municípiosde seu território e, ainda, ao número decadastros válidos atualizados no estado.Assim, os municípios, além da pressão daUnião, também foram tensionados pelosgovernos estaduais, tanto para aformalização da sua participação noprograma federal, como também paraa realização da atualização cadastral.Observa-se o absoluto sucesso dogoverno federal nessa empreitada: emmenos de oito meses, 5.560 municípios,dos 5.564, haviam efetivado a sua adesãoe cerca de 78% do Cadastro Único tinhasido atualizado11.

Atualmente, o governo federalcontinua repassando recursos financeirosaos municípios e estados. Para os primeiros,foi criado um indicador de qualidade de

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gestão – o Índice de Gestão Descentra-lizada (IGD) – baseado nas informaçõesdo Cadastro Único e do acompanha-mento das condicionalidades. O cálculo dorepasse financeiro é realizado mensalmente,multiplicando um valor de referência deR$ 2,50 por família beneficiária nomunicípio pelo IGD. Apenas osmunicípios com índice igual ou superior a0,4 e habilitados na gestão da assistênciasocial, conforme os critérios do SistemaÚnico de Assistência Social (SUAS), podemreceber os recursos federais. Para osestados, mediante apresentação de umplano de ação que contemple basicamenteações de capacitação, apoio técnico elogístico aos municípios e emissão dedocumentação, o repasse também émensal, em parcelas fixas, levando emconsideração o número de famílias pobresde cada localidade.

Em que se pese a importância datransferência financeira para os estados, valedizer, de montante significativo – R$ 2,0milhões mensais –, a atuação desse nívelde governo é bastante limitada por faltade ferramentas e instrumentos quepermitam o acompanhamento dediferentes aspectos do Programa BolsaFamília. As informações disponíveis nemsempre estão sistematizadas adequa-damente para a análise e planejamento deações por parte do estado. Na realidade, énecessário o desenvolvimento de fluxos eprocessos perenes de troca de dados ecapacitação, de modo que esse nível degoverno encontre uma agenda própriadentro do Programa Bolsa Família, deimportância significativa para essa política.

Considerações finais

As relações federativas que têm seconfigurado no Programa Bolsa Família

trazem inovações interessantes para aimplementação de políticas sociais. A flexi-bilidade para o estabelecimento deparcerias, o processo de adesão e o repassede recursos financeiros por meio dedesempenho da qualidade de gestão, semfalar na própria mobilização popular emtorno desse programa, mostraram-seinstrumentos importantes para a efetivaparticipação dos governos subnacionais.Não obstante, percebe-se a preponderânciado nível federal no estabelecimento daagenda do Programa, ocasionando certodesequilíbrio de poder. Tal fato foi aindamais acentuado por meio das transferênciasde recursos para a gestão descentralizada,que, de um lado, aumentou a capacidadede atuação das prefeituras, mas, por outro,coloca-as totalmente envolvidas emaspectos operacionais para a melhoria doindicador que serve de base para o repasse,retirando-as de atividades de planejamentoe acompanhamento das famíliasbeneficiárias.

Para além da transferência de renda, oPrograma Bolsa Família, pela suaabrangência, vem se configurando a açãoestruturadora do sistema de proteção socialbrasileiro. Assim, são três as dimensões emque o Programa se dispõe a atuar. Aprimeira é a do alívio imediato da pobrezapor meio da transferência direta de renda.A segunda trata do enfrentamento dapobreza a médio e longo prazo, emperspectiva intergeracional, por meio doacompanhamento das condicionalidadesnas áreas de educação e saúde. Por fim, aterceira diz respeito ao desenvolvimentosocial das famílias, por meio da articulaçãode diversas outras políticas sociais para osbeneficiários do programa.

Essa última dimensão, a dos programascomplementares, é a que representa omaior desafio. Por depender essencialmente

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de visão territorial e da identificação depotencialidades regionais, talvez seja oingrediente capaz de trazer os governossubnacionais para o centro das decisões.As palavras de Afonso (2006, p. 27) vãonesse sentido:

“se os programas de transferência derenda forem limitados a uma funçãomeramente assistencialista (para nãodizer clientelista), os governossubnacionais continuarão à margem doprocesso e ficam dispensados de umatarefa, que é preciso reconhecer,bastante árdua e complexa – formulare implantar medidas que efetivamentereduzam a pobreza”.

É preciso, pois, aguardar para ver querumo o programa tomará nos próximosanos e se conseguirá avançar na oferta deoutros apoios, além do benefício, para as

famílias. Em caso positivo, um cenáriodesejável seria ter a União como respon-sável pelas diretrizes gerais e pelo financia-mento do auxílio em dinheiro aos benefi-ciários; os municípios, pelo trabalho maisdireto com as famílias, incluído aí ocadastramento, a gestão das condiciona-lidades e o acompanhamento familiar; eos estados, pela oferta de programascomplementares, em especial de geraçãode trabalho e renda, configurando-se ocomprometimento dos três níveis degoverno com os propósitos do Programa.O governo federal somente conseguiráatingir os objetivos enunciados, principal-mente o do desenvolvimento das famílias,por meio dessa gestão compartilhada, quesignifica, antes de qualquer coisa, oreconhecimento das desigualdadesregionais.

(Artigo recebido em dezembro de 2006. Versãofinal em dezembro de 2006)

Notas

1 Fernando Luiz Abrucio ([email protected]) é doutor em Ciência Política pela Universidadede São Paulo (USP), professor do Programa de Pós-graduação em Administração Pública e Governoda Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), além de lecionar Política Comparada na PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

2 Nesse ponto, é importante diferenciar “não centralização” de “descentralização”, termosmuitas vezes utilizados equivocadamente como sinônimos. Um sistema não centralizado significaa existência de poderes difusos, que não podem ser centralizados sem quebrar a estrutura e o espíritoda constituição. Já a descentralização significa que o poder é transferido do governo central para ossubnacionais, a partir de uma ação voluntária do primeiro.

3 De 1988 até 2006, passamos de 4.189 municípios para 5.564.4 Abrucio (1998) dá dois exemplos desse comportamento indesejado. Primeiro, em muitos

governos locais, os prefeitos compram ambulâncias para que os cidadãos utilizem os serviçoshospitalares do município vizinho, ao invés de investir diretamente nesses serviços. O outro exemploresgata o processo histórico da dívida dos estados. Muito superficialmente, o que ele ressalta é que osestados endividavam-se e depois barganhavam apoio político da União em troca da rolagem da sua

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dívida, ou mesmo, organizavam-se no Congresso Nacional de modo que as decisões em tornodesse assunto fossem favoráveis aos seus interesses.

5 A Emenda Constitucional nº 19, de 15 de julho de 1998, instituiu o consórcio público paraa gestão associada de serviços públicos, deixando a cargo da União, dos estados, do Distrito Federale dos municípios a atribuição pela regulamentação desse instrumento de cooperação. Um primeiroesforço nesse sentido ocorreu com a publicação da Lei n. 11.107, de 06 de abril de 2005.

6 Ver Soares, Laura. Os custos do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo, Cortez, 2002.7 Em 1996, o governo federal criou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI),

como parte daestratégia de combate ao trabalho infantil, que transfere recursos financeiros para asfamílias cujos filhos estão submetidos a situações intoleráveis de trabalho. Por seu turno, as famíliasdevem manter as crianças na escola e na Jornada Ampliada, atividades educativas fora do horárioescolar proporcionadas pela prefeitura. Inicialmente implantado como projeto piloto nas carvoariasde Mato Grosso, estendeu-se depois para o sisal na Bahia, as plantações de laranja no Rio de Janeiroe as olarias no Pará. Apenas em 1999, o PETI foi reformulado para atender também as crianças eadolescentes da zona urbana. Atualmente, está em processo de unificação com o Bolsa Família. VerPortaria GM/MDS no 666/05.

8 Dados de julho de 2006.Fonte: SNAS/MDS.9 Fonte: SENARC/MDS.10 Fonte: SENARC/MDS.11 Fonte: SENARC/MDS.

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Resumo - Resumen - Abstract

Contradições do processo de implementação de políticas públicas: uma análise doPrograma Bolsa Família 2003 – 2006Camile Sahb MesquitaO Programa Bolsa Família, programa de transferência condicionada de renda, vem se firmando

no cenário mundial como uma das mais expressivas iniciativas dessa natureza para o enfrentamentoda pobreza e a redução da desigualdade. Presente em todos os 5.564 municípios brasileiros, caracte-riza-se por ser um programa federal que não prescinde dos estados e, em especial, dos municípiospara a sua execução. No sentido de estabelecer uma gestão compartilhada entre todas as esferasgovernamentais, o governo federal tem buscado implantar mecanismos flexíveis de parceria, comdefinição clara de papéis e compartilhamento de responsabilidades, bem como auxiliar os governossubnacionais, por meio da transferência de recursos para a gestão, na criação das condições institucionaise de infra-estrutura necessárias à operacionalização de um programa dessa magnitude. Este textoanalisa as relações intergovernamentais existentes no âmbito do Programa Bolsa Família, identifi-cando os avanços e os desafios na busca da coordenação federativa. A primeira parte, sobre ofederalismo brasileiro, apóia-se basicamente em estudos do pesquisador Luiz Fernando Abrucio. Jáos dados e informações sobre o Programa foram fornecidos pelo Ministério do DesenvolvimentoSocial e Combate à Fome.

Palavras- chave: Programa Bolsa Família, política social, federalismo

Contradiciones en el proceso de implementación de políticas públicas: un análisis delPrograma Bolsa Familia – 2003-2006. Camile Sahb MesquitaEl Programa Bolsa Familia, programa de transferencia en efectivo condicionada, se ha establecido

en el escenario mundial como una de las más expresivas iniciativas de esa naturaleza para elenfrentamiento de la pobreza y la reducción de la desigualdad. Presente en todos los 5.564 municipiosbrasileños, se caracteriza por ser un programa federal que no prescinde de los estados y, en especial,de los municipios para su ejecución. A fin de establecer un gestión compartida entre todas las esferasgubernamentales, el gobierno federal ha buscado implantar mecanismos flexibles de asociaciones,con definición clara de roles y compartición de responsabilidades, así como ayudar a los gobiernossubnacionales, a través de la transferencia de recursos para la gestión, en la creación de condicionesinstitucionales y de infraestructura necesarias para la operacionalización de un programa de esamagnitud. Este texto analiza las relaciones intergubernamentales existentes en el ámbito del ProgramaBolsa Familia, identificando los avances y retos en la búsqueda de la coordinación federativa. Laprimera parte, sobre el federalismo brasileño, se apoya básicamente en los estudios del investigadorLuiz Fernando Abrucio. Los datos e informaciones acerca del Programa fueron fornecidos por elMinistério del Desarrollo Social y Combate al Hambre.

Palabras clave: Programa Bolsa Familia, política social, federalismo

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Camile Sahb MesquitaEspecialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Mestranda do Programa de Pós-Graduação emPolítica Social, da Universidade de Brasília. Contato: <[email protected]>.

Contradictions in the process of implementing public policies: an analysis of the BolsaFamilia Program – 2003-2006Camile Sahb MesquitaThe Bolsa Familia Program, the Brazilian conditional cash transfer program, has been establishing

itself as one of the most expressive initiatives on poverty and inequality reduction in the worldarena. Implemented in all 5,564 Brazilian municipalities, the enforcement of this federal programdoes not omit state and particularly municipality-based actions. In order to establish a sharedmanagement arrangement among all government levels, the federal government has been seekingto implement flexible partnership mechanisms, clearly defining roles and responsibility sharing, aswell as to help subnational governments, through funding, in creating institutional conditions andinfrastructure to operate such an extensive program. This text analyzes the intergovernmental relationswithin the Bolsa Familia Program, identifying the advances and the challenges in search of federativecooperation. In its first part, it presents an overview of the Braziliam federalism, based on thestudies of Fernando Luiz Abrucio. Data and information on the Program were provided by theMinistry of Social Development and Hunger Combat.

Key words: Bolsa Familia Program, social policy, federalism