camenietzki, carlos ziller. cientistas e religiosos
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CAMENIETZKI, Carlos Ziller. Cientistas e ReligiososTRANSCRIPT
Autor: Carlos Ziller Camenietzki
Data depublicação: 10/05/2005
Cientistas e religiosos
Carlos Ziller Camenietzki
Considerar que o exercício da atividade científica é coisa dissociada da vida
religiosa já se transformou num lugar-comum. Difícil imaginar um padre num
laboratório ou num observatório astronômico realizando experiências tal e qual
qualquer outro homem de ciência. No mais das vezes, quando tomamos
contato com um desses religiosos, e reconhecemos sua condição, não
deixamos de nos surpreender. Mesmo que uma reflexão mais detida deixe
claro que não há incompatibilidade entre ser padre e ser cientista, para a
imensa maioria de nós, não é imediato acomodar-se à idéia de que uma
mesma pessoa possa estar na condição de padre e de cientista. Afinal, um
padre preocupa-se com problemas de ordem moral, com a salvação das almas,
com as tensões da vida quotidiana; e o cientista busca conhecer o mundo
natural. Atividades diferentes, e apenas isso, quando reunidas numa só pessoa
costumam gerar estranhamento.
Mas quando se trata de ciência e de religião o estranhamento liga-se a
problemas que vêm de longa data. Acostumamo-nos a pensar que a ciência
moderna de Darwin, de Newton, de Galileu e de Copérnico constituiu-se em
frontal combate com as estruturas eclesiásticas, com os religiosos, e isso basta
para aprofundar essa sensação de estranhamento quando nos deparamos com
um padre astrônomo ou biólogo. E, de certo modo, isso não é de todo
equivocado. Porém, esse conflito entre ciência e religião certamente não teve e
não tem duração indefinida no tempo, nem mesmo uma extensão que abarque
toda a pauta científica. Trata-se, sobretudo, de contrastes pontuais e
característicos da época contemporânea, de meados do século XVIII até os
nossos dias – data, portanto, de uns duzentos e cinqüenta ou de trezentos
anos. Antes disso, a coisa era muito diferente.
Se tomarmos o período final da Idade Média e os primeiros duzentos anos da
Idade Moderna – grosso modo os anos 1400-1700 – e se tomarmos apenas os
astrônomos e os matemáticos, constataremos facilmente que boa parte dos
praticantes dessas disciplinas eram religiosos. Para citar apenas alguns nomes
relativamente conhecidos e importantes, Nicolau Copérnico – autor da principal
teoria heliocêntrica do século XVI – e Cristóvão Clavius – autor da reforma do
calendário de 1582 – eram religiosos e não constituíam caso excepcional. No
século XVII, a mais conhecida e difundida carta da Lua, com a denominação
dos acidentes selenográficos (vales e montanhas do satélite) foi autoria dos
jesuítas de Bolonha que atribuíram nomes de matemáticos da Companhia de
Jesus a diversas crateras e “mares”. Certamente uma homenagem merecida,
tendo em vista a quantidade de seus confrades dedicados à investigação dos céus.
Entre as ordens religiosas da época moderna, aquelas onde mais encontramos
destacados estudiosos da astronomia são os jesuítas e os oratorianos. Os
primeiros com acentuado empenho na disciplina entre os séculos XVI e XVIII,
os segundos a partir do final do século XVII. Para esses homens, o estudo dos
céus era bem mais do que uma forma de ocupar o tempo ocioso entre uma
oração e um outro serviço religioso que suas obrigações sacerdotais lhes
impunha.
A poderosa Companhia de Jesus, desde sua fundação em 1541, adotou como
um de seus princípios de ação a disputa intelectual contra os protestantes e
contra os “desvios” religiosos. Com isso, os jesuítas se deram a pesada tarefa
da missionação, da formação cultural e da educação daquela parcela da
juventude com possibilidades de enfrentar os debates mais intensos. Os padres
da Companhia aprofundavam seus estudos filosóficos com o explícito intuito de
consolidar seus conhecimentos a fim de estarem capacitados, o melhor
possível, para o enfrentamento com os filósofos e com os teólogos que
buscavam inovações radicais, e indesejadas, na filosofia e na teologia do
tempo. É claro que esse objetivo associava-se diretamente aos intentos
comuns aos estudiosos da filosofia – a busca da verdade, a interpretação
consistente da sociedade em que viviam etc.
No que diz respeito aos trabalhos astronômicos, diversos jesuítas esmeraram-
se no estudo dos movimentos planetários e das melhores hipóteses para
interpretá-los. Formaram diversas gerações de matemáticos nas suas escolas e
contribuíram sensivelmente para a organização da disciplina. No conjunto das
atividades da Ordem, os trabalhos em matemática também contribuíram para
o esforço de implantação do cristianismo no Oriente. Na passagem do século
XVI ao XVII, depois dos trabalhos do jesuíta missionário Matteo Ricci,
numerosos matemáticos foram enviados para a China a fim de atuar no
Observatório astronômico que os membros da Companhia de Jesus
construíram em Pequim. É importante registrar que a astronomia praticada por
esses missionários não era a simples repetição de teorias antigas e reavivadas.
Os jesuítas matemáticos da China traduziram trechos da obra de Galileu para o chinês e faziam seus cálculos segundo as teorias de Tycho Brahe.
De um modo geral, pode-se dizer que a Companhia adotou quase que
unanimemente o sistema do mundo proposto por Tycho. Tratava-se de um
modelo astronômico confortável para os cálculos e para as observações. Ele
mantinha a Terra no centro do mundo e fazia girar ao seu redor apenas a Lua,
o Sol e as estrelas fixas. Os demais planetas girariam por si mesmos ao redor
do Sol sem a necessidade de esferas cristalinas que os carregassem. Este sistema foi também adotado pela maior parte dos astrônomos do século XVII.
Não se tratou, para a Companhia de Jesus, de estudar a astronomia com a
intenção de impedir seu desenvolvimento; ao contrário, esses religiosos
participaram intensamente das principais transformações que a disciplina
passou entre os séculos XVI e XVII. Em Lisboa, o Colégio de Santo Antão
oferecia um famoso curso de astronomia destinado à formação de pilotos e de
cosmógrafos. Ali lecionaram mestres de matemática de diversas partes do
mundo, discutindo a atualidade da disciplina e procurando difundir os novos conhecimentos astronômicos.
Mesmo nas regiões mais afastadas dos grandes centros de reflexão, os jesuítas
buscaram estudar os céus e registrar suas observações. Em Salvador, por
exemplo, a capital da América Portuguesa, eles se esforçaram por manter uma
biblioteca atualizada em obras de matemática e alguns de seus membros
praticaram a astronomia escrevendo livros e discutindo os resultados de suas
observações com astrônomos do Velho Mundo. O mais antigo destes
estudiosos foi o padre Valentin Stansel (1621-1705) que fez publicar na Europa
suas observações de cometas. Um desses textos, relativo ao cometa de 1669,
foi publicado no periódico científico da Royal Society de Londres,
o Philosophical trasactions e acabou servindo a Isaac Newton, que o cita na
parte final de seu famoso tratado Princípios matemáticos da filosofia natural.
Além de seus textos sobre estes fenômenos episódicos, Stansel publicou em
1685 um diálogo latino bastante interessante:Uranófilo, o peregrino celeste em
que combina habilmente a exposição de seus conhecimentos astronômicos e a
ficção. O padre Valentin não discute velhas e obsoletas teorias dos céus; ele
não defende Ptolomeu e o geocentrismo. Suas proposições acompanham
aproximadamente o sistema de Tycho e procuram incorporar as mais recentes
descobertas da astronomia. Note-se que esse padre veio ao Brasil como missionário e matemático já formado, com mais de quarenta anos de idade.
Por outro lado, pouco antes da expulsão dos jesuítas, o padre José Monteiro da
Rocha observou a primeira passagem prevista do cometa de Halley em 1759.
Naquela época o astrônomo contava cerca de 25 anos e, ao contrário do
anterior, sempre estudara no Colégio dos Jesuítas de Salvador. Na ocasião,
José Monteiro escreveu um livro, o Sistema físico-matemático dos cometas em
que defende as teorias de Isaac Newton sobre os movimentos dos corpos celestes. Trata-se de obra de caráter newtoniano!
Certamente não se trata aqui de sustentar que os padres jesuítas fazem parte
daqueles astrônomos que mais contribuíram para o desenvolvimento da
ciência. Mas, atualmente, já é bastante reconhecido que eles se esforçaram na
pesquisa e no ensino científico. Tratava-se, para a Companhia, de um
problema vinculado não somente ao interesse de fundo religioso em “conhecer
a obra de Deus”; mas sobretudo de um problema prático ligado à política
missionária do Oriente e de um problema dependente de sua opção primitiva pela excelência do trabalho intelectual.
Com isso, constatamos que a prática científica não se apresenta como algo
estranho aos religiosos, nem mesmo em época de profundas transformações
na ciência. E registre-se que tomamos como exemplo apenas católicos. Se
incluirmos nesta análise religiosos protestantes, os exemplos se alongarão por
bem mais do que faz sentido no presente texto. Então, resta responder qual a
origem do estranhamento ao se ter notícia de um padre atuando num
laboratório? A resposta se encontra mais em nós que nos religiosos; pois nos
acostumamos a imaginar uma incompatibilidade que nem sempre, e nem em todos os temas, tem razão de ser. Tomamos a parte pelo todo...
Carlos Ziller Camenietzki é professor adjunto do Departamento de História –
UFRJ.