calendário e o golpe

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Resumo O artigo analisa como os regimes auto- ritários da América Latina no final do século XX foram tomados como motivo para um desvio em face da tradição cris- tã dos calendários que orientavam o fiel a lembrar, em cada dia, a vida de um santo. Seguirei, como fio condutor, um caso específico: a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima, dominicano pre- so e torturado entre os anos de 1969 e 1970. A partir desse recorte, farei uma avaliação a respeito das possibilidades de mapeamento dos sentidos do tempo que estão em jogo nesse “novo” marti- rológio, procurando entender em que sentido a hagiografia vai tentando se le- gitimar como “escrita da história”. Pre- tendo, então, fazer uma abordagem his- toriográfica, entendendo a historiografia como um campo de discussões a respei- to das maneiras pelas quais o passado é dado a ler pelo presente. Palavras-chave: temporalidade; escrita da história; hagiografia. Abstract The article aims to analyze how authori- tarian regimes in Latin America in the late twentieth century were taken as a reason for a deviation facing the Chris- tian tradition of calendars guiding the faithful to remember, every day, a saint’s life. I will follow, as a guideline, a specific case: the life and death of Frei Tito de Alencar Lima, Dominican im- prisoned and tortured between 1969 and 1970. From this cut, I will make an assessment of the possibilities of map- ping the senses of time at work in this “new” martyrology, trying to under- stand in what sense will hagiography try to legitimize itself as “history writing”. Then, I want to make a historiographi- cal approach, understanding the histori- ography as a field of discussions about the ways in which the past is given to read at present time. Keywords: temporality; writing of his- tory; hagiography. * Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). [email protected] O Calendário e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da história e hagiografia The Calendar and 1964 Military Takeover: temporality, history writing and hagiography Francisco Régis Lopes Ramos* Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 34, nº 67, p. 111-129 - 2014

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Golpe 64

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  • ResumoO artigo analisa como os regimes auto-ritrios da Amrica Latina no final do sculo XX foram tomados como motivo para um desvio em face da tradio cris-t dos calendrios que orientavam o fiel a lembrar, em cada dia, a vida de um santo. Seguirei, como fio condutor, um caso especfico: a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima, dominicano pre-so e torturado entre os anos de 1969 e 1970. A partir desse recorte, farei uma avaliao a respeito das possibilidades de mapeamento dos sentidos do tempo que esto em jogo nesse novo marti-rolgio, procurando entender em que sentido a hagiografia vai tentando se le-gitimar como escrita da histria. Pre-tendo, ento, fazer uma abordagem his-toriogrfica, entendendo a historiografia como um campo de discusses a respei-to das maneiras pelas quais o passado dado a ler pelo presente.Palavras-chave: temporalidade; escrita da histria; hagiografia.

    AbstractThe article aims to analyze how authori-tarian regimes in Latin America in the late twentieth century were taken as a reason for a deviation facing the Chris-tian tradition of calendars guiding the faithful to remember, every day, a saints life. I will follow, as a guideline, a specific case: the life and death of Frei Tito de Alencar Lima, Dominican im-prisoned and tortured between 1969 and 1970. From this cut, I will make an assessment of the possibilities of map-ping the senses of time at work in this new martyrology, trying to under-stand in what sense will hagiography try to legitimize itself as history writing. Then, I want to make a historiographi-cal approach, understanding the histori-ography as a field of discussions about the ways in which the past is given to read at present time. Keywords: temporality; writing of his-tory; hagiography.

    * Departamento de Histria da Universidade Federal do Cear (UFC). [email protected]

    O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

    The Calendar and 1964 Military Takeover: temporality, history writing and hagiography

    Francisco Rgis Lopes Ramos*

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 34, n 67, p. 111-129 - 2014

  • Francisco Rgis Lopes Ramos

    112 Revista Brasileira de Histria, vol. 34, no 67

    Na extremidade da historiografia, como sua tentao e sua traio, existe um outro discurso. Assim, Michel de Certeau (1982, p.266) no apenas inicia seu texto Uma variante: a edificao hagio-grfica, mas tambm d a ler uma interrogao fundamental em sua obra: como a escrita sobre o passado articula sentidos do tempo na medida em que trata do outro. Esse outro emerge pelos menos em dois sentidos: ora a ser domesticado por lugares institucionais e procedimentos autolegitimados, ora a ser uma dimenso temporal gerada margem de doutrinas estabelecidas ou de mtodos reconhecidos. Se no pri-meiro sentido so includas as escritas modernas da histria, no segundo apa-recem casos como aqueles chamados pelo autor de fbula mstica (Certeau, 2010).

    Ao considerar que, entre os dois sentidos, h uma enorme variedade de tenses e misturas, caber ao historiador um desafio a ser enfrentado: fazer a prpria operao historiogrfica, surgida e sustentada pelos saberes moder-nos, reconhecer-se como parte de um mtodo que, a depender da circunstn-cia, foi separando o fato da fbula. Desse modo, ser uma tarefa estudar no somente as operaes historiogrficas, mas as vias pelas quais essas operaes vo fabricando outros, pondo margem da legitimidade saberes que, dessa maneira, deixam de ser verdadeiros, como a religio e a fico. Isso significa que a escolha de qualquer apropriao do passado pressupe a negao de outras possibilidades. E, ao mesmo tempo, transforma a negao na figura do outro dominvel, domesticvel, mas jamais dominado ou domesticado de fato. Em suma, esse o jogo diante do qual Michel de Certeau prope o seu nicho de interrogaes sobre as apropriaes do passado.

    Se a edificao hagiogrfica emerge como traio e tentao da escrita da histria na modernidade, o texto a seguir se pergunta sobre o modo pelo qual se deu, no final do sculo XX, uma mudana de posio: a histria mo-derna como traio e tentao da hagiografia produzida sob os efeitos de veracidade da chamada Teologia da Libertao, mais precisamente nos vrios martirolgios em torno de presos polticos torturados.

    Historia magistra vitae essa vem sendo a base das hagiografias, pode-se afirmar. Uma base, preciso deixar claro, que no se realizou de maneira idntica no decorrer do tempo. A chamada histria exemplar um campo diverso e, se h um recorte no mbito do catolicismo, a diversidade no menor. Tratarei a seguir exatamente de um dos aspectos dessas nuanas ou diferenas: como os regimes autoritrios da Amrica Latina, no final do sculo XX, foram tomados como mote para um desvio dentro da tradio crist dos calendrios, que orientavam o fiel a lembrar, a cada dia, a vida de um santo.

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

    113Junho de 2014

    Seguirei, como fio condutor, um caso especfico: a vida e a morte de frei Tito de Alencar Lima, dominicano preso e torturado pelo Dops de So Paulo entre os anos de 1969 e 1970. A partir desse recorte, farei uma avaliao a respeito das possibilidades de mapeamento dos sentidos do tempo que esto em jogo nesse novo martirolgio, procurando entender em que sentido a hagiografia tenta se legitimar como escrita da histria, na medida em que se distancia dos trabalhos da oralidade. Pretendo, ento, fazer uma abordagem historiogrfica, entendendo a historiografia como um campo de discusses a respeito das maneiras pelas quais o passado dado a ler pelo presente, confi-gurando as passagens do tempo e as comemoraes postas pelo dever de lem-brar. Meu intuito neste trabalho fazer um estudo que se interrogue sobre as maneiras de transformar o passado em necessidade de determinados grupos que disputam posies historicamente situadas. Acredito, ento, que tal pro-cedimento ajuda-nos a compreender o trabalho de escrita da histria como parte de um esforo maior de construo social da vida humana (Guimares, 2007, p.97).

    A f de cada dia

    No sculo XX, um dos principais indcios de reordenao do calendrio catlico, criador e criatura da Legenda urea, foi o Novo Martirolgio da Am-rica Latina, publicado inicialmente no final de 1980 em Madri. No Brasil, a edio, revista e ampliada, saiu pela editora Vozes em 1984, sob a responsabi-lidade do Instituto Histrico Centro-Americano de Mangua, e com o ttulo ligeiramente modificado, Sangue pelo povo: martirolgio latino-americano. Em uma das primeiras pginas, foram apresentados o porqu e a circunstncia da publicao:

    O Novo Martirolgio da Amrica Latina publicado na revista Vida Nova, de Madri, n.1252, de 15 de novembro de 1980, j percorreu todo o territrio latino--americano, em sua edio original, ou foi reproduzido em outras revistas, folhe-tos, calendrios, ou, simplesmente, mimeografado. J chegou aos seus autnticos destinatrios: s comunidades de base, ao povo simples e crente, junto ao qual os mrtires cresceram na f e aprenderam a doar suas vidas.

    Quase logo depois, tambm, chegou-nos um novo pedido: mais dados sobre a vida e o testemunho desses homens e mulheres que descobriram o carisma que cada um ps ao servio de seus irmos, no amor e na justia. Este livro , por conseguinte, a resposta a esse pedido. Aproveitamos para incluir os nomes de

  • Francisco Rgis Lopes Ramos

    114 Revista Brasileira de Histria, vol. 34, no 67

    novos mrtires, verificar e corrigir alguns dados e ampliar a lista dos bispos e missionrios que, nos primeiros anos da conquista dessas terras, levantaram suas vozes em defesa do ndio ou do escravo negro.

    Nossos irmos detidos, desaparecidos, merecem um esclarecimento especial. No sabemos se vivem na solido e no terror de um campo de concentrao ou se pagaram, com sua vida, a bravura de seu testemunho. Temos a certeza de que seu desaparecimento no seno outra forma, mais cruel e sofisticada, de seu martrio e de todos aqueles que no puderam chorar-lhes a morte e duvidam de encontr-los com vida. Num ou noutro caso, a lembrana deles serve de alento a seus irmos como a memria dos mrtires. (Instituto Histrico..., 1984)

    O dia 10 de agosto no trouxe a trajetria de So Loureno, como nos calendrios tradicionais, e sim a vida de frei Tito:

    Religioso dominicano brasileiro. Perseguido por seu compromisso com seu povo oprimido. Encarcerado com outros religiosos e barbaramente torturado na Ope-rao Bandeirante centro de torturas do exrcito, em So Paulo Tito cortou as veias por recear denunciar seus companheiros religiosos: no queria que sofres-sem o mesmo que ele; pretendia, contudo, denunciar diante da opinio pblica e da Igreja o que sucedeu nos crceres de seu pas. Seus torturadores pediram aos mdicos que lhe salvassem a vida, porque deviam comear com a tortura psico-lgica. Ento o acusaram de dupla traio: Igreja e Lei de Segurana Nacional. Acusaram-no de suicida. E Tito levaria, aberta para sempre, a chaga de sua tortu-ra psicolgica. E com ela a imagem do delegado Fleury seu principal torturador que o acusou, lhe deu ordens, o ameaou e o acompanhou como uma sombra em seu exlio no Chile e na Frana. S se libertaria definitivamente dele enfor-cando-se numa rvore, aos 28 anos, numa tarde de agosto, na campanha francesa. Naquele dia Tito ressuscitou para a Vida, precedendo a seus irmos que morre-ram na tortura (1974). (Instituto Histrico..., 1984, p.126)

    Tambm trazendo frei Tito, saiu Os santos de cada dia, editado por Jos Benedito Alves em 1990. Mais um indcio do conflito entre os antigos calen-drios e as novas exigncias de uma f comprometida com as lutas sociais (Alves, 2000, p.454). Assim, operava-se um novo uso do passado. A sada de algum santo da tradio e a entrada de frei Tito no apenas traziam outras memrias, mas davam ao tempo novas curvaturas. claro que os novos agen-damentos aproximaram a vida dos santos da vida dos novos fiis, tanto no tempo quanto no espao: saam da Europa para o ento chamado terceiro

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

    115Junho de 2014

    mundo, dos primeiros sculos aos dias atuais. Entretanto, seria uma simpli-ficao grosseira concluir que tudo se resumiu a uma troca do distante pelo prximo. A rigor, no estava em funcionamento apenas o tempo secular, dis-posto numa linha com medidas decimais. Havia, tambm, um presente feito de eternidade, envolvido numa atualizao ritualizada do passado fundador.

    Se fosse feito o uso de uma rgua cronolgica (um ano depois do outro, o antes que precede o depois, o depois que sucede o antes), o tempo distante do calendrio tradicional ficaria mais prximo no calendrio latino-americano. Mas, se o sagrado no est submetido somente a esse regime de temporalidade calculado pelo nmero, a experincia vivida se torna outra. Quando o eterno passa a ser qualidade do tempo, o plano se enche de dobras e curvaturas. A memria catlica no s aproxima; tambm faz o passado se tornar presente, faz o presente ganhar densidade nos rituais de atualizao do passado, tal como ocorre na missa, mais especificamente na hora da comunho.

    Continuariam, vale destacar, a impresso e a circulao dos compndios da linha mais tradicional, mostrando que os novos mrtires estavam longe de gerar consenso. Alguns livros tinham ttulos quase idnticos, como O santo do dia e Um santo para cada dia. Outros, quando comparados, parecem fazer um jogo entre os termos, como Os santos do calendrio romano, Santos do atual calendrio litrgico e A vida dos santos na liturgia (Conti, 1999; Sgarbossa; Giovannini, 2005; Lodi, 2007; Palacn, 1979; Silveira, 1980). De um jeito ou de outro, o passado. A necessidade de fazer do passado uma parte do presente. Ou melhor: o presente como presena do tempo. Tempo que se faz presente no papel impresso, a ser lido diariamente.

    Mudana, mas tambm permanncia

    No ser exagero dizer que a Legenda urea tornar-se-ia uma das princi-pais referncias entre os livros hagiogrficos. Entre 1470 e 1500, por exemplo, o seu nmero de edies era maior do que a soma de todas as reimpresses da Bblia (Franco Jnior, 2003, p.22). A Legenda seguia o modelo de compilaes anteriores (formando uma sequncia de vidas de santos e datas comemorati-vas), mas contou com algo sem precedentes: o aperfeioamento das tcnicas de impresso e encadernao.

    Bakhtin, em sua anlise sobre esses textos, concluiu que, no geral, exclua--se aquilo que fosse caracterstico de uma dada condio social, de uma dada idade, todo o concreto de uma imagem, de uma vida, todas as mincias desta, as indicaes precisas do tempo e do espao da ao (Bakhtin, 2010, p.170).

  • Francisco Rgis Lopes Ramos

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    Nada de se ater muito a traos mais especficos, pois a especificidade seria um atributo da biografia, e no da hagiografia. A caracterizao de Bakhtin ge-neralizante e se trata mais de um princpio mais ou menos praticado do que de uma regra rigorosamente seguida. Nada foi feito na paz. A tenso no era gerada somente diante das proibies oficiais. No foi consensual a legitimi-dade dos registros sobre quem perdeu a vida em nome da f (e por isso seria includo no rol dos santos mrtires). Vrios grupos passaram a disputar a quantidade de santos que cada um deles teria. Mais tarde, sobretudo a partir do sculo XVI, a disputa se daria entre as Ordens e, tambm, na circunstncia de valorizao dos mrtires para a cristianizao do territrio na Amrica por-tuguesa (Cymbalista, 2010).

    Campo de acordos e disputas pelo passado como forma de legitimar o presente, as hagiografias foram se distanciando desse padro exemplar iden-tificado por Bakhtin, com maior ou menor intensidade. Um distanciamento mais sistemtico parece ter ocorrido exatamente com as hagiografias que in-corporam os mrtires da Amrica Latina: desejava-se uma Igreja menos roma-na e, portanto, mais localizada. Para novas fronteiras, era preciso ter, alm de um novo tempo, outra maneira de contar o tempo. Uma que desse conta do passado mais recente. Que tornasse o fiel mais comprometido, deixando-lhe a certeza de que a histria do cristianismo continuava na atualidade.

    No haver simplesmente a troca de santos dignos de memria, antes ser a incorporao do novo a partir da tradio. E, ao que parece, quem melhor expressou esse sentido de continuidade foi Dom Paulo Evaristo Arns. Ao invs de trocar, ele acrescenta. A sua Legenda urea foi publicada em 1985, com o ttulo Santos e heris do povo. Na pgina do dia 10 de agosto se l o seguinte:

    10 de agostoVs vos entristeceis, mas a vossa tristeza se transformar em alegria (Jo 16,

    20c).Nesta data, em 1974, morreu em Paris o brasileiro frei Tito de Alencar Lima.Dominicano, foi preso e horrorosamente torturado em So Paulo. Na cadeia,

    onde eu mesmo o visitei por diversas vezes, ele confortava os presos e dava o testemunho do evangelho.

    Depois de transportado para a Frana, continuava a sentir-se perseguido pelo famigerado Delegado torturador Fleury. E parecia estar recebendo ordens dele, tamanha era a obsesso.

    Um dia, encontraram-no morto. Os seus restos mortais voltaram nove anos

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

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    depois, para So Paulo, onde foram recebidos na Catedral, por uma multido incalculvel, por nmero de bispos e padres, com o Cardeal de So Paulo frente.

    Sua entrada no Cu deve ter sido ainda mais triunfante.Tambm celebramos hoje o dicono So Loureno, em Roma. venerado

    como o ltimo dos sete Diconos, de quem o imperador Valeriano queria arrancar o tesouro, ou seja, o dinheiro dos pobres.

    Colocado vivo sobre uma grelha em brasas, fez-se o porta-voz da coragem dos mrtires. Tiveram que silenci-lo ento pela espada.

    Vamos tambm a uma santa. Santa Filomena, de quem j se falou tanto. Pesquisadores srios dizem que talvez nem tenha existido. Mas o fato que o santo Cura DArs a venerava com muita confiana.

    Afinal, vamos lembrar So Hugo de Montaigu, na Frana. Foi beneditino, bispo, homem de uma delicadeza e caridade nos mnimos e nos grandes gestos. Morreu pelos anos de 1136.

    Os sofrimentos dos cristos se unem aos de Cristo, para se transformarem em fonte de esperana para ns. (Arns, 1996, p.308)

    Em sua autobiografia, publicada em 2001, o cardeal Arns faria a reprodu-o de uma carta enviada de Paris por frei Tito, em maio de 1973: Fiquei contente em saber de sua nomeao a Cardeal de So Paulo. Confio enorme-mente no senhor, creia-me; confio sobretudo na vossa alma franciscana. Em seguida, escreveu que guardava a boa recordao do sermo de posse de D. Paulo como cardeal: profundamente histrico e cheio da seiva geradora do Reino de Deus; a Igreja que se purifica na perseguio, sobretudo quando quer viver, integralmente, os valores evanglicos: a paz, a verdade, a justia, a fra-ternidade e o amor entre os homens (Arns, 2001, p.306).

    A nfase do profundamente histrico ter desdobramentos variados. Entre eles, a confeco de novos calendrios, que frei Tito no ver. Sua morte, contudo, entrar em consonncia com muitas outras e, assim, ele mesmo par-ticipar dessa profundidade, no como leitor, mas na condio de persona-gem. Tudo em uma dcada. A tortura em 1970, o exlio em 1971, a morte em 1974, e o martirolgio 4 ou 5 anos depois.

    Mas, afinal, o que que ele mesmo queria dizer em seu elogio ao discurso de D. Paulo? Por que a histria? Por causa do presente. Presente como presen-a do tempo, pressupondo, ento, combinaes entre passado e futuro, entre descendentes e ascendentes, tal como tentou explicar o texto de D. Paulo. Venho do passado, explicou D. Paulo, que se torna presente e futuro pela Palavra sempre viva de Jesus. o Senhor que me envia. No apelo para a

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    imaginao, e sim para a f e para a Histria. Mais adiante, ele confirmou: Venho do passado. De longa convivncia com o cristianismo nascente, com homens e mulheres fracas, que enfrentavam perseguies do maior e mais organizado gigante da Histria, o Imprio Romano. Como? Assumindo-se estudioso da histria primeva da igreja. Assim, ele se diz descendente de homens como So Francisco: dele trago a misso eterna da Paz e do Bem. Portanto, do passado, mas, tambm do presente: venho de ctedras de uni-versidades e dos morros da pobreza em torno minha cidade de Petrpolis, morros que rivalizavam com as mesmas ctedras em seus ensinamentos e na demonstrao da pequenez do homem diante das tarefas que o esperam. No encerramento, depois de costurar sua misso em vrias dimenses do tempo, procura no deixar dvidas: Que o Santo Sacrifcio da Missa que iniciamos juntos nos una a todos os pobres, aflitos e famintos que lutam e esperam, e, morrendo, ressuscitaro (Arns, 2001, p.466-468).

    O poder da palavra

    Afinal, o que pode um livro?. A pergunta est implcita no texto dos coor-denadores do primeiro volume da coleo Memrias do Exlio: Brasil, 1964-19??, uma coletnea de depoimentos de 1976. A resposta assim se inicia: a convico de que o futuro pode ser diferente exige o suporte da lembrana de que o passado foi diferente, de que as tendncias do presente no so dados naturais. Mas, diante da carncia de registros, por que a necessidade da jus-tificativa? Porque o fogo, alm de sair dos inimigos, tambm saa dos amigos: Houve a crtica de que o projeto das Memrias no era suficientemente pol-tico (ouvimos at que este livro no vai derrubar a ditadura!). O tempo, nesse caso, no ser a prova material do sentido que faz o tempo existir, mas a ma-tria com a qual tudo se constitui. No ter a unidade impondervel de um fluxo ancestral, como ocorre na memria crist. O que vai funcionar no a denncia como anncio, mas a crena na avaliao, a ser continuamente rea-lizada, pressupondo-se que o presente sempre ser aquilo que se localiza entre o passado e o futuro. A o passado no tem algo a mostrar, e sim a ensinar. E o futuro viria exatamente dessa nsia pedaggica atualizada pelas demandas do presente. A misso do presente no poderia, portanto, ceder s presses do passado que se negava a ser passado: no se deve reconhecer ditadura o direito de nos silenciar. Se riscos h, procuramos elimin-los cuidadosamente. Mas o silncio no seria nunca a soluo (Cavalcante; Ramos, 1978, p.16).

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

    119Junho de 2014

    No meio de tantas tenses, as vistas ou as previstas, o livro tenta se defen-der, inclusive da prpria acusao de ser autoritrio ou excludente: Preferi-mos no definir de antemo o que as Memrias deveriam dizer ... nosso objetivo, neste caso, procurar fazer com que as tendncias existentes, nos diversos campos, se expressem. Dito isso, ainda foi preciso explicar mais, muito mais do que se poderia supor. Os organizadores argumentaram, ainda, que houve o cuidado para no confundir as pessoas que eram contra a ditadura com os exilados. O motivo era simples: foram muitos os opositores que no foram para o exlio (isso significava que no ir para o exlio, voluntariamente ou compulsoriamente, no representava nenhum demrito). Outro desafio, alm de tudo, foi o esforo para evitar a martirologia. Se, por um lado, des-carta-se a apologia ao martrio, por outro no se elimina a possibilidade da posio religiosa: encontramos perspectivas ideolgicas muito diferentes no s entre os autores aqui publicados como tambm entre os prprios editores. Optou-se, ento, por uma metodologia desprovida de censura: um princpio ideolgico mnimo, qual seja, o direito de expresso livre do pensamento (Cavalcante; Ramos, 1978, p.17).

    De qualquer modo, prevaleceu, entre os organizadores do livro, a promes-sa de no haver censura: foi reproduzido um texto do frei Xavier Plassat, ex-trado do Bulletin de Liaison de la Province Dominicaine de Lyon, publicado em setembro de 1974. O ltimo pargrafo vem exatamente no sentido de in-serir uma memria pontual no tempo maior, que o tempo pontuado pelas experincias do martrio. Frei Xavier registra que, na missa do dia 12 de agosto, houve uma prece de revolta: ... Esse irmo ns o conhecemos h 20 sculos assim ele disse, antes do enterro. Na missa de corpo presente, foi feita a lei-tura da Bblia (Cavalcante; Ramos, 1978, p.361). Isaas, versculos 52-53: ... e por suas feridas que veio a cura para ns. O ritual, ali e desde sempre, era um mistrio vivido e compartilhado: Foi oprimido e humilhado, mas no abriu a boca; tal como cordeiro, ele foi levado para o matadouro; como ovelha muda diante do tosquiador, ele no abriu a boca. Alm disso, foi preso, jul-gado injustamente; e quem se preocupou com a vida dele? Pois foi cortado da terra dos vivos e ferido de morte.

    Estava em jogo uma nova histria, em contraposio histria oficial, como se v nas memrias de frei Betto publicadas em 1982 no livro Batismo de Sangue. Ele esteve preso com frei Tito, frei Ivo e outros dominicanos acusados de participar do grupo de guerrilheiros que apoiavam Carlos Marighella. E seu livro aparecia como ajuste de contas com o passado recente: explicava que os dominicanos no entregaram informaes que levaram cilada preparada

  • Francisco Rgis Lopes Ramos

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    pelo delegado Fleury, que acabou matando Marighella contrapondo-se assim verso que os rgos de represso haviam espalhado e, tambm, s acusaes que partiam de muitos componentes da esquerda, que tambm propagavam a existncia de traio partindo dos frades, sobretudo Fernando e Ivo. Autobio-grfica, sua escrita catlica, como era de se esperar, e, s vezes, tambm ha-giogrfica, sobretudo no ltimo captulo, significativamente chamado de Tito, a paixo. As vrias citaes do relato sobre a tortura escrito por frei Tito dra-matizam o texto que termina com um manifesto hagiogrfico e historiogrfico, unindo regimes de escrita diferentes, tal como se percebe nos escritos da cha-mada Igreja de Esquerda:

    De modo exemplar, frei Tito encarnou todos os horrores do regime militar brasilei-ro. Este , para sempre, um cadver insepulto. Seu testemunho sobreviver noite que nos abate, aos tempos que nos obrigam a sonhar, historiografia oficial que insiste em ignor-lo. Permanecer como smbolo das atrocidades infindveis do poder ilimitado, prepotente, arbitrrio. Ficar, sobretudo, como exemplo a todos que resistem opresso, lutam por justia e liberdade, aprendendo, na difcil escola da esperana, que prefervel morrer do que perder a vida. (Betto, 1992, p.225)

    Em nome da memria

    Considera-se que a primeira perseguio aos cristos ocorreu em 64. No tempo em que Nero era imperador de Roma. E foi at o ano de 313, quando foi assinado o dito de Milo. A est a chamada Igreja Primitiva, longe no tempo e no espao. Uma distncia que acabou se transformando em proximi-dade, e mais do que isso, em intimidade. No para todos os cristos, mas so-bretudo para aqueles que tambm se sentiram perseguidos. No Brasil, com a sequncia de padres presos a partir de 1964, emergiu mais um captulo na histria da Igreja das Prises na Amrica Latina.

    Foi na qualidade de criador e criatura dessa memria que, em 1975, frei Ivo Lesbaupin publicou o livro A bem-aventurana da perseguio: a vida dos cristos no imprio romano. Do outro lado da capa, numa propaganda da edi-tora Vozes, o leitor poderia perceber que o autor no estava s: DA MESMA EDITORA: Cristo e a Contestao Poltica, O. L. Gonalves; Jesus Cristo Liber-tador, L. Boff; Jesus Cristo e a Revoluo No-Violenta, A. Trocm; Jesus Cristo e os Revolucionrios de seu Tempo, O. Cullmann; Teologia da Libertao, G. Gutirrez.

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

    121Junho de 2014

    Preocupamo-nos, escreveu frei Ivo, com as causas das perseguies, a sua repercusso na vida da Igreja, a resistncia dos cristos e a teologia elabo-rada por eles para responder aos problemas concretos levantados pelos acon-tecimentos. Numa primeira leitura, certamente se conclui que a referncia ao Imprio Romano uma maneira de criticar e enfrentar a ditadura de 1964: coloca-se o passado para atingir o presente. Mas a escrita catlica que frei Ivo incorpora no se resume ao procedimento de usar a memria para dar instru-mentos de luta aos interesses da circunstncia. Alm da denncia, ou subja-cente a ela, h o anncio. por isso que frei Ivo adverte, logo na sua introduo: o objetivo deste texto no outro seno o de procurar penetrar o mistrio deste pequenino gro de trigo do qual Jesus dissera que se no morresse no frutificaria (Lesbaupin, 1975, p.9).

    Na pgina antes do sumrio, h um trecho do Apocalipse e a dedicatria: memria de nosso irmo frei Tito de Alencar Lima, mrtir (+ 8 de agosto de 1974). E a citao vem com uma indicao precisa: esta frase, Tito a havia sublinhado em sua Bblia:

    Esses so os que vm da grande tribulao; lavaram suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro. Por isso esto diante do trono de Deus, e o servem dia e noite, no seu templo; e o que est assentado no trono estender sobre eles uma tenda; nunca mais tero fome nem sede, nem cair sobre eles o sol ou calor al-gum, porque o Cordeiro, que est no meio do trono, ser o seu pastor e os levar s fontes das guas da vida; e Deus enxugar toda lgrima de seus olhos. (Apc. 7,14-17)

    O livro de frei Ivo no uma hagiografia, mas no deixa de ter sentido hagiogrfico. que a vida dos novos martirizados passou a circular em publi-caes ambguas, misturadas com orientaes variadas. Vale a pena citar a existncia e dois casos: Martrio: memria perigosa na Amrica Latina hoje e A prxis do martrio: ontem e hoje (Marins; Trevisan; Chanona, 1984; Diversos, 1980). Em certa medida, so hagiografias, mas trazem textos explicativos sobre liturgia e espiritualidade. Nas consideraes sobre espiritualidade que surgem traos do modo pelo qual os novos santos eram lidos. Os autores advertem os leitores em dois sentidos. Primeiro: preciso dar assistncia aos martirizados (isto , aos presos maltratados) e no medir esforos para denunciar a situao, falando com o proco, fazendo cartas para outros pases, coletando provas. Segundo: no se pode esquecer a definio doutrinal de mrtir, que exata-mente aquele levado a testemunhar com Cristo e em Cristo. Seguindo

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    observaes e cuidados inicialmente sistematizados por Santo Agostinho, o que se diz de maneira muito clara o seguinte: o mrtir no aquele que se entrega ao carrasco, no aquele que se deixa prender pela polcia com o de-sejo de ser martirizado, aquele (es)colhido pelo mistrio da vida atravs da morte. A advertncia d a restrio de leitura (os santos no so exemplos a serem seguidos, simplesmente) e desse modo indica uma precauo para evitar a disposio dos leitores mais empolgados: no se deve desejar o martrio. O exemplo dos santos no propriamente um exemplo a ser seguido, mas a prova do mistrio.

    O tempo contado

    Para Michel de Certeau, a caracterstica central da histria moderna (a partir do sculo XVIII) a diviso cada vez mais clara entre passado e presente, gerando a emergncia de um outro como objeto desconhecido a ser domes-ticado pela escrita (Certeau, 1982, p.14). A afirmao do outro o pressupe estranho ao presente e, de alguma maneira, gerador do futuro. Quanto maior for a demarcao do passado, maior ser a delimitao do presente e do futuro. Nas trs dimenses temporais, a valorizao de um tempo necessariamente se faz no aumento de cotao dos outros dois.

    Histria antiquria, cientfica, romntica, historicista: tudo isso faz parte da escrita da histria moderna em sua busca pela distribuio do tempo em dimenses diferentes, que se comunicam, e se comunicam exatamente porque so distintas. A escrita da histria, tomada nesse sentido mais amplo, exata-mente o protocolo que, em determinados lugares de poder institucional, se sustenta por maneiras de fazer o tempo ser distribudo entre o antes, o agora e o depois. Numa escrita hagiogrfica, por exemplo, a gramtica outra. No se trata apenas de identificar o peso decisivo do passado, apartando-o do pre-sente e dando-lhe o modelo, nem de relacionar a plasticidade entre os tempos mundanos e a eternidade do Alm.

    Para Michel de Certeau, a questo se pe em outros termos. Porque a prpria organizao da vida dos santos no pertence operao historiogrfica moderna, sendo regida por um tempo que no se fundamenta da busca cons-tante pelas separaes entre passado, presente e futuro. O que se valoriza na histria moderna no propriamente o passado ou o futuro, mas a tempo-ralidade moderna, o tempo tripartido e interdependente.

    A escrita hagiogrfica, tal como Certeau a compreende, no se faz em uma temporalidade moderna, portanto no pode ser lida com o desejo de, cada vez

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

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    mais, tornar o tempo compreensvel pela distribuio de fronteiras que carac-teriza o tempo tripartido. A imitao, numa leitura moderna, repetio. Nu-ma outra gramtica, imitao pode ser a prpria vivncia de certas dimenses da eternidade, que em termos do cristianismo nada tem a ver com as noes de evoluo, acumulao ou progresso. por isso, alis, que a noo de histria exemplar da hagiografia diferencia-se da histria exemplar da nao. Enquanto a primeira reside em um tempo secular tributrio da eternidade, a segunda adota um tempo cujo exemplo um modelo devedor do progresso.

    Por outro lado, Certeau indica que a instituio eclesistica foi amarrando a narrativa ao dogma, tornando-a esvaziada de oralidade e mais prxima da pesquisa histrica que pressupe a transformao do passado em objeto de investigao controlada pelo mtodo. Assim, o poder clerical foi jogando certas verses das vidas de santos no plano da fbula e do folclore, em contraposio s vidas verdadeiras, devidamente autorizadas pela legitimidade da escrita oficial.

    Em muitos casos, a vertente no oficial da hagiografia no chegava nem a ser propriamente exemplar: tratava-se mais de um exemplo do poder de Deus e menos um exemplo a ser reproduzido pelos homens. No intentava propria-mente gerar imitaes, nem tinha o sentido pedaggico que passaria a ter no catolicismo do sculo XIX (Certeau, 1982, p.270).

    Na hagiografia reprimida pela disciplina clerical no h um outro cir-cunscrito ao passado, criador e criao dos protocolos escriturrios de domes-ticao dos mortos. No tempo tripartido da modernidade, identific-los o primeiro passo. O segundo dar-lhes nome. Cada passo, tanto o primeiro quan-to o segundo, s se torna possvel na escrita. O ausente no identificado corres-ponde ao tmulo sem lpide. Nunca houve uma preocupao to forte de separao entre os mortos e os vivos, gerando rituais que, em termos psicanal-ticos, poderiam ser traduzidos como trabalho de luto. O outro, possvel pela localizao institucionalizada do sujeito diante do objeto, antes de tudo um morto. Da o ttulo do texto em que Certeau explora a A beleza do morto, tratando de um outro chamado de cultura popular (Certeau, 1995, p.55-86). Uma leitura mais atenta pode localizar vrios sentidos para o outro, como a bruxa diante da Igreja Catlica, a mulher diante do homem, o negro diante do branco. O outro essencial do historiador , entretanto, o passado. sobre e sob essa ausncia que a operao historiogrfica mostra resultados.

    A concepo de histria a presente a mesma que se encontra no discur-so de posse de dom Paulo, h pouco citado. Trata-se da historicidade que, tambm, o fundamento das novas escritas da histria da Igreja, que vo

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    aparecer de modo mais sistemtico a partir da fundao da Comisso de Es-tudos de Histria da Igreja na Amrica Latina (CEHILA), em 1973. Se fosse possvel resumir as propostas da fecundadas, poder-se-ia dizer que a questo estava em fazer uma reflexo crtica sobre o passado do ponto de vista do povo oprimido, dando-se especial ateno aos perigos de se fazer um uso popu-lista dessa perspectiva (Dussel, 1986, p.55). No Brasil, o primeiro resultado veio logo no ano seguinte, com a publicao de livro do padre e professor de histria Eduardo Hoornaert, contando uma histria da Igreja que atenta de modo especial ao catolicismo popular como a expresso mais valiosa do evan-gelho na realidade brasileira (Hoornaert, 1974, p.5).

    A renovao do calendrio catlico da Amrica Latina ocorre, portanto, numa efervescncia de reescrita da histria, no s a da Igreja no Brasil, mas tambm da Igreja na Amrica Latina e da Igreja em seus primeiros tempos, como bem mostra o livro de frei Ivo h pouco mencionado, A bem-aventuran-a da perseguio: a vida dos cristos no imprio romano.

    Consideraes finais

    Dans lepistemologie ne avec les Lumires, la diffrence entre le sujet du savoir et son objet fonde celle qui separe du prsent le pass (Certeau, 2002, p.76). Sendo assim, no ser um despropsito afirmar que a hagiografia oficial se distanciou das tradies orais e alimentou-se dessa epistemologia iluminista, aproximando a vida dos santos da escrita da histria moderna. Aproximao ambgua, j que o tempo da eternidade no foi (nem poderia) ser excludo. No caso das hagiografias dos mrtires latino-americanos, haveria uma retomada dessa tradio oral? No oficializados pela burocracia clerical e em busca de uma religiosidade popular e de uma Igreja dos Pobres, esses martirolgios que trazem a vida dos mortos pelas ditaduras estariam no mbito das oralidades abafadas? Seriam, em resumo, uma retomada do ento chamado cristianismo primitivo? Tudo indicaria uma resposta positiva, j que a Teo-logia da Libertao , em princpio, antieuropeia e, sobretudo, antirromana, reivindicando uma descentralizao em vrios sentidos, ora diante do corpo clerical, ora diante dos cnones, ora diante da cultura letrada. Alm disso, como bem mostra o j citado discurso de posse de D. Paulo, a colocao da histria como condio da f (antes, tratava-se mais de uma contradio).

    A temporalidade da hagiografia dos mrtires da Amrica Latina d con-tinuidade, em certa medida, ao processo de disciplinamento atravs da escrita e da prpria exigncia de verdade da narrativa por meio de documentos

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

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    confiveis. O cuidado com a veracidade do documento foi uma preocupao oscilante e, se for possvel destacar um autor bsico nesse sentido, pode-se mencionar Santo Agostinho, que chegou a lamentar, em um sermo, a escas-sez dos textos mais antigos, redigidos a partir de documentos de arquivo ou de testemunhos oculares (Magalhes de Oliveira, 2010, p.58).

    A rigor, a vida de frei Tito, ao lado de outros mrtires, est muito mais compromissada com a epistemologia iluminista do que se pode pensar primeira vista. A aproximao da Igreja com o povo, apesar de todas as in-tenes de interao, no atingiu esse povo como se esperava. Os martiro-lgios aqui citados tiveram significativa importncia na construo das Comunidades Eclesiais de Base, desdobrando-se em movimentos sindicais tanto no campo como no meio urbano. Entretanto, a dita tradio popular no incorporou esses novos santos. Frei Tito passou a ser santo em certas circunstncias dirigidas pela Igreja de Esquerda, cujo anncio tinha a ver, tambm, com a denncia.1

    Os escolhidos para gerar lugares sagrados e romarias foram outros mr-tires, como se v em vrios cemitrios espalhados pelo Brasil, quando um t-mulo se transforma em espao de devoo.2 Cito, por exemplo, o cangaceiro Jararaca em Mossor (RN) e o ladro Joo das Pedras em So Benedito (CE). Ambos foram enterrados vivos, e sobre isso h uma enorme hagiografia no escrita. Vrias e vrias narrativas orais correm de boca em boca no s sobre a vida, mas tambm sobre como morreram e como eles fazem milagres (Maia, 2010; Falco, 2013).

    O caso de frei Tito diferente. Circunscrito a certas liturgias de anncio/denncia, o seu sofrimento no teve a ressonncia esperada na medida em que a razo do seu sofrimento no repercutiu nas tradies populares ou, para ser mais preciso, nas tradies das fbulas vivenciadas pelos devotos, em ex-perincias que ora so rechaadas como fanatismo, ora so avaliadas como folclore. No faz parte do vocabulrio dessas tradies orais o termo preso poltico. O calendrio da igreja no oficial, feito para denunciar o assassinato daqueles religiosos que morreram por seu povo, no chegou ao povo (tal como previam aqueles que escreveram os novos martirolgios ou o fizeram circular nas liturgias e reunies da Igreja Catlica mais afetada pelas orientaes do Conclio Vaticano II). Enquanto o tmulo de frei Tito, no cemitrio So Joo Batista em Fortaleza, recebe atualmente visitantes que parecem ser devotos, os tmulos de Jararaca e Joo das Pedras acolhem um grande fluxo de devotos que no escondem a f que carregam: pagam ou fazem promessas, sempre trazendo velas, flores de plstico, ex-votos ou bilhetes.

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    Quanto ao calendrio, outra diferena: os mrtires que esto fora da ha-giografia oficial e da no oficial so mais comemorados em apenas um dia do ano, at porque certos assassinatos no tm datas precisas (ou seja: o corpo encontrado tempos depois). O que vale a o dia de finados, 2 de novembro. Mas, como esse campo da f no tem fronteiras bem delimitadas, vale destacar que o tmulo de frei Tito mais visitado exatamente nesse dia, mas sem con-figurar a romaria que caracteriza os tmulos de almas milagrosas (confor-me as observaes realizadas pelo autor entre os anos de 2007 e 2011).

    Os martirolgios dos presos polticos fazem parte das memrias sobre a ditadura de 1964, com efeito circunscrito a certos grupos, integrando assim o caleidoscpio de reivindicaes pelo direito de lembrar, com a criao de mo-numentos, manifestaes artsticas e valorizao dos arquivos secretos, alm de reaberturas do debate sobre as (im)possibilidades de uma histria do tem-po presente. A se tem um significativo nicho de recordaes, em acordos e conflitos com muitos outros agrupamentos que vm tomando a memria co-mo dever e procurando inserir esse dever como compromisso da histria. Da, no se pode jamais imaginar uma homogeneidade nas memrias contra a di-tadura, pois alm dos conflitos entre os modos de lembrar, a pesquisa histrica tem criado tenses significativas diante da suposta verdade que o testemunho seria capaz de fornecer.3

    Se havia divergncias entre as estratgias de combate ditadura, parece haver hoje ainda mais divergncias a respeito de quem lutou, como lutou e, ainda mais, como alguns foram fortes ou fracos, passando para o outro lado ou entregando nomes (dentro ou fora da sala de torturas). Tudo isso tem tirado a nitidez que parecia haver na linha que dividia o passado oficial do passado proibido, lanando desafios novos aos historiadores na medida em que a oficializao de uma escrita da histria traz necessariamente implicaes para a legitimidade da disciplina e, portanto, para a tica que a fundamenta.

    Ainda no estudado no mbito dos estudos historiogrficos, esse calen-drio mais um indcio dos usos do passado gerados pela ditadura de 1964, articulado em uma circunstncia poltica da Amrica Latina e, ainda mais, envolvido em modelos do cristianismo que, a partir de certas demandas, vo fazendo trocas e adaptaes na contagem do tempo. Nesse caso, uma memria, cujos entrelaamentos com a escrita hagiogrfica oficial (mesmo pondo-se margem da oficialidade) dar a figuras como frei Tito uma imagem que o aproxima das representaes advindas da escrita da histria.

    Os martirolgios de frei Tito tiveram a influncia da hagiografia discipli-nada pela pesquisa que a prpria Igreja passou a exigir, para disciplinar a sua

  • O Calendrio e o golpe de 1964: temporalidade, escrita da histria e hagiografia

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    agenda de comemoraes e a listagem dos santos, adotando procedimentos empricos e interpretativos compatveis com o imaginrio do mundo cientfi-co. Isso por um lado. Por outro, uma especificidade de todos os mrtires da Amrica Latina contemporneos de frei Tito: a pesquisa exigida pelo direito memria que se baseia, pelo menos em parte, nos procedimentos do conhe-cimento histrico academicamente legitimado pelos pares (obviamente, no em nome apenas da cincia, mas tambm a servio da justia alicerada da noo de direitos humanos). nesse sentido que frei Tito ter uma relao com os devotos que o distingue dos demais martirizados que tambm foram se transformando em pontos sagrados nos cemitrios.

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    NOTAS

    1 Evito fazer uma separao muito rgida entre a Igreja de esquerda (inovadora) e a de di-reita (conservadora), pois cada vez mais os estudos recentes mostram que essa diviso foi mais circunstancial e pontual, no podendo ser tomada de modo rgido. Sem tratar de problemas mais ligados historicidade das liturgias ou das experincias do sagrado, tal maleabilidade para negociaes foi mostrada por SERBIN, 2008. Em relao aos aspectos mais vinculados religiosidade vivida, ver, por exemplo: PORTO, 2014.2 Ver, por exemplo: ANDRADE, 2008.3 Esse pargrafo inspirou-se no atual debate realizado pelos seguintes autores: KNAUSS, 2012; FICO, 2012; PATTO, 2011; REIS, 2013.

    Artigo recebido em 14 de maro de 2014. Aprovado em 19 de maio de 2014.