c´alculo infinitesimal i 1 introdu¸c˜ao - dma.im.ufrj.bracker/cursos/numeros.pdf · o elemento...

31
alculo Infinitesimal I prof. Felipe Acker N ´ UMEROS 1 Introdu¸ ao Uma apresenta¸ ao rigorosa dos n´ umeros deveria, provavelmente, come¸ car pelos fundamentos da l´ ogica e da teoria dos conjuntos para, em seguida, con- struir sucessivamente os naturais, os inteiros, os racionais, os reais e os com- plexos. Esta ´ e uma escada cujos degraus tˆ em alturas diferentes: come¸ car da ogica poderia nos tomar um curso inteiro. Estas notas n˜ ao tˆ em tal ambi¸ ao e devem, portanto, ser tomadas apenas como uma indica¸ ao do percurso. Par- tiremos dos naturais e discutiremos brevemente como passar da´ ı aos inteiros, e destes aos racionais. O degrau que mais nos interessa, do ponto de vista da An´ alise, ´ e o que corresponde ` a passagem dos racionais aos reais. Nele nos deteremos um pouco mais. Uma introdu¸ ao elementar e bem escrita dos fundamentos da L´ ogica e da Teoria dos Conjuntos est´ a no livro Teoria ingˆ enua dos conjuntos, de Paul Halmos (Naive set theory ). Em cada caso (Naturais, Inteiros, Racionais, Reais e Complexos), procu- raremos caracterizar o sistema num´ erico em quest˜ ao por um conjunto de axiomas. Isto significa que vamos fixar, em cada caso, um conjunto de propriedades b´ asicas a partir das quais nossos teoremas devem poder ser demonstrados. Esta ´ e uma forma de organizar o conhecimento matem´ atico que remonta ` a Gr´ ecia antiga e tem nos Elementos, de Euclides, o primeiro grande exemplo 1 . A maior parte do trabalho ´ e deixada como exerc´ ıcio; resultados essencial- mente ´ obvios s˜ ao usados livremente, ficando a crit´ erio do leitor a decis˜ ao de demonstr´ a-los detalhadamente ou n˜ ao . 1 O sonho de axiomatizar toda a Matem´ atica tem suas limita¸ oes : em 1932, Kurt odel demonstrou que, mesmo que nos limitemos aos n´ umeros naturais, n˜ ao ´ e poss´ ıvel fixar um conjunto finito de axiomas a partir do qual se possa decidir, de cada senten¸ ca, se ´ e verdadeira ou falsa 1

Upload: doanthuy

Post on 03-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Calculo Infinitesimal Iprof. Felipe Acker

NUMEROS

1 Introducao

Uma apresentacao rigorosa dos numeros deveria, provavelmente, comecarpelos fundamentos da logica e da teoria dos conjuntos para, em seguida, con-struir sucessivamente os naturais, os inteiros, os racionais, os reais e os com-plexos. Esta e uma escada cujos degraus tem alturas diferentes: comecar dalogica poderia nos tomar um curso inteiro. Estas notas nao tem tal ambicao edevem, portanto, ser tomadas apenas como uma indicacao do percurso. Par-tiremos dos naturais e discutiremos brevemente como passar daı aos inteiros,e destes aos racionais. O degrau que mais nos interessa, do ponto de vistada Analise, e o que corresponde a passagem dos racionais aos reais. Nele nosdeteremos um pouco mais.

Uma introducao elementar e bem escrita dos fundamentos da Logica eda Teoria dos Conjuntos esta no livro Teoria ingenua dos conjuntos, de PaulHalmos (Naive set theory).

Em cada caso (Naturais, Inteiros, Racionais, Reais e Complexos), procu-raremos caracterizar o sistema numerico em questao por um conjunto deaxiomas. Isto significa que vamos fixar, em cada caso, um conjunto depropriedades basicas a partir das quais nossos teoremas devem poder serdemonstrados. Esta e uma forma de organizar o conhecimento matematicoque remonta a Grecia antiga e tem nos Elementos, de Euclides, o primeirogrande exemplo1.

A maior parte do trabalho e deixada como exercıcio; resultados essencial-mente obvios sao usados livremente, ficando a criterio do leitor a decisao dedemonstra-los detalhadamente ou nao .

1O sonho de axiomatizar toda a Matematica tem suas limitacoes : em 1932, KurtGodel demonstrou que, mesmo que nos limitemos aos numeros naturais, nao e possıvelfixar um conjunto finito de axiomas a partir do qual se possa decidir, de cada sentenca, see verdadeira ou falsa

1

2 Um mınimo de linguagem

Para fixar um pouco as ideias, vamos apresentar informalmente um poucoda notacao e alguns conceitos basicos envolvendo conjuntos e funcoes . Us-aremos livremente os sımbolos ⇒, ⇔, ∀, ∃ e | :

p ⇒ q significa se p entao q, ou p implica q;p ⇔ q significa p se e somente se q, ou p e equivalente a q;∀ se le para todo;∃ se le existe;x | p se le x tal que p;

usaremos tambem, as vezes, sss no lugar de se e somente se. O sımbolo ∃!significa existe um e somente um.

Se x e um elemento do conjunto X, diremos que x pertence a X eusaremos a notacao x ∈ X. Se o conjunto A e subconjunto de X, diremosque A esta contido em X (A ⊂ X), ou que X contem A (X ⊃ A). Istosignifica que todo elemento de A e tambem elemento de X, ou seja:

A ⊂ X ⇐⇒ (x ∈ A ⇒ x ∈ X).

Para provar a igualdade entre os conjuntos A e B sera preciso, emgeral, provar que A ⊂ B e B ⊂ A. A primeira parte desta prova comeca por

Seja x ∈ Ae termina quando concluımos que x ∈ B; a segunda comeca com

Seja x ∈ Be termina quando provamos que x ∈ A.

Um conjunto e usualmente definido apresentando explicitamente seus el-ementos ou por meio de uma propriedade que os caracterize:

X = {a, b, c} significa que X e o conjunto cujos elementos sao precisa-mente a, b e c;

X = {x ∈ Y | p(x)} significa que X e o conjunto cujos elementos saoprecisamente aqueles que estao em Y e satisfazem a propriedade p.

Dados dois conjuntos A e B, definimos A \B (A menos B) por A \B ={x ∈ A|x /∈ B}. Se todos nossos conjuntos, em um determinado contexto,sao subconjuntos de um certo X, X \ A e chamado de complementar deA (em X) e notado por CA ou por AC .

2

O produto cartesiano dos conjuntos X e Y , X × Y , e definido porX × Y = {(x, y)|x ∈ X, y ∈ Y }.Para evitar considerar par ordenado como um conceito primitivo, pode-

mos definir, dados x e y, o par ordenado (x, y) por(x, y) = {x, {x, y}}

(e uma definicao meio extravagante, mas funciona).

Uma funcao f entre os conjuntos X e Y pode ser definida sem o usoda palavra regra. Basta especificarmos todos os pares ordenados do tipo(x, f(x)). De maneira um pouco mais pedante, diremos que um subconjuntof de X × Y e uma funcao (notada por f : X → Y ) se

∀x ∈ X ∃! y ∈ Y | (x, y) ∈ f.

(esta definicao vem acompanhada da notacao y = f(x) para y tal que (x, y) ∈f). X e chamado de domınio de f , Y e chamado de contradomınio de fe f(X) = {y ∈ Y |∃x ∈ X|(x, y) ∈ f} e chamado de imagem de f . Maisgeralmente, se A ⊂ X, a imagem de A por f e o conjunto f(A) = {y ∈Y | ∃x ∈ A | f(x) = y}. O elemento f(x) de Y tambem e chamado deimagem de x por f .

Uma funcao f e dita injetiva, injetora ou biunıvoca, se

f(a) = f(b) ⇒ a = b;

sobrejetiva, sobrejetora ou sobre, se

∀y ∈ Y ∃x ∈ X | y = f(x).

Se for injetiva e sobrejetiva, f e dita bijetiva, ou bijetora. Neste ultimocaso, podemos definir a funcao inversa, notada por f−1 e definida por

f−1 = {(y, x) | (x, y) ∈ f}.

No caso geral, a notacao f−1 e usada para a imagem inversa de umsubconjunto B de Y :

f−1(B) = {x ∈ X | f(x) ∈ B}

(por abuso de notacao , escrevemos f−1(y) no lugar de f−1({y}), se y ∈ Y ).

3

3 Os naturais

Uma das maneiras mais simples de caracterizar nossos velhos amigos na-turais, os numeros de contar, e descreve-los por um conjunto de axiomas,devido a Peano, que apresentamos a seguir.

Postulado: Existem um conjunto, IN (conhecido como conjunto dosnumeros naturais) e uma funcao S : IN → IN , com as seguintes pro-priedades:

• (i)S e injetiva;

• (ii)existe em IN um elemento 0 tal que 0 /∈ S(IN);

• (iii) Se A e um subconjunto de IN tal que 0 ∈ A e S(A) ⊂ A, entaoA = IN .

Exercıcio: S(n) e o sucessor de n, o seguinte, o proximo da fila. Traduza S(n) porn+1 e entenda o significado dos axiomas acima. (iii) e conhecido como princıpioda inducao . Note que o elemento 0, citado em (ii) e (iii), tambem poderia ser o1.Exercıcio: Mostre que nao pode haver em IN um segundo elemento 0 tal que0 /∈ S(IN). Sugestao : considere A = IN \

{0}

e use o princıpio da inducao .

Exercıcio: Mostre que a injetividade de S e indispensavel. Sugestao : senao ,poderıamos fazer IN = {0, 1}, com S(0) = 1 e S(1) = 1.

Observacao: Uma ideia para construir um conjunto com as propriedades acima(que seria um modelo concreto para IN) e defini-lo a partir de seus elementos, queseriam: 0 = φ, 1 = {φ}, 2 = {φ, {φ}}, 3 = {φ, {φ} , {φ, {φ}}} . . .. De qualquerforma, terıamos que postular a existencia de tal conjunto.2

O que costumamos chamar de definicao por inducao requer a demonstracaodo seguinte resultado fundamental:

2Esta definicao parece tao “concreta”, que a necessidade de um tal postulado podeparecer um exagero; no entanto, uma postura excessivamente ingenua, na Teoria dosConjuntos, pode levar a paradoxos. Um dos mais famosos e o Paradoxo de Russel : sejap(x) a propriedade x nao pertence a x e seja A = {x | p(x)}; entao e facil concluir que Apertence a A sss A nao pertence a A.

4

Teorema da Recursao : Se X e um conjunto, ϕ : X → X e uma funcao e a ∈ X,entao existe uma funcao f : IN → X tal que f(0) = a e f(S(n)) = ϕ(f(n))∀n ∈ IN .

Demonstracao : Vamos definir a funcao f , como manda o regulamento, como um subconjunto do produto cartesianoIN ×X (de maneira algo sinistra, e verdade). Consideremos a colecao F de todos os subconjuntos F de IN ×X tais que:

(i)(0, a) ∈ F ;(ii)(n, x) ∈ F ⇒ (S(n), ϕ(x)) ∈ F .

Seja agora f o menor elemento de F, isto e:

f = {(m, y) ∈ IN ×X|(m, y) ∈ F∀F ∈ F} .

Note que f ∈ F e f ⊂ F∀F ∈ F.Vamos mostrar que f e a funcao que queremos. Para comecar, devemos provarque f(n) esta definido para todo n em IN . Seja pois A = {n ∈ IN|∃y ∈ X, (n, y) ∈ f} e provemos que A = IN . Como(0, a) ∈ F∀F ∈ F, temos 0 ∈ f .Alem disto, se n ∈ A, entao existe y ∈ X|(n, y) ∈ f , o que significa que (n, y) ∈ F∀F ∈ F,o que implica em (S(n), ϕ(y)) ∈ F∀F ∈ F, o que nos da S(n) ∈ A. Logo, pelo princıpio da inducao , A = IN .

Resta provar que (n, x) ∈ f, (n, y) ∈ f ⇒ x = y. Como ja provamos que, para cada n ∈ IN , existe um y ∈ X tal que

(n, y) ∈ f , basta provar que, se B e o conjunto dos n ∈ IN tais que tal y e unico, entao B = IN . Comecemos mostrando

que 0 ∈ B. De fato: temos (0, a) ∈ f ; se (0, b) ∈ f , com b 6= a, podemos considerar F = f \{(0, b)}; terıamos entao F ∈ F

mas f nao pode ser subconjunto de F . Suponhamos agora que n ∈ B e provemos que S(n) ∈ B. Se n ∈ B, existe um

unico y ∈ X tal que (n, y) ∈ f . Podemos entao garantir que (S(n), ϕ(y)) ∈ f . Se (S(n), z) ∈ f , com z 6= ϕ(y), podemos

considerar F = f \ {(S(n), z)} e observar que F ∈ F, mas f nao esta contido em F , o que e impossıvel. Logo, S(n) ∈ B,

o que mostra que B = IN e completa a demonstracao .

Uma funcao cujo domınio e IN e chamada uma sequencia (ou, eventualmente,uma sucessao ).

A construcao das operacoes de adicao e multiplicacao de numeros naturais,a partir dos axiomas de Peano, e uma tarefa interessante (e trabalhosa, se nosdispusermos a provar cada uma das propriedades que utilizamos quotidianamente),a qual nao vamos nos dedicar. Uma pequena amostra e dada nos tres exercicios aseguir.

Exercıcio: Defina, fixado n em IN , n + 0 = n, n + S(m) = S(n + m). Proveque a adicao assim definida e comutativa e associativa. Note que a definicao serialigeiramente diferente se comecassemos IN em 1. Mostre que da definicao decorreque S(n) = n+1∀n ∈ IN . Mostre que, se m+n = 0, entao m = 0 ou n = 0.Mostreque m + p = n + p ⇒ m = n.Exercıcio: Defina, fixado n em IN , n0 = 0, nS(m) = (nm) + n. Prove que amultiplicacao assim definida e comutativa e associativa. Prove tambem a pro-priedade distributiva. Mostre que, se mn = 0, entao m = 0 ou n = 0. Mostre quemp = np, p 6= 0 ⇒ m = n.Como seria a definicao se escolhessemos comecar IN em1?Exercıcio: Defina, para n e m em IN , a relacao de ordem n ≤ m por: ∃p ∈IN |n + p = m (note que, se IN comecasse em 1, esta definicao corresponderia an < m). Defina n ≥ m por m ≤ n, n < m por n ≤ m e n 6= m, n > m por m < n.Mostre que, se n ≤ m e k ∈ IN , entao k + n ≤ k + m e kn ≤ km. Mostre que,dados quaisquer naturais m e n, sempre se tem m ≤ n ou n ≤ m. Mostre que

5

a ≤ b e b ≤ c ⇒ a ≤ c. Mostre que a ≤ b e b ≤ a ⇒ a = b. Seja 1 = S(0); mostreque nao existe n em IN tal que 0 < n e n < 1. Mostre que, para qualquer n ∈ IN ,nao existe m em IN tal que n < m < S(n).

Dois resultados referentes a ordem merecem ser destacados. O primeiro e o

Princıpio da Boa Ordenacao : Se A e um subconjunto nao vazio de IN , entaoA tem um menor elemento.

Demonstracao : Suponhamos que A 6= φ e que A nao tem um menor elemento. Seja B = {n ∈ IN| n < m∀m ∈ A}. Entao

0 ∈ B, pois, caso contrario, 0 seria o mınimo de A. Suponhamos agora que um certo n esta em B. Como nao ha ninguem

entre n e S(n), temos S(n) ≤ m ∀m ∈ A. Se §(n) ∈ A, S(n) seria o mınimo de A, que estamos supondo nao existir.

Logo, S(n) ∈ B, o que mostra que B = IN . Mas isto e impossıvel, pois A 6= φ.

O segundo e uma versao bastante util do princıpio da inducao , conhecido como

Princıpio da Inducao Completa: Se A ⊂ IN e tal que 0 ∈ A e S(n) ∈ Asempre que m ∈ A para todo m ≤ n, entao A = IN .

Demonstracao : Seja B = IN \ A. Se B fosse nao vazio, B teria um menor elemento b. Como 0 ∈ A, temos b 6= 0, o

que nos garante que existe n ∈ IN tal que b = S(n); mas da definicao de b temos m ∈ A∀m ≤ n, o que nos garante que

b = S(n) ∈ A, absurdo.

4 Os Inteiros

Os numeros inteiros sao construıdos, a partir dos naturais, da maneira simplesque aprendemos no colegio: acrescenta-se a IN o conjunto dos inteiros negativos,que sao os naturais diferentes de 0 com um sinal - na frente. As operacoes saodefinidas como de habito. Chegamos, assim, a um conjunto, que notamos por ZZ,com IN ⊂ ZZ, munido de operacoes 3 de adicao (+) e multiplicacao (), satisfazendoas seguintes propriedades:

• (i) x + (y + z) = (x + y) + z para todos x, y e z em ZZ;

• (ii) x + y = y + x para todos x e y em ZZ;

3em matematiques erudito, uma operacao definida no conjunto X e uma funcao∗ : X ×X → X, usualmente notada por ∗(x, y) = x ∗ y

6

• (iii) o elemento 0 de IN e tal que x + 0 = x para todo x em ZZ;

• (iv) para todo x em ZZ existe x (denotado por −x) em ZZ tal que x+ x = 0;

• (v) x(yz) = (xy)z para todos x, y e z em ZZ;

• (vi) xy = yx para todos x e y em ZZ;

• (vii) x(y + z) = (xy) + (xz) para todos x, y e z em ZZ;

• (viii) o elemento 1 = S(0) de IN e tal que 1x = x para todo x em ZZ.

Como as operacoes em ZZ estendem as que ja tınhamos em IN , valem tambemas propriedades, para o conjunto P = IN \ {0}:

• (ix)x + y ∈ P para todos x e y em P ;

• (x) xy ∈ P para todos x e y em P ;

• (xi) se x ∈ ZZ, vale uma e uma so das seguintes: x ∈ P , −x ∈ P ou x = 0.

Cabem aqui algumas observacoes sobre o que foi escrito acima. Em primeirolugar, notemos que nao pode haver um “segundo zero” nem um “segundo 1”: defato, se 0 e tal que x + 0 = x∀x ∈ ZZ, entao

0 = 0 + 0 = 0 + 0 = 0.

Exercıcio: Note que a mesma demonstracao vale com 1 no lugar de 0.Em segundo lugar, o elemento −x referido em (iv) tambem e unico: se x e tal quex + x = 0, entao

x = x + 0 = x + (x + (−x)) = (x + x) + (−x) == (x + x) + (−x) = 0 + (−x) = −x + 0 = −x.

Mas podemos ver algo ainda mais interessante. Suponhamos que nao vamoscomecar pelos naturais, mas sim pelos inteiros. Podemos entao admitir direta-mente, sem fazer referencia a IN , a existencia de um conjunto ZZ, munido dasoperacoes de adicao e multiplicacao , do qual se destaca um subconjunto P (dospositivos), com as seguintes propriedades:

• (i) x + (y + z) = (x + y) + z para todos x, y e z em ZZ;

7

• (ii) x + y = y + x para todos x e y em ZZ;

• (iii) existe em ZZ um elemento 0 tal que x + 0 = x para todo x em ZZ;

• (iv) para todo x em ZZ existe x (denotado por −x) em ZZ tal que x+ x = 0;

• (v) x(yz) = (xy)z para todos x, y e z em ZZ;

• (vi) xy = yx para todos x e y em ZZ;

• (vii) x(y + z) = (xy) + (xz) para todos x, y e z em ZZ;

• (viii) existe em ZZ um elemento 1 6= 0 tal que 1x = x para todo x em ZZ.

• (ix)x + y ∈ P para todos x e y em P ;

• (x) xy ∈ P para todos x e y em P ;

• (xi) se x ∈ ZZ, vale uma e uma so das seguintes: x ∈ P , −x ∈ P ou x = 0.

Observe que a unicidade dos elementos 0 e 1 continua valendo, com a mesmademonstracao , assim como a unicidade do simetrico referido em (iv).Vejamos oque pode ser diretamente deduzido destas propriedades.

Proposicao : Suponhamos que o conjunto ZZ esta munido das operacoes deadicao e multiplicacao e que tem um subconjunto P , de tal forma que valem asonze propriedades acima. Entao :

• (i)−(−x) = x ∀x ∈ ZZ;

• (ii)(−x)y = −(xy) ∀x∀y ∈ ZZ;

• (iii)1 ∈ P

A demonstracao e facil, do nıvel das que acabamos de fazer.

A operacao de subtracao e definida por x− y = x + (−y) e a divisao , quandopossıvel, por x ÷ y = z ⇔ yz = x. Definimos, para x e y em ZZ, x < y por(y − x) ∈ P e x ≤ y por x < y ou x = y (e claro que x > y se y < x e x ≥ y sey ≤ x).

Exercıcio: Mostre que x < y, z > 0 ⇒ xz < yz. Mostre tambem que x < y, z ∈ZZ ⇒ x + z < y + z.

8

Observemos, porem, que o conjunto dos inteiros nao e o unico, dos nossos con-hecidos, a possuir as propriedades acima. E facil ver que o conjunto dos racionaistambem as possui.

Exercıcio: Mostre que A ={n + m

√2, n ∈ ZZ,m ∈ ZZ

}, com as operacoes usuais,

satisfaz as onze propriedades acima.

Para caracterizar ZZ, devemos acrescentar alguma propriedade. Uma possıvelescolha e o chamado princıpio da boa ordenacao :

• (xii)todo subconjunto nao vazio de P tem um menor elemento, isto e: seφ 6= A ⊂ P , entao existe a ∈ A tal que a ≤ x∀x ∈ A.

Proposicao : Se definirmos IN por IN = {0}∪P e S : IN → IN por S(n) = n+1,entao IN satisfaz aos axiomas de Peano.

Demonstracao : S e injetiva, pois x + 1 = y + 1 ⇒ x = (x + 1) − 1 = (y + 1) − 1 = y.0 6= S(n)∀n ∈ IN , pois

0 = n + 1 ⇒ n = −1. Como 1 ∈ P , temos −1 6= 0 e −1 /∈ P . Seja agora A ⊂ IN tal que 0 ∈ A e n ∈ A ⇒ S(n) ∈ A.

Provemos que A = IN . Se X = P \ A, basta provar que X = φ. Se x 6= φ, podemos chamar de m o menor elemento de

X. Note que m ∈ P e m 6= 1 (pois 1 = S(0) ∈ A). Tudo que temos a provar, agora, e que o menor elemento de P e 1,

pois isto nos da 1 < m e, consequentemente, 0 < m − 1 ∈ P ∩ A, o que daria S(m − 1) = m ∈ A. Ora, se a e o menor

elemento de P e a < 1, terıamos aa < a1 = a, o que e impossıvel.

Exercıcio: Seja a um inteiro qualquer e sejam INa = {n ∈ ZZ|n ≥ a} , Sa : INa →INa, Sa(n) = n + 1. Mostre que INa satisfaz aos axiomas de Peano.

Exercıcio: Mostre que A ={n + m

√2, n ∈ ZZ,m ∈ ZZ

}nao satisfaz ao princıpio

da boa ordenacao .Exercıcio: Suponha que dois farois eternos piscam com perıodos distintos a e be que ab−1 e irracional. Suponha tambem que eles acabam de piscar ao mesmotempo. Mostre que:

• (i) nunca mais voltarao a piscar ao mesmo tempo;

• (ii) para qualquer natural n e para qualquer real ε > 0, pode-se garantirque piscarao ambos, daqui a mais de n anos, pelo menos uma vez com umadefasagem menor do que ε.

9

5 Os Racionais

Os racionais, como sabemos, sao os numeros da forma

p

q, p ∈ ZZ, q ∈ ZZ, q 6= 0.

Se quisermos cria-los a partir de ZZ, porem, temos que evitar a ambiguidade.Podemos representar a fracao p/q pelo par ordenado (p, q), mas queremos consid-erar iguais pares ordenados que, embora diferentes, deveriam representar o mesmonumero. Esta e uma pratica comum em Taxonomia, que tem uma definicao precisaem matematiques erudito. Vamos fazer uma pequena digressao para apresenta-la.

Definicao :Uma relacao de equivalencia em um conjunto X e um subconjunto≡ de X ×X (vamos usar a notacao x ≡ y, que se le x e equivalente a y, no lugarde (x, y) ∈≡)4 tal que:

• (i)x ≡ x ∀x ∈ X;

• (ii)x ≡ y ⇒ y ≡ x;

• (iii)x ≡ y, y ≡ z ⇒ x ≡ z.

O conjunto x = {y ∈ X|y ≡ x} e chamado de classe de equivalencia de xpor ≡.Exercıcio: Note que as classes de equivalencia determinam uma particao de X:cada elemento de X pertence a uma e somente uma classe de equivalencia.

O conjunto das classes de equivalencia de X por ≡ e chamado de espacoquociente (ou, mais carinhosamente, quociente) de X por ≡ e notado por X/≡.

Vamos agora usar este conceito para definir os racionais. Seja ZZ∗ = ZZ \ {0}e seja, em ZZ × ZZ∗, a relacao de equivalencia

(p, q) ≡ (m,n) ⇔ pn = mq.

Exercıcio: Mostre que esta e, de fato, uma relacao de equivalencia. Note que(p, q) ≡ (m,n) significa exatamente que p/q = m/n.

Definicao : O conjunto IQ = ZZ × ZZ∗ e chamado de conjunto dos numerosracionais. Em IQ sao definidas as operacoes :

4Como no caso das funcoes , para nao introduzir um novo conceito, relacao, preferimosapresenta-lo em termos de conjuntos: a relacao R e definida pelo conjunto dos paresordenados (x, y) tais que x esta relacionado a y por R

10

• adicao : (p, q) + (m, n) = (np + qm, qn);

• multiplicacao : (p, q)(m,n) = (pm, qn).

Os racionais positivos sao definidos como os que pertencem ao conjunto P dasclasses de equivalencia de pares (m,n), com m e n em IN∗ = IN \ {0}.Exercıcio: Perceba que as definicoes acima sao obvias. Mostre que as operacoes deadicao e multiplicacao estao bem definidas, isto e, independem dos representantesdas classes de equivalencia que considerarmos.Exercıcio: Mostre que, sendo IQ, P , a adicao e a multiplicacao definidos comoacima, valem as seguintes propriedades:

• (i) x + (y + z) = (x + y) + z para todos x, y e z em IQ;

• (ii) x + y = y + x para todos x e y em IQ;

• (iii) existe em IQ um elemento 0 tal que x + 0 = x para todo x em IQ;

• (iv) para todo x em IQ existe −x em IQ tal que x + (−x) = 0;

• (v) x(yz) = (xy)z para todos x, y e z em IQ;

• (vi) xy = yx para todos x e y em IQ;

• (vii) x(y + z) = (xy) + (xz) para todos x, y e z em IQ;

• (viii) existe em IQ um elemento 1 6= 0 tal que 1x = x para todo x em IQ.

• (ix) para todo x em IQ tal que x 6= 0 existe x−1 em IQ tal que xx−1 = 1;5

• (x) x + y ∈ P para todos x e y em P ;

• (xi) xy ∈ P para todos x e y em P ;

• (xii) se x ∈ IQ, vale uma e uma so das seguintes: x ∈ P , −x ∈ P ou x = 0.

Notacao : Se (p, q) ∈ ZZ × ZZ∗, a classe de equivalencia (p, q) sera notada por pq

(ou por p/q). Caso q = 1, usaremos tambem a notacao p para (p, q).

Exercıcio: Considere os conjuntos{(n, 1), n ∈ ZZ

}e

{(n, 1), n ∈ IN

}. Note que o

primeiro e uma “copia” de IN e o segundo uma “copia” de ZZ. Mostre que, mesmo

5um conjunto munido de duas operacoes com as propriedades (i) a (ix) acima e ditoum corpo

11

se nao soubermos de que e feito IQ, o simples fato de gozar das doze propriedadesacima implica na existencia de tais copias. Sugestao : defina ϕ : IQ → IQ porϕ(x) = x+1 e f : IN → IQ por f(0) = 0 (sao zeros diferentes!) e f(S(n)) = ϕ(f(n));mostre que f e uma bijecao e tome f(IN) ∈ IQ como copia de IN . Passaremos adesignar por IN esta copia padrao de IN e por ZZ a copia padrao de ZZ.Exercıcio: Note que os racionais nao sao caracterizados pelas propriedades acima,ja que os reais, por exemplo, tambem as possuem. Mostre que

A ={x + y

√2, x ∈ IQ, y ∈ IQ

}tambem satisfaz as doze propriedades acima.

Para caracterizar IQ, podemos impor uma propriedade a mais:

• (xiii) se K ⊂ IQ e K goza das doze propriedades acima, entao K = IQ.

Exercıcio: Prove que o nosso IQ (que definimos a partir de ZZ) goza desta pro-priedade. Prove que se K ⊂ IQ, basta que K goze das propriedades (i) a (ix), paraque se tenha K = IQ.

Como de habito, definimos, para x e y em IQ, x < y por x − y ∈ P (com asdefinicoes habituais para x ≤ y, x > y e x ≥ y). Para x em IQ definimos o valorabsoluto (tambm dito modulo) de x, |x|, por

|x| =

x, x > 00, x = 0−x, x < 0.

Exercıcio: Sejam x e y numeros racionais. Mostre que |xy| = |x||y|. Mostre que|x + y| ≤ |x|+ |y|. Mostre que |x− y| ≥ ||x| − |y||.

Uma propriedade fundamental e obvia, mas que desempenha um papel central(entre outras coisas, por estar na base dos sistemas de numeracao) e merece serdestacada, e a seguinte:

Proposicao : Seja a ∈ IQ, a 6= 0. Para cada racional q existe um unico inteiro ntal que na ≤ q < (n + 1)a.

Demonstracao : Vamos considerar apenas o caso em que a e q estao em P (os outros sao analogos). Escrevendo a = b/c

e q = j/k, com b, c, j e k em IN , queremos achar o menor n ∈ IN tal que (n + 1)b/c > j/k. Fazendo as contas no

rascunho, isto nos da (n + 1)bk > jc. Isto significa que devemos tomar n = m − 1, onde m e o menor elemento de

A = {x ∈ IN| x(bk) > jc}. Como todo subconjunto nao vazio de IN tem um menor elemento (princıpio da boa ordenacao

12

), a demonstracao estara encerrada se provarmos que A 6= φ. Como b e k nao podem ser nulos, basta mostrar que se

d = bk e e = cj sao naturais, com d 6= 0, entao existe m ∈ IN tal que md > e.

Lema: Se d e e sao naturais, com d > 0, entao existe um natural m tal quemd > e.

Demonstracao : Se nao existisse tal m, terıamos e ≥ xd ∀x ∈ IN e, portanto, e − xd ∈ IN ∀x ∈ IN . Seja

C = {e− xd, x ∈ IN} e seja c0 o menor elemento de C. Temos c0 = e − x0d para um certo x0 ∈ IN . Se considerarmos

x1 = x0 + 1 e c1 = e− x1d, teremos c1 ∈ C e, portanto, c1 ≥ c0. Mas isto significa que e− x0d = c0 ≤ c1 = e− x1d =

e− (x0 + 1)d = e− x0d− d = c0 − d, o que e um absurdo, ja que d > 0.

Um outro resultado basico pode servir de exercıcio.

Exercıcio: Seja q um racional positivo. Mostre que existem naturais m e n semfatores comuns e tais que q = m/n, isto e: se m = dj e n = dk, com d, j e knaturais, entao d = 1 (m/n e dita uma fracao irredutıvel).

6 Os Reais

Se os naturais sao os numeros de contar, os reais sao os numeros de medir.Em uma primeira aproximacao , reduzimos o problema de medir ao de contar daseguinte forma: fixamos um segmento u como unidade; dado um outro segmentos, contamos quantas vezes u cabe dentro de s. Como sabemos, nem sempre temosa sorte de existir um natural n tal que s corresponda exatamente a n copias deu postas lado a lado. Mas sempre podemos dividir u em m partes iguais, bempequenas, ate que nos pareca certo que s corresponde a, exatamente, n destaspartes. Dizemos entao que s corresponde a n/m vezes u. Ou seja: no sistema quetem u por unidade, a medida de s e dada pelo numero n/m.

Mas... a razao alcanca coisas que os olhos nao conseguem ver. Sabemos, peloTeorema de Pitagoras, que, sendo s a diagonal de um quadrado e u o lado domesmo quadrado, o quadrado de lado s tem area igual a duas vezes a do de ladou. Se expressamos s como n/m vezes u, podemos supor que n/m e irredutıvel etal que

n2

m2= 2.

13

Mas isto nos da n2 = 2m2, o que significa que n2 e par. Como o quadrado dequalquer numero ımpar e ımpar (prove!), segue que n e par. Escrevendo n = 2k,temos

2(2k2) = n2 = 2m2.

Daı decorre m2 = 2k2, o que significa que m2 e par e, por conseguinte, m tambeme par. Mas m e n nao poderiam ser ambos multiplos 2, pois n/m foi supostairredutıvel.

Isto significa que, na verdade, nem sempre e possıvel expressar a medida de umsegmento por um numero racional6. Assim, os numeros reais, usados para medir,formam um conjunto mais complicado que o dos racionais. Apenas a partir doseculo XVII, com a assimilacao do sistema de numeracao de posicao e sua extensaopara fracoes decimais, puderam os numeros reais finalmente ser representados deforma “simples”. Recordemos brevemente como isto se da (o leitor esta convidadoa desenhar, sobre uma reta, o procedimento).

Dados os segmentos s e u, fazemos s0 = s, u0 = u, e tomamos um natural a0

tal que s0 esteja entre a0u0 e (a0 + 1)u0 (entendido aı que a0u0 ≤ s < (a0 + 1)u0).Fazemos s1 = s0− a0u0, u1 = (1/10)u0 e tomamos a1 natural tal que a1u1 ≤ s1 <(a1 +1)u1 (note que, necessariamente, 0 ≤ a1 ≤ 9). Mais geralmente, por inducao,definidos sn, un e an, fazemos sn+1 = sn − anun, un+1 = (1/10)un, e tomamosan+1 natural tal que an+1 ≤ sn+1 < (an+1 + 1)un+1.

Exercıcio: Entenda perfeitamente que este procedimento define indutivamente umafuncao a : IN → IN (usaremos a notacao an para a(n)) tal que para todo n > 0,an esta em {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9}.

A funcao a costuma ser representada por a = a0, a1a2a3a4 . . .. Escrevendocada um dos numeros naturais an na base dez, temos a representacao decimaldo numero real (vamos igualmente nota-lo por s) que expressa a razao entre oscomprimentos de s e u. O que acabamos de dizer significa tambem que, para cadan, o numero s esta compreendido entre dois racionais, sn e sn, dados por

sn = a0 + a110 + a2

102 + a3103 + . . . + an

10n ,

sn = sn + 110n .

6em um certo sentido, matematicamente falando, e praticamente impossıvel, dado umsegmento s, que sua medida seja dada por um racional

14

Em outras palavras (e avancando um pouco), podemos dizer que a repre-sentacao a de s nos da uma sequencia (sn) de numeros racionais cujo limite es (usamos tambem a notacao sn → s). Estamos tao habituados a trabalhar comos decimais que costumamos pensar o numero s como se fosse a propria expressaoa0, a1a2a3a4 . . .. Podemos inclusive adotar essa representacao como definicao paranumero real.Exercıcio: Note que esta definicao deve ser acompanhada das definicoes das opera-coes de adicao e multiplicacao, o que pode ser menos simples do que parece. Dada asequencia a = a0, a1a2 . . ., calcule a−1, ou, mais simplesmente, prove sua existencia.

Por outro lado, em muitas situacoes relevantes, os numeros em questao saodados por sequencias de racionais que nao sao do modelo acima. Um bom exemploe dado por

s =∞∑

n=1

1n2

= 1 +122

+132

+142

+ . . . .

Neste caso, s e naturalmente aproximado pela sequencia (sn) dada por

sn =n∑

k=1

1k2

= 1 +122

+132

+142

+ . . . +1n2

.

Um outro exemplo interessante e dado pelo numero π. A forma mais natural dese obter π e inscrever e circunscrever sucessivamente no cırculo unitario polıgonosregulares com um numero crescente de lados, aproximando cuidadosamente porracionais os semiperımetros de cada um deles. Este processo foi descrito por Ar-quimedes ha mais de 2000 anos, muito antes da criacao de nosso sistema de base10.7

Exercıcio: Defina a sequencia (xn) por um x0 qualquer racional positivo e xn+1 =12(xn + 2

xn). Esta e uma forma simples de criar uma sequencia de racionais apro-

ximando o numero√

2 (que sabemos nao ser racional). Entenda isto.

Uma das maneiras mais concretas de definir o numero e e dada por

e = 1 + 1 +12

+13!

+14!

+15!

+ . . . =∞∑

n=0

1n!

,

o que equivale a caracteriza-lo por meio da sequencia de numeros racionais

7a primeira prova de que π e, de fato, um numero irracional foi dada em 1770 porLambert

15

en =n∑

k=0

1k!

.

Um ultimo e crucial exemplo: consideremos um inocente numero racional,digamos 1/7. Sua expansao decimal nos da 1/7=0,142857142857.... Como bemsabemos, isto dara uma sequencia (sn) tal que sn+1 6= sn∀n ∈ IN . No entantoo mesmo numero 1/7, quando representado na base 7, se escreve 1/7=0,1. Acorrespondente sequencia (sn) e dada por s0 = 0 e sn = 1/7 ∀n > 0.

Isto e mais que um exemplo: a menos que queiramos atrelar a definicao denumero real a base do sistema de numeracao , e mais conveniente aceitar quecada real e caracterizado nao por uma, mas por uma infinidade de sequencias(diferentes) de numeros racionais. E claro que ainda estamos longe de dar, comisto, uma definicao precisa do conjunto dos numeros reais, mas ja podemos tracaruma estrategia.

Estrategia:

• (i)consideraremos equivalentes as sequencias de racionais que definem omesmo numero real; isto deve estabelecer uma relacao de equivalencia entresequencias de racionais;

• (ii)um numero real deve ser definido, a exemplo do que fizemos com osracionais, como uma classe de equivalencia de sequencias de racionais.

Para que isto de resultado, porem, precisamos de uma definicao de limite e,principalmente, de um criterio que nos permita decidir, sem exibir esse limite, seuma sequencia tem ou nao limite.

Exercıcio: Pare e pense profundamente. Se vamos definir os numeros reais a partirdas sequencias de racionais que para eles convergem, nao podemos fazer coisascomo: a sequencia en =

∑nk=0 1/k! define o numero e porque converge para e - isto

seria usar um numero que ainda nao existe na sua propria definicao .Exercıcio: Pense em um caso conhecido: quando provamos que existe a somainfinita e =

∑∞k=0 1/k!, o que fazemos e provar que a sequencia en =

∑nk=0 1/k! e

crescente e que en < 3 ∀ n ∈ IN . Assim, implicitamente, aplicamos um criterioque garante que aquela sequencia tem um limite sem ter que exibi-lo a priori. Aocontrario, uma vez provada a existencia do limite, este e batizado com o nome e.

16

7 Limites de Sequencias

Seja (an) uma sequencia de numeros racionais e a um numero racional. Dize-mos que (an) converge para a, com a notacao

limn→∞

an = a,

se, por melhor que enxerguemos, a partir de um certo ponto “vemos” an = a.A expressao por melhor que enxerguemos deve ser entendida da seguinte manei-

ra: nossa capacidade de distinguir dois pontos sera dada por um numero (racional)positivo ε, de forma que veremos como iguais dois pontos que distem menos doque ε um do outro; tal ε deve poder ser tomado tao pequeno quanto se queira(para significar por melhor que enxerguemos).

Em termos mais precisos, devemos ser capazes de, fixado um ε positivo qual-quer, encontrar um n0 a partir do qual a distancia entre an e a (medida por |an−a|)sera sempre inferior a ε. Mais concisamente, temos a

Definicao: O limite da sequencia (an) e o numero a (notacao : limn→∞ an = a,ou an → a) se

∀ε > 0 ∃n0 ∈ IN | n > n0 ⇒ |an − a| < ε.

Se nao quisermos citar explicitamente o limite a, diremos simplesmente que (an)converge (ou que e convergente).

Exercıcio: Pense meia hora sobre a definicao acima.

Definicao: Diremos que limn→∞ an = ∞ se

∀ M ∈ IQ ∃ n0 ∈ IN | n > n0 ⇒ an > M

(a definicao de limn→∞ an = −∞ e analoga).

Exercıcio: Seja q um racional, com |q| < 1. Mostre que qn → 0. Seja an =∑n

k=0 qk.Mostre que (an) converge para 1/(1− q) (estamos pondo, por definicao, 00 = 1).

Temos agora que demonstrar os resultados obvios sobre limites. Cada uma dasproposicoes deste capıtulo e fundamental. O leitor deve procurar demonstrar cadauma delas por si proprio, sem ler as demonstracoes do texto (que estao em letrasmiudas de proposito). Se, apos um mınimo de duas horas de esforco (para cadauma), nao tiver conseguido, pode dar uma primeira lida para pegar a ideia. Mas

17

nao deve se dar por satisfeito enquanto nao conseguir faze-las sozinho, acreditarnelas e se sentir capaz de convencer outras pessoas de sua veracidade.

Proposicao : Uma sequencia nao pode ter mais de um limite.

Demonstracao : Suponhamos que an → a e an → b, com a 6= b. Vamos usar o princıpio do cobertor curto,escolhendo ε tal que nao seja possıvel estar simultaneamente a uma distancia menor que ε de a e de b. Tomemosε = |b − a|/2.Como an → a, podemos tomar n1 tal que n > n1 ⇒ |an − a| < ε. Da mesma forma, podemos tomar n2tal que n > n2 ⇒ |an − a| < ε.Dados tais n1 e n2, seja n0 o maior dos dois. teremos entao , para n > n0, |an − a| < εe |an − b| < ε. Mas isto nos da

|b− a| = |(b− an) + (an − a)| ≤ |b− an| + |an − a| < ε + ε = 2ε = |b− a|,

o que e absurdo.

Proposicao : Sejam (an) e (bn) sequencias e a e b numeros racionais tais quean → a e bn → b. Entao :

• (i)(an + bn) → (a + b);

• (ii)(anbn) → (ab);

• (iii) se a 6= 0, entao existe m tal que n > m ⇒ an 6= 0; neste caso, con-siderando apenas n > m, temos (1/an) → (1/a).

Demonstracao : Queremos, em cada caso, mostrar que, dado ε > 0, existe n0 tal que a diferenca entre o valor da sequenciae o limite proposto e, em modulo, inferior a ε. Vejamos cada item:

(i)Dado ε > 0, sejam n1 e n2 tais que n > n1 ⇒ |an − a| < ε/2 e n > n2 ⇒ |bn − b| < ε/2. Seja n0 o maior dentren1 e n2. Se n > n0, teremos n > n1 e n > n2, de forma que

|(an + bn)− (a + b)| = |(an − a) + (bn − b)| ≤ |an − a| + |bn − b| < ε/2 + ε/2 = ε.

(ii)Escrevendo αn = an − a e βn = bn − b, temos

|anbn − ab| = |bαn + aβn + αnβn| ≤ |bαn| + |aβn| + |αnβn|.

Seria agora conveniente achar n0 tal que, para n > n0, cada uma das tres parcelas a direita fosse inferior a ε/3. Paracontrolar a primeira, podemos pensar em n1 tal que

n > n1 ⇒ |αn| <ε

3|b|.

Mas, como nao podemos jurar que b 6= 0, e melhor tomar n1 tal que

n > n1 ⇒ |αn| <ε

3(|b| + 1).

Da mesma forma, tomemos n2 tal que

n > n2 ⇒ |βn| <ε

3(|a| + 1).

Poderıamos quase jurar que, nestas condicoes |αnβn| esta sob controle: afinal, estamos com

|αn| <ε

3(|b| + 1)≤

ε

3, |βn| <

ε

3(|a| + 1)≤

ε

3.

Na verdade, se ε nao for pequeno, podemos ter ε/3 > 1. Para evitar tal inconveniente, podemos impor uma condicao amais anossos αn (poderia, e claro, ser com os βn): tomamos n3 tal que n > n3 ⇒ |αn| < 1. Agora basta tomar para n0o maior dentre n1, n2 e n3.

(iii)Comecemos provando que, sendo a 6= 0, temos an 6= 0 para n suficientemente grande. Usando o princıpio docobertor curto, tomamos m tal que n > m ⇒ |an − a| < |a|/2. temos entao , se n > m,

18

|an| = |(an − a) + a| ≥ ||a| − |an − a|| = |a| − |an − a| > |a| −|a|2

=|a|2

> 0.

Seja agora ε > 0. Queremos, ja supondo n > m, obter |(1/an)− 1/a)| < ε. Mas∣∣∣ 1

an−

1

a

∣∣∣ =

∣∣∣a− an

aan

∣∣∣ =1

|aan||an − a|,

Como ja estamos com |an| > |a|/2, podemos assegurar que 1/|aan| < 2/|a|2. Logo, para n > m, temos∣∣∣ 1

an−

1

a

∣∣∣ <2

|a|2|an − a|.

Se conseguirmos fazer com que |an − a| seja inferior a |a|2ε/2, teremos a vitoria. Ora, como an → a, basta tomar n1 tal

que isto aconteca para n > n1(note que |a|2ε/2 e positivo). Agora e so fazer n0 igual ao maior dentre m e n1.

Exercıcio: Seja c um racional fixo e seja (bn) dada por bn = c∀n ∈ IN . Mostre quebn → c. Conclua que, se an → a, entao can → ca; em particular, (−an) → (−a).Mostre que an → a, bn → b ⇒ (an − bn) → (a − b). Mostre que, se a 6= 0an → a, bn → b, entao existe m tal que an 6= 0 para n > m e que, para n > m, setem bn/an → b/a.Exercıcio: Sejam (an) e (bn) sequencias de racionais tais que an → 0 e existe c ∈ IQtal que |bn| < c∀n ∈ IN . Mostre que anbn → 0.Exercıcio: Seja (an) uma sequencia tal que (an) nao converge para zero. Mostreque existem α > 0 e n0 ∈ IN tais que |an| > α ∀n > n0.

Os resultados acima sao , certamente, importantes e uteis. Mas temos umproblema: as sequencias de racionais que usamos para definir numeros irracionaisnao tem, com certeza, limite em IQ. Por outro lado, nem toda sequencia que naotem limite em IQ define, de fato, um numero real.Exercıcio: Sejam (an), (bn) e (cn) as sequencias de racionais dadas por an =(−1)n, bn = n, cn = p/q, com p e q naturais nao nulos e tais que (p + q − 1)(p +q − 2)/2 + q = n. Mostre que nenhuma das tres e digna de convergir (a terceiracontem um pequeno enigma e e um tanto mais difıcil que as outras duas).

Isto nos coloca duas questoes :

• Como distinguir, dentre as sequencias de racionais, aquelas que definem, defato, um numero real?

• Como decidir se duas sequencias distintas definem um mesmo numero real?

A segunda questao tem uma resposta simples: duas sequencias (an) e (bn) queconvergem para o mesmo numero sao tais que (an − bn) converge para zero. Isto

19

e otimo, ja que, para decidir se an − bn → 0, nao precisamos saber para que valorconvergem (an) e (bn) !

A primeira questao , porem, e mais delicada: precisamos de um criterio quenos permita dizer que uma sequencia tem limite, sem ter que exibir tal limite.8

Uma resposta pode ser dada pela seguinte observacao : se uma sequencia (an)converge para a, os an, ao se aproximarem de a, tem que se aproximar uns dosoutros. Ou seja, a partir de um certo ponto, por melhor que enxerguemos, “ve-mos” todos os an como se fossem iguais. Podemos dizer que este comportamentoindepende, na verdade, de a ser racional ou irracional.

Ora, isto quer dizer que, dado qualquer ε positivo (para marcar o quao bemenxergamos), teremos um n0 tal que, para n e m maiores que n0, a distancia entrean e am, dada por |an − am|, e inferior a ε.

8 Sequencias de Cauchy

Definicao: Uma sequencia (an) e dita de Cauchy se

∀ε > 0 ∃n0 ∈ IN | n, m > n0 ⇒ |an − am| < ε.

Proposicao: Toda sequencia convergente e de Cauchy.

Demonstracao: Suponhamos que an → a e seja ε > 0 dado. Basta tomar n0 tal que n > n0 ⇒ |an − a| < ε/2. Temosentao , se n > n0 e m > n0,

|an − am| = |an − a + a− am| = |(an − a) + (a− am)| ≤ |an − a| + |a− am| < ε2 + ε

2 = ε.

Exercıcio: Veja se esta claro para voce que o resultado acima deve ser verdadeirotambem quando a for um numero real. Mais ainda: veja se, dentro do que acreditaque sejam os reais, e razoavel crer que as definicoes e proposicoes sobre limites queate agora discutimos devem continuar verdadeiras em IR.

8Temos que fugir a tentacao de dizer, por exemplo, que an =∑n

k=0 1/n! e bn =(1+1/n)n tem o mesmo limite porque ambas convergem para e: no atual estagio, estamostentando definir os numeros reais (dentre eles o numero e); desta forma, se nos limitamosaos racionais, nem (an) nem (bn) tem limite

20

Exercıcio: Mostre que, sendo (an) uma sequencia de Cauchy, existe M tal que|an| < M ∀n ∈ IN . Sugestao : tome n0 tal que |an − am| < 1 ∀n, m > n0 e facaM igual ao maior dentre |a0|, |a1|, . . . , |an0 | e |an0+1|+ 1.Exercıcio: Seja (an) dada por a0 = 2 e an+1 = an/2 + 1/an. Mostre que (an) e deCauchy, mas nao existe a em IQ tal que an → a (atencao, nao vale roubar: suporque existe o limite e depois provar que este e

√2 foge as regras, ja que

√2, para

nos, ainda “nao existe”; vai ser preciso provar diretamente que (an) e de Cauchy).Exercıcio: Seja (an) uma sequencia de naturais tal que an ∈ {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9}para todo n > 1 e seja (sn) dada por sn =

∑nk=0 ak/10k. Mostre que (sn) e de

Cauchy.

Pelo que acabamos de ver, as sequencias de Cauchy podem ser chamadas de“potencialmente convergentes”: se uma sequencia de Cauchy de racionais naotem limite em IQ, entao e por que seu limite e um numero real. Mas, como osnumeros reais ainda nao foram formalmente definidos, esta afirmativa ainda naofaz sentido. A consagrada representacao de numero real, dada por objetos do tipo±a0, a1a2a3 . . ., com a0 ∈ IN e an ∈ {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9} ∀n > 0,9 nos indicaque “pensamos” um numero real como um tipo particular de sequencia de Cauchyde racionais. Nosso proposito, agora, e radicalizar esta ideia, definindo um numeroreal por uma sequencia de Cauchy (qualquer) de racionais.

Para tornar equivalentes sequencias de Cauchy com o mesmo limite, vamoscriar um monstro que, felizmente, tera vida provisoria.

Seja R o conjunto de todas as sequencias de Cauchy de numeros racionais.Definamos em R a seguinte relacao, dada por ≡:

(an) ≡ (bn) ⇔ limn→∞

(an − bn) = 0.

Exercıcio: Mostre que ≡ e uma relacao de equivalencia.

Definicao : Um numero real e uma classe de equivalencia de R pela relacaoacima. O conjunto dos numeros reais e designado por IR. Se o numero real xcorresponde a sequencia (an), diremos que x e representado, ou definido, por(an).

Exercıcio: Mostre que, se (an) e de Cauchy e (bn − an) → 0, entao (bn) tambeme de Cauchy (sugestao : faca |bn − bm| = |(bn − an) + (an − am) + (am − bm)| ≤|bn − an|+ |an − am|+ |am − bm|).

9As correspondentes sequencias de racionais sao dadas por qn = ±∑n

k=0 ak/10k

21

Exercıcio: Mostre que, se q e um racional e (an) e uma sequencia de Cauchy, entaoou bem an → q, ou bem existe n0 ∈ IN tal que, para n > n0, todos os an estao domesmo lado de q (todos acima ou todos abaixo).

Para garantir que o monstro nao e tao mau quanto parece, temos um teoremaa demonstrar.

Teorema: Seja b um natural, com b > 1. Para toda sequencia de Cauchy (an) deracionais, existe uma sequencia de Cauchy (qn) tal que (qn) ≡ (an), com (qn) deuma das seguintes formas:

qn = 0 ;

qn =n∑

k=0

bk

bk;

qn = −n∑

k=0

bk

bk,

com b0 ∈ IN , e bn ∈ {m ∈ IN | m < b} ∀n ∈ IN∗.

Demonstracao: Fixemos o b e seja (an) nossa sequencia . Se an → 0, estamos no caso qn = 0∀n ∈ IN . Podemos entaosupor que (an) nao converge para 0. Observemos agora o seguinte: se a sequencia de Cauchy (an) nao converge paraq, entao existe no tal que an > q ∀n > no ou an < q ∀n > no (vamos usar reiteradamente esta ideia). Basta entaoconsiderar o caso em que an > 0 para n suficientemente grande. Consideremos os numeros da forma

q =

m∑k=0

bk

bk, b0 ∈ IN, bk ∈ {m ∈ IN | m < b} ∀k ≤ m.

Se (an) converge para algum destes numeros, entao (an) ≡ (qn), com

qn =

n∑k=0

bk

bk,

entendido que bk = 0 se k > m. Podemos entao supor que (an) nao converge para nenhum dos numeros q como acima.Usando a base b para representar os naturais, e facil ver que os racionais acima referidos sao os numeros da forma

q = p1

bm, p ∈ IN

∗, m ∈ IN.

Como (an), sendo de Cauchy, e limitada superiormente por algum M , temos que, para cada n em IN , existe umnatural pn tal que, a partir de um certo no, todos os am seao tais que

pn

bn< am <

pn + 1

bn.

Basta entao fazer qn = pn/bn.

Exercıcio: Preencha os detalhes obscuros da demonstracao. Entenda que o teoremaacima significa que, fixada uma base b para o sistema de numeracao , todo numeroreal tem uma representacao na base b. Esta representacao e unica? Se nao e, quais

22

sao os numeros que tem mais de uma e quantas representacoes , no maximo, podeum numero ter?

Definido e entendido o que e um numero real, ficam ainda por definir asoperacoes e a ordem em IR. Esta e nossa proxima ocupacao .

Definicao : Sejam a e b os numeros reais representados, respectivamente, pelassequencias de Cauchy (an) e (bn). Entao sua soma, a + b, e seu produto, ab, saoos numeros reais definidos, respectivamente, pelas sequencias de Cauchy (an + bn)e (anbn).

A definicao acima depende, e claro, da demonstracao de algumas coisas: deve-mos poder garantir que as sequencias (an +bn) e (anbn) sao , de fato, de Cauchy e,mais ainda, que os numeros reais por elas definidos nao mudariam se trocassemos(an) e (bn) por sequencias equivalentes.

Proposicao : Sejam (an) e (bn) sequencias de Cauchy em IQ. Entao :• (an + bn) e (anbn) sao sequencias de Cauchy;

• se (an) ≡ (an) e (bn) ≡ (bn), entao (an + bn) ≡ (an + bn) e (anbn) ≡ (anbn).

Demonstracao : Para provar que (an + bn) e (anbn) sao de Cauchy, fixemos ε > 0. Tomando n1 tal quen, m > n1 ⇒ |an − am| < ε/2 e n2 tal que n, m > n2 ⇒ |bn − bm| < ε/2, temos que, se m, n > no = n1 + n2, entaom, n > n1 e m, n > n2; logo, |(an +bn)−(am +bm)| = |(an−am)+(bn−bm)| ≤ |an−am|+|bn−bm| < ε/2+ε/2 = ε,o que prova que (an + bn) e de Cauchy. Por outro lado, escrevendo |anbn − ambm| = |an(bn − bm) + bm(an − am)| ≤|an||bn − bm| + |bm||an − am|, podemos tomar n3, n4, M1 e M2 tais que:

• |an| < M1∀n ∈ IN ;

• |bm| < M2∀m ∈ IN ;

• m, n > n3 ⇒ |bn − bm| < ε/2M1;

• m, n > n4 ⇒ |an − am| < ε/2M2.

Entao , se m, n > no = max {n3, n4, n5, n6}, temos |anbn − ambm| < ε, o que mostra que (anbn) e de Cauchy.

Para provar a segunda parte, basta notar que se (an− an) → 0 e (bn − bn) → 0, entao :

• (an + bn − an − bn) = (an − an) + (bn − bn) → 0;

• (anbn− an bn) = an(bn− bn)+ bn(an− an) → 0 (note que (an) e (bn), sendo de Cauchy, sao limitadas).

As operacoes acima definidas fazem de IR um corpo, isto e, satisfazem asseguintes propriedades:

• (i) x + (y + z) = (x + y) + z para todos x, y e z em IR;

• (ii) x + y = y + x para todos x e y em IR;

23

• (iii) existe em IR um elemento 0 tal que x + 0 = x para todo x em IR;

• (iv) para todo x em IR existe −x em IR tal que x + (−x) = 0;

• (v) x(yz) = (xy)z para todos x, y e z em IR;

• (vi) xy = yx para todos x e y em IR;

• (vii) x(y + z) = (xy) + (xz) para todos x, y e z em IR;

• (viii) existe em IR um elemento 1 6= 0 tal que 1x = x para todo x em IR.

• (ix) para todo x em IR tal que x 6= 0 existe x−1 em IR tal que xx−1 = 1.

Das onze propriedades acima (que o leitor deve ser capaz de demonstrar so-zinho), provaremos a (ix), que e um pouco mais difıcil que as demais.

Demonstracao de (xi): O numero real 0 corresponde as sequencias de racionais que convergem para 0. Assim, sex ∈ IR e x 6= 0, podemos tomar uma sequencia qualquer (an) representando x e, como (an) nao converge para 0, garantirque existe um m1 ∈ IN tal que an 6= 0 ∀n > m1 (mais ainda: como (an) e de Cauchy, existem um α ∈ IQ e um m2 ∈ IN

tais que |an| > α > 0 ∀n > m2). Podemos entao definir x−1 pela sequencia (bn) dada por

bn =

{1/an, n > m1,0, n ≤ m1.

Devemos provar que (bn) e de Cauchy. Sendo m1, m2 e α como acima, temos para n e m maiores que m1 e quem2,

|bn − bm| =

∣∣∣ 1

an−

1

am

∣∣∣ =|am − an||anam|

<1

α2|an − am|.

Supondo dado ε > 0, podemos tomar m3 ∈ IN tal que n, m > m3 ⇒ |a − m − an| < α2ε e fazer no =max {m1, m2, m3}. Entao , para n, m > no, temos bn − bm| < ε.

E imediato que, para x−1 assim definido, temos xx−1 = 1 (onde o numero real 1 e definido pela sequencia (1n) dada

por 1n = 1 ∀n ∈ IN). Para fechar a demonstracao , devemos provar que o x−1 que obtivemos independe do processo queutilizamos. A prova e puramente algebrica. Se, por um outro processo qualquer (usando outra sequencia para representarx, por exemplo), obtivessemos um x tal que xx = 1, terıamos:

x = x1 = x(xx−1

) = (xx)x−1

= (xx)x−1

= 1x−1

= x−1

.

Exercıcio: Note que existe, dentro de IR, uma “copia” de IQ, dada pelas sequenciasconstantes (isto e, o numero racional q tem em IR um clone, dado pela sequencia(qn), qn = q ∀n ∈ IN).

Para definir a ordem em IR, basta que digamos quais sao os numeros positivos.

Exercıcio: Seja (an) a sequencia definida por an = 1/(n + 1). Note que:

• an > 0 ∀n ∈ IN ;

• an → 0.

24

O exercıcio acima nos mostra que, para definir o conjunto P dos reais positivos,nao e uma boa ideia incluir todos os que podem ser representados por sequenciasde Cauchy (an) com an > 0 ∀n ∈ IN , pois isto resultaria em fazer de 0 um numeropositivo. Por outro lado, a exigencia de que an > 0 ∀n ∈ IN pode ser excessiva.

Exercıcio: Seja (bn) a sequencia dada por

bn =

{−1, n ≤ 1989,

1, n > 1989.

Note que (bn) e de Cauchy, os bn nao sao todos positivos, mas (bn) certamentecorresponde a um real positivo.

Poderıamos dizer, entao , que os reais positivos sao os representados por se-quencias de Cauchy (an) de racionais para cada uma das quais existe m ∈ IN talque an > 0 ∀n > m e tais que (an) nao converge para 0. Vamos, porem, adotaruma outra definicao (que o leitor esta convidado a provar ser equivalente).

Definicao: Um numero real x e dito positivo se pode ser representado por umasequencia de Cauchy (an) de racionais tal que existem um racional α e um naturalm com an > α ∀n > m. Designaremos por P o conjunto dos reais positivos. Dadosx e y em IR, diremos que x e maior que y quando (x− y) ∈ P (notacao : x > y).As definicoes para “≥”, “<” e “≤” sao as usuais.

Como de habito, devemos provar que a definicao nao depende da sequencia(an) escolhida para representar x. Vamos incluir a demonstracao no lema abaixo.

Lema: Se x e um real positivo, entao existe um racional q tal que 0 < q < x(estamos identificando q com o real dado pela sequencia constante e igual a q).

Demonstracao : Sejam (an) uma sequencia representando x, α racional positivo e m natural tais que an >α ∀n > m. Se (bn) e uma outra sequencia representando x, temos an − bn → 0, de forma que podemos tomar m1 tal quen > m1 ⇒ |an − bn| < α/2. Daı segue, para n acima de m e de m1,

bn = an + (bn − an) ≥ an − |bn − an| > α−α

2=

α

2.

Isto mostra que, para toda sequencia (bn) representando x, existe no tal que bn > α/2 ∀n > no. Fazendo q = α/4,

temos tambem bn−q > α/4 ∀n > no, o que mostra que, identificando q com a correspondente sequencia constante, temos

x > q > 0, como prometido.

Podemos agora garantir que o conjunto P dos reais positivos satisfaz as pro-priedades:

• (x) x + y ∈ P para todos x e y em P ;

25

• (xi) xy ∈ P para todos x e y em P ;

• (xii) se x ∈ IR, vale uma e uma so das seguintes: x ∈ P , −x ∈ P ou x = 0.

Obviamente, as doze propriedades que acabamos de enunciar, sendo comuns aIR e a IQ, nao sao suficientes para caracterizar o conjunto dos numeros reais. Masja podemos, com elas, falar em modulo (ou norma) de um numero real e definirlimite (em IR) de uma sequencia de numeros reais.

Definicao: Dado um numero real x, seu valor absoluto (tambem dito modulo,ou norma), e o elemento de P dado por

|x| =

x, se x ∈ P ;0, se x = 0;−x, se − x ∈ P.

Exercıcio: Prove as tradicionais propriedades do valor absoluto. Nao esqueca adesigualdade triangular: |x + y| ≤ |x| + |y| ∀x, y ∈ IR. Prove tambem que|x− a| < ε ⇔ a− ε < x < a + ε.

Definicao : Uma sequencia (xn) de numeros reais converge para o numero realx se

∀ε > 0 ∃n0 ∈ IN | n > n0 ⇒ |xn − x| < ε.

Diremos, neste caso, que x e o limite de xn (quando n tende a infinito) e usaremos,indiferentemente, as notacoes xn → x, limn→∞ xn = x ou lim xn = x.

Valem, obviamente, e com as mesmas demonstracoes , as mesmas propriedadesque ja provamos para sequencias de racionais (inclusive as definicoes e propriedadesde sequencias de Cauchy).

Definicao: Uma sequencia (xn) de numeros reais e dita de Cauchy se

∀ε > 0 ∃n0 ∈ IN | n, m > n0 ⇒ |xn − xm| < ε.

Como ja vimos, existem sequencias de Cauchy de numeros racionais que naoconvergem para qualquer elemento de IQ. Este foi, na verdade, o ponto de partidae a motivacao para nossa construcao de IR. Concluıda a (laboriosa) construcao,e chegada a hora de demonstrarmos o aguardado teorema garantindo que todoreal e limite de uma sequencia de racionais e que toda sequencia de Cauchy de

26

racionais tem limite em IR. Na verdade, provaremos um pouco mais, ja que pode-mos trabalhar tambem, agora, com sequencias de Cauchy de numeros reais. Estasconsideracoes fazem sentido, e claro, por estarmos identificando cada racional q aoreal definido pela sequencia constante (qn), qn = q ∀n ∈ IN .

Teorema: O conjunto dos numeros reais tem as seguintes propriedades:

• todo numero real e limite de uma sequencia de numeros racionais;

• toda sequencia de Cauchy de numeros reais converge para um numero real.

Demonstracao : Seja x um numero real e seja (an) uma sequencia de racionais que representa x. Vamos mostrarque a sequencia (qn) de reais dada pelos proprios an converge para x (note que cada qm e definido pela sequencia constante(qmn) dada por qmn = am). Seja, pois, dado um numero real ε positivo (note que ε deve ser dado, tambem, por uma se-quencia (εn) de racionais). Podemos entao tomar um racional α, positivo, e um n1 ∈ IN tais que n > n1 ⇒ 0 < α < εn.Como (an) e de Cauchy, podemos tomar n2 ∈ IN tal que n, m > n2 ⇒ |an − am| < α/2. Isto nos da, sendoqmn = am ∀n ∈ IN, |an − qmn| < α/2 ∀m, n > n2. Seja entao n0 = max {n1, n2}. Fixado m > n0, temos, paran > n0, εn − |an − qmn| > α/2. Mas isto significa que |x − qm| < ε ∀m > n0, o que prova que todo real e limite deuma sequencia de racionais e, ao mesmo tempo, que toda sequencia de Cauchy de racionais converge para o real por eladefinido.

Seja agora (xn) uma sequencia de Cauchy em IR e seja, para cada n ∈ IN , qn um racional tal que |qn − xn| < 1/n

(acabamos de provar que tal qn existe, ja que xn e limite de uma sequencia de racionais). Como (xn) e de Cauchy, (qn)

tambem e. De fato, se ε e um real positivo, podemos, tomando n1 ∈ IN tal que n, m > n1 ⇒ |xn −xm| < ε/3 e n2 ∈ IN

tal que n > n2 ⇒ 1/n < ε/3, concluir que n, m > n0 = max {n1, n2} ⇒ |qn−qm| = |qn−xn|+|xn−xm|+|xm−qm| <

1/n + ε/3 + 1/m < ε. Ora, sendo (qn) uma sequencia de Cauchy de racionais, existe um real x tal que qn → x. Mas isto

equivale a (qn − x) → 0. Como, por outro lado, temos (xn − qn) → 0, segue (xn − x) → 0, o que prova a convergencia

de (xn).

Corolario: Entre dois reais distintos existe sempre um racional.

Demonstracao : Sejam x e y reais, com x 6= y. Suponhamos, para simplificar, que y > x. Como y − x > 0, podemos

tomar racionais a e b com |x − a| < (y − x)/2 e |y − b| < (y − x)/2. Seja q = (a + b)/2. Temos entao , como

a− (y−x)/2 < x < a+(y−x)/2, que x− (y−x)/2 < a < (x+y)/2. Analogamente, temos (x+y)/2 < b < y +(y−x)/2.

Somando as desigualdades, temos 2x < a + b < 2y.

Exercıcio: Mostre que entre dois reais distintos existe sempre um irracional. Su-gestao : comece provando a existencia de um irracional positivo u (

√2, por exem-

plo).

Tendo construıdo o conjunto dos numeros reais e provado suas propriedadesfundamentais, podemos agora, sem remorso, esquecer as classes de equivalencia desequencias de Cauchy de racionais. Podemos simplesmente trabalhar com os reaisa partir de suas propriedades, sem estarmos a lembrar, a cada instante, de quematerial sao feitos.

27

9 Propriedades caracterısticas de IR

Comecaremos de novo, agora a partir de IR, cujas propriedades fundamentaislistamos a seguir. O conjunto IR dos numeros reais e dotado de duas operacoes ,ditas de adicao ((x, y) 7→ x + y) e de multiplicacao ((x, y) 7→ xy), alem de umsubconjunto P (dos positivos), de forma que valem as seguintes propriedades:

• (i) x + (y + z) = (x + y) + z para todos x, y e z em IR;

• (ii) x + y = y + x para todos x e y em IR;

• (iii) existe em IR um elemento 0 tal que x + 0 = x para todo x em IR;

• (iv) para todo x em IR existe −x em IR tal que x + (−x) = 0;

• (v) x(yz) = (xy)z para todos x, y e z em IR;

• (vi) xy = yx para todos x e y em IR;

• (vii) x(y + z) = (xy) + (xz) para todos x, y e z em IR;

• (viii) existe em IR um elemento 1 6= 0 tal que 1x = x para todo x em IR.

• (ix) para todo x em IR tal que x 6= 0 existe x−1 em IR tal que xx−1 = 1.

• (x) x + y ∈ P para todos x e y em P ;

• (xi) xy ∈ P para todos x e y em P ;

• (xii) se x ∈ IR, vale uma e uma so das seguintes: x ∈ P , −x ∈ P ou x = 0;

• (xiii) se (xn) e uma sequencia de Cauchy em IR, entao existe x em IR talque xn → x.

Como ja vimos, IR contem uma “copia” de IQ (que sera, doravante, identificadaao original), o mesmo acontecendo com ZZ e IN . Vamos aproveitar as propriedadesde IN , ZZ e IQ ja demonstradas, mas poderıamos tentar partir dos axiomas acimae reconstruir tudo. Neste caso, ainda falta uma propriedade para caracterizarIR. De fato, usamos fortemente o fato (aparentemente obvio) de que a sequencia(1/(n+1) converge para 0. Isto equivale a seguinte propriedade, dita propriedadearquimediana:

28

• (xiv) para todo x em IR e para todo ε em P existe n em IN tal que nε > x.

No enunciado da propriedade arquimediana, usamos, e claro, conceitos que naoforam definidos neste capıtulo, mas que podem ser recriados: a > b significa(a + (−b)) ∈ P e IN e o menor subconjunto de IR contendo {0, 1} e fechado paraa adicao (isto e, ao qual pertence a soma de quaisquer dois de seus elementos).De qualquer forma, se tivessemos que comecar nosso estudo dos numeros pelosreais, seria desagradavel partir de axiomas como os acima, que fazem referenciaaos naturais e ao conceito de limite. Por este motivo, e usual, quando se tomamos reais como ponto de partida, substituir as propriedades (xiii) e (xiv) por umaoutra, conceitualmente mais simples, dita propriedade do supremo.

Um intervalo em IR (poderia tambem ser em IQ, ZZ ou mesmo em IN) e umsubconjunto I de IR tal que

x, y ∈ I, x < z < y ⇒ z ∈ I

(onde a relacao x < y e definida, como de habito, por (y−x) ∈ P , assim como x ≤ ysss x < y ou x = y e x ≥ y sss x > y ou x = y). Se I = {x ∈ IR | a ≤ x ≤ b}, I enotado [a, b]; se I = {x ∈ IR | a < x ≤ b}, I e notado ]a, b], com definicoes analogaspara [a, b[ e ]a, b[. A propriedade do supremo afirma, simplesmente, que intervaloslimitados possuem extremidades. Sejamos mais precisos.

Propriedade do Supremo: Se φ 6= A ⊂ IR e A e limitado superiormente, isto e,

∃ M ∈ IR | M ≥ a ∀ a ∈ A,

entao existe s em IR, dito o supremo de A, tal que:

• s ≥ a ∀ a ∈ A;

• r ≥ a ∀ a ∈ A ⇒ r ≥ s.

Demonstracao : Note, inicialmente, que I = {r ∈ IR | r ≥ a ∀ a ∈ A} e um intervalo (um elemento de I e ditouma cota superior de A). Mais: se r1 ∈ I e r2 > r1 entao necessariamente r2 ∈ I. Sejam agora a0 um elemento de A eb0 = M . Vamos definir, indutivamente duas sequencias , (an) e (bn), da seguinte forma: fazemos cn = (an + bn)/2 e

an+1 =

{an, cn ∈ Icn, cn /∈ I

bn+1 =

{cn, cn ∈ Ibn, cn /∈ I

Basta agora notar que:

• bn ∈ I ∀n ∈ IN ;

• ∀ n ∈ IN ∃αn ∈ A | an ≤ αn;

• an < bm ∀ n, m ∈ IN ;

• bn − an = (M − a0)/2n ∀ n ∈ IN .

29

Daı segue que (an) e (bn) sao sequencias de Cauchy, convergindo ambas para o mesmo limite s. Vamos mostrar que

s e o supremo de A. Primeiramente, nao pode haver a ∈ A com a > s, pois, neste caso, haveria necessariamente n ∈ IN

tal que bn < a, o que e impossıvel. Por outro lado, se existisse r tal que r ∈ I e r < s, haveria n ∈ IN tal que r < an e,

portanto, um αn ∈ A com r < αn, o que tambem nao da.

Um argumento central na demonstracao acima tem ate nome (e uma pro-priedade explorada por Cantor).

Propriedade dos Intervalos Encaixantes: Se a sequencia de intervalos fecha-dos ([an, bn] e tal que

• [an+1, bn+1] ⊂ [an, bn] ∀n ∈ IN ,

• lim (bn − an) = 0,

entao existe um unico numero real c tal que c ∈ [an, bn] ∀n ∈ IN .

Demonstracao : Basta notar que tanto (an) como (bn) sao de Cauchy (uma crescente e a outra decrescente) e tem

o mesmo limite.

Uma sequencia (an) tal que an+1 ≤ an ∀n ∈ IN e dita monotona decrescente(ou, simplesmente, decrescente). Se an+1 < an ∀n ∈ IN , (an) e dita estrita-mente decrescente, definicoes analogas valendo para sequencias crescentes. Senao quisermos especificar crescente ou decrescente, dizemos apenas monotona.Exercıcio: Mostre que, se (an) e decrescente e converge para a, entao a ≤ an ∀n ∈IN .

Uma outra propriedade, talvez um pouco menos evidente, diz respeito a possi-bilidade de extrairmos, de uma sequencia de reais (em princıpio nao convergente)uma subsequencia convergente. Uma subsequencia da sequencia (an) e obtidajogando fora alguns dos an e considerando a sequencia dos que sobram (podemosate jogar fora infinitos an, desde que tambem sobrem infinitos).

Definicao : (ank) e dita uma subsequencia de (an) se a aplicacao

k 7→ nk, k ∈ IN

e uma funcao estritamente crescente de IN em IN (note que, neste caso, a aplicacaok 7→ ank

define uma nova sequencia ).

Propriedade de Bolzano-Weierstrass: Se (xn) e uma sequencia limitada denumeros reais, entao (xn) tem uma subsequencia convergente.

30

Demonstracao : (xn) ser limitada significa que existem reais a e b tais que xn ∈ [a, b] ∀n ∈ IN . Facamos entao

a0 = a, b0 = b, c0 = (a + b)/2 e observemos o seguinte: se xn ∈ [ak, bk] ∀n > k, ck = (ak + bk)/2, Ak =

{n ∈ IN | xn ∈ [ak, ck]} e Bk = {n ∈ IN | xn ∈ [ck, bk]}, entao pelo menos um, dentre Ak e Bk e ilimitado. Tomemos

pois xn0 em [a0, b0] e, uma vez dados [ak, bk] e ck = (ak + bk)/2, facamos [ak+1, bk+1] = [ak, ck], se Ak e ilimitado,

ou [ak+1, bk+1] = [ck, bk], caso contrario. Tomamos entao xnk+1 em [ak+1, bk+1] e reiteramos. Fica assim definida a

subsequencia (xnk) de (xn). Como xnk

∈ [ak, bk] ∀k ∈ IN e os intervalos [ak, bk] satisfazem a propriedade dos intervalos

encaixantes, temos que (xnk) e convergente.

31