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1 RESSIGNIFICAÇÕES FESTIVAS: AS DIVERSAS MATERIALIZAÇÕES DOS LUGARES DE FESTA NA DEVOÇÃO A SÃO BENEDITO EM ITUIUTABA (1998-2014) Cairo Mohamad Ibrahim Katrib (Orientador) 1 Luana Regina Mendes Rafael 2 RESUMO - Esse estudo que aqui apresentamos objetivou pensar as transposições das práticas congadeiras pelos diferentes espaços sejam eles formais, no que se refere a sua realização festivo-devocional e também nos lugares eleitos pelos seus praticantes e não inseridos na lógica oficial da festividade, na tentativa de compreender como os sujeitos, sejam eles congadeiros ou não, se relacionam com os festejos de São Benedito em Ituiutaba, cidade localizada no Pontal do Triângulo Mineiro. Propusemos a interlocução entre as reflexões teóricas sobre os estudos das festas e das religiosidades populares numa perspectiva interdisciplinar, tecendo, inicialmente, algumas considerações sobre o uso do conceito festa no contexto da Cultura Popular que nos permitiram pensar a festa e o congado para além de uma mera manifestação cultural, mas sim inserida num contexto vivido, praticado e recriado na dinâmica do tempo e do espaço. Pensando dessa forma, fomos desenrolando o entendimento acerca dos estudos sobre a festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário pelo interior do país, uma vez que é nesses festejos que mais se ocorrem a prática do congado como destacado nas obras dos folcloristas como Silvio Romero, Mário de Andrade dentre outros. Palavras chave: Festa, Memoria, Identidade, Lugar , Congado 1.0-INTRODUÇÃO Quando nos propomos estudar práticas da cultura popular, deparamo-nos com um universo rico em representações que nos fascinam e nos proporcionam diversos olhares sobre uma mesma manifestação. Nesse campo de pesquisa que se descortina, em especial, para o historiador, ele vem embebido de subjetividades que o tornam rico como campo de pesquisa. Nesse contexto, o trabalho que apresentamos é fruto de reflexões que ocorreram durante a graduação em algumas disciplinas e também do meu envolvimento com pesquisa de iniciação científica. Todo esse processo teve início no ano de 2011, a partir da produção de um vídeo documentário de bolso, produzido como trabalho final da disciplina Projeto Integrado de Praticas Educativo (PIPE) a respeito da Festa de São Benedito em Ituiutaba. No município, a festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário é bastante significativa sendo uma das festas de maior importância no calendário católico. Esta pesquisa deu origem a um 1 Docente do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia/Campus do Pontal. Doutor em História pela Universidade de Brasília UNB; Mestre em História UFU. [email protected] 2 Graduada em história pelo curso da Universidade Federal de Uberlândia/Campus do Pontal. [email protected].

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RESSIGNIFICAÇÕES FESTIVAS: AS DIVERSAS MATERIALIZAÇÕES DOS LUGARES

DE FESTA NA DEVOÇÃO A SÃO BENEDITO EM ITUIUTABA (1998-2014)

Cairo Mohamad Ibrahim Katrib (Orientador)1

Luana Regina Mendes Rafael2

RESUMO - Esse estudo que aqui apresentamos objetivou pensar as transposições das práticas

congadeiras pelos diferentes espaços sejam eles formais, no que se refere a sua realização

festivo-devocional e também nos lugares eleitos pelos seus praticantes e não inseridos na

lógica oficial da festividade, na tentativa de compreender como os sujeitos, sejam eles

congadeiros ou não, se relacionam com os festejos de São Benedito em Ituiutaba, cidade

localizada no Pontal do Triângulo Mineiro. Propusemos a interlocução entre as reflexões

teóricas sobre os estudos das festas e das religiosidades populares numa perspectiva

interdisciplinar, tecendo, inicialmente, algumas considerações sobre o uso do conceito festa

no contexto da Cultura Popular que nos permitiram pensar a festa e o congado para além de

uma mera manifestação cultural, mas sim inserida num contexto vivido, praticado e recriado

na dinâmica do tempo e do espaço. Pensando dessa forma, fomos desenrolando o

entendimento acerca dos estudos sobre a festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário

pelo interior do país, uma vez que é nesses festejos que mais se ocorrem a prática do congado

como destacado nas obras dos folcloristas como Silvio Romero, Mário de Andrade dentre

outros.

Palavras chave: Festa, Memoria, Identidade, Lugar , Congado

1.0-INTRODUÇÃO

Quando nos propomos estudar práticas da cultura popular, deparamo-nos com um

universo rico em representações que nos fascinam e nos proporcionam diversos olhares sobre

uma mesma manifestação. Nesse campo de pesquisa que se descortina, em especial, para o

historiador, ele vem embebido de subjetividades que o tornam rico como campo de pesquisa.

Nesse contexto, o trabalho que apresentamos é fruto de reflexões que ocorreram

durante a graduação em algumas disciplinas e também do meu envolvimento com pesquisa

de iniciação científica. Todo esse processo teve início no ano de 2011, a partir da produção de

um vídeo documentário de bolso, produzido como trabalho final da disciplina Projeto

Integrado de Praticas Educativo (PIPE) a respeito da Festa de São Benedito em Ituiutaba. No

município, a festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário é bastante significativa sendo

uma das festas de maior importância no calendário católico. Esta pesquisa deu origem a um

1 Docente do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia/Campus do Pontal. Doutor em História

pela Universidade de Brasília – UNB; Mestre em História – UFU. [email protected] 2 Graduada em história pelo curso da Universidade Federal de Uberlândia/Campus do Pontal.

[email protected].

2

estudo de iniciação científica realizada no período Agosto/2011 a Julho/2012, financiada

pelo Fundo de amparo a Pesquisa de Minas Gerais-FAPEMIG e pela Pró-reitoria de Pesquisa

e Pós-graduação-PROPP-UFU. Com isso, a pesquisa passou a ser parte da minha rotina

acadêmica, a partir das aulas expositivas, leituras dirigidas, seminários participação em

congressos que foram aproximando-me do tema.

Este estudo de Conclusão de Curso, que aqui apresentamos, resulta de um

amadurecimento da temática e objetivou pensar as transposições das práticas congadeiras

pelos diferentes espaços, sejam eles formais, no que se refere a sua realização festivo-

devocional, e também nos lugares eleitos pelos seus praticantes e não inseridos na lógica

oficial da festividade, na tentativa de compreender como os sujeitos, sejam eles congadeiros

ou não, se relacionam com os festejos de São Benedito em Ituiutaba, cidade localizada no

Pontal do Triângulo Mineiro.

Propusemos a interlocução entre as reflexões teóricas sobre os estudos das festas e das

religiosidades populares numa perspectiva interdisciplinar, tecendo, inicialmente, algumas

considerações sobre o uso do conceito festa no contexto da Cultura Popular que nos

permitiram pensar a festa e o congado para além de uma mera manifestação cultural, mas,

sim, inserida num contexto vivido, praticado e recriado na dinâmica do tempo e do espaço.

Pensando dessa forma, fomos desenrolando o entendimento acerca dos estudos sobre

a festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário pelo interior do país, uma vez que é

nesses festejos que mais ocorre a prática do Congado como destacado nas obras dos

folcloristas como Sílvio Romero, Mário de Andrade dentre outros.

Na cidade de Ituiutaba, o Congado vai além de um ritual católico, que mistura

elementos da cultura africana, europeia e brasileira. Ele é uma festa que une pessoas, renova

os votos com a ancestralidade, ata os nós dos sujeitos com seu passado e com suas histórias

que desalinha o novelo da memória, trazendo à tona muitas histórias esquecidas ou

silenciadas.

O Congado, atualmente, em virtude de sua dimensão cultural, compõe-se de uma rede

de signos que mesclam sentidos profanos e religiosos aos festejos. E, num misto de fé e

diversão, os praticantes vivenciam momentos de efusão da mística e dos mitos fundadores

dessa prática cultural, elegendo Reis e Rainhas Congo, ao mesmo tempo em que louvam,

rezam, agradecem, fazem pedidos a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito, reconectam-

se ao passado, revivendo suas histórias de vida, seus vínculos familiares e sua própria

identidade ancestral.

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Compreendemos que as festas são fenômenos culturais de grande relevância para a

sociedade, uma vez que é no tempo e no espaço da festa que as pessoas se manifestam com o

que têm de melhor, de mais belo, de mais alegre e de mais agradável, constituindo-se,

concretizando-se numa dinâmica popular, que reverbera na consolidação de sentidos para a

manifestação típica do povo, que é a festa, parte essencial da memória e identidade da cultura

nacional.

Araújo (2004, p.17) ressalta a festa é “uma poderosa força de coesão grupal,

reforçadora da solidariedade vicinal, cujas raízes estão no instinto biológico da ajuda, nos

grupos familiares”. Já Mériot (1999, p. 08) define que “a festa faz viver uma autêntica

dramatização social no curso da qual as consciências individuais se interpenetram para se

fundir”. A este respeito, o referido autor afirma que:

A festa permanece a melhor parte da existência, o único dinamismo

autêntico capaz de transformar consigo corpos e espíritos. Assim, não é de

se surpreender que ela tenha sido assimilada ao divino e ao sagrado, e que se

tenha tentado reservar a sua manipulação a categorias de ‘experts’

privilegiados e consagrados, limitando-se, o máximo possível, o seu acesso

à maioria das pessoas. A festa não se resume à festa [...]. A sua presença –

ou ausência – são suficientes para colocar questões essenciais a nossas

sociedades. “Ela é indiscutivelmente um evento cultural e coletivo”

(MÉRIOT,1999, p. 7).

Pensando, nas festas populares, podemos perceber que elas se inserem, na maioria dos

casos, num espaço privilegiado de resistência cultural e inversão de valores, pois referendam

a miscelânea cultural que herdamos e que são encontradas no Brasil, construindo-se na base

da cultura brasileira.

Assim, as festas estabelecem uma interlocução com o passado e o presente,

dialogando com as relações sociais, com práticas e saberes diversificados, além de

desempenhar um importante e imprescindível papel na efetivação de sentidos culturais. No

Brasil, muitas festividades são fruto das interlocuções culturais que dão vazão a outras

propostas de festividades, como as que se inserem no contexto da cultura popular e afro-

brasileira, como, por exemplo: as festas aos orixás, folias de reis, festa de Nossa Senhora do

Rosário dos Pretos, festa do Senhor do Bonfim, festa de São Benedito, Congados, Maracatus,

dentre muitas outras.

2- Contextualizando a Festa

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A festa ocupa lugar marcante na vida da população brasileira. Pensar as significações

atribuídas a ela, sua importância e materialização, permite-nos entender como as festividades

se consolidaram entre as práticas culturais brasileiras difundindo-se pelas diversas regiões do

país, assumindo características próprias, sejam estas associadas à devoção aos santos

padroeiros ou a qualquer outra forma de festejar a cidade, o nascimento, o futebol, a alegria.

Como não poderia ser diferente, uma das maiores expressões da devoção a São Benedito, no

Pontal do Triângulo Mineiro, é comemorada como uma festividade devocional inserida no

calendário festivo do município e representa não só a devoção a São Benedito e a Nossa

Senhora do Rosário, como também é um espaço de sociabilidade, de encontros, de troca de

sorrisos, cumprimentos, de se esquecer dos problemas cotidianos e reviver a infância, o

passado, as histórias vividas e os sentimentos adormecidos.

O Congado é uma festa que se configura como uma prática capaz de revelar, por

meio das memórias dos seus descendentes, aspectos da resistência e astúcia do negro-escravo,

dos afrodescendentes, aproximando a África distante, em seus múltiplos aspectos, da

realidade brasileira, redimensionados para o olhar do presente, em que os atores sociais

reinventam sua cultura de modo a proporcionar o exercício contínuo de reviver o passado,

alimentou-se de esperanças o presente e, ao mesmo tempo, fortalecem-se de esperanças para

continuar (re) significando o próprio vier e o existir.

Essa festa é composta por vários momentos. Ora sendo vista como mero divertimento,

ora como ruptura do cotidiano, ou, ainda, como efusão da religiosidade. Marca, também, um

momento de desordem, de confusão e de (in) definição de fronteiras entre o real e o

sobrenatural, entre a fé e o divertimento, a devoção ancestral e a católica, dentre outros

aspectos.

Não podemos deixar de frisar que, na óptica de vários estudiosos, a festa pode ser

relida de diversas formas e interpretações. Nesta perspectiva, é possível extrapolar as diversas

maneiras de manifestação e materialização das festas, que assume características lúdicas,

sagradas, comemorativas, dentre outras, como bem enfatiza PEREZ (2002). Portanto,

vínculos sociais são gerados na celebração e estetização da vida, como aquelas promovidas

pela festa. E, na visão da pesquisadora:

A forma lúdica de socialização não tem conteúdo, nem propósitos objetivos,

nem resultados exteriores, é uma estrutura sociológica que, em sua relação

com associação concreta, determinada pelo conteúdo, é semelhante à

relação do trabalho de arte com a realidade. (PEREZ, 2002, p.19)

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A festa compõe-se de uma série de meios de se experimentar a vida em coletividade.

Segundo (PEREZ, 2002), a singularidade da festa como fenômeno social está na sua

condição de ato coletivo extralógico, extratemporal e extraordinário, consagrando sua reunião

mediante a da libertação da temporalidade linear.

Na visão de CANCLINI(1982), as práticas integrantes da festa não se limitam apenas

às suas formas de efetivação das comemorações no período consagrado da festa, mas penetra

todo o cotidiano por meio de práticas, preparativos e sentidos que constituem, também, a

festa em si mesmo, quando não no período festivo.

As diversas maneiras de estruturação dos festejos, sejam elas de cunho religioso ou

reúne em si aspectos paradoxais, que lhes são estruturais, como a ruptura do cotidiano,

conectando-se a ele, via tempo dinâmico, pois não se entra num tempo consagrado ou em

contato propriamente com o sagrado sem que uma série de precauções seja tomada. A festa é

necessariamente, desordem, no sentido de violaçoes das interdições e das barreiras usuais

(PEREZ, 2002, p.31). A desordem que a festa instaura é produzida pela transgressão das

normas vigentes, mas não significa, obrigatoriamente, ausência completa de ordem, pois a

festa define quase sempre protocolos a serem seguidos. A festa guarda em si, mesmo que

laica, algo de religioso, de específico, de significativo e, também, de mágico, que excita,

incita e insere devotos e praticantes no mundo do sagrado, do profano, do público e do

privado.

Festejos dessa natureza acontecem na região do Pontal do Triângulo Mineiro, e cada

uma estabelece sua lógica com a cidade e com aqueles que a tem como referência cultural.

Nesse contexto, em grande parte das cidades do interior do país, comemorações conhecidas

como Congos, Congadas ou Reinado de Congos são realizadas em louvação a algum santo de

devoção negra e se tornam a expressão máxima das práticas culturais locais, traduzindo o

caráter híbrido3, ou seja, reinventa-se, reelabora-se, reformula-se, recria-se dinamicamente

fazendo com que essas devoções mesclem as tradições luso-afro-brasileiras( presença de

fragmentos da cultura europeia, indígena, africana e afro-brasileira) em comemoração aos

santos padroeiros, como São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia, com a

atualização da memória ancestral, com os entes que partiram, dentre outros.

No interior das Gerais, o Reinado acontece, na maioria dos casos, como parte

integrante dos festejos do Congado, que simboliza, dentre outras coisas, a coroação da corte

3 Sobre o conceito de Hibridismo consultar Hibridismo cultual.

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negra, que representa a presença dos reis africanos no Brasil e também a corte de Chico Rei,

negro que conquistou sua liberdade e, em seguida, a de muitos outros africanos sendo

reverenciado por seu feito com desfile e com a sua coroação nas ruas da cidade de Ouro

Preto, em Minas Gerais. Todos os anos, os negros relembram a data com muita festa e

batuque. Tal prática cultural se disseminou pelos municípios brasileiros e, em Minas Gerais,

passou a fazer parte da cultura das comunidades de diferentes municípios, como foi o caso de

Ituiutaba.

O Congado é, então, referência cultural da comunidade negra de Ituiutaba,

comemorada com muita festa, fé e devoção. Desse modo, a festa pode ser compreendida pela

lógica da alegria e como ajuda aos grupos sociais para: “[...] suportar o trabalho, o perigo e a

exploração, mas reafirma, igualmente, laços de solidariedade ou permite aos indivíduos

marcar suas especificidades e diferenças”. (DEL PRIORE, 2000, p. 10)

Nessa interação , as comemorações em louvor a São Benedito se inserem no

calendário oficial municipal, ocorrendo entre o primeiro e terceiro domingo do mês de Maio.

A festa acontece na Igreja de São Benedito, onde é realizada a Santa Missa às 8 horas da

manhã de domingo, que segue a liturgia da Igreja, com menções esporádicas à cultura e à

religiosidade afro-brasileira, isso quando o clérigo é sensível à importância cultural dessas

práticas culturais e da religiosidade herdada.

Após a missa, acontece o hasteamento do mastro com a bandeira do Santo

homenageado. Nesse momento, encontram-se presentes todos os grupos do Congado da

cidade e convidados, devotos e população em geral que, entre vivas e foguetórios, renovam

sua fé fazendo reverências a sua ancestralidade, religiosidade e herança africana e afro-

brasileira. Ao final da tarde, tem lugar a procissão devocional, que percorre as ruas no

entorno da igreja, momento em que os participantes quitam suas dívidas com o sagrado. Em

seguida, acontece a missa em ação de Graças, finalizando, assim, a parte devocional oficial

desse festejo. Entremeando esses rituais oficiais católicos, realizam-se a alvorada, a

visitações, os lanches, os cafés, a coroação dos reis negros e os jantares coletivos que se

realizam nas residências dos devotos e na casa dos donos ou capitães de ternos.

A alvorada é o momento em que os ternos da cidade se juntam aos grupos visitantes,

saindo pelas ruas da cidade em direção ao local para o café da manhã de cada grupo.

Posteriormente, todos se dirigem para a Praça 13 de Maio, local que ocorre o hasteamento

das bandeiras de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, após a missa da manhã. Nesse

espaço, os ternos de Congado fazem as suas apresentações enquanto aguardam a

concentração de pessoas e dançadores para a missa campal e o levantamento do mastro.

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Após essas atividades, os ternos continuam sua caminhada de visitações, para,

posteriormente, se dirigirem para o local onde farão as refeições do dia. O almoço é oferecido

por um devoto, na forma de "pagamento" de promessa feita, realizado na casa dos capitães,

donos do terno ou de algum congadeiro mediante de alimentos doados ou arrecadados na

forma de leilões durante os meses que antecedem os festejos na cidade e também poderá ser

oferecido por um simpatizante do Congado ou devoto dos santos homenageados. As ruas da

cidade são ocupadas pelos congadeiros e, durante todo o dia de comemoração, vê-se tal

movimentação pelos bairros na ida e vinda dos grupos para o espaço central das

comemorações: a Praça 13 de Maio.

Entre uma visita e outra, os ternos cumprem sua agenda com os devotos, reiteram seus

votos com a ancestralidade, ao revisitarem o ritual de coroação dos reis negros. Esse encontro

ocorre longe do controle da Igreja e é efetivado por alguns grupos que, além de cortejarem,

durante todo o dia, a família real, levando-os de um lugar para outro, celebram uma coroação

ritualística que remete os dançadores à coroação dos reis africanos, unindo passado e

presente, fé, festa e devoção nos festejos em louvor a São Benedito e Nossa Senhora do

Rosário, (re) significando valores, pertenças e heranças identitárias. Toda essa moldura

festiva se projeta dentro de um processo diverso e, ao mesmo tempo, dinâmico que é a

Cultura Popular, aproximando passado e presente, por meio da interlocução cultural que traz

à tona a África distante ao universo do congadeiro, propiciando uma ideia de aproximação

com as raízes ancestrais por meio da atualização da fé e da festa.

Esse contexto em que as práticas da Cultura Popular se efetivam mediante das

festividades de devoção negra aos santos católicos é fruto, grosso modo, da influência

europeia em nosso processo de efetivação territorial. Desde o desembarque efetivo dos

primeiros portugueses no Brasil no início do século XVI, as festividades assumiram papel

fundamental na vida da colônia e, posteriormente, do próprio país. As comemorações aos

santos católicos fossem na forma de rituais marcados por rezas e orações ou naquelas

comemorações em que o rezar culminava no festar sempre repleto de muita comilança, dança

e alegria, o povo celebrava com fé e festa a sua relação com o sagrado.

A festa em homenagem a São Benedito, o santo, padroeiro dos cozinheiros, e venerado

como protetor dos negros e pobres. O santo teve, segundo a hagiografia católica, sua vida

marcada pelos votos de pobreza, obediência e castidade, cuja observância o tornou uma

referência para os católicos. Segundo os relatos sobre sua vida, São Benedito não usava

sapatos, dormia no chão sem usar cobertas e recusava a utilização de qualquer forma de

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conforto material. Descendente de escravos etíopes, representava, no Brasil Colônia, para os

fiéis, a aproximação de Deus dos escravos e seus padecimentos. Essa associação resistiu às

mudanças históricas, consolidando as celebrações em devoção a São Benedito, que é uma

referência fundamental para a pesquisa histórica e compreensão da cultura popular no Brasil,

pois, desde o período colonial, as celebrações em honra a São Benedito possuem uma incrível

vitalidade.

Nos dizeres de ALVES4 (2006), o culto a São Benedito foi difundido, no Brasil, em

meados do século XVII, “quando lhe foi atribuída a cura do filho de uma escrava no

Convento de Santo Antonio, no Rio de Janeiro” (ALVES, 2006, p.19).

Segundo Caio César Boschi (1986), apesar das insistências do Concílio de Trento5, no

que tange à invocação e ao culto a santos, essas devoções correspondiam a reivindicações

temporais, de caráter efêmero, e contribuiam para que público fosse criado. Desse modo,

Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, São Elesbão, Santa Efigênia foram invocados por

populações de origem africana não apenas por serem da mesma cor de pele, mas pela ligação

que tinham com “suas agruras”, dissabores e sofrimentos (BOSCHI, 1986).

A fé em São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, bem como as histórias dos santos

negros foram fundamentais na suposta conversão dos negros ao catolicismo. Com ênfase nos

milagres, no poder de cura e nas expiações, as biografias desses santos foram contadas e

recontadas pelos missionários, criando, entre os coletivos negros, fortes sentimentos de

veneração e respeito.

Graças à intensa movimentação de ideias, pessoas e coisas, provocada pelo

empreendimento colonial, a fé em Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, geralmente,

associada às Irmandades Negras que tiveram sua gênese em Portugal, estendeu-se para todo o

império, ganhando novos sentidos e outros formatos. Essas organizações foram espaços

privilegiados de convivência no mundo atlântico.

4 As pesquisas efetuadas por Alves foram realizadas no site da Paróquia São Benedito de Jaçanã, em São Paulo, onde

localizamos esta história de devoção. Segundo consta, São Benedito nasceu na Sicília (Itália) e seus pais foram descendentes

de escravos vindos da África. Em 1562, entrou na Ordem dos Frades Menores do convento de Santa Maria de Jesus em

Palermo (Sicília), onde trabalhou, inicialmente, como cozinheiro, e depois, foi procurado por diversos colegas e superiores

do convento para ajudá-los em questões espirituais. Seu culto espalhou-se pelo mundo e, na América do Sul, tornou-se

protetor das “populações negras”. Foi canonizado em 1807. 5 O Concilio foi, sim, uma resposta às proposições do protestantismo, mas, muito mais do que isto, foi uma expressão da

vitalidade da Igreja, que, no século XVI, se manifestou em Trento e num movimento de eflorescência prolongado até o

século XVII. Esta eflorescência brotava do íntimo da Igreja ou dos seus setores dados à oração e é mística; tenhamos em

vista o fervor da piedade cultivada por S. Felipe Néri, Sta. Teresa de Jesus, S. João da Cruz, S. Inácio de Loyola, S. Pedro de

Alcântara, S. Francisco de Sales…; chegou-se a dizer que os séculos XVI e XVII foram séculos de santos. Disponível em:

http://migre.me/iXLJg Acesso em 26 de abril de 14.

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Segundo (PRANDI, 2000), há indícios que possibilitam entrever essa devoção festiva

bem antes da descoberta do Brasil, pois os africanos foram colonizados anteriormente por

europeus e, no contato com os padres que se dirigiam para a África, intermediava-se essa

catequização com cultos dedicados aos orixás. Na visão de Lara (2002) e Souza (2002), desde

1552, registros em livros de Tombo da igreja católica apontam que, na cidade de

Pernambuco, existia a organização de negros em Confrarias do Rosário, e que muitas destas

foram responsáveis pela disseminação dos festejos de coroação dos reis negros pelo país.

Conforme (BERKENBROCK, 2002), a forte presença do negro no Brasil fez com que o país

passasse a ter a variedade cultural muito grande, em especial, de comemorações marcadas

pela cultura afrodescendente e pelos santos de veneração dos negros.

No contexto da Cultura Popular, os Congados têm sua efetivação em várias regiões

do país de forma diferenciada. Em algumas mantêm-se vivas por pequenos grupos que

persistem, todos os anos, em viver essa prática cultural, mas, não tanto com em outros, ela

ganha uma dinamicidade expressiva, fazendo com que, durante o período dos festejos, os

sujeitos e a própria cidade passem a viver em função de sua realização, constituindo-se como

manifestação cultural marcada pela persistência e resistência da cultura negra de permanecer

viva, associada não somente a passagens históricas ou lendas que compõem o imaginário da

civilização ocidental.

Se a identidade do povo brasileiro se formou de uma interligação de crenças, hábitos,

costumes e culturas, para muitos estudiosos, a origem dos Congados no Brasil associa-se à

vinda dos povos africanos de origem Banta, oriundo das regiões do Congo, Moçambique,

Mina, Angola, entre outras, que, no Brasil, serviram de mão de obra nas lavouras de cana de

açúcar, na mineração, entre outras atividades, pelos conhecimentos já possuídos nesses tipos

de atividades. Outros dizem representar a luta entre reinos rivais africanos, ou seja, entre os

reinos comandados pelo Rei Coriongo e pela Rainha Ginga. Algumas versões ainda apontam

que os Congados expressam a luta entre mouros e cristãos na França (Katrib, 2004; 2009).

Dessa configuração, surge o aparecimento de duas manifestações representativas

desse mesmo acontecimento: as cavalhadas, adotadas pelos nobres, e os Congados,

introduzidos entre os africanos no Brasil, como forma de amenizar as diferenças étnicas e as

imposições culturais.

Por fim, o Congado se firma no cenário cultural brasileiro associado aos mitos e

lendas que compõem o imaginário popular, como a que relaciona o aparecimento do

congado, em Minas Gerais, à figura de Chico Rei que, após encontrar ouro numa mina

abandonada em Minas Gerais, comprou a sua liberdade e a de vários negros e como forma de

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comemoração saíram as ruas de Araxá-MG, festejando tal intento, e daí se fixando como

tradição. Acompanhavam a corte de Chico-Rei, muitos negros que tocavam e dançavam

agradecendo pela libertação alcançada, inclusive, construindo uma capela em homenagem a

Nossa Senhora do Rosário e a Santa Efigênia como forma de reconhecimento.

Mesmo diante de tantas possibilidades de diálogo, não podemos deixar de enfatizar

que a Congada, ou o Congado, como é conhecido em muitas cidades do interior de Minas

Gerais, é uma prática cultural, uma vivência em que interagem vida, fé, devoção, festa e

simbolismo. Isso não que dizer que o Congado seja um mero acontecimento folclórico,

paralisado no tempo sem sofrer alterações. As modificações são visíveis desde as músicas aos

complementos das fardas dos dançadores.

E é justamente isso que sustenta a resistência desses grupos e a persistência deles em

manter viva as suas raízes culturais, cuja evidência articula elos entre o mundo real e o

sobrenatural, ou seja, a fé, a tradição se reatualizam e atualizam todos os anos por meio da

participação dos diferentes sujeitos que, ano após ano, durante os seus 365 dias, vivem a festa

de forma dinâmica.

Os relatos orais dos congadeiros referendam nossas exposições referente à

oficialização da devoção negra e de seu processo de materialização e efetivação ocorrido em

cada festa celebrada. Não podemos deixar de frisar que a criação da irmandade de São

Benedito, fundada no dia 13 de maio de 1957, garantiu a realização da festa e da atualização

da memória coletiva dos negros em Ituiutaba, mas, para isso acontecer, tiveram que ceder à

imposição clerical da época, acordando com a Igreja e com os membros dos grupos de

Congado que frequentassem a igreja católica e exercitassem sua fé conforme os desígnios da

Santa Madre Igreja.

Desde o início, o Congado, aparentemente, teve apoio também do poder público local

e, de acordo com a atual presidente da Irmandade, o poder público e Igreja católica

impulsionaram a devoção a São Benedito entre os moradores da região e foram responsáveis

pela compra do terreno onde se construído a Praça 13 de Maio e a igreja de São Benedito.

[...] A partir da desapropriação do terreno onde era o campo do Palmeiras, a

irmandade de São Benedito já tinha começado a adquirir o terreno onde hoje

é a paróquia e a igreja. Quem fez estas negociações foram os meus pais, os

mais velhos que negociaram. Lá já estava presente a irmandade e agora a

igreja e a praça. (Entrevistado 1 Oliveira )

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A edificação da Igreja no contexto da Praça propiciou ao poder público atender aos

interesses dos grupos sociais influentes na época, que reivindicavam o deslocamento das

práticas da cultura e da religiosidade negra da área central da cidade para outra mais afastada

e a doação de uma área maior da que já possuía a Irmandade serviria como um amenizador

dos conflitos gerados entre o poder público e comunidade negra, que questionava a falta de

um espaço para a realização de seus festejos.

Nesse contexto, como bem destaca CERTEAU (2001), os grupos sociais reinventam

nesse processo de manutenção de suas forças, estratégias, astúcias e trampolinagens, a fim de

reconduzirem todo o processo de manutenção dos poderes inerentes a um dado grupo social.

Nessa lógica, as estratégias do poder oficial em promover o deslocamento das comemorações

para uma área fora do eixo urbano central, e as espertezas dos congadeiros em,

aparentemente, ceder ou aceitar tal deslocamento, fortaleceram o movimento negro, uma vez

que a maioria das famílias negras mudou para a região, fixando residência na área que

compreende a Praça 13 de Maio, contribuindo para o fortalecimento das manifestações da

cultura negra na cidade, posto que o lugar passe a ser referência na efetivação das práticas

culturais e políticas da comunidade negra local. Tornou-se, também, expressão do sagrado

para os devotos de São Benedito e praticantes do Congado.

Maria Clara Tomas Machado (2000, p. 56), refletindo sobre o caráter social dessas

práticas religiosas, enfatiza que a festa, como um ritual religioso, constituia-se em um

interregno na labuta diária, dias especiais que fugiam do trivial, singularizando a renovação

das forças para o recomeçar efetivo, pois aliavam o sagrado e o profano, a fé e o festar, o

calor da oração coletiva e o riso, a música e a dança, as solidariedades e os (re) encontros,

que, compõem uma cenária efetivação das práticas culturais e políticas da comunidade negra

local. Tornou-se, também, expressão do sagrado para os devotos de São Benedito e

praticantes do Congado.

Desta forma, compreender a relação tecida pelos praticantes do Congado com a

devoção aos santos protetores, entender as relações estabelecidas pelos moradores do entorno

da Praça e população em geral com a festa, no que representam as relações de sociabilidade

ali efetivadas, como também das muitas formas de materialização da festa, no espaço da

Praça 13 de Maio, fez-nos procurar apreender os diversos significados que envolvem a

manutenção dos valores que fortalecem o cotidiano, a vida dos sujeitos, e que intensificam

12

seus vínculos com o lugar, a fim de fazer dele espaço de reafirmação da identidade étnica e

cultural dos diversos congadeiros e devotos.

O entrecruzamento entre as transformações que ocorrem entre a rotina, o cotidiano

pensado a partir do que nos menciona CERTEAU ( 2001), e os dias de festa, tendo no

congado o referencial para se pensar nas diversas interpretações que moradores, comunidade

negra e população, em geral, fazem desse espaço, propicia-nos entender que:

O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha),

nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no

presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do

interior. [...] É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às

vezes velada. (CERTEAU, 2001, p. 31).

Há uma (re) construção de sentidos e valores presentes na Praça em estudo que nos leva-a

reinterpretar o lugar mediante as relações econômicas, políticas, sociais e culturais ali

concretizadas, sobretudo nos momentos de comemoração coletivos ali desenvolvidos.

3- Os caminhos da festa: O Congado em Ituiutaba-MG.

Analisando a festa como um processo histórico, é possível perceber que ela se

movimenta num contexto marcado por historicidades. No período colonial, o

comparecimento a alguns festejos religiosos era obrigatório, cabendo às câmaras municipais e

às confrarias fiscalizar a presença dos moradores. As festas, cortejos e procissões reuniam um

grande contingente populacional, permitindo a aglomeração e criando oportunidades para

formas diferenciadas de apropriação do espaço público pelos mais variados grupos sociais,

distintas daquelas presentes no cotidiano das cidades, como mostram os estudos de Silvia

Hunold Lara (2002), João José Reis (2002), Martha Abreu (1999), Carlos Eugênio Líbano

Soares (2002), Patrícia Vargas Lopes de Araújo (2008), entre outros.

Rita de Cássia de Mello Peixoto Amaral (1998) esclarece que as festas oscilam entre

dois polos: a cerimônia e a festividade; podendo se distinguir dos ritos cotidianos por sua

amplitude e do mero divertimento pela densidade. Para ela, este caráter misto pode ser

tomado como um primeiro termo da definição de festa, ou seja:

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Toda festa ultrapassa o tempo cotidiano, ainda que seja para desenrolar-se

numa pura sucessão de instantes. Toda festa acontece de modo extra

cotidiano, mas precisa selecionar elementos característicos da vida

cotidiana. Toda festa é ritualizada nos imperativos que permitem identificá-

la, mas ultrapassa o rito por meio de invenções nos elementos livres

(AMARAL, 1998, p.38 - 39).

Entretanto existem tipos de festas em que tais aspectos aparecem dissociados e até

opostos. A razão dessas dissociações, segundo Amaral, surge relacionada ao caráter

simbólico das festas: “a função do símbolo aparece não estar então, simplesmente, em

significar o objeto, o acontecimento, mas em celebrá-lo, em utilizar todos os meios de

expressão para fazer aparecer o valor que se atribui a este objeto” (AMARAL, 1998, p. 39).

Historicamente, o Congado é registrado, no Brasil, como manifestação desde o

período colonial e desponta de forma integrada ao calendário católico e, também, às

comemorações envolvendo fé e festa. Oneyda Alvarenga (1960), por exemplo, relata que a

primeira notícia documentada que se tem de um Congado realizado no Brasil é de 1760,

encontrada na relação dos festejos do casamento de D. Maria I, rainha de Portugal. Já José

Ramos tinhorão (2000), faz um recuo histórico maior do que o de ALVARENGA (1960). O

autor regressa até 1711, e por meio de pesquisas folclóricas, consegue identificar a suposta

primeira coroação de rei congo no interior de uma irmandade de Nossa Senhora do Rosário,

em Pernambuco. O autor retrocede ainda mais para o final do século XVII, e encontra

notícias das primeiras manifestações de coroação de reis, mas estas realizadas com alusão a

reis de Angola e não de Congo. TINHORÃO (2000) ressalta, inclusive, que a coroação dos

reis de Congo, organizada por escravos e forros, já era uma prática disseminada desde o

século XVI, em Lisboa.

Ao definir as primeiras festas de Congado, no Brasil, mapeadas entre os séculos XVII

e XVIII, o que é importante salientar é que as festas de Congado datam do Brasil colônia e

dramatizam relações conflituosas construídas na diáspora africana no Novo Mundo6. Rosa

Maria Barbosa Zamith (1995), por meio das pesquisas realizadas por Carlos Brandão (1985),

conceitua o Congado como um folguedo brasileiro, de caráter religioso, que se apresenta em

6 O conceito serve para descrever qualquer comunidade étnica ou religiosa que vive dispersa ou fora do seu

lugar de origem. A diáspora africana, também conhecida como Diáspora Negra consistiu no fenômeno histórico

e sociocultural que ocorreu muito em função da escravatura, quando indivíduos africanos eram forçosamente

transportados para outros países para trabalharem. Disponível em http://migre.me/hzoS2 acesso 24 de janeiro de

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14

forma de cortejo real, incluindo cantos e danças, e, frequentemente, entrechos com

representações teatrais.

O congado tem como principal momento as coroações de reis negros, “[...] as festas

no Brasil, desde o período colonial constituíram importante mediação entre os homens e a

natureza, entre eles e seus deuses, entre o povo e o Estado com seus representantes”

(AMARAL, 1998, p.73).

Optamos por recorrer, aqui, ao entendimento do congado como um ritual híbrido, que

agrega, de um lado, a coroação de reis negros e, de outro, o culto aos santos católicos,

geralmente, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Seguiremos a visão disseminada por

Gomes e Pereira (1999), que interpretam essa prática cultural como manifestação Luso-afro-

brasileira. É importante ressaltar que não é o louvor ao santo católico por si ou a coroação do

rei negro, mas, sim, o acontecimento simultâneo dos dois que constrói as particularidades da

festa estudada e a diferencia das demais práticas do catolicismo popular.

Em Ituiutaba, há seis ternos vinculados diretamente à Irmandade de São Benedito

sendo três de Congo (Camisa Verde, Real e Libertação) e três de Moçambique (Camisa Rosa,

Lua Branca e Águia Branca) e um em processo de licença, em virtude de problemas de saúde

de seus dirigentes, além do Congo Filhos da Luz, que é fruto de um projeto de uma escola

municipal – CAIC - Escola Municipal “Aureliano Joaquim da Silva”.

A Festa de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário em Ituiutaba, realizada no

início do mês de maio, é o evento que possibilita o concretizar do Congado e das

manifestações mais expressivas de fé e devoção afro-brasileira. Não podemos deixar de frisar

que é nessa comemoração também que há a materialização da herança ancestral por meio das

cantorias, danças e batuques, atualizando a memória herdada, o passado e o presente de

diversas formas para cada sujeito que ali busca um reencontro com a sua cultura, com a sua

religiosidade e, até mesmo, consigo mesmo.

É o oportunidade utilizada ainda para se fazer notado por parte daqueles quem veem

sentido na comemoração. Assim, que cada sujeito se apropria da festa e de seus espaços de

formas diversas conforme o sentido que se atribui a ela. No caso daqueles com pretensões

políticas e de visibilidade social, o espaço do palanque é o local onde as autoridades políticas

se concentram, já que este é armado na Praça e ali discursos são realizados, reverências feitas,

acordos firmados, mas, além de tudo, é o lugar que permite também figurantes se tornarem

protagonistas, políticos serem ovacionados, anônimos expressarem sua cultura e fé sob os

holofotes da mídia e os cliques das máquinas fotográficas, cujas imagens estamparão as

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páginas de jornais e noticiários de televisão. Se essa visibilidade é importante para muitos,

outros preferem registrar nas suas lembranças o momento vivido, adubando de esperanças as

outras festas que virão, guardando para si as imagens registradas, os momentos vividos e

capturados pelos olhos atentos de devotos e congadeiros, seja de forma comedida ou com

bastante efusão.

Se, para muitos, a imagem que se projeta dos festejos a São Benedito em Ituiutaba é a

construída pela mídia e a que acontece apenas no domingo, outra festa se desenrola

concomitante a essa, que é aquela que ocorre nos bastidores e fora desse contexto oficial,

composta por várias atividades, que se iniciam ao término da festa do ano e se intensificam

mais ou menos três meses antes da festa atual, formando uma espécie de giro do sagrado.

Nesse período, ocorrem a preparação espiritual, as novenas, missas, agregando, também,

momentos de divertimento, reencontros familiares, reunião de amigos, sempre em torno de

rezas, cantorias e muita alegria, por meio das visitas e ensaios.

Essas situações se refazem envoltas de uma circularidade de sentidos e sentimentos

que ornam o viver dessas pessoas, revigorando e amenizando as dificuldades do dia a dia em

prol de uma devoção herdada e de uma comemoração que é muito mais que a festa de uma

cidade, pois ela expressa a reafirmação de uma comunidade negra, que representa mais de

50% da população total do município (IBGE, 2010), com as suas raízes africanas, mesmo que

não incentivada pela população local que impõe uma cultura que não agrega a diversidade

cultural da cidade.

Nesse contexto de entrecruzamento de sentidos e intencionalidades, os ternos do

Congado de Ituiutaba são constituídos por familiares, amigos ou pessoas que participam do

grupos para realizar o pagamento de alguma promessa, cultuar sua fé e atualizar uma herança

herdada. Em sua maioria, cada termo compõe-se de 50 a 120 dançadores. Esses grupos

possuem certa autonomia interna. Porém, no que diz respeito às atividades públicas, eles

devem obedecer aos preceitos e aos encaminhamentos da Irmandade de São Benedito, que é a

instituição representativa e organizadora dos festejos.

Em referencia à preparação espiritual, há dois momentos oficiais que se

complementam. O primeiro, e mais individualizado, é concernente, basicamente, aqueles que

acontecem no interior das residências e quintais das casas dos capitães e donos dos grupos.

Ali rezam, fazem seus contatos com o sagrado pedindo proteção permanente e a realização de

uma boa festa. Outro é aquele menos reservado, realizado coletivamente durante as

campanhas de arrecadação de recursos para efetivação dos festejos. Cada grupo realiza a reza

do terço seguida de leilão das prendas arrecadadas pelos membros do grupo, cujo montante é

16

destinado à manutenção do grupo, com compra de vestimentas, alimentos, instrumentos,

dentre outros. As rezas acontecem nas residências dos congadeiros ou na casa de algum

devoto dentro do raio geográfico da casa sede ou quartel general do terno. Há um momento

de encontro com o sagrado, marcado pelas rezas em devoção a São Benedito e Nossa Senhora

e, também, o da confraternização, do divertimento e da comilança, pois não há terço sem uma

boa e farta janta ou um leilão para arrecadação de dinheiro para a realização dos festejos.

Missas em ação de graças e/ou rezas em quintais também podem ocorrer, dependendo

dos pertencimentos religiosos, com ou sem a presença ou consentimento do clérigo. Ocorrem

também novenas (reza do terço cantado), que acontecem na igreja com a participação de

todos os ternos ou de forma isolada nos quartéis generais.

É preciso considerar que a festa provoca nos fiéis sentimentos e impressões distintas:

alguns são devotos e acompanham as atividades religiosas com mais intensidade; outros

evitam frequentar a igreja nos dias da festa, preferindo as visitações aos ternos, as rezas nos

quarteis generais ou, simplesmente, ziguezaguear pela praça sem nenhuma preocupação

devocional, encantando-se com as cores exuberantes e coreografias expressivas dos grupos

do Congado. Nesse cenário tão diverso no que diz respeito às apreciações, a direção da

Irmandade orienta os ternos a "andar na linha", como muitos congadeiros dizem e cumprir as

exigências da Igreja, a fim de evitar conflitos.

A Igreja de São Benedito, que sedia a festa, localiza-se na Praça 13 de Maio, e é

ladeada pela Fundação Municipal Zumbi dos Palmares, comércios e residências. A

constituição desse cenário movimenta o comércio local, prestigia a Igreja de São Benedito e a

Fundação Zumbi dos Palmares e reforça a Praça 13 de Maio como local de socialização da

população negra. No entanto não se pode desconsiderar que o encontro entre sensibilidades

religiosas distintas possa provocar desconfortos aos olhos da Igreja, que procura manter as

rédeas sobre o evento pautadas no ritmo dos preceitos católicos. O esboço abaixo procura

evidenciar a configuração do espaço da festa e referendar a dinâmica geográfica do local.

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Imagem 1- Cenário da Festa de São Benedito na 13 de Maio de Ituiutaba – MG, Autor:

RAFAEL, L. R. M.

Para pensar a relação que a igreja estabelece com a festa, é preciso entender como os

festejos se configuram no contexto das manifestações afro-brasileiras. Segundo

BERKENBROCK ( 2002, p. 194), a forte presença do negro no Brasil fez com que o país

passasse a ter uma diversidade cultural muito grande. O autor salienta que isso se deve à

média de vida útil do negro de sete anos, em virtude do trabalho forçado após sua chegada ao

Brasil, que, na grande maioria, constituía-se de negros do sexo masculino. É como se, em

cada passo dado pelo negro nas terras brasileiras, ficassem fincadas no chão as marcas de

uma história, caminhos do tempo, incertezas da vida.

A festa do Congado de Ituiutaba, em Minas Gerais, é vivenciada num contexto

complexo que só o compreendemos de forma dialógica, quando levamos em consideração as

especificidades da comemoração, sua relação identitária, seus praticantes e os lugares em que

ela se materializa. O que queremos destacar é que, no momento da festa, a Praça torna-se um

espaço que rompe com as experiências comuns, a festa faz com que seja um espaço

homogêneo, levado a por transformar-se num único local de sociabilidade, Roberto Da Matta

(1997) resssalta que:

[...] momentos extraordinários marcados pela alegria e por valores

considerados altamente positivos. A rotina da vida diária é que é vista como

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negativa. Daí, o cotidiano ser designado pela expressão dia a dia ou, mais

significativamente, vida ou dura realidade da vida. (DA MATTA, 1997,

p.52)

4- Conclusão

A rua e a praça têm a função de representar a cultura e identidade negra, demonstram

suas alegrias e tristezas expressas nas músicas e danças. A Igreja é que representa a

religiosidade do negro, com todo o hibridismo adquirido com o passar do tempo, e recriação

dessa manifestação. A casa executa a representatividade familiar, local em que no dia a dia

são passados e transmitidos os ensinamentos do Congado. E’ nesses espaços que as relações

sociais se intensificam, as memórias são revividas e a festa reinventada para continuar

existindo.

A Festa em louvor a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário da cidade de Ituiutaba, no

Pontal do Triângulo Mineiro, é fruto de uma combinação criativa, que mescla modernidade e

tradição, tornando tal prática cultural uma manifestação em constante processo de

ressignificação. Essa transformação pode ser presenciada no uso de instrumentos

industrializados, nos penteados dos dançadores, homens e mulheres mais jovens, sempre

seguindo uma tendência étnica marcante, nos pontos cantados que retratam tanto cenas do

cotidiano como a história dos grupos ou as suas heranças históricas, aproximando passado e

presente, nos rituais de fechamento do corpo, feitos com preparados de ervas e aguardente,

para fechar o corpo e se proteger, ou nas vestimentas modificadas a cada ano para se manter

atual e, ao mesmo tempo, ter visibilidade durante as apresentações pela cidade.

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