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PRADO Jr., Caio. O que é filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 37). Créditos: Indisponíveis Revisão: PDL

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PRADO Jr., Caio.

O que filosofia.

So Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 37).PRIVATE

Crditos: Indisponveis

Reviso: PDLO que filosofia*

* Texto originalmente publicado no Almanaque, n 4, Ed. Brasiliense, 1977.

No precisamos buscar na infinidade de conceitos de "Filosofia" , talvez um para cada autor de certa expresso, e que vagueza das formulaes acrescentam s vezes at posies contraditrias, no precisamos procurar a a incerteza e impreciso que reinam e, sobretudo em nossos dias, no que concerne o objeto da especulao filosfica. Muito mais ilustrativa a consulta aos, textos filosficos ou qualquer exposio ou anlise do desenvolvimento histrico do assunto. De tudo se trata, pode-se dizer, ou se tem tratado na "Filosofia", e at os mesmos assuntos, ou aparentemente os mesmos, so considerados em perspectivas de tal modo apartadas uma das outras que no se combinam e entrosam entre si, tornando-se impossvel contrast-las. Para alguns, essa situao no apenas normal, mas plenamente justificvel.

A Filosofia seria isso mesmo: uma especulao infinita e desregrada em torno de qualquer assunto ou questo, ao sabor de cada autor, de suas preferncias e mesmo de seus humores. H mesmo quem afirme no caber Filosofia "resolver", e sim unicamente sugerir questes e propor problemas, fazer perguntas cujas respostas no tm maior interesse, e com o fim unicamente de estimular a reflexo, aguar a curiosidade. E j se afirmou at que a Filosofia no passava de uma "ginstica" do pensamento, entendendo por isso o simples exerccio e adestramento de uma funo, no caso, o pensamento em vez dos msculos , sem outra finalidade que essa.

Apesar, contudo, de boa parte da especulao filosfica, particularmente em nossos dias, parecer confirmar tal ponto de vista, ele certamente no verdadeiro. H sem dvida um terreno comum onde a Filosofia, ou aquilo que se tem entendido como tal, se confunde com a literatura (no bom sentido, entenda-se bem) e no objetiva realmente concluso alguma, destinando-se to somente, como toda literatura, a par do entretimento que proporciona, levar aos leitores ou ouvintes, a partir destes centros condensadores da conscincia coletiva que so os profissionais do pensamento, levar-lhes impresses e estados de esprito, emoes e estmulos, dvidas e indagaes. Mas esse terreno que a Filosofia, ou pelo menos aquilo que se tem entendido por "Filosofia", compartilha com a literatura, no toda Filosofia, nem mesmo, de certo modo, a sua mais importante e principal parte. E nem ao menos, a meu ver, com todo interesse que possa representar, constitui propriamente "Filosofia", e deveria antes se confundir, na classificao, e s vezes at mesmo na designao, com a mesma literatura com que j apresenta tantas afinidades.

Mas conserve embora a Filosofia literria sua qualificao e status, necessrio que a par dela e com ela se desenvolva tambm uma Filosofia de outro teor que d resposta, e na medida do possvel, precisa, s questes que efetivamente nela se propem. A Filosofia pode a rigor ser tratada literariamente, como pode s-lo a Cincia e o conhecimento em geral. Mas que isso seja forma, e no fundo. Esse fundo outra coisa que, apesar de tudo, se percebe em todo verdadeiro filsofo, por mais que se disfarce num pensamento confuso, disperso, sem objetivo desde logo aparente e seguro. Que se percebe sobretudo na Filosofia em conjunto como maneira especfica de tratar dos assuntos de que se ocupa, por mais variados e dspares que sejam. Com toda sua heterogeneidade, confuso e hermetismo de tantos de seus textos vazados em linguagem acessvel unicamente a iniciados,ou antes, por eles julgados acessveis, mais do que acessveis de fato , com tudo isso, a Filosofia encontra ressonncia tal que, se no fosse outro o motivo, j por si bastaria para comprovar que nela se abrigam questes que dizem muito de perto com interesses e aspiraes humanas que devem, por isso, ser atendidos, e no frustrados pela ausncia ou desconhecimento de objetivo e rumo seguros da parte daqueles que se ocupam do assunto.

Mas onde encontrar esse "objeto" ltimo e profundo da especulao filosfica para o qual converge e onde se concentra a variegada problemtica de que a Filosofia vem atravs dos sculos e em todos os lugares se ocupando; e de que trata ? E muito importante determin-lo, porque isso pouparia esforos que to freqentemente se perdem em indagaes inteis ou mel propostas; e que, concentrados na direo de um alvo legtimo e claramente definido, reuniriam um mximo de probabilidades de atingirem esse alvo, ou pelo menos de o aproximarem. Existir contudo esse objeto central e legtimo de toda a especulao filosfica, um denominador comum que embora disfarado e mal explcito, orienta mais ou menos inconscientemente aquela especulao? Acredito que sim, e a sua determinao constitui tarefa necessria e preliminar da indagao filosfica; e, certamente, mesmo que no chegue logo a uma preciso rigorosa (se que ela possvel), ser por certo de resultados altamente fecundos.

O ponto de partida dessa determinao deve ser, para nada perder em objetividade, a considerao e exame do prprio contedo e desenvolvimento daquilo que se tem por pesquisa filosfica e do Conhecimento em geral. Mais comumente a Filosofia tida como uma complementao da Cincia e da elaborao cognitiva em geral; como seu coroamento e sntese. Esse conceito da Filosofia se encontra alis mais ou menos expressamente formulado em boa parte das definies e explicaes que dela se do, e partidas dos mais afastados e mesmo antagnicos quadrantes. At mesmo o sc. XVIII, e talvez o seguinte, Filosofia ainda se confundia com Cincia; e das filosofias particulares (como por exemplo a "filosofia qumica", que no seno a nossa Qumica, simplesmente) passava-se imperceptivelmente para assuntos gerais que se enquadrariam melhor naquilo que hoje entenderamos mais especificamente como "Filosofia".

Que a Filosofia Conhecimento, e que de certa forma se ocupa dos mesmos objetos que as cincias em geral, no h dvida. Mas tudo est nessa restrio "de certa forma". isso porque a Filosofia no e no pode ser, logo veremos por que, simplesmente prolongamento da Cincia, uma "supercincia" que a ela se sobrepe e que a completa. No h lugar para esse simples prolongamento. Ou melhor, qualquer legitimo prolongamento da Cincia e sempre ser, tudo indica, Cincia e no outra coisa. Isso se pode concluir do fato que o desenvolvimento da Cincia, quando se excluem indevidas extrapolaes, se faz sempre num sentido nico que o da crescente generalizao. E no h nenhum ponto fixado, no passado, ou previsvel no futuro, nem mesmo fronteira difusa naquele processo alm do qual no caberia mais falar em Cincia propriamente. A histria da Cincia nos mostra que sua marcha e progresso vo uniformemente no sentido da elaborao de conceitos, ou melhor "conceituao" cada vez mais abstrata e geral. Isto , de sistemas conceptuais mais inclusivos, que por sso mesmo cobrem e representam conjuntos mais amplos da Realidade universal ,no no sentido de ais extensos simplesmente, quantitativamente maiores, e sim mais complexos e abrangentes, de feies mais diferenciadas. Comparam-se a esse propsito os dois setores do Conhecimento que se encontram contemporaneamente nos extremos da linha ascendente do progresso cientfico: de um lado as Cincias sociais, de outro as fsicas. No primeiro desses setores encontramo-nos em face de um conhecimento emprico ainda solidrio, diretamente, com dados imediatos da observao e experimentao. A conceituao representativa desses dados que refletem os fatos sociais de insignificante generalidade; os conceitos que a constituem se entrosam mal e frouxadamente entre si, e no se englobam em sistemas amplos capazes de formarem, por sua vez, outros tantos conceitos de mais elevado nvel de abstrao e generalidade.

Confronte-se essa situao com a das Cincias fsicas e de seus imponentes sistemas conceptuais que cobrem e compreendem, representando-os conceptualmente, extensos e amplamente diversificados aspectos e feies da Realidade universal. Considere-se em particular o progresso recente dessas Cincias no sentido de uma precipitada generalizao, que j hoje compreende (embora ainda falte um bom caminho para a complementao e integrao sistemtica total do assunto) o conjunto das Cincias fisico-quimicas que h algumas dcadas passadas ainda se confinavam em esferas estanques e impenetrveis uma outra.

Observando-se esses fatos da marcha progressiva do Conhecimento e da Cincia, o que se verifica a homogeneidade desse progresso. E da i se pode concluir a respeito da homogeneidade tambm do conhecimento cientfico, de sua natureza, carter e estrutura, que so sempre uniformes e do mesmo padro. Onde pois o hiato ou transformao qualitativa suficientemente acentuado para justificar, nesse processo de desenvolvimento e aprofundamento do Conhecimento, a eventualidade da fixao de limites alm dos quais j no se trataria mais de "Cincia" e sim de outra disciplina? Outra ordem de Conhecimento que caberia Filosofia? Essa indagao sem resposta plausvel leva concluso de que a Filosofia no e no pode ser simples prolongamento do conhecimento cientfico, nada mais que um ponto de vista mais geral e amplo, mas essencialmente de igual natureza, dos mesmos objetos de que se ocupa a Cincia. E simplesmente Cincia e no h por que inclu-la em outra ordem de conhecimentos alm da Cincia. A Filosofia ser outra coisa, ou ento no tem razo de existir. Aquilo de que se ocuparia um simples prolongamento ou generalizao do conhecimento cientfico no merece outro nome que "cincia" simplesmente.

Em outras palavras e mais sumariamente, pelo objeto, pela matria ou assunto de que se ocupa, que a Filosofia, para ter existncia prpria e se legitimar, se h de distinguir. No seria simplesmente pela maneira, pelo mtodo especifico de tratar do mesmo objeto das Cincias, que se justificaria uma ordem distinta de conhecimentos que caberiam ento Filosofia. Se o objeto da Filosofia identicamente o mesmo que o das Cincias, a saber, os fatos e feies do Universo em geral, no haveria mister dela; e a prpria Cincia daria conta da tarefa. Isso porque a elaborao do Conhecimento no segue caminhos diversos, ou no deveria segui-los: um que seria o ordinrio da Cincia, outro distinto deste que se observa correntemente na elaborao cientfica, e que por ser assim distinto caberia Filosofia. certo que a elaborao cientfica se realiza atravs de procedimentos vrios, que a rigor se poderiam considerar mtodos diferentes. Os tratados usuais da Lgica elementar costumam considerar e enumerar esses "mtodos", se que merecem a designao. Mas essas diferenas no so essenciais. Trata-se antes de tcnicas, digamos assim, de investigao e exame dos fatos considerados. Tticas ou estratgias, por assim dizer, de abordagem desses fatos pela inquirio cientfica. O essencial do processo de elaborao cientfica digna desse nome e legitima fundamentalmente o mesmo em qualquer terreno. O que se procura e o que se obtm com essa elaborao no somente no apresenta disparidade essencial alguma, como no se percebe ou concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia insinuar. No com ela pois que se lograr discernir e determinar uma ordem de conhecimentos distintos dos da Cincia e necessitando por isso de outra disciplina, que seria a Filosofia.

assim pelo seu objeto, e somente por ele, que a Filosofia se h de distinguir da Cincia, e com isso se legitimar como disciplina parte. Mas se Cincia cabe, como objeto, a Realidade Universal, isto , o Universo e seu conjunto de ocorrncias, feies, circunstncias que envolvem e tambm compreendem o Homem, o que ficar de fora para eventual mente constituir objeto prprio da Filosofia? Note-se que estamos aqui empregando a expresso "cincia" onde deveramos com mais propriedade dizer "Conhecimento". isso porque Cincia no seno Conhecimento sistematizado, e advertida e intencionalmente elaborado, no se distinguindo seno por essa sistematizao em nvel elevado e elaborao intencional do Conhecimento comum ou vulgar, aquele de que todo ser humano titular, por mais rudimentar que seja seu nvel de cultura. O Conhecimento essencialmente de uma s natureza, e por mais elementar e grosseiro que seja, tem fundamentalmente o mesmo carter do mais complexo e refinado conhecimento cientfico. No h, alis, nenhuma fronteira marcada, ou possvel de marcar, nessa complexidade, nem mesmo separao possvel, pois o conhecimento cientfico de hoje ser o vulgar de amanh.

Assim sendo, as nossas consideraes acima se aplicam no especialmente ao conhecimento cientfico, e sim ao Conhecimento em geral, ocupe ele o plano hierrquico e o nvel de importncia que ocupar. E, reformulando nessa base a nossa questo, diramos: qual o possvel objeto do Conhecimento que no seja objeto do Conhecimento? Pergunta aparentemente sem sentido dentro dos cnones lgico-lingisticos ordinrios mas que se resolve simplesmente, e veremos que historicamente tambm, no fato de que alm do conhecimento dos objetos ordinrios do Conhecimento, as feies e ocorrncias do Universo em que existimos e de que participamos,pode haver, e efetivamente h ainda, reflexivamente, um Conhecimento do prprio Conhecimento.

Realmente o que se verifica no desenvolvimento histrico do pensamento humano logo que o progresso do Conhecimento atinge certo nvel. Isto , um retorno reflexivo da elaborao cognitiva sobre si mesma, passando o prprio Conhecimento a se fazer objeto do conhecer. Fato esse suficientemente marcado para dar lugar a uma ordem de cogitaes bem caracterizadas e distintas do Conhecimento ordinrio. E se bem que pensadores e elaboradores do Conhecimento no se tenham desde logo dado plenamente conta da diferenciao e partio interior dos objetos de que se ocupavam (do que alis resultariam mal entendidos e confuses de largas conseqncias) a sua obra no deixar de refletir a duplicidade do assunto tratado e o novo rumo que tomava o pensamento e elaborao do Conhecimento; isto , a par do Conhecimento, a do Conhecimento do Conhecimento. O que cronologicamente coincide no Mundo Antigo (e no ter sido por certo uma simples coincidncia) com a ecloso daquilo que seria havido como "filosofia".

Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira abordagem do assunto, assim penso, numa sumria recapitulao, a largos traos, das linhas mestras e momentos culminantes e decisivos do pensamento e elaborao do Conhecimento nas sociedades que mais contriburam, at os nossos dias, para a evoluo em conjunto e conformao da cultura moderna; e que vem a ser aquela que, brotada no seio das civilizaes do Mediterrneo oriental, se difundiria pela Europa ocidental e da para o mundo todo.

Mas em que consiste ou pode consistir esse Conhecimento do Conhecimento cuja gnese e vicissitudes sofridas no curso de sua evoluo se trata para ns aqui de examinar? Ou, em outras palavras, que vem a ser Conhecimento como "objeto do Conhecimento"? Em primeiro lugar, est claro, a natureza do Conhecimento, seu processamento. Dito de outro modo: o que vem a ser o fato ou ato de "conhecer"; e como se realiza esse fato, qual a sua seqncia,sua gnese, seu desenvolvimento e seu desenlace; em que vai dar. Isso , como se apresenta e configura na sua concluso como corpo de conhecimentos para o qual o processo afinal se dirige e em que se torna. So essas as questes que se agrupam na disciplina ordinariamente conhecida por Teoria do Conhecimento, epistemologia ou mais genericamente: gnosiologia. Disciplinas essas que constituem, segundo consenso generalizado, captulos da Filosofia. At a, portanto, no haver divergncias apreciveis que comeam da por diante. H os que restringem a Filosofia a isso mesmo, e at menos, como os logicalistas que fazem da prpria Teoria do Conhecimento, e pois da Filosofia que a ele se reduziria, uma simples anlise lgico-crtica da linguagem ou simbolismo em que o Conhecimento e a Cincia em particular se exprimem. Essa concepo, contudo, restrita a reduzidos crculos. Em regra, pelo contrrio, a teoria do conhecimento, em si, ocupa oficialmente um lugar secundrio e diramos quase marginal da Filosofia que, a julgar pelos assuntos nela tratados, ou pelo menos sob sua responsabilidade, tem voz em qualquer terreno, duplicando de certa forma com isso o papel da Cincia cujo objeto no se distinguiria essencialmente do seu. Filosofia e Cincia, distintas embora quanto perspectiva em que respectivamente se colocam, e ao mtodo, ou antes "estilo" que adotam, se ocupariam uma e outra da mesma Realidade universal. J lembramos acima essa universalidade da Filosofia, bem como a confuso reinante no seu ponto de partida entre os objetos respectivos do Conhecimento (que seria em particular a Cincia) e o Conhecimento do Conhecimento, ou Filosofia. Confuso essa que se prolongar sob muitos aspectos, embora progressivamente se atenuando, at os dias de hoje.

Notamos tambm que em princpio e em frente aos fatos do desenvolvimento histrico da Cincia, essa pretenso da Filosofia de se ocupar com assuntos da alada da Cincia no se justifica. Nesse ponto os logicalistas, que partem dessa questo para seu programa de limitao do campo da Filosofia, tm plena razo. Quando a Filosofia se ocupa dos objetos da Cincia, a saber, das feies e fatos do Universo, suas concluses so sempre desmentidas em prazo mais ou menos dilatado, mas sempre fatal. Como se depreende claramente da histria da Cincia, e sobretudo da Fsica moderna, a Filosofia, ou antes, os filsofos, no que se refere sua atuao no campo cientfico, no tm feito mais que consagrar velhas e ultrapassadas concepes, disfarando-as em princpios absolutos com pretenses validade eterna. E sob esse disfarce que as rudimentares e grosseiras noes fsicas de Aristteles atravessaram os sculos; e mais tarde a Mecnica newtoniana foi erigida em "verdade" final e absoluta. Assim tem sido porque, tratando de objetos que no so seus, e portanto sem condies para faz-lo, a Filosofia no podia dar, como no deu, em outra coisa que vestir hipteses cientficas de trajes filosficos, fazendo deles "princpios" dentro dos quais aquelas hipteses se "putrificam", na sugestiva expresso de P. Franck.

A Filosofia, embora ultrapassando largamente aquilo que de ordinrio se trata na teoria do conhecimento, conserva-se dentro e no mbito do Conhecimento como objeto. Isso , enquanto a Cincia e o Conhecimento em geral, em que a Cincia constitui o setor organizado e sistematizado,tm por objeto as feies e ocorrncias do Universo que envolvem o Homem e de que ele tambm participa, o objeto da Filosofia precisamente esse "conhecimento" de tais feies e ocorrncias. E assim Conhecimento desse Conhecimento. E isso no apenas por ser essa, para a` Filosofia, a perspectiva prpria para a considerao e exame das questes que nela legitimamente se prope. Mas ainda, e sobretudo porque esse tem sido o seu campo de ao, mesmo quando, por uma falsa perspectiva e involuntria confuso, aparenta dela se afastar. A Filosofia sempre se ocupou, de fato, do Conhecimento em si e todas suas implicaes, embora freqentemente julgue, ou melhor, julgam os filsofos seus autores estarem tratando de outro objeto. alis dessa confuso que resultam e sempre tm resultado os mal-entendidos que viciam a especulao filosfica e a tornam, em to grande parte e alto grau, imprecisa e ambgua, infestada de debates estreis e questes inteis e insolveis. O que, alm do mais, faz perder de vista, ou prope de forma defeituosa algumas das questes essenciais da Filosofia. Bem como perturba a elaborao cientfica, como to frequentemente tem acontecido, como teremos ocasio de referir e j foi lembrado no caso da Filosofia de Aristteles e da Mecnica de Newton.

Vejamos como isso ocorre. Procurarei aqui clarear e explicar a confuso bsica que vicia a generalidade da especulao filosfica, para em seguida mostrar como ela efetivamente se vem verificando no curso do desenvolvimento histrico da Filosofia. O Conhecimento, como objeto do Conhecimento, se prope em seqncia ao conhecimento da Realidade universal exterior ao pensamento elaborador Esse conhecimento da Realidade se apresenta na conceituao que, elaborada na base da experincia do indivduo pensante, reflete, ou melhor, representa na esfera mental desse indivduo pensante as feies e ocorrncias da Realidade. Desse primeiro momento ou nvel da atividade cognitiva (isto , a elaborao da conceituao representativa da Realidade), o instrumento dessa atividade, que o pensamento elaborador do Conhecimento, se volta sobre si prprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo contedo conceptual ou Conhecimento por ele elaborado. Trata-se de uma posio como que crtica, que objetiva de Um lado, e entre outros, aferir de um modo geral a segurana, e ponderar o valor e alcance do Conhecimento adquirido e por adquirir; e, de outro, visa e se prope dar ao Conhecimento expresso conveniente (em especial e fundamentalmente pela linguagem discursiva) e ordenar e sistematizar a conceituao que compe o Conhecimento. Isso tudo para, no contexto geral do processo cognitivo, alcanar o seu fim primordial (que o do "conhecer" como funo e constituinte essencial da natureza humana), fim primordial de determinar e orientar devida o comportamento do Homem.

No entraremos aqui no pormenor desses pontos a fim de no particularizar a exposio e perder com isso de vista o conjunto e o essencial do assunto que diretamente aqui nos interessa, e que vem a ser a duplicidade dos nveis em que opera o pensamento elaborador do Conhecimento, e o que essa duplicidade significa. Repetindo, temos de um lado, como ponto de partida, o nvel do conhecimento direto e imediato das feies e ocorrncias da Realidade que se trata de conhecer, isso , aquilo que ordinariamente entendemos simplesmente por "Conhecimento", e Cincia em particular. Temos de outro, e em seguida, um segundo nvel sobreposto ao primeiro, e no qual o pensamento se ocupa j no diretamente com as feies e ocorrncias da Realidade, mas com o Conhecimento acerca dessas feies e ocorrncias. No primeiro nvel, o pensamento estar se aplicando esfera objetiva e exterior ao ato pensante , no outro, se aplicar a si prprio, ou antes, ao seu contedo , e, note-se bem, propriamente como seu contedo, j desligado da Realidade que representa , contedo de Conhecimento ou conceituao representativa da esfera objetiva, e elaborada no curso de sua atividade no primeiro nvel.

Mas, aplicando-se embora ao seu contedo de Conhecimento e conceituao, ou seja, esfera subjetiva, o pensamento ir por fora se referir, embora indiretamente, aos objetos daquele Conhecimento , que so, repetimos, as feies e ocorrncias da Realidade que lhe so exteriores. isso bvio, pois pensamento ou conhecimento no existem em estado "puro" e vazio de representao conceptual das feies e ocorrncias do Universo. No existem mesmo, tais quais "faculdades" potenciais do indivduo pensante e conhecedor, parte dessa representao que lhes concede a substncia de que se constituem.

Essa situao por sua prpria natureza fonte de confuso entre as duas esferas, a subjetiva e a objetiva. E deriva da a impresso e iluso que to fortemente se ancoraria na Filosofia, e que consiste em tratar de um objeto julgando tratar-se de outro Ou melhor, simplesmente ignorar a distino e oscilar dubiamente entre um e outro; ocupar-se do Conhecimento e conceituao que o compe, como se tratasse das feies e ocorrncias da Realidade exterior ao pensamento representados conceptualmente por aquele Conhecimento. Caso flagrante disso, que refiro a ttulo de ilustrao bem esclarecedora dessa confuso, o conceito "matria", que vem constituindo atravs dos sculos um dos principais divisores do pensamento filosfico; e a respeito do qual as partes que contendem incessantemente no conseguem sequer fixar com clareza o que est sendo debatido. O que torna o debate, no mais das vezes, em infindveis monlogos que se desenrolam paralelamente uns aos outros, e sem correspondncia no mais das vezes entre si. Cada qual trata respectivamente de assuntos que no coincidem, embora essa coincidncia esteja sendo presumida.

O desentendimento nesse caso tem suas razes na considerao de "matria" de ngulos distintos, em que se mesclam em propores vrias, conforme os filsofos, de um lado a perspectiva de algo exterior e que a expresso "matria" designaria (substncia corprea ou sensvel... componente primrio e original do Universo... substratum de todas as coisas.), de outro lado o conceito propriamente de "matria",como se d quando se trata de contrastar o conceito "matria" com outros conceitos, como seja "esprito", "idia", "forma"; ou ento quando com o conceito de matria se integra um sistema conceptual, como se d com a noo aristotlica de "potencialidade para receber forma". Note-se bem que no se trata a unicamente, nem mesmo essencialmente, de diferena de sentido, de acepo da palavra "matria", pois se fosse apenas isso o acordo ainda seria possvel, pelo menos no que se refere s premissas da discusso, seu ponto de partida. A divergncia muito mais profunda, pois diz respeito "localizao", digamos assim, daquilo que se designa por "matria". Localizao essa que, nos casos extremos mais puros, ser alternativamente: ou entre objetos ou feies naturais exteriores ao pensamento; ou, no caso contrrio, entre elementos conceptuais. Na maioria dos textos filosficos em que ocorre o conceito "matria", um exame atento e devidamente alertado revela essa indistino entre o conceito propriamente e em si, de um lado; e doutro, o objeto da Realidade exterior que ele representa, ou que deveria ou poderia referir e representar. Naturalmente os filsofos julgam sempre, ou parecem julgar ao se referirem a "matria", estarem tratando de objetos exteriores ao pensamento e includos na Realidade e feies do Universo. Mas o que efetivamente esto fazendo,no caso da matria como no de outro conceito qualquer da mesma natureza ambgua, projetaram seu pensamento e conceituao no mundo exterior, e tratarem assim, como includo nesse mundo exterior, o que realmente constitui um fato de seu pensamento, um conceito.

A confuso entre esfera subjetiva e objetiva vai dar assim na projeo da primeira na segunda; a projeo da conceituao no mundo exterior ao pensamento. Fato esse que tem papel essencial em todo desenvolvimento histrico do pensamento humano. Pode-se mesmo dizer que o comum das concepes gerais acerca da Realidade (isso tanto no nvel da Filosofia e da Cincia, como no das concepes vulgares) se acha fortemente influenciado por essa verdadeira inverso idealista pela qual se recria no exterior do pensamento um mundo feito imagem desse pensamento. Isso , modelado e configurado segundo padres conceptuais. Engels, o primeiro, que eu saiba, a assinalar essa inverso idealista, assim a descreve: "Primeiro fabrica-se, tirando-o do objeto, o conceito desse objeto; depois inverte-se tudo, e mede-se o objeto pela sua cpia, o conceito".

Daqueles padres conceptuais pelos quais se modela a Realidade, o mais importante naturalmente o da linguagem discursiva, na qual e atravs da qual a conceituao, no mais das vezes, se formaliza e exprime. Essa a razo principal por que encontramos a nossa concepo corrente e ordinria do Universo fundamentalmente conformada por estruturas verbais. E atravs de formas verbais que o realismo ingnuo (que espontaneamente, e na base de nossa educao e formao ordinria, de todos ns) enxerga o Universo e o interpreta; e na base delas que se dispem as feies e ocorrncias da Realidade universal. E da que deriva, entre outras, a noo de um mundo constitudo de "coisas' e "entidades" bem discriminadas e separadas entre si; coisas e entidades essas de cujas "qualidades" e comportamento resultam os fatos, feies e circunstncias em geral do Universo Mal se disfara nessa concepo ingnua e integrada tanto no pensamento filosfico profissional, como no ordinrio e vulgar, mal se disfara a o modelo que o inspira, a saber, a estrutura gramatical do sujeito e predicado, e seus elementos constituintes essenciais: substantivo, adjetivo, verbo Temos a; os materiais com que se constitui e concebe ordinariamente o Universo, com as circunstncias que nele se verificam e ocorrem. Os substantivos se faro nas coisas e entidades em que o Universo discriminado e dividido; os adjetivos sero as qualidades com que se revestem aquelas coisas e entidades; e os verbos, finalmente, designaro (e a rigor "sero" mesmo) a ao das mesmas coisas e entidades; ao essa com que se descrever o comportamento do Universo .

Essa maneira de proceder, isso , de inverter a ordem do processo do Conhecimento que, originando-se na Realidade exterior ao pensamento elaborador, retorna e se projeta afinal sobre essa mesma Realidade e a modela segundo seus padres, esse procedimento tem na Filosofia razes to fortes que a encontramos mesmo naqueles setores que mais diligentemente procuraram se libertar dos preconceitos e distores da Filosofia clssica - que vem a ser alis a Metafsica aristotlica que consagrou filosoficamente e projetou pelos sculos afora e at nossos dias, como alis veremos adiante, a confuso das esferas subjetiva e objetiva do pensamento e Conhecimento. Assim os logicalistas que fundamentalmente visavam desfazer aquelas distores atravs do correto emprego da linguagem simblica "perfeitamente" construda (e so essa correo e perfeio que sobretudo visam em seus trabalhos) acabam concebendo e construindo com todas as peas esse mundo idealmente modelado para ser adequadamente descrito por aquela linguagem "perfeita" por eles pretendida. A abertura do Tractatus Logico" Philosophicus de Wittgenstein (o evangelho, pode-se dizer, do logicalismo) nos d conta desse mundo ideal, num encadeamento de proposies, tal qual normas de um texto legal, segundo o estilo to caracterstico do autor,cuja inspirao em modelos e padres puramente gramaticais patente e inconfundvel.

Numa considerao bem alertada e atenta interpretao do desenvolvimento histrico da Filosofia, vamos encontrar a comprovao no somente de que o verdadeiro objeto dela o Conhecimento em si, e no dos objetos desse Conhecimento que so os fatos, feies ou circunstncias em geral da Realidade exterior ao pensamento elaborador (embora freqentemente, e mesmo no mais das vezes isso tenha passado despercebido), veremos no somente isso, mas ainda que foi e ainda precisamente essa incompreenso ou falta de rigorosa discriminao entre as esferas objetiva e subjetiva, que se encontra na base dos mal-entendidos e confuses que permeiam e viciam o pensamento filosfico, tornando to precria a realizao da tarefa que lhe incumbe.

Como foi notado, e procuraremos comprova -lo agora com os fatos histricos, a Filosofia tem suas origens e ponto de partida quando o pensamento investigador do Homem se volta reflexivamente sobre si prprio e seu contedo de conhecimentos j elaborados e conceituados, ou em vias de elaborao, a fim de aferi-los, compreender o processo de sua elaborao, conceder-lhe segurana e orientao adequada para a utilizao prtica a que se destinam. E para realizar isso, organiz-los e concaten-los devidamente na sua expresso verbal. Transfere-se ento o pensamento investigador para outro nvel. Isso , da considerao das feies e fatos da Realidade exterior, bem como da atividade elaboradora do Conhecimento dessa Realidade, passa-se para a considerao desse mesmo Conhecimento em si, e processo de sua elaborao. Isso, contudo, no se perceber plenamente desde logo, dando lugar confuso das esferas subjetiva (objeto da Filosofia) e objetiva (objeto da Cincia). E com isso se baralham os distintos nveis de elaborao do Conhecimento.

Observemos essa seqncia de fatos histricos e as primeiras manifestaes do mal-entendido e confuso que viciariam da por diante o pensamento filosfico j no desabrochar da Filosofia grega. Nesse preldio do que seria a matriz principal de todo pensamento ocidental atravs dos sculos, verifica-se muito bem aquela transio da elaborao cognitiva para novo nvel que ser o da Filosofia que ento se inaugura.

Esse momento se situa nos chamados "fsicos de Mileto", e vai-se sobretudo revelar na natureza do problema central proposto por esses precursores da Filosofia grega, e que seria o seu ponto de partida. A saber, o problema da "substncia" Universal que daria origem a todas as coisas e as teria

constitudo. Tales dir, como se sabe, que a gua. Anaxmenes, o ar Anaximandro, uma substncia indefinida,apeiron.

Como se explica a proposio desse problema da existncia de uma substncia Universal originria de todas as coisas? E o que no tem preocupado devidamente os historiadores da Filosofia, como se a questo se apresentasse espontaneamente e fatalmente, sem necessidade de maior explicao. Entretanto, as circunstncias em que ela se prope, tanto seus antecedentes como seu desenvolvimento futuro nos dizem muita coisa a respeito, e mostram que o pensamento grego se engajara a em nova direo que embora preparada e condicionada pelo que a precedera, assumia outro sentido bem diverso do anterior. Os milsios trouxeram grande contribuio, como se sabe, para a Cincia e o Conhecimento dos fatos da Natureza. Mas o tema que os ocupa centralmente e que diz respeito "substncia" constituinte do Universo representa sem dvida alguma coisa bem diferente e um novo caminho imprimido a seu pensamento. Constitui erro, assim penso, e imperdovel anacronismo considerar,como freqentemente se tem feito ou pelo menos insinuado,que os pensadores gregos estivessem preocupados com a substncia ou elemento constituinte do Universo com o mesmo esprito com que os fsicos da atualidade e de um sculo para c investigam as "partculas" ou outras ocorrncias de cujas estruturas, disposio e comportamento no plano microscpico, resultam os fatos observados no plano macroscpico que o nosso usual de todos os dias. Estruturas e comportamento esses com que se torna possvel explicar tais fatos, ou antes represent-los conceptualmente (mentalmente) e formalizar e exprimir essa representao que os descreve atravs do simbolismo matemtico. Evidentemente preocupaes dessa natureza eram completamente estranhas, como no podia deixar de ser, aos pensadores gregos. Nem possuam eles lastro suficiente de conhecimentos para cogitar delas, nem tampouco a maneira de propor o assunto e em seguida desenvolv-lo apresentam a mais remota analogia com o que ocorre nos procedimentos da Cincia de nossos dias.

De fato, o que os pensadores que se ocupam do assunto tm em mira essencialmente uma questo que constituir o pano de fundo de todo debate, e tema central da Filosofia grega em geral. J em outra oportunidade procurei desenvolver esse assunto que consiste resumidamente no seguinte.

Trata-se em suma e esquematicamente de explicar como neste mundo to variado e em permanente fluxo e transformao; onde as feies naturais se apresentam aos sentidos no somente sob tal multiplicidade de aspectos a ponto de nunca se assemelharem perfeitamente entre si; como tambm porque se modificam sem cessar; trata-se assim de explicar como possvel neste mundo to variado e varivel, multiforme e em fluxo e transformao permanentes, como possvel um verdadeiro e legtimo Conhecimento que implica uniformidade e permanncia, condies essas indispensveis para a caracterizao e identificao dos objetos daquele Conhecimento. Todo Conhecimento comea necessariamente por essa caracterizao e identificao dos objetos que se trata de conhecer, o que somente concebvel na uniformidade e estabilidade deles.

Os milsios respondero a essa questo, que , como se v, fundamentalmente gnosiolgica , trata-se no essencial de estabelecer e fixar as condies do Conhecimento, respondero com a sua substncia material ou assemelhada que preencher para eles a funo de representar o substrato permanente e estvel do Universo que faz possvel o Conhecimento Com isso os milsios davam bem mostra da ingenuidade de suas concepes ainda presas inteiramente a um nvel rudimentar e grosseiro de Conhecimento no liberto do empirismo de seus comeos, e confundido por isso com os dados diretos e imediatos dos sentidos com que o Homem entra em primeiro e original contato com a Realidade exterior

Uma nova gerao de pensadores mais maduros que segue esses precursores e se inaugura na segunda metade do VI sc. A.C. procurar dar questo uma resposta mais profunda,embora a mesclem ainda, em grandes propores, com as grosseiras concepes derivadas dos milsios; concepes essas que somente desaparecero na obra de Plato. A multiplicidade e instabilidade das feies naturais ser por eles atribuda iluso enganadora dos sentidos. Por trs dessa iluso, diro eles, se abriga a verdadeira Realidade, onde se encontram a uniformidade e permanncia que se trata de apreender e que proporcionaro o legtimo Conhecimento, A identidade desse princpio ideal (ou pelo menos semi-ideal, como o caso dos mais antigos pensadores dessa fase), principio unificador da Natureza, variar segundo os filsofos: sero os nmeros, para Pitgoras; o SER, para Parmnides; o Logos para Herclito; o Nous para Anaxgoras .. Mas seja qual for a natureza atribuda ao principio unificador, ele mal disfara e em ltima instncia se confunde sempre com o pensamento. E a soluo do problema da Uniformidade na multiplicidade, e da permanncia no fluxo das coisas e feies do Universo, se transferir para o plano do pensamento do Homem, exibindo-se com isso a natureza do que seria a Filosofia e seu objeto, que no consistia, como poderia s vezes parecer primeira vista, e nas concepes grosseiras dos milsios podia mesmo iludir, no consistia nas feies da Natureza. O objeto de que se ocupam os pensadores que mereceram, e com acerto, a qualificao de "filsofos" (pois de outra forma seriam, como realmente os houve, simplesmente homens de cincia), esse objeto eram o pensamento e o produto da elaborao desse pensamento que vem a ser o Conhecimento. Isso patente sobretudo, e por isso o destacamos aqui, naquela concepo que mais se projetaria no futuro desenvolvimento da Filosofia, e durante sculos constituiria, podemos dizer, seu tema central. Refiro-me ao SER de Parmnides, que afinal, e sem embargo da tempestade verborrgica que a Metafsica desencadearia em torno do assunto no seno expresso geral e formal da operao mental com que se qualificam e identificam as feies da Natureza, e com isso se caracterizem, determinam e fixam. O SER originariamente a cpula (verbo) com que formalmente se exprime a qualificao e se designa a identificao (a rvore Um vegetal, o homem racional, isto com que escrevo uma esferogrfica... ). No pode haver duvida que Parmnides pressentiu com sua concepo, confusamente embora, mas com mais clareza que qualquer de seus contemporneos, que a questo central proposta pelos milsios se situava efetivamente no plano conceptual. Que se tratava, para empregarmos uma linguagem no caso anacrnica, de um problema da "teoria do conhecimento". O pressentimento de Parmnides, que alis ficar nisso, degenerando em sua esdrxula e grosseira imagem de uma "esfera imvel, sem princpio e sem fim" , encontrar seu intrprete, em seguimento aos Sofistas e sobretudo Scrates , em Plato.

No vamos aqui entrar no exame da filosofia platnica. Ela se resume no essencial, pode-se dizer, na observao de Raphael Demos: "A filosofia de Plato se sumariza na vida da razo". No importa que Plato tenha hipostasiado a Razo, fazendo dela um mundo supra-sensvel parte: o mundo das idias que faz contrapeso e contrasta com o mundo sensvel; que constitui o prottipo de que esse mundo sensvel no seno imperfeita reproduo. Esse mundo das idias no seno o pensamento, a funo pensante e a atividade racional do Homem. E desse pensamento disfarado, sublimado e substancializado que o filsofo se ocupa. E se ocupa num exame que, desbastado do floreio em que este poeta que foi Plato o envolve, revela efetivamente, e com preciso e segurana, alguns dos aspectos essenciais da atividade do pensamento na estruturao do Conhecimento. Em particular, o processo mental da identificao e qualificao fundamento e ponto de partida de toda atividade racional na elaborao e expresso do conhecimento, encontra em Plato um analista seguro, E foi a compreenso desse processo que permitiu a Plato abrir as perspectivas para a formulao da lgica formal que, j delineada e potencialmente contida na obra do filsofo, ser desenvolvida por seu discpulo e sucessor Aristteles, que lhe dar forma final e acabada.

Se alguma dvida houvesse, nos filsofos que antecederam Plato e lhe prepararam o caminho, acerca da natureza e do objeto da Filosofia nesta sua fase preliminar e ponto de partida do que seria o pensamento grego, essa duvida se desfaz inteiramente na considerao e exame da obra platnica que consistiu em continuar e prolongar a linha de desenvolvimento daquele pensamento, procurando, e com grande sucesso, dar resposta s perguntas nele propostas. Aquilo de que Plato se ocupa, em continuao aos pensadores que o precederam, e que constitui o objeto essencial e fundamental de sua obra, contribuio mxima para a cultura, so o pensamento e o Conhecimento tal como ns hoje o conceituamos. O seu ponto de partida e questo primeira que a ele se prope, a mesma de toda a

Filosofia grega desde seu nascedouro com os milsios e centralizada, como vimos, no problema da unidade e permanncia na diversidade e fluxo em que a Natureza se apresenta aos sentidos, "unidade e permanncia" essa que j se fixara (no consenso geral, ou pelo menos decisivamente dominante) no SER de Parmnides, que no vem a ser seno, isso tambm se consagrara , o universal, idntico e permanente, em contraste com o particular dado na percepo sensvel e diverso e em transformao constante. Universal que se revela e representa na Idia, no conceito.

da que Plato parte. O que, traduzido para nossa linguagem ordinria e corrente, vai dar em que as Idias do platonismo no so outra coisa mais que aquilo que entendemos por Conhecimento.

Plato exterioriza suas idias e lhes concede uma existncia extra-humana. Mas vistas mais de perto e no quadro de nossas concepes atuais (que tm atrs de si a aliment-las e a lhes darem base, no o esqueamos, a longa experincia, aprendizagem e progresso cultural e cientfico milenares de que somos herdeiros) tais idias so apenas e simplesmente as nossas "idias" vulgares; conceitos cujo conjunto constitui o Conhecimento. A anlise que Plato faz das idias, procurando determinar a sua natureza e estruturao, a disposio relativa em que elas em conjunto se articulam e entrosam entre si, sua derivao e filiao umas das outras,e a Plato apresenta um dos captulos mais fecundos de sua obra, quando, entre outros no Sofista, considera a "classificao", isto , a operao mental de classificar, tudo isso significa na realidade anlise do Conhecimento e da sistemtica conceptual em que os conhecimentos se apresentam. E desse Conhecimento, portanto, que Plato, e mais que ele, a prpria Filosofia para cujo embasamento e constituio o platonismo tanto contribuiu, disso que se trata. A Filosofia como Conhecimento do Conhecimento se revela a claramente.

Pode-se mesmo dizer que Plato, embora envolvendo suas concepes num manto de misticismo e fantasia literria que lamentavelmente as ofusca e muitas vezes lhes torce o sentido profundo, bem como disfara o que deveria ser sua contribuio mais fecunda para a devida proposio das verdadeiras questes da Filosofia, pode-se dizer que Plato teve a intuio e marcou, com um mximo de clareza para um precursor, a distino entre Conhecimento e Conhecimento do Conhecimento; entre Cincia e Filosofia. Desenvolvendo uma noo j em germe nos filsofos seus antecessores, e particularmente em Parmnides que separava o Conhecimento da simples opinio, Plato, que emprega alis as mesmas designaes, acentua o objeto daquelas duas esferas. A primeira objetivaria as "imagens" (dados sensveis), a outra, as "idias", constituindo esta outra a "cumeeira do Saber".

No difcil para ns hoje em dia identificar atrs dessa distino aquela que efetivamente ocorre entre o que designamos por "Cincia" e "Filosofia": a primeira ocupando-se com os dados experimentais colhidos na considerao direta das feies e ocorrncias da Realidade; e a Filosofia, com as idias (diramos melhor "conceitos" ou representaes mentais daquela Realidade exterior carreada pela experincia). S que Plato inverte a nossa ordem de precedncia, processamento e estrutura do Conhecimento: para ele as "imagens" ou dados da experincia so reflexos ou cpias aproximadas e imperfeitas das "idias"; enquanto para ns, isto , luz das concepes cientficas de nossos dias (se bem que ainda sobrem idealistas que pensam diferentemente, e, embora nem sempre com muita conscincia disso, aproximam-se mais de Plato), so as "idias" que constituem reproduo, ou melhor, "representao" da Realidade.

A distino entre Conhecimento e Conhecimento do Conhecimento a est. E tivessem os sucessores de Plato insistido nesse ponto, logrando ao mesmo tempo despir o platonismo do vu mstico que o envolve, sem desprezar aquela distino, e outra teria sido talvez a marcha da Filosofia. Mas as coisas no estavam maduras para isso que viria gradualmente, muito mais tarde, na base do progresso cientfico, como veremos adiante. E, pelo contrrio, quem desembaraar o platonismo, nisso com todo acerto, de suas complicaes msticas e envolvimento potico, ser ao mesmo tempo quem mais contribuir para borrar a distino nele feita entre Cincia e Filosofia. Ou antes, entre os objetos respectivamente de uma e outra esfera do Saber. Ser esse Aristteles, que introduzir, ou pelo menos cuja obra servir para fundamentar a grande confuso e mal-entendido que viciaro da por diante, e atravs dos sculos, o pensamento filosfico. E cientfico tambm. E que ainda hoje encontram forte ressonncia e reflexos poderosos. Aristteles elimina a distino estabelecida por Plato entre os objetos da Cincia e da Filosofia, empreguemos, para cortar confuses, a nossa terminologia moderna, em substituio de Plato para quem s a Filosofia, ou Dialtica (a dele, Plato), constitua "Conhecimento". E trazendo as idias platnicas da esfera supra-sensvel em que se encontravam, para as coisas do mundo sensvel, confunde assim o objeto do Conhecimento com o Conhecimento como objeto. De fato, Plato separara as "idias" das coisas sensveis que no seriam mais que cpias deformadas da "verdadeira" realidade daquelas coisas. Tal como os crculos que traamos ou que encontramos na Realidade sensvel (como por exemplo os crculos concntricos produzidos numa superfcie d'gua tranqila pelo impacto de Uma pedra nela cada), crculos esses que seriam uma reproduo aproximada mas imperfeita do crculo real que concebe a Matemtica. Aristteles integra aquelas "idias" nas prprias "coisas" da Realidade sensvel. Para ele, o que Plato designa por "Idias" no so mais que diferentes maneiras com que concebemos as coisas , e com isso Aristteles descarta com grande acerto o misticismo platnico. Mas essas maneiras de conceber as coisas, ou sejam, as "categorias" do entendimento (substncia, qualidade, quantidade, relao, lugar, tempo, situao, maneira de ser, ao sofrida), constituem para Aristteles maneiras de ser das prprias coisas. Isso , elas so tudo isso , substncia, qualidade, quantidade, etc. E no apenas se concebem e denominam como tal.

Em suma, e exprimindo-nos em linguagem mais atualizada, os conceitos e a conceituao com que representamos mentalmente a Realidade exterior ao pensamento, includa por Aristteles nessa prpria Realidade. E o que denominamos acima de "inverso idealista", que consiste em projetar as operaes e fatos mentais na Realidade extramental e exterior ao pensamento e nela integrando-os. As representaes mentais (idias ou conceitos) se elaboram pelo pensamento a partir da Realidade exterior (que saio as feies e ocorrncias da Natureza com que o indivduo pensante se defronta). A inverso idealista consiste em levar essas idias ou conceitos, que evidentemente no so aquelas feies e ocorrncias, e sim i a sua representao no pensamento, lev-las de retorno s mesmas feies e ocorrncias, considerando-as como nelas includas. Lembramos acima, como exemplificao da inverso idealista que ainda hoje fator de no pouca confuso, o caso do conceito "matria", que de conceito se faz, ou antes feito em constituinte das coisas que compem o Universo. E ainda voltaremos ao assunto mais adiante.

isso que Aristteles faz, e o que viciar profundamente no s a Filosofia subseqente, mas ainda os hbitos ordinrios de pensar e maneira de ver e de interpretar as coisas generalizadamente arraigadas em toda a cultura ocidental para cuja conformao Aristteles direta ou indiretamente tanto contribuiu. Embaraar tambm a marcha da elaborao cientfica que somente ganhar impulso quando modernamente se libera da Filosofia, ou antes da Metafsica em que a Filosofia se envolvera.

Vejamos como Aristteles desenvolve seu pensamento, as concluses a que chega e as conseqncias a que por elas levado. Plato, seu mestre, concentrara a "uniformidade e permanncia",condio para os gregos, como referimos, do Conhecimento,no mundo das idias fixas e estveis, e por isso distinto e separado do variegado mundo da percepo sensvel, mundo instvel e em permanente fluxo e transformao. E Plato assim procedera, no depoimento do prprio Aristteles num texto que j referimos acima, porque "se existe a cincia e o conhecimento de algo, devem existir outras realidades alm das naturezas sensveis; realidades estveis, pois no h cincia daquilo que est em perptuo fluxo". Tais "outras realidades estveis" alm do mundo sensvel, seriam as "Idias".

Mas para Aristteles que tem os ps mais firmes na terra que o sonhador e poeta que seu mestre, embora reconhecendo a necessidade para o Conhecimento de uma base estvel em que se apoiar e fundar, para Aristteles so precisamente outras realidades, mas ao alcance da percepo sensvel, que se trata de desvendar, conhecer e compreender. E esse mundo dos sentidos, variegado e aparentemente to instvel que cerca o Homem e onde ele vive, a "natureza sensvel", como Aristteles a denomina, e que as idias platnicas marginalizem, isso que importa. E para o conhecimento da natureza sensvel, "as Idias no saio de nenhum auxlio". No ser isolando a fonte do Conhecimento da natureza sensvel e isolando-a num mundo parte de idias, como fez Plato, no assim que se alcanar aquela natureza sensvel que o que interessa, segundo Aristteles e que ele objetiva conhecer. " graas aos princpios e com os princpios", afirma Aristteles, "que se conhece o resto". E no esquema platnico, os "princpios" ficariam naturalmente restritos ao mundo apartado e estanque de realidades estveis, as idias, que eles encarnam e exprimem.

preciso assim substituir o esquema platnico, e abrir caminho para comunicar o setor estvel da Realidade onde se situam o Conhecimento e os princpios, e que Plato apartara e isolara, preciso comunic-lo com a natureza sensvel que se trata de conhecer. E o que far Aristteles, estabelecendo a comunicao por via da "deduo" do particular (que o dado na percepo sensvel) a partir do universal que substitui de certa forma a Idia platnica, e que o verdadeiro SER e seu conhecimento. Deduo essa cujo processamento e mtodo (que ser a sua grande realizao) Aristteles vai buscar no exame do discurso, a linguagem discursiva, informando-se para isso, em especial, nos modelos dialticos (debates orais) de seus antecessores na matria, os Sofistas; e sobretudo nos dilogos de seu mestre Plato. E num tal exame que Aristteles lograr destacar e revelar os elementos ou "formas" essenciais da estrutura bsica da linguagem discursiva. Ou seja, a maneira ou forma como se dispe e interliga nos seus termos a expresso verbal capaz de, pela sua coerncia, demonstrar, com segurana e sem contestao possvel, opinies ou teses defendidas; e convencer com isso o interlocutor. Circunstncias essas que se admitiam a priori como prova incontestvel do acerto , a "verdade" , das concluses.

com isso, reduzido a normas precisas, que Aristteles constituir a sua Lgica, que tem como ncleo central, como se sabe, o silogismo. Precisamente o instrumento que Aristteles necessitava para realizar sua almejada "deduo" do particular a partir do universal. Isto , o entrosamento e seqncia verbal coerente (no contraditrio), de Uma para outra, das expresses verbais daqueles dois termos da operao dedutiva, respectivamente o Universal e o particular.

na base e com a manipulao dessa sua Lgica, que Aristteles procurar a sistematizao dos conhecimentos do seu tempo e entrosamento dedutivo da expresso verbal deles. Tarefa que muito pouco tem de "cientfico" propriamente, no sentido que hoje se d Cincia e sua elaborao,afora a coleo dos parcos dados empricos existentes na poca e ao alcance de Aristteles no que alis ele se mostra muito bem informado. E constitui de fato tentativa e ensaio, o que era alis o que Aristteles pretendia, embora sem muito discernimento do que realizava , ensaio de modelo de entrosamento dedutivo daqueles dados empricos dentro da sistemtica conceptual, e sua expresso verbal, implcitas nos conhecimentos do seu tempo e que ele soube, em suas linhas gerais, revelar. "O mtodo que Aristteles emprega para o estudo dos fenmenos [fatos fsicos]", observa um dos mais modernos tradutores e autorizados comentaristas dos textos aristotlicos, " antes de tudo dedutivo e sistemtico. Nas Meteorolgicas, como em toda sua obra, Aristteles julga que uma explicao verdadeira no pode ser seno racional." isto , apresentado de maneira formalmente coerente, que vem a ser aquilo que ordinariamente chamaramos de "lgico". E poderamos acrescentar o inverso: que a explicao racional necessariamente verdadeira.

Em suma, o que Aristteles de fato realiza a organizao e integrao (na medida do possvel, bem entendido, e que no podia ser, como no foi, muito ampla e rigorosa) da conceituao de seu tempo relativa aos objetos tratados no que hoje seriam a Fsica, a Astronomia, a Biologia, etc., em sistemas lgico-formais. Isto , expressos em forma verbal coerente, de modo a se poderem deduzir logicamente (dentro dos cnones lgicos) os dados empricos disponveis.

Note-se de incio, e isso importante para o que nos interessa aqui centralmente, que assim procedendo Aristteles estar de fato e essencialmente ocupando-se no com os fatos propriamente e os dados empricos que a percepo sensvel proporciona; e sim com a maneira de filiar esses dados, seria a sua "deduo",a uma conceituao preexistente ou pelo menos presumida; ou melhor, dada a priori. E dentro dela enquadr-los. A maneira de justific-los logicamente atravs de um enquadramento e integrao numa sistemtica conceptual pr-formada. " Racionalizao ", diramos hoje.

A ateno de Aristteles numa tal tarefa estar assim primordialmente voltada, como logo se v, para aquela sistemtica conceptual e sua estrutura, procurando alcan-la pela aplicao do seu mtodo. Tanto assim que seu resultado principal no ser propriamente uma contribuio cientfica, na acepo corrente de nossos dias,o que a obra de Aristteles como j foi notado, no oferece, e sim um exemplo de modelo de aplicao da Lgica na considerao dos dados sensveis da observao emprica, visando como que uma interpretao "lgica" do comportamento da Natureza tal como ela se apresenta naqueles dados.

Em concluso, o interesse de Aristteles e a contribuio que oferece, afinal, se fixam essencialmente no nos fatos que refere, e sim no Conhecimento deles, no Conhecimento em si. O objeto assunto de que Aristteles se ocupa em seus tratados relativos aos fatos da Natureza , fsicos, geolgicos, astronmicos, biolgicos, etc. , no so direta e essencialmente te is fatos, e sim a maneira como esses fatos so concebidos, ou devem ser concebidos; os conceitos em que se enquadram; e como esses conceitos se ho de entrosar uns com os outros, logicamente se estruturarem e formalmente exprimirem no discurso. Aristteles estar no elaborando conhecimentos ou expondo seus procedimentos no processo de elaborao, o que consistiria em compor nova conceituao, ou remodelar a existente na base de dados originais ou antes no considerados devidamente e que se trataria de determinar e incluir na conceituao existente, dando-se assim conta deles. No isso a obra de Aristteles que estar antes e como que oferecendo e ilustrando um modelo lgico. Ocupando-se, pois, no do Conhecimento propriamente, mas do Conhecimento do Conhecimento. E faa-se de Aristteles o juzo que for, e j sem falar na sua Lgica, o significativo da obra que deixou e que tamanho papel desempenharia na evoluo do pensamento humano, bem como aquilo que se pode considerar nessa obra a sua "Filosofia", isso no ser elaborao cientfica, nem outra coisa seno um tal Conhecimento do Conhecimento.

isso a obra de Aristteles Obra que constituiu a complementao e encerramento de um cicio decisivo do pensamento humano, e que vem a ser a tarefa empreendida pelos pensadores que precederam Aristteles no mesmo rumo, desde os pioneiros da Filosofia grega at os Sofistas, Scrates e Plato que foram sucessiva e progressivamente contribuindo para a ascenso do pensamento e Conhecimento, do empirismo rudimentar e grosseiro que constitui a primeira e mais primitiva etapa da evoluo mental do indivduo pensante e conhecedor que o Homem, para o racionalismo propriamente que faz ento sua entrada decisiva na cultura humana. Do Conhecimento limitado simples constatao emprica e registro de fatos diretamente acessveis percepo sensvel, e de sua representao imaginativa segundo modelos sensveis de fcil e imediata identificao (como os arcos de uma roda com que Anaximandro ainda explicava os "fogos celestes"; ou a prpria substncia do Universo modelada com materiais comuns) passam os pensadores gregos a um plano abstrato, e vo ocupar-se reflexivamente do prprio pensamento em si, e da sistematizao do Conhecimento; procurando realizar no conjunto dele o que a Lgica designaria mais tarde por 'coerncia". A saber, o entrosamento disciplinado e no contraditrio da conceituao e sua expresso verbal. ou seja, a adequada estruturao conceptual e de suas formas expressivas, em contraste com o simples registro emprico e disperso de representaes sensveis imediatas que caracteriza a fase anterior. A obra de Aristteles oferecer assim, a par de sua Lgica e mtodo de pensamento que implica, o primeiro esboo e modelo, grosseiro embora, para uma tal racionalizao geral do Conhecimento. A sua "logificao", podemos assim denominar o processo. Em suma, o Conhecimento se torna em sistema geral abstrato e de conjunto, e por isso mesmo de mais fcil cesso, evocao, comunicao eficiente e utilizao na ao, o que constitui afinal o objetivo da funo humana do Conhecimento.

Note-se que no seria isso certamente, nem poderia ser o que Aristteles deliberadamente objetivava. Aquilo de que julgava cuidar e de que pretendeu ocupar-se em seus tratados naturais, era o conhecimento da Realidade da percepo, destes seres sensveis que, por sua diversidade e instabilidade, e nada mais que imperfeitas cpias dos verdadeiros Seres que seriam as Idias, seu mestre Plato deixara de lado e reputara impossveis de legtimo Conhecimento, e objetos unicamente da Opinio, Aristteles em oposio a seu mestre, acreditava chegar a esse Conhecimento, como vimos, pela deduo de que revelou o mtodo, a sua Lgica, e precisamente para aquele fim. Mas para justificar a legitimidade de sua deduo, havia que ligar o Ser, o conceito dado no universal, e que Plato isolara nas suas idias, lig-lo com a Realidade sensvel expressa no particular. Como realiz-lo?

o que Aristteles desenvolve no que seria a sua Metafsica, a sua concepo geral e fundamental da Realidade que se faria padro do pensamento filosfico pelos tempos afora. E que, embora retocado continuamente atravs dos sculos, torcido e retorcido pelas sucessivas geraes de pensadores e escolas filosficas na tentativa, de muito poucos resultados, de ajust-la s novas feies que o Conhecimento foi tomando, e harmoniz-la com o progresso desses conhecimentos; embora tudo isso, a Metafsica aristotlica ainda conserva at hoje seus quadros fundamentais que impregnam o pensamento moderno e lhe trazem toda sorte de dificuldades e deformaes.

Vejamos esquematicamente os pontos essenciais e linhas mestras dessa Metafsica, e em especial as circunstncias que a inspiram em seu nascedouro, e que foram, como se notou, a necessidade de fundamentar o mtodo dedutivo com que Aristteles julgava alcanar o conhecimento da Realidade sensvel. A atenta considerao de tais circunstncias esclarece muita coisa dos rumos que tomaria o pensamento filosfico; e contribui em particular para a compreenso dos principais problemas e questes que a perspectiva metafsica, subjacente naquele pensamento, iria suscitar, mesmo depois de formalmente e oficialmente posta de lado pelos principais setores do pensamento moderno. O que no impediu que se conservasse latente em muito dele e em questes pendentes at os dias de hoje. O interesse do assunto continua assim a ser da maior atualidade.

Na Metafsica, Aristteles transfere a sua Lgica, e com ela o mtodo dedutivo que implica. Lgica e mtodo que de fato no so seno sistemas derivados de formas lingsticas , transfere sua Lgica para os fatos da Realidade concreta, para o mundo das "coisas sensveis", designao com que o prprio Aristteles por vezes se refere s "realidades da percepo" que trata de conhecer pela aplicao do mtodo. Simples "transferncia" de fato porque a nada mais que isso corresponde esta concepo aristotlica, centro nevrlgico da Metafsica, que vem a ser a da gerao das "coisas sensveis" (que afinal no so seno o "particular", em contraste com o "universal") pela"realizao" da forma,aquilo que faz a coisa ser o que , na matria, substncia indeterminada das coisas sensveis, mas que rene em cada caso as condies especficas necessrias para que a forma determinada possa nela se concretizar ou gerar; que tenha a "potencialidade" para isso, que seja a "coisa em potncia", na terminologia aristotlica. Para usar Uma ilustrao, entre outras do prprio Aristteles tal como se d com o "lenho" relativamente ao "cofre" que com ele confeccionado: o lenho seria a matria em potncia na qual a forma "cofre" se realiza, gerada.

Ora, a forma, que essncia ou "aquilo que faz a coisa ser o que ", se reduz na terminologia aristotlica idia, ao universal. E assim, tal como na Lgica aristotlica o particular se "deduz" do universal, assim tambm a coisa sensvel, que o "particular", se "gera" pela realizao da forma potencial contida se emparelham; de na matria; forma essa que vem a ser o "universal". Os dois casos se emparelham: de um lado a operao lgica pela qual se alcana o conhecimento das coisas sensveis,o que as coisas so,; de outro, o fato concreto em que se geram as coisas. Ambos se confundem; vm no final a dar no mesmo.

E consuma-se com isso a inverso idealista aristotlica, a confuso das esferas subjetiva e objetiva que se projetar pelos sculos afora e ainda impregna at hoje o pensamento filosfico ,e com ele a maneira ordinria de pensar, e em muitos casos at mesmo a cientfica, ou que se pretende ou presume cientfica. A confuso das "coisas" (que a designao tradicional e consagrada da Metafsica, e alis corrente em todos os setores, para indicar as feies do Universo, e assim fragment-lo, numa outra instncia da inverso idealista, imagem da expresso verbal) a confuso das "coisas" com a maneira como se conhecem. E a confuso conseqente do conhecido com o Conhecimento; da esfera exterior ao pensar e objeto dele, com esse prprio pensar.

O que praticamente vem a consistir,na tarefa de interpretao da Realidade e elaborao do Conhecimento e construo da Cincia ,vem a consistir na confuso do Conhecimento com o Conhecimento do Conhecimento, com o embaraIhamento de seus respectivos objetos. O pesquisador, mais precisamente o filsofo de formao aristotlica,e muitas vezes o cientista tambm, pretende ocupar-se de ocorrncias e circunstncias da Natureza, e freqentemente julga faz-lo, quando de fato se encontra na perspectiva do Conhecimento do Conhecimento, e vai tratar no daquelas ocorrncias, e sim do conhecimento que se tem delas, de sua representao mental ou conceito, e de sua expresso verbal que assim, inadvertidamente, se projeta na Realidade considerada. J nos referimos acima a essa confuso e projeo idealista ao lembrarmos o caso to flagrante do conceito "matria". Outra instncia caracterstica no assunto, fartamente conhecida, debatida e de considervel papel na histria e evoluo do pensamento filosfico, bem como do cientfico tambm, a dos conceitos "espao" e "tempo". Em virtude daquela deformada perspectiva e inverso, o "espao", de simples relao de situao ou posio de uns objetos com respeito a outros; e o "tempo", de relao de sucesso de situaes , isto , de simples conceitos mentalmente representativos de circunstncias particulares da Realidade, se faro, uma vez transpostos para essa Realidade e nela confundidos e substancializados, se faro num espao e tempo absolutos e de realidade e existncia extramental concreta e em si, independentemente de quaisquer objetos eventualmente neles presentes e includos. Algo como, para o "espao", um continente extenso e infinito predisposto para conter e abrigar no seu interior as coisas de um Universo nele eventualmente introduzido; mas que dele inteiramente independe, podendo ser concebido como sem esse contedo. E no que diz respeito ao "tempo" seria como o desenrolar no vcuo desta outra entidade ad hoc inventada e que seria a "Eternidade", a presenciar ou o vazio, ou o perpassar incidente de coisas e ocorrncias eventualmente presentes no correr de uma existncia sem comeo nem fim . . .

A literatura filosfica, com extenses traioeiras inclusive para o campo da Cincia,a est para exibir o infindvel debate sem perspectivas, e os paradoxos sem conta, nem sada, a que levaram e levam ainda hoje baralhamentos como esses das esferas subjetiva e objetiva. A confuso da Realidade concreta, com o pensamento dessa Realidade, o que d na confuso do Conhecimento com o Conhecimento do Conhecimento.

Nesse sentido, e de certo modo, poderamos dizer,possivelmente com alguma dose de anacronismo,que a obra de Aristteles constituiu um passo atrs nas realizaes de seus antecessores. Estes, embora sem muita clareza e preciso, muito pelo contrrio, fora reconhecer, e de forma grosseira no tratar o assunto, tinham ao menos vislumbrado a distino entre as esferas mental e extramental. Parmnides, p. ex., como foi lembrado, ocupa-se em separado daquilo que respectivamente designa por "verdade" (que diria respeito esfera mental) e por Opinio, que constituiria o que hoje designaramos por Conhecimento propriamente (em contraste com o Conhecimento do Conhecimento) ou cincia emprica, isto , dirigida direta e imediatamente para a Realidade exterior ao pensamento. Em Plato essa separao se faz ainda mais radical, e de tal modo extremada que as idias platnicas se substancializam num mundo supersensvel bem destacado do sensvel que constituiria a Realidade de nossa experincia concreta ordinria.

Com toda sua fantasia potica e deformao mstica, a concepo platnica tinha pelo menos o mrito de distinguir as duas esferas respectivamente mental e extramental. Obviava-se com isso a confuso em que incorreria Aristteles e de to danosas conseqncias que at nossos dias ainda vicia o pensamento filosfico, fazendo-o to freqentemente perder de vista suas verdadeiras e legtimas metas com a proposio de questes sem contedo real algum e incapazes de levar a outra coisa seno um infindvel e estril debate em torno do significado de conceitos ou pseudoconceitos reduzidos a simples formulaes verbais que j h muito perderam qualquer ligao com a Realidade em que vivemos e que condiciona a existncia humana ,se que jamais tiveram aquela ligao. Isso a par dos empecilhos que tantas vezes ops e ainda ope a uma correta e adequada elaborao cientfica.

Considere-se, para exemplificar, a famosa questo dos "Universais" que agitou, e dada a posio central que ocupa, esterilizou em boa parte, durante sculos, o melhor do pensamento filosfico. E ainda hoje, embora com alguns disfarces, tem os seus apreciadores. Os danosos efeitos da confuso das duas esferas tm a flagrante confirmao, pois o que se discute no assunto em ltima instncia, precisamente o grau de "participao", digamos assim, dos conceitos numa ou noutra esfera. A simples delimitao delas elimina a questo. Em vez disso, e enquanto os filsofos se afogam em sutilezas que no passam no mais das vezes de puro jogo de palavras, a questo que se pode dizer bsica da Filosofia, que a da caracterizao e processamento da conceituao, premissa essencial da Teoria do Conhecimento, e portanto de toda problemtica da Filosofia em geral, se obscurece e perde inteiramente num cipoal sem sada e debate sem soluo nos termos em que a questo proposta.

A confuso das esferas subjetiva e objetiva do Conhecimento que deriva da Metafsica aristotlica no vicia somente a Filosofia, mas ainda, e at nossos dias, atinge importantes setores da elaborao cientfica; e at mesmo concepes correntes e hbitos usuais de pensamento. Efetivamente, o fato de sobrepor o pensamento e seus sistemas e formas Realidade que lhe exterior, e incluir nessa Realidade os quadros conceptuais em que pensamento e Conhecimento se organizam e estruturam (e nisso que vai dar a confuso aristotlica); e derivando por conseguinte a elaborao do Conhecimento daqueles quadros, tais circunstncias resultam forosamente na tendncia, que acima referimos, ao enrijecimento e imobilizao do Conhecimento. Isso porque, por fora delas passa-se a lidar com conceitos e as formas lgicas de sua expresso verbal, julgando tratar de fatos da Realidade exterior ao pensamento, como alis se v to claramente nas instncias acima lembradas dos conceitos "espao" e "tempo" que, representando embora relaes, se fazem, porque expressos verbalmente por substantivos, em "coisas" ou "entidades" de existncia substancial includa na Realidade exterior ao pensamento. Erigem-se assim, por fora de confuso anloga, simples operaes mentais que vem a ser a "deduo" aristotlica, em fiel reproduo de ocorrncias da Realidade. O logicamente coerente, e pois corretamente "deduzido" e ajustvel com isso ao sistema ou sistemas conceptuais estabelecidos e consagrados, se reputa desde logo como reproduo ou representao acertada da Realidade. No por simples acaso ou analogia que a expresso vulgar e corrente to em voga, que vem a ser " lgico", tem o sentido de acerto e segurana da afirmao formulada e assim qualificada. Tampouco constitui coincidncia o emprego, na terminologia consagrada da Lgica, do mesmo vocbulo para designar a "verdade" formal e a "verdade" emprica, com o que se equipara em valor significativo, a articulao coerente da expresso verbal ou simblica (fato puramente mental), com a verificao emprica; a "verdade" do puro pensamento e a verdade real. Pensamento e Realidade se confundem. E a transposio do pensamento para a Realidade; ou inversamente, se preferirem, a interiorizao da Realidade no pensamento.

Em ambos esses casos exemplificativos citados, faz-se sentir a presena da velha concepo aristotlica e confuso que nela se faz entre as duas esferas do Conhecimento, entre o mental e o extramental. Bem como do complicado dispositivo metafsico que acima procurei esquematizar, e que resulta dessa confuso e pretende justific-la. Dispositivo esse com que Aristteles introduziu as Idias platnicas nas "coisas sensveis", tornando as em componentes delas: a forma realizando-se na matria e dando com isso a "coisa". "Forma" essa que vem a ser afinal o "conceito" que se trata de alcanar pelo Conhecimento a ser obtido, na concepo aristotlica endossada em seguida pelos sculos afora, com a descoberta daquele conceito no amlgama de "potncia" e "ato" em que a coisa sensvel se realiza.

assim na manipulao conceptual, atravs de operaes lgicas, que se alcana o Conhecimento. Quanto aos fatos reais, s feies e circunstncias que compem a Realidade concreta exterior ao pensamento conhecedor e elaborador do Conhecimento, isso que constitui na perspectiva moderna ps-metafsica o legtimo objeto do Conhecimento; se subestima, se no se desconsidera por completo, ou ento se manipula convenientemente a fim de acomod-lo aos esquemas conceptuais consagrados.

com esse rumo que a Metafsica de inspirao aristotlica intervir na tarefa de elaborao cientfica, com os resultados que se podem avaliar e que a histria fartamente ilustra. Uma instncia flagrante desse procedimento, tanto mais esclarecedora como exemplo que j data dos tempos modernos, e por isso alm de largamente documentada e de fcil acesso e exame, melhor se destaca no contraste com o novo pensamento antimetafsico que comeava na poca a dominar; essa instncia ser a famosa questo da "essncia das espcies" que tamanho papel, e papel altamente negativo, representou no desenvolvimento das Cincias naturais. Ocupei-me do assunto em outra oportunidade e lembrarei aqui apenas a observao de Darwin a respeito do assunto, lamentando os naturalistas do seu tempo "incessantemente perseguidos pelas dvidas insolveis sobre a essncia especfica desta ou daquela forma". Em suma, a elaborao cientfica se tornava essencialmente, na base do modelo metafsico, um processo especulativo onde operaes lgico dedutivas faziam as vezes da observao emprica e conceptualizao da experincia. E na forma lgica que se haveria de desvendar a VERDADE. No preciso insistir que isso o observado no mundo ocidental, acentuando-se com a Escolstica e a consagrao da Metafsica aristotlica que iria da por diante soberanamente inspirar e orientar o pensamento da poca. Assistiremos a, a par de um intenso trabalho de elaborao lgica (ou antes de refinamento e bizantinizao da Lgica aristotlica) a Uma desenfreada especulao abstrata orientada por aquela Lgica, e que no terreno da elaborao cientfica deixa a considerao dos fatos reais num segundo e muito apagado plano. A cincia por isso marcar passo, e somente ganhar impulso quando nos tempos modernos comea a gradualmente se desligar da Filosofia,ou antes da Metafsica e dos esquemas lgicos estereotipados e especulaes sem fim a que ela se reduzir. E a elaborao do Conhecimento, em alguns de seus setores pelo menos, se orientar diretamente para seu verdadeiro objeto: os fatos naturais exteriores ao pensamento elaborador, e no os fatos mentais que no fazem seno representar conceptualmente aqueles fatos naturais.

E abrem-se com isso as perspectivas para a separao das duas esferas do pensamento confundidas pela Metafsica: de um lado o processo mental pelo qual se elabora o Conhecimento propriamente, a saber, a representao mental das feies da Realidade exterior ao pensamento elaborador. De outro, a considerao dessa mesma representao mental elaborada pelo Pensamento e nele presente como conceituao constituinte do Conhecimento; da Cincia em particular.

Para essa discriminao dos objetos da atividade pensante , discriminao essa que delimitar as esferas objetiva e subjetiva, isto , que os campos respectivos: do Conhecimento, de um lado; de outro, do Conhecimento do Conhecimento que constitui ou deve constituir o prprio da Filosofia, para essa discriminao, importante not-lo, contribui sobretudo a experimentao. Realmente na experimentao as duas esferas se propem desde logo separadamente e bem discriminadas uma da outra. Diferentemente da simples observao passiva e contemplativa, o pensador e elaborador do Conhecimento, na experimentao, intervm ativamente para dispor de maneira conveniente e em perspectiva adequada o objeto de sua considerao e exame, para fazer com que se reproduza nesse objeto o fato que se trata de compreender e representar mentalmente. intervir nele e como que participar dele com sua ao. Ao pensada, e no outro extremo da ao reflexo, com o pensamento alertado no somente visando o objetivo imediato de dirigir a ao, e sim tambm o de se integrar no Conhecimento preexistente, torna-se ele prprio Conhecimento novo. Ao pensada em funo do objeto considerado, no curso da qual se desenrola o processo de elaborao cognitiva e em que essa elaborao se realiza na base do duplo e conjugado impulso do pensamento conduzindo a ao para amold-la ao objeto e reproduzi-la, e da ao inspirando e estimulando o pensamento e o ajustando ao objeto. E esse o processo cognitivo (processo natural e espontneo, mas que se vai tornando cada vez mais consciente e deliberado no curso da experimentao cientfica e adestramento que proporciona), isso que se revelar sempre mais acentuadamente nos procedimentos da elaborao cientfica moderna. Procedimentos esses que pela sua prpria natureza e dinmica, em contraste com a especulao abstrata e a simples observao passiva, pem em confronto direto, e ao longo de todas as suas operaes, o sujeito e o objeto bem discriminados um do outro. Isso tanto mais acentuadamente quanto, por fora de circunstncias histricas gerais notrias que no precisam ser aqui repisadas, prope-se crescentemente, no "conhecer", no apenas, como objetivo, o simples deleite intelectual ou valor intrnseco e em si da atividade intelectual e do Saber, como se dava com os filsofos gregos;] ou, como nos sculos que os separam do mundo moderno, o objetivo fixado no sobrenatural e no conhecimento da Divindade e de seu comportamento com relao humanidade. E sim prope-se o "conhecer", na expresso famosa de Descartes, como aquisio de "uma prtica pela qual conhecendo a fora e as aes do fogo, da gua, dos astros, dos cus e de todos os outros corpos que nos cercam, to distintamente como conhecemos os diferentes misteres de nossos artesos, pudssemos aplic-los pela mesma forma a todos os usos para os quais so prprios, e tornando-nos assim como senhores e possuidores do Universo".

Esse domnio do Homem sobre a Realidade que Descartes preconizava, e de fato se estava realizando em ritmo acelerado com o progresso da Cincia moderna; esse "gerar" das coisas sensveis sem ser pela "forma" potencialmente preexistente e includa nelas, nos termos da Metafsica; e sim forjadas no Conhecimento construtor pelo prprio Homem, dirigindo a sua ao, e no desvendado pela "deduo"; isso permite desde logo discriminar os objetos do Conhecimento e abrir claras perspectivas para o Conhecimento do Conhecimento, para o objeto da Filosofia disfarado na confuso metafsica do ser e do conhecer.

Assim ser efetivamente, e o objeto prprio da Filosofia comea a se definir. E que o problema do Conhecimento, o como conhecer, premissa da Filosofia, se prope de forma patente com o progresso da Cincia e as perspectivas que esse progresso abria. Tratava-se de uma transformao radical dos mtodos de elaborao cognitiva. Galileu e seus sucessores, atirando objetos de alturas para o solo, e fazendo rolar esferas sobre planos inclinados, contrastavam nitidamente seus mtodos com a anterior e habitual especulao inspirada na Metafsica aristotlica. Achavam-se pois abertamente em jogo os procedimentos adequados para a elaborao do Conhecimento. E era preciso no somente determinar esses procedimentos, mas trazer a sua justificao e reeducar-se na conduo dos novos mtodos. Tanto mais que tais mtodos iam chocar-se em ltima instncia com preconceitos profundamente implantados em concepes tradicionais que traziam o poderoso selo de convices religiosas. As necessidades do momento levavam assim os homens de pensamento a se deterem atentamente nos problemas do Conhecimento. O que, afora as estreis manipulaes verbais a que se reduzira a Lgica formal clssica, praticamente j no detinha a ateno de ningum.

Abria-se com isso uma nova fase para a Filosofia, forando-a a se voltar para seus objetos prprios e neles se concentrar. Afirmam-se tais objetos que se faro patentes. Toda a Filosofia moderna nos traz o testemunho disso, de Bacon e Descartes at o criticismo kantiano. Aquilo que ocupar desde o sc. XVI (note-se a precisa coincidncia com o grande surto da cincia moderna) o centro das atenes filosficas, sero expressamente as questes relativas ao Conhecimento e sua elaborao. A Filosofia encontrava seu caminho como Conhecimento do Conhecimento.

A indagao central e nevrlgica que se prope ser essencialmente determinar a relao entre a mente humana (pensamento, Razo) e o mundo exterior da experincia sensvel; e que Conhecimento da Realidade tal relao pode proporcionar. O que vai dar no como e em que medida contribuem respectivamente para o Conhecimento, e como para isso se combinam e associam entre si os dois fatores cuja participao se podia observar na prtica da elaborao cientfica moderna. Numa palavra, tratava-se de determinar como se repartia e como se combinava a participao respectiva, de um lado, da experincia sensvel; de outro, do pensamento propriamente e independentemente de qualquer outra contribuio.

nesses termos que fundamentalmente se prope o problema do Conhecimento, dando origem s duas tendncias para as quais se inclinam respectivamente as solues propostas: no sentido, seja da valorizao e destaque da atividade pensante e racional, com a relativa desconsiderao, e at mesmo, nos casos extremos, eliminao da realidade sensvel e dos dados que fornece; seja, em sentido oposto, a subestimaco da atividade pensante, relegada a papel subsidirio e insignificante da simples sensao.

Os dois plos da Filosofia moderna, o idealismo e o materialismo, embora muitas vezes reciprocamente se interpenetrando, sobrepondo-se um a outro e inextricavelmente se confundindo, tm suas razes nessa oposio, mais ou menos marcada e radicalizada conforme os autores, em que se situa o problema do Conhecimento. E ser em ltima instncia sob a inspirao e na base das respectivas posies em face de tal problema, que se vo constituir os sistemas filosficos e concepes ontolgicas. Tudo isso naturalmente temperado e ajustado convenientemente em funo de concepes fidestas ditadas pelo hbito muito mais que por outra coisa (j fora ficando para trs a verdadeira f religiosa que o mundo medieval conhecera), preconceitos ideolgicos, respeito tradio e convenincias polticas. O que neo deixa muitas vezes de complicar inextricavelmente os textos filosficos da poca, to marcados ainda pelos remanescentes da herana metafsica e o caracterstico estilo da especulao escolstica.

Apesar disso, contudo, destacam-se linhas discriminatrias suficientemente marcadas. Os materialistas, ou antes os mais voltados para a "substncia material" como componente do Universo, em contraste com a "substncia ideal" dos idealistas, esses simplesmente equiparam o Conhecimento elaborado ou por elaborar, ou mais precisamente a conceituao e a forma verbal em que tal conceituao se exprime e apresenta, equiparam-na, em correspondncia biunvoca, realidade sensvel. Cada coisa, entidade, qualidade, ao... que compe o Universo e que os sentidos percebem, ter sua "idia" e expresso verbal prpria a registr-la no pensamento. Reduz-se assim ao mnimo, se no se elimina de todo, o papel ativo do pensamento na elaborao do Conhecimento e formao dos conceitos ou "idias" que se tornam, com o Conhecimento que compem, em simples reflexo mental mais ou menos passivo da Realidade exterior. Locke (que destacamos aqui apenas como pioneiro que foi do materialismo moderno) e aproximadamente na mesma esteira a generalizada dos materialistas, Locke deriva as "idias" de que se constitui o Conhecimento diretamente das sensaes que se marcariam na mente como "impresses na cera", no cabendo assim ao pensamento nada mais, com aquele registro das sensaes tornadas em idias, que "combinar, comparar e analisar" essas mesmas idias. Desse modo o materialismo, se de um lado empresta o devido valor experincia sensvel como fator primrio da elaborao cognitiva, de outro lado tende a fechar as perspectivas para uma apreciao adequada da funo pensante e da natureza real do Conhecimento.

Os idealistas vo em sentido contrrio. Em vez de exteriorizarem o Conhecimento, segundo o modelo do materialismo, fazendo dele algo a ser simplesmente copiado pelos sentidos, como que desvendado, descoberto na Realidade onde j estaria pr-formado, os idealistas trazem o Universo para dentro da esfera subjetiva, e ai ir busc-lo o Conhecimento. Em alguns idealistas, particularmente nos grandes precursores de Kant, e no prprio Kant, isso se disfara ainda sob a aparncia de uma Realidade exterior que, embora incognoscvel, assim mesmo existe e representa o papel discreto de estimulante do pensamento: a "coisa em si", o "nmero" kantiano. Mas como bem dir Fichte em seguimento a Kant, se esta pseudo-existncia incognoscvel, que verdadeiramente no existe. E assim o idealismo tende necessariamente para a eliminao da Realidade exterior ao Pensamento, e subestimao, seno desprezo total da experincia sensvel na formao do Conhecimento.

Seja contudo qual for o tipo ou matiz do idealismo, em todo ele o que realmente ocorre, aquilo de que os filsofos idealistas se ocupam,e o que centralmente nos interessa aqui, do pensamento e seu produto que o Conhecimento. E assim, revestindo embora seu exame e suas concluses de linguagem ambgua que nem sempre deixa muito claro o objeto a que se refere, o idealismo, devidamente filtrado, vai oferecer algumas das principais premissas para a devida proposio do problema do Conhecimento e a caracterizao e definio do Conhecimento do Conhecimento. Isto , do papel da Filosofia. E essa em particular a contribuio de Kant e Hegel.

O criticismo kantiano coloca em plena luz o papel ativo e participante do pensamento, a Razo, na elaborao do Conhecimento. E desfaz com isso a falsa perspectiva dos materialistas e de sua concepo de um Conhecimento simples reflexo passivo, atravs dos sentidos, da Realidade exterior; e cuja elaborao consiste unicamente na descoberta de "verdades" j de antemo includas na Realidade.

Quanto a Hegel, a sua dialtica romper pela primeira vez a tradio metafsica de conceitos fixos e invariveis, tradio essa tambm incorporada pelo materialismo vulgar,como alis no podia deixar de ser dentro das posies bsicas desse materialismo e seu postulado implcito de uma correspondncia biunvoca entre a conceituao, os conceitos, ou antes, a expresso verbal desses conceitos, e as feies e circunstncias da Realidade. A dialtica hegeliana apresentar, em contraste com aquela velha e tradicional concepo metafsica, a verdadeira natureza da conceituao, a mtua ligao e entrosamento dos conceitos em sistemas de conjunto atravs dos quais, e somente assim adquirem contedo e sentido. Em outras palavras, os conceitos nada significam ou representam por si e isoladamente. Essa significao e representao se realizam pelas ligaes e no entrosamento deles entre si. isto , no sistema que formem em conjunto.

Revelou Hegel com isso, na sua intimidade, a constituio e estruturao da conceituao de que o Conhecimento se compe. E abriu com isso larga perspectiva para a interpretao das operaes do pensamento e processo de elaborao do Conhecimento e formao dos conceitos. Hegel traz com isso a maior contribuio de todos os tempos para a elucidao do problema do Conhecimento.

No vamos aqui debater o fundo do pensamento hegeliano, de to difcil penetrao pelo complexo e imaginativo estilo em que se envolve a obra de Hegel .Mas o certo que o descrito nessa obra consiste em suma e no essencial, para o que nos interessa aqui, na gnese e desenvolvimento da racionalidade do Homem atravs do progresso do Conhecimento. A descrio que Hegel faz desse progresso fantasiosa, mais ou menos arbitrria no que diz respeito realidade dos fatos, e acompanhando muito mal o verdadeiro processo histrico tal como ele efetivamente se realizou. Alm disso, como idealista que , Hegel encarna o progresso do Conhecimento e da Razo "na marcha do Esprito", desde sua gnese na Certeza Sensvel at sua plena ecloso no Saber Absoluto. "A concepo histrica de Hegel, escrever Marx, supe um esprito abstrato ou absoluto que se desenvolve de tal maneira que a humanidade no seno uma massa dele impregnada mais ou menos conscientemente. No quadro da histria emprica, esotrica, Hegel faz pois operar uma histria especulativa, esotrica. A histria da humanidade se torna a histria do esprito abstrato da humanidade, estranho por conseguinte ao homem real."

Se contudo a descrio histrica de Hegel arbitrria e fantstica, e a forma que lhe concede essencialmente especulativa, a anlise que faz do Pensamento e Conhecimento, e que se inclui naquela descrio, isso nos d o enquadramento e a estrutura do processo racional no ato de apreenso e representao mental da Realidade exterior; ato no qual o processo gerado e se constitui em Razo conhecedora (Conhecimento). E isso que Marx ir buscar no seu mestre, a saber (na observao de Engels), "o ncleo que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel... o mtodo dialtico na sua forma simples em que a nica forma justa do desenvolvimento do pensamento".

No nos deteremos naturalmente aqui, por estar fora de nosso assunto, no tratamento especifico que Marx, com o mtodo dialtico que foi buscar em Hegel, deu aos fatos econmicos, sociais e polticos que resultaram na transformao histrica do mundo moderno, na ecloso e estruturao do capitalismo industrial e no delineamento das premissas do socialismo. O que imediatamente nos interessa agora, e o que se observar com toda clareza na obra de Marx, consiste no fato que, historicamente, afinal na considerao do Conhecimento do Homem (aquilo que seriam as nossas "cincias humanas" de hoje, e naturalmente o tema marxista por excelncia) ai, bem como no mtodo de elaborao desse Conhecimento, que se revelaria com preciso o conjunto e generalidade do problema filosfico, isto , a determinao em sua totalidade, e a caracterizao do Conhecimento do Conhecimento que vem a ser o contedo e objeto central e geral da Filosofia, e onde ela encontra, em toda sua plenitude, o terreno que lhe prprio e especifico n