cadernosvicente cassandra (1)

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Gil VicenteTeatro MedievalSibilas

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  • VICENTECOLECO DIRIGIDA POR OSRIO MATEUS

    Quimera LISBOA 1992 | e-book 2005

    Margarida Vieira MendesCASSANDRA

  • 3A representao do auto

    O nome prprio Auto da Sebila Casandra, assim grafado, vem na taboada eno no topo do texto da oitava folha da Copilaam de todalas obras de GilVicente (1562). Nesta folha, o incipit da rubrica diz:

    A obra seguinte foi representada dita Senhora no mosteirodEnxobregas nas matinas do Natal.

    A dita senhora fora referida nas rubricas das obras de devao que, no livro,antecedem a de Cassandra: Visitao, Pastoril Castelhano e Reis Magos.Trata-se de D. Leonor (m. 1525), irm de D. Manuel, para quem Gil Vicente,seu ourives, comeou por compor autos. D. Leonor, chamada a rainha velha,patrocinou teatro vicentino at 1518, quase sempre de devoo (PastorilCastelhano, Reis Magos, S. Martinho, Pregao, Cassandra, QuatroTempos, Barca do Inferno, Alma, Purgatrio), mas tambm os autos da Fama,da ndia e talvez a Visitao de 1502.Na Copilaam, o texto de Cassandra (008-013) encontra-se registado nasequncia dos autos para matinas do Natal: seguem-no o da F e o dos QuatroTempos. Esta disposio indicia, talvez, uma sucesso cronolgica, a exemploda srie Visitao, Pastoril Castelhano e Reis Magos. A confirmar-seesta hiptese, presumvel que a representao de Cassandra se situe entre1503 e 1509 ou 1510, datas respectivas de Reis Magos e do auto da F.Sletsje (p. 77), baseado no grau de complexidade de tcnica dramtica doauto e na sua relao com as outras produes vicentinas, sugere o perodo de1504 a 1509.De acordo com o cronista da ordem serfica, Frei Jernimo de Belm, omosteiro de Xabregas ou da Madre de Deus foi construdo rapidamente epde ser habitado no mesmo ano da fundao, 1509, sendo a primitiva capela(que D. Joo III viria a transformar em sala do Captulo) benzida logo emJulho. Braamcamp Freire (p. 155) entende que a igreja no estaria concludaem 1509, o que o leva a propor uma data mais tardia para a representao,1513, por nesse ano estar Vicente em Lisboa e a corte fora. Rvah (p. 192)apoia esta conjectura, fundamentando-a no teor guerreiro do vilancete final,que relaciona com a expedio a Azamor. 1513 tem vindo a ser aceite comodata aproximada.Vantajosos para a datao so ainda os dados seguintes: Gil Vicente foi vedordas obras de ouro e de prata no mosteiro de Tomar entre 1509 e 1513; ora,nesta altura, comeou a lavra do prtico, no qual se encontram figurasequivalentes s do auto: alm dos profetas, uma sibila e a Virgem com omenino. O portal sul de Belm tem idntica concepo, com duas ou quatrosibilas, quatro profetas e a mesma Nossa Senhora. Estava em construo noano de 1517, tambm por empreitada de Joo de Castilho. Para datarCassandra contribui ainda a traduo e publicao da novela de cavalariaGuerino il Meschino, em Sevilha, 1512. Cr-se ter ela inspirado a inveno

  • 4de alguns traos da personagem de Cassandra. Por mim, limito-me a chamara ateno para as semelhanas versificatrias deste auto com o dos ReisMagos (1503) e com o comeo do dos Quatro Tempos (1511?), todos comcoplas de p quebrado, embora de composio diferente, j que nos seusprimeiros autos Vicente experimentou formas estrficas da mesma famliamas sempre diversificadas. O isomorfismo das coplas de Cassandra tpicodos primeiros autos: Gil Vicente vai-se soltando progressivamente daexclusividade de uma opo versificatria, no sentido de adequar a liberdadee variedade prosdica s necessidades dramticas (o que j acontece emQuatro Tempos). Cassandra ser o derradeiro auto de Natal destinado aD. Leonor, e por isso figura na Copilaam aps Reis Magos, enquanto o autoda F e o dos Quatro Tempos foram representados a D. Manuel, e formam ogrupo que se segue no livro. Deste modo, penso que nada h a opor a datascomo o Natal de 1512, 1513, 1514, 1515, em que a corte no estava em Lisboa,ou mesmo 1510, se situarmos o auto da F em 1509.Mais importante que o rigor da data de representao o da definio dopblico. Alm de D. Leonor, fundadora do referido mosteiro, mencionada narubrica inicial, s por conjectura podemos pensar nos outros destinatrios doauto. Teriam estado presentes as freiras franciscanas da primeira regra deSanta Clara, incluindo as sete que D. Leonor fez vir do convento de Jesus emSetbal e que dirigiram a vida conventual a partir de 1510? As religiosas daMadre de Deus eram pessoas da primeira nobreza, em que se admiram competncia a humildade com a soberania, no dizer de Frei Jernimo deBelm (p. 9). Algumas provinham da corte, de damas de D. Leonor e darainha D. Maria, muito pretendidas no pao (o cronista nomeia-as __ pp. 115e seg.). Este pblico teria influenciado a concepo do auto, como assinalouo conde de Sabugosa no livro A Rainha D. Leonor. Num quadro litrgiconatalcio, o autor teatralizou, com finalidades edificantes, virtudes e devoesque interessariam essas damas, ao ingressarem numa ordem que inculcava ahumildade e a pobreza. Teatralizou ainda o prprio tema da vocao para osdesposrios com Deus, relativo ao estado monstico. Certos traos deCassandra dizem respeito a esse eventual pblico, simultaneamente cortesoe religioso: princesa, e a sua juventude, beleza e leituras ficam declaradasno auto.Esta obra pertence, assim, ao gnero da moralidade e ao gnero do mistrio.A dramatizao das virtudes e vcios centra-se, por um lado, no debateentre a vocao para a virgindade e o valor (ou no) do casamento; poroutro lado, no tema vicentino da presuno de prever os desgnios de Deusaplicados s coisas humanas, vencida pela humildade intelectual e pelaaceitao da Providncia e da Graa. A parte de mistrio do auto diz respeito natividade.Note-se que certas religiosas, nomeadamente a abadessa, eram castelhanas,provindas do convento de Ganda, o que tornaria mais oportuno o uso desseidioma no auto, onde no existe qualquer estilizao em dialecto salmantino__ a conveno do saiagus seria alis incongruente, dada a ausncia de

  • 5pastores rsticos. As personagens so aqui elevadas e eminentes, emboracom disfarce pastoril, linguagem familiar e intriga domstica e alde:Cassandra vem de pastora, Salamo de zagal, as restantes sibilas de lavradoras,feitas tias de Cassandra, tal como Abrao, Moism e Isaas so os tios deSalamo.Dada a austeridade das Clarissas, duvido que possa colocar-se a hiptese deo auto ter sido representado, cantado ou danado, em parte pelo menos, poralgumas monjas, que em 1510 eram em nmero de vinte. Todavia, o predomniodo castelhano no ter sido indiferente aos actores intervenientes, e no perodoem que Vicente trabalhou para D. Leonor, ou seja, antes de 1519, esta celebraoteatral das matinas a nica em que ele recorre a figuras femininas, queso quatro (nos primeiros autos, o nmero de personagens, masculinas, noexcede seis). Cassandra obra de aparato, mas no tanto pelo nmero defiguras: exige oito actores, alm dos quatro cantores que fazem de anjos, talvezmeninos de coro, talvez as religiosas, talvez msicos. A complexidade residenas entradas, sadas e deslocaes cnicas, pontuadas por canto, dana ecertamente msica instrumental.No que respeita ao local, sabemos que os autos de devoo dispostos naprimeira seco da Copilaam se agrupam a, com essa designao genolgica,exactamente por serem de capela. Exceptuam-se os da Visitao e Barcado Inferno, excepes explicadas nas rubricas. Dado o carcter semiprofano efestivo de Cassandra, G. G. King (p. 11) sugeriu um espao laico __ os aposentosda rainha velha, que possua casa no convento __ onde teria sido instaladoo aparato do nacimento, por detrs duma cortina, para a cena final dacontemplao. Porm, tanto as figuras escolhidas (sibilas e profetas) como amodalidade adoptada (pastoril) obedecem ao decoro das representaesnatalcias de igreja, que seguiam a missa do galo. Apenas a profuso de danasfaz supor um local menos sagrado, j que as duas reas cnicas parecem indicarespaos de igreja.O oratorium praesepis, espcie de capela ou gruta, previsto na disposioarquitectnica das igrejas, localizava-se perto do altar. Frei Jernimo de Belm(p. 47) d notcia de um singular e antigo prespio existente na Madre de Deus,com figuras de barro, bem como de uma velha imagem de Nossa Senhora daGraa, anterior fundao do mosteiro. Refere tambm (p. 53) a esttua flamengaadquirida por D. Leonor, chamada primeiramente dos Prazeres, mas que, porter as mos postas e a cabea reclinada, havia sido colocada junto imagemdo Menino Deus nascido, e reclinado no Prespio, passando a chamar-seMadre de Deus (no final do auto Pastoril Portugus os pastores adoramuma esttua de Nossa Senhora). Talvez Cassandra fosse uma representatiofigurata de prestao de culto a essa imagem adquirida por D. Leonor e emblemado prprio mosteiro.Quanto indumentria, seria a convencional, fixada j pelo teatro religiosomedieval para as personagens de profetas, de sibilas e de anjos (no caso deestes ltimos estarem visveis na cena), e divulgada no s pelo teatroreligioso mas tambm pelas artes plsticas __ escultura, iluminura, gravura,

  • 6ourivesaria, pintura __, o que ajudaria ao seu reconhecimento. Eram ricos easiticos os trajes dos patriarcas e profetas judeus, com coifas orientalizantes,tal como os das sibilas. Destas, no sabemos se viriam coroadas, como noportal dos Jernimos, ou com um livro na mo e outros smbolos queparticularizavam cada uma: Eritreia (aqui Erutea), por exemplo, dificilmenteviria com a espada envergada pelos adolescentes que nas igrejas cantavam oJudicii signum, vestidos de sibila, por vezes com diadema na cabea e ladeadade um facho ardente. O mesmo se passaria com os profetas. De indicaesno interior do texto nada pude apurar. Quando Salamo jura por esta paja(008b), tanto pode indicar um adereo seu (v.g. o chapu) como efectuar umajura cmica (jurar por nada, por uma ninharia); e quando Abrao jura a micorona, esta pode ser a tonsura de um eclesistico que desempenhe o papel depatriarca, ou uma coroa real colocada na sua cabea. No auto de Deos Padree Justia e Misericrdia, contemporneo de Gil Vicente, os profetas tm livrose as sibilas pesados vestidos. As gravuras da segunda Copilaam (1586, fl. 10)mostram uma Cassandra selvagem, de cabelos soltos, um Salamo com ceptro,coroa e roupas de magistrado, e duas imagens femininas com gorras, umadas quais vem repetida com o nome de Artada, no frontispcio de Dom Duardos(fl. 150).Os trajes de luxo parecem incompatveis com as indicaes convencionalmentebuclicas nas didasclias: em figura de pastora, o pastor Salamo, maneirade lavradoras. Contudo, no auto dos Quatro Tempos, David vem em figura derei e de pastor. Bastaria talvez um smbolo para indicar o fingimento pastoril(um cesto, para as lavradoras, maneira dos Livros de Horas, como lembrouG. G. King, p. 12). As personagens no eram reconhecidas apenas pelosadereos; alm de informaes internas ao auto, podiam ser apresentadas,juntamente com o enredo, num prlogo improvisado na altura ou reduzido aoque hoje a didasclia inicial.No sabemos se existiram msicos a acompanhar cantigas e danas, masdecerto no faltariam, seja na casa de D. Leonor, seja no servio religioso aanteceder a representao. A dana da folia era acompanhada de batidas deinstrumentos de percusso, geralmente ruidosos, para vincar o regozijo. Mas oauto no nos d indicao nenhuma sobre a componente musical, a no ser a deque o prprio autor ensoou, ou seja, comps, a msica da cantiga da adoraofinal, Muy graciosa es la doncella. As rubricas, sempre descuidadas, noreferem a interveno de solista e coro, ou de dois coros. A polifonia no tersido aqui utilizada, pois noutros autos, quando existe, vem assinalada emrubrica. De qualquer modo, a existncia de refro, mudanas e paralelismosinduz uma execuo com alternncia de vozes.Da parte coreogrfica, as didasclias nomeiam a folia, a chacota, o baile deterreiro. H quatro sequncias de dana indicadas, duas delas com letras decantigas: uma chacota danada pelas trs sibilas e Salamo, na entradadaquelas em cena; uma folia das trs figuras bblicas e de Salamo, tambmquando entram; outra chacota danada pelas oito personagens dirigindo-se aoprespio; finalmente, o baile de terreiro (num estrado ?), em ritmo ternrio. A

  • 7chacota e a folia exigiam uma coreografia mais complexa do que as danas depares, mas desconhecemos o seu esquema.A lngua castelhana usada na totalidade do auto, com curtas inseres de latimlitrgico, apresenta facetas arcaizantes e lusismos vrios (estar a cuenta,depus, entirrada, limpeza, galina, presepe, se por si, reys, alm de realizaesde morfologia verbal aportuguesadas e de uma hipermetria que obriga aforadas sinalefas e elises, s possveis no portugus).

    Cassandra e o casamento

    Gil Vicente inventa uma Cassandra nica, margem de qualquer tradiofixa, fundindo fantasiosamente a bela princesa de Tria com caracteressibilinos e com uma variante da moa de vila do seu teatro. Ainda que osprincipais atributos da Cassandra vicentina no provenham da heranaclssica, dela no deixa de ser apontada a beleza, a juventude, a obstinaoalucinada (ser ans \ aunque sepa de morir __ 008b), o isolamento temerrio, oestudo e a sabedoria (que quien la viera sabida \ y tan leda __ 011b). No severifica qualquer influncia nem da obra de Boccaccio sobre as Ilustresmulheres, nem da Crnica Troiana, onde esta filha de Pramo vem nomeadavrias vezes. Nessa literatura, muito divulgada, Cassandra era a queanunciava a destruio de uma cidade, o fim de uma estirpe, de um povo, deum imprio, e em quem ningum acreditava. (Posteriormente, Gil Vicentevai dar o nome de Cassandra a uma das ciganas que lem a sina, na farsa dasCiganas, e em Mofina Mendes a figura da F atribui-lhe a clebre interpretaodo sonho proftico de Csar Octaviano como uma prefigurao do nascimentode Cristo).A Cassandra de Vicente pouco tem de sibilino; antes uma representante doestado de donzela e um ser humano que erra; tal como os pastores, a MofinaMendes, o gado perdido e at os feirantes, ir aperfeioar a sua defeituosahumanidade com a Graa trazida pelo nascimento do Salvador. Nos autos deNatal, quando sujeitos ao fingimento pastoril, h sempre pastores ou outrasfiguras perdidas, procura do gado, distradas, trocadas, fantasiosas.Representam a condio humana que Cristo vem redimir, como Salvador, e aVirgem ajudar, com o exemplo das suas virtudes. Trata-se do tema do erro,ignorncia ou desvario, ao qual se liga, aparentemente oposto, o da vaidadehumana, da falsa sabedoria, do engano da mente quando prevalece a vontade eo amor prprio. este um dos sentidos da inveno de Cassandra. No ficaexcluda a possibilidade de Gil Vicente estar tambm a fabular uma pessoa real,um caso do tempo.No j aqui referido romance de cavalaria Guerino il Meschino aparece umapersonagem parcialmente similar protagonista do auto (orgulhosa, vivendonum monte, virgem que se cr predestinada a me de Jesus), embora comnome e idade diferentes. G. G. King (pp. 42-46) lembra outras fontespossveis: um conto romeno, uma narrativa atribuda a Beda. Pela minha

  • 8parte, penso que a criao vicentina apresenta uma riqueza irredutvel incipincia das ditas fontes. A figura da novela Guerino tem levado autorescomo Lida de Malkiel a privilegiarem neste auto o tema da orgulhosahumilhada e da humilde exaltada. De qualquer modo, a mesma estudiosano o considera exclusivo e, acertadamente, v em Cassandra um smboloda condio humana, tal como dipo, Fausto, Macbeth. No ser umarecitadora de profecias mas uma herona de teatro, un alma humana en conflicto(p. 198).Esse conflito diz respeito ao casamento. Cassandra apresenta-se, afinal,como o reverso dos habituais exemplos religiosos da vocao para avirgindade. Aponta com agudeza os males das mulheres no casamentohumano, e o seu direito iseno, liberdade; mas a sua deciso fruto deuma cegueira igualmente humana. Por isso, Cassandra significa tambm oavesso ou a verso terrena da Virgem (a verdadeira desposada com Deus), talum negativo fotogrfico. Esta ideia de Vicente est de acordo com a suaconcepo dos dois segres descritos na pregao de Santarm, em 1531: osagrado, pleno de perfeio, e o mundano, privado dela. Do primeiro seretiram os exemplos que o segundo dever reflectir e imitar por meio dosmistrios e sacramentos, mas sem o poder atingir pelo conhecimento, seja eleproftico ou no.Dada a alta definio do seu contorno psicolgico, maneira do que vaiacontecer com Ins Pereira, Cassandra comea por conduzir a aco: osolilquio inicial coloca desde logo a questo que servir para a prolongadaaltercao com os seus oponentes. Segundo Hart (p. 35), esse conflito s seresolver depois da contemplao do mistrio, ou seja, e ao contrrio dafarsa, num registo ou ordem de participao do sobrenatural. Em meuentender, o antagonismo humano no se resolve. As crticas de Cassandra aocasamento, enunciadas de um ngulo feminino __ as mais copiosas que me foidado ler em textos da poca __ no sofrem contestao nem soluo (o queno se verifica, por exemplo, no dilogo erasmiano entre Xantipa e Eullia,eivado de didactismo). S h transformao porque a protagonistadesempenha outro papel na terceira parte do auto: de equivocada passa acontrita e adoradora de Maria. Deste modo, lgica intrnseca de cada cena,acrescenta-se a da celebrao religiosa do Natal, e assim se fundem nesteauto a ordem da comdia, a da moralidade e a do mistrio.No restam dvidas que Gil Vicente nos faz simpatizar com a figura quecriou, dotada talvez de mais nobreza que os seus opositores (Spitzer, p. 65).O equvoco insensato de Cassandra s surge na segunda parte do auto, com aaplicao errada da profecia. Em toda a primeira parte, ela revela o maiorbom senso e inteligncia. Chegam a comover a sua negatividade esclarecida,a sua teimosia, a ousadia em responder com meios racionais inclusive argumentao religiosa de Moism, fundada na autoridade das escrituras.Porqu, ento, reduzir Cassandra, como tm feito alguns crticos, a uma alegoriamoral do vcio da soberba?Hart (pp. 49-50) aplica a Cassandra a expresso de Cristopher Marlowe,

  • 9aspyring minds, maneira de ser que torna as personagens desse tipoportadoras de perigo para a sociedade estabelecida. Na variada galeriafeminina de Gil Vicente, dotada de surpreendente complexidade, Cassandraatinge o mximo da vitalidade e do brilho. Dela, sem forar, poder-se-iadizer o que o Padre Antnio Vieira escreveu e rasurou sobre a Cassandrade Tria, que no era crida (Apenso 6., fl. 42, do processo inquisitorial): E seno, ouam a sua Cassandra em que a mesma palavra furor nem sempresignificava demncia, seno um sentir sublime e levantado, e mais quehumano.O tema do casamento no tem sido tratado a propsito deste auto. ApenasJoaquim de Carvalho lembrou que as ideias e atitudes expressas porCassandra no pertencem exclusivamente a Gil Vicente. O estado de casamentoe o valor tico da mulher seriam temas morais a estudar na obra vicentina e arelacionar com a literatura feminista castelhana e com os sentimentos dopao de D. Leonor (p. 169)As crticas ao casamento surgiram no final da Idade Mdia, como notouLucien Fbvre ao estudar o Heptameron de Margarida de Navarra. Ocorremem sermes como os do franciscano Michel Menot, em dilogos, epstolas etratados ou espelhos de casados da primera metade do sculo XVI, tais os deErasmo, Antonio de Guevara, Juan Lus Vives ou Pedro de Lujn. Tambm oportugus dr. Joo de Barros, na ltima parte do Espelho de casados (1540),d conselhos ao marido para que responda s crticas das mulheres sobre aavareza, os cimes, o encarceramento. Todos tentam corrigir e regular umestado de vida e uma instituio dessorada, por meio de uma orientao crist ede regras de educao feminina. Tal como nalgum teatro de Gil Vicente, nessaliteratura didctica diagnosticam-se os males do matrimnio, mas, ao contrriodo teatro, nela tambm se apontam os remdios. Gil Vicente dramatiza essetema em vrios autos, utilizando figuras femininas, pares de personagens efragmentos de dilogo. Recordo Marta a brava e Branca a mansa, no auto daFeira; os agravos de Juliana e Hilria, em Romagem; uma fala de Pero Vaz, emAlmocreves; Ins Pereira; o auto da ndia.Os argumentos de Cassandra contra o matrimnio ultrapassam o seu casosingular e bizarro pois visam a prpria instituio. Encontramo-los ao longo detodas as cenas em que existe debate, profusamente e sem repeties. Podemosenumer-los:__ superioridade do merecimento feminino (en cuerpo, vista y sentido)__ perda da liberdade (desterrada en mano ajena)__ sofrimento (siempre en pena \ abatida y sujuzgada)__ brevidade do contentamento__ defeitos dos maridos __ soberbos, aborrecidos, ciumentos, femeeiros, mentirosos,

    sem siso__ contendas domsticas__ cativeiro em casa__ fraqueza da mulher na guerra conjugal__ cimes e estado de inquietao (no quiero entrar en pasiones)

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    __ maternidade penosa (y dolores \ de partos, llorar de hijos)__ os homens brandos que se volvem bravos e diabos depois de casar__ si la mujer de sesuda \ se hace muda \ dicen que es boba perdida \ si habla,

    luego es herida \ y esto nunca se muda (009d).

    Alguns destes tpicos esto presentes no colquio de Erasmo em que Xantipaprope o divrcio. Noutros tratados, so morigerados os maridos queaferrolham as mulheres e as maltratam. Todavia, ao contrrio do queJoaquim de Carvalho sups, a argumentao de Cassandra invenosingularssima de Gil Vicente, dada a sua abundncia e pertinncia, assimcomo a expressiva negatividade feminina que a sustenta (no quiero a anforamais insistente).A deciso de no casar tambm se escuda num desgnio declarado depreservao de mi limpeza \ y mi pureza \ y mi libertad isienta, da felicidadeprivada (mi nima contenta) e de uma vocao superior: otro casamientoordeno \ en mi seno, yo quiero ser escogida \ en otra vida \ de ms perfectamanera (009c). Ao encenar a vocao para a virgindade, adequada festa doNatal e da me de Deus, o autor vira-a do avesso, inventando para acorporizar um ser, rebelde (saosa), sublime na sua teimosia, mas poucodevoto nas razes que apresenta para a preservao do seu estado. Cassandraexpe a sua vontade, com ferocidade e razes muito aceitveis, a que hojechamaramos feministas, mas no elogia a castidade crist. O debate sganha gravidade religiosa quando feita a apologia do matrimnio comosacramento.Julgo que a inteno no a de valorizar a virgindade contra o casamento ouo contrrio, nem a de afirmar a superioridade da vida monstica, se bem quefique declarado, brevemente, o seu valor espiritual, nos versos de CassandraSlo Dios es perfecin (010d), contrrios ao passo anticlerical da Frguad'Amor (monjas pudiesen volar). Vicente no recorreu s virgens exemplares(Ins, Lcia, Margarida ou Doroteia __ nomes adiantados por Lus Vives, nalinha de S. Jernimo). No entanto, haver alguma fundamentao patrsticaneste auto, se nos lembrarmos que as cartas espirituais de S. Jernimo aEustquia e a Demetrade tm citaes do Cntico dos cnticos, tal comoCassandra. No livro primeiro Contra Jovinianum, explica S. Jernimo que avirgindade grande disposio para o esprito de profecia.Em Cassandra, conjugam-se com naturalidade temas avulsos da tradiocrist: o mistrio da virgindade de Maria, a celebrao dos seus desposrios ematernidade, a questo teolgica da imaculada concepo (antes sancta queengendrada __ 011c), a instituio do matrimnio, os profetas do Messias(todas as personagens so profetas), a adorao do prespio, os vaticniossobre o fim moral do mundo. Os constituintes chamam uns pelos outros,numa cadeia de associaes concertadamente entrelaadas.Salomo, por seu turno, no aparece habitualmente nos mistrios teatrais,mas sim na iconografia dos prticos das igrejas, com a rainha de Sab emfigura de sibila. Na word battle inicial manifesta-se um interlocutor no qual

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    Gil Vicente emprega bem a sua exuberncia inventiva de mltiplas pequenassituaes teatrais, inesperadas, sempre de comdia e cheias de virtualidadescnicas. Mas, ao mesmo tempo, no podia deixar de ser interpretado, nessapoca litrgica do ano, como o profeta da Virgem desposada, como figura doprprio Cristo, como emblema rgio da sabedoria, da riqueza e firmeza,destinado a esposo mstico de Maria, segundo interpretaes religiosasp. ex., no Pastoril Castelhano diz-se de Maria: es la zagala hermosa \ queSalamn dice esposa \ cuando canticaba della __ 004d). Note-se que, dada aescolha da figura do autor do Cntico dos cnticos, o casamento, alm da suaacepo literal, poderia ser interpretado de modo alegrico __ desposriosda profecia com a sabedoria, de Maria com o esprito divino, da igreja comCristo.A favor do casamento dispem-se, neste auto, o exemplo de Salomo ouSalamo e, nele, a sabedoria, o bom senso, os bens materiais, a posiosocial, a realeza e qualidades do noivo, os presentes. O argumento de maispeso o doutrinrio, solenemente exposto por Moism (010b-010c): asacramentalidade do matrimnio, fundada nas escrituras sagradas. No acto dacriao do homem e da mulher, Deus casou-os (de una gracia ambos liados \dos en una carne amados \ como s' ambos uno fuera); como tal, fuecasamentero \ l primero. Esta parceria homem-mulher insere-se na ordemda criao, que o paralelismo estrfico aqui consegue reproduzir: ao sol deuDeus a lua por pracera (parceira), de una luz ambos guarnidos, e ao homem amulher por compaera. Note-se que a matria era controversa nessa poca(Lutero negava o sacramento) e o tpico religioso dois em uma s carne,usado por S. Paulo, repete-se frequentemente em textos literrios e poticos,nomeadamente em Petrarca. A unio conjugal tomada como instituio deorigem divina foi exposta por Santo Agostinho, no cap. 22 do Livro XIV daCidade de Deus.No entanto, Cassandra vai refutar no a doutrina sacramental mas a suaaplicao natureza terrena, segundo ela comandada pelo diabo, pela cobia,pelas paixes, pela mudana, e no pelas virtudes. O casamento imperfeito,por humanal comprisin: eis a questo fulcral do pensamento reformista, queGil Vicente teatralizou para a muito religiosa D. Leonor.

    A estrutura e o texto do auto

    So 793 versos de redondilha maior (octoslabos) e de p quebrado, mas sermelhor contar separadamente os das falas, 719, e os cantados; destes, ficaramregistados, na Copilaam, 74 versos, correspondentes a cinco villancicos,dois deles danados. As letras de tais cantigas podem no aparecer na ntegra.De facto, o transcrito nem sempre corresponde a tudo o que foi cantado: nofinal do auto, por exemplo, os actores vo cantando em chacota em direcoao prespio, mas no sabemos qual a msica ou as palavras, nem deparamoscom a meno de qualquer ttulo ou incipit que as d a conhecer.

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    O nmero de versos cantados no d conta do real efeito das aces musicaisao longo da representao: seis (ou sete), embora s cinco com texto __ o quesignifica bastante tempo de execuo. As cantigas tornam o auto festivo,pontuam o espectculo, ligam e separam as cenas entre si, abrindo e fechandosequncias, introduzem, condensam e finalizam os temas tratados ou entocomentam o que se v. Nenhuma delas acessria.Nas falas, Gil Vicente optou por uma nica forma estrfica, que mantmregular: coplas de onze versos, por vezes doze, uma s vez dez. Duasirregularidades apenas, no final do auto: a estrofe com um dstico a mais (012a)e uma quintilha solta, de remate, atribuda voz de Isaas, (012c). So coplas dep quebrado, divulgadas na Pennsula sobretudo por Juan de Mena e JorgeManrique, mas no no formato que Gil Vicente escolheu para Cassandra, bemmais raro: aqui, as estrofes compem-se de uma sextilha e de uma quintilha,ou de duas sextilhas; no primeiro caso com o quebrado no 2., 5. e 8. versos;no segundo caso, tambm no 11.. Cada quintilha ou sextilha tem duas rimaso que d um conjunto muito harmonioso, assente no nmero quatro(AaBBbA:CcDDC ou CcDDdC).Podemos destacar trs partes semnticas, temticas e pragmticas, duas numprimeiro acto, a outra no segundo e ltimo. Sequncias e momentos claramenterecortados gozam um ritmo breve, com simetrias e contrastes bem visveis,quase sempre rematadas por cantigas de inspirao folclrica, crist ecavaleiresca. admirvel a riqueza inventiva e a felicidade dos minsculosefeitos teatrais, principalmente nos dilogos da primeira parte.As diferentes cenas particulares seguem a sua lgica intrnseca, alm deprepararem a atmosfera para a contemplao da natividade. Dado o perfeitoequilbrio entre as diversificadas partes de que se compe, todo o autocomprova o high achievement of artistry (Spitzer, p. 71) a que chegou GilVicente no incio da sua carreira teatral. A maioria dos comentadores apontapara uma unidade, seja de sentido (para uns alegrico, literal para outros,para uns religioso, para outros moral), seja de estrutura (teatral, plstica,musical, litrgica). Misturam-se funes profanas e sagradas, casam-semitologia e liturgia, sucedem-se a comdia, a moralidade e o mistrio, cruzam-seo simblico, o literal e o realista. As exegeses mais fracas deste auto tm sidoas que preconizam, com maior ou menor veemncia, um sentido exclusivo; asmais fiis ao texto e ideia que podemos fazer da representao so as quereconhecem uma polifonia ou um pot pourri de temas, enquadrados numamoldura de significao religiosa.Tambm o tom ou registo vai mudando: jocoso e devoto, rstico e teolgico,familiar e bblico, prosaico e potico. s situaes de comdia sucedem-se asque dramatizam o culto religioso, e Gil Vicente consegue uma imprevisvelconjuno entre o secular e o cristo, que o reinterpreta. As cenas iniciaisprofanas no so mero ornamento ou expediente para entreter e divertir, poistudo converge para o mistrio natalcio.Ao teatralizar o Natal, Gil Vicente dispunha da herana europeia, cujosingredientes eram o anncio dos anjos aos pastores, a recitao das profecias

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    bblicas e orculos sibilinos, a adorao do filho de Deus e o louvor de Maria.Em Cassandra d continuidade liturgia portuguesa, marcada pelaseveridade cultual cisterciense e dominicana, muito centrada no ofciodivino, e depois, por influncia franciscana, na devoo marinica doprespio; ao mesmo tempo, rompe com ela, introduzindo temas de stiramoral (a do casamento) e at eclesistica (pela voz de Erutea), com umaintriga domstica de tias, tios e sobrinhos casadoiros (note-se o realismo deMoism, pai de famlia, que traz de presente pulseiras das suas filhas). Essanovidade ocorre com desassombro neste auto de devoo, que evitou asgrosserias dos pastores do tipo dos de Juan del Encina, e integrou temasrealistas em apurados dilogos de comdia __ na primeira parte __, seguidos delies de moralidade (contrio) e de poesia bblica, enriquecida por belssimascantigas __ na segunda e terceira partes.A originalidade artstica de Gil Vicente total, lidando apenas com motivostradicionais. Cassandra surge como produo manuelina modelar, numa artecombinatria sempre renovada, que deita mo de toda a espcie de recursosexistentes, ao mesmo tempo que junta, sabiamente, procedimentos e materiaisprprios das diferentes artes.Na transcrio integral do auto, bem como nas citaes de outros passosvicentinos, sigo o fac-simile da Copilaam de 1562, publicado pelaBiblioteca Nacional em 1928 (008-013). Modernizei a ortografia, mantendotodavia o que daquela se supe poder corresponder a realizaes fonticasdiferentes das actuais, seguindo os critrios desta coleco. A pontuao nose rege pelas modernas convenes do castelhano e tenta ser apenas aindispensvel.

    PRIMEIRA PARTE: A DONZELA E O CASAMENTO

    Uma sequncia primeira, de 217 versos, constituda pelo monlogo inicial,que apresenta de imediato a situao: em duas coplas Cassandra declara queno quer casar. Segue-se o dilogo com Salamo, em catorze coplas, cujoconflito se centra na proposta de casamento endereada a Cassandra,personagem que Salamo nomeia logo que entra em cena, ainda que eleprprio no seja identificado dessa maneira. A sequncia remata com Cassandranovamente sozinha, cantando um vilancete, formado por um dstico e trsestrofes zejelescas semelhantes s dos cancioneiros medievais (v.g. as cantigasde Santa Maria). Esta primeira interveno musical serve ao mesmo tempo deeplogo da aco e de separador.Ao contrrio de Cassandra, Salamo presta-se ao cmico e a um prosasmoeivado de bom senso, que serve a inteno de caricaturar a prpria sabedoriade que o mesmo Salamo era um emblema (v.g. a incluso das trinta e duasgalinhas no rol dos seus bens, efeito inesperado e genuinamente vicentino).No auto Pastoril Castelhano, o autor simbolizou no pastor Joo Domado, aevocado, o rei D. Joo II. Nada impede que este Salamo possa representar

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    D. Manuel. Note-se que uma das esttuas do primeiro andar do claustro dosJernimos retrata esse monarca e foi j identificada com o rei Salomo(Markl, p. 15).

    A obra seguinte foi representada dita Senhora no mosteirodEnxobregas nas matinas do Natal. Trata-se nela da presuno daSebila Cassandra, que como per spirito proftico soubesse o mistrioda encarnao, presumiu que ela era a virgem de quem o Senhor haviade nacer. E com esta openio nunca quis casar. A qual Cassandra entraem figura de pastora, dizendo:

    Cassandra . Quin mete ninguno andar 008ani porfiaren casamientos comigo?pues same Dios testigoque yo digoque no me quiero casar.Cul ser pastor nacidotan polidoahotas que me meresca?alguno hay que me parescaen cuerpo, vista y sentido?

    Cul es la dama polidaque su vidajuega pues pierde casandosu libertad cautivandootorgandoque sea siempre vencida?Desterrada en mano ajenasiempre en penaabatida y sujuzgada,y piensan que ser casadaque es alguna buena estrena.

    Salamo . Casandra, Dios te mantengay yo vengatambin mucho norabuenapues te veo tan serenanuestra estrenaya por m no se detenga,y pues ya que estoy acbien ser

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    que diga a qu soy venidoy tanto estoy de ti vencidoque creo que se har.

    Cassandra . No te entiendo. 008bSalamo . Anda, ven

    que por tu biente envan a llamar tus tasy luego daqu a tres dasalegrasterns t y yo tambin.

    Cassandra . Qu me quieren?Salamo . Que me veas

    y me creaspara hecho de casar.

    Cassandra . Lo que dah puedo pensarquellas o t devaneas.

    Salamo . Somos parientes, o qu?bien se veque soy yo para valertal que juro a mi poderque de no serni esta paja me d.Yo soy bien aparentadoy abastadovaliente zagal polidoy an estoy medio corridode haber ac llegado.

    Anda si quieres venir.Cassandra . Sin mentir

    t ests fuera de ti,lo que te dixe hasta aquser ansaunque sepa de morir.

    Salamo . No me ves?Cassandra . Bien te veo.

    Salamo . No te creopues no quieres.

    Cassandra . No te quiero.Salamo . Casamiento te requero.

    Cassandra . Ya primerodixe lo que es mi deseo. 008c

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    Salamo . Qu me dices?Cassandra . Yo te digo

    que comigono hables en casamientoque no quiero ni consientoni con otro ni contigo.

    Salamo . Quieres t estar a cuenta?Cassandra . Y en esa afrenta

    tengo contigo destar.No me quiero cautivarpues nasc horra y isienta.

    Salamo . Tu ta misma me hably prometimuy chapado casamiento.

    Cassandra . Otro es mi pensamiento.Salamo . Pues yo siento

    que bien te meresco yoy por eso vine ac.

    Cassandra . Bien est.Salamo . Segn el tu no querer

    a mi verotro amor tienes all.

    Cassandra . No quiero ser desposadani casadani monja, ni ermitaa.

    Salamo . Dime ques lo que tengaaquesa saaempleas mal empleada.Toma consejo comigoo contigocuando sin pasin te veasy mira lo que deseasqu razn trae consigo.

    Cassandra . No pierdas tiempo comigoya te digobien clara mi entencin.

    Salamo . Quin te viese el coraznpor mirar mi enemigoy saber por qu razn.

    Cassandra . No tomes desto pasin 008dni alteracin

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    pues que no desprecio a timas naci cuando naccomigo esta openiny nunca ms la perd.

    Salamo . Qu te hizo el casamiento?es tormientoque se da por algn hurto?

    Cassandra . Y aun por eso le surtoporque es curtosu triste contentamiento.Muchos dellos es notoriopurgatoriosin concierto ni templanzay si algn bueno se alcanzano es medio placentorio.

    Veo quexar las vecinasde malinascondiciones de maridos,unos de ensoberbecidosy aborridos,otros de medio galinas,otros llenos de mil celosy recelossiempre aguzando cuchillossospechosos, amarillosy malditos de los cielos.

    Otros a garzonearpor el lugarpavonando tras garcetassin dexar blancas ni prietasy reprietas,y la mujer sospirar,despus en casa reiry groir,y la triste all cautiva.Nunca la vida me vivasi tal cosa consentir.

    Y pues eres cuerdo y sientespara mientes, 009amujer quiere decir moleja,es ans como una oveja

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    en peleja,sin armas, fuerzas, ni dientes,y si le falta sentidoal maridode la razn y vertuday de nia juventudque en tales manos se vido.

    Salamo . No soy desos ni serpor mi feque te tenga en bolloritas.

    Cassandra . Y con floritaspiensas que mengaar.No quiero verme perdidaentristecidade celosa o ser celada.Tirte afuera, no es nadapues antes no ser nacida.

    Y ser celosa es lo peorque es dolorque no se puede escusarde los vientos hace mary afirmarque el blanco es dotra color,de las buenas hace malascon sus falasy de los sanctos ladrones.No quiero entrar en pasionespues que bien puedo escusarlas.

    Salamo . Do seso hay, no ya celurassino holgurasquel seso todo bien da.

    Cassandra . El seso es no ir all.Salamo . Calla ya

    que te recelas a escuras.Cassandra . Allende deso sudores

    y doloresde partos, llorar de hijos,no quiero verme en letijos 009bpor ms que t me namores.

    Salamo . Yo voy llamar a l'aldeaErutea

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    y a Peresica tu tay a Cimeria, y tu porfadelante dellas se vea.

    Cassandra . Y a m qu se me da?quin serque me case a mi pesar?si yo no quiero casara m quin me forzar?

    Canta Cassandra:

    . Dicen que me case yono quiero marido no.

    Ms quiero vivir seguranesta sierra a mi soltura,que no estar en venturasi casar bien o no,dicen que me case yono quiero marido no.

    Madre no ser casadapor no ver vida cansadao quiz mal empleadala gracia que Dios me dio,dicen que me case yono quiero marido no.

    No ser ni es nacidotal para ser mi marido,y pues que tengo sabidoque la flor yo me la so,dicen que me case yono quiero marido no.

    A segunda sequncia, de 211 versos, vai incluir a quarta e a quinta cenas. Naquarta, com oito coplas de dilogo, Salamo traz as sibilas nomeadas, Erutea,Peresica (a Eritreia, a Prsica) e Cimria, aqui tias de Cassandra. Ignoramosse cada uma seria reconhecida por adereos. Vm de camponesas e entram adanar uma chacota, certamente com msica prpria ou s com percusso. Ahaver canto, poderia ser ainda o de Cassandra, ao servio da dana. Mastambm poderia ser outro, que no ficou registado. Encontram-se cincofiguras em cena, e as tias insistem nas qualidades do pastor Salamo paramarido.

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    Entra Erutea, Peresica e Cimria com o pastor Salamo em chacota,elas maneira de lavradoras, e diz Cimeria a Cassandra:

    Cimria . Qu te parece el zagal? 009cCassandra . Ni bien, ni mal

    que no quiero casar no.Vosotras quin vos metique case yo?pues sabed que pienso en l.

    Cimria . Tu madre en su testamientono te mientomanda que cases, que es bueno.

    Cassandra . Otro casamiento ordenoen mi seno.Que no quiero, ni consiento.

    Salamo . Loco consejo has tomadoest espantadod se hall tal desvaro?

    Cassandra . Mi fe nel corazn moyo lo foque no vo camino errado,no quiero dar mi limpezay mi purezay mi libertad isientani mi nima contentapor sesentamil millones de riqueza.

    Peresica . Si tu madre eso hiciera.Cassandra . Bien que fuera.

    Peresica . Nunca t fueras nacida.Cassandra . Yo quiero ser escogida

    en otra vidade ms perfecta manera.

    Erutea Escucha sobrina matodavano puedes sino casary ste debes tomarsin profiarques muy bueno en demasa.

    Cassandra . Cmo ans?Erutea . Es generoso

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    y vertuosocuerdo y bien asombrado 009dtiene tierras y ganadoy es loadomsico muy gracioso.

    Salamo . Tengo pumares y vinasy mil pinasde rosas pera holgares,tengo villas y lugaresy ms treinta y dos galinas.

    Erutea . Sobrina este zagales realy para ti est escogido.

    Cassandra . No lo quiero, ni lo pidopor maridogurdeme el Seor de mal.

    Cimria . T no ves cmo es honradoy sosegado?cunto otro lo ser?

    Cassandra . Qu s yo si se mudaro qu harcuando se vea casado?

    Oh cuntos ha h solterosplacenterosde muy blandas condicionesy casados son leonesy dragonesy diablos verdaderos.Si la mujer de sesudase hace mudadicen que es boba perdidasi habla, luego es heriday esto nunca se muda.

    Salamo . Muy entirrada estbien serque no le digamos ms.Pues t tarrepentirsy querrsy el diablo no querr.

    Erutea . Muy ms ana quizse har

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    si la servieses damores. 010aSalamo . Qu moza para favores.

    No veis qu respuestas da?

    Peresica . Si tus tos allegaseny le hablasenque son hombres entendidos?

    Cimria . Pardis son, y bien validosy sentidosbien s yo que lo acabasen.

    Salamo . Quirolos ir a llamaral lugarveremos esto en qu paraaunquella se declarapor tan caraque ha de ser dura darmar.

    Na quinta cena, Salamo sai e entra com mais trs procuradores a favordo casamento de Cassandra, que vm da aldeia (lugar). Isaas, Moism eAbrao comeam por ser personagens despidas de qualquer hieratismoreligioso. Trazem presentes ou novidades (estrenas) para Cassandra __pulseiras, anis e colares __ o que faz parte duma caracterizao judaica detipo realista e, simultaneamente, prpria do tempo litrgico: uma entrega depresentes, mas no Virgem, antes quela que representa o seu reversoprofano, Cassandra. As falas vo ocupar dez coplas, destacando-se as deMoism.Ao entrar, cantam os quatro um villancico de frmulas tradicionais, como olocativo En la sierra ou a exclamao Ay Dios quin le hablara?. Estacano vir a ser musicada por Schumann em 1849, juntamente com a deconcluso do auto, Muy graciosa es la doncella (opus 138, n.os 3 e 7). O tema o da beleza da virgo furibunda, neste caso, Cassandra, e a forma a dovilancete, com um dstico assonante, uma estrofe de mudanas, verso deenlace e refro. A cantiga sublinha a situao psicolgica criada pela fbulateatral, cerzindo-se mais uma vez canto e aco. Ao mesmo tempo, osquatro actores danam a folia, possivelmente acompanhada de percusso. a segunda (ou a terceira) interveno musical no auto e a segundacoreografada. De acordo com Becker (p. 471), sendo o vilancete imperfeito,na rima das mudanas e na volta, necessitaria de um jogo musical especfico,compensatrio das aparentes irregularidades mtricas. Poder-se-iaconsiderar a alternncia entre solista e coro, com a repetio do refro portodos. No sabemos como seriam reconhecidas as trs figuras recm-chegadas cena, pois apenas Moism se autonomeia.

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    Traz Salamo Isaas e Moism e Abrao, cantando todos quatro defolia a cantiga seguinte:

    . Saosa est la niaay Dios quin le hablara?

    VoltaEn la sierra anda la niasu ganado a repastarhermosa como las floressaosa como la mar,saosa como la marest la niaay Dios quin le hablara?

    Abrao . Digo que estis norabuena.Por estrena,toma estas dos manijas.

    Moism . Y yo te doy estas sortijasde mis hijas.

    Isaas . Yo te doy esta cadena.Salamo . Dartha yo bien s qu,

    mas no scunto puede aprovechar.

    Erutea . Muchas cosas hace el darcomo contino se ve.

    Cassandra . Tngome de captivar 010bpor el dar?no me engao yo ansyo digo que prometslo de mque no tengo de casar.

    Moism . Blasfemas que el casamientoes sacramentoy el primero que fue,yo Moisn te lo diry contardnde hubo fundamiento.

    En el principio criy formDios el cielo y la tierracon cuanto en ello sencierramar y sierrade nada lo edific

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    era vacua y vacay no habacosa per quien fuese amadoel spirito no criadosobre las aguas luca.

    Fiat luz luego fue hechamuy prehecha,sol y luna y las estrellascriadas claras y bellastodas ellasper regla justa y derechaal sol diole compaerapor pracerade una luz ambos guarnidosdominados y medidoscada uno en su carrera.

    Hagamos ms, dixo el seorcriador,hombre a nuestra semejanzaanglico en la esperanzay en lianzay de lo terreste Seor. 010cLuego le dio compaeraen tal manerade una gracia ambos liadosdos en una carne amadoscomo sambos uno fuera.

    El mismo que los crilos casy trat el casamientoy por su ordenamientoes sacramentoque al mundo stabaleci,y pues fue casamenterol primeroy es ley determinadacmo ests t embirradadiciendo ques captivero?

    Cassandra . Qu? cuando Dios los hacay componaen esos tales no hablo

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    mas naquellos que el diabloen su retablohace y ordena cadalda.Por cobdicia los ayuntay no preguntapor otra virtud algunay depus que la fortunalos enfunatoda gloria le es defunta.

    Si yo me casase ahoradende a una horano querra ser nacidano tengo ms de una viday sometidadix Casandra tirte afuera,marido, ni aun soadoni pintado.No curis de profiarporque para bien casarno es tiempo concertado.

    Abrao . Y se cobras buen marido 010dcomedidoy nunca apasionado?

    Cassandra . Nunca? estis muy erradopadre honradoporqueso nunca se vido.Cmo puede sin pasiny alteracinconservase el casamiento?mdase el contentamientoen un momientoen contraria divisin.

    Slo Dios es perfecinsin raznsi verdad queris que hablequel hombre todo es mudabley variablepor humanal comprisin.Pero yo quiero deciry descobrirpor qu virgen quiero estar,s que Dios ha de encarnar

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    sin dudary una virgen ha de parir.

    At aqui mantm-se o tema do casamento e prevalece o tom de comdia, aomesmo tempo popular e requintada, com o desenho preciso das personagense a vivacidade psicolgica dos dilogos, rpidos, certeiros, em registo familiare realista. No entanto, Moism, na sua fala de quatro coplas e meia, discorreteologicamente sobre o sacramento do matrimnio, parafraseando o incio doGnesis. Esta interveno doutrinria, nica na primeira parte, altera a naturezasecular dos conflitos. Tambm a resposta de Cassandra a Moism e a Abraovem marcada duma gravidade que concorre para a converso do auto emrepresentao sagrada.

    SEGUNDA PARTE: PROFECIAS

    Inaugura-se nesta quinta cena a segunda parte semntica do auto, que seprolonga, em 221 versos, at o final da cena. O tema do casamento abandonado como assunto dos dilogos, embora permanea nas profeciasrelativas a Maria, ou seja, o programa litrgico dos vaticnios sobre o Natal eas duas vindas de Cristo __ como salvador ou redentor, nascendo, e como juiz,no fim dos tempos. A partir da enunciao da primeira profecia, por Cassandra,a representao torna-se devota, com vestgios da Ordo prophetarum.Contudo, a rigidez do desfile de profecias e a solene atmosfera bblica vocolorir-se com a manuteno da intriga inicial.Profecias bblicas sobre a Encarnao aparecem noutros autos de natividade,mas no como tema, apenas citadas: Pastoril Castelhano, Reis Magos. EmMofina Mendes, as quatro figuras das virtudes de Nossa Senhora recitamorculos de Cimria, Eruteia e Cassandra (o elenco das sibilas foi fixadoentre dez e doze, e os seus dizeres compilados no sc. VI, ao passo que asfiguraes artsticas s sero divulgadas na baixa Idade Mdia e noRenascimento).Do ponto de vista religioso, esta parte do auto prolonga, com os meios doteatro, o contedo da liturgia do Natal, sobretudo os sermes e leituras, queincluam trechos de Isaas. Tem trs tempos: no primeiro, vaticinam assibilas sobre os mistrios do Natal e a iconografia emblemtica da Virgem,guerreira e me, sub specie de alegoria moral das virtudes que nela doguerra a Lcifer: o arns de virgindade, a malha de santa vida, o elmo dehumildade, etc. Peresica, prenhe de profecias, lembra ainda a futura paixode Jesus. Ao todo sete coplas, que terminam com a revelao de Cassandraacerca da sua prpria predestinao. Alis, so os ditos de Cassandra queenquadram este primeiro tempo: um orculo verdadeiro (s que Dios ha deencarnar \ sin dudar \ y una virgen ha de parir) e outro errado (que de m hade nascer).

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    Erutea . Eso bien me lo s yoy cierta soque nun presepe ha de estary la madre ha de quedartan virgen como naci,tambin s que de pastoreslabradoresser visto y de la gentey le traern presentede Orientegrandes Reys y sabedores.

    Cimria . Yo das ha que he soadoy barruntadoque va una virgen dara su hijo de mamary que era Dios humanado 011ay aun depus me parecaque la vaentre ms de mil doncellascon su corona destrellasmucho bellascomo el sol resplandeca.

    Nunca tan glorificaday acatadadoncella pudo asmarcomo esta virgen vi estarni su parno fue ni ser criada,del sol estaba guarnidapercebidacontra Lucifer armadacon virgen arns guardadaataviadade malla de sancta vida.

    Con leda cara y guerreraplacenterael resplandor piadosoel yelmo todo humildosoy mater Dei por cimera,y el nio Dios estabay la llamabamadre madre a boca llena

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    los ngeles gratia plenamuy serenay cada uno ladoraba.

    Diciendo rosa floridaesclarecidamadre de quien nos criloado aquel que nos dioreina tan sancta nacida.

    Erutea . Peresica, t nos decasque sabasdesta virgen y su parto.

    Peresica . Mi fe dello s bien hartoy rehartollena estoy de profecas. 011b

    Empero son de dolorque el Seorestando a veces mamandotal va de cuando en cuandoque no mamaba a saboruna cruz le aparecaque l temay lloraba y sospirabala madre lo halagabay no pensabalos tromientos que l va.

    Y comenzando a dormirvea venirlos azotes con denuedoestremeca de miedoy no puedopor ahora ms decir.

    Cassandra . Yo tengo en mi fantasay juraraque de m ha de nascerque otra de mi merescerno puede haberen bondad ni hidalgua.

    No segundo tempo, com oito coplas, vo profetizar as personagens do AntigoTestamento sobre a identidade dessa virgem e sobre o Messias, em hinos delouvor a Maria semelhantes aos dos ofcios de Nossa Senhora. Prevalecem asparfrases dos textos litrgicos do Cntico dos cnticos (2, 13-14) e de Isaas

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    (7, 14-15), citado tambm por Abrao. Mas antes, assoma o tema vicentino daloucura, aqui encarnada na sbia Cassandra, que desvaria por vaidade pessoal.A fala final de Ado vai conduzir aos orculos sobre o dia do juzo (hasta aquelda profundo).

    Abrao . Ya Casandra desvara.Isaas . Yo dera

    quest muy cerca de locay su cordura es muy pocapues que tocatan alta descortesa.

    Salamo . El diablo ha dacertara casarpor mi alma y por mi vidaque quien la viera sabiday tan ledaque se pudiera engaar.

    Casandra, segn que muestraesa repuestatan fuera de conclusint loca, yo Salamn 011cdame raznqu vida fora la nuestra?

    Cassandra . An en mi seso estque soy yo.

    Isaas . Cllate loca perdidaque desa madre escogidaotra cosa se escrebi.

    T eres della al revssi bien vesporque t eres humosasoberbia y presumptuosaque es la cosaque ms desviada es.La madre de Dios sin pares de notarque humildosa ha de nascery humildosa concebery humildosa ha de criar.

    Las riberas y verdurasy frescuraspregonan su hermosura

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    la nieve la su blancuralimpia y purams que todas criaturas,lirios, flores y rosasmuy preciosasprocuran de semejallay en el cielo no se hallaestrella ms lumiosa.

    Antes sancta que engendradapreservadaantes reina que nacidaeternalmente escogidamuy queridapor madre de Dios guardadapor vertud reina radiosagenerosaper gracia emperadoraper humildad gran seoray hasta ahora 011dno se vio tan alta cosa.

    El su nombre es Maraque desvade ser t la madre dly del hijo Emanuelmanteca y mielcomer como yo deca.

    Abrao . Dos mil veces lo decasque el Mesasser Dios vivo en personay aun te juro a mi coronaahotas que no mentas.

    Moism . Y t tambin Salamnbuen garznlos cantares que hacastodos eran profecasque decasdella y de su prefecinfermosa mea, columba meaquien te veade vista o a sentidogcese por ser nacidopor fuerte zagal que sea.

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    Abrao . Si hobisemos de declarary platicarcuanto della est escritosera cuento infinitoque el spiritono puede considerar.Todo fue profetizadopor mandadodaquel hacedor del mundohasta aquel da profundono segundomas postrero es devulgado.

    No terceiro tempo, em quatro coplas, profetiza Eruteia sobre las seales dofim dos tempos (cundo ha de ser) o que faz lembrar a Pregao de 1506,sobre a doena moral do mundo e a sua morte. Trata-se aqui da teatralizaodo canto da Sibila, cerimnia paralitrgica das matinas do Natal, celebradaem igrejas e catedrais j nos finais da Idade Mdia (Maiorca, Valncia,Barcelona, Toledo, Madrid, Leo): um rapazinho ou um clrigo entrava naigreja, aps uma das leituras, vestido ricamente de mulher oriental, com gorraou mesmo diadema, e cantava, alternando ou no com coros, os versosarranjados em estrofes Judicii signum, ou ad signum, atribudos sibilaEritreia por Santo Agostinho (Cidade de Deus, XVIII, 23). Erutea certamenteno cantou os seus versos, que no tm uma forma estrfica autnoma, mas possvel que os tenha entoado em salmodia ou recto tono (na orao finalde Quatro Tempos, David diz que vai tocar e cantar en tono de profecas).Ao interpelarem-se mutuamente, as sibilas guardam vestgios da funo dosappelatores ou vocatores da Ordo prophetarum.

    Erutea . Deso profet Africana.Peresica . Y t hermana

    dese juicio hablasteescrebiste y declaraste 012acuanto bastepara enformacin humanapero cundo ha de seres de saber.

    Erutea . Las seales os dirporque las smuy ciertas y bien sabidas.

    Peresica . Ans Dios te d mil vidasque las digasy yo te lo servir.

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    Erutea . Cuando Dios fuere ofendidoy no temido,generalmente olvidado,no ser mucho alongadomas llegadoel juicio prometido.Cuando fuere lealtady la verdaddespreciada y no valida,cuando vieren que la vidaes abatidadel que sigue la bondad.

    Cuando vieren que justiciaest en malicia,y la fe fra, enechada,y la iglesia sagradacaptivadade la tirana codicia.Cuando vieren trabajarpor levantarpalacios demasiados,y los pequeos menguadosdesolladosno puede mucho tardar.

    Y cuando vieren perdiday consumidala vergenza y la razn,y reinar la presuncin,nesta saznperder el mundo la vida. 012bY cuando ms seguradoy olvidadode la fin l mismo sea,en aquel tiempo se creaque ha de ser todo abrasado.

    A terrvel pintura do abandono das virtudes (temor de Deus, bondade, justia,pobreza da igreja, etc.), ou seja, do mundo s avessas, serve para anunciar, talo Anti-Cristo, o fim dos tempos, com implcito apelo ao arrependimentoprprio da poca do Natal. A ela sucede, como sugere Spitzer, o quadroidlico do nascimento do menino redentor.

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    TERCEIRA PARTE: ADORAO DO PRESPIO

    A ltima parte do auto, com 140 versos de texto inclui trs sequncias: umintrito, a cena das oito oraes e a concluso opertica. S aparentementeesta parte mais curta; com efeito, inclui maior proporo de cantigas edanas do que as anteriores. Mantm-se as mesmas personagens, mas vaiabrir-se uma segunda rea cnica, donde partem as vozes de quatro cantoresque fazem de anjos, no sabemos se visveis __ os actores no os vem, apenasouvem de longe a cantiga de embalar. A sua forma ecoa no vilancete finalA la guerra, embora este no tenha volta mas to-s refro (a forma antigavuessas talvez se pronunciasse vossas, como manda a rima). Quando as oitopersonagens se deslocam at ao prespio, cantam e danam a chacota,dando lugar a uma terceira aco coreogrfica e musical, sem registo depalavras.Repetem-se nesta parte as regularidades e simetrias: insistncia no nmeroquatro, com as oraes ao Salvador e Virgem, recitadas pelos profetas epelas sibilas, respectivamente, sendo Cassandra quem faz a ligao. Seriamestas preces entoadas, tal como o canto da Sibila? Penso que no, pois o teordo auto afasta-o decididamente de uma execuo paralitrgica.No oratrio do prespio, a adorao das figuras pags e judaicas exprime areligiosidade catequtica do auto, o significado do mistrio da Encarnao,inaugurador da nova lei, a da Graa, adequada quer a judeus, quer a gentios.O debate apologtico com a Sinagoga fica patente nas declaraes deMoism e de Isaas: a primeira, sobre a humanidade do Messias, beb que sediz chorar, por conveno dos autos de matinas, persuadindo-nos assim dasua humanidade; a segunda, sobre a divindade desse Messias. Nas oraes delouvor e splica de cada figura, torna-se patente a insistncia na naturezahumana de Cristo, bem como o culto da Virgem me.A contemplao da Madre de Deus com o menino, muito divulgada ordem deS. Francisco, surge noutros autos de Natal de Vicente: Pastoril Castelhano,Quatro Tempos e, posteriormente, Mofina Mendes. No auto da F, esta figuraalegrica representa por palavras a cena da contemplao, pedindo ao pastorque se esforce por imagin-la, tal como nas futuras composies de lugar deSanto Incio (pastor faze tu assi \ comea de imaginar \ que vs a virgemestar \ como se estivesse a (...) e que vs diante dela \ um menino entonacido __ 015a).Em Cassandra, o acto do prespio encontra-se delimitado, no princpio e nofim, por cnticos __ o dos anjos, ro ro ro, e o das figuras todas, Muy graciosaes la doncella. Neste ltimo villancico, com trs quadras de voltas, osestilemas de louvor so ao divino (a poesia mais simplesmente bela da lnguacastelhana, para Dmaso Alonso). A repetio anafrica no comeo de cadaestrofe invulgar e gera a forma aberta da ladainha, continuando a dicoformulstica a ser a da poesia popular, como a ela tambm pertencem osprocessos de intensificao afectiva do louvor da virgo: as reiteraessemnticas, sintcticas, fnicas e paralelsticas, os diminutivos, a

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    exclamao, a interrogao __ tudo combinado sem qualquer rigidezgeomtrica, de forma gostosamente imperfeita (o v. 8, hipomtrico, est maltranscrito). possvel que falte aqui uma estrofe, cujos dois primeiros versosrimassem com os correlativos da terceira estrofe. Mas Gil Vicente semprefugiu s simetrias rgidas e lcito imaginarmos que deixou assim mesmo asua composio, pronta para ser continuada no canto. Lembro que o texto dacantiga inicial de Cassandra tambm apresenta trs estrofes de voltas, e osdas restantes apenas uma. Este villancico o nico do qual a Copilaam fazquesto de declarar a autoria musical de Gil Vicente. Corresponde quartae derradeira aco de bailado, com os oito actores a danarem em ritmoternrio.Quanto ao vilancete de despedida, no ficamos certos de quais os executantes:seguramente os actores, mas tambm, por que no, o pblico ou parte dele.Este cntico, testemunho da cavalaria espiritual, tem sido interpretado quercomo uma exortao da guerra (tema e nome dum auto vicentino de 1513,e funo do canto dos quatro cavaleiros do final da Barca do Inferno, de1517), aparentemente exterior estrutura dramtica de Cassandra, quercomo frmula alegrica, na continuidade do esprito religioso do auto. Julgoque ter os dois valores. De facto, a metfora militar e guerreira, expressano refro A la guerra, adequa-se milcia crist da prtica das virtudes,reforada pela Graa divina do Natal. Note-se que, no relato do sonho profticode Cimria, a Virgem aparecia j com adereos iconogrficos de guerreiraresplandecente, maneira do Cntico dos cnticos, e que, no louvor deSalamo, o menino Jesus capitn. O vilancete de despedida manifesta, dequalquer modo, a jubilosa certeza crist da graa garantida pelo nascimentodo Salvador (Beau, p. 231).

    Abrem-se as cortinas onde est todo o aparato do nacimento. E cantamquatro anjos:

    . Ro ro ronuestro Dios y redemptorno lloris que dais dolora la virgen que os pariro ro ro.

    Nio hijo de Dios padrepadre de todas las cosascesen las lgrimas vuesasno llorar vuestra madrepues sin dolor os pariro ro rono le deis vos pena no.

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    Ora nio ro ro ronuestro Dios y redemptorno lloris que dais dolora la virgen que os pariro ro ro.

    Moism . Naquel cantar siento yoy cierto soque nuestro Dios es nacido,y llora por ser sabidoy conoscidoque es de carne como yo.

    Cimria . Yo ans lo afirmaray juraraque lo deben estar brizandoy los ngeles cantandosu divinal meloda.

    Isaas . Pues vmoslo adorar 012cy visitarel recin nascido a nos,vern nuestros ojos dosun solo Diosnascido por nos salvar.

    Vo cantando em chacota e chegando ao prespio, diz Peresica:

    Peresica . Erutea ves alllo que vila cerrada flor parida.

    Abrao . Oh vida de nuestra vidaguareciday remediada por ti,a ti adoro redemptormi seorDios y hombre verdaderosancto y divino corderopostrimerosacrificio mayor.

    Moism . Oh pastorcico nacidomuy sabidode tu ganado cuidosocontra los lobos saosoy piadoso

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    al rebao enflaquecido,por la tierna carne humananuestra hermanaque nese brizo sospira,que nos libres de tu iray las nimas nos sana.

    Salamo . Qu oracin Dios te harnque dirnoh gran rey desde niitoper natureza benditoinfinitoab eterno capitnde celeste imperio heredero 012dpor enterode deidad coronado,adrote Dios humanadoy por nos hecho cordero.

    Isaas . Adrote sancto Mesasen mis dasy para siempre te creopues con mis ojos te veoen tal aseoque cumples las profecas,nio adoro tu altezacon firmeza,y pues no tengo desculpaa tus pies digo mi culpay confieso mi flaqueza.

    Cassandra . Seor yo de ya perdidanesta vida,no te oso pedir nadaporque nunca di pasadaconcertadani debiera ser nacida.Virgen y madre de Diosa vos a voscorona de las mujeres,por vuestros siete placeresque quieras rogar por nos.

    Cimria . Espejo de generacionesy naciones

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    de Dios hija, madre y esposaalta reina gloriosaespeciosacumbre de las perfeciones.Oh estrada en campos llanosde humanossospiros a ti corrientesoidora de las gentesencomindome en tus manos.

    Peresica . Oh clima de nuestro polo 013aun bien soloplaneta de nuestra gloria,influencia de vitoriapor memorianuestro sino Laureolo.

    Erutea . Ave stella matutinabella y dina,ave rosa blanca flort pariste el redemptory tu colordel parto qued ms fina.

    Acabada assi sua adorao, cantaram a seguinte cantiga, feita eensoada polo autor:

    . Muy graciosa es la doncellacmo es bella y hermosa.

    Digas t el marineroque en las naves vivassi la nave o la velao la estrella es tan bella.

    Digas t el caballeroque las armas vestassi el caballo o las armaso la guerra es tan bella. 013b

    Digas t el pastorcicoque el ganadico guardassi el ganado o los valleso la sierra es tan bella.

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    Isto bailado de terreiro de trs por trs. E por despedida o vilanceteseguinte:

    . A la guerracaballeros esforzadospues los ngeles sagradosa socorro son en tierra,a la guerra.

    Con armas resplandecientesvienen del cielo volandoDios y hombre apellidandoen socorro de las gentes.A la guerracaballeros esmeradospues los ngeles sagradosa socorro son en tierra,a la guerra.

    Laus Deo.

    Referncias

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    Estudos, vol. ICoimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis

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    Paris: Fundao Calouste Gulbenkian

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    Lisboa: Mosteiro de S. Vicente de ForaJoaquim de CARVALHO

    1983 Os sermes de Gil Vicente e a arte de pregarObra Completa, vol. IVLisboa: Fundao Calouste Gulbenkian

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    Lisboa: Ocidente

    Thomas R. HART1981 Two Vicentine Heroines

    Quaderni Portoghesi, n. 9-10

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    Mara Rosa Lida de MALKIEL1984 Para la gnesis del Auto de la Sibila Casandra

    Estudos de literatura espaola y comparadaBuenos Aires: Editorial Losada

    Dagoberto L. MARKL1985 Uma arte dos Descobrimentos ou uma arte da fixao

    Vrtice, n. 3

    Stephen RECKERT1986 Cavalaria, cortesia e demi(s)tificao (o modelo ibrico)

    Cavalaria espiritual e conquista do mundoLisboa: INIC

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    Hispanic Review, vol. XXVII

    Leif SLETSJE1965 O Elemento cnico em Gil Vicente

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    Leo SPITZER1959 The Artistic Unity of Gil Vicentes Auto da Sibila Casandra

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    Stanislav ZIMIC1992 O sentido alegrico do Auto de la Sibila Casandra de Gil Vicente

    Temas Vicentinos, Actas do Colquio em torno da obra de Gil Vicente(Teatro do Bairro Alto, 1988)Lisboa: ICLP