cadernosjurídicos31final

136
CADERNOS JURÍDICOS ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA Ano 9 - número 31 - janeiro-abril/2008 Escola Paulista da Magistratura São Paulo, 2008

Upload: jessicadamata

Post on 06-Dec-2015

236 views

Category:

Documents


17 download

DESCRIPTION

interessante

TRANSCRIPT

Page 1: CadernosJurídicos31final

CADERNOS JURÍDICOS

ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURAAno 9 - número 31 - janeiro-abril/2008

Escola Paulista da MagistraturaSão Paulo, 2008

Page 2: CadernosJurídicos31final

ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA

Diretor

DESEMBARGADOR ANTONIO RULLI JUNIOR

Vice-Diretor

DESEMBARGADOR PEDRO LUIZ RICARDO GAGLIARDI

Coordenação

RODRIGO MARZOLA COLOMBINI

Comissão Coordenadora

ALEXANDRE BATISTA ALVESANTONIO CARLOS SANTORO FILHO

CARLOS VIEIRA VON ADAMEKLUÍS FRANCISCO AGUILAR CORTEZMARCELO ALEXANDRE BARBOSA

MARCELO SERGIORUI PORTO DIAS

Page 3: CadernosJurídicos31final

CADERNOS JURÍDICOS

ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA

ISSN 1806-5449Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 1-136, janeiro-abril/2008

Page 4: CadernosJurídicos31final

COMO PARTICIPARMagistrados de todo o país que queiram enviar trabalho ou decisão para

publicação nestes “Cadernos”, acerca de temas atuais de interesse para toda a comunidade jurídica, julgados recentes de todas as instâncias, comentários e estudos sobre novas tendências jurisprudenciais e alterações legislativas diretamente ligadas à atividade jurisprudencial, devem fazê-lo por e-mail, malote ou correio, juntando, ao material impresso, gravação em disquete, na versão do aplicativo Word (ambiente Windows).

Os endereços são os seguintes:Escola Paulista da Magistratura - Rua da Consolação, 1483 – 1º, 2º e 3º andares,

CEP 01301-100, São Paulo - SP, a/c Marcelo Barbosa – E-mail: [email protected] trabalhos e decisões passarão pela avaliação da Comissão Organizadora,

que poderá ou não recomendar sua publicação, tendo em vista os objetivos dos “Cadernos”, implicando essa publicação a remessa em cessão à EPM dos direitos autorais correspondentes.

CADERNOS JURÍDICOS / Escola Paulista da MagistraturaV. 1, nº 1 (2000) - São Paulo: Escola Paulista da Magistratura

Quadrimestral2000, V. 1 (1 - 2)2001, V. 2 (3 - 4 - 5 - 6)2002, V. 3 (7 - 8 - 9 - 10 - 11 - 12)2003, V. 4 (13 - 14 - 15 -16 - 17 - 18)2004, v. 5 (19 - 20 - 21 - 22 - 23 - 24)2005, v. 6 (25)2006, v. 7 (26 - 27 - 28)2007, v. 8 (29 - 30)2008, v. 9 (31 -

Direito CDU 34(05)Jurisprudência CDU 35(05)

ISSN 1806-5449

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907)

Escola Paulista da MagistraturaRua da Consolação, 1483 – 1º, 2º e 3º andares

01301-100 - São Paulo - SPTels. (0xx11) 3256-6781/3257-8954

[email protected]

Page 5: CadernosJurídicos31final

I - Decisões, Sentenças e Acórdãos

1. Acórdão. Tortura. Crime praticado por marido contra esposa, que se

encontrava sob o seu poder. Prova robusta. Pretensão de desclassificação para

lesão corporal de natureza grave. Não cabimento. Condenação mantida. ................. 9

Fernanda Afonso de Almeida

2. Acórdão. Duplicata. Ausência de negócio subjacente. Não efetivação de

protesto em virtude de medida cautelar. Dano moral caracterizado. ....................... 17

Bernardo Mendes Castelo Branco Sobrinho

3. Sentença. Álbum de Figurinhas. Indenização por danos morais. Utilização

indevida da imagem configurada. Procedência parcial. ............................................. 21

Mario Sergio Leite

4. Sentença. Negócio jurídico celebrado por absolutamente incapaz. Sentença de

interdição posterior à data que o negócio foi firmado. Nulidade absoluta que,

em tese, gera efeitos ‘ex tunc’. Colisão de princípios (autonomia da vontade e

boa-fé). Relação de precedência condicionada (Robert Alexy). Prevalência, no

caso concreto, do princípio da boa-fé. ......................................................................... 25

Luís Manoel Fonseca Pires

5. Sentença. Violência doméstica. Lesão corporal de natureza leve. Ausência de

representação. Condição de procedibilidade não afetada pelo art. 41, da Lei

11.340/2006. Extinção da punibilidade decretada. ...................................................... 31

Gustavo Dall`Olio

6. Sentença. Rompimento de noivado. Abusividade de direito face à exigüidade

do prazo. Danos materiais e morais caracterizados. Procedência parcial da ação. ... 35

Thiago Baldani Gomes de Filippo

7. Sentença. Plano de saúde. Obrigação de fornecimento de prótese importada

para realização de cirurgia. Produto nacional similar que não garante a mesma

eficácia de tratamento. Solicitação de médico conveniado de uso do material

importado. Dano moral caracterizado pela demora/omissão de atendimento.

Ação procedente. ........................................................................................................... 41

Lucília Alcione Prata

8. Sentença. Seguro. Doença preexistente. Conceito ao qual não se enquadra a

síndrome de Down, condição humana e existencial do autor, que não adveio

após o seu nascimento. Ausência, ademais, de má-fé do segurado. Procedência

da demanda. .................................................................................................................. 49

Leonardo Grecco

9. Sentença. Crime de Trânsito. Art. 306, do CTB. Fato anterior à Lei n. 11.705/2008.

Exame clínico insuficiente à caracterização da tipicidade. Absolvição. ..................... 53

Adeilson Ferreira Negri

Ano 9

Número 31

janeiro-abril2008

Page 6: CadernosJurídicos31final

10. Sentença. Sexta-parte. Impossibilidade de cálculo de acréscimos de forma

cumulativa. Improcedência da demanda. .................................................................... 57

Silvia Maria Meirelles Novaes de Andrade

11. Acórdão. Embargos infringentes. Alegação de perda da cobertura pela não-

instalação de equipamento antifurto no veículo segurado. Cláusula restritiva

redigida sem qualquer destaque. Inobservância ao disposto no artigo 54, §

4º do CDC. Desproporcionalidade e abusividade igualmente verificadas.

Cobertura mantida. Embargos improvidos. ................................................................. 61

Rodrigo Marzola Colombini

12. Sentença. Ação Civil Pública. Postos de combustíveis. Formação de Cartel.

Preços idênticos ou muito próximos durante longo período. Caracterização.

Procedência da ação. Condenação ao pagamento de indenização por danos

morais. ............................................................................................................................ 63

Carmen Silvia Alves

13. Sentença. Embargos à execução. Tabelião. Atividade exercida em caráter

privado e por delegação. Ausência de personalidade jurídica do Tabelionato.

Responsabilidade por débitos que não se transfere ao novo delegado.

Procedência dos embargos. ........................................................................................... 77

Alessander Marcondes França Ramos

14. Decisão Interlocutória. Investigação de Paternidade. Ação proposta por

nascituro. Possibilidade jurídica do pedido reconhecida. Instauração da relação

jurídica processual determinada. Alimentos provisórios, contudo, incabíveis,

diante da ausência de prova inequívoca da alegada paternidade. ............................ 83

Leonardo Caccavali Macedo

II – Estudos

1. Uma teoria da Justiça e Justiça como eqüidade – Análise das obras de John

Rawls .............................................................................................................................. 91

Alberto Antonio Zvirblis

2. Reforma do Processo Penal: instrução e julgamento ................................................ 101

Antonio Carlos Santoro Filho

3. O sigilo telefônico e o crime via aparelho celular ..................................................... 113

Ana Raquel Colares dos Santos Linard

4. Questionário no julgamento pelo júri ....................................................................... 119

Eloísa de Souza Arruda e César Dario Mariano da Silva

5. O juiz, o consumo de bebida alcoólica e os crimes de trânsito ................................ 127

Jayme Walmer de Freitas

6. Companheiro leva vantagem na herança .................................................................. 133

Euclides de Oliveira

Page 7: CadernosJurídicos31final
Page 8: CadernosJurídicos31final
Page 9: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

9

Apelante: Célio Alves de Lima da SilvaApelado: Ministério Público

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação com Revisor nº 1177306.3/7-00, da Comarca de ATIBAIA, em que é apelante CÉLIO ALVES DE LIMA DA SILVA e apelado MINISTÉRIO PÚBLICO:

ACORDAM, em Sessão Ordinária da Quarta Câmara Criminal “C” do Tribu-nal de Justiça do Estado de São Paulo, proferir a seguinte decisão, por votação unânime: NEGARAM PROVIMENTO ao recurso, de conformidade com o voto da Relatora, que fica fazendo parte do presente julgado.

O julgamento foi presidido pelo Sr. Desembargador Euvaldo Chaib e teve a participação dos Srs. Desembargadores Mauricio Garibe e Maurício Henrique Guimarães Pereira Filho, com votos vencedores.

São Paulo, 13 de junho de 2008.

FERNANDA AFONSO DE ALMEIDARelatora

COMARCA DE ATIBAIA- SP

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Acórdão. Tortura. Crime praticado por marido contra esposa, que se encontrava sob o seu poder. Prova robusta. Pretensão

de desclassificação para lesão corporal de natureza grave. Não cabimento.

Condenação mantida.

Page 10: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

10

RELATÓRIO

Trata-se de recurso de apelação interposto por CÉLIO ALVES DE LIMA DA SILVA contra a r. sentença que o condenou às penas de 10 anos de reclusão, no regime fechado, pela prática do crime previsto no artigo 1º, II, § 3º, primeira parte da Lei nº 9.455/97 (fls. 170/180).

O acusado foi processado porque, em 31 de julho de 2006, em horário incerto, no sítio Kenji, em Atibaia, submeteu Maria Aparecida, sob seu poder e autoridade, com emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, resultando em lesão corporal gravíssima consistente na perda de membro. Apu-rou-se que a vítima vivia como companheira do réu, dependente financeira e moralmente de seu agressor. O denunciado exercia efetivo poder sobre a vítima, na forma de dominação econômica e cultural. A vítima não possuía apoio fami-liar e submetia-se a toda sorte de violência e humilhação, por ser mãe de uma criança de 10 meses. Há algum tempo a ofendida sofria lesões corporais diárias e ameaças à sua vida. No dia dos fatos, o réu informou que arrancaria uma parte de seu corpo, ordenando escolher entre o dedo, a língua e a orelha. A vítima optou pelo dedo e o réu muniu-se de um facão e desferiu-lhe um golpe, ampu-tando o quinto dedo da mão esquerda e guardando-o num vidro de perfume, dizendo que o mostraria a terceiros. Somente no dia seguinte permitiu que a ofendida buscasse atendimento médico, ocasião em que alegou ter sido vítima de acidente de trabalho.

A Defesa pediu a desclassificação para o crime de lesão corporal grave (fls. 200/204).

O Ministério Público, em contra-razões, requereu seja negado provimento ao recurso (fls. 207/213).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo acolhimento do apelo (fls. 251/252).

VOTO

A r. sentença a quo, cujos excelentes argumentos acolho integralmente, deve ser mantida tal como lançada.

Não existem dúvidas de que o réu praticou o crime de tortura contra sua companheira.

Maria Aparecida narrou detalhadamente o intenso sofrimento físico e men-tal a que era submetida, diariamente, quando, no dia dos fatos, teve seu dedo amputado pelo agressor, de forma violenta e surpreendente, com um facão.

Na fase extrajudicial, a vítima contou que é amasiada com o réu, com quem vive há dois anos e tem uma filha de 10 meses. Há cerca de um ano, o acusa-do começou a apresentar comportamento violento e a agredia fisicamente e a ameaçava, todos os dias. Moravam no sitio do Sr. Jaime e quando se mudaram para o sítio do Sr. Kenji, cuja propriedade invadiram, ele a proibiu de sair de casa, ameaçando matá-la. Aduz que o réu é desocupado e seus vizinhos ajudam doando comida e leite. A casa não tem água e usam a água armazenada numa caixa nos dias que chove. Naquela data, o acusado começou a agredi-la sem mais nem menos e mandou escolher entre sua orelha, língua ou um dedo. Ele pegou um facão e cortou o dedo mindinho da mão esquerda. Depois, disse que era para aprender a não duvidar dele. Pegou o dedo e o guardou num vidro de

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Page 11: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

11

perfume, escondendo-o. Não procurou ajuda, porque tem medo do acusado matar a filha e ela. Ficou com o dedo decepado a noite toda e passou pó de café para estancar o sangue, já que não tinha medicamento na casa. No dia seguinte, o apelante permitiu que fosse até a Santa Casa para fazer curativo, onde inven-tou que o dedo tinha sido cortado durante um trabalho numa firma. Um policial chegou à sua casa, dias depois, perguntando se estava com algum problema e acabou delatando tudo. Asseverou que o réu é louco e não quer mais viver com ele; que quando moravam em Pernambuco, tentou enforcá-la com um arame; deixou-a roxa, sem ar, mas acabou desistindo (fls. 8/9).

Em juízo, o relato foi o mesmo. Disse que o apelante não trabalhava e ba-tia nela frequentemente. Um dia, enquanto dava a mamadeira para a filha, ele sentou e começou a conversar que iria cortar seu dedo. Perguntou o porquê. Ele mandou escolher entre o dedo e a língua e pra não perder os dois, nem pegar a menina, escolheu o dedo. O réu cortou o dedo e saiu. Depois, mostrou-o para um amigo. Colocou pó de café e atou uma fralda no machucado. No posto de saúde, o denunciado mandou contar outra coisa. Alegou ter medo de que o acusado pegue sua filha. Outra vez ele já tentou matá-la amarrando seu pesco-ço. Não sabe por que o acusado tinha tanta raiva dela; às vezes, chegava sem motivo e já ia batendo, nervoso (fls. 148/152).

Sua versão foi inteiramente corroborada pelos demais depoimentos colhi-dos na fase extrajudicial.

Osvaldo Kenji, na delegacia, aduziu que possui um sítio com uma casa, que se encontrava vazia, a qual deixava para funcionários da propriedade ficarem com suas famílias. Há cerca de três semanas, constatou que invadiram o imóvel. Pediu a seus funcionários para verificarem e disseram que uma moça e uma criança estavam lá, mas iriam embora para o Norte, se lhe dessem dinheiro. Não havia água, nem energia elétrica (fls. 13/14).

A conselheira tutelar Laura contou que foi acionada pela polícia acerca de vítimas de violência doméstica. A ofendida informou que estava sendo cons-tantemente agredida pelo marido, que decepou um dedo dela; que também já tinha levado uma facada nas costas. Verificou que moravam numa casa de alvenaria desprovida de água e recursos materiais (fl. 15).

Angelita falou que a vítima esteve duas vezes em sua residência para con-versar, contando morar na casa que fica na propriedade do Sr. Kenji. Na segunda vez, ela chegou com dois abacates perguntando se gostava. Mostrou as mãos e pôde ver que estava sem um dedo, quando contou que seu marido o tinha cortado com uma faca (fl. 46).

Edvaldo, irmão do réu, afirmou que estava trabalhando com outros funcio-nários quando Célio chegou, pegou um objeto, parecendo um vidro de cor pra-ta e destampou, puxando um dedo de dentro e o guardando de novo. Já tinha ouvido comentários de que ele tinha cortado o dedo da mulher. Célio explanou que teria perguntado para a esposa se ela queria que cortasse o dedo do pé ou nariz, mandou colocar o dedo e o cortou com faca. O denunciado ainda disse que a esposa tinha feito “raiva” para ele e duvidou que fizesse aquilo. Asseve-rou não existir irmão gêmeo (fls. 17/18).

Em juízo, Edvaldo confirmou que seu irmão mandou a mulher botar o dedo num certo lugar e então o cortou (fls. 126/127). E o policial César assegurou que recebeu denúncia de que no local dos fatos a mulher teria sido vítima de agres-sões do esposo, que inclusive amputou seu dedo. A ofendida estava amedron-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Page 12: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

12

tada e com muito medo do marido. Este mandou escolher entre um membro, o dedo, a língua e a orelha, sacou o facão e cortou o dedo. O réu justificou-se alegando ter ocorrido um acidente (fls. 128/130).

O laudo de exame de corpo de delito atesta a amputação traumática do 5º dedo esquerdo, com facão, e a regularização de coto realizada (fls. 11/12). O segundo laudo conclui no mesmo sentido (fls. 97/98).

O réu, incrivelmente, não negou os fatos, na delegacia. Contou uma histó-ria fantasiosa de que fez aquilo, porque estava sendo ameaçado por Reinaldo (quem teria visto assaltando uma residência). Reinaldo ordenou que cortasse o dedo ou a língua da sua mulher, senão faria coisa pior. Foi até a casa, mandou sua amásia colocar a mão num pedaço de pau e seu irmão gêmeo Yuri Gomes de Souza cortou um dedo. Seu outro irmão Edvaldo Alves de Lima ficou sabendo do ocorrido e disse que eram loucos. Maria colocou pó de café no dedo que ficou sangrando. Pegou o pedaço do dedo e levou-o até a casa de Reinaldo. Também chegou a mostrá-lo para algumas pessoas na chácara onde seu irmão trabalha. Batia em Maria, quando moravam no Norte, porque ouviu comentários de que ela o havia traído, mas, em São Paulo, já não fazia mais (fls. 34/36).

Extrai-se, do exposto, que o réu agiu sozinho e não possuía nenhum irmão gêmeo. Até mesmo Reinaldo negou tivesse proferido qualquer ameaça contra o réu ou a vítima, sequer os conhecia (fl. 40).

A versão apresentada em juízo também restou isolada – teria cometido vias de fato com a mulher, quando esta, bêbada, pegou uma faca e foi em sua direção, arrancando seu dedo, quando se defendia (fl. 113) – e sem amparo em outros elementos.

Destarte, a prova é robusta e conclusiva para impor a condenação, sendo impossível acolher a tese de Defesa de que houve apenas lesão corporal grave ou de que a vítima, por ser companheira do acusado, não estava sob seu poder.

Vejamos por que motivo.

O artigo 1º da Lei nº 9.455/97 preceitua:

Art. 1º Constitui crime de tortura:... II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.Pena - reclusão, de dois a oito anos.... § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

A prova oral foi contundente em demonstrar que Maria Aparecida, embora convivesse com o réu, mantinha uma relação de subordinação e dominação que ultrapassava a relação de conviventes. Era vítima de agressões físicas gratuitas e diárias, e vivia sob o poder e o controle do companheiro, cujas ordens acatava sem qualquer questionamento, com reverência e temor; medo de que lhe afligis-se com algum mal ou com a morte, o que incluía sua filha de 10 meses de idade.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Page 13: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

13

É de se questionar que ser humano se submeteria a tais condições? Infelizmente, sabemos que nosso país ainda se assombra com resquícios

pré-históricos de violência e submissão da mulher em relação ao homem, prin-cipalmente, em regiões de baixa renda e nível cultural defasado e precário, como nos Estados do Nordeste – de onde provêm réu e vítima. Locais onde a justiça é feita com as próprias mãos e que qualquer ofensa banal contra outrem é motivo para a morte bárbara. Onde a mulher ainda é considerada ser inferior, sem direito de opinar, decidir ou viver de forma livre e como bem entender; senão sob as rédeas curtas de “cabras-machos” impetuosos e violen-tos. Certamente ao nascer e crescer num ambiente tendencioso e propício à obediência e à sujeição, a mulher torna-se um ser servil e subserviente.

Não se olvide Maria Aparecida possua tais adjetivos, principalmente dian-te dos depoimentos testemunhais que comprovaram que ela vivia com o réu e a filha numa casa invadida de uma propriedade rural, sem qualquer condição de higiene, comida ou recursos materiais para a sobrevivência – não havia água encanada; a água usada era aquela recolhida da chuva; que condições precárias, imundas e degradantes! – e em razão da observação do próprio Magistrado que colheu a instrução e sentenciou o feito: tratava-se de pessoa acuada, dominada mentalmente pelo acusado, sendo difícil até mesmo ouvir o que dizia.

A conduta de ter “escolhido”, dentre as demais partes do corpo propostas pelo réu, o dedo, para ser cortado com um facão denota, indubitavelmente, a relação de poder exercida pelo denunciado. Demais disso, como bem lançado pelo Juiz de Primeiro Grau, inexiste qualquer descrição de que a vítima tivesse tentado fugir ou revidar os abusos. Do contrário, seu medo fez com que acei-tasse mais um castigo, aumentando seu temor.

Diversas das definições encontradas para a palavra poder, no Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira: “dispor de força ou autoridade; ter força física ou moral; ter influência, valimento; ter grande influência ou poder sobre; domínio, influência, força”; todas se enquadram no caso em comento.

Como bem ressaltado pelo Ministério Público, não se trata de fazer crer haver simples relação entre marido e mulher, mas uma relação sádica e fora dos parâmetros de qualquer homem médio. Não foram apenas maus-tratos ou violência doméstica, mas uma forma desarrazoada de ferir a vítima sob seu domínio.

Assemelha-se à condição de presos políticos ou vítimas de seqüestro, que são arrebatados e acondicionados em esconderijos, sujeitos ao poderio e con-trole total dos seqüestradores, que os submetem a condições humilhantes e a diversos tipos de sofrimento físico e mental – açoites, intimidações, inanição.

As diversas ameaças de morte e as violências empregadas pelo réu tam-bém se comprovaram exaustivamente com tais testemunhos.

E incontestável o intenso sofrimento físico e mental da ofendida, com dor corpórea e aflição, angústia e martírio. Nem mesmo lhe foi permitido pro-curasse socorro em um hospital, após a amputação do dedo; foi usado pó de café para estancar o sangue – outra conduta que demonstra o poder ao qual era submetida e a intensa dor que sentiu. E para explanar tamanho domínio exercido sobre sua amásia, colocou o dedo em um frasco e mostrou-o a diver-sas pessoas das redondezas.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Page 14: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

14

O próprio irmão do apelante ratificou que o réu agiu daquele modo, pois ela “tinha feito raiva para ele e duvidou que fizesse aquilo”. A vítima, por sua vez, não entendia tanta raiva que o réu sentia por ela.

Os fatos, assim, subsumem-se ao tipo penal previsto na Lei de Tortura, es-tando a desclassificação para lesão corporal totalmente dissonante do conjunto probatório.

O dolo de impingir medo de forma crescente e desumana, sobrepujando toda resistência natural inerente ao ser humano em defender-se ou reagir con-tra violências, alcançando tanto a liberdade como a integridade física da ofen-dida, está presente de forma clara e concreta.

Como salientado pelo ilustre Guilherme de Souza Nucci, em Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, pg. 1093, “Note-se que não se trata de submeter alguém a uma situação de simples maus-tratos, mas, sim, ir além disso, atingindo uma forma de ferir com prazer ou outro sentimento igualmente reles para o contexto”.

Neste prisma:

A questão dos maus-tratos e da tortura deve ser resolvi-da perquerindo-se o elemento volitivo. Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus-tratos. Se a conduta não tem outro móvel, senão o de fazer sofrer, por prazer, ódio ou qualquer outro sentimento vil, então pode ela ser considerada tortura (TJSP – Ac. – Rel. Canguçu de Al-meida – j. 13.09.1993 – RJTJSP 148/280).

Anoto, ainda, que a Lei da Tortura não o tratou como crime especial, mas crime comum, de sorte que o bem jurídico protegido tem caráter bifronte, tu-telando as garantias constitucionais básicas do cidadão não apenas em relação aos agravos realizados por funcionários públicos, mas também por abusos pra-ticados por qualquer pessoa. Neste sentido:

Tortura – Lei 9.455/97 – Denúncia contra a ré, por incursa nas sanções do art. 1º, inc. II, §§ 3º e 4º, da Lei 9.455/97. (...) A tortura consistiu em empalar a vítima, com uma varinha e com uma vela, como forma de castigá-la e para ensiná-la a não defecar nas calças. Em função do agir, a ofendida sofreu perfuração do reto. (...) Com efeito, a Lei 9.455/97, além de incriminar a tortura, em seu sentido mais convencional e res-trito, ou seja, aquela praticada por agentes do Poder Público, estendeu a tipificação do delito ao fato de particulares infli-girem intenso sofrimento físico ou mental a pessoas sob sua guarda, poder ou autoridade, consoante a definição expres-sa no inc. II do art. 1º. Esta última modalidade de tortura se diferencia do crime de maus-tratos e de lesões corporais, no plano objetivo e no subjetivo (TJRS – Ap. – Rel. Nilo Wolff – j. 14.06.2000 – RJTJRS 202/153).

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Page 15: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

15

In casu, a intenção do agente era muito mais do que causar lesão à integri-dade física da companheira, visava atingir-lhe com sofrimento físico incalculável e imensa dor, além do sofrimento moral, humilhando-a e mortificando-a numa situação degradante.

Observo ser irrelevante a discussão sobre ter havido lesão corporal grave ou gravíssima; fato é que a ofendida teve seu dedo amputado – suficiente para configuração da qualificadora prevista na Lei Especial.

Quanto à dosagem da pena, o Magistrado Sentenciante exauriu todas as justificativas para o aumento no máximo previsto abstratamente, desmerecedor de qualquer reparo: personalidade violenta e bizarra do apelante, impiedosa, cruel, desumana, atroz, tão orgulhoso da empreitada criminosa que colocou o dedo amputado num frasco e vangloriou-se mostrando-o a diversas pessoas; impediu-a de ter socorro imediato; “a vítima já estava completamente domina-da mentalmente pelo acusado, sendo que era desnecessário qualquer outro ato para impingir-lhe mais medo. Não contente, o acusado ainda lhe deu opções de qual parte do corpo preferia perder. As conseqüências causadas à vítima vão muito além da perda do seu dedo, atingindo-lhe psicologicamente de forma irremediável. Na própria audiência de sua oitiva, observou-se que apresentava comportamento bastante acuado, sendo difícil até mesmo ouvir o que dizia. Por outro lado, naturalmente descrevia as condutas do acusado, denotando que as agressões físicas já faziam parte de sua rotina.” Certamente um dos casos mais atrozes que esta Relatora julgou.

Diante do exposto, NEGA-SE PROVIMENTO ao recurso, mantendo-se a r. sentença condenatória tal como lançada.

Com o trânsito em julgado, expeça-se mandado de prisão e insira-se o nome do condenado no rol dos culpados.

Fernanda Afonso de AlmeidaRelatora

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 9-15, janeiro-abril/2008

Page 16: CadernosJurídicos31final
Page 17: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

17

Apelantes: Heloisa Helena Santos Sanches ME e Banco Nossa Caixa S/AApelados: Heloisa Helena Santos Sanches ME, Banco Nossa Caixa S/A

e Lumicromo Tratamento de Metais Ltda.

DANO MORAL. Apontamento para protesto de duplicatas emitidas sem respaldo em negócio jurídico subjacente. Responsabilidade civil caracterizada, eis que o protesto somente não foi consumado pela iniciativa da ofendida em buscar a tutela judicial em ação cautelar de sustação. Conduta dos agentes que se mostra apta a gerar a obrigação de reparar o dano moral. Recurso provido para este fim.

DUPLICATA. Titulo emitido sem respaldo em contrato entre emitente e sacada. Responsabilidade da instituição financeira endossatária que remete os títulos indevidamente ao Cartório de Protesto, especialmente por ter sido pre-viamente cientificada do vício que invalidava a emissão das duplicatas. Recurso não provido.

DANO MATERIAL. Ausência de comprovação dos gastos com contratação de advogado para a defesa dos interesses da demandante, inexistindo elemen-tos que indiquem que tenham sido superiores aos honorários arbitrados a título de sucumbência. Indenização que reclama a demonstração do respectivo prejuí-zo, que não pode ser presumido. Recurso não provido.

Vistos.

COMARCA DE BAURU – SP

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 17-20, janeiro-abril/2008

Page 18: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

18

Tratam-se das apelações interpostas contra a r.sentença de fls.186/.192 que julgou parcialmente procedente a ação de anulação de títulos c.c. indenização por danos morais, promovida por Heloisa Helena Santos Sanches ME contra Lu-micromo Tratamento de Metais Ltda e Banco Nossa Caixa S/A.

A apelante Heloisa Helena Santos Sanches ME sustenta em suas razões re-cursais, em síntese, que a emissão das duplicatas sem suporte em relação ne-gocial entre a emitente e a sacada, com o posterior envio dos títulos para o Cartório de Protesto, por si só, configuram atos capazes de ensejar a responsabi-lidade pelo pagamento de indenização por danos morais, não se reclamando o efetivo protesto das duplicatas, o que somente não ocorreu pela ação diligente da apelante ao providenciar a sustação em sede de ação cautelar. Além dos danos morais, postula também o reconhecimento do direito à indenização por danos materiais, estando este consubstanciados nas despesas com a contratação de advogado representá-la em juízo, não cobertas pelos honorários fixados na r.sentença, pois estes já pertencem ao patrono da apelante.

O Banco Nossa Caixa S/A, em seu apelo, afirma que recebera os títulos em operação de descontos de duplicata, agindo de boa-fé ao presumir, pela declaração prestada pela emitente, a existência de negócio jurídico entre ela e a sacada. Tendo recebido os títulos por endosso, com o não pagamento destes no respectivo vencimento, apenas utilizou-se de providência que lhe competia, encaminhando-os ao Cartório de Protesto. A resistência do apelante à preten-são inicial é manifestamente justa, de modo que não poderia responder pelas verbas de sucumbência.

Contra-razões às fls.226/232, 234/240, não tendo a apelada Lumicromo Tra-tamento de Metais Ltda., apresentado resposta aos recursos.

É o relatório.

Não resta dúvida acerca da responsabilidade civil pela reparação dos danos morais nos casos de protesto indevido de título, não se reclamando, neste caso, a demonstração do abalo de crédito daí decorrente.

A controvérsia instalada nestes autos, todavia, diz respeito à possibilidade de caracterização daquela espécie de dano nos casos de apontamento do título para protesto, quando este é evitado pela ação cautelar intentada pelo prejudi-cado, que obtém provimento judicial sustando-o antes de sua efetivação.

Não obstante sejam respeitáveis os fundamentos da r.sentença, entendo que a pretensão indenizatória merece acolhimento.

A conduta ilícita tem-se por configurada com a emissão das duplicatas sem causa jurídica subjacente e, posteriormente, com o encaminhamento dos títulos para protesto, exaurindo-se aí o comportamento ilícito dos agentes, bastante para configuração do dever de indenizar, na medida em que o resultado alme-jado por eles, ou seja, o efetivo protesto dos títulos, somente não foi consuma-do pela ação decisiva da ofendida, que buscou a tutela judicial no sentido de impedi-lo.

Não se mostra plausível afastar a responsabilidade civil, neste caso, sob o argumento de que não houve a consumação do protesto, pois esta não derivou da conduta comissiva da emitente ou do banco endossatário, mas da pronta reação da própria sacada, restando neste passo configurado o agravo moral, representado pelos transtornos naturalmente advindos do evento.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 17-20, janeiro-abril/2008

Page 19: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

19

Ao adotar, sem a necessária prudência, o entendimento sustentado na r.sentença, chegaríamos à absurda conclusão de que, do contrário, restaria possível o pleito indenizatório se a sacada permanecesse inerte à comunicação do cartório, permitindo a consumação do protesto para, após, postular o seu cancelamento em juízo. Estar-se-ia, neste caso, sancionando o comportamento diligente da ofendida, ao reconhecer que a sua iniciativa de postular em juízo a sustação do indevido protesto afastaria a possibilidade de indenização pelas conseqüências resultantes da conduta ilícita. Deve-se observar, ainda, a distin-ção entre a situação posta em exame e aquelas nas quais, após o apontamento para protesto, há imediata retirada do título, por iniciativa do próprio respon-sável por sua emissão ou pelo endossatário.

Cumpre destacar entendimento já sufragado no âmbito da jurisprudência, no sentido da configuração do dano moral, em tais situações, pelo apontamen-to do protesto, não se reclamando para tal que seja este efetivado. Neste senti-do já se decidiu que:

“É IRRELEVANTE PARA O RECONHECIMENTO DA OBRIGAÇÃO REPARATÓRIA A EFETIVAÇÃO DO PROTESTO OU A INCLUSÃO DOS DADOS DA AGRAVADA NOS CADASTROS DE INADIM-PLENTES, EIS QUE NENHUMA DESSAS DUAS PRÁTICAS CONS-TITUI CONDIÇÃO “SINE QUA NON” PARA A CONFIGURAÇÃO DO DANO MORAL , QUE PODE SIM SE DAR COM O MERO APONTAMENTO DO TÍTULO” (Ap. Cível nº 232242 – TJDF - 2a Turma Cível – j. 19/09/2005, Relator J.J. COSTA CARVALHO, Diário da Justiça do DF: 06/12/2005, pág. 127).

A apontamento indevido do título para protesto constitui, pois, fato apto à produção do dano moral, prescindido da prova do prejuízo em concreto para tornar exigível a indenização (STJ – 4a. Turma – REsp.196.024 – Rel.César Asfor Rocha – j.02.03.1999 – RSTJ 124/397).

A responsabilidade civil alcança não apenas a emitente do título, mas tam-bém a instituição financeira endossatária, responsável pelo encaminhamento daquele ao Cartório de Protesto, não afastando aquela a alegação de que atua-ra na presunção de veracidade da declaração de validade do título feita pela emitente quando do desconto das duplicatas.

A prova documental juntada aos autos revela que a autora apelante noti-ficara previamente a instituição financeira acerca dos vícios que maculavam as duplicatas, tendo reiterado aquela comunicação quando do encaminhamento das duplicatas ao Cartório de Protestos. A inércia do banco apelado diante da-quelas comunicações somente reforça a sua responsabilidade.

A posição deste Tribunal de Justiça tem sido no sentido de reconhecer a dúplice responsabilidade:

“DANO MORAL - Responsabilidade civil - Protesto indevido de duplicata - Inexistência de negócio jurídico entre o sacado e o sacador - Fato comunicado ao banco - Responsabilidade do banco que recebe o título por meio de endosso-translativo - Notório gravame - Desnecessidade de prova - Indenização devida - Redução do valor do ressarcimento determinada - Recurso parcialmente provido” (Apelação cível n. 7.081.274-5

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 17-20, janeiro-abril/2008

Page 20: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

20

- São Paulo - 24ª Câmara de Direito Privado - Relator: Manoel Justino Bezerra Filho - 14.12.06 - V. U. - Voto n. 2825).

“DANO MORAL - Duplicata simulada por ausência de causa subjacente a justificar seu saque - Protesto indevido - Dano moral configurado que decorre de ato ilícito - Desnecessi-dade de outras provas para sua caracterização - Legitimidade da instituição financeira de figurar no pólo passivo da ação, bem como sua responsabilidade solidária na indenização de-vida - Decisão mantida - Recurso improvido” (Apelação cível nº 1.036.719-0 - São Bernardo do Campo - 16ª Câmara de Di-reito Privado - Relator: Newton Neves - 14.11.06 - V. U. - Voto n. 3.537).

Na fixação do valor da indenização por dano moral, deve-se ter em conta a dúplice finalidade daquela reparação, compensando-se o ofendido e sancionan-do o ofensor, de modo a desestimular a reiteração da conduta. Não pode aque-la, porém, servir de fonte de enriquecimento indevido por parte da vítima.

Portanto, admissível o apelo no que tange à condenação dos apelados Ban-co Nossa Caixa S/A e Lumicromo Tratamento de Metais Ltda. ao pagamento de indenização por danos morais, que deve ser fixada, pois, no equivalente a vinte salários mínimos, considerando-se, especialmente, as repercussões do ato ilícito, dada a ausência dos efeitos mais gravosos que decorreriam da consumação do protesto. O salário mínimo será aquele vigente à época do ajuizamento da ação, sobre o qual incidirá a atualização monetária pelos índices da tabela publicada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e juros de mora desde a citação.

Não há prova concreta dos danos materiais, sendo inviável presumir o valor destes. Conquanto tenha contratado advogado para o ajuizamento das ações cautelar e principal, a autora apelante não demonstrou qual teria sido o dispên-dio com aquela contratação, não se comprovando o pagamento de importância superior aos honorários arbitrados a título de sucumbência. Assim, não poderia a r.sentença realmente acolher o pedido de condenação naquele particular.

Em síntese, afasta-se o recurso interposto pelo réu Banco Nossa Caixa S/A, dada a existência de responsabilidade solidária daquela instituição financeira em relação aos danos morais sofridos pela autora em decorrência da emissão e protesto indevido de duplicatas, acolhendo-se, parcialmente, o recurso da auto-ra para condenar os apelados ao pagamento de indenização por danos morais, na forma já explicitada. Como conseqüência da presente decisão, os apelados Banco Nossa Caixa S/A e Lumicromo Tratamento de Metais Ltda., responderão integralmente pelas custas processuais e pelos honorários advocatícios já arbi-trados na r.sentença recorrida.

Diante do exposto, dá-se parcial provimento ao recurso da autora e nega-se provimento ao recurso do réu.

Bernardo Mendes Castelo Branco SobrinhoRelator

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 17-20, janeiro-abril/2008

Page 21: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

21

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 21-24, janeiro-abril/2008

COMARCA DE BARUERI - SP

Vistos.

I -

... ajuizou ação de indenização em face de EDITORA ABRIL PANINI, alegan-do, em síntese, que a ré lançou em 1990 e 1991, respectivamente, álbuns de figurinhas da Copa União e do Campeonato Brasileiro, veiculando a imagem do autor, que à época era atleta da Associação Portuguesa de Desportos, time de futebol do Estado de São Paulo. Apontou que houve a exploração comercial de sua imagem, de forma indevida, impondo-se, portanto, o reconhecimento da conduta ilícita da ré. Relatou que sofreu danos extrapatrimoniais, fazendo jus à indenização pelo valor sugerido de dez mil reais por cada álbum e, ainda, inde-nização pelo uso comercial não autorizado, cujo valor deverá ser arbitrado.

Citada, a ré ofereceu contestação, pugnando pela denunciação da lide. Re-latou que não houve ato ilícito e que a imagem foi cedida pelo autor. Informou que o autor se valeu dessa imagem, inclusive na sua atividade profissional. Disse que com base em contrato de licença de uso firmado com a Portuguesa de Des-portos, houve a cessão da imagem e, eventual direito indenizatório, deverá ser pleiteado diretamente ao clube. Impugnou o valor indenizatório pleiteado.

Deferida a denunciação, a denunciada foi citada e ofertou contestação. Es-clareceu que não houve ato ilícito, já que a veiculação da imagem foi autorizada quando da assinatura do contrato de trabalho. Sustentou que é a titular dos di-reitos licenciados pelo autor e, portanto, não pode ser concedida indenização.

A audiência de conciliação foi infrutífera e as partes não se interessaram na produção de provas.

Page 22: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

22

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 21-24, janeiro-abril/2008

É o relatório.

Fundamento e decido.

II -

Da preliminar

Não há que se falar em prescrição.

Com efeito, conforme dispõe o artigo 2.028 do Código Civil: “Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabeleci-do na lei revogada.”

Nesse sentido, o que se verifica é que as imagens foram veiculadas em 1990 e 1991, conforme documentos de folhas 18 e 42 e, como o prazo prescricional aplicável ao direito do autor é o comum, que no Código Civil de 1916 era de vinte anos, de 1990 e 1991, até a entrada em vigor do Código Civil em 2003, já havia transcorrido mais da metade daquele prazo, o qual deve prevalecer. Afas-to, pois, a preliminar de prescrição.

Do mérito

O pedido é parcialmente procedente.

Com efeito, ao contrário do que apontam a ré e a denunciada, não está de-monstrado que o autor cedeu o uso de sua imagem e, portanto, caracterizado o ato ilícito. A Associação Portuguesa de Desportos não apresentou nos autos documento que demonstrasse que o autor cedeu o uso de sua imagem, não lhe aproveitando cópia de contrato firmado com terceiro (fls. 136/137).

Veja, a utilização da imagem ocorreu para satisfazer interesse comercial e, sem demonstração de que a reprodução da imagem se deu com o consentimen-to do autor, seu titular, é devida a indenização.

Ora, o direito de imagem pode ser cedido para fins comerciais, mas desde que haja consentimento do titular. A mera utilização da imagem por terceiro, como no caso dos autos, sem autorização do autor, acarreta prejuízo ao bem incorpóreo que integra seu patrimônio pessoal, pois “o prejuízo está na própria violação, na utiliza-ção do bem que integra o patrimônio jurídico personalíssimo do titular. Só aí já está o dano moral.” (STJ. REsp 46.420-0/SP, Rel Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12.09.94).

A indenização, nesse passo, é devida, simplesmente pela violação ao direi-to de imagem, que envolve os danos morais decorrentes dessa violação através de sua utilização comercial. Nesse ponto, a condenação se limita a valor a ser fixado, de forma única, e não como pretende o autor, com base em liquidação de sentença a partir da tiragem do álbum de figurinhas. Aliás, o dano é apenas moral e não material, já que sequer foi alegado e não existe qualquer demons-tração a esse respeito. De rigor trecho do bem lançado Acórdão acima citado, relatado pelo ilustre Ministro Ruy Rosado de Aguiar:

Page 23: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

23

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 21-24, janeiro-abril/2008

“Além disso, também poderia ocorrer o dano patrimonial, pela perda dos lucros que tal utilização poderia acarretar seja pela utilização feita pelas demandadas, seja por invia-bilizar ou dificultar a participação em outras atividades do gênero. A exigência de demonstração do prejuízo afeiçoa-se aos sistemas em que o direito de imagem está ligado a outros direitos, quando então se torna indispensável o re-conhecimento de que o ato de reprodução da figura trouxe prejuízos à honra, à privacidade, etc. Quando, no entanto, se entende o direito à imagem como um direito que “por sua própria natureza, opõem-se erga omnes, implicando o dever geral de abstenção” (Orlando Gomes, Introdução do Direito Civil, p. 132), o prejuízo já está na própria violação.

“A orientação aqui exposta está em harmonia com o que vem sendo decidido no Brasil, como se pode ver no RE nº 91.328, de 1981, Rel. Min. Djaci Falcão; RE nº 95.872, 1982, Rel. Min. Rafael Mayer; Ac. do Trib. de Alçada da Guanabara, 1974, RF 250/269, o que permitiu ao ilustre professor português José de Oliveira Ascenção dizer que “persistência dessa orientação parece ser de molde a conduzir à formação de um costume na ordem jurídica brasileira” (op. loc. cit). Hoje, tal direito tem suporte constitucional (artigo 5º, incisos X, XI e XXVIII).”

A responsabilidade é sim da denunciante, no primeiro plano. A Editora Abril não agiu com a devida cautela simplesmente porque não exigiu da de-nunciada documento que comprovasse a efetiva cessão da imagem por parte do autor ou, mais do que isso, que este recebeu qualquer valor do clube. Além disso, foi a denunciante quem explorou a imagem comercialmente.

No tocante ao quantum indenizatório, a análise deve se ater para a figura do autor e a natureza do encarte publicado. De fato, houve a veiculação da imagem do autor, goleiro reserva da Portuguesa de Desportos, em dois álbuns de figurinhas, destinados, como se sabe, a crianças e adolescentes, diante da paixão que o futebol faz surgir. Embora não exista prova da cessão da imagem, que dependeria de contrato escrito, não é demais lembrar que o autor posou para a fotografia, sem falar no tempo transcorrido até o ajuizamento da ação, o que indica, assim, que a violação não foi tão significativa.

Assim sendo, lembrando-se da impugnação ofertada pela ré frente ao pe-dido formulado pelo autor, arbitro o valor de R$ 7.000,00 para cada um dos ál-buns em que houve a veiculação da imagem. O valor deve ser corrigido a partir do ajuizamento, posto que aí foi definido, com juros da citação.

Por fim, a denunciação da lide deve ser acolhida, pois conforme contrato de licença de uso da imagem apresentado pela denunciante (fls. 86/90), a de-nunciada obrigou-se a ressarcir quaisquer danos em virtude do objeto do con-trato, ou seja, o uso da imagem dos jogadores.

III -

Ante o exposto, julgo procedente em parte a ação e condeno a ré a pagar ao autor, as importâncias de R$7.000,00 para cada um dos álbuns, acrescida de

Page 24: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

24

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 21-24, janeiro-abril/2008

correção monetária a partir do ajuizamento e juros da citação. Julgo, ainda, procedente a denunciação da lide e condeno a denunciada a ressarcir à denun-ciante o valor acima.

Tendo em vista que a ré decaiu de grande parte do pedido, responderá pelo pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios ar-bitrados em 10% do valor da condenação na ação originária. A denunciada, por sua vez, responderá pelo pagamento das custas, despesas processuais e hono-rários advocatícios da lide secundária, arbitrados também em 10% do valor da condenação.

P. R. I.

Barueri, 14 de abril de 2008.

Mario Sergio LeiteJuiz de Direito

Page 25: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

25

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 25-30, janeiro-abril/2008

5ª VARA CÍVEL DE TAUBATÉCOMARCA DE TAUBATÉ - SP

JOSÉ CARLOS DAS NEVES, incapaz, representado por sua curadora ESTÉR

DE MOURA NEVES, propôs ação em face do BANCO NOSSA CAIXA S.A porque, segundo afirma, é portador de uma anomalia mental – “transtorno orgânico de personalidade e epilepsia” – que lhe impossibilita reger e praticar atos da vida civil; diz ser interditado desde 15 de dezembro de 2004 e que, em setembro do mesmo ano, contraiu com o réu, sem anuência da sua curadora, empréstimo de “crédito pessoal” no importe de R$ 1.194,18; por conseguinte, com a inadim-plência, o réu realizou constantes cobranças e inseriu o nome do incapaz no rol de exclusão de crédito, uma vez que a curadora não tem condições financeiras de adimplir a dívida. Em suma, requer a nulidade do negócio jurídico, a decla-ração de inexistência do débito e a retirada imediata do seu nome das listas de exclusão de crédito. Juntou documentos (fls. 05-15).

A parte contrária contestou (fls. 18-24) e juntou documentos (fls. 25-59). Houve réplica (fls. 64-65). O Ministério Público manifestou-se pela procedência (fls. 165/167).

Page 26: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

26

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 25-30, janeiro-abril/2008

É o relatório. Decido.

Cuida o mérito sobre saber se é legítimo o contrato de mútuo firmado en-tre o autor e a ré uma vez que houve o reconhecimento judicial da incapacidade absoluta do primeiro – embora a incapacidade tenha sido reconhecida após a celebração do contrato.

A matéria reclama algumas reflexões sobre os três planos do negócio jurí-dico.

Em lição de Pontes de Miranda, bem retratada pelo jurista Ricardo Mar-condes Martins1, são três os planos a serem considerados: existência, validade e eficácia.

O plano da existência refere-se à suficiência do suporte fático, isto é, tra-ta da necessidade de estarem presentes os elementos nucleares do negócio jurídico.

O plano da validade reporta-se à eficiência do suporte fático, é dizer que o suporte fático se apresente não-deficiente, ou ainda é o mesmo que asseverar que devem estar presentes os seus elementos complementares.

Por último, o plano da eficácia trata dos elementos integrativos do negócio jurídico.

E estas premissas são importantes para identificar em qual plano que se discute a legitimidade do negócio jurídico objeto desta ação.

A propósito, é o ordenamento jurídico que prescreve quais são os elemen-tos nucleares, os complementares e os integrativos do negócio jurídico, o que equivale a dizer que é o sistema jurídico a fonte a ser considerada para a iden-tificação de cada um dos três planos mencionados.

Nesta senda, de pronto é preciso reconhecer que os arts. 104 e 166, I, do Código Civil prescrevem, na qualidade de regras jurídicas, que a incapacidade absoluta é situação jurídica relacionada à validade do negócio jurídico, pois tal vício enseja a nulidade do ato jurídico lato sensu.

Com efeito, a invalidade é o gênero – no plano da validade – que comporta duas espécies: a nulidade e a anulabilidade cuja distinção que importa ao caso concreto é que a primeira gera efeitos ex tunc e a segunda ex nunc.

Em outros termos: a incapacidade absoluta reside no plano da validade do negócio jurídico, e qualifica-se como causa de nulidade. Por conseguinte, a ausência absoluta da capacidade de discernir e gerir a própria vida compromete a eficiência do suporte fático.

Isto é, a relação jurídica – no caso, o contrato de mútuo (o suporte fático) – apresenta-se deficiente se o vício recai sobre a sua condição subjetiva (a capa-cidade do agente).

Daí porque se diz que a nulidade deve ser declarada por sentença e os efei-tos da invalidação retroagem à época da formação do vínculo, é dizer, os efeitos da invalidação operam-se ex tunc.

Realmente, é certo que não é a partir da sentença que decreta a interdição que existe a incapacidade – no caso, 20 de junho de 2005 (fls. 75/76) –, como é certo que em processo que reclama a invalidade de negócio jurídico em razão da incapacidade – o que é o caso destes autos – também não é possível que,

1 Efeitos dos vícios do ato administrativo, Capítulo 5.

Page 27: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

27

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 25-30, janeiro-abril/2008

reconhecida a ausência desta condição subjetiva, os efeitos valham só a partir de então.

Pois a sentença que reconhece a ausência da condição subjetiva do negócio jurídico admite o vício no momento da constituição do contrato – logo, devem retroagir os efeitos da invalidação.

Estas são, sem dúvida, as premissas conceituais que servem ao tema da nu-lidade do negócio jurídico em um debate hipotético.

Estas são as regras jurídicas – extraídas das normas que se encontram nos arts. 104 e 166, I, do Código Civil.

Mas é preciso não olvidar que a contemporânea teoria geral do direito ma-joritariamente reconhece a norma jurídica como o gênero do qual são espécies os princípios e as regras. Nas palavras de Paulo Bonavides:

(...) não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas compreendem re-gras e princípios, a distinção relevante não é, como nos pri-mórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a espécie2.

Portanto, é preciso ir além das regras jurídicas. É preciso verificar se o caso concreto apresenta um simples conflito de re-

gras, ou se igualmente existe uma colisão de princípios jurídicos que pode, para a situação em análise, modificar a regra geral de que a nulidade gera efeitos ex tunc.

Explico: a extensão da retroatividade dos efeitos da nulidade do negócio jurídico pode – ou melhor, deve – sofrer alterações se as ponderações dos prin-cípios em colisão justificarem que esta invalidade não atinja o momento da for-mação do negócio nulo.

No caso dos autos há princípios jurídicos em colisão: de um lado, as normas que sistematizam a teoria da invalidade dos atos jurídicos (arts. 104 e 166, I, do Código Civil) apóiam-se no princípio da autonomia da vontade, e, de outro, a pretender a manutenção do contrato, há o princípio da boa-fé.

Decerto, como ensina Orlando Gomes, as limitações à liberdade de con-tratar podem ser impostas por questões de “ordem pública”, e exemplo de tal são “(...) as leis sobre o estado e a capacidade das pessoas (...)”3. Assim, a pecha de nulidade do negócio jurídico em razão da incapacidade absoluta da parte contratante – prevista nos arts. 104 e 166, I, do Código Civil – são regras jurídicas que concretizam o princípio da autonomia da vontade: apenas quem tem con-dições de discernimento pode contratar; quem não tem, deve ter a proteção de o eventual negócio feito (existente) ser declarado nulo (espécie de invalidade com efeitos ex tunc).

Por outro lado – em amparo à tese da ré – há o princípio da boa-fé porque o autor ainda não havia sido interditado e a ré não sabia nem tinha como saber da suposta incapacidade daquele.

2 Curso de direito constitucional, 11ª ed., p. 259.3 Contratos, 17ª ed., p. 24-25.

Page 28: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

28

Neste contexto, é esclarecedora a doutrina do alemão Robert Alexy ao pro-por a solução da colisão de princípios jurídicos:

A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consiste na fixação de ‘con-dições’ sob as quais um princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão da precedência seja resolvida de forma contrária4.

Não refuto, portanto, a tese de que a nulidade do negócio jurídico pela incapacidade do agente gera efeitos retroativos.

Contudo, se o caso concreto apresentar uma colisão de princípios (e não simples conflito de regras), deve-se considerar que da ponderação dos princípios em pauta a extensão da retroatividade da nulidade pode sofrer temperamentos.

E é o caso.

Primeiro:

Porque mesmo que o laudo tenha reconhecido a incapaci-dade absoluta, ainda assim do mesmo documento é extraí-da a afirmação de que a doença do autor apresentava uma “evolução permanente” (fls. 74), o que significa que talvez a condição do autor à época que firmou o contrato, isto é, em 9 de janeiro de 2004, ainda não fosse caracterizadora da incapacidade absoluta.

Segundo:

Em reforço a esta incerteza quanto à real condição do autor quando assinou o contrato de mútuo encontra-se a informa-ção prestada pela Prefeitura da cidade que reconhece que ele era servidor público na ativa e que só foi afastado em virtude de sua doença a partir de 29 de setembro de 2004 (fls. 90).

Este contexto fático, insisto, não pode ser desprezado.De tal sorte, embora a incapacidade absoluta qualifique-se como um vício

de nulidade (espécie de invalidade, no plano da validade), embora a nulidade em tese gere efeitos ex tunc, ainda assim é preciso ponderar que há também o princípio da boa-fé a justificar o direito da ré de que seja mantida a validade do negócio jurídico, seja porque não há prova definitiva de que à época do contrato de mútuo o autor efetivamente fosse incapaz, seja porque, ainda que houvesse, o autor ao menos aparentava, por sua vida social (era funcionário público em exercício), gozar de plena saúde mental.

4 Teoria dos direitos fundamentais, p. 96.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 25-30, janeiro-abril/2008

Page 29: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

29

O que hipoteticamente deve ser considerado – que os efeitos da nulidade são retroativos à época da constituição do negócio jurídico (efeitos ex tunc) – não se confirma no caso concreto – e não se confirma em razão da ponderação dos princípios jurídicos em colisão.

Não se confirma porque há uma relação de precedência condicionada (Ro-bert Alexy) entre os princípios em colisão:

Se o caso concreto revelasse que havia ao menos indícios sé-rios de que o autor pudesse ser incapaz, então o princípio da autonomia da vontade deveria prevalecer para que os efei-tos do reconhecimento judicial da incapacidade atingissem o momento da celebração do contrato – pois, repito, a inca-pacidade absoluta impede a livre manifestação de vontade, compromete, em última análise, o princípio da autonomia da vontade.

Enfim, a regra dos efeitos ex tunc da nulidade restaria confirmada. Contudo, a situação fática orienta solução inversa porque não houve qual-

quer sinal a possibilitar à ré que ao menos desconfiasse que o autor não gozava de saúde quanto às suas faculdades mentais.

Portanto, se a circunstância fenomênica nada externou sobre a capacidade de discernimento do agente, então este contexto fático condiciona a precedên-cia do princípio da boa-fé daquele que contrata com o incapaz (no caso, a ré).

É a circunstância fática – a ausência absoluta de qualquer indício de in-capacidade – que condiciona o princípio jurídico que deve ter precedência: o princípio da boa-fé do outro contratante.

Em suma:

Se existissem sinais públicos da incapacidade, por certo a re-troatividade da nulidade atingiria o momento constitutivo do contrato – o fato da publicidade da incapacidade condiciona-ria a aplicação, em relação de precedência, do princípio da autonomia da vontade (princípio que reputa nulo o contrato quando não há a liberdade de contratar).

Mas, definitivamente, não foi o que ocorreu.Como não houve quaisquer vestígios da incapacidade do autor, então esta

ambiência fática da contratação condiciona a precedência do princípio da boa-fé e não é possível, por conseguinte, retroagirem os efeitos da nulidade para atingir o momento de formação do negócio jurídico.

Em conclusão similar – embora por outra senda, apenas com ênfase no princípio da boa-fé (e sem realizar a ponderação de princípios em colisão) –, há precedentes na doutrina e também na jurisprudência.

Carlos Roberto Gonçalves assevera:

[...] deve ser respeitado o direito do terceiro de boa-fé, que contrata com o privado do necessário discernimento sem sa-ber das suas deficiências psíquicas. Para essa corrente somen-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 25-30, janeiro-abril/2008

Page 30: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

30

te é nulo o ato praticado pelo amental se era notório o esta-do de loucura, isto é, de conhecimento público5.

E mais adiante:

[...] o art. 503 do Código Civil francês dispõe que os “atos anteriores à interdição poderão ser anulados, se a causa da interdição existia notoriamente à época em que tais fatos fo-ram praticados”. Malgrado o nosso ordenamento não possua regra semelhante, a jurisprudência a tem aplicado em inúme-ros casos, por considerar demasiado severa para com os ter-ceiros de boa-fé, que negociaram com o amental, ignorando sua condição de incapaz, a tese de que o negócio por este celebrado é sempre nulo, esteja interditado ou não6.

Da jurisprudência consigno o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça:

Para resguardo da boa-fé de terceiros e segurança (...) o reconhecimento da nulidade dos atos praticados anteriormente à sentença de interdição recla-ma prova inequívoca, robusta e convincente da incapacidade do contratante7.

Portanto, por tudo quanto expus, não há razões jurídicas suficientes a jus-tificar a invalidade do negócio jurídico.

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido. Condeno o vencido a suportar com as custas processuais e com os honorários do vencedor que fixo em 10% do valor da causa.

P.R.I.

Taubaté, 25 de julho de 2008.

Luis Manuel Fonseca PiresJuiz de Direito

5 Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, p. 91.6 Op. cit., mesma página..7 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 9.077-RS. Rel. Min. Sálvio de Figueiredo. 25/02/92.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 25-30, janeiro-abril/2008

Page 31: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

31

1ª VARA DE CAMPOS DO JORDÃOCOMARCA DE CAMPOS DO JORDÃO - SP

Vistos.

Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar a prática, em tese, de crime de lesão corporal de natureza leve8, ocorrido no dia 12 de fevereiro de 2007, por volta das 00h15min, na Rua Antonio Simões dos Reis, n. 1.590, Vila Sodipe, Campos do Jordão, onde Gilson Augusto da Silva, prevalencendo-se das relações domésticas, teria desferido 1 (um) ‘soco’ em Claudinéia Aparecida Moraes da Silva, causando-lhe lesões corporais de natureza leve (art. 129, § 9º, do Código Penal).

Convocada audiência a que alude o art. 16, da Lei n. 11.340/06, Claudinéia Aparecida Moraes da Silva, perante magistrado, renunciou/retratou, expressa-mente, o direito de representação, condição de procedibilidade nos crimes de lesão corporal de natureza leve (fls. 51).

O Ministério Público, por seu turno, postulou a realização de diligência para comprovar a materialidade delitiva, em inequívoco propósito instaurar a segunda fase da persecução (ajuizamento de ação penal – fls. 52).

8 Não há qualquer resquício de indício de lesão corporal de natureza grave no curso do inquérito policial, tanto que o Minis-tério Público postula a vinda de ficha clínica de atendimento no nosocômio.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 31-34, janeiro-abril/2008

Page 32: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

32

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 31-34, janeiro-abril/2008

É o relatório.

Fundamento.

A solução da questão depende da resposta as seguintes indagações, a saber:

I - O art. 41, da Lei n. 11.340/06, ao asseverar que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099/95, retirou, ipso facto, a condição de proce-dibilidade (representação do ofendido) nos lesão corporal de natureza leve?

II - O crime de lesão corporal de natureza leve, quando o agente se preva-lece das relações domésticas, é de ação penal pública incondicionada?

Entendo, com a devida vênia, que não.

O que de pronto avulta na espécie, é que a interpretação, que afirma retro-cesso no crime de lesão corporal de natureza leve (ação pública de natureza in-condicionada), despreza, por completo, a própria essência ou finalidade do ato normativo, que é o respeito à mulher, enquanto ser humano titular de direitos merecedores de proteção diferenciada.

Ao ignorar a inequívoca declaração de renúncia/retratação ao direito de representação, por razões que escapam ao espectro de cognição do Estado-juiz (motivos familiares, sociais ou morais, íntimos e, portanto, indevassáveis), despreza-se, essencialmente, a própria vontade da mulher e, porque não dizer, despreza-se direito fundamental à liberdade de convicção ou pensamento (art. 5º, IV e VI, da Constituição Federal), conquista histórica, plasmada, em época recente, nos diplomas normativos.

Ademais, se se entender que a ação penal é pública incondicionada, o in-térprete não emprestará nenhuma validade ou eficácia à vontade, livre e cons-ciente, da mulher, que afirma, textualmente, não desejar ver o seu cônjuge processado criminalmente. Ao negar validade e eficácia à vontade da mulher, estar-se-ia, até mesmo, recusando, à mulher, capacidade de discernimento (in-telecção e determinação). Daí sim, nessa hipótese, caso recusada à mulher capa-cidade inerente ao ser humano, resultaria configurado intolerável preconceito, que é refutado, veementemente, pela Lei Maria da Penha.

Outro aspecto que merece reflexão, em prol da exigência de represen-tação nos crimes de lesão corporal de natureza leve, é a moderna tendência eliminar qualquer espécie de ingerência do Estado na intimidade das rela-ções familiares, circulo indevassável, intransponível, imune à atuação alheia, particular ou pública.

Exemplos desta tendência, que se seguiu historicamente à permissão do divórcio, é a edição recente de lei processual civil (Lei n. 11.441/07), que autori-za a realização de separação ou divórcio consensual, não havendo interessado incapaz, por escritura pública, perante o oficial do registro.

Inconcebível, nos dias atuais, que o Estado-juiz interfira, coercitivamente, nos interesses indevassáveis da família, manejando, contra a vontade da mulher (ofendido), ação penal, donde resulta evidente a probabilidade de imposição de sanção ao seu cônjuge.

Page 33: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

33

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 31-34, janeiro-abril/2008

Admitida a ação, que soa despropositada, a própria estabilidade da entidade familiar, garantida pelo Estado9, estaria, séria e definitivamente, comprometida.

Com efeito, a proteção da família, tutelada pela Constituição Federal, re-sultará sobejamente enfraquecida se permitida a instauração de ação penal (atuação coativa dos órgãos encarregados da persecução penal), contra a von-tade da mulher, no círculo indevassável de intimidade da entidade familiar.

Incorrerá o exegeta – segundo penso –, no vício da inconstitucionalidade, por ofensa ao art. 5º, X e art. 226, da Constituição Federal.

De outra banda, cabe indagar:

Se se entende que a lesão corporal de natureza leve é crime de ação pú-blica incondicionada (dispensa representação), qual a finalidade ou inteligência do art. 16, da Lei n. 11.340/06?

Ou – apenas para reforçar a idéia –, se, desde o início, a vontade da mulher é ineficaz – ora, o crime é de ação penal pública incondicionada –, qual o senti-do de convocá-la, em audiência (ato solene)?

A resposta, nessa perspectiva, é nenhum(a).

Contudo, partindo da premissa de que a lei não utiliza termos ou expres-sões inúteis, devendo ser captado, pelo exegeta, com o emprego das técnicas de interpretação, o real significado da norma jurídica, concluo, na linha da-quilo que anteriormente asseverado (ingerência do Estado; respeito à mulher; estabilidade e proteção da entidade familiar), que o crime de lesão corporal de natureza leve não prescinde da representação da mulher, devendo ela ser formalizada, solenemente, perante o juiz, de modo a assegurar, tão-somente, a higidez e a consistência da sua vontade10.

Ao prescrever que a mulher deve formalizar renúncia em audiência (pe-rante juiz), entende o legislador, com acerto, que se trata de pessoa humana merecedora de tutela jurisdicional especial.

Não se pode olvidar, também, que a representação constitui direito do ofendido, o qual deve ser exercitado, segundo sua conveniência, no prazo disci-plinado em lei, em regra 6 (seis) meses, a contar da ciência da autoria do fato.

Ora, em se tratando de direito, faculdade de invocar a realização de um interesse jurídico, não há coerência lógica ou jurídica em retirá-lo da mulher (invocando especial condição pessoal ou, simplesmente, opção legislativa), assegurando-o, em casos idênticos, às demais pessoas.

Ao fazê-lo, incorrerá o intérprete, novamente, no vício de inconstitucio-nalidade, agora por ofensa ao princípio da isonomia.

O que a lei quer, realmente, é (i) vedar a aplicação do procedimento da Lei n. 9.099/95; e, também, (ii) impedir a aplicação dos institutos despenaliza-

9 Art. 226, da Constituição Federal: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.10 Confira-se, a propósito, a solução da lei processual civil, quando o juiz se convence que os cônjuges, na separação consensu-

al, não manifestam vontade livre ou sem hesitações (art. 1.222, do CPC).

Page 34: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

34

dores, como transação penal e suspensão condicional do processo, mantida, em qualquer hipótese, viva e altiva a vontade e a voz da mulher.

Decido.

Ante o exposto, operada validamente a renúncia/retratação ao direito de representação, julgo extinta a punibilidade, com fundamento no art. 107, V e VI, do Código Penal.

P.R.I.

Campos do Jordão, 26 de fevereiro de 2008.

Gustavo Dall’OlioJuiz de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 31-34, janeiro-abril/2008

Page 35: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

35

COMARCA DE MARACAÍ - SP

Requerente (Autora-Reconvinda): Érika Di DeaRequerido (Réu-Reconvinte): Daniel Maximiliano Ruy

Vistos, etc.

Trata-se de “ação de indenização por danos morais c.c danos materiais c.c pedido de tutela antecipada”. Em sua petição inicial de fls. 2/18, pleiteia a requerente a condenação do requerido na reparação do dano moral, bem como o ressarcimento de dano material que aduz ter sofrido, no importe de R$ 14.933,66, em virtude de suposta desistência de com ela se casar, poucos dias antes da celebração. Documentos foram juntados às fls. 19/44.

Regularmente citado, o requerido ofertou contestação (fls. 63/85). Prelimi-narmente, sustentou a ausência de interesse processual (fls. 81), por demandar por débitos que, pessoalmente, não contraiu. No mérito, no tocante ao pedido de reparação de dano moral, sustentou que a responsabilidade pelo cancela-mento do casamento deve ser imputada à autora, influenciada por seus pais, aduzindo ter sido ridicularizado, desonrado e humilhado. No atinente ao pre-tendido ressarcimento dos danos materiais, afirmou o requerido que em mo-mento algum assumiu participar do casamento com pompas e festas e que, se alguma despesa lhe coubesse, ela deveria ser rateada. Ao final, sustentou não ter havido a comprovação de todos os débitos alegados.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 35-40, janeiro-abril/2008

Page 36: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

36

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 35-40, janeiro-abril/2008

O requerido também ofertou reconvenção (fls. 88/99), pugnando pela re-paração do dano moral que alega ter sofrido, assegurando ter sido a autora a responsável pelo cancelamento do casamento.

Réplica às fls. 104/108.

Quanto à reconvenção apresentada, a autora-reconvinda foi citada e apre-sentou contestação (fls. 109/115). Preliminarmente, alegou falta de interesse processual, uma vez que, em seu entender, a matéria suscitada poderia ser ven-tilada em sede de contestação. No mérito, refutou os argumentos do réu-re-convinte, aduzindo ser deste a culpa exclusiva pelo término do relacionamento do casal. Pugnou pela condenação do réu reconvinte às penas da litigância de má-fé (fls. 114).

Impugnação à contestação da reconvenção às fls. 117/124. Requereu que algumas expressões constantes da contestação fossem riscadas, a teor do dispos-to no art. 15, CPC.

Em sede de audiência de instrução, foram colhidos os depoimentos pessoais das partes (fls. 150/153), bem como ouvidas duas testemunhas arroladas pela au-tora (fls. 157/160) e três testemunhas do requerido (fls. 161/164).

Em alegações finais, a autora reiterou os termos ventilados ao longo do processo (fls. 166/176), assim também o fazendo o requerido (fls. 178/193).

É o relatório.

D E C I D O

1º - Quanto à ação dita “principal”

Desmerece prosperar a questão prévia, de cunho preliminar, suscitada pelo requerido em sede de contestação, quando alega suposta ausência de interesse processual da autora, uma vez que os documentos atinentes às dívidas que ale-ga ter contraído estariam em nome de terceiros.

É que aludidos documentos referem-se a dívidas contraídas em decorrên-cia do pretendido casamento da requerente, a ela dizendo respeito, invariavel-mente. Isto porque, de qualquer forma, apesar de terem sido os documentos emitidos em nome dos genitores da autora, eles somente o foram no interesse imediato desta. Bem por isso, presente o interesse processual, quer seja na mo-dalidade necessidade (inevitabilidade do controle jurisdicional – art. 5º, XXXV, da Constituição da República), quer seja na subespécie adequação (idoneidade do meio utilizado).

No tocante às “questões de fundo”, o pedido da autora merece guarida jurisdicional, em parte.

É que, mediante o cotejo das provas coligidas nos autos, ao requerido pode ser imputado o cancelamento do casamento pretendido entre ele e a autora.

Com efeito, as duas testemunhas arroladas pela requerente foram unísso-nas em dizer que o rompimento do relacionamento de ambos se deu em virtude de desistência do requerido (fls. 157 e 159), confirmando as declarações presta-das pela autora, quando de seu depoimento pessoal (fls. 152/153).

Page 37: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

37

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 35-40, janeiro-abril/2008

Por outro lado, sob minha compreensão, houve certas contradições que permearam os argumentos sustentados pelo requerido ao longo dos autos.

Isto porque, às fls. 66, o réu alega que os pais da autora, assim que souberam da gravidez, teriam dado início a toda sorte de pressão sobre ele, para “...aos gritos e berros saber se iria ou não reparar o mal que havia feito para sua filha, casando-se com ela”. Em contrapartida, quando de seu depoimento pessoal, o requerido aduz que, quando de sua intenção em se casar com a autora, não teria havido qualquer espécie de pressão por parte de seus genitores (fls. 150).

Ademais, a contradição foi verificada até mesmo nos depoimentos colhi-dos das testemunhas arroladas pelo requerido.

A testemunha Lázaro Daniel Ferreira afirmou que o término do relacio-namento do casal teria se dado única e exclusivamente porque a autora não desejaria residir no sítio escolhido pelo réu (fls. 161). A testemunha Marcos Araújo Passos disse ter ouvido dizer que a autora foi quem teria dado causa à ruptura do relacionamento, por motivos que desconhecia. No entanto, não soube precisar como aludida informação teria chegado a seu conhecimento, não sabendo declinar o nome de ao menos uma pessoa que lhe teria dito isto (fls. 163). Ao final, a testemunha José Ailton Cherry ponderou que o término do relacionamento teria ocorrido por determinação do pai da autora, uma vez que este percebeu que o requerido não possuía emprego fixo, não tendo condições de proporcionar vida digna à sua filha (fls. 164).

Pondero que apesar de o requerido imputar à autora e a seus pais a culpa pela ruptura do relacionamento, quando do depoimento pessoal da requeren-te, momento propício para se extrair da parte a confissão, em momento algum isto foi objeto de indagação (fls. 152/153).

Assim, nada obstante aos ilustres argumentos do Douto Patrono do re-querido, este não logrou demonstrar, a meu ver, os fatos aventados ao longo dos autos, mormente o atinente à imputação de culpa aos genitores da autora pela ruptura do relacionamento entre ambos. Bem por isso, não se desincum-biu o réu do ônus probatório que lhe pesava, a teor do art. 333, II, CPC.

Sob minha compreensão, o fato de não ter havido avença formal de noi-vado entre as partes, tampouco troca de alianças, em nada macula a pretensão jurídica da autora, não se afigurando em óbices à procedência dos pedidos.

Bem por isso, procedem os pedidos de reparação do dano moral e ressar-cimento dos danos materiais.

No tocante ao dano moral, em princípio, os noivos têm direito de arre-pendimento. Trata-se, em tese, de conduta lícita a manifestação de vontade no sentido de não mais desejar contrair matrimônio.

Desse modo, apesar de o noivado afigurar-se em espécie de “contrato preliminar” ao casamento, não pode advir, a quem dele desista, qualquer de-cisão judicial de cunho mandamental que obrigue o sujeito a se casar, sendo este direito regulado, inclusive, pelo artigo 1.538, III, do CC.

Porém, aludido direito não pode ser exercido de forma abusiva. Nos ter-mos do artigo 187, do CC, comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente aos limites impostos pelo seu fim econômi-co ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Ora, o advérbio de modo que acima negritei encerra conceito legal in-determinado. Por ele, permite-se ao julgador que faça a adequação do fato à norma, mediante os valores sociais e próprios, diante de um caso concreto.

Page 38: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

38

Assim, normalmente, o rompimento de noivado (“esponsais”) não daria azo à indenização, não necessitando ser declinado motivo aparente. No en-tanto, houve exercício do direito por parte do requerido de forma abusiva, o que enseja, por si só, conseqüência ilícita, uma vez que, dada à exigüidade do prazo (manifestou-se arrependido 15 dias antes da cerimônia – fls. 152), exce-deu, de forma manifesta os limites impostos pela boa-fé, assim entendida em sua acepção objetiva, como um “padrão ético de conduta”.

Pela possibilidade de condenação na reparação do dano moral, já se ma-nifestou o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:

Indenização. Rompimento de noivado. Danos morais e mate-riais. Casamento já agendado, com aquisição de móveis, uten-sílios, expedição de convites e outros preparativos. Ruptura sem motivo justificado. Dever de indenizar o noivo – “Cabe indenização por dano moral e material, pelo rompimento de noivado e desfazimento da cerimônia de casamento já pro-gramada, sem qualquer motivo justo” (TJSP – 6ª C. Dir. Priva-do – AP. 90.262-4 – Rel. Testa Marchi – j. 03.02.2000).

No tocante à quantificação dos danos, entendo que a quantia sugerida pela autora seja exorbitante. Como não se admite tarifação do dano moral, cabe ao magistrado, mediante a análise do caso, pautar-se por razoabilidade e proporcionalidade. Desse modo, a fim de que não haja enriquecimento sem causa à autora, tampouco empobrecimento indevido ao requerido e, ainda, atendendo ao preceituado no caput do art. 944, CC (“A indenização mede-se pela extensão do dano”), fixo-os em R$ 5.000,00.

No atinente aos danos materiais, apesar de a autora pretender ver-se res-sarcida da quantia de R$ 14.933,66, ela apenas logrou demonstrar, mediante a documentação juntada nos autos, ter expedido a importância de R$ 9.933,66.

Ainda assim, não é justo que o requerido arque com todo o valor, tão so-mente porque deu causa à ruptura do casamento. Estas condutas já ensejaram a reparação do dano moral. Com efeito, presume-se que, em se tratando de despesas decorrentes de casamento, cada contraente, ou sua respectiva famí-lia, arque com metade das dívidas. Deste modo, apesar de não ter havido con-cordância formal do requerido quanto às despesas assumidas, em momento algum ele asseverou que elas foram a causa do cancelamento do casamento, tendo, mesmo após a ciência delas, passado a entregar, ele próprio, os convites de casamento (fls. 161), não havendo elemento algum nos autos que noticie que apenas a família da autora teria assumido todas as despesas com o casa-mento. Bem por isso, com elas o requerido aquiesceu, fazendo seu silêncio, diante das circunstâncias do caso, presumir a anuência, a teor do artigo 111, do CC.

Assim, a autora faz jus ao recebimento de metade do valor comprovada-mente gasto, a saber, R$ 4.966,83, com juros de mora e correção monetária a partir do vencimento de cada débito.

2º - Quanto à demanda reconvencionalDesmerece êxito a questão preliminar suscitada pela autora-reconvinda.

Patente o interesse processual, uma vez que, em sede de reconvenção, o réu-re-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 35-40, janeiro-abril/2008

Page 39: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

39

convinte pugnou pela condenação da autora-reconvinda à reparação de danos morais, o que, evidentemente, não poderia ter sido feito no bojo da contesta-ção ofertada, uma vez que esta não possui, no presente caso, caráter dúplice (actio duplex), tampouco pode ser formulado pedido contraposto.

No mérito, desmerece ser acolhida a pretensão do réu-reconvinte. É que toda a causa de pedir fática que perfaz a reconvenção embasa-se em

culpa da autora-reconvinda e de seus genitores pela ruptura do relacionamento outrora existente entre as partes.

Como já reconheci acima, entendo que o réu-reconvinte foi quem deu cau-sa ao cancelamento do casamento, razão pela qual é forçosa a improcedência do pedido reconvencional, prescindindo-se esta de maiores digressões sobre o tema.

Às fls. 122, o réu-reconvinte requer que algumas expressões utilizadas pela autora-reconvinda sejam riscadas dos autos.

De fato, o art. 15, CPC, proíbe que as partes e seus advogados empreguem expressões injuriosas nos escritos apresentados no processo. Se assim o fizerem, permite o dispositivo legal que o juiz mande riscá-las.

Com o escopo de aclararem o dispositivo legal, NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY11 conceituam expressões injuriosas da seguin-te forma:

São as que ofendem a dignidade e o decoro de outrem, que são compo-nentes da honra subjetiva da pessoa. A locução deve ser entendida em seu sen-tido amplo, significando não apenas as que podem, em tese, configurar o crime de injúria (CP 140), mas qualquer expressão aviltante, degradante, licenciosa, de escárnio, indecorosa, de calão.

De fato, com razão o requerido-reconvinte. As expressões mencionadas às fls. 122 são expressões desnecessárias ao deslinde da causa, vindo a extrapolar os limites da defesa dos direitos da parte, de modo a se afigurarem em impres-sões que, externadas, culminam por macular a honra subjetiva do requerido-reconvinte.

Assim, o art. 7º, parágrafo 2º, do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94) deve ser interpretado em cotejo com o art. 15, CPC. Se, por um lado, as injúrias e difama-ções praticadas no exercício da atividade de advogado não podem ser puníveis, por outro, é imperioso que aludidas expressões não permaneçam nos autos, devendo este Juízo zelar pela urbanidade nos atos processuais, razão pela qual as expressões apontadas às fls. 122 devem ser riscadas dos autos.

Ao final, a autora-reconvinda, às fls. 114, pugnou pela condenação do réu-reconvinte às penas de litigância de má-fé, por supostamente serem suas alega-ções totalmente infundadas.

Não vislumbrei qualquer excesso. Ao revés do que alega a autora-recon-vinda, as alegações apontadas em reconvenção somente não foram acolhidas porque assim não pendeu o conjunto probatório. Não entendo haver, pois, qualquer abuso apto a ensejar aludida condenação.

11 NERY JUNIOR, NELSON; NERY, ROSA MARIA DE ANDRADE. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 35-40, janeiro-abril/2008

Page 40: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

40

Conclusões

Em face do exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido da au-tora, a fim de condenar o requerido na reparação do dano moral, no valor de R$ 5.000,00, com juros e correção a partir da presente data e no ressarcimento de danos patrimoniais, no importe de R$ 4.966,83, com juros e correção a partir do vencimento de cada débito.

Em virtude de ter havido sucumbência recíproca, as partes arcarão com as custas e despesas dos atos que deram causa, sendo indevidos honorários advo-catícios sucumbenciais.

Após o trânsito em julgado, proceda o requerido ao pagamento da impor-tância acima, no prazo de 15 dias, sob pena de multa de 10% sobre o valor, nos termos do art. 475-J, CPC.

Ainda, ante o exposto, JULGO TOTALMENTE IMPROCEDENTE o pedido for-mulado em reconvenção, nos termos do art. 269, I, CPC.

Pelo princípio da sucumbência, as custas e despesas processuais devem ser suportadas pelo réu-reconvinte, bem como os honorários advocatícios sucum-benciais, os quais fixo em R$ 800,00, nos termos do art. 20, parágrafo 4º, CPC.

Ainda, determino à serventia que risque as palavras e expressões aponta-das às fls. 122, constantes das fls. 110, 6º parágrafo; 113, 1º e 6º parágrafos e 114, 3º parágrafo.

Valendo-me do permissivo do art. 15, CPC, determino, de ofício, que sejam riscadas as mesmas palavras e expressões também às fls. 122, sob pena de inuti-lidade da medida adotada.

Por cautela, arquivem-se cópias das fls. 110, 113, 114 e 122, no original (sem riscos), em pasta própria, até que haja o transcurso do prazo legal para eventual interposição de recurso ou o julgamento deste.

P.R.I.C.

Maracaí, 9 de julho de 2008.

Thiago Baldani Gomes de FilippoJuiz de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 35-40, janeiro-abril/2008

Page 41: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

41

COMARCA DE SÃO PAULO - SP

Vistos, etc.

OLÍVIA GARCIA DE AZEVEDO ajuizou a presente ação contra SAMCIL – PRÓ-SAÚDE ASSISTÊNCIA MÉDICA LTDA., alegando em síntese:

A autora contratou um plano de saúde com a ré em 5 de novembro de 2002 na categoria MASTER ENFERMARIA;

Em 25 de julho de 2001 sofreu um acidente vascular cerebral hemorrá-gico, seguido de osteomielite, com conseqüente falha óssea na calota cra-niana, necessitando de uma CRANIOPLASTIA com uso de tela de titânio e enxerto ósseo;

A primeira solicitação médica junto à ré para a liberação da guia de aten-dimento (procedimento de cranioplastia) ocorreu em julho de 2004, com libe-ração da guia em setembro de 2004; entretanto, a ré não disponibilizou meios para realização da cirurgia (tela de titânio) e novos exames foram solicitados, sendo expedida uma segunda autorização em setembro de 2006; entretanto, a ré se nega a fornecer o material solicitado pelo médico responsável pelo aten-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Page 42: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

42

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

dimento da autora, consistente na tela de titânio, necessária à reconstrução da calota craniana;

O custeio do tratamento deve ser de responsabilidade integral da ré, re-querendo a sua condenação em obrigação de fazer consistente em suportar integralmente o custo da cirurgia de cranioplastia com tela de titânio e enxerto ósseo, bem como em indenizar a autora dos danos morais suportados que esti-ma em R$ 76.000,00.

A tutela antecipada foi concedida. (fl.57).

Citada, a ré ofereceu contestação às fls. 74/92 rebatendo articuladamente os argumentos da inicial mediante a defesa de legalidade de todas as cláusulas contratuais e postulando pela improcedência da lide, uma vez que disponibilizou à autora o uso de prótese de mamona, apta a substituir a tela de titânio, nos ter-mos do contrato entre as partes que prevê a substituição de enxertos e próteses por materiais nacionais em vez do material importado, no caso a tela de titânio.

Réplica às fls. 160/183. Não houve possibilidade de composição entre os litigantes. É a síntese do necessário.

FUNDAMENTO e DECIDO.

A sentença é antecipada tendo em vista que a questão a ser decidida é ex-clusivamente de direito relativa à análise da cobertura contratual.

Dispensável, portanto, qualquer outra prova testemunhal ou mesmo de-poimento das partes, pois aqui importa apenas o âmbito de interpretação do contrato de seguro saúde.

Da mesma forma é dispensável a prova pericial, visto que não cabe à pe-rícia verificar se a opinião médica que determinou o procedimento cirúrgico mediante uso de tela de titânio era ou não adequada ou se o material poderia ser substituído por similar nacional (prótese de mamona), posto que a opinião médica é questão de ordem subjetiva que não passível de prova pericial, pois não cabe a um perito aquilatar hipoteticamente os vários tipos de procedimen-tos cirúrgicos disponíveis a um mesmo caso, como adiante será explicitado na presente decisão.

A ação é procedente.

A autora na condição de contratante do plano de saúde mantido pela ré submeteu-se a tratamento com médico conveniado pela ré, MIRANDA E AMA-RAL SERVIÇOS MÉDICOS LTDA., com indicação de procedimento cirúrgico de cranioplastia (reconstrução da calota óssea) mediante uso de tela de titânio e enxerto ósseo, especificados no pedido médico de fl. 35, datado de 22 de setembro de 2004. Portanto, o procedimento cirúrgico solicitado por médico conveniado previa a necessidade de uso de tela de titânio no procedimento de cranioplastia, sem indicação de material passível de substituição.

Page 43: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

43

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Dessa forma, parte-se da premissa que o uso da tela de titânio foi deter-minado pelo médico responsável pelo atendimento da autora e fazia parte da escolha do médico responsável para a eficácia do ato cirúrgico de cranioplastia. Trata-se portanto de escolha de procedimento do médico responsável e que não pode ser negada pelo convênio sob o argumento de que existe material similar ou substituto apto a ser utilizado no mesmo procedimento.

Hodiernamente, são inúmeros os materiais que podem ser utilizados na reconstrução da calota óssea, bastando uma breve pesquisa nos sítios disponi-bilizados na internet para se verificar a possibilidade de emprego de técnicas diversas de cranioplastia.

Exatamente por isso é que não cabe ao paciente ou ao plano de saúde a escolha do tipo de material a ser empregado durante o ato cirúrgico, pois – repita-se, até exaustivamente –, trata-se de escolha de tratamento do médico responsável pelo atendimento da paciente.

Na cláusula 20ª, item ‘i’ do contrato celebrado entre as partes, o forne-cimento de próteses importadas está condicionado à inexistência de material nacional, cláusula esta que funda a defesa da ré de que não houve negativa de atendimento, mas apenas fornecimento de material nacional (prótese de mamona).

Sem razão a ré, posto que se trata de materiais que embora tenham a mes-ma funcionalidade no uso de cranioplastia (ambos se destinam à reconstrução da calota craniana), são materiais diferentes quanto à indicação e ao emprego em cada ato cirúrgico, cabendo ao médico responsável pelo tratamento optar pelo material que mais convém ao paciente do ponto de vista de recuperação, eficácia do método, eficácia da prótese, probabilidades de rejeição e outras questões clínicas.

Bem por isso não se pode logicamente afirmar que a tela de titânio e a pró-tese de mamona constituem-se no mesmo tipo de material, mas sim materiais empregáveis numa mesma hipótese cirúrgica. Vale dizer de forma simplista: um veículo de fibra de vidro não pode ser comparado como do mesmo material de um veículo de aço, embora ambos materiais sejam empregáveis na indústria automobilística, existem variantes de desempenho, qualidade, durabilidade e adaptação.

O que se dirá então das várias possibilidades de materiais em próteses ósseas, dentre os quais se destacam a tela de titânio e a prótese de mamona.

Ao discorrer sobre os vários materiais empregáveis nas cranioplastias, OVANDIR BAZAN (in “USINAGEM DE PRÓTESES PARA CRANIOPLASTIA A PARTIR DE IMAGENS TOMOGRÁFICAS”, Ministério da Educação, Universidade Federal do Paraná) afirma:

“Os metais têm sido usados há mais de 30 anos em cirurgia plástica para re-construção de crânio. A biocompatibilidade dos metais implantados é principal-mente determinada por suas propriedades de superfície e resistência à corrosão. Depois do implante, uma camada de óxido rapidamente forma-se na superfície do metal, que determina sua resistência à corrosão e a quantia de óxidos aos tecidos adjacentes. A combinação de corrosão e liberação de íons dos metais podem causar dor e reações localizadas no tecido ao redor do implante, exigin-do sua remoção. Segundo EUFINGER e SAYLOR (2001), o titânio puro ou ligado

Page 44: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

44

tem demonstrado alto grau de biocompatibilidade para as uniões ósseas e metálicas, favorecendo em muito as cirurgias craniomaxilofaciais e ortopé-dicas. Ele é comumente fabricado e disponível clinicamente tanto em titânio puro como em liga com quantias pequenas de outros metais. Por exemplo, Ti6Al-4V (6% alumínio e 4% vanádio), que melhora a tensão do material consideravelmente. O titânio forma uma camada superficial de óxido de ti-tânio que é muito aderente e altamente resistente à corrosão; além disso, a baixa densidade do metal permite ter atenuação mínima em radiografias e inexistência de artefatos em CT ou MRI. Estas propriedades, combinadas com sua resistência, fazem do titânio o melhor metal atualmente disponível para a reconstrução craniofacial.

32 Cfr. LORENZ (2004).” (grifei).

O texto destaca as vantagens da tela de titânio em face da sua biocom-patibilidade, baixa corrosão e fácil aderência com o tecido ósseo, tratando-se de uma das técnicas mais empregadas em cranioplastias. Portanto, a indicação médica feita à autora encontrava-se dentro de parâmetros médicos de utiliza-ção do material (tela de titânio), dentro da compatibilidade e razoabilidade da prescrição médica.

Diferentemente, a prótese de mamona não se constitui de metal, pois se trata de um polímero. Daí porque em não se tratando do mesmo material (metal X polímero), não se aplica à cláusula contratual de substituição do material importado pelo nacional, pois não se trata de material idêntico ou similar.

Destaca-se decisão similar do E. TJRJ:

2007.001.11475 - APELAÇÃO CÍVEL - 1ª Ementa

DES. FERDINALDO DO NASCIMENTO - Julgamento: 24/04/2007 - DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO ORTOPÉDICO. Procedimento ci-rúrgico. Necessidade de implantação de prótese de última geração no joelho da paciente. Exigência feita pelo médi-co quanto à marca e quanto ao fornecedor. Negativa do plano em fornecer o material importado prescrito. Interna-ção condicionada à utilização de prótese nacional similar. Sentença a quo que julgou procedente o pleito autoral, no sentido de compelir a ré a fornecer a prótese indicada pelo profissional, bem como de condená-la ao pagamen-to de danos morais no valor de R$ 4.000,00. Julgamento antecipado da lide na forma do art. 330, I, do CPC. Apelo ofertado pela demandada pugnando pela improcedência do pedido obrigacional. Alegação de ausência da neces-sária prova pericial. Recurso adesivo da autora objetivan-do a majoração da indenização. Desinfluente, in casu, a

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Page 45: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

45

prova pericial pretendida pela ré, vez que os elementos constantes dos autos são suficientemente capazes de em-basar um Juízo de valor, mormente quando a pretensão resistida funda-se na negativa da ré em fornecer a prótese importada de que tanto necessita a autora. Produto que se revela de maior qualidade e durabilidade conforme laudo emitido pelo próprio médico credenciado. Inocorrência do alegado cerceamento de defesa. Quantum moral que deve ser majorado para R$ 8.000,00. RECURSOS CONHECIDOS. DESPROVIMENTO DO PRIMEIRO APELO, DANDO-SE PAR-CIAL PROVIMENTO AO RECURSO ADESIVO.

A doutrina e a jurisprudência adotaram posicionamento pacífico quanto à aplicabilidade plena do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de prestação de serviços na área de saúde, em especial os contratos de seguro saú-de, planos de saúde, contratos de assistência médica e de medicina de grupo.

Tratando-se de contratos de longa duração e sem prazo de vigência defini-do, a formação e execução destes contratos devem se balizar nos princípios nor-teadores da proteção ao consumidor, em especial a vulnerabilidade , a hipossu-ficiência e a boa-fé objetiva, com a finalidade precípua de garantir o equilíbrio entre os contratantes, em especial a divisão objetiva e racional da sinistralida-de, do reajuste dos prêmios e de fim de vínculo.

Conforme preceitua CLÁUDIA LIMA MARQUES12 “Os contratos de planos e seguro-saúde são contratos cativos de longa duração a envolver muitos anos um fornecedor e um consumidor, com uma finalidade em comum, assegurar ao consumidor o tratamento e ajudá-lo a suportar os riscos futuros envolvendo a saúde deste, de sua família, dependentes e beneficiários”.

O objetivo específico com que se lida aqui é a obrigação à qual se vin-cula alguém, de dar cobertura financeira ao tratamento das enfermidades e acidentes físicos e seus respectivos danos sofridos por outrem que, em contrapartida, compromete-se ao pagamento mensal de uma certa quan-tia. Tanto nos “seguros” quanto nos “planos”, trata-se de uma prestação de serviços, securitários ou assemelhados, que configura a RELAÇÃO DE CON-SUMO formada de um lado por um fornecedor de serviços que é a empresa seguradora ou administradora, nos exatos termos do Art. 3º, § 2º do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, e, de outro lado, por um consumidor destinatário final de tais serviços, de acordo com o Art. 2º. Assim, essa rela-ção é regida, prevalentemente, pelas normas do Código de Defesa do Consu-midor, que são de ordem pública e interesse social (Art. 1º), e inderrogáveis pela vontade das partes.

Ora, quem contrata um seguro saúde tem o objetivo primordial de preser-vação da vida e da saúde.

Um contrato não pode prever a preponderância da vontade de um único contratante, até porque as regras ditadas pela ré contrariam o bem comum e a boa-fé objetiva, colocando o contratante do plano em condição de total fragi-lidade contratual.

12 Saúde e Responsabilidade: seguros e planos de assistência privada, e outros, p.117, ED. RT, 1999

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Page 46: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

46

E como o contrato celebrado é de trato contínuo a ele se aplica toda a legis-lação dos planos e seguros de saúde ainda que a legislação lhe seja posterior.

E considerando ainda o princípio da plena informação ao consumidor, o contrato deve ser redigido em cláusulas claras, discriminado de forma específica os procedimentos excluídos da cobertura contratual, a fim de não gerar dúvidas ao consumidor.

Além disso, a exclusão, caso não discriminada, deve ser interpretada restri-tivamente, favorecendo o consumidor.

No caso dos autos, o autor não optou simplesmente por um material impor-tado, a indicação do tratamento foi feita por médico credenciado do convênio.

A saúde é um direito constitucional do cidadão a ser amparado também nos contratos de plano de saúde.

Tratando-se, portanto, de um tratamento coberto pelo plano de saúde (co-locação de prótese), com indicação clínica específica (produto importado), cabe à ré arcar com o próprio risco do negócio, devendo custear o tratamento solici-tado pelo médico do segurado.

PLANO DE SAÚDE – Exclusão de cobertura – Próteses – Hipó-tese em que foram utilizadas molas na embolização de aneu-risma – Impossibilidade de se exigir do consumidor, homem médio, conhecimento de acepções da expressão “prótese” fora das definições comuns – Existência de testemunhos mé-dicos, por outro lado, que declararam que as molas importa-das não são próteses – Pagamento das despesas de interna-ção da autora devido – Recurso da ré não provido. (Apelação Cível n. 316.864-4/6-00 - São Paulo – 1ª Câmara de Direito Privado - Relator: Elliot Akel – 11.11.03 - V.U.)

CONTRATO - Prestação de serviços - Plano de saúde - Cober-tura - Introdução de prótese em cirurgia de quadril - Cirurgia autorizada, excluída a prótese - Inadmissibilidade - Limita-ção que implica a negação de todo o atendimento - Exclusão ofensiva ao direito do autor - Recurso não provido. (Agravo de Instrumento n. 372.438-4/2-00 - São Paulo - 10ª Câmara de Direito Privado - Relator: João Carlos Saletti - 30.08.05 - V.U. - Voto n. 10.107) jbgdj

CONTRATO - Prestação de Serviços - Plano de Saúde - Comi-natória - Necessidade de realização de enxerto ósseo - Ci-rurgia autorizada, mas negado o fornecimento de enxerto ósseo, por ausência de cobertura - Inadmissibilidade - Cir-cunstância em que a limitação implica a negativa de todo o atendimento, porque indissociável a prótese do ato cirúrgico - Exclusão de cobertura ofensiva ao direito do consumidor - Procedência da ação - Sentença mantida - Recurso improvido (Apelação Cível n. 366.933.4/2-00 - São Paulo - 10ª Câmara de Direito Privado - Relator: João Carlos Saletti - 13.12.05 - V.U. - Voto n. 10340) crb

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Page 47: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

47

Configurada a obrigação de fazer consistente no fornecimento do material solicitado, passo a apreciar o pedido de danos morais.

Conforme assevera CARLOS ALBERTO BITTAR FILHO “não há como separar, de modo absoluto, a dimensão estritamente física da meramente psicológica, ou psíquica do homem. A melhor concepção, a nosso ver, é a que considera o ser humano como um todo unitário, ou, em outras palavras, como um comple-xo corpo-mente.(...) Em havendo, pois, agressão à integridade psicofísica, como um todo, ocorre o dano moral, passível de reparação” (Dano Moral nas Rela-ções de Consumo: uma abordagem jurisprudencial, p.75, Ed.Thomson-IOB).

No presente caso não há dúvida de que a integridade psicofísica da autora sofreu um dano em razão da demora da ré em fornecer o material necessário à cirurgia.

A autora sofreu grave lesão que ocasionou falha óssea na calota craniana. Certamente por não ter recursos financeiros para suportar a intervenção cirúrgi-ca, a autora submeteu-se a um período de espera de 24 meses de carência para uso do plano de saúde.

Após submeter-se ao período de carência, a autora teve seu pedido atendi-do por uma guia liberada em setembro de 2004; sem êxito, entretanto, quanto à realização da cirurgia na medida em que a ré não forneceu o material necessário (tela de titânio). Entretanto, não esclarecida de forma suficiente a negativa de atendimento, a autora mais uma vez submeteu-se aos exames solicitados pela ré e novamente postulou a guia de internação, sendo mais uma vez atendida sem êxito, pois se de um lado o plano fornecia a guia da cirurgia, de outro não forne-cia o material adequado.

Evidente que esta longa demora e as sucessivas idas e vindas de pedidos médicos, exames, expedições de guias e, por fim, a frustração final, resultaram em evidente abalo emocional da autora, cujo teor é por si só indescritível para fins de quantificação, exatamente porque se trata de uma dor que somente a autora poderia mensurar.

Este dano moral deve ser indenizado pela ré na medida em que contribuiu positivamente para o prolongamento da angústia e frustração da autora.

O valor estimado pela autora, entretanto, destoa dos parâmetros indeniza-tórios praticados em casos similares.

Vale dizer que ainda que inestimável moralmente o valor da dor, juridica-mente a quantificação leva em conta parâmetros de ordem objetiva.

“(...) Não há critérios objetivos para cálculo da expiação pecuniária do dano moral, que, por definição mesma, nada tem com eventuais repercussões econômicas do ilícito. A indenização é, pois, arbitrável (artigo 1533 do Código Civil) e tem a finalidade de compensar a sensação de dor da vítima com uma sensação agradável em contrário. Assim, tal paga em dinheiro deve representar para a vítima uma satisfação, igualmente moral, ou seja, psicológica, capaz de neutralizar ou anestesiar em alguma parte o sofrimento impingido. A eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar tal satisfação em justa medida, de modo que tampouco signifique um enriquecimento sem causa da vítima, mas está também em produzir, no causador do mal, impacto bastante para dissuadi-lo de novo atentado. Trata-se então de uma estimação pruden-cial” (RT 706, p. 63, citada por MARIA CELINA BODIN DE MORAES in Danos à Pessoa Humana, p. 224, ED. Renovar, grifei)

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Page 48: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

48

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 41-48, janeiro-abril/2008

Bem por isso, fixo o valor da indenização por danos morais em R$ 35.000,00.Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial para: condenar a ré

ao custeio integral relativo ao tratamento da autora, incluindo a tela de titânio e enxerto ósseo e cranioplastia, arcando com todos os custos e pagamentos relativos ao tratamento ministrado à paciente, tornando definitiva a tutela/limi-nar concedida. Por fim, condeno a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 35.000,00, corrigido monetariamente desde a presente decisão e acrescido de juros de mora desde a citação.

Em razão da sucumbência, condeno a ré ao pagamento das custas e des-pesas processuais e honorários advocatícios da parte contrária que fixo em 10% do valor da condenação.

P .R. I. C.

São Paulo, 5 de março de 2008.

Lucília Alcione Prata

Juíza de Direito

Page 49: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

49

2ª VARA CÍVEL DE CATANDUVACOMARCA DE CATANDUVA - SP

Vistos.

Trata-se de ação de cobrança proposta por DURVALINA APARECIDA BRAGA COUTO contra ICATU HARTFOR SERGUROS S/A alegando, em apertadíssima sín-tese, que a autora é beneficiária do seguro de vida que Josué Braga Malheiros fez junto à pessoa jurídica ré. Explica a inicial que o senhor Josué era irmão da requerente e que ele figurou como signatário de avença que beneficiava a au-tora em caso de sua morte.

Na contestação de folhas 93 a 101 a requerida valeu do argumento de que Josué tinha doença preexistente e, com isso, teria razão em concluir pelo não pagamento do prêmio do seguro. Disse que quando da celebração da avença securitária, Josué alegou que se encontrava com saúde, fato considerado inverí-dico pela seguradora e que denotaria má-fé do segurado.

Análise do documento de folha 112 explica qual era a doença preexistente que Josué tinha e que ensejou o não-pagamento do seguro. Josué era portador de Síndrome de Down.

Nas folhas 128 e 129 o feito foi sentenciado.Houve apelação, com as equivalentes contra-razões e o E. Tribunal de Jus-

tiça do Estado de São Paulo entendeu que o julgamento antecipado da lide

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 49-52, janeiro-abril/2008

Sentença. Seguro. Doença preexistente.

Page 50: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

50

cerceou o direito da seguradora de produzir provas a seu favor e comprovar a má-fé do segurado.

Os autos voltaram à origem e aqui houve produção de prova pericial.

Eis o relatório

D E C I D O

Para entender o ponto controvertido desta pendenga, de uma só tacada, basta ler o documento de folha 112. Ali está consignado que

“ConclusãoApós análise de documentos médicos, relatórios familiares e fontes complementares, pode-se concluir que o segurado era portador da Síndrome de Down, que independentemente da existência de qualquer outra doença relacionada, por si só, já constitui uma moléstia de grande relevância e que tem como conseqüência várias doenças degenerativas precoces que li-mitavam severamente a expectativa de vida.Preexistência da moléstia.”

É dizer que, pelo argumento da seguradora ré, Josué era portador de do-ença preexistente (Síndrome de Down) que impediu seus beneficiários de rece-berem o valor do seguro.

O perito do Juízo, nomeado após a advertência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo de que provas deveriam ser produzidas, explica que “baseado nas informações da requerente, análise de prontuário médico do Sr. Josué Braga Malheiros (falecido com 57 anos de idade) por este perito, concluí que o mesmo era portador de Síndrome de Down constatada nos primeiros anos de vida (doença genética, portanto, congênita) com suas respectivas ca-racterísticas e que apresentou os primeiros sintomas das patologias associadas a essa Síndrome a partir de 2/6/1999” (fl. 224)

Forte nestes dizeres a seguradora ré disse em suas finais alegações que “conforme restou amplamente caracterizado nos autos, o falecido segurado era portador de Síndrome de Down e se encontrava gravemente doente quando da contratação do seguro, fato intencionalmente omitido no preenchimento da Declaração Pessoal de Saúde (DPS)” (fl. 265).

Pois bem, mesmo diante de todo o quadro ora engendrado, a ação proce-de e a seguradora tem o dever de pagar o valor do contrato à autora.

Entendo que o fato de Josué Braga ser portador de Síndrome de Down não justifica, em absoluto, a alegação de que esta alteração genética presume que Josué agiu de má-fé no momento de firmar o contrato.

Impende observar que este caso beira as discussões de eugenia e que não pode ser analisado se não ao lado dos princípios norteadores da bioética.

O laudo pericial deixa claro que a Síndrome de Down, ou trissomia do par de cromossomos 21, é de longe o mais bem conhecido dos distúrbios cromossômicos e a causa genética isolada mais comum de retardo mental moderado. Cerca de 1 criança em 800 nasce com Síndrome de Down, e entre os nativivos ou fetos de mães com 35 ou mais anos de idade a taxa de incidência é bem mais alta” (fl. 222).

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 49-52, janeiro-abril/2008

Page 51: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

51

Ora, esse pequeno trecho excerto da análise pericial deixa claro que a Sín-drome de Down é doença de origem genética. Isso é suficiente para demons-trar que Josué nasceu assim e isso faz com que a síndrome que portava não se enquadre no conceito de doença preexistente apta a afastá-lo do direito de contratar seguro de vida.

Sim, porque ter três pares de cromossomos 21 (Síndrome de Down) era a condição humana de Josué e não uma doença que adveio após seu nascimento e antes da assinatura da apólice (doença preexistente).

Assim era Josué, com sua composição genotípica e fenotípica, com seus inúmeros cromossomos, dentre os quais os três de número 21 que formavam seu genoma.

Dar respaldo à teoria da seguradora, de que ter Síndrome de Down é ter doença preexistente, e que a não-informação disso denota má-fé, é abrir flanco para que em futuro muito próximo se incentive a análise da condição genética do indivíduo, talvez ainda dentro do útero, para decidir se sua condição genéti-ca indica aptidão para exercício dos direitos inerentes ao ser humano.

Enfim, dar respaldo à teoria da seguradora é trazer de volta idéias de Lom-broso (criminoso nato) e Huxley (Admirável Mundo Novo).

Eis os fundamentos bioéticos para dar procedência à ação. E não se diga que esses fundamentos são totalmente desprovidos de cono-

tação jurídica, porque acreditar nisso seria descurar que o direito nasceu para a vida e não a vida para o direito.

Mas, para que não se alegue que fundamentos de bioética isolados não são idôneos pra fundamentar o decisum, há fundamentos de cunho exclusivamente jurídicos para sustentar o veredicto. Vejamos.

O documento de folha 10 deixa claro que não foi Josué quem preencheu a apólice de seguro, afinal Josué era analfabeto, o que se comprova pela impres-são de sua digital no campo de assinatura do segurado principal. Presume-se que a apólice foi preenchida por ADEMAR GAGLIANO, corretor de seguros cujo nome consta do mesmo documento.

Ora, o tal corretor sabia que Josué era portador da Síndrome de Down e ainda assim atestou que ele encontrava-se em perfeitas condições de saúde (fl. 10).

Como afirmar que o corretor sabia que Josué era portador da tal síndro-me de trissomia no cromossomo 21? Ora, na perícia, o expert do Juízo deixa claro que a “olho nu” seria possível esta constatação. Ali ele afirma que “para detectar tal anomalia não se faz necessário maiores conhecimentos, pois a anomalia apresenta características físicas bastante conhecidas pelas pessoas de modo geral.

Assim, cai por terra toda e qualquer alegação de má fé do signatário Josué ou de pessoas de sua família. Se houve má-fé, ela partiu do corretor que, vendo a condição de Josué, preferiu imprimir marcha na assinatura do contrato, deixar que a seguradora recebesse todas as parcelas do prêmio e, depois, no momento dos beneficiários receberem o valor, jogar nas mãos da seguradora a análise da possibilidade de recebimento do devido.

Em suma, se houve má-fé, ela partiu de preposto da seguradora e ela, indi-retamente, por culpa in eligendo, aderiu a esse ato.

Apesar de que, pela tese esposada acima, entendo que sequer o corretor agiu de má-fé, mas sim que ele também não entendeu que portar a Síndrome de Down seria fundamento idôneo para negar suas perfeitas condições de saúde (fl. 10)

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 49-52, janeiro-abril/2008

Page 52: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

52

Vale ressalva de que o Magistrado é o perito máximo do processo e, como tal, refuto com veemência a consideração do perito judicial de que “a doença que o Sr. Josué portava irremediavelmente o levaria a óbito.” Ora, a atividade do perito nestes autos é médica ou de vidência?

Será que Josué não poderia morrer atropelado, ferido à bala, engasgado com a comida, dentre tantas outras intercorrências que a vida nos submete? Ou será que sua condição de portador da Síndrome de Down lhe deu prerrogativa de aguardar incólume a esses fatos até que a tal síndrome o matasse?

Evidente que o perito foi além do que lhe permite sua ciência. Ne sutor ultra crepidam.

Ademais, não olvido que o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo mandou que os autos voltassem à origem para que a seguradora tivesse como comprovar a má-fé com que supostamente agiu o segurado. Pois bem, os autos voltaram, foi feita perícia, ela constatou que Josué era portador de Síndrome de Down e isso, por si só, a meu critério, não prova qualquer má-fé do segurado. Mesmo porque a prova pericial é objetiva, enquanto a ma-fé tem genealogia subjetiva e, neste caso, a primeira não demonstrou a segunda.

Isso pra não dizer que a prova da má-fé deve ser cabal, o que não se viu neste caso. É o que diz a jurisprudência.

“O contrato de seguro de vida submete-se às regras de proteção do Código de Defesa do Consumidor. A boa-fé do segurado é presumida, cabendo ao segu-rador provar cabalmente a eventual má-fé do segurado. Ao dispensar o exame médico prévio a seguradora assume automaticamente o risco. O artigo 1544 do Código Civil/1.916, apenas se aplica na ocorrência de crime” (2º TACIL, 3ª Câm., Apel. c/ Revisão nº 651838-9/9 – Itapeva, rel. Juiz Ferraz Felisardo, j. 18/11/03 – destaques não são do original).

Logo, por todo o que foi acima expendido entendo que a ação é proceden-te porque (i) Síndrome de Down não é doença preexistente, nos termos consi-derados pela seguradora, (ii) não houve a propalada má-fé do segurado e (iii) a informação de boa saúde do segurado, atestada na apólice de seguro, firmada pelo corretor, é presunção de boa-fé do segurado no caso de doença aparente, como é a Síndrome de Down.

Pelo exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido da autora e CONDENO a segu-radora requerida ICATU HARTFOR SEGUROS S/A a pagar integralmente o segu-ro de vida de Josué Braga Malheiros à autora DURVALINA APARECIDA BRAGA COUTO, no valor de R$ 50.000,00, devidamente corrigido e com incidência de juros legais desde a citação. Extingo o processo COM ANÁLISE DO MÉRITO, forte no artigo 269, I do Código de Processo Civil.

Condeno ainda a seguradora a pagar custas e despesas processuais e tam-bém verba de sucumbência no valor de 15% do valor da condenação, devida-mente corrigido, com fulcro no artigo 20, §4º do Código de Processo Civil.

PRIC.Catanduva, 3 de abril de 2008.

Leonardo GreccoJuiz Substituto

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 49-52, janeiro-abril/2008

Page 53: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

53

3ª VARA CRIMINAL DE ARAÇATUBACOMARCA DE ARAÇATUBA - SP

Vistos.

SEBASTIÃO CAETANO MOTA, qualificado nos autos, foi denunciado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo como incurso no artigo 306, da Lei nº 9.503/97, sob a acusação de que, no dia 15 de dezembro de 2006, por volta das 16h50min, no cruzamento da Rua Amador Bueno com a Rua Montese, Bairro Aclimação, nesta cidade e comarca, conduziu o veículo automotor Ford Fiesta, cor vermelha, placas CMX-7996-Araçatuba-SP, em via pública, sob a influência de álcool, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem ao desobedecer sinal de parada obrigatória, interceptando a trajetória da motocicleta Honda CG 150 Titan, conduzida por André Felipe Batista da Silva, provocando acidente de trânsito do qual resultaram ferimentos em André (fls. 01/04-D).

Denúncia recebida, o réu foi citado, interrogado e apresentou defesa prévia.

Durante a instrução foram ouvidas três testemunhas de acusação.

Em alegações finais, o Ministério Público requereu a procedência da ação penal com a condenação do réu nos termos da denúncia.

A Defesa, por sua vez, pediu a absolvição argumentando ser a prova insu-ficiente à condenação.

É o relatório.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 53-56, janeiro-abril/2008

Page 54: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

54

Decido

A acusação é improcedente porque o fato apurado não constitui infração penal.

O crime de embriaguez ao volante era previsto no art. 306, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) com a seguinte tipificação:

“Art. 306 - Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumi-dade de outrem:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

Doutrina e jurisprudência, em sua maioria, reconheciam a ocorrência do delito quando o agente conduzia o veículo automotor em via pública de forma anormal, gerando perigo de dano, estando sob a influência de álcool ou subs-tância de efeitos análogos.

Com relação ao elemento do tipo “sob a influência de álcool” admitia-se a constatação da embriaguez, por assim dizer, mediante o exame de sangue (des-de que a quantidade de álcool no sangue ficasse igual ou acima de 0,6 decigra-mas por litro), exame clínico, perícia ou por qualquer prova em direito admitida, consoante o art. 277 e parágrafos do Código de Trânsito Brasileiro.

Com a publicação da Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, que entrou em vigor na data de sua publicação, houve sensível modificação quanto ao delito de embriaguez ao volante e o art. 306 do CTB passou a ter a seguinte redação:

“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com con-centração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Houve modificação também dos arts. 165, 276 e parágrafos do art. 277, do CTB, que passaram a ter a seguinte redação:

“Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substân-cia psicoativa que determine dependência:

Infração - gravíssima; Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12

(doze) meses; Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condu-

tor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

III - o art. 276 passa a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.

Parágrafo único. Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.” (NR)

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 53-56, janeiro-abril/2008

Page 55: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

55

IV - o art. 277 passa a vigorar com as seguintes alterações:

§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admi-tidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresenta-dos pelo condutor.

§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabeleci-

das no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qual-quer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.” (NR)

Ante a nova disciplina legal da embriaguez ao volante há que se distinguir, como dantes, a situação de embriaguez para fins administrativos (imposição de multa, pontuação e suspensão do direito de dirigir) da embriaguez que carac-teriza, também, crime.

A aplicação de testes de alcoolemia (uso de etilômetro), exame clínico e outras provas em direito admitidas serão suficientes à caracterização da infração administrativa do art. 165, vez que a nova redação do art. 276 dis-põe que qualquer concentração de álcool por litro de sangue já caracteriza a infração de trânsito do art. 165, sujeitando o condutor às penalidades admi-nistrativas de multa, pontuação e suspensão do direito de dirigir pelo prazo de 12 meses.

Vale dizer, se o condutor apresenta sinais visíveis de embriaguez consta-táveis por exame clínico ou testemunhal, por exemplo, presume-se tenha ele qualquer concentração de álcool por litro de sangue configurando a infração administrativa do art. 165, c.c. 276 e 277, do CTB.

Ocorre que, em sede de Direito Penal, a presunção mencionada no pará-grafo anterior é inadmissível em face do Princípio da Legalidade, pena de res-ponsabilização criminal objetiva.

Pois bem, o crime do art. 306, do CTB, por força da nova redação determi-nada pela Lei nº 11.705/08 exige-se, além da condução de veículo automotor em via pública, que o condutor esteja com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas.

Em outras palavras, a concentração de álcool no sangue na proporção de 6 decigramas por litro passou a ser elemento técnico do tipo e, segundo pen-samos, a constatação dessa proporção só pode ser feita mediante exame de sangue (único apto e preciso).

A aplicação de testes de alcoolemia (uso de etilômetro), exame clínico e outras provas em direito admitidas, segundo pensamos, não serão suficientes à caracterização do tipo penal porque não fornecem, com a precisão e rigidez que a Lei Penal exige (Princípios da Legalidade e, corolário, Tipicidade), a quantida-de exata da concentração de álcool por litro de sangue imposta pelo novo tipo criminoso (0,6 decigramas ou superior).

Na espécie, o delito descrito na denúncia ocorreu sob a égide da antiga reda-ção do art. 306, do CTB, quando se exigia apenas a condução de veículo automo-tor em via pública sob a influência de álcool, constatada esta por exames clínicos ou outra prova em direito admitidas, somada à condução anormal do veículo.

In casu, foi realizado apenas o exame clínico (fls. 07) o qual não fornece o elemento técnico do tipo penal do art. 306, do CTB, que agora se exige pela

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 53-56, janeiro-abril/2008

Page 56: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

56

nova redação do dispositivo levada a efeito pela Lei nº 11.705/08, qual seja, a concentração de álcool no sangue na proporção de 6 decigramas por litro.

Em outras palavras, não há como se saber se o réu conduzia o veículo au-tomotor pela via pública com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, de modo que o fato descrito não se encaixa na nova descrição do crime a qual, nesse aspecto, constitui norma penal mais benéfica em relação àquele condutor contra quem não há perícia sanguínea comprovando a quantidade de álcool por litro de sangue, retroagindo, portan-to, na forma do parágrafo único do art. 2º do Código Penal.

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a acusação para ABSOLVER o réu SEBASTIÃO CAETANO MOTA, qualificado nos autos, da imputação que lhe foi feita da denúncia, com fundamento no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

P.R.I.C. Araçatuba, 11 de julho de 2008.

Adeilson Ferreira Negri Juiz de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 53-56, janeiro-abril/2008

Page 57: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

57

12ª VARA DA FAZENDA PÚBLICACOMARCA DE SÃO PAULO - SP

Vistos.

ANA CONCEIÇÃO LANCAS, LUCI BORGES ALVES, IGNEZ CRUZ GARCIA, OLINDA DE OLIVEIRA ZAMBALDI, ANA CONCEIÇÃO LANCAS, DIONIZIA MOTTA, OLINDA ROLIM DE MOURA PRÍNCIPE COELHO, HOSANA TEREZINHA REIS, TEREZA DE FÁTIMA RIBEIRO BOTEJARA e OLEGNA LÚCIA CAVALHEIRO MAZZA, qualificados nos autos, propuseram a presente Ação Condenatória, sob o rito ordinário, em face da FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, argüindo, em síntese, que são servidores públicos e percebem a vantagem da sexta-parte. Por entenderem que a ré não está obedecendo ao preceituado no art. 129 da Constituição Estadual pretendem a sua condenação a fim de que proceda ao correto cálculo do referido adicional, que deverá incidir sobre os vencimentos integrais, abrangendo todas as vantagens pecuniárias, e pagando as diferenças vencidas e vincendas, com juros e correção monetária.

Juntaram, com a inicial, procuração e documentos de fls. 11/71.

É o relatórioDecido

Passo ao imediato julgamento do feito, com dispensa da citação, nos ter-mos do que estabelece o art. 285-A, do Código de Processo Civil, introduzido pelas Leis ns. 11.187, 11.232, 11.276, 11.277 e 11.280, posto cuidar-se de caso idêntico a outros anteriormente conhecidos e julgados improcedentes, bem como por envolver matéria, unicamente, de direito.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 57-60, janeiro-abril/2008

Page 58: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

58

Trata-se de ação promovida por servidor público que pretende o recálculo de seus vencimentos a fim de que a sexta-parte incida sobre todas as vantagens pecuniárias.

Dispõe o art. 129 da Constituição Estadual que: “Artigo 129 - Ao servidor estadual é assegurado o percebimento do adicional por tempo de serviço, con-cedido no mínimo por qüinqüênio, e vedada sua limitação, bem como a sexta-parte dos vencimentos integrais, concedida aos 20 anos de efetivo exercício, que se incorporarão aos vencimentos para todos os efeitos, observado o disposto no art. 115, XVL desta Constituição.“

A questão não é nova no que tange ao pedido de cálculo de sexta-parte sobre os vencimentos integrais.

Incumbe, todavia, analisar o exato sentido e alcance da expressão “venci-mentos” para fins de definir-se a sua aplicação.

Sabe-se da diferenciação doutrinária existente entre a palavra “vencimen-to”, no singular, que equivale ao padrão, e “vencimentos”, no plural, que equi-vale ao padrão mais as vantagens pecuniárias.

Contudo, os legisladores constituintes são pessoas eleitas pelo povo, que exerciam diferenciadas profissões em sua vida privada. Por isso, muitas vezes, não conhecem e não utilizam a linguagem técnica do Direito ao elaborarem um texto legal. Daí porque as leis devem ser interpretadas para fins de se dar a sua correta aplicação.

No caso, a mera interpretação gramatical do texto constitucional paulista não é a que melhor reflete a “mens legislatoris”.

A sexta-parte foi instituída pela Lei n° 6.043/61 e assegurada pela Constitui-ção Estadual de 1967 (art. 92, inciso. VIII) as quais expressamente estabeleciam que os qüinqüênios e a sexta-parte dos vencimentos integrais incorporar-se-iam aos vencimentos para todos os efeitos.

Assim, foi estabelecida uma forma de cálculo cujos índices decorriam da incidência cumulativa em sua aplicação, em recíproca e sucessiva incidência.

Tal procedimento gerou os chamados “marajás”, em razão do denominado “efeito cascata” que este cálculo proporcionava, já que permitia a incidência de adicionais sobre adicionais, sobre sexta-parte e os qüinqüênios e sobre as demais vantagens pecuniárias.

Isto provocou uma reação na opinião pública em razão da imoralidade e indignação que tais fatos causavam e tomou tal proporção que, na Constituição Federal de 1988, foi expressamente expungida de nossa legislação.

Assim, estabeleceu-se no art. 37, inciso XIV, da Constituição Federal que: “os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão compu-tados nem acumulados, para fins de concessão de acréscimos ulteriores sob o mesmo título ou idêntico fundamento”.

Dessa forma, visou o legislador constituinte acabar com os chamados “marajás”, proibindo terminantemente o cálculo dos acréscimos de forma cumulativa.

E, premidos pela opinião pública, a vontade do legislador em fazer com que tal regra fosse aplicada de imediato fez com que se estabelecesse no art. 17, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que todos os venci-mentos, remunerações, vantagens, adicionais e proventos da aposentadoria que estivessem sendo percebidos em desacordo com a Constituição Federal, fossem imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admi-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 57-60, janeiro-abril/2008

Page 59: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

59

tindo a invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.

Logo, ficou claro que o legislador constituinte, de forma induvidosa, pre-tendeu extirpar as aberrações dos estipêndios na forma de “cascata”.

No mesmo sentido dispôs o art. 115, inciso XVI, da Constituição Estadual.

E, finalmente, após muitas controvérsias sobre a interpretação legal do art. 129, da Constituição Estadual, ora invocado, com decisões contrárias ao texto constitucional, promulgou-se a Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, que em seu art. 30 alterou a redação do art. 37, inciso XIV, da Magna Car-ta, para deixar mais explícita a vontade do legislador constituinte originário.

Tal texto expressamente estipulou em seu inciso XIV que “os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumu-lados para fins de concessão de acréscimos ulteriores.”

Por tal redação se confirma que o invocado art. 129, da Constituição Esta-dual, ao conceder a sexta-parte dos vencimentos integrais, expressamente exce-tuou a hipótese prevista no inciso XVI do art. 115.

Logo, da interpretação sistemática e histórica do referido artigo constitu-cional, extrai-se claramente que o legislador, ao utilizar a expressão “vencimen-tos integrais”, refere-se ao padrão, mas não ao padrão somados às vantagens pecuniárias.

Assim, a expressão “vencimentos” contida naquele artigo constitucional não equivale, de forma alguma, ao seu significado doutrinário.

Logo, percebe-se que após o advento das novas Constituições Federal e Estadual, não é possível dar-se ao texto do art. 129 qualquer interpretação que, de forma direta ou indireta, descumpra a expressa vedação constitucional.

O recálculo pretendido pelos autores, no caso, é uma dessas formas, já que, se consideradas todas as vantagens pecuniárias para fins de incidência da sexta-parte, a toda evidência se estarão computando os acréscimos pecuniários e acumulando-os, o que, fatalmente, ensejará “repique”.

Logo, o pedido dos autores não encontra amparo constitucional, posto que a Administração Pública, com base no que dispuseram a Constituição Federal e a Constituição Estadual, de modo correto, vem efetuando o cálculo do adicional da sexta-parte.

Assim, não há o que se reparar na atitude da ré, improcedendo a ação.

Isto posto, por estes fundamentos e mais que dos autos consta, JULGO IM-PROCEDENTE a presente ação promovida em face da ré e extinto o feito com julgamento do mérito, com fundamento no art. 269, inciso I, do Código de Pro-cesso Civil.

Finalmente, indefiro o pedido de diferimento por falta de amparo legal, uma vez que o art. 8°, parágrafo único, da Lei n. 11.608/03 cuida apenas da hi-pótese em que o valor da causa seja majorado, o que não é o caso dos autos.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 57-60, janeiro-abril/2008

Page 60: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

60

Os autores arcarão com o pagamento das custas processuais, sendo inde-vida a condenação em honorários advocatícios por cuidar-se de julgamento de plano da ação.

São Paulo, 8 de junho de 2006.

Silvia Maria Meirelles Novaes de AndradeJuíza de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 57-60, janeiro-abril/2008

Page 61: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

61

COMARCA DE SÃO PAULO - SP

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Embargos Infringentes nº 955.049-1/5, da Comarca de São Paulo, sendo Embargante MITSUI SUMITOMO SEGUROS S/A e Embargada CRISTIANE APARECIDA NICOLETTI.

ACORDAM, em 28ª Câmara “B” de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, negar provimento ao recurso.

Trata-se de embargos infringentes interpostos pelo réu contra o respeitá-vel acórdão de fls. 117/123, o qual, por maioria de votos, deu parcial provimento à apelação do segurado e condenou a seguradora na cobertura respectiva. Ale-ga a embargante nas razões recursais que há menção expressa à cláusula nº 502 na proposta de seguro de fls. 69. Reitera a assertiva de que a não-instalação do equipamento de segurança no veículo gera a perda da cobertura.

O recurso é tempestivo e foi respondido.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 61-62, janeiro-abril/2008

Acórdão. Embargos infringentes. Alegaçãode perda da cobertura pela não-instalação

Page 62: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

62

É o relatório

A divergência se restringe à legalidade ou não da perda da cobertura de seguro, a partir da ausência de instalação de equipamento antifurto no veículo, exigência prevista na cláusula 502 do Manual do Usuário (fls. 20 dos autos, pág. 30 do Manual.

Respeitado o entendimento divergente, tenho que a razão permanece com a maioria do v. acórdão embargado.

A singela menção ao número 502, constante da apólice de fls. 69, é total-mente ineficaz e em nada observa o dever de informação previsto no Código de Defesa do Consumidor (artigos 6º, inciso III e 46 do CDC).

Até mesmo por se tratar de cláusula restritiva, deveria estar expressamente redigida na própria apólice ou na proposta de seguro, com o devido destaque (artigo 54, § 4º do CDC). Insuficiente a singela referência ao número 502, sem qualquer outro esclarecimento.

No caso, pela ausência de informação necessária ao consumidor, a cláusula é ineficaz.

Em verdade, mesmo que assim também não o fosse, o certo é que, sob qualquer aspecto, a cláusula contratual que obriga o segurado a instalar equi-pamento antifurto no veículo segurado, sob pena de perda da cobertura, é ma-nifestamente desproporcional e nula de pleno direito.

Nesse diapasão, o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso IV, comina de nulidade absoluta “as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações iníquas, abu-sivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam in-compatíveis com a boa-fé ou eqüidade”. O § 1º, inc. III, do mesmo dispositivo legal, estabelece que “se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares do caso”.

Mencionados dispositivos legais são inteiramente aplicáveis ao caso, reco-nhecendo-se não só a ilegalidade da exigência ora combatida, como também a sua abusividade e manifesta desproporcionalidade, com inobservância da legis-lação consumerista.

Outrossim, fica a ressalva de que o 3º Juiz, prolator do voto originaria-mente vencido, retifica aquele entendimento e passa, igualmente, a endossar o entendimento majoritário.

Neste contexto, impositiva a cobertura do valor segurado.

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso interposto.

Participaram do julgamento os Juízes ALCIDES LEOPOLDO E SILVA JUNIOR, MAURÍCIO BOTELHO SILVA, FABIO HENRIQUE PRADO DE TOLEDO e PAULO FUR-TADO DE OLIVEIRA FILHO.

São Paulo, 20 de maio de 2.008.

Rodrigo Marzola ColombiniRelator

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 61-62, janeiro-abril/2008

Page 63: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

63

1ª VARA CUMULATIVA DE JABOTICABALCOMARCA DE JABOTICABAL - SP

Requerente: Ministério Público do Estado de São Paulo Requeridos: Auto Posto S. Gomes Ltda. e outros

I - RelatórioO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO ajuíza ação civil pública

contra todos os Postos revendedores de combustíveis da cidade de Jaboticabal, a saber: AUTO POSTO S. GOMES LTDA., POSTO BEIRA RIO JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO BARBIERI LTDA. (matriz), AUTO POSTO BARBIERI LTDA. (filial), AUTO POSTO NOVA JAT, GERALDO CANDELORO (POSTO PETROBRÁS), POSTO JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO PACÍFICO LTDA., AUTO POSTO SHANGRILÁ LTDA., J. ARAÚJO & CARVALHO LTDA. (AUTO POSTO PINHEIROS), COOPERA-TIVA DOS PLANTADORES DE CANA DA ZONA DE GUARIBA, D.B. AUTO POSTO LTDA. (POSTO LÍDER), VALCIR ALEXANDRE BATISTA & FILHOS LTDA., AUTO POS-TO 15 DE NOVEMBRO DE JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO MARGINAL LTDA., AUTO POSTO GUANABARA LTDA., BIANCHI AUTO POSTO LTDA., AUTO POSTO JF BARATELA & BARATELA LTDA., AUTO POSTO 147 LTDA., e BIANCHI & NASCI-MENTO AUTO POSTO LTDA.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 64: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

64

Relata o Ministério Público que os revendedores de combustíveis da cidade de Jaboticabal estariam vendendo combustível (principalmente álcool e gasolina) a preços excessivos, quando comparados a postos de outras cidades da região, que trabalham em condições praticamente idênticas de custo e preço. Em outras palavras, os preços praticados em Jaboticabal seriam os mais altos da região.

Segundo o Ministério Público, de meados de 2005 a janeiro de 2006, os pre-ços praticados em Jaboticabal estariam 11% maiores que os de outras cidades da região para o álcool, e 7% maiores para a gasolina. Com isso, os proprietá-rios de postos de combustíveis estariam obtendo lucros elevados, em prejuízo patrimonial ao consumidor. Além disso, estariam praticando “Cartel”, ou seja, estabelecendo “acordos para alinhamento de preços”, de modo a retirar do consumidor a opção de escolha. Essa atitude redundaria em dano moral aos consumidores (insegurança coletiva; sentimento de abandono e impotência; descrédito nas instituições). No dia-a-dia do consumidor, estes sentimentos se traduziriam em irritação, insatisfação e diminuição do bem-estar.

Argumenta ainda o Ministério Público que a conduta dos revendedores de combustíveis de Jaboticabal estaria contrária ao princípio saudável da livre concorrência, em evidente prejuízo ao consumidor.

Com fundamento nos artigos 127, “caput”, e 129, incisos II e III, da Consti-tuição da República; nos artigos 186 e 942 do CC, na Lei nº 8.884/94, artigos 20, III, e 21, XXIV, parágrafo único, e no Código de Defesa do Consumidor, artigos 6º, IV e VI, 39, V e X, e 51, IV e § 1º, III, o Ministério Público requer a condena-ção dos requeridos ao cumprimento de obrigação de não fazer, consistente em não mais praticarem os preços dos combustíveis (gasolina, álcool e óleo diesel) em “números iguais ou com variações econômicas insignificantes”, e acima dos preços dos produtos ou serviços similares em mercados competitivos compará-veis da região, tendo como parâmetros os limites dos preços praticados pelos Postos das cidades de Monte Alto, Itápolis, Bebedouro, Ribeirão Preto, Matão, São Carlos e Franca-SP, sob pena de pagamento de multa diária em 100 (cem) salários mínimos. Requer, ainda, a condenação dos requeridos no pagamento de indenização por danos morais aos consumidores, em R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para cada um. A indenização seria recolhida em favor do Fundo Estadual Especial de Despesa de Reparação dos Interesses Difusos Lesados (artigo 13 da Lei 7347/85). Pleiteou a concessão de liminar, no que se refere à obrigação de não fazer, além da quebra do sigilo fiscal dos requeridos.

As partes foram convocadas para audiência de tentativa de conciliação, que resultou na suspensão do processo por 60 (sessenta) dias, para juntada de documentação e análise da situação contábil das empresas rés – fls. 458 verso e 466/471.

As rés foram todas citadas. Não contestaram o AUTO POSTO S. GOMES LTDA. e o AUTO POSTO 147 LTDA.

Entre os contestantes, o AUTO POSTO JF BARATELA & BARATELA LTDA. argüiu preliminar de ilegitimidade passiva de parte ad causam, dizendo que estaria na inatividade no período no qual teria ocorrido o alinhamento de pre-ços para majoração. Diz que estaria sem licença para funcionamento, e que a rodovia na qual está instalado foi interditada, impossibilitando o funcionamen-to. Diz que nunca participou de qualquer acordo ou reunião para fixação de preços, mesmo porque está localizado fora do perímetro urbano. Que nunca teve intenção de dominar o mercado ou de eliminar a concorrência, e que não é

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 65: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

65

somente o preço de venda dos produtos que determina o lucro. Por fim, diz que não participou da reunião com o MP realizada para instrução do Inquérito Civil, e que as planilhas juntadas no IC não mencionam (nem poderiam mencionar) os preços praticados por ela – fls. 518/526.

O POSTO BEIRA RIO JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO BARBIERI LTDA. (matriz), AUTO POSTO BARBIERI LTDA. (filial), AUTO POSTO NOVA JAT, GERAL-DO CANDELORO (POSTO PETROBRÁS), POSTO JABOTICABAL LTDA., AUTO POS-TO PACÍFICO LTDA., AUTO POSTO SHANGRILÁ LTDA., J. ARAÚJO & CARVALHO LTDA. (AUTO POSTO PINHEIROS), D.B. AUTO POSTO LTDA. (POSTO LÍDER), VAL-CIR ALEXANDRE BATISTA & FILHOS LTDA., AUTO POSTO 15 DE NOVEMBRO DE JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO MARGINAL LTDA., AUTO POSTO GUANA-BARA LTDA., BIANCHI AUTO POSTO LTDA., e BIANCHI & NASCIMENTO AUTO POSTO LTDA., depois de elaborarem histórico acerca do mercado de combus-tíveis no País, argúem preliminares de falta de interesse processual, impossi-bilidade jurídica do pedido, ilegitimidade de partes ativa e passiva ad causam, e inadequação da via eleita. Afirmam litisconsórcio necessário entre o Minis-tério Público e a ANP, e formulam a denunciação da lide às distribuidoras de combustíveis. Quanto ao mérito, depois de analisar as planilhas e documentos apresentados, afirmam, em síntese, o seguinte: 1) Que depois da abertura de mercado para os combustíveis, os preços de custo e as margens de lucro na venda de álcool e gasolina ficaram à mercê das distribuidoras (os postos de venda seriam consumidores primários, e os compradores no varejo consumido-res secundários). As margens de lucro seriam ínfimas. 2) As planilhas juntadas não dariam condições para se saber se houve a prática de preços abusivos ou de Cartel. Não haveria planilhas unificadas de receita e despesa. Além disso, o preço do óleo diesel não teria sido incluído nas planilhas, sendo que estes também influiriam na complexa formação dos preços, assim como o alto custo do empreendimento; 4) Não haveria prova de acordo expresso entre as rés para alinhamento de preços; 5) Que os preços semelhantes teriam origem no comportamento natural do mercado, sendo reflexo da aversão à guerra de preços; 6) O próprio mercado de combustíveis apresentaria características favoráveis ao aparecimento de práticas anticompetitivas, o que geraria maior possibilidade de semelhança nos preços; 7) Que não haveria dano algum, mes-mo porque, não haveria forma de quantificá-lo. 8) Que as rés sempre pauta-ram sua conduta pelo cumprimento da lei, e que têm relevante função social. Além disso, o comércio com intuito de lucro seria permitido por lei, e também outros segmentos empresariais praticariam preços semelhantes; 10) Por fim, diz que a condenação das rés conforme proposição do Ministério Público re-dundaria na imposição de dupla penalidade – fls. 553/643.

A Cooperativa dos Plantadores de Cana da Zona de Guariba – COPLANA – apresenta contestação nas fls. 831/859, argüindo preliminares de inépcia da inicial por ausência de causa petendi, falta de interesse processual e ilegitimi-dade de parte passiva ad causam, além de impossibilidade jurídica do pedido. Quanto ao mérito, argumenta, em síntese o seguinte: 1) Que pratica preços de acordo com suas necessidades comerciais, e que o Ministério Público não teria apresentado sequer indícios do que alega (existência de acordo e majoração ali-nhada dos preços) ; 2) Que não visa ao lucro, mas apenas atender aos interesses dos cooperados; 3) Que o alinhamento eventual de preços reflete um compor-tamento natural do mercado; 4) Que as próprias planilhas juntadas pelo Minis-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 66: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

66

tério Público demonstrariam que não há preços abusivos, tampouco formação de Cartel. No mais, traz argumentos na mesma linha das demais rés, requerendo a extinção ou improcedência da ação. Frisa que a ação tem por fundamento o mero apelo popular, sem fulcro nas questões minuciosas que envolvem a maté-ria, e que os danos não estariam comprovados. Por fim, argumenta que a ação reflete ingerência indevida do Estado na atividade privada, o que contraria o disposto na Lei 9478/97.

O Ministério Público apresenta réplica, pugnando pelo afastamento das preliminares argüidas e pela procedência da ação – fls. 880/886.

É o relatório.

II - Fundamento e decido II.1 - Das preliminares argüidas pelas rés II.1.1 - Da alegada inépcia da inicial

Não há inépcia da inicial. A causa de pedir está clara na inicial. A causa pe-tendi remota é a alegada prática de preços abusivos e formação de Cartel pelas rés. A causa petendi próxima é o alegado prejuízo dos consumidores. A questão de estarem ou não comprovados os fatos que deram causa ao ajuizamento da ação, ou mesmo a questão da prova do prejuízo, são matérias que se referem ao mérito da ação.

II.1.2 - Da alegada impossibilidade jurídica do pedido

Pela mesma razão, não há que se falar em impossibilidade jurídica do pe-dido. Também neste ponto, as requeridas confundem o direito de ação (abstra-to), com o direito ao reconhecimento da existência efetiva do direito material pleiteado (concreto).

A respeito da possibilidade jurídica do pedido, leiam-se as palavras de Jose Frederico Marques:

“Ninguém pode invocar a tutela jurisdicional formulando pedido não ad-mitido no direito objetivo, ou por este proibido” (Manual de Direito Processual Civil , v.I, p.304). Em outras palavras, se o pedido é admitido no direito objetivo, de forma abstrata, o pedido é juridicamente possível.

Há, ainda, a este respeito, os ensinamentos do processualista Alexandre Freitas: “O petitum é juridicamente impossível quando se choca com preceitos de direito material, de modo que jamais poderá ser atendido, independente dos fatos e das circunstâncias do caso concreto”.

Como se vê, nada há no ordenamento jurídico in abstracto que impeça o ajuizamento desta ação in concrecto.

Há impossibilidade jurídica (ou falta de interesse processual) com relação a um dos pedidos, pelos fundamentos que constam do tópico seguinte.

II.1.3 - Do interesse processual

Com relação à questão do interesse processual, deveras não está presente com relação a um dos pedidos formulados, mas não pelos fundamentos coloca-dos pelas rés.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 67: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

67

Haverá interesse de agir quando o Estado for o caminho necessário para a obtenção de uma resposta a um direito material do qual se julga ser detentor.

Em outras palavras, o interesse processual se define pela necessidade do provimento jurisdicional, e pela adequação da via escolhida para a obtenção deste provimento.

Com relação ao pedido de indenização, não há dúvida de que o interesse processual está presente.

Quanto ao pedido relacionado à obrigação de não fazer, não há interesse processual do Ministério Público, pois existe lei que proíbe as condutas que o Ministério Público pretende proibir. Não há necessidade do provimento jurisdi-cional, pois não se pode impor às rés obrigação que já está prevista em lei.

É sabido que a ação de conhecimento visa à obtenção de um provimento jurisdicional no sentido de constituir uma obrigação. Neste caso, a obrigação já existe.

Observo que não se trata de impor prazo para cumprimento de obrigação prevista em lei (obrigação de fazer). Neste caso, haveria condenação para cum-prir obrigação prevista em lei, com concessão de prazo para tanto, sob pena de multa diária.

No caso das obrigações negativas (de não fazer), se a conduta já é proibida por lei, não há necessidade de se condenar em não fazer, além de ser impossível a imposição de prazo para não se fazer alguma coisa. Eventual condenação nes-te sentido resultaria em sentença inexeqüível.

Um exemplo de condenação em obrigação de não fazer imposta admi-nistrativamente pelo Cade, foi observada no Processo Administrativo nº 53/92. Neste caso, a Associação dos Hospitais de Sergipe publicava tabelas de preços de serviços hospitalares, induzindo seus associados a segui-la de maneira uniforme. Esta conduta foi considerada formação de cartel. A associação foi condenada a não mais publicar as tabelas, sob pena de multa. Como se vê, neste caso, a obrigação de não fazer consistia em deixar de praticar uma conduta ilegal: a publicação de tabela de preços.

No caso em questão, não se sabe qual foi a conduta específica dos revende-dores de combustíveis de Jaboticabal ao praticar os preços de forma cartelizada, como se verá adiante.

Em outras palavras, a execução de eventual sentença de procedência da ação quanto à obrigação de não fazer se estenderia “ad aeternum”, o que não se mostra juridicamente possível, mesmo porque os cartéis são ins-táveis por sua própria natureza. A se acolher o pedido do Ministério Público quanto à obrigação de não fazer, o juízo teria de, periodicamente, efetuar nova pesquisa no mercado de combustíveis, com nova aferição dos preços e condutas praticadas. Caso verificasse novos indícios de abuso nos preços ou de formação de cartel, teria de proferir nova decisão de conhecimento, para possibilitar a execução, o que não se faz possível. É vedado ao Poder Judiciário exercer função investigativa ou de polícia, assim como são vedadas novas decisões de conhecimento acerca de matéria já decidida e em fase de execução.

Haveria ainda uma outra dificuldade: alguns dos revendedores réus não estão mais em funcionamento, como, por exemplo, o Auto Posto S. Gomes, que teve suas atividades lacradas no mês de agosto de 2007 (Processo nº 1231/07, que tramitou por esta Primeira Vara da Comarca de Jaboticabal).

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 68: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

68

Enfim, o objeto de conhecimento da ação deve se limitar ao pedido de indenização pelo dano moral causado, em tese, aos consumidores, cabendo uti-lizar, como parâmetro, o período de investigação do Ministério Público antes do ajuizamento da ação, para que se possa estabelecer um termo “ad quem” para o período no qual o Ministério Público diz ter ocorrido acordo entre as rés para a prática de preços abusivos.

Fica, portanto, delimitado o conhecimento da efetiva formação de cartel, para o fim de manter os preços em níveis mais elevados, ao período entre maio de 2005 e janeiro de 2006, ausente interesse processual e/ou possibilidade jurí-dica do pedido com relação à obrigação de não fazer.

II.1.4 - Da legitimidade de parte ativa ad causam

A competência das entidades administrativas para fiscalizar o cumpri-mento das leis de proteção da ordem econômica não exclui, absolutamente, a atribuição do Ministério Público para agir em defesa da sociedade, no caso, do consumidor.

A ANP é órgão que tem por finalidade promover a regulação, a contra-tação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e de biocombustíveis. Quanto ao Cade e à SDE (Con-selho Administrativo de Defesa Econômica e Secretaria de Direito Econômi-co), trata-se também de organismos administrativos, com poder de preven-ção e repressão às infrações de ordem econômica, inclusive com aplicação de sanções (multas). São órgãos que atuam em defesa da concorrência, coibindo a prática de cartéis. Porém, sempre no âmbito administrativo. Esta ação civil pública, como o próprio nome diz, é de âmbito civil comum, com enfoque no direito do consumidor.

Como se vê, os objetivos e a finalidade de atuação da ANP, Cade, SDE e do Ministério Público são absolutamente diversos. Cada entidade trabalha em prol da proteção de um bem jurídico distinto.

O direito tutelado, neste caso, é o chamado direito (ou interesse) difuso, cujos titulares são indetermináveis, e cujo prejuízo não pode ser mensurado individualmente (artigo 81, parágrafo único, I, do CDC).

A legitimidade do Ministério Público para agir em nome dos consumido-res está prevista na Constituição da República (artigo 129, III), na Lei da Ação Civil Pública (artigo 1º, II e VI da Lei 7347/85), e no Código de Proteção ao Consumidor (artigo 82, I, do CDC). No caso específico desta ação, a legitimi-dade está prevista no artigo 29 da Lei 8884/94. Aliás, este último dispositivo menciona expressamente que a ação ajuizada sob este fundamento indepen-de do processo administrativo.

Enfim, a ANP e o Cade, por atuarem em âmbitos completamente dis-tintos, não teriam interesse processual que justificasse sua inclusão no pólo ativo desta ação, sendo evidente que não se trata de litisconsórcio ativo necessário.

Os próprios réus admitem que a responsabilidade dos revendedores de combustíveis, assim como dos fornecedores em geral, pode (e deve) ser apu-rada no âmbito administrativo, penal e civil, concomitantemente, mesmo porque, cada esfera de responsabilidade visa à proteção de um bem jurídico distinto.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 69: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

69

A competência da Justiça Estadual é firmada não somente porque o foro de Jaboticabal é o local do dano, mas porque este se constitui no domicílio da maioria dos consumidores lesados (artigos 93, I, do CDC).

II.1.5 - Da legitimidade passiva de parte das rés, com exceção do Auto Posto JF Baratela & Baratela Ltda.

Argumentam as rés que não seriam partes legítimas para figurar no pólo passivo da ação porque o Ministério Público não teria demonstrado, por prova documental, suas alegações.

Friso que esta matéria não se refere às condições da ação, mas ao mérito. A exceção, no caso, se aplica ao Auto Posto JF Baratela & Baratela Ltda.

O Auto Posto JF Baratela & Baratela Ltda. disse em contestação que esta-ria na inatividade no período no qual teria ocorrido o alinhamento de preços para majoração. Diz que estaria sem licença para funcionamento, e que a ro-dovia na qual está instalado foi interditada, impossibilitando suas atividades. Diz, ainda, que nunca participou de qualquer acordo ou reunião para a fixação de preços, mesmo porque está localizado fora do perímetro urbano. Que não participou da reunião com o MP, realizada para instrução do Inquérito Civil, e que as planilhas juntadas no IC não mencionam (nem poderiam mencionar) os preços praticados por ela (fls. 518/526).

O Ministério Público não impugna estas alegações, que estão comprova-das pelos documentos de fls. 537/551, segundo os quais na data de 14/09/05, o Auto Posto JF Baratela não estava em funcionamento. O mesmo ocorria na data de 26/1/06, quando a rodovia onde se localiza o posto estava interditada. A respeito da matéria, o Ministério Público limitou-se a argumentar que a ação foi ajuizada contra todos os postos de Jaboticabal.

É caso, portanto, de exclusão do Auto Posto JF Baratela & Baratela Ltda., do pólo passivo da ação, já que não estava em funcionamento no período apontado como de abuso nos preços e formação de cartel.

Ao contrário do que dizem as rés, não é caso de inclusão das distribuido-ras no pólo passivo da ação. Não há litisconsórcio passivo necessário; tampou-co é caso de intervenção de terceiros.

Os revendedores de combustíveis são fornecedores, na definição legal do CDC (artigo 3º do CDC). Perante o consumidor, é o fornecedor quem responde diretamente. Ainda que se pudesse considerar que as distribuidoras são forne-cedoras de combustíveis aos revendedores, a relação entre eles não envolve-ria, de forma alguma, o consumidor final do produto.

Não é caso de intervenção de terceiros, não sendo admissível nomeação à autoria (artigo 62 do CPC), chamamento ao processo (artigo 77 do CPC), ou denunciação da lide. Não está presente nenhuma das hipóteses previstas no artigo 70 do CPC.

Enfim, com relação à alegada ilegitimidade de parte passiva “ad causam”, cabe acolhimento somente com relação ao auto Posto JF Baratela & Baratela Ltda.

Ficam rejeitadas, portanto, as preliminares argüidas, com exceção daquela relativa à ilegitimidade de parte passiva “ad causam” do Auto Posto JF Baratela & Baratela Ltda.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 70: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

70

II.2 - Das questões de méritoII.2.1 - Da dispensa da prova pericial

A ação comporta julgamento antecipado, sendo dispensável a prova pericial. É cabível, no caso, a inversão do ônus da prova em favor do Ministério

Público, mesmo porque os documentos produzidos no Inquérito Civil conferem ampla verossimilhança às suas alegações:

718152 – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MEIO AMBIENTE – Prova pericial. Inversão do ônus. Encargos respectivos carreados ao réu. Possibilidade nas circunstâncias. Exegese do disposto no CDC, em exame conjunto com a Lei nº 7.347/85. Cabe ao réu produzir prova de que sua atitude não provocou os danos acusados. Recurso improvido. (TJSP – AI 596.629-5/1 – Jundiaí – C.Esp.MA – Rel. Des. J. G. Jacobina Rabello – J. 22.03.2007).

Apesar disso, sendo a questão tratada unicamente de direito, a matéria relativa à inversão do ônus da prova perde relevância.

As rés insistem na prova pericial, argumentando que as planilhas produ-zidas no Inquérito Civil não permitiriam auferir se ocorreu ou não cartelização dos preços aos consumidores. As planilhas conteriam informações imprecisas, e não unificariam receita e despesa. Além disso, as planilhas não incluiriam o óleo diesel, que também influenciaria no preço final dos produtos, formado a partir de um “mix” de todos eles.

Com todo respeito, não convencem os argumentos das rés. A ação foi ajuizada a partir da instauração de Inquérito Civil, instruído

com representação do Procon, acompanhada de abaixo-assinado elaborado pelos consumidores de combustíveis de Jaboticabal, do qual constam mais de 130 (cento e trinta) assinaturas, requerendo a tomada de providências para sanar ou minimizar o problema dos preços dos combustíveis em Jaboticabal (fls. 32/40).

Segundo os consumidores, os preços eram sempre os mais altos da região, e iguais ou muito parecidos de um revendedor para outro. Além disso, observa-se que, em muitos revendedores, o preço de aquisição do produto era distinto, sendo igual o preço de venda (ver fls. 41).

A partir da mobilização dos consumidores, o Procon iniciou um acompa-nhamento dos preços praticados pelos revendedores de combustíveis de Jabo-ticabal, e a conclusão deste acompanhamento foi que estes revendedores, em-bora adquirissem os combustíveis a preços e condições diversas, vendiam aos consumidores a preços iguais ou muito parecidos. Para esta constatação, basta analisar as planilhas de fls. 41 e seguintes (1º volume), 255/304 e 383/399 (2º volume), 367/414 e 427/456 (3º volume).

Não há como considerar que as circunstâncias de cada empresa, seus cus-tos operacionais, a compra de insumos, os custos trabalhistas, e outros, sejam parecidos a ponto de ensejar a venda do combustível a preço idêntico ou prati-camente idêntico por longo período de tempo.

Em outras palavras, é justamente porque existem inúmeras variáveis, como custos, circunstâncias de localização, perfil do consumidor, volume de vendas, etc, que não se admite que os preços praticados em postos diversos sejam os

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 71: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

71

mesmos. A variação destas circunstâncias de um revendedor para outro é admi-tida pelas próprias rés. Não há necessidade de perícia para esta constatação.

Há ainda a questão da onerosidade de uma perícia da natureza do traba-lho pretendido pelas rés. O perito teria de analisar todas as variáveis considera-das para a formação dos preços em cada posto revendedor. Não só na questão do tempo, mas também do custo, a perícia seria onerosa e, no caso, em nosso entendimento, é dispensável.

Com relação aos preços praticados serem maiores, quando comparados com os praticados em outras cidades da região, é também fato que se constata com a mera análise das planilhas.

Outra dificuldade é o fato de que os cartéis são instáveis por sua própria natureza, ou seja, sua formação e composição variam ao longo do tempo, o que dificulta apuração por perícia, para fins de prova cabal da conduta ilícita. Isso sem falar no fato, acima apontado, de que alguns dos revendedores réus não estão mais em funcionamento, como o Auto Posto S. Gomes, que teve suas ati-vidades lacradas no mês de agosto de 2007 (Processo nº 1231/07, que tramitou por esta Primeira Vara da Comarca de Jaboticabal).

Embora seja de nosso conhecimento que já foi proferido julgado no qual se entendeu pela imprescindibilidade da perícia (Apelação Cível nº 2003.006892-6 – 1ª Câmara Criminal – Tribunal de Justiça da Paraíba – julgada aos 1º/06/2004, relator Des. Marcos Antonio Souto Maior – publicado no DJPB de 06/07/2004), entendemos que a providência aqui é dispensável, seja pela natureza da maté-ria, seja pela sua inviabilidade e onerosidade, conforme explanação acima.

Por todos estes fundamentos, entendo que a melhor solução, na hipótese, é o julgamento antecipado da lide.

II.2.2 - Da conduta das rés, que caracteriza formação de cartel

Ao contrário do que argumenta a contestante Coplana, embora no Brasil se pratique a livre iniciativa como princípio econômico, cabe ao Estado, sim, intervir nesta atividade, com a finalidade de equilibrar as forças de mercado, e proteger exatamente a livre iniciativa e a concorrência leal. O intuito é justa-mente preservar princípios basilares das relações jurídicas e empresariais, como a confiança e a boa-fé. Sem a aplicação destes princípios e a vigilância do Esta-do, sociedade alguma prospera, pelo menos não de forma digna e edificante.

No outro extremo dos bens, cuja proteção é visada pela intervenção do Estado, estão os direitos dos consumidores, que devem também ser respeitados, sob pena de se privilegiar um direito (o direito à obtenção de lucro mediante o exercício de atividade lícita) em detrimento de outro (o direito a consumir o que se quer, por um preço justo).

São estes os princípios que regem nossa economia, e que estão estampados na Constituição da República de 1988 (artigo 170 e 173, § 4º), autorizando o Estado a intervir na atividade privada, quando for o caso.

Quanto à presunção de vulnerabilidade do consumidor, está prevista no artigo 4º, I, da Lei 8078/90:

Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade,

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 72: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

72

saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.03.1995, DOU 22.03.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

A presunção de vulnerabilidade do consumidor implica em alteração da base das relações obrigacionais para instituir a proteção da parte hipossuficien-te, visando à garantia de seu direito de escolha, e proteção contra métodos co-merciais coercitivos ou desleais (artigo 6º, IV, do CDC). No caso, para possibilitar a livre escolha do consumidor, é necessária a manutenção de um mecanismo de efetiva concorrência.

Conclui-se de toda essa fundamentação que a intervenção do Estado, no caso, não só é permitida, como também necessária à efetiva consolidação de uma sociedade conforme os princípios acima analisados.

O Ministério Público inseriu, entre seus pedidos, o de condenação das rés para que não mais pratiquem preços abusivos, quando comparados com os pra-ticados por outras cidades da região. É certo que o pedido está atrelado à pre-tensão de não-formação de cartel, já que este se forma justamente para manter os preços mais elevados. Porém, entendo que, com relação a este pedido espe-cificamente, não há como atender. Não há como impor às rés a obrigação de manter seus preços iguais ou inferiores aos praticados pelos seus concorrentes de cidades vizinhas. Isso sim, seria contrário aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, ou seja, redundaria em uma ação contrária às leis naturais de mercado. A prática de preços de cada empresa varia segundo sua condição peculiar (sua estrutura de funcionamento, sua localização, o tipo de serviço que fornece, o perfil de sua clientela e outros). A definição do que seja “aumentar arbitrariamente os lucros”, conduta descrita no artigo 20, III, da Lei 8884/94, é por demais genérica e imprecisa, e este “aumento arbitrário” de lucro deve es-tar necessariamente ligado a um dano a outro bem juridicamente protegido.

Embora o preço maior praticado em Jaboticabal esteja demonstrado nas planilhas comparativas de fls. 42 e seguintes, entendemos que cabe ao consumi-dor selecionar o local que pode fornecer o que ele precisa em melhores condi-ções possíveis de qualidade, quantidade, preço e condições de pagamento.

Poder-se-ia argumentar que esta conclusão implicaria alijar os consumidores de Jaboticabal do direito de escolha, já que estariam obrigados a se adequar aos preços mais elevados aqui praticados, pois não podem sair da cidade sempre que necessitam abastecer seus automóveis. Porém, não há mecanismo legal ou jurí-dico para obrigar um estabelecimento a vender produtos de mesma qualidade a preços iguais aos do concorrente ou mais baixos, se não há prova do “aumento arbitrário dos lucros”, ou da prática de “preços abusivos”. Não obstante, quando a proposta de preços mais elevados decorre da formação de cartel, como ocorreu na hipótese ora tratada, há mecanismos para impor aos revendedores a penalida-de correspondente, justamente para coibir novas condutas deste gênero.

Define-se por CARTEL a atuação coordenada (acordo horizontal) de empre-sas privadas, com a finalidade de elevar preços e restringir a concorrência. O cartel envolve necessariamente empresas concorrentes (que atuam no mesmo mercado relevante geográfico ou material) e visa a neutralizar a concorrência

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 73: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

73

entre elas próprias (ver definição contida na obra “Cartel e Conseqüências para o Consumidor” – Taís Cruz Habibe – publicada na Revista de Direto do Consumi-dor nº 52 - dez/04, pg. 248).

Ao abordar a questão, menciona a autora: “De um mercado cartelizado, além do prejuízo ao direito de livre escolha do consumidor, decorre, também, prejuízo financeiro ao agente mais fraco da relação, pois paga-se mais por pro-dutos ou serviços que poderiam custar menos...”

“Um dos objetivos mais comuns das empresas cartelizadas é a maximiza-ção de seus lucros. Tal ajuste entre empresas coloca os consumidores em posição de desvantagem, pois os fornecedores passam a deter o controle dos preços ou da qualidade dos produtos, bem como das informações, das condições de fornecimento, condições de pagamento, etc., naquele determinado mercado de produtos ou serviços, o que se constitui em um exemplo de prática comercial abusiva. É comum, portanto, que num mercado cartelizado, os preços sejam elevados e a oferta uniforme entre os agentes” – pg. 258.

O cartel pode também impedir a entrada de novos concorrentes no mer-cado, impedindo que haja maior diversificação de produtos e serviços, e con-seqüentemente menores preços (ver Revista de Direito do Consumidor nº 51 – “Bem-Estar dos Consumidores e Repressão a Cartéis liderados por Associações e Sindicatos” – por Roberto Augusto Castellano Pfeiffer – pgs.12/33.

O prejuízo ao consumidor é inevitável, além da lesão à ordem econômica e aos empresários que não admitam aderir a tal “esquema” de subversão à lógica da livre competição.

A prova da prática do cartel está nos autos. Basta analisar as planilhas de fls. 41 e seguintes (1º volume), 255/304 e 383/399 (2º volume), 367/414 e 427/456 (3º volume).

Tomando por amostragem a semana inicial pesquisada (de 1º/05/05 a 07/05/05), verifica-se que o preço do álcool era idêntico em oito revendedores de combustíveis, de bandeiras distintas, sendo certo que Jaboticabal é uma cida-de pequena, e os postos estão muito próximos um do outro (fls. 41).

O mesmo ocorreu nas semanas seguintes, nas quais a variação do preço do álcool e da gasolina era nenhuma ou muito pequena, embora fosse grande a variação nos preços de aquisição dos produtos.

Como já observei acima, não é possível que revendedores que adquirem os combustíveis e insumos a preços diferentes, têm custos e obrigações distintas, estão em fases distintas de desenvolvimento e aprimoramento dos serviços, pos-sam vender o produto ao consumidor a preço idêntico.

É certo que não há prova de acordo expresso, como gravações de con-versas telefônicas ou de reuniões para combinação de preços. Todavia, esta prova específica é difícil de ser produzida, principalmente no caso em ques-tão, no qual, ao que parece, não havia um líder atuando em coordenação ao cartel, como havia no caso dos cartéis envolvendo os postos de Belo Hori-zonte-MG, de Brasília-DF e de Florianópolis-SC. Nestes casos, abordados nos artigos publicados na Revista de Direito do Consumidor nºs 51 e 52 (acima referidos), havia associações e sindicatos “liderando” a ação coordenada das empresas. Essas entidades chegavam a expedir tabela de preços de produtos ou serviços. Houve maior facilidade em obter essa prova. No caso ora trata-do, não seria possível monitorar conversas entre proprietários de vinte (20) postos de gasolina.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 74: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

74

Não é possível individualizar as condutas das rés, diante da dificuldade prá-tica e da natureza instável dos cartéis. A medida imposta como forma de adver-tência, portanto, deve ser geral.

Inadmissível o argumento de que o alinhamento de preços seria decor-rente do comportamento natural do mercado de combustíveis, cuja estrutura favoreceria a prática de ações “anticompetitivas”. Ora, diversos revendedo-res de outros ramos estão à mercê de regras ditadas por um mercado maior, que não controlam, e nem por isso procedem a acordos de alinhamento de preços.

Da mesma forma, seria inadmissível acolher a alegação de que a condu-ta das revendedoras visaria à própria sobrevivência no mercado (o chamado “Cartel de Crise”), ou teria escopo de evitar a “guerra de preços”. Não se pode garantir a sobrevivência cometendo atos ilícitos e causando prejuízo a outrem. Quanto à guerra de preços, deve existir de forma saudável. Isso é próprio de um sistema de livre iniciativa e de um mercado competitivo.

A ré Coplana diz que não se envolveu em cartel, porque sua atividade não visaria a lucro. Esta abordagem da questão é muito simplista. Sabe-se que nos dias de hoje a atuação das cooperativas é ampla e irrestrita, na qualidade de fornecedores de produtos e serviços diversos aos seus cooperados. Quanto maior o rendimento e alcance da cooperativa, melhor para os cooperados, que receberão produtos e serviços (inclusive dinheiro, na forma de empréstimos) a preços e condições muito melhores.

A conduta das rés é expressamente vedada no ordenamento jurídico vi-gente, tanto no combate aos ilícitos civis e penais contra a ordem econômica, quanto no combate aos ilícitos contra os consumidores. Nos termos da Lei nº 8.884/94:

Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

Com relação ao cartel especificamente, a proibição da conduta está conti-da no artigo 21:

Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que confi-gurem hipótese prevista no artigo 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:

I - fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma, pre-ços e condições de venda de bens ou de prestação de serviços;

Se as distribuidoras controlam preços e impõem margens de lucro aos re-vendedores de combustíveis, cabe a estes tomar providências para que cesse essa situação. O que não podem é opor esta questão como matéria de defesa perante o consumidor.

O artigo 21, XI, da Lei nº 8.884/94 traz proibição expressa a esta condu-ta imputada às distribuidoras, de modo que os revendedores têm mecanismos para lutar contra sua hegemonia e poder econômico:

Art. 21. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que confi-gurem hipótese prevista no artigo 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:

...

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 75: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

75

XI - impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes, preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quan-tidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros;

...Se as revendedoras de combustíveis se dizem vulneráveis perante as distri-

buidoras, o que não dizer do consumidor perante as revendedoras. O consumidor está-se unindo para tentar resolver ou melhorar este estado

de coisas. Cabe às revendedoras fazer o mesmo. Como disse a ré Coplana, esta ação é fundada no “mero” apelo popular.

Nada mais legal e legítimo. Afinal, a lei e a ordem são postas pelo povo e para o povo.

Não se nega a relevante função social das rés, que fornecem emprego e fomentam a economia do País. Também não se nega que outros segmentos da atividade empresarial praticam cartéis. Porém, nenhum destes argumentos afasta a responsabilidade das rés. Aliás, mecanismos para punir os formadores de cartéis existem justamente porque esta prática não é rara, e deve ser coibida de forma incessante.

II.2.2 - Da indenização aos consumidores pelo dano moral A conduta das rés deu causa a uma diminuição de bem-estar nos consumido-

res, traduzida na sensação de impotência e de descrédito nas instituições públicas. O interesse lesado, no caso, é difuso, de modo que deveras não há como

identificar os lesados, tampouco mensurar o dano. Porém, isso não impede a condenação, que no caso tem finalidade mais educativa do que compensatória do dano.

A atuação dos órgãos de defesa do consumidor visa, por meio do Ministé-rio Público, a mudar a mentalidade ou a consciência social do empresariado, no caso, dos revendedores de combustíveis.

O que se busca é uma sociedade mais digna, na qual direitos e obrigações sejam distribuídos de forma mais eqüitativa. Além desse escopo, a intenção é dar uma resposta à sociedade. Demonstrar que o Poder Público, apesar de compreender as dificuldades enfrentadas por todos (órgãos públicos, empre-sários e consumidores), empreende esforços para tornar as relações jurídicas mais equilibradas.

Esta condenação não implica a imposição de dupla penalidade. Nenhuma outra penalidade foi imposta às rés, seja no âmbito civil, penal, ou administrati-vo, pelos mesmos fatos e no mesmo período de tempo.

III – Dispositivo

Pelo exposto, JULGO PROCEDENTE EM PARTE A AÇÃO para CONDENAR o AUTO POSTO S. GOMES LTDA., POSTO BEIRA RIO JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO BARBIERI LTDA. (matriz), AUTO POSTO BARBIERI LTDA. (filial), AUTO POSTO NOVA JAT, GERALDO CANDELORO (POSTO PETROBRÁS), POSTO JA-BOTICABAL LTDA., AUTO POSTO PACÍFICO LTDA., AUTO POSTO SHANGRILÁ LTDA., J. ARAÚJO & CARVALHO LTDA. (AUTO POSTO PINHEIROS), COOPERA-TIVA DOS PLANTADORES DE CANA DA ZONA DE GUARIBA, D.B. AUTO POSTO LTDA. (POSTO LÍDER), VALCIR ALEXANDRE BATISTA & FILHOS LTDA., AUTO

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 76: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

76

POSTO 15 DE NOVEMBRO DE JABOTICABAL LTDA., AUTO POSTO MARGI-NAL LTDA., AUTO POSTO GUANABARA LTDA., BIANCHI AUTO POSTO LTDA., AUTO POSTO 147 LTDA., e BIANCHI & NASCIMENTO AUTO POSTO LTDA. a recolherem, em favor do Fundo Estadual Especial de Defesa de Reparação dos Interesses Difusos Lesados (artigo 13 da Lei 7.347/85), a quantia de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) cada um (não se trata de condenação solidária), para fins de indenização do dano moral difuso causado aos consumidores de combustíveis de Jaboticabal, decorrente da conduta ilícita praticada no período entre 1º/5/5 e 30/1/06.

Arcarão as rés com o pagamento das custas processuais, cabendo rateio entre elas.

JULGO EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, com funda-mento no artigo 267, VI, do CPC, com relação ao AUTO POSTO JF BARATELA & BARATELA LTDA.

Não obstante a sucumbência parcial, não cabe condenação do Ministério Público no pagamento de custas processuais ou honorários advocatícios, já que não se vislumbra má-fé do parquet:

11363997 – PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – EM-BARGOS À EXECUÇÃO PROMOVIDA PELO MINISTÉRIO PÚBLI-CO – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – NÃO CABIMENTO – 1. Nas ações civis públicas, execuções e embargos correspon-dentes, a condenação do Ministério Público ao pagamento de honorários advocatícios só é cabível na hipótese de com-provada e inequívoca má-fé do parquet. 2. Recurso Especial provido. (STJ – RESP 200200277618 – (419110) – SP – 2ª T. – Rel. Min. Herman Benjamin – DJU 27.11.2007 – p. 00291)

Também não cabe condenação das rés no pagamento de honorários, já que o Ministério Público atua por dever de ofício.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Jaboticabal, 30 de maio de 2008.

Carmen Silvia AlvesJuíza de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 63-76, janeiro-abril/2008

Page 77: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

77COMARCA DE POÁ - SP

Vistos, etc.

O PRIMEIRO TABELIÃO DE NOTAS E DE PROTESTO ingressou com em-bargos à execução contra BANCO NOSSA CAIXA S.A., inscrição perante o Mi-nistério da Fazenda sob o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas - CNPJ - nº 43.073.394/0001-10, por entender que o processo de execução não se desenvol-veria regularmente.

Em sua inicial sustenta, em síntese (fls. 2/50): a) Ser parte ilegítima para figu-rar na execução, pois a dívida foi celebrada pelo notário anterior; b) A responsa-bilidade pelas dívidas não seria do tabelionato – que sequer existe como pessoa jurídica – mas sim de seu titular; c) Tabelião não recebe repartição, apenas os direitos de prestar serviços; d) Todos os bens são de responsabilidade do tabelião e não do tabelionato; e) Novo titular não pode responder por dívidas do antigo tabelião; f) Numerário não foi empregado nos serviços do tabelionato.

O embargado apresentou impugnação (fls. 57/63) alegando: a) O cartório é “pessoa formal” e responsável pelo débito exigido; b) Credor de boa-fé não pode ter prejuízo; c) Foram transferidos todos os bens ao atual designado, sem interrupção da atividade; d) Alteração da titularidade não modifica a responsa-bilidade do tabelionato.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 77-81, janeiro-abril/2008

Page 78: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

78

As partes requereram o julgamento antecipado da lide (fls. 69/71 e 73). É o relatório.

D E C I D O

Trata-se de ação civil de embargos à execução destinada a desconstituição de título executivo por ilegitimidade passiva.

É passível o julgamento antecipado da lide, conforme o estado do proces-so, já que a lide se restringe à questões “de direito”, nos termos do artigo 330, I, do Código de Processo Civil.

Não há preliminares a serem analisadas e, no mérito, o pedido veiculado na inicial encontra bom porto.

A atividade do notário é regulamentada pelo artigo 236 da Constituição Federal13, que estabeleceu que a atividade é exercida em caráter privado e por delegação, sendo o ingresso vinculado a concurso público e conferida à lei ordi-nária a responsabilização civil.

Claro está que é atividade privada que não se reveste de personalidade jurídica própria.

O tabelionato nada mais é do que o conjunto de bens materiais e esforços humanos destinados, mediante delegação, à prestação de serviços voltado a ga-rantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia de determinados atos jurídicos (artigo 1º da Lei 8935/94)14.

Para tal desiderato ao tabelião foram conferidos poderes de gerenciamen-to e, de forma correlata, responsabilidade exclusiva pelas despesas, investimen-to e pessoal (artigo 21 da Lei 8935/94)15.

Atente-se que o regime legal de responsabilidade dos tabeliães, estabele-cido por expressa determinação constitucional (artigo 236, §1º, da Constituição Federal) deixa claro que todas as despesas, inclusive de investimento, custeio e pessoal são de responsabilidade do titular.

Em momento algum a lei fala em serventia ou tabelionato, dei-xando translúcida a responsabilidade pessoal do titular da delegação.

13 Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.§ 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.§ 2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.§ 3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses. preliminar de inépcia da inicial, ante a falta de valor atribuído à causa, não pode prosperar.14 Art. 1º. Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade,

autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.15 Art. 21. O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva

do respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação de serviços.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 77-81, janeiro-abril/2008

Page 79: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

79

A responsabilidade jamais poderia recair no tabelionato, pois a referida designação indica apenas um local de prestação de serviços que não tem exis-tência jurídica autônoma.

Claro é que enquanto mantida a delegação, o titular responde integral-mente pelos prejuízos que causar, sejam contratuais (pelo inadimplemento de mútuo, como no presente caso) ou extracontratuais.

Nessa situação, todos os bens do titular, inclusive os empregados na serven-tia, em tese, poderiam ser expropriados.

A situação é diversa quando se altera o delegado ou tabelião.

Como a atividade notarial é exercida, atualmente, por delegação decorren-te de concurso público não há vínculo entre o tabelião sucedido e seu sucessor.

A única coisa que demonstra a sucessão é a manutenção dos documentos – decorrentes do serviço público e que não pertencem ao delegado – e a deno-minação da unidade de serviços, exatamente por não contar com personalidade jurídica própria.

A própria Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo já enten-deu que o novo tabelião não é responsável por débito do delegado anterior16.

Assim sendo, o tabelião atual não está obrigado a responder pelas dívidas de seu antecessor17-18, nem mesmo se decorrentes de obrigação tri-

16 Observe-se, este particular, a decisão no processo CG 855/2003, aprovado em 10.09.2003 pelo Corregedor Geral da Justiça Pau-lista “... Pois lá se verberou que o regime instituído para prestação dos serviços de registro e de notas pressupôs remanescesse sua titularidade com o Poder Público, que outorgava – como de fato outorga – seu exercício à pessoa de um profissional do direito, a tanto concursado. Sem que, destarde, a partir da lei 8.935 se possa identificar um cartório, criado por lei, ocupado por servidor titular de cargo, de um lugar na Administração. Ao contrário, evidenciou-se o exercício de um, serviço público por um particular a quem se o delega, por concurso. Se é assim, não se pode cogitar de uma unidade com personalidade própria a quem sejam afetos direitos e obrigações, menos ainda comunicáveis a seus titulares. As obrigações atinentes ao serviço extraju-dicial quem as possui é a pessoa do delegado ou, na vacância, o Estado, afinal, seu titular. NUNCA O NOVO TITULAR, QUE, SEM DÚVIDA, APROVADO NO CONCURSO RECEBE INVESTIDURA ORIGINÁRIA. Com efeito, o particular a quem se confere, mercê de regular concurso, a delegação para exercício dos serviços extrajudiciais, não os recebe por transmissão do anterior titular, de forma derivada, ou como se assumisse uma unidade com personalidade própria e, assim, dívidas próprias. Ele ingressa naqueles serviços sem vínculo anterior que o faça responsável por obrigações precedentes...”

17 Neste sentido temos julgados obtidos no sítio oficial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo www.tj.sp.gov.br: “4059234000 Relator(a): Vito Guglielmi Comarca: Comarca Não identificada Órgão julgador: Orgão Julgador Não iden-tificado Data do julgamento: Não disponível Data de registro: 02/04/2007 Ementa: ILEGITIMIDADE DE PARTE. PASSIVA OCORRÊNCIA AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL PROPOSITURA CONTRA CARTÓRIO DE NOTAS INADMISSIBILIDA-DE CARTÓRIOS QUE NÃO TÊM PERSONALIDADE JURÍDICA INTELIGÊNCIA DO ART. 236 DA CR CASO DE RESPONSABILIDADE PESSOAL DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES RESPONSABILIDADE, ADEMAIS. DE QUEM PRATICOU O ATO A SEU TEMPO EXTINÇÃO MANTIDA RECURSO IMPROVIDO”

18 Nesse sentido temos julgados obtidos no sítio oficial do Superior Tribunal de Justiça www.stj.gov.br: “RESPONSABILIDADE CIVIL. NOTÁRIO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO DE PERNAMBUCO PELOS DANOS CAUSADOS PELO TITULAR DE SERVENTIA EXTRAJUDICIAL NÃO-OFICIALIZADA.PRECEDENTES. A responsabilidade civil por dano causado a particular por ato de oficial do Registro de Imóveis é pessoal, não podendo o seu sucessor, atual titular da serventia, responder pelo ato ilícito praticado pelo sucedido, antigo titular. Precedentes. Recurso especial provido. (REsp 696.989/PE, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 23.05.2006, DJ 27.11.2006 p. 278)” e “RES-PONSABILIDADE CIVIL. NOTÁRIO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. A responsabilidade civil por dano causado a particu-lar por ato de oficial do Registro de Imóveis é pessoal, não podendo o seu sucessor, atual titular da serventia, responder pelo ato ilícito praticado pelo sucedido, antigo titular. Recurso especial não conhecido.(REsp 443467/PR, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 05.05.2005, DJ 01.07.2005 p. 510)” e seus embargos de declaração EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. Assentada a premissa da responsabilização individual e pessoal do titular do cartório, é de se reconhecer que só poderia mesmo responder aquele que efetivamente ocupava o cargo à época da prática do fato reputado como lesivo aos interesses do autor, razão pela qual não poderia tal responsabilidade ser transferida ao agente público que o sucedeu, afigurando-se escorreita, portanto, a conclusão em que assentado o aresto embargado. Embargos de declaração rejeitados. (EDcl no REsp 443467/PR, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18.10.2005, DJ 21.11.2005 p. 225)”

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 77-81, janeiro-abril/2008

Page 80: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

80

butária19, o que também é aplicável ao “interventor” que assume interina-mente a unidade, também de forma originária.

Desse modo, quando houve a subscrição do contrato trazido a fls. 20/26, a obrigação não poderia – jamais – recair sobre serventia extrajudicial.

A serventia, como já esclarecido, é uma atividade pública sem vínculo ao titular diverso da delegação, não podendo obrigar pessoa diversa do titular que respondia por ela na realização do contrato ou do ato ilícito.

Tanto é verdade que a fls. 20, 21, 25 e 26 consta sempre como cliente con-tratante o 1º Tabelião de Notas e Protestos da Comarca de Poá que, na época dos fatos, não era o atual interventor José Luiz Gonzaga Amaral, mas sim José Maria de Oliveira (fls. 38/39 e 20/25).

Somente José Maria de Oliveira – Titular do Tabelionato na época da con-tratação – pode ser compelido a realizar o pagamento dos valores indicados no título executivo diante do disposto no artigo 21 da Lei 8.935/94, sendo conside-rada sua responsabilidade pessoal e exclusiva.

Não bastasse a responsabilidade ser exclusiva e pessoal do delegado, na época de constituição da obrigação, a exeqüente desistiu da produção de pro-vas (fl. 73) e não demonstrou que o numerário foi empregado no tabelionato (fl. 42 – que conta com fé pública – artigo 3º da lei 8935/94)20.

Nem se diga que haveria ofensa ao artigo 38 da lei 8.935/94, pois, exata-mente, busca-se a responsabilidade pessoal e exclusiva do tabelião que celebrou o contrato com a embargada.

Também não há ofensa à boa-fé, pois permite-se a cobrança do contratan-te – o tabelião na época da celebração do contrato.

Ademais, a instituição financeira deveria saber que jamais haveria obriga-ção do tabelionato pelo contrato, mas somente da pessoa física que o represen-tava na época dos fatos, pelo expresso teor da lei 8.935/94.

Deve, portanto, voltar-se contra José Maria de Oliveira para ver satisfeito seu crédito.

Ante o exposto, e por tudo o mais o que dos atos consta, JULGO PROCEDENTE,

o pedido veiculado nos embargos, a fim de:a) considerar que o atual 1º Tabelião de Notas e de Protesto da Comarca de

Poá é parte ilegítima para figurar na execução;b) a obrigação assumida pelo anterior tabelião – José Maria de Oliveira – é

de sua pessoal e exclusiva responsabilidade (artigos 21 e 38 da lei 8.935/94) e não pode ser exigida do atual interventor ou do futuro delegado;

19 Neste sentido temos julgado obtido no CD ROM de jurisprudência Juris Síntese Millenium nº 68 – novembro-dezembro 2007 EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA – VINCULAÇÃO À PESSOA FÍSICA E NÃO AO TA-BELIONATO E CARTÓRIO DE PROTESTO DE TÍTULOS – A responsabilidade pelos débitos decorrentes dos atos praticados pelo tabelionato é do tabelião, devendo ser contra este ajuizada a respectiva ação de cobrança. O fato de se exigir dos cartórios a inscrição no cadastro nacional de pessoa jurídica – CNPJ – não tem o condão de equipará-los a pessoas jurídicas, visto que a finalidade do cadastro é facilitar o controle e a fiscalização da arrecadação dos tributos devidos, tais como encargos traba-lhistas e previdenciários. (TRF 4ª R. – AC 2005.04.01.025151-9 – 1ª T. – Rel. Des. Fed. Vilson Darós – DJU 19.01.2007)”

20 Art. 3º. Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 77-81, janeiro-abril/2008

Page 81: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

81

c) julgar extinta a execução com base na ilegitimidade passiva, nos termos dos artigos 267, VI, 2ª Figura, e 568, I, ambos do código de processo Civil e arti-gos 21 e 38 da lei 8.935/94.

O embargado deverá suportar as custas e despesas processuais, em razão da procedência da demanda.

Arbitro honorários advocatícios, em favor do patrono do embargante, diante do disposto no artigo 20, § 4º, do Código de Processo Civil, no equivalen-te a 15% do valor atribuído à causa, devidamente atualizado, a ser suportado pelo embargado.

Transitada em julgado a presente decisão, certifique-se nos autos principais e arquivem-se os dois feitos, após as devidas comunicações.

P.R.I.

Poá, 27 de fevereiro de 2008

Alessander Marcondes França RamosJuiz de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 77-81, janeiro-abril/2008

Page 82: CadernosJurídicos31final
Page 83: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

83

3ª VARA CÍVEL DE ITAQUAQUECETUBACOMARCA DE ITAQUAQUECETUBA - SP

Vistos.

Trata-se de ação de investigação de paternidade, cumulada com pedido de alimentos, ajuizada pelo NASCITURO DE FERNANDA FREITAS DUARTE, repre-sentado por sua mãe gestante, contra JERÔNIMO DE AZEVEDO NETO.

A representante do Ministério Público opinou pelo indeferimento da peti-ção inicial, sob o fundamento de que a personalidade civil da pessoa só começa do nascimento com vida, nos termos da primeira parte do art. 2º do Código Civil, de sorte que ainda não haveria direito do nascituro a ser tutelado.

Respeitado o posicionamento da representante do Ministério Público, en-tendo que o nascituro tem legitimidade e interesse para propor ação de investi-gação de paternidade contra seu suposto pai.

Com efeito, dispõe o art. 2º do Código Civil de 2002 — o qual reproduziu, com pequena alteração de redação, o art. 4º do Código Civil de 1996 (substitui apenas o termo “homem” por “pessoa”) — que “a personalidade civil da pessoa

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 83-87, janeiro-abril/2008

Page 84: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

84

começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (grifei).

A doutrina civilista tradicional, construída sob a vigência do Código Civil de 1916, entende que este se filiou, no tocante à condição jurídica do nascitu-ro, à teoria natalista, segundo a qual o nascituro não poderia ser considerado pessoa, pois se exige, para que se adquira personalidade civil, o nascimento com vida, de maneira que não teria direitos, mas apenas expectativas de direi-tos. Podem ser citados, como adeptos da corrente natalista, Silvio Rodrigues, Caio Mário da Silva Pereira e San Tiago Dantas (cf. TARTUCE, Flávio. A situação jurídica do nascituro: uma página a ser virada no direito brasileiro, artigo in-serto in Questões controvertidas do Código Civil: Parte Geral do Código Civil, vol. 6, coordenação: Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Torres, São Paulo: Editora Método, p. 89).

Outra teoria que se aproxima da natalista é a da personalidade condicional, defendida por Washington de Barros Monteiro, Miguel Maria de Serpa Lopes e Clóvis Beviláqua, segundo a qual a personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, ou seja, são direitos eventuais (cf. TARTUCE, Flávio. Op. cit., loc. cit.).

A terceira corrente doutrinária a respeito da condição jurídica do nascituro é a teoria concepcionista, cuja origem está no Esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas, segundo a qual a personalidade civil começa da concepção e não do nascimento com vida. São adeptos dessa teoria Silmara Juny Chinelato, Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Roberto Senise Lisboa, Cristia-no Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Francisco Amaral, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Antonio Junqueira de Azevedo, Gustavo René Nicolau, Re-nan Lotufo e Maria Helena Diniz, além de Flávio Tartuce (cf. TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 90-91).

SILMARA JUNY CHINELATO defende que o Código Civil se filiou à teoria concepcionista, entendendo que a corrente natalista é prevista apenas na pri-meira parte do art. 2º e não se sustenta em interpretação sistemática, porquan-to os direitos não-patrimoniais, incluindo-se os direitos da personalidade, não dependem do nascimento com vida e, antes, a ele visam (cf. Estatuto jurídico do nascituro: o direito brasileiro, artigo inserto in Questões controvertidas do Código Civil: Parte Geral do Código Civil, vol. 6, cit.. p. 53).

Daí porque entende mencionada autora que “bastaria apenas um direito não-condicional, subordinado ao nascimento com vida, para que a personali-dade não fosse condicional. É o que ocorre com o status de filho e os direitos pessoais, entre os quais: o de ser reconhecido ainda no ventre materno, o de ser representado, o de ser adotado, o de ter curador. O mesmo se diga quanto aos direitos da personalidade, direitos pessoais de natureza privilegiada.”.

(...)

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 83-87, janeiro-abril/2008

Page 85: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

85

“Apenas certos efeitos de certos direitos, isto é, os direitos patrimoniais materiais, como a herança e a doação, dependem do nascimento com vida. A plenitude da eficácia desses direitos fica resolutivamente condicionada ao nas-cimento sem vida. O nascimento com vida, enunciado positivo de condição sus-pensiva, deve ser entendido, ao reverso, como enunciado negativo de uma con-dição resolutiva, isto é, o nascimento sem vida, porque a segunda parte do art. 2º do Código Civil, bem como outros de seus dispositivos, reconhecem direitos (e não expectativas de direitos) e estados ao nascituro, não desde o nascimento com vida, mas desde a concepção.”.

“O nascimento com vida aperfeiçoa o direito que dele depende, dando-lhe integral eficácia, na qual se inclui sua intransmissibilidade. Porém, a posse dos bens herdados ou doados ao nascituro pode ser exercida, por seu representante legal, desde a concepção, legitimando-o a perceber as rendas e os frutos, na qualidade de titular de direito subordinado à condição resolutiva” (Op. cit., p. 57; negritos do original).

Nesse sentido é o entendimento de MARIA HELENA DINIZ, que pontifica: “Poder-se-ia até mesmo afirmar que na vida intra-uterina tem o nascituro e na vida extra-uterina tem o embrião, concebido in vitro, personalidade jurídica for-mal, no que atina aos direitos personalíssimos, visto ter carga genética diferen-ciada desde a concepção, seja ela in vivo ou in vitro (Recomendação n. 1.046/89, n. 7, do Conselho da Europa), passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida (CC, art. 1.808, § 3º). Se nascer com vida adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer nenhum direito patrimonial terá.” (Curso de direito civil brasileiro, v. 1, 18ª ed., São Paulo: Sarai-va, 2002, p. 180, apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, v. I, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 82).

Diante desses subsídios doutrinários e considerando que o direito à filiação não tem conteúdo patrimonial, não vejo qualquer óbice a que o nascituro, re-presentado por sua mãe, promova ação de investigação de paternidade contra seu suposto pai.

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua Primeira Câmara Civil de Férias “F”, no julgamento da Apelação Cível nº 193.648-1, ocor-rido em 14 de setembro de 1993, de relatoria do Desembargador Renan Lotufo, reconheceu, em decisão emblemática, legitimidade ao nascituro para o ajuiza-mento de ação de investigação de paternidade, como se verifica da ementa a seguir transcrita, in verbis:

“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - Nascituro - Legitimidade ativa de parte - Interpretação dos artigos 5º da Constituição da República, 7º e 8º, § 3º, da Lei Federal n. 8.069, de 1990 - Extinção do processo afastada - Recurso provido.”

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 83-87, janeiro-abril/2008

Page 86: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

86

Ementa oficial:

“Investigação de Paternidade - Ação proposta em nome de nascituro pela mãe gestante. Recurso contra sentença que ex-tinguiu o processo por ilegitimidade ativa - Provimento. Su-perveniente nascimento com vida.” (Fonte: Biblioteca Digital Lex-TJSP, 1993, v. 150, p. 90).

No mesmo sentido decidiu, mais recentemente, o mesmo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua Colenda 5ª Câmara de Direito Priva-do, no julgamento da Apelação Cível nº 349.128-4/4-00, de relatoria do Desem-bargador Dimas Carneiro, merecendo ser transcrito o seguinte trecho extraído do voto vencedor proferido pelo Desembargador Silvério Ribeiro, que bem sin-tetiza a questão aqui discutida, verbis:

“A viabilidade da pretensão foi embasada em opiniões dou-trinárias respeitáveis (Carlos Maximiliano, Arnoldo Medeiros da Fonseca e Tânia da Silva Pereira).”

“Os direitos atinentes à paternidade e aos alimentos surtem efeito, relativamente ao indigitado pai, a partir do nascimen-to com vida, conditio sine qua non à sua incidência.”

“A capacidade de ser parte - legitimatio ad causam -, no en-tanto, é do nascituro, que deve ter nome, embora não conti-do no registro público na ocasião da propositura da ação.”

“Esse nome deve ser usado na ação, nada obstando que, com o nascimento, com a vida, porém, seja outro, cabendo na hi-pótese a substituição.”

“Como óbvio, a capacidade de estar em juízo - legitimatio ad processum - é do representante legal do nascituro.” (Fonte: Biblioteca Digital Lex-TJSP, 2005, v. 289, p. 192).

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sempre pio-neiro, já havia decidido, nos idos de 1984, pela possibilidade de o nascituro aforar, em nome próprio, ação de reconhecimento de paternidade, reconhe-cendo-lhe capacidade de ser parte, nos termos da ementa a seguir transcrita, in verbis:

“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. NASCITURO. CAPACIDA-DE PARA SER PARTE. AO NASCITURO ASSISTE, NO PLANO DO DIREITO PROCESSUAL, CAPACIDADE PARA SER PARTE, COMO AUTOR OU COMO RÉU. REPRESENTANDO O NASCITURO, PODE A MÃE PROPOR A AÇÃO INVESTIGATÓRIA, E O NAS-CIMENTO COM VIDA INVESTE O INFANTE NA TITULARIDADE DA PRETENSÃO DE DIREITO MATERIAL, ATÉ ENTÃO APENAS UMA EXPECTATIVA RESGUARDADA. AÇÃO PERSONALÍS-SIMA, A INVESTIGATÓRIA SOMENTE PODE SER PROPOSTA

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 83-87, janeiro-abril/2008

Page 87: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

87

PELO PRÓPRIO INVESTIGANTE, REPRESENTADO OU ASSISTI-DO, SE FOR O CASO; MAS, UMA VEZ INICIADA, FALECENDO O AUTOR, SEUS SUCESSORES TÊM DIREITO DE, HABILITAN-DO-SE, PROSSEGUIR NA DEMANDA. INAPLICABILIDADE DA REGRA DO ART. 1621 DO CÓDIGO CIVIL.” (Apelação Cível nº 583052204, Primeira Câmara Cível, rel. Athos Gusmão Carnei-ro, j. 24.4.1984. Fonte: www.tj.rs.gov.br).

Por esses motivos, entendo que não é caso de indeferimento da petição inicial, devendo a ação de investigação de paternidade prosseguir seus ulterio-res termos.

Todavia, não há como ser acolhido o pedido de alimentos provisórios, por-quanto não há, neste momento procedimental, sequer prova indiciária de que a gestante do nascituro tenha mantido relações sexuais com o réu.

Bem por isso, cite-se o réu, por oficial de justiça (CPC, art. 222, a), para ofe-recer resposta em 15 (quinze) dias (CPC, art. 297).

Int.

Itaquaquecetuba, 16 de maio de 2008.

Leonardo Caccavali MacedoJuiz de Direito

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 83-87, janeiro-abril/2008

Page 88: CadernosJurídicos31final
Page 89: CadernosJurídicos31final
Page 90: CadernosJurídicos31final
Page 91: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

91

Alberto Antonio ZvirblisProfessor e desembargador aposentado

É prerrogativa do Poder Judiciário dizer o direito, visto que jurisdição é termo oriundo do latim jurisdictio. E o Judiciário é o único Poder incumbido de solucionar os conflitos de interesses existentes em uma sociedade.

Portanto, oportuna se apresenta a análise da obra de John Rawls, que em seu tratado “Uma Teoria da Justiça”, originalmente A Theory of Justice, publi-cado em 1971 pela Universidade de Harvard, destaca a questão da justiça como eqüidade, sendo que, para o filósofo norte-americano e professor de Harvard, a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas do pensamento. Para ele, embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma que leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser refor-madas ou abolidas se injustas.

Para Rawls cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Então, des-de o primeiro parágrafo da obra epigrafada percebe-se que para Rawls a justiça é a virtude, sendo o ponto fundamental das instituições políticas. Da mesma maneira que todo sistema de pensamento visa, em última instância, a verdade. Para Rawls a busca da verdade deve ser o elemento central de qualquer teoria. E uma teoria, por mais sofisticada, bela e bem apresentada que seja, se falseia a verdade, deve ser rejeitada, do mesmo modo que as instituições podem ser mui-to eficazes, mas podem ser injustas e, por serem injustas, devem ser abolidas ou reformadas. Invoca Aristóteles apontando que uma das peculiaridades dos

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 92: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

92

homens é o senso do justo e injusto e, com o fato de partilharem um entendi-mento comum da justiça, cria-se a polis.

As circunstâncias de justiça podem ser definidas sob o prisma de coopera-ção que é tanto possível quanto necessária. Rawls admite que a sociedade seja um empreendimento cooperativo para vantagem, mas ela é tipicamente marca-da pelo conflito. Aqui a questão do conflito deverá ser analisada como conflito de interesses. O conflito surge, segundo a ótica rawlsiana, em face de que a totalidade dos recursos a serem distribuídos é menor que a demanda. Daí é que, para Rawls, há um conflito permanente entre os bens disponíveis, que são escas-sos, e o desejo ilimitado de posse. Para parte dos indivíduos há uma descoberta de que a natureza não está para nos prover recursos infinitamente, embora nós sejamos indivíduos cujos desejos, de certa maneira, são infinitos. Há conflito de interesses porque as pessoas não são indiferentes no que se refere a benefí-cios maiores produzidos pela colaboração mútua, pois, para perseguir seus fins, cada um prefere uma participação maior a outra menor. Daí resulta a exigência de um conjunto de princípios para escolher entre várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas. Esses princípios são da justiça social. São eles que fornecem um modo de atribuírem direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios necessários e encargos da cooperação social.

De Aristóteles, Rawls invoca novamente o partilhamento do senso co-mum do justo e injusto, surgindo a democracia constitucional, partindo da defesa do princípio de que as liberdades básicas de um regime democrático são garantias de uma maneira sólida por essa concepção da justiça, não só porque procura demonstrar que os princípios da justiça combinam com nossos juízos ponderados, mas também porque fornecem argumentos mais fortes em defesa das liberdades. Para Rawls, a teoria da justiça repousa sobre pressupos-tos pouco exigentes e que são amplamente acatados. A justiça pode conseguir uma aceitação geral e as liberdades estão mais firmemente embasadas quando derivam de princípios com os quais as pessoas, situadas eqüitativamente uma em relação às outras, podem concordar, se é que existe alguma possibilidade de concordância. Obviamente que a vida em sociedade tem seu ônus, mas se não vivêssemos em sociedade, não poderíamos ter uma série de coisas que dessa convivência recebemos e o ônus se constitui na limitação do nosso agir. O que Rawls denomina de estrutura básica é o balizamento que a teoria da justiça deve seguir. Não se pode olvidar que Rawls explica a justiça como eqüi-dade, visto que, entre os indivíduos com objetivos e propósitos díspares, há uma concepção partilhada de justiça que estabelece os vínculos da convivência cívica; o desejo geral de justiça limita a persecução de outros fins. Aduz: pode-se imaginar uma concepção da justiça como constituindo a carta fundamental de uma associação humana bem ordenada.

Rawls estima que o bem-estar da maioria depende de um esquema de co-operação de todos, tanto dos mais bem dotados (afortunados) quanto dos me-nos dotados (menos afortunados). Ambos os princípios operam também sob condições de razoabilidade. Rawls percebe, todavia, que uma concepção de jus-tiça não pode anular nem os dons naturais, nem as contingências sociais que incidem nas estruturas política, econômica e, em geral, em todas as dimensões da vida. Daí decorre a justiça da imparcialidade, apoiada na teoria contratualis-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 93: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

93

ta racionalista. Assim, Rawls passa a denominar a justiça como imparcialidade. Expressamente faz referência a Adam Smith: Algo é justo, por exemplo, um sistema social, se for aprovado por um espectador idealmente racional e impar-cial que ocupa um ponto de vista geral e possui todo conhecimento pertinente das circunstâncias. Uma sociedade justamente ordenada é aquela que recebe a aprovação desse observador ideal. Para Rawls, a justiça, como imparcialidade, apóia-se na teoria contratualista e na teoria da eleição racional.

John Rawls, já em sua obra Justiça como Eqüidade (Justice as Fairness), faz apologia da idéia de uma sociedade bem-ordenada, ou seja, uma sociedade efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça, que é a idéia uti-lizada para definir a teoria organizadora central da sociedade como um sistema eqüitativo de cooperação. Para ele, uma sociedade política bem-ordenada sig-nifica três coisas:

Primeiro, e implícito na idéia de uma concepção de justiça, a existência de uma sociedade na qual cada um aceita e sabe que os demais também aceitam a mesma concepção política de justiça (e portanto os mesmos princípios de justiça políti-ca). Esse conhecimento é mutuamente reconhecido, ou seja, as pessoas sabem tudo o que saberiam se sua aceitação de tais princípios tivesse resultado de acordo político.

Segundo, e implícito na idéia de regulação efetiva por uma concepção pública de justiça, todos sabem, ou por bons mo-tivos acreditam, que a estrutura básica da sociedade – ou seja, suas principais instituições políticas e sociais e a maneira como elas interagem como sistema de cooperação – respeita esses princípios de justiça.

Terceiro, e também implícito na idéia de regulação efetiva, os cidadãos têm um senso normalmente efetivo de justiça, ou seja, um senso que lhes permite entender e aplicar os princí-pios de justiça publicamente reconhecidos e, de modo geral, agir de acordo com o que sua posição na sociedade, com seus deveres e obrigações, exige.

Para John Rawls, numa sociedade bem-ordenada a concepção pública de justiça fornece um ponto de vista aceito por todos, a partir do qual os cidadãos podem arbitrar suas exigências de justiça política, seja em relação a suas institui-ções políticas ou aos demais cidadãos.

A idéia de uma sociedade bem-ordenada, em decorrência de justiça im-parcial como eqüidade, é relativa a uma sociedade democrática, pois somente ela pode desempenhar a concepção de justiça pública imparcial e mutuamente reconhecida quando o sistema é visto como cooperação entre os cidadãos livres e iguais, geração após geração, e isso proporciona uma base de unidade social que não é só suficiente, mas também é a mais razoável para nós como cidadãos de uma sociedade livre.

Na atualidade, na linha do pensamento de John Rawls, não se pode dei-xar de citar o Filósofo e Professor Brian Barry, da Columbia University, em sua obra Theories of Justice, traduzida para o espanhol por Cecília Hidalgo,

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 94: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

94

onde manifesta sua crença na existência de um vínculo íntimo entre Justiça e imparcialidade, aduzindo que, no trato com as instituições sociais, compete à Justiça a distribuição dos benefícios e ônus sociais. É questão atinente à distribuição dos direitos e dos privilégios dos poderes e das oportunidades do domínio sobre os recursos. Para Brian, o termo “recursos” é tomado em senti-do adequadamente amplo, podendo expressar sucintamente que a Justiça se preocupa com a distribuição dos recursos escassos e de cuja distribuição surge um potencial conflito de interesses.1

Brian Barry amplia substancialmente o debate sobre a justiça social, cujo pensamente filosófico e jurídico começou a ser revolucionado pelo surgimento de John Rawls, com a obra Uma Teoria da Justiça, embasando seu pensamento filosófico em um contrato social.

A originalidade da teoria de Rawls é a hipótese do “véu de ignorância”, onde os participantes são colocados em situação original e decidem os princí-pios básicos da sociedade. Eles são colocados nessa posição sem conhecerem suas posições na vida real. Desconhecem qualquer informação particular sobre sua situação na sociedade, como, por exemplo, sua classe social e seu poder econômico. Para Rawls, basta que os participantes possuam bens primários, sa-bendo, todavia, que viverão em sociedade, dando ensejo à procriação. É a teoria contratualista.

O “véu de ignorância” é a primeira originalidade da teoria rawlsiana e a segunda é a teoria da justiça como eqüidade, através da qual mostra uma alter-nativa clara ao utilitarismo, na medida em que ela se apresenta como princípio ético fundamental, cujo escopo consiste em que o homem é um fim em si mes-mo e nunca um meio para seus próprios fins. De modo geral, cada pessoa ocupa duas posições na sociedade: a da cidadania igual e aquela definida por seu lugar na distribuição de renda e riqueza.

Portanto, de acordo com a teoria rawlsiana, deve-se avaliar a estrutura bá-sica da posição de cidadania igual. Essa posição é definida pelos direitos e pela liberdade e pelo princípio de igualdade equitativa de oportunidades. Quando o princípio equitativo de oportunidades é satisfeito, todos são cidadãos iguais e o problema das liberdades fundamentais é resolvido, tendo por referência a cidadania igualitária que se resume na igualdade de oportunidades.

Brian Barry aproveita a oportunidade para observar que a igualdade da teoria rawlsiana resulta em igualdade de probabilidades, considerando que o “véu de ignorância” é hipótese que não afasta a realidade de posicionamentos diferentes existentes na sociedade, surgindo sempre o conflito de interesses na busca de bens primários, sempre escassos, em razão de uma demanda crescente, embora a teoria rawlsiana, na posição original, admite que as pessoas procurem aprimorar a distribuição eqüitativamente.

Importante ainda que se estabeleça o alcance que Rawls dá à idéia de bens primários, que se constituem em tudo aquilo que os cidadãos precisam como pessoas livres e iguais, para obtenção de uma vida plena.

1 “(...) creo, un vínculo especialmente íntimo entre justicia e imparcialidad. (...) no tratando con instituciones sociales com-pleta, la justicia concierne a la manera en que se distribuyen de los derechos y de los privilégios, de los poderes y de las oportunidades y del dominio sobre los recursos materiales.Tomando el término ‘recursos’ en um sentido adecuadamente amplio, podemos expressar esto sucintamente diciendo que la justicia se preocupa por la distribución de los recursos esca-sos, recursos acerca de cuya distribución surge un pontencial conflicto de intereses.” (Teorias de la Justicia, gedisa editorial, Cecília Hidalgo com a colaboração de Clara Lourido, pp.309/310, Barcelona, 2001)

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 95: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

95

A teoria rawlsiana faz distinção de cinco tipos de bens primários: a) a li-berdade de pensamento e de consciência, que são direitos essenciais para o adequado desenvolvimento e exercício pleno da vida em sociedade bem-orde-nada; b) as liberdades de movimento e de livre escolha de ocupação sobre as oportunidades existentes; c) os poderes e prerrogativas de cargos e posições de autoridade e responsabilidade; d) a renda e a riqueza entendidas para atingir uma ampla gama de objetivos, sejam eles quais forem; e) as bases sociais do auto-respeito para que os cidadãos possam levar adiante seus objetivos com autoconfiança.

Bens primários são, portanto, aquilo que as pessoas livres e iguais precisam como cidadãos, pois a justiça como eqüidade elabora um sistema equitativo de cooperação social, tendo, como conseqüência, a existência de bens primários eqüitativos para que cidadãos livres e iguais possam desenvolver uma vida com dignidade.

Rawls apresenta a idéia de estrutura básica, que integra uma sociedade bem-ordenada com sua Constituição política e com um Judiciário indepen-dente, além de formas legalmente reconhecidas de propriedade e estrutura de economia (na forma, por exemplo, de um sistema de mercados compe-titivos com propriedade privada dos meios de produção). Para Rawls, uma estrutura básica bem-ordenada garante o que ele denomina de justiça de fundo (background justice). Portanto, o importante aspecto da justiça como eqüidade é que nela a estrutura básica é objeto primário da justiça política. Para Rawls, a justiça como eqüidade é uma concepção política, mas não geral de justiça, pois a concepção de justiça local é pertinente a considerações de mérito independentes.

Ressalte-se que a posição original foi convencionada de “véu de ignorân-cia”. É uma situação representativa em que as pessoas ignoram a condição real de seus parceiros e o seu próprio “status” social. Através da hipotética situação original, ninguém, pelo princípio da razoabilidade, pode pretender se favore-cer, pois Rawls não aceita a teoria do utilitarismo em que se procura maximizar a felicidade coletiva, sem se preocupar com os menos favorecidos. Pela razoabi-lidade, as pessoas entendem que devem honrar seus princípios, mesmo à custa de seu próprio interesse, se as circunstâncias exigirem, mas desde que os outros também os honrem.

É sensato honrar termos equitativos de cooperação e esperar que todos possam aceitá-los. A função da justiça (como parte de uma concepção política de justiça) é definir termos de cooperação, que são os princípios dos direitos e deveres básicos garantidos pela instituição política no tocante a um regime democrático constitucional.

A concepção política democrática torna as pessoas livres e iguais em razão de a justiça especificar termos equitativos de cooperação.

A hipótese do “véu de ignorância” está embasada na teoria contratualis-ta, não fazendo qualquer referência ao estado de natureza que deu origem à teoria do contrato de Thomaz Hobbes para quem “o homem é lobo do homem” e para se defender estabelece o contrato, fazendo um pacto com o soberano, a quem transfere o poder absoluto. Em oposição, há a teoria contratualista de John Locke através da qual o homem não renuncia a seus direitos naturais em favor de um soberano absoluto, estabelecendo a idéia do parlamentarismo.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 96: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

96

A teoria da posição original de Rawls pode ser denominada neocontra-tualismo, visto que ela se apresenta como uma alternativa ao utilitarismo para a qual o homem poderia maximizar a felicidade sem se preocupar com qualquer desigualdade na distribuição de bens primários. O utilitarismo é a teoria defendia por John Stuart Mill (pai do liberalismo econômico). O utili-tarismo visa promover em maior grau o bem geral, aceitando o sacrifício de uma minoria em nome desse bem geral.

Rawls, sem dúvida, adota a teoria do contratualismo, fazendo predominar a justiça eqüitativa, através da qual se define a atuação dos princípios de atri-buição de direitos e deveres na divisão apropriada de vantagens sociais. Rawls adota a posição original como ferramenta para estabelecer a justiça eqüitativa, assim como os pensadores dos séculos 17 e 18 valeram-se da teoria do estado de natureza para argumentar sobre a origem da sociedade.

Na posição original, Rawls procura desenvolver a justiça como eqüidade, considerando que, no estado original, os parceiros se apresentam, evidente-mente, como seres racionais e mutuamente desinteressados, por não saberem suas condições socioeconômicas, pois, se soubessem, já não seriam iguais. Por-tanto, todos devem ser livres para que se mantenha a autonomia da vontade, a fim de que se possa estabelecer um acordo, refletindo um consenso sobre os princípios da justiça.

A idéia da posição original serve de ferramenta para o raciocínio de Rawls, assim como os antigos contratualistas se valeram do contrato na hipótese do estado de natureza. Rawls vale-se, portanto, da posição original, através da qual estabelece os princípios da justiça como eqüidade em decorrência da hipótese abstrata representativa da posição original.

Há, assim, o princípio de liberdade igual, em que a sociedade deve assegu-rar a máxima liberdade para cada pessoa e que seja compatível igualmente para todos os outros; o princípio da diferença, mediante o qual a sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza ante a existência de desigualdades econômicas e sociais, gerando benefícios para os menos favorecidos. O princí-pio da oportunidade justa, ante a existência das desigualdades econômicas e sociais, deve estar ligado a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades. São os princípios basilares da concepção de justiça como eqüidade de Rawls.

Mas, para que a concepção de justiça se efetive, Rawls estabelece priorida-des entre tais princípios. Destarte, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois; o princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Mas deve-se ressaltar que, em cada princípio, é mantida a idéia da distribuição.

A questão dos princípios busca mitigar a influência das contingências so-ciais na espontânea distribuição das porções dos bens sociais primários. Para que se atinja esse objetivo é necessário impor ao sistema social condições estruturais básicas adicionais e, para tanto, Rawls propugna, em sua obra (“Uma Teoria da Justiça”, 2002/77), objetivando a situação igualitária social, a necessidade de adaptações do mercado livre dentro de uma estrutura de instituições políticas e legais, regulando as tendências globais dos eventos econômicos e preservando as condições sociais necessárias para a igualdade equitativa de oportunidades. Lembra Rawls a importância de se evitar os acúmulos excessivos de propriedade e de riqueza, mantendo-se iguais oportunidades para todos. Neste caso, im-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 97: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

97

portante estender os conhecimentos culturais e qualificações a todos, pois tais conhecimentos não deveriam depender da posição de classe de uma pessoa. Em conseqüência, por exemplo, o sistema escolar, seja público ou privado, deverá destinar-se a eliminar barreiras de classe.

Para Rawls, intuitivamente, parece, que, assim, há melhoras às expectativas dos menos favorecidos da sociedade. A idéia intuitiva é de que a ordem social não deve estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhores condições, a não ser que, fazendo isso, traga também vantagens para os menos afortunados.

Quais são os menos favorecidos ou menos afortunados para Rawls? São aqueles que têm menos bens sociais primários.

Pelo princípio da diferença, aqueles agraciados pela natureza podem ter um rendimento maior se, com isso, beneficiarem os menos favorecidos.

A teoria rawlsiana não deixa de entender que a desigualdade de renda, por exemplo, não é injusta desde que ela sirva, também, para melhorar a posi-ção dos menos favorecidos.

Na justiça como eqüidade, a sociedade é interpretada como um empre-endimento cooperativo para a vantagem de todos e, segundo sua estrutura básica, é um sistema público de regras que definem um esquema de atividades que conduz os homens a agirem juntos no intuito de que cada um produza uma quantidade maior de benefícios para atribuir a cada indivíduo certos direitos reconhecidos a uma parte dos produtos. Ou seja, os mais favorecidos, de qualquer forma, contribuem para o bem-estar dos menos favorecidos.

Há, assim, na sociedade, a expectativa de melhora da situação dos menos favorecidos. Se ainda não for atingido o máximo, os mais favorecidos não po-deriam ter o poder de veto em relação aos benefícios para os menos favoreci-dos, devendo-se, em conseqüência, maximizar a melhor distribuição para cada um que estiver na pior posição. Neste tópico surge a expressão “maximin”, oriunda de teoria econômica, sugerindo a maximização do mínimo (maximus minorum.). A maximização integra o princípio da diferença para estabelecer a maximização da posição dos menos favorecidos, como critério de distribuição de vantagens socioeconômicas.

Portanto, através do princípio da diferença visam-se: primeiro, promover certos interesses fundamentais que todos têm em comum, isto é, a liberda-de igualitária e, segundo, permitindo, em uma sociedade, cargos e posições abertos a todos, cabendo às autoridades, aos legisladores e juízes melhorar a posição dos menos favorecidos, melhorando, com isso, a situação dos cidadãos em geral.

Para Rawls, a liberdade igualitária está hierarquizada em relação ao prin-cípio da igualdade, uma vez que para ele não se vai sacrificar a liberdade em nome da igualdade. Em uma sociedade justa não se sacrifica a liberdade em nome da igualdade. A igualdade toma partido da melhoria da situação dos menos favorecidos pelo consenso da liberdade.

A teoria da justiça de Rawls faz apologia do liberalismo igualitário, sem conflitar com o regime de propriedade privada, evidenciando ser ele um social democrata com o escopo da distribuição dos direitos sobre os bens materiais, mas sem sacrificar a liberdade.

A teoria rawlsiana está sujeita a crítica, como, aliás, todo pensamento filosófico que sofre as conseqüências do dinamismo evolutivo da sociedade.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 98: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

98

Pode-se apontar, nesta oportunidade, de forma resumida, um tópico das críticas que a obra A Justiça Igualitária e seus Críticos, de Álvaro de Vita, do-cente do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo2, faz à questão de atuação voluntária, pois toda estrutura institucional estabelece normas de cumprimento obrigatório, que envolvem um grau de limitações e o mesmo grau de coerção sobre aqueles que a ela estão submetidos. O Estado não é uma associação voluntária, na qual entramos ao nascer e só saímos ao morrer. O docente da USP, criticando a teoria rawlsiana, observa que os direi-tos e deveres distribuídos pela sociedade não são voluntariamente assumidos pelos cidadãos, como em qualquer outra associação.

Críticas à parte, não se pode negar que é racional a teoria rawlsiana em considerar as medidas necessárias à preservação de instituições justas, supon-do-se sempre que as exigências da liberdade igual e do império da lei sejam adequadamente reconhecidas como justas, visto que para Rawls a sociedade deve ser considerada como um empreendimento cooperativo entre cidadãos iguais e livres.

A teoria rawlsiana, visando, sem dúvida, aos fundamentos de liberdades políticas, admite a pluralidade de religiões, pois, pelo consenso, todos concor-dam com a manutenção da liberdade religiosa na sociedade.

A idéia da posição original deve ser considerada como um dispositivo de representação, entre a igualdade eqüitativa de oportunidades, incluindo-se o direito de propriedade sob a proteção e domínio da lei.

Todavia, Rawls, acolhendo algumas críticas, não deixa de admitir, na obra Liberalismo Político (1996/25), que sua teoria deixa de lado a maior parte das questões sobre as exigências de democracia nas empresas e nos locais de tra-balho, assim como deixa de lado, também, a questão ambiental.

A teoria rawlsiana pode assumir o papel de mediação e estabelecer coe-rência em nossos juízos, fornecendo, por exemplo, parâmetros para solucionar outras questões. Assim como Lincoln invocou a igualdade da Declaração da Independência dos Estados Unidos para condenar a escravatura, a teoria da justiça poderá ser invocada, por exemplo, para solucionar as desigualdades e opressões da mulher em uma sociedade.

A idéia da representação da posição original foi adotada para ser elabo-rada uma concepção política de justiça, a partir da fundamental cooperação entre cidadãos considerados como livres e iguais.

Rawls não deixa de salientar que cabe a cada pessoa, na posição original, decidir sobre o grau de complexidade dos problemas de justiça e, embora dife-renças éticas persistam, não se pode deixar de considerar que o mundo social, a partir da posição original, realmente permite que se atinja um entendimento básico. Assim, podemos destacar: (...). A aceitação dos princípios do justo e da justiça forja os vínculos de amizade cívica e estabelece a base da civilidade em meio às muitas disparidades persistentes. Os cidadãos são capazes de reconhe-cer a boa-fé e o desejo de justiça uns dos outros, mesmo que ocasionalmente possam quebrar acordos sobre questões constitucionais e, com toda certeza, sobre várias questões políticas. Mas, se não existisse uma perspectiva comum, cuja adoção estreitasse as divergências de opinião, o raciocínio e argumenta-

2 Alvará de Vita : A justiça igualitária e seus críticos, pp. 176/177 edição Martins Fontes, 2007, SP

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 99: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

99

ção seriam inúteis, e não teríamos motivos racionais para acreditar na solidez de nossas convicções. (Uma Teoria da Justiça, 2002/576).

Assim, as partes, deliberando, na posição original, não somente estão sujeitas às restrições impostas pelo “véu de ignorância”, como também repre-sentam os cidadãos considerados pessoas racionais e razoáveis, onde a razoa-bilidade é cultivada por eles como característica dos princípios que aspiram um reconhecimento público.

A teoria da justiça de John Rawls traz aqui o célebre pensamento de Aristóteles de que a prática da justiça assemelha os homens aos deuses e sua ausência os transforma em verdadeiras bestas humanas. É um pensamento aristotélico e emblemático, de citação oportuna.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 91-99, janeiro-abril/2008

Page 100: CadernosJurídicos31final
Page 101: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

101

Antonio Carlos Santoro FilhoJuiz de Direito no Estado de São Paulo

SUMÁRIO: 1. Da designação de audiência. 2. Das provas. 3. Da mutatio e emendatio libelli. 4. Das diligências, con-clusão da audiência e sentença. 5. Peculiaridades do pro-cedimento sumário

1. Da designação de audiência

Recebida a denúncia ou queixa1 por crime cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos de prisão, adotar-se-á o procedimento ordinário. No ato de recebimento, designará o juiz data e horário para audiência de instrução e julgamento una, para a qual deverão ser intimados pessoalmente o Ministério Público, o querelante, o réu e, se for a hipótese, o assistente da acusação2.

Quanto ao réu preso, deverá ser requisitado para a audiência, bem como para o interrogatório, cumprindo ao Estado a sua apresentação3.

O projeto original previa, ao lado do prazo de sessenta dias para a entrada em vigor das modificações legislativas, que o novo sistema somente teria aplica-ção aos processos nos quais ainda não houvesse o recebimento da denúncia ou

1 Entendemos que a designação da audiência, a fim se evitar a prática de atos desnecessários, somente deverá ocorrer após a ratificação do recebimento da inicial acusatória, isto é, em não se tratando de hipótese de absolvição sumária ou de acolhimento de eventuais preliminares levantadas pelo réu, o que somente poderá ser verificado após o oferecimento de resposta pelo réu. A questão será melhor tratada, no entanto, em futuro artigo a respeito da citação, resposta do acusado e juízo de admissibilidade da acusação.

2 CPP, art. 399, caput, com a redação que lhe deu a Lei n. 11.719/08. 3 CPP, art. 399, § 1º, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Reforma do processo penal:instrução e julgamento

Page 102: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

102

queixa, o que solucionaria o problema relativo à aplicabilidade da nova legisla-ção aos processos em andamento.

Pensamos que, se é verdade que a norma em vigor rege o ato processual, não menos certo é que não parece cabível a conjugação dos procedimentos – novo e revogado – com a criação, pelo Juiz, de um terceiro procedimento, em atuação própria – e exclusiva – do legislador.

Parece-nos, portanto, para se evitar tumulto no andamento dos feitos, que o novo procedimento somente deverá ser aplicado àqueles processos em que ainda não tenha sido interrogado o réu, sendo possível, em tal caso, o cance-lamento da audiência para tal fim designada e a designação, em substituição, da audiência de instrução e julgamento. Nos demais feitos prosseguir-se-á nos termos do procedimento revogado, sendo possível a realização de novo inter-rogatório do acusado ao final da instrução, o que evitará eventual alegação de prejuízo pela Defesa.

A audiência, conforme nova redação do art. 400, do CPP, deverá ser desig-nada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias.

Apesar de louvável a preocupação do legislador com a celeridade do proces-so penal, forçoso reconhecer que tal prazo encontra-se completamente divorcia-do da realidade das varas criminais, para não se falar daquelas em que, além da competência criminal, acumula-se também as áreas cível, de família, de fazenda pública e até mesmo a competência federal – denominadas “cumulativas”.

De fato, para discorrermos sobre a realidade que já vivenciamos, não se pode desconhecer que no Estado de São Paulo, em virtude da grande movimentação processual e acúmulo de serviço, as varas criminais dificilmente possuem pauta de audiências compatível com o prazo exíguo fixado pelo legislador – ao menos para os réus soltos –, pois, sem dúvida, os processos com réus presos devem gozar de preferência, uma vez que se encontra em conflito o seu direito à liberdade.

Além disso, estando o réu preso em outra comarca – situação bastante comum, provocada pela descentralização dos sistemas de centros de detenção provisória e prisional –, o prazo mínimo para atendimento de requisições é, em regra, de 20 (vinte) dias úteis, o que, por si só, já causará dificuldades ao término da instrução no lapso fixado em lei.

Por fim, não se pode deixar de objetar que, com a concentração dos atos pro-cessuais em uma única audiência, a organização das pautas deverá sofrer profundas modificações, o que implicará a designação de um menor número de solenidades por dia, de modo a permitir a sua conclusão na mesma data sem o esgotamento mental de todos os envolvidos no processo – juízes, promotores e advogados.

Portanto, a fixação de prazo exíguo para a realização de audiência sem a dotação, ao Poder Judiciário, de número de varas suficiente e mínimas condi-ções para o julgamento célere, não se prestará, como por “mágica”, a atacar o problema da morosidade.

2. Das provas

2.1. Do ofendido

Sempre que possível, de preferência no início da audiência, será ouvido em declarações o ofendido, devendo ser perguntado sobre as circunstâncias

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 103: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

103

da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor e as provas que possa indicar4.

Caso o ofendido, regularmente intimado, não compareça, poderá ser conduzido coercitivamente5.

Tanto antes, como durante a audiência, deverá ser reservado ao ofendido espaço separado para a sua permanência, evitando-se, assim, o seu contato com o réu ou com as testemunhas6.

Para se preservar o bem-estar, segurança e intimidade do ofendido, o art. 201, do CPP, em seus parágrafos, de acordo com a redação que lhe con-feriu a Lei 11.690 de 9 de junho de 2008, prevê uma série de medidas acau-telatórias.

Assim, pode o juiz decretar o segredo de justiça em relação a seus dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito, para evitar a sua exposição nos meios de comunicações; deverá ser comunicado do andamento processual, especialmente dos atos relativos ao ingresso ou saída do réu da prisão, o resultado da sentença, bem como acórdãos que a mante-nham ou modifiquem.

Possível ao juiz, ainda, caso entenda necessário, encaminhar o ofendido a serviços de atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, às expensas do Estado ou do ofensor.

Poder-se-ia cogitar de inconstitucionalidade da previsão de custeio de despesas da vítima pelo ofensor, na medida em que representaria “julgamen-to antecipado”, em contrariedade ao princípio do estado de inocência.

Cremos, contudo, que a crítica não deve resistir, uma vez que a medida não envolve o reconhecimento de culpa, mas se trata de providência de natu-reza cautelar, semelhante em tudo àquelas determinadas no processo civil – e inclusive possível neste âmbito, em processo autônomo – e que demandam a presença do fumus boni iuris e o periculum in mora.

Assim, para que o juiz determine o atendimento multidisciplinar do ofen-dido às custas do ofensor, indispensável será que se encontrem presentes os pressupostos da tutela cautelar. Ausentes ou duvidosos estes pressupostos, e sendo necessário o atendimento, deverá ser prestado às expensas do Estado, pois a mera existência do processo não se presta àquele efeito.

Embora não se trate o ofendido de testemunha, após a colheita das in-formações previstas pelo art. 201, do CPP, a sua oitiva deverá seguir as mesmas diretrizes impostas pelo art. 212, isto é, perguntas formuladas diretamente pelas partes, com a supervisão e, se necessário, complementação pelo juízo.

2.2. Das testemunhas

Cada parte poderá arrolar até oito testemunhas – na inicial acusatória (de-núncia ou queixa) e resposta –, não se compreendendo neste número aquelas

4 CPP, art. 201, caput, com a redação que lhe deu a Lei n. 11.690 de 09 de junho de 2008. 5 CPP, art. 201, § 1º, em sua nova redação. 6 CPP, art. 201, § 4º, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 104: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

104

que não prestem compromisso7 e as referidas, cuja oitiva tenha o caráter de imprescindibilidade8.

As partes poderão desistir da oitiva de testemunhas arroladas, indepen-dentemente da anuência da outra9, sem prejuízo, no entanto, de sua oitiva de ofício pelo juiz, conforme art. 209, do CPP.

Deverá ser preservada, antes da oitiva, a incomunicabilidade das testemunhas, devendo ser separadas, ao menos, aquelas arroladas pela acusação e defesa.

De qualquer forma, as testemunhas deverão ser ouvidas uma de cada vez, garantindo-se que não ouçam os depoimentos umas das outras e que não man-tenham contato, após a oitiva, com as demais, o que evitará o conhecimento do teor dos depoimentos e das perguntas formuladas10.

Antes do início do depoimento a testemunha deverá ser advertida de seu de-ver de dizer a verdade, bem como das penas para o crime de falso testemunho11.

Entendemos que, também antes do depoimento propriamente dito, até mesmo por economia processual, deve ser realizado, pela testemunha, o reco-nhecimento de pessoas ou coisas, com as cautelas, se possível12, do art. 226, do Código de Processo Penal.

Ainda antes do início do depoimento, se o juiz verificar ou for alertado de que a presença do réu poderá causar humilhação, temor ou sério constrangi-mento à testemunha, com risco à verdade do depoimento, fará a sua inquirição, se materialmente possível, por videoconferência e, na impossibilidade, determi-nará a retirada do acusado, prosseguindo com a inquirição, na presença do de-fensor13. A mesma providência é também cabível quando da oitiva do ofendido. A adoção de qualquer destas medidas, assim como seus fundamentos, deverão constar do termo de audiência14.

Pensamos que a citada providência somente não será possível na hipótese de se tratar de réu advogado, que atue em causa própria – situação incomum, mas não rara –, pois, em tal caso, a sua retirada do recinto da audiência implica-ria cerceamento da defesa técnica e imposição, sem amparo legal – ou constitu-cional – de defesa dativa em substituição à “constituída”.

Qualificada e advertida a testemunha das penas do crime de falso teste-munho, inicia-se o depoimento, com a formulação direta pelas partes das per-

7 Estão isentos do compromisso, nos termos do art. 208, do CPP, os doentes e deficientes mentais, os menores de 14 anos, bem como as pessoas a que se refere o art. 206, do CPP, isto é, o ascendente, o descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que separado, o irmão, o pai, a mãe e o filho adotivo do acusado.

8 CPP, art. 401, § 1º, em sua nova redação. 9 CPP, art. 401, § 2º. O projeto original previa tal anuência. De qualquer forma, tratando-se de prova imprescindível à apu-

ração da verdade real, pode o juiz, de ofício, determinar a oitiva, nos termos do art. 209, do CPP, conforme já anotado no corpo deste artigo.

10 CPP, art. 210, em sua nova redação. 11 CPP, art. 210, caput, em sua nova redação. 12 Neste sentido o posicionamento pacífico da jurisprudência. Somente a título de ilustração: “Normalmente, réus e vítimas (e

testemunhas) são postos vis-à-vis durante a audiência, de sorte que a recognição (ou sua confirmação) é feita sem maiores dificuldades. Ocasiões há, todavia, em que o juiz faz retirar o réu (CPP, art. 217), contingência em que o reconhecimento é feito através, ou de visor instalado na porta da sala de audiências, ou, quando inexistente esse dispositivo, da porta entre-aberta. Não sendo o caso de presumir imperfeito reconhecimento levado a cabo em tais circunstâncias, a procedência de sua impugnação exige demonstração convincente. De outra parte, é necessário ter bem claro na mente que a formalidade indicada no inciso II do art. 226 (CPP) não integra a essência do ato recognitivo, pois apenas será preenchida “se possível”; pois bem, é de imediata compreensão, para quem tem os pés na terra e não tem olhos perdidos no horizonte da utopia, que aquela providência é “impossível” nas habituais condições de desenvolvimento das audiências”. (TACRIM-SP, Apelação-Reclusão nº 1.112.413-1)

13 CPP, art. 217, caput, em sua nova redação. 14 CPP, art. 217, parágrafo único, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 105: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

105

guntas15. Tratando-se de testemunha arrolada pela acusação, primeiro serão formuladas as perguntas pelo Ministério Público e assistente da acusação – ou querelante, se se tratar de ação privada – e, depois, pelos defensores; a ordem será invertida quando da oitiva das testemunhas arroladas pela defesa.

Serão indeferidas pelo juiz as perguntas que possam induzir a resposta – como, por exemplo, aquelas que já contêm a resposta em seu conteúdo e que fornecem elementos e circunstâncias à testemunha16 –, as que não tiverem relação com a cau-sa – ou seja, com a acusação ou eventual tese de defesa – ou que importarem repe-tição de questões já respondidas. Em qualquer caso, em havendo inconformismo, a requerimento da parte a questão não admitida deverá constar do termo.

Diante da nova redação do art. 212, caput, do Código de Processo Penal, que objetivou a simplificação da colheita de provas, pensamos que os depoi-mentos das testemunhas devem ser iniciados já com as perguntas formuladas pelas partes, cabendo ao juiz, na forma do parágrafo único do citado artigo, apenas a complementação da inquirição sobre pontos que lhe parecem relevan-tes e que não restaram esclarecidos.

Apesar deste nosso posicionamento, não vislumbramos prejuízo na hipó-tese do juiz, antes de dar a palavra às partes, formular algumas perguntas à testemunha, especialmente aquelas que tenham por objetivo apurar a forma como os fatos controvertidos chegaram ao conhecimento do depoente, isto é, se se trata de testemunha presencial ou indireta.

Os depoimentos, preferencialmente e quando possível, serão registrados por meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia ou técnica similar, inclusive audiovisual, o que tem por escopo obter maior fidelidade das informa-ções produzidas. Caso não seja viável o registro por qualquer desses sistemas, in-cumbirá ao juiz – e não às partes – o ditado do depoimento, em termo próprio, bem como o registro das eventuais perguntas não admitidas.

2.3. Dos esclarecimentos dos peritos e assistentes técnicos

No curso do processo poderão as partes requerer esclarecimentos dos peri-tos subscritores das provas técnicas.

Tais esclarecimentos poderão se dar de duas formas: por laudo comple-mentar; por oitiva em audiência.

Os esclarecimentos requeridos, contudo, deverão ser desde logo aponta-dos, cabendo ao interessado indicar as questões ou quesitos suplementares.

De qualquer forma, para que reste viabilizada a diligência, o mandado de intimação e os quesitos ou questões a serem esclarecidas deverão ser encami-nhados com antecedência mínima de dez dias, a fim de viabilizar os trabalhos técnicos17.

15 CPP, art. 212, caput, em sua nova redação.16 Para se extrair a verdade sem indução, as perguntas devem ser seqüenciais e evitar o fornecimento à testemunha da respos-

ta que se pretende. Assim, se havia um carro sedã verde no local dos fatos, deverão ser formuladas as seguintes perguntas: Havia um carro no local dos fatos? Qual era o seu tipo? Qual era a sua cor? Inadmissível, assim, questionar-se: Havia um carro sedã verde no local dos fatos? De igual forma, para se extrair se o réu estava armado, e qual o tipo de armamento, deve-se questionar: O réu estava armado? Qual o modelo da arma? A arma era comum ou niquelada? Não pode o juiz admitir, sobre esta questão, a seguinte pergunta: O senhor viu em poder do réu a pistola 9mm niquelada apreendida?

17 CPP, art. 159, § 5º, inciso I, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 106: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

106

Podem as partes, ainda, para respaldar as suas alegações com relação à prova pericial, valer-se da indicação de assistentes técnicos, os quais deverão apresentar os seus pareceres, em prazo fixado pelo juiz – após o qual, em princí-pio, ocorrerá a preclusão temporal –, ou para serem ouvidos em audiência18.

Para viabilizar os trabalhos dos assistentes técnicos e havendo requerimen-to das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será disponibi-lizado no ambiente do órgão oficial – sendo vedada, portanto, a sua retirada, ainda que parcial –, na presença do perito oficial – com o qual deverá ser agen-dada a vistoria –, salvo impossibilidade de sua conservação.

2.4. Do interrogatório do réu

À semelhança do que já ocorria no procedimento dos Juizados Especiais Criminais, o legislador optou por deixar o interrogatório como último ato da instrução, a fim de permitir ao acusado o mais amplo exercício do direito de defesa, na medida em que poderá se pronunciar, pessoalmente, sobre todas as provas produzidas.

À exceção do momento processual de sua produção, o novo sistema pro-cedimental não trouxe alterações sensíveis na disciplina deste meio de prova e de defesa.

Assim, após ser alertado de seu direito de permanecer em silêncio e de não responder às perguntas que lhe forem formuladas, passará o juiz a perguntar-lhe sobre a sua pessoa e sobre os fatos.

Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou al-gum fato a ser esclarecido e formulará, se entender pertinente e relevante, as perguntas respectivas.

Ao interrogatório do réu, portanto, por falta de previsão legal, não se aplica, a nosso ver, a disposição contida no art. 212, caput, do CPP19, ou seja, não se faculta às partes a formulação de perguntas diretas ao acusado, mas, tão-somente, o eventual requerimento de esclarecimentos, que, se relevantes e pertinentes, serão questionados.

Concluído o interrogatório, encerra-se, em princípio, a instrução criminal.

18 CPP, art. 159, § 5º, inciso II, em sua nova redação. 19 E nem o disposto no art. 474, § 1º, do CPP, na redação que lhe deu a Lei n. 1.689 de 9 de junho de 2008, que tem seu âmbito

de aplicação, tão-somente, na instrução em plenário do Júri. Reza o referido artigo: “Art. 474. A seguir será o acusado in-terrogado, se estiver presente, na forma estabelecida no Capítulo III do Título VII do Livro I deste Código, com as alterações introduzidas nesta Seção. § 1º O Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente, perguntas ao acusado”.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 107: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

107

3. Da mutatio e emendatio libelli

3.1. Da mutatio libelli

A disciplina da mutatio libelli sofreu, também, sensíveis alterações com a novel legislação.

Com efeito, trata-se, agora, de providência cuja verificação cabe em princí-pio ao Ministério Público, em ação penal de iniciativa pública.

Assim, após o encerramento da instrução probatória, se entender o Minis-tério Público cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, poderá aditar a denúncia ou queixa-crime subsidiária.

Para a mutatio libelli, portanto, devem concorrer os seguintes requisitos: (a) tra-tar-se de ação penal de iniciativa pública, o que torna incabível a providência no âm-bito das ações penais privadas próprias; (b) haver prova de elemento ou circunstância que implique a alteração da definição jurídica – subsunção típica – do fato20; (c) não estar tal circunstância ou elemento contidos na acusação, na medida em que o réu se defende dos fatos que lhe são imputados, e não da respectiva definição jurídica.

A mutatio libelli, assim, não mais constitui pressuposto a possibilidade de aplicação de pena mais grave, exigida no regime anterior, mas apenas a nova definição jurídica decorrente da prova produzida.

O aditamento será formulado oralmente e reduzido a termo, quando na audiência, ou por escrito, se já encerrada a solenidade. Em qualquer caso, será ouvido a respeito o defensor do acusado21, em até cinco dias.

A mutatio libelli, em vista das normas que a regulam, deve ser efetivada, obrigatoriamente, em primeiro grau, permanecendo íntegra, portanto, a súmu-la n. 453, do Supremo Tribunal Federal: “Não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do CPP [art. 384, caput, do CPP]”.

Recebido o aditamento, cada parte poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de cinco dias22 e, se houver requerimento, designará o juiz dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interroga-tório do acusado, debates e julgamento23.

Em vista da necessidade de correlação entre a acusação e sentença, o juiz, recebido o aditamento, ficará adstrito a seus termos, não podendo, por força de eventuais circunstâncias apuradas na instrução, que não constaram do referido aditamento, ampliar a imputação.

A designação de audiência em continuação é condicionada ao requerimen-to das partes porque estas, desde logo, poderão informar que não têm outras testemunhas ou provas a produzir, hipótese em que será realizado o interroga-tório do réu sobre o aditamento24.

20 Assim, por exemplo, se durante a instrução criminal relativa a um crime de furto restar demonstrado que houve a perpe-tração de violência ou ameaça para a subtração da coisa, cabível será o aditamento para incluir esta circunstância na acusa-ção, aditando-se a denúncia. Da mesma forma deverá proceder o órgão acusador na hipótese contrária – mesmo havendo diminuição da pena cominada –, ou ainda quando não houver alteração da pena abstratamente cominada –, por ex.: furto e apropriação indébita.

21 CPP, art. 384, § 2º, em sua nova redação. 22 CPP, art. 384, § 4º, em sua nova redação. 23 CPP, idem.24 A realização de novo interrogatório sobre os termos do aditamento é, a nosso ver, indispensável, pois há de se conferir ao

acusado a oportunidade para se defender pessoalmente sobre os novos fatos que lhe são imputados.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 108: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

108

Se não houver o recebimento do aditamento, a audiência prosseguirá, o que leva à conclusão de que tal decisão é irrecorrível25.

Se em conseqüência da nova definição jurídica houver possibilidade de sus-pensão condicional do processo, o juiz dará vista ao Ministério Público para a formulação de proposta26. Tratando-se a infração capitulada, decorrente do adi-tamento, de competência do Jecrim, a este serão encaminhados os autos27.

Caso o Ministério Público, entretanto, recuse-se a aditar a denúncia e, en-tendendo o juiz a existência de prova de elemento ou circunstância que impli-que a alteração da definição jurídica do fato, deverá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, nos termos do art. 28, do CPP.

3.2. Da emendatio libelli

Trata-se a emendatio libelli de correção da capitulação jurídica contida na denúncia, pelo juiz, sem qualquer modificação quanto ao fato descrito, ainda que em virtude de tal alteração tenha de aplicar pena mais grave28.

Se em conseqüência da nova definição jurídica houver possibilidade de sus-pensão do processo – por exemplo, furto simples, e não qualificado –, dará o juiz vista ao Ministério Público para a formulação de proposta29; tratando-se de infração de competência do Juizado Especial Criminal – por exemplo, tráfico de entorpecentes desclassificado para porte para uso próprio –, a este serão reme-tidos os autos.

4. Das diligências, conclusão da audiência e sentença.Produzidas as provas, ao final da audiência passa-se à fase antes disciplina-

da pelo art. 499, do Código de Processo Penal – agora revogado. Assim, o Ministério Público, o querelante, o assistente e, a seguir, o acusado

poderão requerer diligências cuja necessidade ou conveniência se origine de cir-cunstâncias ou fatos apurados na instrução30. Pode o juiz, também, determiná-las de ofício31.

25 A jurisprudência, antes da reforma, era controvertida a respeito da recorribilidade da decisão que rejeitava o aditamento. O Supremo Tribunal já admitiu o recurso em sentido estrito para impugnar a decisão: “DENÚNCIA - Aditamento - Rejei-ção - Recurso em sentido estrito interposto do despacho - Cabimento - Inexistência de flagrante controvérsia a respeito na doutrina e na jurisprudência - Recurso extraordinário não conhecido - Inteligência do art. 581, I, do CPP (STF)” RT 607/410. Também neste sentido o posicionamento predominante no STJ: “PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. ADITA-MENTO À DENÚNCIA. REJEIÇÃO. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. É cabível o recurso stricto sensu da decisão que indefere o aditamento da denúncia. Inteligência do art. 581, I, CPP. Recurso especial conhecido e provido” (REsp. 435.256-CE – 5ª T. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – j. 15.4.2003, v.u.). Orientação semelhante: REsp. 184477, j. 19.02.2002; REsp. 48152, j. 30.11.1994. Assim, admitida a recorribilidade da decisão, esta deverá ser impugnada por recurso em sentido estrito.

26 CPP, art. 384, § 3º, em sua nova redação.27 Idem.28 CPP, art. 383, caput.29 Sempre entendemos que havendo recusa injustificada do Ministério Público, por se tratar a suspensão condicional do

processo de direito subjetivo público do denunciado, possível seria a formulação de proposta de ofício, na medida em que entre proposta de suspensão do processo e arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação inexiste qualquer similitude apta a ensejar a aplicação de dispositivo legal por analogia. O Supremo Tribunal Federal, todavia, resolveu a con-trovérsia em sentido contrário, nos termos de sua Súmula n. 696: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”.

30 CPP, art. 402, em sua nova redação. 31 CPP, art. 404, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 109: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

109

Trata-se de fase processual, portanto, que não se destina ao requerimento amplo de provas – cuja postulação já deveria constar da inicial acusatória ou da resposta –, mas apenas daquelas cuja necessidade ou conveniência decorra da apuração da instrução.

É este, assim, o momento oportuno, por exemplo, para o requerimento de oitiva das testemunhas referidas ou da juntada de documentos antes desconhe-cidos, mencionados pelas testemunhas.

De qualquer forma, cabe ao juiz apreciar a necessidade ou conveniência das diligências requeridas, devendo indeferir aquelas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias32.

Contra esta decisão não cabe recurso, devendo ser alegado, se a hipótese, cerceamento de acusação ou de defesa nas alegações finais e eventuais razões de apelação contra a sentença.

Ordenada a diligência, a audiência será concluída sem as alegações fi-nais, que serão substituídas por memoriais após o cumprimento do quanto determinado.

Ausente ou indeferido, no entanto, eventual requerimento, deverão ser oferecidas alegações orais pelas partes.

As alegações finais serão inicialmente oferecidas pelo Ministério Público, no prazo de vinte minutos, prorrogáveis por mais dez33. Se houver assistente da acusação, este também terá a palavra, pelo prazo de dez minutos, improrrogá-veis, ante a ausência de previsão neste sentido34.

Após a manifestação da acusação, a palavra será dada à defesa. Cada defensor terá o prazo também de vinte minutos para se manifestar, prorro-gáveis por mais dez, ou por mais vinte, caso haja assistente da acusação com manifestação.

Colhidas as manifestações das partes, proferirá o juiz a sentença, na mesma oportunidade, isto é, também no termo, que deverá conter o resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência35.

Tratando-se de processo complexo ou com grande número de acusados, poderá36 o juiz conceder às partes, sucessivamente, o prazo de cinco dias para apresentação de memoriais. Nesse caso, a sentença deverá ser proferida em dez dias37.

Desta previsão depreende-se que, não sendo conferida às partes oportuni-dade para a apresentação de memoriais, cumpre ao juiz, no encerramento da solenidade, o proferimento de sentença, não lhe facultando o Código a deter-minação de posterior conclusão dos autos.

Em qualquer hipótese, entretanto, seja com a apresentação de alegações orais, seja por memoriais, o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença38.

Trata-se de inovação bastante relevante, pois introduzido o instituto da vinculação do juiz no processo penal.

32 CPP, art. 403, em sua nova redação. 33 CPP, art. 403, caput, em sua nova redação. 34 CPP, art. 403, 2º, em sua nova redação. 35 CPP, artigos 403, caput, e 405, caput, ambos de acordo com a nova redação estabelecida pela Lei n. 11.719/08. 36 Não se trata, portanto, de direito subjetivo das partes, ficando a questão ao prudente critério do juiz. 37 CPP, art. 403, § 3º, em sua nova redação. 38 CPP, art. 399, § 2º, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 110: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

110

Embora a novel legislação não tenha previsto qualquer exceção a tal vin-culação, entendemos que, por analogia, o disposto no art. 132, do Código de Processo Civil, deve ser aplicado à espécie, pois prevê determinadas situações em que a observância do princípio da identidade física do juiz implicaria julga-mento nulo.

Assim, cessará a vinculação se o juiz estiver convocado, licenciado ou afas-tado por qualquer motivo39 – em suma, afastado da jurisdição no Juízo –, se for promovido – pois lhe falta competência para dispor sobre o processo – ou apo-sentado – sem jurisdição alguma.

Em tais casos, os autos deverão ser passados ao sucessor do magistrado que presidiu os atos de instrução, isto é, aquele que estiver respondendo pelo juízo.

Proferida sentença, se condenatória, o juiz fixará valor mínimo para a re-paração dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido40.

A nosso ver é de duvidosa constitucionalidade o referido dispositivo, ao menos quanto aos danos materiais, na medida em que, embora a condenação torne certa a obrigação de reparar o dano, nos termos do art. 91, inciso I, do Có-digo Penal, não se pode deixar de observar que a quantificação, isto é, a liquida-ção do dano, não constitui, em regra, objeto da imputação contida no processo criminal, de forma que, sobre este ponto, em verdade não há a formulação de pedido certo e determinado e muito menos o estabelecimento de contraditório pleno, com todos os recursos – e provas – a ele inerentes.

Assim, para uma interpretação conforme a Constituição, entendemos que a nova disposição deverá ser interpretada nos seguintes termos: se na inicial acusatória constar a quantificação dos prejuízos materiais 41 sofridos pelo ofen-dido, a sentença condenatória poderá fixar o valor mínimo para a reparação, igual ou inferior a esse quantum, pois conferida ao réu oportunidade para se defender de todos os termos da imputação, inclusive do prejuízo causado cuja responsabilidade lhe é atribuída; se não houver a apresentação de valor líquido do prejuízo, descabida será a fixação arbitrária pelo juízo, devendo o ofendido liquidar o dano na justiça cível.

Ainda em caso de decisão condenatória, decidirá o juiz, fundamentada-mente – não bastando, assim, mera anotação de permanência dos pressupostos da prisão cautelar –, sobre a manutenção ou decretação da prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar, as quais, ainda que não efetivadas, não impe-dirão o conhecimento do recurso de apelação42.

39 Aqui não se inclui, a nosso ver, o gozo de férias, que possui disciplina própria e que não constitui modalidade de licencia-mento ou afastamento.

40 CPP, art. 387, inciso IV, c.c. art. 63, parágrafo único, em suas novas redações. 41 Com relação aos danos morais decorrentes do sofrimento do ato ilícito, no entanto, tal quantificação prévia parece des-

picienda, não padecendo o dispositivo de inconstitucionalidade alguma, na medida em que a jurisprudência, inclusive do STJ, já deixou assentado que o dano moral independe de outras provas, sendo suficiente, para a sua configuração, a demonstração apenas do fato que o ocasionou (REsp nº 595.355⁄MG, Terceira Turma, Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 11.4.05). Assim, uma vez que o réu defende-se da imputação, reconhecendo a sentença condenatória a ocorrência do ilícito penal, o dano moral, cuja compensação fica sujeita ao arbitramento judicial, torna-se certo, de maneira que a fixação do valor da indenização pelo próprio juiz criminal em nada afeta o direito de defesa do condenado, pois a liquidação no juízo cível também se daria por mero arbitramento, independentemente de outras provas. Trata-se de medida, portanto, que proporciona economia processual sem menosprezar, por um lado, os direitos do acusado, e que, por outro, vai ao encontro dos interesses da vítima.

42 A alteração está de acordo com a Súmula n. 347 do STJ: “O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão”.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 111: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

111

Se absolutória a sentença, ordenará o juiz a cessação das medidas cautela-res – prisão e, inclusive, a nosso ver, o custeamento de atendimento multidisci-plinar da vítima pelo ofensor43.

5. Peculiaridades do procedimento sumário

A reforma do processo penal alterou o critério para a adoção do procedi-mento ordinário ou sumário, antes fundada na espécie de pena, isto é, reclusão/ordinário, detenção/sumário.

Estabeleceu-se que o procedimento sumário será adotado quando tiver por objeto crime cuja pena máxima seja inferior a quatro anos de prisão, desde que não se trate de infração de menor potencial ofensivo44.

Ao procedimento sumário são aplicáveis todas as normas relativas à fase preliminar, previstas pelos artigos 395 a 398, do CPP.

As mínimas distinções entre os procedimentos ordinário e sumário não pa-recem justificar a aparente desnecessária dicotomia.

A primeira distinção refere-se ao número de testemunhas. Se no procedimento ordinário há a possibilidade de oferecimento de rol de

até oito testemunhas, no sumário tal número é limitado a cinco. Como o legis-lador não estendeu a aplicabilidade do art. 401, § 1º ao procedimento sumário, compreende-se que nesse número estarão incluídas também as testemunhas referidas e que não prestem compromisso, salvo se o juízo, de ofício, determinar a sua oitiva.

No procedimento sumário nenhum ato será adiado, salvo quando impres-cindível a prova faltante, o que ficará a critério do juiz, conforme dispõe o ar-tigo 535, do CPP, que permite, ainda que implicitamente, o indeferimento das provas impertinentes, irrelevantes ou protelatórias.

Por critério do juiz, todavia, não há de se entender arbítrio, de forma que a testemunha tempestivamente arrolada e que deixar de comparecer não poderá ter a sua oitiva de plano indeferida, sob pena de cerceamento de acusação ou defesa, cumprindo, em tal hipótese, a determinação de condução coercitiva.

De qualquer forma, comparecendo a testemunha e não sendo possível a conclusão da instrução, será ela ouvida, salvo se tal oitiva implicar a inversão da prova45.

Para o procedimento sumário não previu o legislador a fase de reque-rimento de diligências, devendo a instrução, após a produção de provas em audiência, ser encerrada.

Isto não significa, entretanto, a nosso ver, que seja obrigatória a realização de debates e prolação de sentença na própria audiência, pois eventualmente pode haver prova faltante imprescindível, como, por exemplo, laudo pericial definitivo. Neste caso, necessária será a conversão do julgamento em diligência para a prestação da tutela jurisdicional adequada, de forma que, cumprida a providência faltante, deve-se conceder às partes oportunidade para apresen-

43 CPP, art. 386, parágrafo único, inciso II, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.690 de 9 de junho de 2008. 44 Infrações de menor potencial ofensivo são as contravenções penais – independentemente da pena cominada – e os crimes

aos quais não seja cominada pena máxima superior a dois anos de prisão. Caso o Juizado Especial determine a remessa ao Juízo comum das peças existentes para a adoção de outro procedimento – como, por exemplo, em havendo a necessidade de citação por edital –, será adotado o procedimento sumário.

45 CPP, art. 536, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 112: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

112

tação de memoriais, por aplicação supletiva das disposições previstas para o procedimento ordinário46.

Inexistindo, todavia, providência imprescindível faltante, parece-nos obri-gatória, em regra, a realização dos debates – ou seja, a apresentação de alega-ções finais orais ao final da própria audiência – e, em seqüência, o proferimento de sentença, com a intimação das partes no próprio ato. Tratando-se, todavia, de processo complexo – possibilidade que não pode ser excluída pela simples circunstância de sujeitar-se ao procedimento sumário –, ou com grande número de acusados, viável será a concessão de prazo para a apresentação de memo-riais pelas partes, e posterior prolação de sentença em dez dias, mediante a aplicação supletiva das disposições previstas para o procedimento ordinário em hipótese semelhante.

46 CPP, art. 394, § 5º, em sua nova redação.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 101-112, janeiro-abril/2008

Page 113: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

113

Ana Raquel Colares dos Santos LinardJuíza de Direito no Estado do Ceará

De acordo com a Anatel, em janeiro de 2008, foi registrada a adição de 1,88 milhão de linhas de telefonia celular, numa expansão de cerca de 22% so-bre o número registrado no mesmo mês do ano de 2007, sendo que a base de linhas em uso no país, em janeiro/2008, somou 122,86 milhões, avançando sobre 100,72 milhões de janeiro de 2007.1

Cento e vinte e dois milhões e oitocentos e sessenta mil acessos celulares móveis em uso no país é realmente um número espantoso e demonstra uma popularização do serviço de telefonia móvel, totalmente inimaginável quando de sua introdução no país, há cerca de pouco mais de uma década.

Tamanho acesso, como seria de se esperar, também haveria de ensejar um aspecto negativo, mais especificamente no que se refere à utilização indevida do serviço para fins criminosos, no caso, para a consumação de crimes de amea-ça, calúnia, injúria ou difamação, protegidos tais criminosos pela conduta equi-vocada de entender os dados telefônicos, em casos da espécie, como protegidos pelo mencionado sigilo constitucional.

Com efeito, o teor do inciso XII do artigo 5º. da Constituição Federal esta-belece: XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegrá-ficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”

1 Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,MUL305316-6174,00.html

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 113-118, janeiro-abril/2008

Page 114: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

114

Na abordagem que ora se pretende, resta claro que a Lei 9.296/96 não se mostra cabível de menção, uma vez que se destina a regulamentar a intercep-tação das comunicações telefônicas, objeto totalmente distinto do mencionado sigilo de dados telefônicos aqui tratado, o qual deveria ser considerado como direito relativo do usuário.

Explico. O argumento ora defendido é que nenhuma liberdade individual deve ser respeitada de forma absoluta, devendo ser possibilitado o acesso a deter-minados dados, considerados sigilosos, sempre que este mesmo sigilo esteja sendo utilizado como instrumento para práticas ilícitas e criminosas, de forma impune.

De fato, há que se diferenciar o sigilo que protege as interceptações tele-fônicas, o qual entendo absoluto e cuja quebra encontra-se devidamente regu-lamentada pela Lei 9.296/96, do sigilo relativo que envolve os dados telefônicos dos usuários, notadamente nome, endereço, número do acesso, data e horário da chamada, dentre outros aptos a identificar o responsável pelo acesso telefô-nico originador da chamada ou mensagem de cunho criminoso.

Englobar ambos os objetos dentro de um mesmo sigilo absoluto se mostra equivocado, para dizer o mínimo, quando permite e, pior, estimula a execução reiterada e impune da prática criminosa, deixando a vítima totalmente à mercê de seu algoz, com a agravante da impotência diante da situação verificada.

Este entendimento, que encontra respaldo igualmente nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é reforçado pela jurisprudência do TJRS, sendo o voto proferido na Apelação Cível 70018276055, tendo como relator o Des. MÁRIO ROCHA LOPES FILHO, exemplo maior dessa nova orientação que vem surgindo nos tribunais em favor da defesa das vítimas de tais condutas que se norteiam pela covardia de seus adeptos:

“(...) O caso em liça apresenta contornos interessantes e não é muito comum nos tribunais.

O autor é usuário de telefone celular proveniente de plano empresarial (Associação dos Médicos do Hospital São Lucas da PUCRS) firmado com a Claro. No entanto, em que pese ser o titular da linha, esta é utilizada por seu filho, Márcio Russo-mano Fernandes.

A partir de dezembro de 2005 passou a receber mensagens de texto de conteúdo ofensivo, com a intenção de denegrir o relacionamento entre seu filho e sua namorada, Renata Cor-betta Tonin.

Sustenta que os “torpedos” são enviados através da Home Page da requerida, o que impossibilita ao autor visualizar o número de telefone do remetente das mensagens.

Ao procurar uma solução extrajudicialmente foi informado pela requerida que as informações pretendidas somente po-deriam ser fornecidas mediante ordem judicial. Por esta ra-zão, o autor ajuizou a presente ação cautelar, pois de posse de tais informações poderá ajuizar as ações cíveis e criminais competentes.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 113-118, janeiro-abril/2008

Page 115: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

115

Com efeito, a pretensão do apelante, conforme se deflui da inicial exibitória, constitui-se na obtenção, junto à Telet S/A, determinação do endereço IP individualizado para cada uma das mensagens recebidas, bem como o provedor utilizado ou número do telefone que originou as referidas mensagens, que, segundo o autor da exibição, vem lhe causando sérios aborrecimentos.

Inicialmente, esclareço que, em questão dessa natureza, na qual os consumidores pleiteam informações de dados cadas-trais pertinentes a usuários de linhas telefônicas, estavam sendo tratadas, por unanimidade, por esta câmara, como hi-pótese de “quebra de sigilo telefônico”.

Assim, as irresignações advindas de situações fáticas emoldu-radas nesses parâmetros, não eram merecedoras de respaldo pelo signatário, pois não se tratavam de investigação criminal, de molde a autorizar a quebra do sigilo telefônico pleiteada.

No entanto, estou, neste momento, mudando de orientação, to-mando atitude pragmática, a fim de evitar prejuízos às partes.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, além de prever expressamente a tutela do sigilo das correspondências e comunicações telegráficas e telefônicas, instituiu a proteção contra as interceptações ilegais das comunicações e violação dos sigilos de dados, só permitindo a violação do sigilo de comunicações telefônicas nas hipóteses por si estabelecidas e na forma da legislação infraconstitucional específica.

No entanto, deve-se ressaltar que existe diferença entre a quebra de sigilo telefônico e a quebra de sigilo de dados te-lefônicos, pois enquanto a primeira trata de interceptação da comunicação, a segunda corresponde à obtenção de re-gistros existentes na companhia telefônica sobre ligações já realizadas, dados cadastrais do assinante, data da chamada, horário, número do telefone chamado, duração do uso, valor da chamada, entre outros.

De fato, em se tratando de quebra de sigilo telefônico pro-priamente dito, o sigilo é absoluto, necessitando estar prevista nas hipóteses estabelecidas pela lei específica (Lei 9.296/96).

No entanto, na quebra de sigilo de registros pertinentes a chamadas pretéritas, a vedação é relativa, pois se trata de ordem judicial oriunda de competência diversa da criminal.

Tanto é possível a quebra de sigilo de dados telefônicos, que a própria Resolução 85 da Anatel prevê suas hipóteses.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 113-118, janeiro-abril/2008

Page 116: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

116

Art. 17. A prestadora é responsável pela inviolabilidade do si-gilo das comunicações em toda a rede, exceto nos segmentos instalados nas dependências do imóvel indicado pelo assinante. Parágrafo Único. A prestadora tem o dever de ze-lar pelo sigilo inerente ao STFC e pela confidencialida-de quanto aos dados e informações, empregando meios e tecnologia que assegurem este direito dos usuários. Art. 18. A prestadora deve tornar disponíveis os recursos tecnológicos e facilidades necessários à suspensão de sigi-lo de telecomunicações, determinada por autoridade judi-ciária ou legalmente investida desses poderes, e manterá controle permanente de todos os casos, acompanhando a efetivação dessas determinações, e zelando para que elas sejam cumpridas, dentro dos estritos limites autorizados. § 1° Os recursos tecnológicos e facilidades de telecomunica-ções destinados a atender à determinação judicial terão ca-ráter oneroso.

§ 2° A agência deve estabelecer as condições técnicas especí-ficas para a disponibilidade e o uso dos recursos tecnológicos e demais facilidades referidas neste artigo, observadas as dis-posições constitucionais e legais que regem a matéria.

Art. 19. Não constitui quebra de sigilo a identificação, pelo assinante chamado, do assinante originador da chamada, quando este não opõe restrição à sua identificação.

De acordo com esta resolução, a alegação da apelada de que não possui ferramenta capaz de informar o nome ou endere-ço da pessoa que supostamente envia as mensagens ao apa-relho celular do demandante é infundada, pois as mensagens foram enviadas através da home page da própria demanda-da. Inclusive, em se tratando os referidos torpedos de serviço cobrado, estes podem ser levantados via log’s.

Por fim, a intimidade é inviolável enquanto o consumidor se negar a fornecer seus dados a alguém e desde que com isso não traga prejuízo a terceiros.

Assim, a decisão que determina a quebra do sigilo de dados devidamente fundamentada, não configura o fornecimento indevido de dados do assinante pela operadora.

Neste sentido já se pronunciou esta Corte:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. FOR-NECIMENTO DE ENDEREÇO DE CLIENTE POR EMPRESA DE TELEFONIA CELULAR. POSSIBILIDADE. ORDEM JUDICIAL. NE-CESSIDADE. 1. É possível a quebra do sigilo, para o forne-cimento de endereço de cliente, por empresa de telefonia

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 113-118, janeiro-abril/2008

Page 117: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

117

celular, mediante a apresentação de ordem judicial. 2. AGRA-VO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70006481816, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 13/08/2003)

O desembargador Araken de Assis baseou sua decisão nos se-guintes termos:

“Há relevância nos fundamentos do agravo. Em princípio, o órgão judiciário exigiu, talvez desnecessariamente, prova de que as empresas concessionárias do serviço (público) de telefonia celular não fornecem o endereço de seus clientes (fl. 12 dos traslados). Produzida a prova, houve o indeferi-mento, porque providência afeta à iniciativa da parte (fl. 14 dos traslados). Ora, a ponderação dos interesses envol-vidos – acesso à efetiva tutela judiciária versus privacidade –, recomenda o acolhimento do pedido. Não pode o Es-tado, que proíbe a autotutela, negar à parte a quebra de eventual sigilo (e, principalmente, de dados em seu pró-prio poder, ou de empresa a quem concedeu a exploração, em caráter privado, de um serviço público) sempre que, com tal atitude, concretamente negará jurisdição. É o caso. Somente por ordem judicial as empresas indicarão o even-tual endereço em seu poder. Logo, impõe-se a expedição de tal ordem.

Por outro lado, o receio de dano irreparável decorre do arqui-vamento do processo.”

Diante do exposto, acolho a preliminar de revelia da de-mandada e dou provimento ao apelo para determinar que a demandada forneça o endereço IP individualizado para cada uma das mensagens recebidas pelo autor, bem como o provedor utilizado ou número do telefone que originou as referidas mensagens.” (negrito e itálico nossos)

Vou mais além. Entendo, inclusive, que os dados em questão poderiam sofrer o mesmo tratamento das identificações dos veículos, sendo cediço que nenhum veículo ostenta a prerrogativa de transitar sem o devido emplaca-mento, o que ensejaria a conclusão de que não deveria haver mais disponibili-zação do serviço de ocultação da identificação da chamada – o que certamen-te acarretaria, por si só, uma diminuição considerável dessa prática criminosa, podendo ser albergadas algumas exceções para o caso de agentes do Estado em serviço – como também da possibilidade de fornecimento de alguns dados a partir da digitação do número informado pelo aparelho receptor quando do recebimento da chamada/mensagem, tais como local de habilitação do acesso, data da habilitação, tipo de habilitação (pré ou pós-pago), marca do celular, se existe queixa de roubo, etc., a exemplo das consultas facilmente realizadas através dos sitios dos Departamentos Estaduais de Trânsito, pela mera infor-mação da placa do veículo consultado.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 113-118, janeiro-abril/2008

Page 118: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

118

A par da obtenção de tais dados, seria mais fácil ao prejudicado a adoção das medidas judiciais cabíveis, eis que dotado o pedido de maiores subsídios, podendo ser fornecidos os dados telefônicos mais específicos acerca do res-ponsável pelo acesso utilizado na prática criminosa, mediante decisão judicial devidamente fundamentada, como determina o artigo 93, IX da CF/88, sendo certo ainda que eventuais abusos verificados teriam sua efetiva comprovação pela própria ação judicial aforada de má-fé e receberiam do Estado sua repri-menda devida e equivalente.

O que se percebe, hoje, é que o sigilo dos dados telefônicos defendido pelas operadoras tem-se prestado, muitas vezes, a acobertar pessoas inescru-pulosas e mal-intencionadas, bem como a proteger delinqüentes que se apro-veitam do mesmo para promover suas ações maléficas sem sofrer qualquer risco de penalização, quando deveriam antes ser devidamente identificados e responsabilizados por suas ações criminosas, seja no âmbito cível como no criminal.

Certamente, a possibilidade de verificação mais facilitada de alguns da-dos telefônicos, bem como o fornecimento, mediante decisão judicial, dos da-dos mais específicos, sinalizaria aos delinqüentes que o tempo da impunidade se não acabou, estaria mais próximo de seu fim, fazendo com que os usuários que habilitassem acessos em seu nome procedessem com mais cuidado e cau-tela quando da alienação do aparelho e/ou acesso, de forma a se resguardar de eventuais responsabilidades no âmbito cível, situação que viria em benefí-cio de toda a sociedade.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 113-118, janeiro-abril/2008

Page 119: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

119

Eloísa de Souza ArrudaProcuradora de Justiça no Estado de São Paulo

César Dario Mariano da SilvaPromotor de Justiça no Estado de São Paulo

Após anos de acirradas discussões no Congresso Nacional foi publicada a Lei nº 11.689, de 9 de junho de 2008, que altera quase que na íntegra o pro-cedimento nas ações penais relativas aos crimes dolosos contra a vida e seus conexos. A Lei entrará em vigor sessenta dias após a sua publicação, ou seja, no dia 9 de agosto de 2008.

Considerando a grande incidência de nulidades, em face da complexidade causada pela elaboração e votação do questionário, achou por bem o legislador introduzir alterações substanciais na sua formulação.

Serão redigidos poucos quesitos, que se pretende sejam mais objetivos e de fácil intelecção. A elaboração, na forma de proposições afirmativas, simples e distintas, tomará por base a pronúncia, eventuais decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, o interrogatório do acusado (autodefesa) e as alegações das partes.

A decisão será obtida por maioria, ou seja, por quatro ou mais votos, uma vez que o conselho de sentença continuará composto por sete jurados.

No primeiro quesito, se indagará sobre a materialidade do fato, ou seja, sobre a existência concreta do crime, o que, na maioria das vezes, pode-se de-monstrar com laudo elaborado por peritos médicos.

No segundo quesito, serão os jurados indagados sobre a autoria ou a par-ticipação no crime.

Mas a grande inovação reside no quesito relativo às teses absolutórias. A questão posta aos jurados será simplesmente se eles absolvem o acusado. Assim, invocada qualquer causa que exclua o crime ou isente o réu de pena, será ela

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 120: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

120

incluída num só quesito, a ser votado pelos julgadores leigos nesse momento. Ou seja, em uma única pergunta estarão incluídas todas as teses defensivas, mesmo que alternativas e aparentemente incompatíveis. Este quesito somente será votado quando reconhecidas a materialidade e a autoria ou participação no crime.

A despeito da inegável simplicidade da pergunta posta aos jurados por determinação do legislador, alguns problemas certamente advirão.

Sustentada mais de uma tese defensiva, não se saberá ao certo qual o fundamento da absolvição, visto que os julgadores populares julgam pelo sis-tema da íntima convicção, não necessitando explicitar as razões do seu con-vencimento. E a defesa poderá alegar diversas teses, antagônicas ou não, ou até mesmo pedir clemência aos jurados, que poderão acolhê-las, dando ensejo à absolvição.

Com efeito, apresentadas diversas teses, reconhecendo quatro ou mais jurados uma delas, o resultado será a absolvição, mesmo que o motivo do con-vencimento seja distinto.

No procedimento estabelecido pelo Código de Processo Penal de 1941, somente seria o caso de absolvição se ao menos quatro dos jurados acolhessem a mesma tese. Pelas novas regras, caso sejam apresentadas hipoteticamente quatro teses de defesa (ex: legítima defesa real, legítima defesa putativa, esta-do de necessidade e clemência), aceitando cada jurado uma delas, o resultado será a absolvição, sem haver a possibilidade de se saber qual o seu fundamen-to. Assim, mesmo que as razões da persuasão sejam diversas, poder-se-á che-gar a um veredicto absolutório.

O impasse atingirá obviamente a fase recursal, já que não será possível saber qual a tese acolhida. Parece-nos que a acusação, desejando recorrer da decisão dos jurados, deverá rebater todas as teses apresentadas em plenário e demonstrar que são elas manifestamente contrárias às provas dos autos.

O Juízo de segundo grau enfrentará a mesma dificuldade no julgamento do recurso, uma vez que deverá apreciar cada uma das teses apresentadas pela defesa constantes da ata de julgamento.

As causas de diminuição de pena alegadas pelas partes, ou pelo próprio acusado, serão submetidas à votação quando os jurados responderem “não” ao quesito que trata da absolvição. Assim, o privilégio previsto no artigo 121, parágrafo 1º, do Código Penal deverá nesse momento ser indagado aos jura-dos pelo juiz.

Também após o afastamento da absolvição é que virá o questionamento sobre a ocorrência de erro na execução (art. 73 do CP), caso constante de de-cisão que a julgue admissível.

Logo em seguida, serão submetidas à apreciação dos jurados as causas de aumento de pena e qualificadoras, caso reconhecidas na pronúncia.

Salientamos que não mais constarão do questionário as agravantes e as atenuantes genéricas. Sustentadas pela acusação ou pela defesa durante os debates, caberá ao juiz presidente da solenidade analisar sua ocorrência, quando da prolação da sentença condenatória.

O quesito relativo ao crime tentado será votado em seguida ao que cuida da autoria.

Apresentada tese de desclassificação do crime de homicídio para outro da competência do júri, o quesito será incluído logo em seguida ao que trata da

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 121: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

121

autoria, como, por exemplo, no caso da pretendida desclassificação para infan-ticídio, tendo sido o réu pronunciado por homicídio.

Quando sustentada no plenário como única tese defensiva a da desclas-sificação para crime de competência do juiz singular, a pergunta correspon-dente deverá ser formulada após o segundo quesito.

Se a principal tese da defesa for a da absolvição, figurando como tese secundária a da desclassificação para outro crime não doloso contra a vida, o quesito correspondente deverá ser incluído logo após o terceiro.

Acolhida pelos jurados a tese de crime culposo (desclassificação impró-pria), poderá ser indagado deles se existe causa de aumento de pena ineren-te a essa modalidade de delito, como as previstas no artigo 121, parágrafo 4º, primeira parte, do Código Penal.

Quanto ao excesso nas excludentes de ilicitude, a situação mostra-se um pouco mais complexa. Apresentada tese de ocorrência de excludente da ilicitude (art. 23 do CP), a acusação poderá contrariá-la e alegar, entre ou-tros fundamentos, o excesso. Do mesmo modo, poderá a defesa apresentar a ocorrência de excesso culposo como tese principal ou subsidiária. Caso os jurados condenem o acusado, deverão ser perguntados se o excesso foi cul-poso. Essa indagação deverá ser feita logo após o terceiro quesito, uma vez que o acolhimento da referida tese importa desclassificação para crime cul-poso. Negada pelos jurados a ocorrência de excesso culposo, será o caso de condenação por crime doloso, passando-se à votação dos demais quesitos, se for o caso.

O certo é, contudo, que a tese de excesso culposo deverá ser efetiva-mente sustentada pela defesa, pela acusação ou mesmo pelo acusado, sem o que o juiz não poderá incluí-la no questionário. Parece-nos que será uma forma de superar a dificuldade existente no que tange à quesitação, porque, ao ser pedido o reconhecimento do excesso pela acusação (excesso doloso) e pela defesa (excesso culposo), advindo condenação, não seria possível saber qual das teses os jurados acolheram. Por isso, a necessidade de quesitar o excesso culposo, quando alegado.

Para que não ocorra confusão quando do julgamento pelos jurados, visto que os quesitos devem ser claros e simples, ocorrendo mais de um crime, os mesmos deverão ser formulados em séries distintas. Do mesmo modo, havendo mais de um acusado, para cada um deles deverá haver um questionário.

Procuramos enfrentar no presente artigo algumas questões que perce-bemos imediatas na elaboração do questionário. Outras certamente surgirão no dia-a-dia dos julgamentos pelo júri, demandando solução por parte da doutrina e da jurisprudência.

Alguns modelos de questionário

Homicídio qualificado

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 122: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

122

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Ao efetuar os disparos de arma de fogo pelas costas o acusado agiu à traição?

Homicídio tentado

1) A vítima João Paulo dos Santos sofreu os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 25?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) Assim agindo iniciou o acusado a execução de crime de homicídio, que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, uma vez que a vítima foi prontamente socorrida por terceiros?

4) O jurado absolve o acusado?

Desclassificação (tese única)

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) Ao efetuar os disparos de arma de fogo o acusado quis o evento morte ou assumiu o risco de produzi-lo?

4) O jurado absolve o acusado?

Desclassificação (tese subsidiária)

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 123: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

123

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Ao efetuar os disparos de arma de fogo o acusado quis o evento morte ou assumiu o risco de produzi-lo?

Excesso culposo na legítima defesa

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Ao efetuar os disparos de arma de fogo quando a vítima já se encontrava caída, o acusado excedeu culposamente os limites da legítima defesa?

Erro na execução

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Um dos projéteis disparos pelo acusado, desviando-se da direção deseja-da, por erro na execução, atingiu a vítima Carlos dos Reis, produzindo-lhe os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 57?

Concurso de pessoas (participação)

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 124: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

124

2) Terceira pessoa, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou dis-paros de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos, tendo o acusado Carlos da Silva concorrido para a prática do crime, na medida em que forneceu a arma para o executor?

3) O jurado absolve o acusado?

Ou:

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) Terceira pessoa, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou dispa-ros de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O acusado Carlos da Silva concorreu para a prática do crime, na medida em que forneceu a arma para a terceira pessoa?

3) O jurado absolve o acusado?

Infanticídio

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima?

2) A acusada Carla da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, desferiu golpes de faca contra seu próprio filho, recém-nascido, logo após o par-to e sob a influência de estado puerperal?

3) O jurado absolve a acusada?

Auto-aborto

1) A acusada Carla da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, utilizan-do o medicamento Citotec, provocou aborto em si mesma?

2) O jurado absolve a acusada?

Aborto consentido

1) A acusada Carla da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, consen-tiu que terceira pessoa nela provocasse aborto?

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 125: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

125

2) O jurado absolve a acusada?

Aborto provocado com o consentimento da gestante

1) O acusado José da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, provo-cou aborto em Carla da Silva com o consentimento desta?

2) O jurado absolve o acusado?

Aborto provocado sem o consentimento da gestante

1) O acusado José da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, provo-cou aborto em Regiane dos Reis sem o consentimento desta?

2) O jurado absolve o acusado?

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

1) No dia 25 de abril de 2005, por volta das 2h28, na Rua Engenheiro Perei-ra Barreto, n. 123, nesta Comarca, Carlos de Campos, se suicidou, inge-rindo veneno, conforme laudo de exame necroscópico de fls. 35/36?

2) A acusada Márcia de Assis prestou auxílio para que a vítima se suicidasse, fornecendo-lhe o veneno?

3) O jurado absolve a acusada?

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 119-125, janeiro-abril/2008

Page 126: CadernosJurídicos31final
Page 127: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

127

Jayme Walmer de FreitasJuiz de Direito no Estado de São Paulo

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O consumo de bebida alcoó-lica no Brasil. 3. O juiz e os dias atuais. 4. O papel do ma-gistrado na medida cautelar de suspensão de permissão ou de CNH (CTB, art. 294). 5. Conclusão. As autoridades policiais e os integrantes do MP.

1. Introdução

Este artigo tem por objetivo apresentar sugestão para um melhor geren-ciamento judicial, diante das implacáveis estatísticas dos crimes de trânsito em nosso país. Pelos levantamentos, infere-se que a bebida alcoólica é a inseparável companheira do motorista brasileiro – com ênfase nos finais de semana e fe-riados –, funcionando como verdadeira actio libera in causa na consecução dos crimes de dano de trânsito, isto é, homicídios e lesões corporais. E não se pode olvidar que os crimes de perigo, mormente o de embriaguez ao volante (CTB, art. 306), funcionam como crimes de passagem para aqueles.

Cremos piamente que o juiz criminal pode ser um instrumento valioso na educação, na orientação, na advertência e na punição de nossos motoristas ir-responsáveis. Isto porque, conquanto distante da nuança dos fatos, durante a fase pré-processual, tem a faculdade (senão o dever) de estudar os casos sob sua presidência e avaliar a extensão dos danos sofridos pela(s) vítima(s) e sen-tir quem é o autor do fato e quais as circunstâncias que permearam o evento danoso. Exemplo rotineiro de motoristas irresponsáveis pode ser tirado de in-

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 127-131, janeiro-abril/2008

O juiz, o consumo de bebida alcoólica e os crimes de trânsito

Page 128: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

128

diciados em três ou quatro inquéritos simultâneos por embriaguez ao volante cumulada ou não com falta de habilitação.

Esta simples consulta pode propiciar resultados de relevância ímpar, mor-mente quando se constata, meses ou anos depois, que aquela pessoa com in-contáveis passagens por delitos de menor potencial ofensivo foi o causador de crime de trânsito grave.

Peço que os colegas interpretem este alerta como um apelo em prol de toda a comunidade. O juiz criminal tem poucos, talvez ínfimos meios para al-cançar sucesso em sua ação. Mas, se com uma conduta ponderada, cautelosa e finalista – lembre-se de Welzel –, em relação aos casos mais agudos puder evitar uma morte ou mitigar lesões graves ou gravíssimas de uma única pessoa, valeu a pena sua atenção.

A bebida alcoólica é a causa maior do péssimo desempenho dos motoristas nas vias terrestres brasileiras. Os acidentes – com resultado morte ou lesão grave – representam o efeito da inconseqüência manifesta.

2. O consumo de bebida alcoólica no Brasil

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea –, órgão vincu-lado à Secretaria de Planejamento do Governo Federal, calcula-se que 40 pes-soas morrem todos os dias nas rodovias nacionais. Esta avaliação feita dez anos após a entrada em vigor do CTB tem como fundamento dados do Denatran e das Polícias Rodoviárias Federais.

Não é só. Dados da Agência Fapesp, de 3/9/2007, levando em conta todas as rodovias nacionais, 35 mil pessoas morrem nas estradas todos os anos, com ênfase para os finais de semana e feriados. Esta estimativa coloca o Brasil entre os países com a maior taxa de mortalidade no trânsito no mundo.

Um estudo realizado por equipe do Programa Acadêmico sobre Álcool e outras Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com vítimas fatais de acidentes de trânsito, mostrou que o álcool estava presente em cerca de 75% dos casos e que, embora o Código de Trânsito Brasileiro estipule o índice de 0,6 grama como limite máximo permitido de concentração de álcool por litro de sangue para caracterizar infração, número significativo das vítimas apresentava índices muito inferiores.

O estudo avaliou os testes de alcoolemia realizados por legistas do IML em 94 mortos em acidentes e detectou que apenas 11 (11,77%) não haviam ingerido bebidas alcoólicas. Nas 83 vítimas restantes (equivalente a 88,3% do total), foi detectada a presença de álcool no sangue. Desses testes positivos, em 60,2% dos casos os envolvidos apresentavam nível de álcool por litro de sangue superior a 0,6g.

Curiosamente, 38,3% dos mortos estavam no nível permitido, com índices entre 0,1 g/l a 0,59 g/l de álcool no sangue, o que sugere que o limite preconi-zado pelo CTB poderia ser reduzido. Na França, campanhas estão sendo feitas para reduzir de 0,5g para 0,2g o nível limite de álcool por litro de sangue do motorista. Na Suécia, o índice máximo é de 0,2g e no Japão é de 0,0, isto é, to-lerância zero.

Por certo, a proibição de venda de bebidas alcoólicas nas rodovias é provi-dência fora de dúvida e fator altamente benéfico na luta contra tantas mortes.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 127-131, janeiro-abril/2008

Page 129: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

129

Em 21 de janeiro de 2008, o Governo Federal baixou a Medida Provisória 415 que proíbe a comercialização de bebidas alcoólicas em rodovias federais, segundo a qual fica vedado, na faixa de domínio de rodovia federal ou em lo-cal contíguo à faixa de domínio com acesso direto a rodovia, a venda varejista e o oferecimento para consumo de bebidas alcoólicas. O descumprimento da norma implicará multa de R$ 1.500 ao comerciante. Em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro e suspensa a autorização para acesso à rodovia pelo prazo de dois anos. Não é só. O estabelecimento comercial situado na faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo à faixa de domínio com acesso direto à rodovia que inclua entre sua atividade a venda ou o fornecimen-to de bebidas ou alimentos deverá fixar, em local de ampla visibilidade, aviso da vedação de venda de bebidas alcoólicas, sob pena de multa de R$ 300.

A fiscalização ficará a cargo da Polícia Rodoviária Federal.Ao lado da luta contra a venda de bebidas alcoólicas por bares e restauran-

tes na beira das estradas, o ministro José Gomes Temporão, que tem no comba-te ao álcool uma das suas principais bandeiras, igualmente buscava restringir a publicidade da cerveja na televisão. Todavia, como se sabe, perdeu, ao menos por ora e parcialmente, as duas batalhas.

Informa Roberto Pompeu de Toledo em seu ensaio “Desceu Quadrado” que o projeto de restrição da publicidade da cerveja na televisão enviado em regime de urgência ao Congresso Nacional, por acordo de lideranças, perdeu a urgên-cia e foi remetido para “as calendas gregas”. Mais, que quanto à tentativa de proibir a venda de bebidas em bares e cervejas à beira das estradas, o Congresso abriu uma exceção para bares e restaurantes situados em áreas urbanas1.

Quem tem bom senso sabe que o ministro deve prosseguir em sua luta ainda que contra os lobbys de fabricantes, agências de publicidade e emissoras de televisão.

Em outra ponta, São Paulo e Paraná possuem leis impondo a proibição integral.

Interessante que, embora a lei vede nestes Estados a comercialização de bebidas alcoólicas, a fiscalização não se tem mostrado efetiva, uma vez que os acidentes fatais repetem-se de maneira assustadora, o que exige, por certo, ajustes nas medidas de fiscalização. De todo modo, a existência do diploma le-gal é uma relevante conquista na luta contra o álcool no trânsito.

3. O juiz e os dias atuais

Sempre foram temas de reflexão entre os operadores do Direito a ética, a moral, a transparência e o descortino de parte dos magistrados. Homem de seu tempo, o juiz enfrenta diuturnamente desafios incessantes, dentre eles, a mutação constante das leis e a evolução dos costumes.

José Renato Nalini, ao abordar o tema da constante integração do ma-gistrado em processos de atualização, expressa que “O juiz que não estuda é realidade inexistente no mundo fenomênico. O sentenciar é ato que pressupõe o processo formador do convencimento e este é antecedido pelo estudo. Lendo

1 TOLEDO, Roberto Pompeu de. Desceu quadrado. São Paulo: Editora Abril, Revista Veja n. 2.060, 14 de maio de 2008, pág. 154

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 127-131, janeiro-abril/2008

Page 130: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

130

continuamente, colhendo subsídios nos trabalhos intelectuais dos patrocinado-res das partes, dos membros do Ministério Público, na doutrina e jurisprudência, nem sempre possui o magistrado condições de um estudo sistemático e desvin-culado com a urgência do caso concreto”2.

Em outras palavras, para enfrentar a crescente produção legislativa fe-deral em todos os ramos do Direito, há de ser esmerado acima de tudo, inde-pendentemente de ser especialista, mestre ou doutor. O estudo sistemático permite que se mantenha atualizado e apto a equacionar as controvérsias instauradas sob sua presidência.

O juiz há de ter percepção clara de seu papel na comunidade. Ainda que a carga de trabalho seja de causar estresse sem precedentes, seu papel no Estado Democrático de Direito, consagrado pela Carta Política, é o de distribuir a jus-tiça, jamais abrindo mão de sua convicção em favor de interesses econômicos, políticos e mundanos. Aliás, se pensar assim, que não seja juiz.

O magistrado precisa ser devotado à solução de litígios. Exerce um sacerdó-cio. Sem vocação, a frustração será inexorável. Neste sacerdócio, clama-se pela adoção da postura de agente conscientizador, atuando de modo efetivo e inces-sante para, analisando caso a caso, impeça ou auxilie na redução das estatísticas dos condutores que, sob a influência do álcool, continuam desrespeitando a vida alheia.

4. O papel do magistrado na medida cautelar de suspensão de permissão ou de CNH (CTB, art. 294)

Isto posto, sugerimos que, durante a fase administrativa, o magistrado pro-cure maior contato com os autos – até indique um funcionário de sua confiança para tal mister – e, estando presentes os requisitos cautelares do fumus boni juris e do periculum in mora, providencialmente determine a suspensão da per-missão ou da CNH do motorista irresponsável.

Valendo-se da medida cautelar preconizada no art. 294 do CTB, segundo a qual: “Em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a garantia da ordem pública, poderá o juiz, como medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público, ou ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção”. O juiz criminal passa a exigir do motorista infrator cautela redobrada em seus desmandos, evitando sua reincidência em outros crimes de trânsito.

Nesta senda, a medida cautelar tende a funcionar como instrumento valio-so não somente para a aplicação do direito ao caso sub judice, mas, e principal-mente, prevenindo outros crimes.

Estou convencido que os juízes criminais podem se tornar uma gota efetiva e realizadora no oceano da luta contra o excesso de bebida alcoólica, e por-que não incluir as drogas, no trânsito. Em seu cotidiano, os inquéritos e proces-sos dão conta de uma série infindável de pessoas que incidem e reincidem em crimes do gênero.

2 NALINI, José Renato. O Juiz e o acesso à Justiça. São Paulo: RT, 1994, pág. 59

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 127-131, janeiro-abril/2008

Page 131: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

131

Como é cediço, o eventual excesso pode ser contrastado pela parte mos-trando seu inconformismo através do recurso pertinente. Recorde-se que o art. 294, em seu parágrafo único, preconiza que “Da decisão que decretar a suspen-são ou a medida cautelar, ou da que indeferir o requerimento do Ministério Público, caberá recurso em sentido estrito, sem efeito suspensivo”.

O magistrado deve ponderar que pode colaborar com a redução das esta-tísticas das mortes ou lesões corporais de todas as naturezas.

A faculdade de agir com efetividade em prol da comunidade – ao aplicar a medida cautelar em questão – adquire caráter de prevenção específica, contudo preocupar-se-ão os demais condutores que dela tomarem ciência – passando a funcionar como medida de prevenção geral – beneficiando a sociedade como um todo.

5. Conclusão. As autoridades policiais e os integrantes do MP

Malgrado essa sugestão tenha como destinatário maior o juiz criminal, peço vênia que as autoridades policiais e os membros do Ministério Público tam-bém se debrucem sobre os autos em crimes de trânsito que, certamente, toda a comunidade brasileira agradecerá.

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 127-131, janeiro-abril/2008

Page 132: CadernosJurídicos31final
Page 133: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

133

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 133-135, janeiro-abril/2008

Euclides de OliveiraProfessor e desembargador aposentado

Ao dispor sobre os direitos de herança do companheiro sobrevivente de união estável, o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.790, estabelece critérios inteiramente distintos daqueles previstos nos artigos 1.829 e 1.832 para o côn-juge sobrevivente. Ou seja, o Código diferencia o companheiro do cônjuge, sem atentar para o relevante fato de que, numa e noutra das situações, a proteção do Estado deveria estender-se na forma superiormente ditada pela Constituição Federal, artigos 226, incisos I a III, porque tanto no casamento quanto na união estável subsiste uma entidade familiar.

A comparação entre os direitos sucessórios do cônjuge e do compa-nheiro mostra sensíveis vantagens ao cônjuge, seja por cuidar-se de herdeiro necessário, como por receber quantia superior ao companheiro, nos percen-tuais de quotas em concorrência com os descendentes. Além disso, o cônju-ge participa da herança sobre os bens particulares do falecido, enquanto o companheiro só tem direito hereditário sobre os bens havidos onerosamente durante a convivência.

Mas, em determinadas situações, inverte-se o tratamento legal, aparecen-do o companheiro como privilegiado em relação aos direitos sucessórios do côn-juge. Isso acontece em duas hipóteses de fácil exame:

A primeira decorre do direito do companheiro em concorrer na heran-ça com os descendentes sem restrições quanto ao regime de bens adotado na união estável. Não importa que tenha vivido sob o regime legal da comunhão parcial, ou se adotou outro regime por meio de um contrato escrito. Em qual-quer situação, e mesmo que tenha iniciado a união estável com mais de 60 anos, hipótese em que o casado se vincula ao regime da separação obrigatória de bens, o companheiro continua partícipe da herança sobre os bens havidos onerosamente durante a vida em comum. Para o casado existem as ressalvas

Page 134: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

134

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 133-135, janeiro-abril/2008

do artigo 1.829 do Código Civil, pois o direito de concorrer na herança com descendentes não ocorre se o casamento foi celebrado no regime da comunhão universal, no regime da separação obrigatória, ou se no regime da comunhão parcial o falecido não deixou bens particulares.

A outra vantagem do companheiro resulta da forma da concorrência, que se dá cumulativamente, isto é, direito de meação sobre os bens havidos one-rosamente durante a convivência e mais o direito de uma quota na herança devida aos descendentes.

Com efeito, da forma como está no texto do Código, apresenta-se flagran-temente vantajoso ao companheiro o direito sucessório, comparativamente ao cônjuge, no que respeita aos bens havidos onerosamente durante a convivên-cia. Dá-se a cumulação, para o companheiro, dos direitos de meação e de heran-ça, pois o art. 1.790 manda aplicar a concorrência com os descendentes, sobre aquela categoria de bens, sem qualquer ressalva.

Vale insistir que, sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convi-vência, o companheiro já é meeiro, por força do regime da comunhão parcial de bens previsto no art. 1.725 do Código Civil, com nítida inspiração no “condomí-nio em partes iguais”, que constava do art. 5° da Lei n. 9.278/96, salvo hipótese de contrato escrito dispondo de forma diversa.

Parece demasia esse favorecimento maior do companheiro em compara-ção com o cônjuge, pois, além da meação sobre tais bens, tem ainda direito a porcentual na herança atribuível aos descendentes. Tome-se, como exemplo, o caso de o autor da herança deixar um imóvel adquirido onerosamente durante a convivência, tendo um herdeiro filho e companheira. Então a companheira re-ceberá 50% do bem pela meação e mais 25% pela concorrência na herança com o filho. Se o autor da herança fosse casado, nas mesmas condições, o cônjuge-viúvo teria direito apenas a 50% pela meação, enquanto a herança, em igual porcentagem, restaria íntegra para o herdeiro filho.

Se não se admite tratamento discriminatório, prejudicial ao companheiro em outros pontos, tampouco se mostra compatível com o princípio isonômico esse benefício maior que o Código Civil concede a quem não tenha sido casado, sem falar na diminuição que essa atribuição de bens ao companheiro, que já tem a meação, ocasiona aos descendentes do autor da herança.

Ora, a Constituição Federal, no citado artigo 226, § 3º, manda que a lei deva facilitar a conversão da união estável em casamento. Supõe-se que o casamento seja mais vantajoso, pois ninguém, em sã consciência, haveria de mudar para um estado civil que rebaixe os seus direitos. Ou seja, sob o ponto de vista jurídico, não se concebe que a lei possa outorgar menos direitos ao casado que ao companheiro. Constitui inadmissível paradoxo, esse critério afrontoso ao mandamento constitucional.

Foi como decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão pioneiro, ao rejeitar pretensão de companheira sobrevivente à percepção cumulativa de meação e cota na herança dos filhos.

Assenta o julgado que o preceito do art. 1.790, inc. II, do Código Civil com-porta interpretação teleológica e sistemática, pois do contrário estar-se-ia ad-mitindo favorecimento maior ao convivente do que em relação ao cônjuge. E acrescenta que o dispositivo citado há de ser entendido em conjunto com os arts. 1.725 e 1.829, inc. I, do referido diploma legal, posto que a intenção do legislador certamente não foi autorizar a cumulação dos direitos de meação e

Page 135: CadernosJurídicos31final

Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura

135

Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 9, nº 31, p. 133-135, janeiro-abril/2008

herança acarretando diminuição da participação dos herdeiros necessários no acervo hereditário, mas sim evitar que o convivente ou o cônjuge sobrevivente fique desamparado e desprovido dos bens que pertenciam ao falecido.

Ainda, vista a questão sob o plano constitucional: Assim, à luz também do preceito contido no art. 226, § 3º, da Constituição Federal, não há razão de se atribuir também à agravante participação na sucessão do companheiro em concorrência com os descendentes do falecido, sendo pertinente salientar que a pretendida duplicidade de direitos, se admitida, redundaria em prejuízo aos herdeiros necessários, os quais teriam suas quotas diminuídas em benefício da companheira, que já tem uma participação considerável em relação aos bens adquiridos em comum pelos conviventes (TJSP, 9ª. Câm. Direito Privado, AI n. 336.392-4/8, j. em 29.06.2004, rel. Des. Ruiter Oliva, em JTJ, São Paulo: Lex, vol. 285/278).

Realmente, não se justifica essa indevida vantagem patrimonial ao compa-nheiro na sucessão do autor da herança, quando concorre com os descendentes. Nada que explique e, muito menos, que justifique o privilégio em relação ao cônjuge viúvo. Nem seria possível fazê-lo, pela evidente afronta ao princípio iso-nômico e pelo desatendimento ao preceito constitucional de proteção à família, que se supõe justa e igualitária, não importa a sua origem.

Além disso, vale anotar que o art. 226, § 3º, da Constituição, ao deter-minar aquele manto protetor sobre a entidade familiar, termina por definir a necessidade de a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Ora, que facilitação haverá quando se sabe que o companheiro, em determinadas circunstâncias, pode vir a receber herança maior do que aquela atribuível ao cônjuge?

Muito ao contrário, o Código, no artigo em comento, inexplicavelmente se alinha em favor do companheiro, como que a estimular a união estável. Não fa-cilita, muito ao contrário, o dispositivo desencoraja e assim dificulta a conversão da união estável em casamento, na contramão do superior preceito constitucio-nal que protege a família.

Page 136: CadernosJurídicos31final

Coordenação GeralRodrigo Marzola Colombini

Coordenação EditorialMarcelo Alexandre Barbosa

CapaEscola Paulista da Magistratura

Editoração, CTP, Impressão e AcabamentoImprensa Oficial do Estado de São Paulo

RevisãoDante Corradini

Formato175 x 245 mm

Mancha130 x 205 mm

TipologiaFrutiger

PapelCapa: Cartão Revestido 250g/m2

Miolo: Offset Branco 75g/m2

AcabamentoCadernos de 16pp.

costurados e colados - brochura

Tiragem3.500 exemplares

Abril de 2008