cadernos de espiritualidade franciscana · francisco de assis para nos dizer hoje? ... de origem...

83
1 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 36 Editorial Franciscana BRAGA - 2009

Upload: dinhnhi

Post on 09-Dec-2018

221 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

1

CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

36

Editorial Franciscana BRAGA - 2009

Page 2: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

2

Ficha Técnica

Coordenador:

Fr. José António Correia Pereira, ofm

Editorial Franciscana

Apt. 1217

4711-856 BRAGA

Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735

E-mail: [email protected]

Edição on-line no site:

www.editorialfranciscana.org

Capa:

Desenho de Fr. José Morais, ofm

Edição:

Editorial Franciscana

Propriedade:

Província Portuguesa da Ordem Franciscana

Depósito Legal: 14549/94

I. S. B. N.: 972-9190-46-1

Caderno 36- 2009

Cada número dos Cadernos é vendido avulso

Page 3: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

3

Índice

I — Estudos

1. Fr. Tomás Eccleston

– Implantação da Ordem dos Frades Menores na Inglaterra .............. 5

2. Doutora Manuela Silva

– Ao encontro da radicalidade do evangelho: Que tem

Francisco de Assis para nos dizer hoje? ...................................... 75

Page 4: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,
Page 5: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

5

I — Estudos

IMPLANTAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES

MENORES NA INGLATERRA

Tomás Eccleston

Page 6: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

6

IMPLANTAÇÃO DA ORDEM DOS FRADES MENORES

NA INGLATERRA

INTRODUÇÃO

São poucas as referências biográficas que temos de Tomás Eccles-

ton, autor da crónica, ou tratado De adventa fratrum in Anglia1. Dizendo-

-se de Eccleston, é de supor que seria inglês, não se podendo contudo

afirmar que fosse este o seu lugar de origem. Podemos afirmar com

alguma certeza que se fez frade menor por volta de 1230.

No nº 70 da sua Crónica fala de um «um eminente leitor que estu-

dou comigo em Oxford…», o que pressupõe que era um frade com uma

boa preparação cultural. O nº 30 da Crónica diz que «vieram para Ingla-

-terra muitos outros irmãos não menos distintos, de origem inglesa, mas

entrados na Ordem em Paris, irmãos esses que conheci quando ainda era

leigo…», o que sugere que o contacto com os Frades Menores influenciou

a sua opção vocacional. Parece ter vivido sempre em Inglaterra, ora em

————— 1 A primeira edição da CRÓNICA DE ECCLESTON foi publicada por I. S. BREWER

no primeiro tomo da Monumenta Franciscana. Teve como base dois códices (na AF,

códices A e B). Os Colóquios de I a VI foram publicados por R. Howlett ( códices C na

AF). Cf. AF, T I, p. 216, nota 1.

As traduções modernas da Crónica de Eccleston têm como base o texto latino:

Tractatus fr. TOMAE vulgo diti de ECCLESTON, De adventu fratrum minorum in

Angliam, edidit, notis et commentario illustravit A. G. LITTLE, in CED, VII, Paris 1909.

São também textos de referência a edição de J. R. H. MOORMAN, Manchester, 1951 e a

edição Liber de adventu fratrum minorum in Angliam, Analecta Franciscana sive

Chronica aliaque varia Documenta (AF), T. I. Quaracchi 1885, pp. 215-256. Para as

notas servimo-nos da edição da AF e da edição italiana, em Fonti Francescane, Nuova

edizione a cura di ERNESTO CAROLI, Editrici Francescane, Padova, 2004.

Page 7: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

7

Oxford, ora em Londres, e teve relações de amizade com muitos frades. A

sua obra abarca e sintetiza vinte e seis anos de vida dos irmãos da Ingla-

terra. As últimas notícias que reporta referem-se a 1259. É provável que

tenha falecido pouco depois dessa data.

O objectivo da obra de Tomás Eccleston é bem claro: dar a conhe-

cer os exemplos dos maiores, pois os ―exemplos comovem e arrastam

mais do que as palavras‖ (nº 2). Pretende relatar a vida dos primeiros

irmãos, para que os mais jovens encontrem ―motivo de edificação na sua

vocação‖ (nº 2).

Divide a sua obra em colóquios (collationes), talvez recordando os

primeiros tempos, quando os irmãos ingleses se reuniam todos os dias

depois da ceia ―para a conversação e para beberem juntos‖ um bom copo

de cerveja (nº9). Mais tarde, estas collationes foram ritualizadas e trans-

formaram-se em capítulos conventuais, muito mais estruturados, per-

dendo-se a informalidade e a frescura das relações humanas das primeiras

fraternidades.

Os irmãos chegaram à Inglaterra em 1224. Eram nove; quatro cléri-

gos e cinco leigos: Fr. Agnelo de Pisa, diácono, superior da missão; Fr.

Ricardo de Ingworth, inglês, sacerdote e pregador; Fr. Ricardo de Doven,

inglês, acólito, frade jovem; Fr. Guilherme de Ashby, inglês, ainda

noviço; Fr. Henrique Treviso, leigo, nascido na Lombardia; Fr. Lourenço,

leigo francês; Fr. Guilherme de Florença, leigo italiano; Fr. Meliorato,

leigo; Fr. Tiago, leigo italiano. Este primeiro grupo foi enviado pelo pró-

prio Francisco que, ao nomear um dos seus companheiros, Fr. Agnelo de

Pisa, como primeiro Ministro Provincial da Inglaterra, quis manifestar

como esta missão lhe era particularmente querida2.

Ao contrário do que aconteceu na Alemanha, os irmãos foram

muito bem recebidos pelo povo e pelas autoridades das Ilhas Britânicas.

Este bom acolhimento foi retribuído pelos primeiros irmãos com uma sin-

gular amabilidade que «… atraiu à Ordem as simpatias de inúmeros

seculares» (nº5).

Em toda a sua obra, Eccleston faz a apologia da sua província e

apresenta-a com orgulho como modelo para toda a Ordem. Para ele não

restam dúvidas de que os irmãos da Inglaterra podiam ser ponto de

————— 2 Sobre os nomes cf. AF, T. 1. P. 216, nota 2.

Page 8: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

8

referência para as outras entidades da Ordem. É o próprio Fr. João

Parente, geral da Ordem, quem o confirma, tal como recorda Eccleston:

―Como eu desejaria que esta província fosse colocada no centro do

mundo, para que servisse de exemplo a todos!‖ (nº 126).

O autor não se cansa de salientar as três características de marca dos

irmãos ingleses: a pobreza, a simplicidade e o amor aos estudos. Se a

pobreza e a simplicidade são características do frade menor, já o amor ao

estudo faz supor um desenvolvimento notável em relação às primeiras

comunidades franciscanas, onde muitas vezes o estudo, porque podia

engrossar o ego, nem sempre era tido em boa conta. Mesmo quando

recordam Francisco e as primeiras comunidades, os irmãos ingleses não

deixam de acentuar o valor dos estudos, seguindo, aliás, os conselhos do

bispo de Lincoln que afirmava: ― Se os irmãos não cultivassem os estudos

e não se ocupassem em estudar com ardor a lei divina, certamente tam-

bém nos aconteceria a nós o que aconteceu a outras ordens religiosas, que

vemos caminhar desgraçadamente nas trevas da ignorância…‖ (nº 118); a

ciência não é vista como um ornamento da simplicidade, nem como um

obstáculo (nº 19); os frades devem ser mestres, leitores e ocupar cátedras

(nº 65-71). Passados 32 anos depois da sua chegada à Inglaterra, já havia

1242 irmãos distribuídos por 49 conventos (nº 13), com universidade,

estudos, mestres próprios, bispos, pregadores e confessores (nº 66-67).

Isto mostra que os irmãos não só cresceram em número como em quali-

dade e souberam criar estruturas exemplares de formação3.

Outra característica dos irmãos ingleses relacionada com a simplici-

dade, e que Eccleston não se cansa de acentuar, é o cuidado que tiveram

em cultivar as relações humanas e a forma como souberam aliar a peni-

tência, muitas vezes sob a forma de abstinência de carnes, à sã conviviali-

dade, não só entre si, mas com outros religiosos e com o povo (nº7). Nisto

————— 3 Neste ponto o texto de Eccleston dá conta da grande mudança que se deu na

Ordem dos Frades Menores. A Ordem ganhou um rosto cada vez mais clerical, onde a

pregação foi assumida como actividade importante. Daí o grande incremento dos estu-

dos. Nas Constituições chamadas pre-norbanenses, de 1239-40, podemos ler: ―Não se

receba na Ordem quem não tiver competente instrução em gramática, ou em lógica, ou

em medicina, ou em direito, ou em leis, ou em teologia…‖. Os irmãos ingleses são o

exemplo dessa mudança, não perdendo a simplicidade que caracteriza o frade menor.

Cf. MERLO, G. G. Francisco de Asís – Historia de los Hermanos Menores y del fran-

ciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI, Arantzazu, 2005, p. 121-133.

Page 9: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

9

seguiam, mais uma vez, os conselhos que o bispo de Lincoln dava a Fr.

Pedro de Tewkesbury, que foi Ministro provincial na Alemanha: «De

outra vez disse a um irmão pregador: ―Três coisas são necessárias para a

saúde do corpo: o alimento, o sono e o bom humor‖. Uma vez deu órdens

a um irmão melancólico que bebesse um copo do melhor vinho como

penitência, e quando o bebeu, embora à má cara, disse-lhe: ―Caríssimo

irmão, se fizesses com frequência esta penitência, terias também melhor

consciência‖» (nº 118). Bem sabiam já os irmãos ingleses que a sã convi-

vialidade, o bom humor e a informalidade nas relações fraternas são o

melhor antídoto contra as depressões.

Usando o género literário das colações, tanto em voga no seu

tempo, Tomás de Eccleston apresenta assim uma numerosa galeria de

representantes de uma província verdadeiramente ―franciscana‖.

Page 10: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

10

TEXTO

1. A caríssimo padre, frei Simão de Ashby4, seu irmão Tomás

deseja, na doçura do Senhor e Salvador nosso Jesus Cristo, a consolação

do Espírito Santo.

2. O justo deve julgar a sua vida comparando-a com os exemplos

dos maiores, pois os exemplos quase sempre comovem e arrastam mais

do que as palavras. E pois considero útil que possas dispor do relato das

nossas coisas para poderes animar os teus caríssimos filhos, a fim de que

eles, que renunciaram a tantas e tão grandes coisas (inclusivamente a si

mesmos) para poderem partilhar da vida da nossa Ordem, do mesmo

modo que lêem e ouvem as coisas maravilhosas das demais Ordens, tam-

bém encontrem não menor motivo de edificação na sua vocação, e assim

dêem contínuas graças ao doce Jesus que os chamou.

Por esta razão te confio, pai caríssimo no Senhor, estes colóquios

que muito me aprouve ter recolhido dos meus educadores e condiscípulos,

no espaço de vinte e seis anos. É, pois, em honra d’Aquele, em quem o

Pai se compraz (Mt 3,17), Jesus Cristo, dulcíssimo Deus e Senhor nosso,

que te envio este escrito.

COLÓQUIO I

Chegada dos irmãos menores a Inglaterra

3. No ano do Senhor de 1224, em tempos do papa Honório, ou seja,

no mesmo ano em que por ele foi confirmada a Regra de São Francisco5,

oitavo do reinado de Henrique, filho de João, na quarta-feira após a festa

da Natividade da Virgem, que nesse ano caía num domingo, os irmãos

————— 4 Não conhecemos o destinatário do opúsculo, mas como Tomás lhe chama ―carís-

simo padre‖, podemos deduzir que devia ocupar um lugar de autoridade. O nome do

irmão Simão de Ashby não aparece, no entanto, na lista dos ministros provinciais de

Inglaterra. No texto da AF aparece Simoni de Esseby, cf. p. 218. 5 Honório III confirmou a Regra em 29 de Novembro de 1223. Os primeiros

irmãos desembarcaram na Inglaterra numa quarta-feira, a 10 de Setembro de 1224, pre-

cisamente no oitavo ano (28 de Outubro de 1223-27 de Outubro de 1224) de Henrique

II, filho de João sem Terra.

Page 11: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

11

menores, quatro clérigos e cinco leigos, chegaram pela primeira vez a

Dover, na Inglaterra.

4. Foram estes os clérigos: o primeiro, frei Agnelo de Pisa, diácono,

de cerca de 30 anos, a quem São Francisco havia nomeado ministro pro-

vincial para a Inglaterra no último Capítulo geral6. Antes, tinha sido custó-

dio de Paris e agira com tanta prudência que, devido à sua fama de santi-

dade, ganhou tanto a simpatia dos irmãos como dos seculares.

O segundo foi frei Ricardo de Ingworth, inglês de nascimento,

sacerdote e pregador, de idade mais avançada. Tendo sido o primeiro na

Ordem a pregar às gentes de além dos Alpes, foi mais tarde enviado como

ministro provincial à Irlanda por frei João Parente7, de santa memória.

Tinha sido vigário de frei Agnelo em Inglaterra, quando este se dirigiu ao

Capítulo geral em que teve lugar a trasladação das relíquias de São Fran-

cisco e dera luminosos exemplos de grande santidade. Terminado o seu

ministério, fiel e grato a Deus, foi dispensado no Capítulo geral pelo

irmão Alberto, de santa memória, de todos os ofícios junto dos irmãos.

Inflamado pelo zelo da fé, partiu para a Síria, onde morreu santamente.

O terceiro foi o irmão Ricardo de Devon, também inglês, jovem

acólito, que deixou abundantes exemplos de paciência e obediência. Com

efeito, depois de ter viajado por obediência por várias províncias, sofreu

frequentes febres quartãs durante onze anos, vivendo todo este tempo no

lugar chamado Romney.

O quarto foi frei Guilherme de Ashby, ainda noviço de caparão8,

inglês, muito jovem e entrado na Ordem pouco tempo antes. Nos vários

cargos que exerceu durante muito tempo, deixando-se conduzir pelo espí-

rito de Jesus Cristo com uma constância notável, deixou exemplos de

humildade e de pobreza, de caridade e serenidade, de obediência, de

————— 6 No Capítulo do Pentecostes, de 12 de Junho de 1224. Fala-se de um autógrafo da

carta obediencial, que teria sido vista ainda por volta de 1637 no palácio episcopal de

Saint-Omer na Flandres, cuja reprodução pictórica bem pode ser o pergaminho que o

bem-aventurado Agnelo tem nas mãos no fresco do Alverne (cfr. P. ROBINSON, em

AFH, I (1908), p. 468). 7 Fr. João Parente foi o primeiro Ministro Geral eleito depois da morte de S. Fran-

cisco (1227-1233). 8 Caparão, capuz comprido prescrito pela Regra como distintivo dos noviços (1R

2,8; 2R 2,10), mais tarde reduzido a uma simples tira de pano.

Page 12: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

12

paciência e de toda a perfeição. Quando o irmão Gregório, ministro de

França, lhe perguntou se queria ir para Inglaterra, respondeu que não sabia

se queria. Como se admirasse o ministro de semelhante resposta, frei

Guilherme replicou que não sabia se queria ou não porque a sua vontade

não era sua mas do ministro: daí só querer tudo o que ministro queria que

ele quisesse. Frei Guilherme de Nottingham deu testemunho da sua

grande obediência. Quando o ministro lhe pediu que escolhesse lugar para

residir, respondeu que lhe agradava sumamente o lugar que mais aprou-

vesse ao ministro.

5. E como no relacionamento com os demais fosse particularmente

dotado duma singular amabilidade, atraiu à Ordem as simpatias de inúme-

ros seculares. Além disso, levou ao caminho da salvação pessoas bem

preparadas de várias condições, idade e ofícios e demonstrou em muitas

ocasiões que o manso Jesus sabe fazer coisas maravilhosas e vencer

gigantes com gafanhotos (Nm 13, 33).

Padecendo de fortes tentações carnais, a si próprio se castrou por

amor à pureza. Devendo então recorrer ao Papa, este, depois de o censurar

duramente, concedeu-lhe dispensa para celebrar. Morreu muitos anos

depois, em Londres.

6. Estes são, finalmente, os irmãos leigos: primeiro, frei Henrique

de Treviso, lombardo9 de nascimento, o qual, em razão da sua santidade e

grande prudência, foi logo nomeado guardião de Londres. Cumprido o seu

ministério na Inglaterra e tendo aumentado bastante o número dos frades,

voltou à sua pátria.

O segundo foi frei Lourenço, oriundo de Beauvais. Ocupou-se

desde o princípio em trabalhos artesanais, segundo o preceito da Regra10

.

Voltou depois para junto do bem-aventurado Francisco e mereceu vê-lo

com frequência e gozar da consolação da sua palavra. Finalmente, o bem-

-aventurado Pai deu-lhe a sua própria túnica com expressões de muito

————— 9 Segundo a AF deve-se tratar de Tarvisio. A ed. De Brewer escreve Ceruise. Cf.

AF p. 218, nota 6. Lombardia, tinha então uma extensão geográfica maior que hoje:

abarcava todo o Norte de Itália. 10

1R 7; 2R 5.

Page 13: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

13

afecto e enviou-o de novo a Inglaterra, agraciando-o com a sua bênção11

.

Depois de muitos trabalhos e pelos méritos do mesmo bem-aventurado

pai, chegou, assim creio, à tranquilidade da residência de Londres, onde,

atingido por uma enfermidade incurável, espera agora o fim da sua tão

afanosa vida.

O terceiro foi frei Guilherme de Florença, que voltou à França ime-

diatamente depois da chegada dos irmãos à Inglaterra.

O quarto foi frei Meliorato. O quinto foi Tiago, ultramontano e

ainda noviço de caparão.

7. Estes nove irmãos foram caritativamente transportados para

Inglaterra pelos monges de Fécamp e cortesmente providos de todo o

necessário. Chegados a Canterbury, ficaram dois dias no priorado da San-

tíssima Trindade; seguidamente, quatro deles, os irmãos Ricardo de Ing-

worth, Ricardo de Devon, Henrique e Meliorato, partiram para Londres.

Os outros cinco seguiram para o hospício dos sacerdotes12 e aí permanece-

ram até lhes conseguirem alojamento próprio. De facto, bem cedo lhes foi

concedido um pequeno quarto nos baixos de uma escola onde viviam

permanentemente encerrados de dia; quando os alunos voltavam a suas

casas, entravam eles na escola, acendiam o lume e sentavam-se em seu

redor. No momento da colação, penduravam por vezes uma panela com

mosto de cerveja e bebiam todos dela, um após outro, com a única caneca

disponível, dizendo alguma palavra de edificação. Conforme testemunhou

quem participou nesta serena pobreza e santa simplicidade, e teve a sorte

de ter estado com eles, a bebida era muitas vezes tão espessa que, para

reabastecer a caneca, tinham de lhe acrescentar água, bebendo depois ale-

gremente. A mesma coisa aconteceu com frequência em Salisbury, onde,

à hora da colação, os irmãos bebiam mosto de cerveja com tanta alegria e

jovialidade, na cozinha junto ao fogo, que cada qual, para beber, se diver-

tia em arrebatar fraternalmente a caneca ao vizinho.

————— 11

Seria talvez o irmão a que se referem 2C 181, LP 90 e EF 34. 12

Hospitale sacerdotum. O termo ―hospital‖ tinha então um sentido mais genérico

que o actual. Era indiferentemente casa de hóspedes, de enfermos ou de pobres. Neste

caso, podemos interpretar como a casa de sacerdotes. Por isso traduzimos ―hospício‖.

Page 14: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

14

A mesma coisa aconteceu em Sherwsbury, quando os irmãos aí

chegaram. O velho frei Martinho, que foi o primeiro a chegar a esse lugar,

recorda com saudade tal costume.

8. Nesses dias andavam os irmãos tão preocupados em não contrair

dívidas, que só se endividavam em casos de extrema necessidade. Suce-

deu que frei Agnelo quis analisar a contabilidade dos irmãos de Londres,

nos tempos em que era guardião frei Salomão. Importava saber quanto

tinham gasto durante o ano, e vendo que tinham gasto demasiado, embora

os irmãos tivessem um teor de vida bastante modesto, atirou ao chão

registos e facturas e, batendo no rosto, exclamou: ―Ai de mim, que me

enganaram!‖, e não quis ver mais as contas. Aconteceu também que, um

dia, chegaram dois irmãos muito cansados a um convento da Ordem. Uma

vez que faltava a cerveja, o guardião, a conselho dos mais velhos, mandou

buscar um jarro a crédito, mas os frades do convento, que faziam compa-

nhia aos hóspedes, não beberam, simulando que só beberiam por caridade,

a título de confraternização.

9. Adenda. Antes da constituição definitiva da Ordem, costumavam

os irmãos reunir-se todos os dias para a conversação e para beberem jun-

tos, os que queriam13, e reuniam-se todos os dias em capítulo. Não havia

então limitações quanto à qualidade dos alimentos e do vinho; no entanto,

em muitos conventos só aceitavam três vezes por semana os guisados de

carne que lhes ofereciam. No mesmo convento de Londres, em tempos do

ministro frei Guilherme, de santa memória, sendo guardião frei Hugo, vi

irmãos beber cerveja tão ácida, que alguns preferiam água, e, também,

comer aquela espécie de pão que se chama ―torta‖. Igualmente, faltando o

————— 13

Os termos collatio e collationem facere já apareceram nesta narrativa em todas

as acepções possíveis. ―Colóquio‖ é mesmo o título português destas recolhas de frei

Tomás; ou ―encontro depois da ceia‖, como também parece ser aqui; momento para

duas ocupações: conversação familiar enquanto se bebe cerveja. Particularmente nesta

―conjunção‖ que transmite um costume da Ordem, poder-se-ia entender collatio no seu

sentido mais simples: os irmãos costumavam reunir-se ao fim do dia em volta do lume e

beber um pouco de cerveja, entremeando palavras de edificação. Um costume que faz

lembrar a alegria de se encontrarem juntos. O capítulo tinha antigamente um signifi-

cado mais espiritual e penitencial.

Page 15: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

15

pão, muitas vezes comi pão de cevada na presença do referido ministro e

dos hóspedes da casa14.

COLÓQUIO II

Primeira expansão dos irmãos

10. Chegados, pois, a Londres, os mencionados irmãos dirigiram-se

à residência dos irmãos pregadores e foram por eles benevolamente aco-

lhidos. Aí permaneceram quinze dias comendo e bebendo o que lhes

punham diante, como se fossem verdadeiros membros da comunidade.

Alugaram depois uma casa em Cornhill e aí fizeram celas com tabi-

ques de arbustos secos. Viveram nesta santa simplicidade até ao Verão

seguinte, sem uma capela própria, porque ainda não tinham licença para

erigir altar e celebrar missa nos respectivos hospícios15. Imediatamente

antes da festa de Todos os Santos, antes mesmo da vinda de frei Agnelo a

Londres, partiram para Oxford frei Ricardo de Ingworth e frei Ricardo de

Devon, os quais foram igualmente acolhidos pelos irmãos pregadores:

comeram no seu refeitório e dormiram no seu dormitório durante oito

dias, como se pertencessem ao convento. Depois, alugaram uma casa na

paróquia de Santa Eva e aí viveram até ao Verão seguinte, sem capela

própria.

11. Aqui semeou o doce Jesus o grão de mostarda que se transfor-

mou na maior das plantas (Mt 13, 31-32). Depois, frei Ricardo de Ing-

worth e frei Ricardo de Devon partiram para Northampton e hospedaram-

-se no hospício16; seguidamente, alugaram uma casa na paróquia de Santo

Egídio. Foi primeiro guardião do lugar frei Pedro, espanhol, que trazia um

cilício de ferro na sua carne, e deu muitos outros exemplos de perfeição.

O primeiro guardião de Oxford foi frei Guilherme de Ashby, ainda

noviço; mas foi-lhe concedido o hábito de professo. O primeiro guardião

————— 14

Em vez de ―tortam‖, BREWER usa hordea. Mas HOWLETT prefere ―alia‖, prova-

velmente por ―alicam‖, precisamente pão de cevada. Cf. AF p. 220, nt. 5. 15

Só em 3 de Dezembro de 1224, Honório III concedeu aos irmãos a faculdade de

celebrar missa e os divinos ofícios em seus oratórios, sem por isso se apropriarem dos

direitos próprios das igrejas paroquiais. Cfr. A bula Quia populares tumultus. 16

Ver mais acima, nota 12.

Page 16: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

16

de Cambridge foi frei Tomás de Espanha. O primeiro guardião de Lincoln

foi frei Henrique Misericorde, leigo.

Adenda. Durante o governo deste último, esteve no convento frei

João de Yarmouth, homem de grande santidade, que morreu depois em

Nottingham e está sepultado junto dos cónegos de Selford.

12. O senhor João Travers foi o primeiro a acolher os irmãos em

Cornhill e alugou-lhes uma casa. Foi feito seu guardião um certo irmão

leigo lombardo, de nome Henrique. Este começou então a estudar letras

de noite, na igreja de São Pedro, em Cornhill, chegando a ser depois vigá-

rio de Inglaterra quando Agnelo partiu para o Capítulo geral. Tinha como

companheiro no vicariato, frei Ricardo de Ingworth. Mas, por fim, não

resistindo ao prazer efeminado de tantas honrarias e esquecendo-se da sua

própria dignidade, abandonou miseravelmente a Ordem.

13. É digno de menção que no segundo ano do exercício de frei

Pedro de Tewkesbury, quinto ministro de Inglaterra, ou seja, no 32º ano

da chegada dos irmãos a este país, se calculou que vivessem nele 1242

irmãos, distribuídos por 49 conventos.

COLÓQUIO III

Aceitação de noviços

14. Quando os primeiros frades que chegaram a Inglaterra se dividi-

ram partindo para distintos lugares, alguns seculares, tocados pelo espírito

de Jesus, quiseram entrar na Ordem.

15. O primeiro a ser recebido foi frei Salomão, jovem de excelente

carácter, famoso pela sua beleza e elegância. Costumava contar-me que,

quando era noviço, foi nomeado esmoleiro do convento e foi a casa de sua

irmã pedir esmola. Ela, porém, ao dar-lhe um pão, voltou-se para o lado

dizendo: ―Maldita a hora em que te vi‖; mas ele, rejubilando, aceitou o

pão e partiu. Tão rigidamente se atinha à forma da mais estrita pobreza

que, por vezes, chegou a transportar no capelo farinha, sal e alguns figos

para os irmãos doentes e, debaixo do braço, lenha para o fogo, cuidando

Page 17: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

17

sempre de não aceitar ou recolher mais do que o estritamente indis-

pensável17.

Aconteceu, certa vez, ter sentido tanto frio que julgou estar a ponto

de morrer; e como os irmãos nada tivessem para o aquecer, a santa cari-

dade sugeriu-lhes esta excelente ideia: juntaram-se todos à sua volta e

apertaram-se contra o seu corpo para o aquecer, como faria uma ninhada

de bacorinhos18.

Quando devia ser promovido a acólito, foi enviado pelo venerável

pai, o arcebispo Estêvão (Langton), de santa memória, e apresentado por

um dos irmãos mais idosos. Recebeu-o o arcebispo com muita gentileza e

conferiu-lhe a ordem convocando-o com este título singular: ―Aproxima-

-te, frei Salomão da Ordem dos Apóstolos‖!19. Lembrei este facto para que

se saiba o apreço que tinham as pessoas sábias pela simplicidade dos pri-

meiros irmãos. Depois de ter comido à mesa do arcebispo, voltaram para

Canterbury descalços, pela neve, que estava então muito alta e metia

medo só de a ver. Depois, contraiu a gota num pé, pelo que esteve doente

durante dois anos em Londres, tanto que não podia deslocar-se senão

transportado. Durante a enfermidade teve a honra de uma visita de frei

Jordão, de santa memória, mestre geral da Ordem dos pregadores20, que

disse: ―Irmão, não te envergonhes pelo facto de o Pai do Senhor Jesus te

chamar para Ele só com um pé‖.

No entanto, depois de ter estado durante tanto tempo prostrado

numa cela, onde não podia ouvir missa – os irmãos ainda a não celebra-

vam no convento, indo ouvi-la e celebrar os divinos ofícios na igreja

paroquial, – agravou-se de tal maneira a situação que, segundo os

médicos, se tornou inadiável a amputação do pé afectado. Mas quando

trouxeram o cutelo e se descobriu o pé, saiu pus que deu alguma

————— 17

Segundo o exemplo de Francisco; cf. EP 12. 18

Dificilmente se encontraria uma imagem tão original dos cuidados fraternos. 19

Título verdadeiramente importantíssimo, revelador do que parecia ser, na sua

essência, a vida dos irmãos: uma vida apostólica. Era um título muito mais valioso que

o de qualquer benefício eclesiástico. Todavia, não se deve confundir com a Ordem dos

Apóstolos de que fala Salimbene. 20

Bem-aventurado Jordão da Saxónia, segundo mestre geral da Ordem dos

pregadores, de Maio de 1222 até à sua morte num naufrágio, em Fevereiro de 1237.

Visitou a província inglesa em 1230. Verdadeiramente familiar nas suas relações com

os irmãos menores ingleses.

Page 18: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

18

esperança de cura, e por tal motivo se adiou para outra oportunidade a

dura sentença. Então frei Salomão agarrou-se a uma esperança certa: que,

se fosse levado ao túmulo de Santo Elói21, recuperaria o uso do pé e a

saúde. Por tal motivo, quando chegou frei Agnelo, ordenou que, sem

demora, levassem frei Salomão ao ultramar da maneira mais cómoda.

Assim se fez e a sua fé não foi defraudada; tão bem se restabeleceu que

pôde caminhar sem bastão e celebrar missa. Chegou mesmo a ser guar-

dião de Londres e confessor de toda a cidade. No entanto, como tivesse

suplicado ao bom Jesus que o purificasse de seus pecados nesta vida,

sobreveio-lhe o mal da gota que lhe afectou a coluna vertebral, a ponto de

esta se tornar rígida e curva. Teve também uma hidropisia infecciosa e

hemorróides, com perda de sangue, que o atormentaram até à morte.

Finalmente, na véspera do dia em que voltou para o doce Jesus, este

enviou ao seu coração uma tristeza que não conseguia explicar, ao ponto

de pensar que todas as dores que tinha suportado nada eram em compara-

ção com semelhante angústia. Chamou então três irmãos com quem tinha

maior intimidade e, expondo a agonia da sua alma, suplicou-lhes que

orassem intensamente por ele. E enquanto os irmãos perseveravam juntos

em oração, apareceu-lhe o dulcíssimo Jesus na companhia do apóstolo

Pedro e deteve-se diante do seu leito olhando para ele. De imediato frei

Salomão reconheceu o Salvador e exclamou: ―Tende piedade de mim,

Senhor , tende piedade de mim‖ (Sl 56, 2): O Senhor Jesus respondeu:

―Uma vez que tanto me pediste para te atormentar nesta terra (cf. Dan

10,12) e te fazer expiar completamente os pecados, mandei-te este sofri-

mento, sobretudo por teres abandonado o teu fervor de antes e não teres

feito, como devias, dignos frutos de penitência (Mt 3, 8), em conformi-

dade com a tua vocação, e, mais ainda, por teres sido demasiado indul-

gente com os ricos na imposição da penitência‖. São Pedro acrescentou:

―Hás-de saber, além disso, que pecaste gravemente ao julgar frei João de

Chichester que morreu recentemente. Agora roga a Deus que te dê uma

morte como a que teve este irmão‖. Chorando, frei Salomão suplicou:

―Tem piedade de mim, dulcíssimo Senhor, tem piedade de mim, doce

Jesus!”. Sorrindo, Jesus fixou-o com uma expressão tão suave, que toda a

————— 21

Que era venerado em Noyon. Santo Elói, patrono dos ourives e de tantas outras

categorias de trabalhadores de metais, também era invocado contra enfermidades cróni-

cas, úlceras, etc.

Page 19: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

19

angústia anterior lhe desapareceu do coração, e com a alma cheia de gozo

concebeu uma firme esperança de salvação. Em seguida, chamou os

irmãos e contou-lhes o que tinha visto e eles ficaram muito consolados.

16. Adenda. É também digno de menção este facto: quando os

irmãos estavam em Cornhill, veio um dia o diabo visivelmente e disse a

frei Gilberto de Vyz, quando se encontrava sentado sozinho: ―Julgas tu

que me escapas? Para já, toma, que já comeste…‖, e atirou para cima dele

um punhado de piolhos, desaparecendo em seguida.

17. O segundo irmão a ser aceite na Ordem por frei Agnelo foi frei

Guilherme de Londres, que esteve mudo durante um certo tempo, mas

recuperou a fala em Barking por intercessão de Santa Etelburga, segundo

ele mesmo me disse. Também tinha sido amigo do juiz de Inglaterra,

Humberto de Burgh e, embora laico e culto, como se dizia, e famosíssimo

como alfaiate22, foi admitido ao hábito em Londres, quando os irmãos

ainda não tinham nem terreno para construir, nem capela.

O terceiro foi frei Joyce de Cornhill, clérigo, oriundo da mesma

cidade de Londres, jovem de óptima índole, nobre e gentil. Suportadas

muitas fadigas na sua cidade, foi viver para Espanha, onde morreu santa-

mente.

O quarto foi frei João, clérigo, jovem de aproximadamente dezoito

anos, de boa índole e óptima conduta, que cedo levou a bom termo o

curso da vida, voltando para o Senhor Jesus Cristo. Tinha sugerido ao

sacerdote Filipe, que sofria de uma insuportável dor de dentes, que

enviasse pão e cerveja aos irmãos, e prometera-lhe que o Senhor o curaria.

Pouco tempo depois consagraram-se ambos ao Senhor e entraram na

Ordem dos irmãos menores.

O quinto foi este frei Filipe, nascido em Londres, sacerdote. Guar-

dião de Bridgnorth muito cedo, foi-lhe cometida a missão de pregar, e por

ela obteve muitos frutos. Por fim, enviado para a Irlanda, aí morreu san-

tamente.

————— 22

Como anteriormente LITTLE, devemos também nós render-nos às qualificações

deste irmão. Alguns termos e a própria construção de Tomás podem ter muitos e varia-

dos sentidos.

Page 20: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

20

18. Depois destes, entraram na Ordem alguns Mestres, que aumen-

taram a fama dos irmãos, a saber, frei Walter de Burgh, a respeito de

quem um irmão tinha tido uma maravilhosa visão: viu o Senhor descer do

céu e oferecer a fr. Walter um rolo em que estava escrito: ―O lugar da tua

colheita não é aqui; é noutro lugar‖. O Senhor revelou-lhe também o ardil

de uma religiosa que, recorrendo astutamente a visões simuladas, induziu

em erro um irmão, ao ponto de ele as registar por escrito. Mas frei

Agnelo, ao não acreditar, ordenara aos irmãos do convento que pedissem

ao Senhor que o iluminasse sobre certo assunto que o preocupava. Ora

sucedeu que, nessa noite, frei Walter teve esta visão: viu uma fêmea de

veado subir rapidamente ao cimo duma alta montanha e dois cães negros

que, perseguindo-a, a fizeram voltar ao vale, onde a despedaçaram. Frei

Walter correu então ao sítio onde julgava estar o animal e só encontrou

um saco cheio de sangue. Quando contou esta visão a frei Agnelo, logo

este intuiu que essa mulher tinha sido seduzida devido à sua hipocrisia, e

mandou a dois irmãos prudentes que fossem ver a religiosa, a qual, depois

de ter confessado que tinha inventado tudo o que lhes dissera, foi final-

mente reconduzida à verdade.

Entrou também na Ordem outro mestre, o normando frei Ricardo.

Quando o referido Walter lhe pediu uma palavra edificante, reflectiu lon-

gamente e respondeu: ―Quem quiser viver em paz, cale-se‖ (“Ky vout

estre en pes, tenge sey en pes‖).

19. Nesse tempo entrou também na Ordem o mestre Vicente de

Coventry, o qual, com o seu zelo e a ajuda de Jesus Cristo, convenceu

pouco depois seu irmão, mestre Henrique, a fazer outro tanto. Foi admi-

tido na festa da Conversão de São Paulo juntamente com o mestre Adão

de Oxford, de santa memória, e o senhor Guilherme de York, grande

bacharel. Este mestre Adão, famoso em todo o mundo, tinha feito o voto

de cumprir quanto lhe fosse pedido por amor de Nossa Senhora. Ele

mesmo o dissera a certa reclusa23 da sua confiança. Mas ela revelou o

segredo aos amigos, nomeadamente a um monge de Reading, a alguns

cistercienses e a um irmão pregador, dizendo-lhes que poderiam tirar pro-

————— 23

Na Idade Média algumas mulheres consagravam-se à vida reclusa. Viviam à

entrada das cidades, encerradas nos seus cubículos, entregues a uma intensa vida de

oração e penitência.

Page 21: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

21

veito de tal homem, porque não queria que se fizesse frade menor. Mas

sempre que algum deles se aproximava dele, Nossa Senhora não permitia

que pedisse uma tal coisa por seu amor e diferia sempre o pedido para

outra ocasião. Entretanto, o mestre Adão teve uma visão: certa noite,

devia atravessar uma ponte onde alguns homens, metidos na água, esten-

diam as redes para o apanhar; apesar disso, conseguiu escapar com não

pequena dificuldade e chegou a um lugar completamente tranquilo.

O certo é que, enquanto, por um desígnio divino, conseguia escapar

das outras Ordens, aconteceu ir visitar os frades menores e, enquanto lhes

falava frei Guilherme de Colville, homem provecto e de grande santidade,

disse-lhe entre outras coisas: ―Mestre caríssimo, por amor à Mãe de Deus,

entra na nossa Ordem e dignifica a nossa simplicidade‖. Apenas ouviu

estas palavras, foi como se as tivesse ouvido dos lábios da Mãe de Deus e

aceitou de seguida24.

20. Ele, que era já então companheiro do mestre Adão de Marsh e

participante de todos os seus bens, conseguiu com a ajuda da graça de

Deus e os seus modos persuasivos convencê-lo a entrar também na

Ordem, não muito depois de ele próprio o ter feito. Uma noite, frei Adão

de Marsh teve uma visão: tinha chegado com frei Adão de Oxford a uma

arribana, em cuja porta estava pintado um crucifixo que devia ser beijado

por todo aquele que nela entrasse. Frei Adão de Oxford beijou o crucifixo

e entrou em primeiro lugar; o outro irmão Adão seguiu-o, depois de o ter

beijado por sua vez. Mas o primeiro descobriu logo uma escada em espi-

ral e subiu-a tão rapidamente que desapareceu da vista do segundo num

abrir e fechar de olhos. Este exclamou: ―Sobe mais devagar!‖ Mas nunca

mais voltaram a juntar-se. Esta visão afigurava-se muito clara a todos os

irmãos que naquele tempo estavam na Inglaterra. Com efeito, depois da

sua entrada na Ordem, o irmão Adão de Oxford partiu para se encontrar

com o papa Gregório IX, o qual, tal como tinha desejado, o enviou como

missionário para entre os Sarracenos25; mas morreu em Barletta, conforme

————— 24

O códice, de Howlett, acrescenta: et sicut deveniens cum aedificationis coeli

máxima intravit. Cf. AF p. 224, nt. 8. 25

Ao começar a primavera de 1232, Gregório IX enviou vários grupos de frades

menores ao Sultão de Damasco e a outros príncipes maometanos. O irmão Adão de

Page 22: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

22

o tinha predito a seus companheiros. Diz-se que chegou a ser famoso

pelos seus milagres.

Adão de Marsh entrou depois na Ordem, em Worcester, levado

sobretudo por um grande amor à pobreza.

No seguimento destes, entrou frei João de Reading, abade de Osney,

que nos deixou exemplos de grande perfeição. Depois dele veio também o

mestre Ricardo Rufus, tão famoso na Ordem como em Paris.

Entraram também na Ordem alguns cavaleiros: Ricardo Gobion,

Egídio de Merk, Tomás, espanhol, e Henrique de Walpole. A propósito da

entrada deste último, o Rei disse: ―Se tivesses sido mais prudente em

aceitar os irmãos e não tivesses procurado privilégios à custa de outros e,

sobretudo, se não te tivesses mostrado importuno ao mendigar, terias

podido dominar sobre os príncipes‖.

COLÓQUIO IV

Fundação dos conventos

21. Como aumentasse o número dos irmãos e se divulgasse a fama

da sua santidade, cresceu também, por sua vez, a devoção dos fiéis, que

lhes proporcionaram habitações condignas. Em Canterbury, o senhor Ale-

xandre, mestre do hospício dos sacerdotes, deu-lhes um pequeno terreno e

construiu uma capela suficientemente grande para as necessidades dessa

altura; e como os irmãos não quisessem aceitar nenhuma propriedade, a

cidade constituiu-se proprietária e concedeu o uso aos frades26. Chegaram

a ser seus protectores, particularmente o senhor Simão de Langton, arce-

diago de Canterbury, o senhor Henrique de Sandwich e a nobre condessa

que vivia reclusa em Hakington. Ela favorecia-os em tudo, como faz uma

mãe com os filhos, atraindo para eles engenhosamente o favor dos prínci-

pes e prelados, sobre quem tinha conquistado de modo maravilhoso uma

profunda influência.

—————

Oxford ( ou, para outros, de Exonia, Exeter) entrou na Ordem talvez para poder realizar

mais facilmente o seu desejo de ir para entre os muçulmanos. 26

Fiéis ao preceito taxativo da Regra bulada (c.6) que proíbe todo o tipo de

propriedade, os irmãos aceitaram esta casa somente para seu uso. O que viria a ser

depois uma longa e áspera polémica, é resolvido agora simplesmente deixando a pro-

priedade dos bens doados à autoridade civil da cidade.

Page 23: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

23

22. Em Londres, João Iwyn deu hospedagem aos irmãos e transferiu

para a cidade a propriedade de um terreno comprado para os irmãos, dei-

xando-lhes o usufruto segundo a vontade dos cidadãos; depois, o mesmo

entrou na Ordem como irmão leigo e deixou-nos exemplos de verdadeira

penitência e grande piedade. Joyce, filho de Pedro, ampliou este terreno, e

seu filho, jovem piedoso e de bom coração, entrou também com entu-

siasmo na Ordem e nela perseverou devotissimamente até ao fim.

Depois, Guilherme Yoynier construiu a capela a expensas suas e

ofereceu, com vários intervalos, uma quantia de cerca de duzentas libras

esterlinas para erigir a outra construção, continuando a ser amigo dos fra-

des27 e seu benfeitor até à morte.

Para a construção da enfermaria, Pedro de Eyland deixou por sua

morte 100 libras esterlinas. Henrique de Frowik e um jovem maravilhoso,

Salekin de Basings, contribuíram especialmente com as suas ofertas para a

construção de um aqueduto, para o qual, de resto, o rei deu um subsídio

com admirável prodigalidade. Durante o tempo da minha estadia em Lon-

dres vi o dulcíssimo Jesus prover os irmãos com tantas ofertas para as

suas construções, para aquisição de livros, ampliação do terreno e outras

necessidades, que havia de surpreender a todos. Por este motivo, os

irmãos devem amá-lo e honrá-lo eternamente, distinguindo-o acima dos

demais benfeitores.

23. Em Oxford, Roberto le Mercer foi o primeiro a acolher os

irmãos e arrendou para eles uma casa, em que foram admitidos à Ordem

muitos honrados bacharéis e senhores da nobreza. Depois, alugaram a

Ricardo le Muliner uma casa, na zona onde agora estão; este transferiu

dentro do ano o terreno e o edifício para uso da comunidade da cidade.

Mas o terreno era pequeno e muito estreito.

24. Em Cambridge, os irmãos foram recebidos primeiramente pelas

autoridades da cidade, que lhes confiou uma antiga sinagoga anexa à pri-

são. Mas como a vizinhança da prisão se tornasse algo molesta para os

irmãos e para os carcereiros, deu-lhes o rei dez marcos para, com o seu

rendimento, poderem pagar ao procurador o aluguer de um pedaço de ter-

————— 27

Isto é amicus spiritualis fratrum, segundo 2R 4, a quem os frades podiam recor-

rer nas necessidades. Cf, AF, p. 226, nt. 1.

Page 24: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

24

reno. Deste modo, os irmãos puderam construir uma capela, mas tão

pobre que o carpinteiro a levantou num só dia com quinze pares de vigas.

Para a festa de São Lourenço, embora fossem três apenas os frades cléri-

gos, ou seja, frei Guilherme de Ashby, frei Hugo de Bugeton e um noviço

chamado Elias, que era tão coxo que tinha de ser transportado à capela,

cantaram solenemente o ofício com música. O noviço chorou tanto que as

lágrimas lhe corriam pela face enquanto cantava; depois da sua santa

morte, em York, apareceu a frei Guilherme de Ashby em Northampton, e

quando este lhe perguntou como estava, respondeu: ―Estou bem; pede por

mim!‖.

25. Em Shrewsbury, o rei deu aos irmãos um terreno. Um cidadão

chamado Ricardo Pride construiu a igreja e Lourenço Cox as outras

dependências. Mas, por vontade do ministro, frei Guilherme, e amor à

pobreza, foram derrubadas as paredes de pedra do dormitório e recons-

truídas em barro, tudo fazendo com admirável submissão, paciência e

grande esforço.

26. Em Northampton28

, um cavaleiro, Ricardo Gobion, albergou os

irmãos num terreno recebido em herança, fora da porta oriental, perto da

igreja de Santo Edmundo, onde pouco depois o filho do referido benfeitor,

de nome João, recebeu o hábito. Mas os parentes ficaram perturbados com

a sua entrada na Ordem e o pai mandou aos frades que saíssem do terreno

que era dele e o deixassem livre. Com ponderação, o guardião respondeu

deste modo: ―Coloque-se o jovem no meio, e a parte que ele escolher será

aprovada por ambos‖. Os parentes aceitaram. O jovem foi, pois, colocado

no meio do coro, com os parentes a um lado e os frades a outro. Quando o

guardião lhe disse que escolhesse, frei João correu para os irmãos, apertou

nos braços a estante e disse: ―Quero ficar aqui‖. Os irmãos dispuseram-se

a abandonar o convento, enquanto o dito senhor aguardava à porta: avan-

çando dois a dois em procissão, seguia em último lugar um irmão idoso e

débil, levando na mão um saltério. Ao observar tanta simplicidade e

humildade, e comovido com a divina inspiração, desfez-se o dito senhor

em lágrimas e pediu-lhes logo que lhe perdoassem e voltassem para o

convento. E assim fizeram. Depois, comportou-se com os irmãos como

————— 28

A versão publicada em AF omite o texto do número 26.

Page 25: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

25

um pai. Mais tarde, os cidadãos introduziram os irmãos na parte de cidade

onde ainda residem29

.

COLÓQUIO V

Pureza de vida dos primeiros irmãos

27. Os irmãos desse tempo, de posse das primícias do Espírito (Rm

8, 23), serviam o Senhor não impelidos por leis humanas, mas segundo a

livre inclinação da sua religiosidade, contentes apenas com a sua Regra e

os pouquíssimos estatutos que haviam sido publicados no mesmo ano da

aprovação da mesma. E foi esta a primeira constituição que São Francisco

fez depois da promulgação da Regra bulada, como disse frei Alberto de

Pisa, de santa memória: que os irmãos não deviam comer na companhia

de seculares, a não ser três bocados de carne, pelo respeito à prescrição do

Evangelho30, pois corria o rumor de que os irmãos pecavam pela avidez

no comer.

Tinham eles o costume de guardar silêncio até à hora de Tércia e

eram tão assíduos na oração que quase não havia hora nocturna em que

não estivesse alguém no ―oratório‖. Nas principais festas do ano cantavam

com tanto fervor o ofício da vigília que não raras vezes o prolongavam

noite dentro; e mesmo quando não eram mais de três ou quatro, ou

quando muito seis, recitavam-no solenemente cantando.

A sua simplicidade e pureza eram tão límpidas que no Capítulo se

acusavam mutuamente até das poluções nocturnas. Era também seu cos-

tume nunca julgar ninguém, limitando-se a dizer simplesmente: ―Assim

é‖ (cf. Mt, 5,37). Apenas alguém era repreendido pelo superior ou por

algum companheiro, respondia imediatamente: ―mea culpa‖, e com fre-

quência se prostrava por terra. A este respeito, frei Jordão, mestre geral

dos pregadores, disse que o diabo, aparecendo-lhe uma vez, lhe tinha dito

que este ―mea culpa‖ lhe destruía tudo quanto julgava arrebatar aos

————— 29

Fica deste modo patente a preocupação dos irmãos ingleses em manter a

pobreza formal como estava mandado, fazendo com que a propriedade dos edifícios

fosse das comunidades locais ou do rei. Cf. MERLO, G. G. Francisco de Asís – Historia

de los hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI,

Arantzazu, 2005, p. 79-95. 30

Lc 10, 8; 1R 3, 13; 2R 3, 14.

Page 26: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

26

irmãos menores, porque confessavam uns aos outros a sua culpa quando

ofendiam um irmão.

28. Os irmãos eram sempre tão amáveis e joviais uns com os outros

que só a muito custo podiam deixar de rir quando se encontravam juntos.

Mas como os jovens irmãos de Oxford riam com demasiada frequência,

foi imposto a um deles que, sempre que se risse no coro ou na mesa,

outras tantas se castigasse com a ―disciplina‖.

Aconteceu que, num só dia, esse pobre irmão teve de se disciplinar

onze vezes sem poder conter o riso. Uma noite, porém, teve uma visão:

estando toda a comunidade no coro, e encontrando-se todos tentados de

riso, como em outras ocasiões, o crucifixo que estava pendurado na porta

do coro voltou-se para eles como se estivesse vivo e disse: ―São filhos de

Coré (cf. Nm 16), que na hora da cruz riem ou dormem‖. Pareceu-lhe

também que o crucificado tentava despregar-se da cruz, como se quisesse

descer e ir-se embora; mas de imediato o guardião do convento subiu e

rebateu os cravos para que não pudesse baixar. Contada, pois, a visão, os

irmãos ficaram desconcertados e desde então mostraram-se mais sérios e

menos dados ao riso.

Tinham um tal amor à verdade que quase não ousavam dizer coisa

alguma por metáforas, e jamais ocultavam as próprias culpas, embora

soubessem que seriam castigados se as confessassem.

29. A questão de escolher um convento ou de permanecer no que

lhes era destinado, não representava qualquer espécie de dificuldade para

eles; nem sequer os preocupava terem de cumprir outras ordens, quaisquer

que fossem, ou qualquer que tivesse de ser a maneira de as cumprir. Bas-

tava-lhes saber que eram ordens do superior. Sucedeu, até, que foram

enviados para lugares que agora são tidos por sertanejos ou ermos, irmãos

que eram nobres de nascimento, ou importantes por outros motivos na

vida secular, ou de grande respeito na Ordem, e eles partiam sem qualquer

murmuração. Por haver entre eles um grande afecto, a única coisa que os

entristecia era terem de se separar. Por esse motivo, acontecia com fre-

quência que os irmãos acompanhavam os que partiam durante um longo

trecho de caminho, e demonstravam o mútuo afecto vertendo muitas

lágrimas no momento da separação.

Page 27: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

27

COLÓQUIO VI

Promoção dos pregadores

30. Embora os irmãos se empenhassem com todas as veras em

manter em tudo a máxima simplicidade e pureza de consciência, entrega-

vam-se com todo o ardor ao estudo das Escrituras e das disciplinas esco-

lásticas, tanto assim que todos os dias se dirigiam às escolas de teologia,

por distantes que fossem, descalços, mesmo na aspereza do frio invernal e

da lama abundante. Por isso, com a ajuda da graça do Espírito Santo,

foram vários os promovidos em pouco tempo ao ofício da pregação. O

primeiro entre eles foi frei Henrique de Baldock, de feliz memória, depois

frei Filipe de Londres e frei Guilherme de Ashby, o qual anunciou a pala-

vra de Deus tanto ao clero como ao povo, não apenas com a pregação mas

com o exemplo da sua piedade.

31. Deu um grande impulso à pregação e novos motivos de prestí-

gio e autoridade, a entrada na Ordem de frei Haymon de Faversham31. Era

já sacerdote e pregador famoso quando pediu para ser admitido à Ordem

juntamente com outros três mestres, em Saint-Denis, numa Sexta-feira

santa.

Quando ainda pertencia ao clero secular, usava o cilício até aos joe-

lhos e dava muitos outros exemplos de austeridade. Por esse motivo,

emagreceu e enfraqueceu tanto que dificilmente sobreviveria se não

usasse roupas delicadas e quentes. Um dia, teve esta visão: encontrava-se

em Faversham a pregar na igreja diante do crucifixo, quando do céu des-

ceu uma corda; ele agarrou-a e assim foi puxado para o céu. Quando, mais

tarde, viu os irmãos menores em Paris, lembrando-se da visão, recobrou

ânimo e, reagindo contra a própria debilidade, convenceu com muita deli-

cadeza o companheiro, mestre Simão de Sandwich e outros dois famosos

————— 31

Fr. Haymon de Faversham entrou na Ordem em Paris no ano de 1222. Depois

de os irmãos chegarem a Inglaterra juntou-se a eles, em 1224. Foi custódio em Paris,

leitor em Tours, Bolonha e Pádua. Gregório IX enviou-o como delegado à corte do

imperador grego João Vatácio II. Era grande opositor de Fr. Elias e contribuiu para que

fosse destituído de Ministro Geral (Cf. Col. XIII), em 1239. Foi eleito Ministro geral

em 1 de Novembro de 1240. Foi durante o seu governo que a Ordem começou a ter um

ordenamento jurídico, mais tarde completado por S. Boaventura. É recordado na Cró-

nica de Jordão de Giano (nº 70-71).

Page 28: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

28

mestres, a pregarem nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto ele celebrava a

missa para implorar que lhe revelasse o que era melhor para a sua salva-

ção. E como a todos parecesse que a melhor opção era professarem nos

irmãos menores, para maior segurança foram ter com frei Jordão, mestre

dos irmãos pregadores, de santa memória, rogando lhes dissesse com ver-

dade qual era o melhor conselho segundo a sua consciência. Este, que

estava verdadeiramente inspirado por Deus, confirmou com o seu conse-

lho a escolha feita. Desta maneira, os quatro apresentaram-se diante do

ministro provincial, frei Gregório de Nápoles32, que os recebeu em Saint-

-Denis, depois de Haymon ter pregado na Sexta-feira santa sobre o versí-

culo: “Quando o Senhor restaurar os destinos de Sião (Sl 125,1); e com

grande satisfação receberam o hábito franciscano.

No dia de Páscoa, vendo uma grande multidão na igreja paroquial

onde os irmãos assistiam à missa, porque ainda não tinham capela própria,

frei Haymon disse ao custódio, um leigo chamado frei Benvenuto, que, se

lhe parecesse bem, pregasse ao povo para que ninguém comungasse em

pecado mortal. O custódio, inspirado pelo Espírito Santo, ordenou-lhe que

pregasse. E frei Haymon pregou de maneira tão comovente, que muitos

decidiram diferir a Comunhão até terem ocasião de se confessar. Perma-

neceu na igreja durante três dias ouvindo confissões e confortando a todo

o povo.

32. Como já se disse, quando os irmãos vieram para Inglaterra, veio

também com eles este irmão e, mercê da pregação e das disputas escolás-

ticas, mas principalmente pela simpatia que granjeou junto de muitos

prelados, pôde levar muitos à simplicidade dos primeiros frades. Era tão

cortês e eloquente que conseguia ser aceite até pelos que não viam a

Ordem com bons olhos. Por essa razão, foi eleito primeiramente custódio

de Paris e depois leitor em Tours, Bolonha e Pádua. Posteriormente, o

papa Gregório, de piedosa memória, enviou-o em missão diplomática à

Grécia, ao imperador Vatácio, juntamente com frei Rodolfo de Reims, de

feliz memória.

————— 32

Quando S. Francisco se ausentou para o Egipto e Terra Santa deixou dois vigá-

rios, Fr. Gregório de Nápoles e Mateus de Narni. Fr. Gregório foi também Ministro

provincial da França (1223-1233).

Page 29: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

29

33. Frei Haymon fez remover do provincialado frei Gregório de

Nápoles, então ministro de França, por causa dos seus abusos, e por justo

juízo de Deus mandou que fosse encarcerado, libertando aqueles que o

ministro tinha encarcerado injustamente. Sustentado por uma singular

ajuda de Deus, fez depor também frei Elias, que era Ministro Geral, por

causa dos seus escândalos e pela tirania que tinha exercido sobre os

observantes da Ordem, na presença do nosso pai, o papa Gregório IX,

uma vez que, por sua iniciativa, muitas províncias tinham apelado contra

frei Elias.

Quem pode, pois, presumir dos seus méritos e sentir-se seguro de si

próprio quando vê cair tão baixo pessoas tão importantes? Quem pode

comparar-se a um homem como Gregório de Nápoles entre os pregadores

ou os prelados da Universidade de Paris, ou entre o clero de toda a

França? Quem foi mais famoso e estimado em todo o mundo cristão do

que frei Elias? No entanto, o primeiro destes mereceu a prisão perpétua, o

outro foi excomungado pelo soberano pontífice por desobediência e

apostasia. Fosse como fosse, ambos se arrependeram, embora tardia-

mente.

34. Chegou depois a Inglaterra, com frei Haymon, frei Guilherme de

Colville, o velho, homem simples e de extraordinária caridade. Sua irmã

foi cruelmente estrangulada mais tarde na catedral de Chichester por

defender a sua virgindade. De facto, um jovem, rendido à sua beleza,

tinha desejado durante muito tempo encontrar-se a sós com ela e seduzi-

-la. Ao não conseguir vergá-la aos seus desejos, deixou provado como é

perverso o amor carnal degolando-a na igreja.

Com frequência, entre duas pessoas que se amam carnalmente

estala um ódio igual em intensidade ao primeiro amor.

35. Seguidamente, vieram para Inglaterra muitos outros irmãos não

menos distintos, de origem inglesa, mas entrados na Ordem em Paris.

Conheci-os quando ainda era leigo. Eram eles, em primeiro lugar, frei

Ricardo Rufus, leitor insigne, o qual, graças ao seu empenhamento na

reforma da Ordem contra frei Elias, foi enviado à cúria papal com frei

Haymon, como representante da França. Contou ele que um noviço lhe

tinha confidenciado que padecia então de uma sede tão persistente que

não podia dormir, até que, numa noite, lhe apareceu um homem de belo

Page 30: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

30

aspecto, com hábito de frade; mandando-lhe que se levantasse e o

seguisse, foi levado a um lugar muito ameno e fê-lo entrar num palácio

maravilhoso. Oferecendo-lhe uma bebida gostosíssima, disse-lhe: ―Meu

filho, sempre que tiveres sede, vem ter comigo e dar-te-ei de beber‖. O

noviço perguntou-lhe quem era, e ele respondeu que era frei Francisco.

Ao despertar, o irmão de quem estamos a falar nunca mais teve a sensação

de sede, antes se sentiu sempre satisfeito e confortado na alma e no corpo.

36. Nesse tempo, chegou também frei Rodolfo de Rochester, que

veio a ser muito amigo do rei de Inglaterra devido ao seu talento oratório.

Já pelo fim da vida demonstrou como é inimiga da alma a amizade deste

mundo. Ser-se honrado com os favores dos grandes e privar continua-

mente com os príncipes em seus palácios são coisas contrárias à perfeição

da Ordem dos irmãos menores.

37. Outro que também veio foi frei Henrique de Burford, que,

enquanto noviço e cantor entre os irmãos de Paris, compôs durante a

meditação os seguintes versos contra as tentações que tinha de combater:

Tu que és irmão menor, nunca rias,

pois só as lágrimas te convêm;

faz que ao teu nome corresponda a tua vida.

Menor és de nome; que o sejas também de verdade.

Suporta de bom grado a fadiga

e que a paciência te abata o orgulho da mente.

Na verdade, o coração corrige a pusilanimidade,

a paciência purifica o que pode haver de impuro.

Se alguém te corrige, tem-no como protector;

pois não é a ti que odeia, mas ao mal que fazes.

Quem julgas ser, metido em tão vil estamenha,

com essa comida e jazida mais próprias de porcos?

Na verdade, tudo perdes se, com a tua conduta,

contradizes o que dizes com o hábito.

Sombra apenas de menor é quem só lhe usa o nome33.

————— 33

Qui minor est, noli ridere, tibi quia soli convenit ut plores;

iungas cum nomine mores.

Page 31: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

31

Mais tarde, devido à sua grande honestidade, teve este irmão a

honra de ser companheiro de quatro ministros gerais34 e de quatro minis-

tros provinciais de Inglaterra35

. Foi também o primeiro intérprete e prega-

dor do Patriarca de Antioquia, quando veio como legado à Lombardia36, e

depois penitenciário do papa Gregório IX, custódio de Veneza e, por

algum tempo, vigário do custódio de Londres.

38. Chegou também nesse tempo frei Henrique de Reresby, que

mais tarde, enquanto vigário do custódio de Oxford, foi nomeado ministro

da Escócia, mas morreu antes de tomar posse do cargo. Depois da sua

morte, apareceu ao custódio dizendo que, embora os irmãos não sejam

condenados pelos gastos excessivos com as construções, são severamente

punidos, e acrescentou que se os irmãos recitarem bem o ofício divino

serão as ovelhas dos apóstolos.

39. Nesse tempo veio também para a Inglaterra frei Martinho de

Barton, que teve a dita de ver frequentemente São Francisco. Foi eleito

vigário do ministro da Inglaterra e comportou-se muito exemplarmente

noutros ofícios. Frei Martinho relatou que no Capítulo geral em que São

Francisco tinha mandado demolir a casa que fora construída expressa-

mente para o Capítulo, estavam presentes cerca de cinco mil irmãos, e que

seu irmão carnal, sendo procurador do Capítulo, proibiu a demolição em

nome da cidade. Estando o bem-aventurado Francisco sob uma intempé-

rie, à chuva mas sem se molhar, escreveu uma carta37

, redigida pelo pró-

prio punho, e enviou-a por seu intermédio ao ministro e aos irmãos de

—————

Nomine tu Minores, minor actibus esto, labores perfer,

et ingentem nuntiat pacientia menten.

Nempe cor obiurgat pernam, patientia purgat, si quidquam faecis est;

Si quis te corripit, is est, qui te custodit, non te, sed quod facis odit.

Quid tibi cum vili veste, cibo, quoque cubili porcorum?

Certe, tu singulis perdis aperte, si mentitus eris factis quod veste fateris.

Umbra Minoris erit, qui nomem re sine quaerit. 34

João Parente, Elias, Haymon de Faversham e Crescêncio de Jessi. 35

Agnelo de Pisa, Alberto de Pisa, Haymon e Guilherme de Nottingham. 36

Trata-se de Alberto de Rizzato, bispo de Bréscia e depois patriarca de Antio-

quia. Foi legado apostólico na Lombardia em 1235. 37

Não temos o texto desta carta de S. Francisco. Cf. Escritos de São Francisco e

Santa Clara, Ed. Franciscana, Braga, 2001, p. 112.

Page 32: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

32

França, que se alegraram de a receber e louvaram a SSma Trindade,

dizendo: ―Bendigamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo‖.

Nesse mesmo dia, o bem-aventurado padre, correndo para a igreja

mal ouviu o estrondo duma queda, salvou com a sua aflita oração um con-

frade que tinha caído a um poço profundo. Disse-nos também que um

irmão, que estava em oração em Bréscia no dia de Natal, foi encontrado

ileso sob os escombros da igreja durante o terramoto que São Francisco

havia anunciado e mandado anunciar pelos irmãos em todas as escolas de

Bolonha, mediante carta escrita em latim vulgar38

. Este terramoto teve

lugar antes da guerra travada pelo imperador Frederico e prolongou-se

durante quarenta dias, tanto que foram sacudidas todas as montanhas da

Lombardia.

40. Veio também para Inglaterra frei Pedro de Espanha, que foi

depois guardião de Northampton. Envergava um corpete de malha de

ferro para vencer as tentações da carne.

Havia no seu convento um noviço que foi tentado a deixar a Ordem;

por fim, frei Pedro convenceu-o a acompanhá-lo até junto do ministro.

Enquanto caminhavam, começando ele a falar-lhe da virtude da santa

obediência, uma ave silvestre veio pousar-lhes à frente, precedendo-os na

caminhada. Então o noviço, chamado Estêvão, disse: ―Se é como tu dizes,

pai, manda a esta ave em nome da santa obediência que pare já, para que

possa apanhá-la‖. Dada a ordem, a ave parou de imediato e o noviço,

indo-se a ela, agarrou-a e fez com ela o que lhe aprouve. Imediatamente

toda a tentação desapareceu e o Senhor deu-lhe um coração novo, de

modo que voltou para Northampton e prometeu perseverar. Chegou

depois a ser um grande pregador, como eu próprio pude testemunhar.

COLÓQUIO VII

Divisão da província em custódias

41. Depois destes factos, multiplicados os conventos e aumentados

os irmãos tanto em mérito como em número, pareceu oportuno dividir a

————— 38

As Crónicas locais da Alta Idade Média registam este terramoto, com epicentro

em Bréscia, no ano 1222.

Page 33: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

33

província em custódias. No primeiro Capítulo provincial de Londres foi,

pois, dividida em várias custódias e cada uma delas distinguiu-se por uma

virtude particular.

A custódia de Londres, confiada a frei Gilberto, a quem, no

momento da morte apareceu a bem-aventurada Virgem, brilhou sobretudo

pelo fervor, pela humildade e pela devoção no ofício divino. A custódia

de Oxford, que foi presidida por frei Guilherme de Ashby, tornou-se

famosa sobretudo pela actividade intelectual.

42. Na mesma custódia de Oxford39

, governada durante doze anos

por frei Pedro, os irmãos não usaram almofadas enquanto frei Alberto de

Pisa não chegou a ministro. Por isso, quando frei Alberto disse no Capí-

tulo que os irmãos usavam apoios incapazes de manter elevada a cabeça,

o custódio respondeu que os irmãos sabiam muito bem que tinham debili-

dades humanas, mas que não era preciso que lho dissessem. Nem sequer

usavam sandálias, a não ser os doentes e os débeis, e só com licença dos

superiores.

Ora aconteceu que frei Walter de Madeley, de boa memória, tendo

encontrado um par de sandálias, calçou-as para ir a matinas. Em matinas,

assim lhe pareceu, sentiu-se muito melhor que antes. Mas, quando foi para

a cama e adormeceu, sonhou que tinha de atravessar um desfiladeiro peri-

goso entre Oxford e Gloucester, chamado Baizalis, onde se acoitavam

habitualmente os salteadores; e quando chegou ao fundo do vale saltaram

estes de ambos os lados do caminho, gritando: ―Mata-o. Mata-o!‖.

Assustadíssimo, frei Walter defendeu-se dizendo que era frade menor.

Mas eles replicaram: ―Mentes, porque estás calçado‖. O irmão, cuidando

estar sem sandálias como de costume, disse: ―Então não vêem que cami-

nho descalço?‖. E, ao avançar um pé para fazer prova, viu que efectiva-

mente estava calçado. Acordado de repente, vencido pelo medo, atirou

com as sandálias para o meio do pátio.

43. Na custódia de Cambridge, presidida por frei Ricardo de Ing-

worth, floresceu o desapego ao dinheiro, tanto que, quando frei Alberto

visitou a Inglaterra, os irmãos da custódia não usavam sequer mantos,

segundo testemunhou o mesmo padre.

————— 39

O texto do número 42 não consta da edição da AF. Cf. p. 233.

Page 34: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

34

44. Na custódia de York, governada por frei Martinho de Barton,

reinou o zelo pela pobreza. Não permitia ele que nos conventos o número

dos irmãos fosse superior aos víveres que se pudessem juntar apenas com

a recolha de esmolas e não com o recurso a endividamentos40

.

45. Na custódia de Salisbury, presidida por frei Estêvão, floresceu

principalmente o amor à mútua caridade. O próprio custódio era tão afável

e jovial, tinha uma tão extraordinária caridade e compaixão, que recorria a

todos os meios para que ninguém andasse triste. Por isso, quando chegou

a hora da morte e recebeu a sagrada partícula, viu na hóstia uma porta por

onde devia passar, e assim, cantando em alta voz a ―Salve rainha, mãe de

misericórdia‖, morreu santamente, em Salisbury.

46. Na custódia de Worcester, presidida por frei Roberto de Leices-

ter, reinou especialmente a primitiva simplicidade. De pequena estatura,

mas de grande coração, praticou sempre a mais límpida simplicidade e

confiou cargos da Ordem a vários homens dotados desta virtude. Final-

mente, em Worcester, restituiu a sua alma santa e simples ao Senhor, com

poderoso clamor e lágrimas (Hb 5, 7).

COLÓQUIO VIII

Os Capítulos dos visitadores41

47. Decorridos alguns anos, foram enviados a Inglaterra visitadores

especiais que, por ocasião das suas visitas, celebraram Capítulos. O pri-

meiro visitador foi frei Guilherme de Colville, o velho, que celebrou o seu

Capítulo sob o provincialado de frei Agnelo, em Londres, onde o senhor

Guilherme Joynier tinha construído uma capela a expensas suas, e cuja

————— 40

Cf. EP 10. 41

Na 1R 4 diz-se que os ministros devem ―visitar, instruir e confortar‖ os irmãos.

O mesmo é referido na 2R 10. A primeira vez que se falou dos visitadores nomeados

pelo Ministro geral foi no caso de Fr. Gregório de Narni que, na ausência de Francisco,

ficou, como vigário, com a incumbência de visitar as províncias. Cf. JORDÃO DE GIANO

11.

Page 35: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

35

imauguração, celebrada com memorável pompa, coube ao referido visita-

dor42.

48. Neste mesmo Capítulo da visita de frei Guilherme de Colville,

um irmão pregou contra o abuso de se contrair dívidas, e disse que aos

procuradores43 lhes tinha acontecido o mesmo que a certo sacerdote que

costumava celebrar todos os anos a festa de São Nicolau. Ficou reduzido a

tal pobreza à conta das dívidas, que já não a podia celebrar nem preparar o

costumado banquete. Quando chegou o dia da festa e os sinos tocaram a

matinas, estendido na cama, cogitava no que poderia fazer. O primeiro

sino que tocou parecia dizer: ―Ieo ke fray, ieo ke fray‖ (que farei eu, que

farei eu?); o segundo parecia responder: ―A crey, a crey‖ (um empréstimo,

um empréstimo!); e enquanto pensava no modo como pagar os gastos da

celebração, ambos os sinos voltaram a tocar, dizendo: ―Ke del un, ke del

un, ke dele el‖ (Um pouco de um, um pouco de outro!). Levantando-se,

celebrou a festa com dinheiro tomado de empréstimo. O Capítulo aprovou

este procedimento.

49.44 Depois dele veio para Inglaterra João de Malvern, que foi o

primeiro a trazer-nos a declaração sobre a Regra do papa Gregório IX45.

Este, por ocasião da visita que fez sob o provincialado de frei Agnelo,

reuniu os irmãos em grande número, bem como os noviços, em Londres,

Leicester e Bristol. Era tão rígida nessa ocasião a consciência dos irmãos

em matéria de construção de edifícios e de pinturas, que adoptou as mais

severas medidas a propósito das janelas da igreja do convento de Glou-

cester, e, por causa do púlpito que um irmão tinha pintado por sua inicia-

tiva, tirou o capuz ao referido irmão e impôs o mesmo castigo ao guardião

que a tinha tolerado.

50. O terceiro visitador foi enviado pelo ministro geral frei Elias

durante o provincialado de frei Alberto. Era frei Vigério, alemão, muito

————— 42

Na edição da AF, este número tem muito mais texto, que não consta nas edições

mais modernas. 43

Procuratori tem duplo sentido: os leigos como administradores, e os frades

como esmoleres. 44

Os números 49 a 51 não constam no texto da AF. 45

Refere-se à bula Quo elongati de 28 de Setembro de 1230.

Page 36: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

36

celebrado pelo conhecimento que tinha do direito, pela honestidade em

toda a sua conduta e ser muito amigo do senhor cardeal Otão, que era na

altura legado na Inglaterra46. Este tinha recebido do Ministro Geral instru-

ções muito severas e precisas; em particular que fossem excomungados

imediatamente todos aqueles que, de qualquer modo, lhe ocultassem

alguma coisa ou encobrissem a verdade, e que só por ele podiam ser

absolvidos, uma vez sentenciados. Exigia, além disso, que referisse ao

ministro geral todas as acusações. O resultado foi surgir uma tal agitação

entre os frades que nenhuma outra se vira igual. Com efeito, quando os

irmãos foram convocados para Londres, Southampton, Gloucester e

Oxford, e juntos se encontraram em grande número, prolongando excessi-

vamente a sua estadia, produziu-se imediatamente em toda a Província um

enorme e intolerável alvoroço, uma vez que, dentro do Capítulo, os

irmãos se acusavam uns aos outros, e crescia fora a suspeita dos seculares.

Por fim, terminada a visita a todos os conventos, celebrou-se o Capítulo

provincial em Oxford e, por decisão unânime, foi enviada uma queixa

contra frei Elias.

51. O visitador, como além da visita detinha o poder, e no seu man-

dato recebera instruções para fazer outras coisas que se tornariam um peso

considerável para os irmãos, dirigiu-se à província da Escócia e, convo-

cado o Capítulo, quis fazer a visita. Mas os irmãos reclamaram e expuse-

ram o seu pedido dizendo que já tinham tido a visita do ministro provin-

cial da Irlanda, delegado pelo Capítulo geral, e que não queriam outra.

Vendo que havia por toda a parte uma agitação generalizada, também o

visitador se sentiu bastante confundido e voltou para a Alemanha levando

consigo a informação da visita. Frei Guilherme de Ashby, que ele tinha

mandado a visitar a Irlanda, apenas concluiu a missão para que fora man-

dado, juntou-se a ele em Colónia.

————— 46

Foi na segunda metade do ano 1237. Também Jordão de Giano (62) fala nos

visitadores enviados por Fr. Elias, os quais, como favorecessem os seus programas,

acabaram por exasperar muitos irmãos que, por isso, decidiram recorrer ao Ministro

geral contra os visitadores e, não sendo escutados, apelaram ao Papa (63). Também se

revoltaram contra os contributos que os visitadores exigiam para a construção da

grande Basílica de S. Francisco (61).

Page 37: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

37

Por este motivo, quando os irmãos se reuniram em Roma, pediram

que as visitas fossem as que já tinham sido designadas pelo Capítulo

geral, em conformidade com a legislação sobre os visitadores. Frei

Arnulfo, penitenciário do Papa, disse que se o diabo tivesse encarnado,

não teria encontrado laço mais subtil e forte para enredar as almas que a

visita então terminada.

52. No Capítulo da visita de frei Vigério, foi reiteradamente acusado

frei Eustáquio de Mere, de santa memória, então excluído do Capítulo

durante um dia e meio. Outro irmão, que gozava de menor estima, foi

imediatamente justificado. Tinha ele exclamado: ―Pobre de mim! Aquele

homem de tão famosa santidade, de virtude tão provada e de prudência

tão sagaz foi julgado tão severamente, enquanto eu consigo escapar são e

salvo! Quem poderá acreditar ainda na justiça dos homens?‖.

COLÓQUIO IX

A divisão da Inglaterra em províncias

53. Decorrido um certo tempo após o estabelecimento dos irmãos

em Inglaterra, frei Elias, ministro geral, deu ordens para que a província

inglesa fosse dividida em duas: a da Escócia e a da Inglaterra, como antes.

Desejava ele, segundo se dizia, que, assim como a Ordem dos Irmãos

Pregadores tinha doze priores provinciais em todo o mundo, à imitação

dos doze apóstolos, teria ele sob o seu mando setenta e dois ministros

provinciais, à imitação dos setenta e dois discípulos.

Foi eleito ministro da Escócia frei Henrique de Resreby, mas mor-

reu antes de receber a nomeação. Sucedeu-lhe frei João de Kethene, guar-

dião de Londres, que incluiu na Província todos os conventos do outro

lado de York, e admitiu seguidamente na Ordem várias pessoas honestas e

de grande proveito. Particularmente zeloso do ofício divino, ofereceu-se a

si mesmo como exemplo de piedade. Recebeu com as maiores honras o

nosso venerável frei Alberto de Leicester e humildemente lhe pediu que

explicasse a Regra aos irmãos. Depois de ter governado de maneira

exemplar a província da Escócia durante vários anos, e uma vez que ficou

unida novamente à de Inglaterra, foi eleito ministro provincial da Irlanda

pelo ministro geral frei Alberto.

Page 38: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

38

54. Adenda. No tempo de frei João, frei Elias mandou que os irmãos

lavassem eles mesmos as suas roupas: os irmãos da província inglesa

obedeceram, ao passo que os da Escócia ficaram à espera de uma ordem

particular para eles.

55. Julgo digno de menção o facto de também este irmão, frei João,

ter apoiado com firmeza o ministro de Inglaterra, frei Guilherme de Not-

tingham, de santa memória, juntamente com frei Gregório de Bosellis, no

Capítulo geral de Génova, e, contra quase todo o Capítulo geral, ganha-

ram a causa pela qual devia ser abolido completamente o privilégio con-

cedido pelo Papa a respeito da aceitação de dinheiro por meio dos procu-

radores, e se devia limitar a interpretação da Regra dada pelo papa Ino-

cêncio IV naquelas coisas em que era mais ampla que a de Gregório IX47.

56. No mesmo Capítulo geral, Frei João de Kethene interveio sem-

pre diante de todos os definidores em favor da reconciliação de frei Elias,

e obteve que fosse dirigida a este uma exortação da parte dos irmãos para

que não protelasse por mais tempo o seu regresso à obediência da Igreja e

da Ordem48.

Além disso, este frei João estava de tal maneira empenhado na pro-

moção dos estudos, que mandou adquirir em Paris uma Bíblia completa-

mente comentada e fê-la enviar para a Irlanda. Era tão solícito em confor-

tar os irmãos, que muitos amargurados de outras províncias procuraram

refúgio junto dele e chegaram a fazer grandes progressos sob a sua direc-

ção. Tendo ocupado o cargo de ministro durante cerca de vinte anos, foi

dispensado do ofício no Capítulo de Metz, como sucedeu também com

frei Guilherme, ministro de Inglaterra.

57. Adenda. Quando frei Elias foi deposto do cargo, ficou estabele-

cido que só houvesse na Ordem trinta e duas províncias49: dezasseis para

além dos Alpes e dezasseis para aquém, pela seguinte razão: uma vez que

————— 47

Trata-se da bula Ordinem vestrum, de 14 de Novembro de 1245, que dava

autorização aos irmãos para recorrerem aos ―nuncii‖ na questão do dinheiro, em caso

de ―necessidade‖ e ―utilidade‖ dos irmãos. 48

Segundo Little, há aqui alguma confusão com as datas e lugares dos Capítulos

gerais (de Adventu, 52, n. a). 49

Cf. Jordão de Giano 67

Page 39: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

39

a eleição do ministro geral incumbia unicamente aos ministros provinciais

e custódios, se o número dos que tinham voz na eleição e nas deliberações

fosse demasiado elevado – já que a multidão é motivo de confusão – teria

sido quase impossível obter o consenso de tantas pessoas sobre qualquer

assunto.

COLÓQUIO X

Transformação e ampliação dos conventos

58. Dado que o número dos irmãos aumentava de dia para dia, as

casas e os terrenos que tinham sido suficientes para um pequeno número,

já o não eram para uma multidão. Além disso, graças à divina Providên-

cia, entravam com frequência na Ordem pessoas a quem se afigurava justo

e devido proporcionar condições de vida mais decentes. De facto, lugares

havia em que a simplicidade dos irmãos levara a aceitar inconsiderada-

mente espaços tão apertados que nem sequer se podia pensar em os

ampliar, sendo forçoso remover completamente as habitações. Isso levou

a que, enquanto vivia ainda frei Agnelo de Pisa, de santa memória, se

recorresse necessariamente a numerosas ampliações de casas e terrenos.

Porém, era tão grande o seu zelo pela pobreza que a muito custo permitia

se ampliassem os terrenos e se construíssem novas casas, a não ser por

absoluta necessidade. Isto foi particularmente evidente quanto à enferma-

ria de Oxford, tão pobremente construída que a altura das paredes não

excedia muito a de um homem, e até no tempo de frei Alberto o convento

não tinha sequer quartos para hóspedes. Da mesma forma, mandou subs-

tituir as paredes de adobe do dormitório de Londres por paredes de pedra,

deixando o tecto como estava. Sob frei Alberto, foi alterada a localização

dos conventos de Northampton, Worcester e Hereford.

59. Executaram-se também várias ampliações de lugares ocupados

pelos irmãos sob a presidência de frei Haymon, pois afirmava preferir que

os irmãos tivessem mais terra e a cultivassem, de modo a terem as verdu-

ras necessárias, de preferência a mendigarem por outros lados. Isto o disse

ele por ocasião da ampliação do terreno de Gloucester que, por uma deci-

são de frei Agnelo, os irmãos tinham reduzido anteriormente, cedendo-o

em grande medida, e agora puderam recuperar com muita dificuldade da

Page 40: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

40

parte do senhor Tomás de Berkeley, graças à sagaz dedicação de sua

mulher.

60. Sob a presidência de frei Guilherme foram trasladados os con-

ventos de York, Bristol, Bridgewater, e suficientemente ampliadas as

casas de Grimsby e Oxford. Mas quando um irmão, movido por excessiva

confiança ‒ tanto que os irmãos lhe chamavam a sua alma e tinha rece-

bido efectivamente uma carta muito afectuosa escrita pelo punho do

ministro quando se encontrava deprimido ‒ disse a frei Guilherme que o

acusaria diante do Ministro geral pelo facto de o convento de Londres não

estar rodeado de muros, respondeu-lhe com ardente zelo: ―E eu responde-

rei ao Geral que não entrei na Ordem para levantar muros‖. Devido a esse

zelo, mandou devolver à sua primitiva simplicidade o tecto da igreja de

Londres e retirar as ornamentações do claustro. Apesar disso, confessou

certa vez a esse irmão, que era aliás seu amigo, que certamente deviam

edificar construções suficientemente amplas, de modo a que, no futuro, os

irmãos não tivessem de as fazer maiores.

61. Adenda50. Frei Roberto de Slapton contou-me que quando os

irmãos viviam numa casa arrendada, antes de terem terreno próprio, o

guardião teve a seguinte visão: viu São Francisco chegar ao convento, e os

irmãos, correndo de imediato ao seu encontro, levarem-no ao terraço. E

como aí se sentasse a olhar à sua volta, calado durante muito tempo ante o

pasmo dos irmãos, o guardião perguntou: ―Em que estás a pensar, Pai?‖

São Francisco respondeu: ―Repara bem nesta casa‖. Obedecendo, voltou a

olhar e eis que toda ela lhe pareceu feita de ramaria entrelaçada, de barro e

de palha. São Francisco disse aos irmãos: ―Assim deveriam ser as casas

dos irmãos menores‖51. Então o guardião, tomando água, lavou-lhe os pés

e beijou-lhe as chagas. Estes factos passaram-se, creio, com frei Roberto.

Eu mesmo conheci um famoso pregador que confessava publicamente

que, por causa da sua preocupação em construir os conventos duma

cidade, tinha perdido o gosto de pregar e o fervor que costumava ter na

oração.

————— 50

Na edição de AF, esta parte não é apresentada como Adenda. 51

Cf. EP 10-11; 2C 56

Page 41: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

41

62. Também frei João, visitador dos irmãos pregadores da Ingla-

terra, disse a respeito de frei Guilherme de Abington que, antes de come-

çar a construção do convento de Gloucester, tinha o inestimável dom da

pregação, e que nunca um tão persuasivo pregador se devia ocupar em

construções, já que, continuou frei João, devido às preocupações em anga-

riar esmolas, de tal maneira se aviltou, que o rei de Inglaterra lhe chegou a

dizer: ―Frei Guilherme, sabias falar tão espiritualmente e agora a única

coisa que sabes dizer é ―dá-me, dá-me, dá-me‖. Noutra ocasião, como frei

Guilherme insistisse em lisonjear o rei para lhe arrancar alguma coisa, este

chamou-lhe serpente.

63. O senhor abade de Chertsey contava-me que quando um irmão

dominicano, muito seu amigo, lhe pediu lenha, ele deu-lhe apenas um

cavaco; e como esse irmão lhe dissesse que o desgostava ter-se incomo-

dado tanto em ir tão longe por tão pouca coisa, o abade deu-lhe um outro

cavaco; e como insistisse em dizer que Deus era trino e que, portanto,

devia dar-lhe três cavacos, o abade respondeu: ―Em nome de Deus, que é

um só, um só terás‖.

64. Quando frei Henrique de Burford recebeu o hábito em Paris, a

comunidade era composta apenas por trinta irmãos. Nesse tempo, estavam

estes a construir o convento de Valvert: uma construção tão folgada, de tal

comprimento e altura que pareceu a muitos irmãos contrária ao estado de

pobreza da Ordem. Por essa razão, alguns, particularmente frei Agnelo,

suplicavam a São Francisco que a derrubasse. E eis que, quando os irmãos

se preparavam para entrar no convento, por divina inspiração ninguém

nela entrou, e foi nesse preciso momento que o tecto e as paredes desaba-

ram até aos fundamentos, encontrando-se no seu lugar estes dois versos

escritos: ―A graça divina ensinou com esta derrocada que o homem feliz

deve ter habitação mais modesta‖; e deste modo os irmãos abandonaram o

lugar.

COLÓQUIO XI

Promoção dos leitores

65. Depois de ter ampliado o convento, onde florescia o principal

estudo de Inglaterra e onde a totalidade dos estudantes tinha o costume de

Page 42: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

42

se reunir, frei Agnelo mandou construir uma escola suficientemente

decente na casa dos irmãos e pediu a mestre Roberto Grossatesta52, de

santa memória, que aí os leccionasse.

Sob a sua orientação, fizeram notáveis progressos em pouco tempo,

tanto nas matérias teológicas como nas morais, que são necessárias a um

pregador53. Quando, depois, por providência divina, foi transferido da

cátedra de mestre para a de bispo, ensinou os irmãos o mestre Pedro, que

mais tarde foi bispo na Escócia. A este sucedeu mestre Rogério de

Weseam, antigo decano da diocese de Lincoln, nomeado posteriormente

bispo de Coventry. Da mesma maneira, mestre Tomás de Gales, depois de

ter ensinado com grande proficiência os irmãos desse convento, foi eleito

bispo de São David, em Gales. Estes mestres, sempre dedicados aos

irmãos em tudo, difundiram os seus feitos e a sua forma de vida em vários

lugares. Por essa razão, a fama dos irmãos ingleses e os seus progressos

nos estudos chegaram a ser igualmente tão conhecidos noutras províncias

que o ministro geral, frei Elias, pediu a frei Filipe de Gales e a frei Adão

de York que ensinassem em Lião54.

66. Quando chegou a Inglaterra, frei Alberto de Pisa nomeou frei

Vicente de Coventry leitor em Londres, e seu irmão carnal, Henrique,

leitor em Cambridge. E assim, em pouco tempo, foram nomeados para

vários lugares outros leitores: frei Guilherme de Leicester em Hereford,

frei Gregório de Bosellis em Leicester, frei Gilberto de Cranford em

Bristol, frei João de Weston em Cambridge, frei Adão de Marsh em

Oxford. O dom da sabedoria difundiu-se na Província inglesa com tal

abundância que antes do termo do provincialado de Guilherme de Nottin-

gham havia na Inglaterra trinta leitores, que disputavam solenemente e

três ou quatro que ensinavam sem direito a disputa. De facto, o ministro

provincial tinha escolhido estudantes de cada convento para a Universi-

————— 52

Roberto Grossatesta ensinou os irmãos desde 1229 até 1235, quando foi eleito

bispo de Lincoln. Manifestando a estima que tinha pelos irmãos, enquanto ensinava

renunciou a todos os privilégios a que tinha direito. A sua presença teve grande impor-

tância na implantação dos estudos em Inglaterra. 53

O códice A acrescenta aqui que Roberto Grossatesta foi bispo de Lincoln de

1235 a 1252. 54

Sobre o desenvolvimento dos estudos na Ordem, cf. Storia degli studi scientifici

nell’ Ordine francescano, Siena, 1911. Cf. nota 3.

Page 43: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

43

dade, a fim de sucederem aos leitores que falecessem ou fossem removi-

dos de seus cargos. Agora, porém, deixando de lado outras coisas, falare-

mos sucintamente da sucessão dos leitores na Universidade.

67. Alguns começaram a ensinar como mestres, outros leram como

bacharéis. Em Oxford ensinou primeiramente frei Adão de Marsh. O

segundo mestre foi frei Rodolfo de Collebruge, que entrou na Ordem

quando ocupava meritoriamente o cargo de mestre suplente em Paris, e foi

nomeado pelo Ministro geral com o mesmo grau em Oxford, onde ensi-

nou sendo ainda noviço. O terceiro foi frei Eustáquio de Normanville (que

no mundo tinha sido rico, mestre em artes e direito e chanceler de

Oxford).

68. Frei Pedro, ministro provincial de Inglaterra, disse que a entrada

na Ordem de frei Eustáquio foi de maior edificação que a de muitos

outros por ser nobre e rico no mundo, ter ensinado artes e direito como

mestre regente, ter sido chanceler de Oxford e estar preparado para iniciar

o magistério em teologia.

69. O quarto foi frei Tomás de York. O quinto, Ricardo Rufus de

Cornovaglia, que recebeu o hábito franciscano em Paris no tempo em que

frei Elias perturbava a Ordem, e fez a sua profissão na Inglaterra com

fidelidade e devoção durante o período da apelação a Roma contra o refe-

rido irmão. Seguidamente, leu as Sentenças (de Pedro Lombardo) como

bacharel ―cursor‖ em Paris, onde foi reconhecido como um grande e bri-

lhante filósofo55.

(Este frei Ricardo, quando chegou a Inglaterra, contou no Capítulo

de Oxford que, em Paris, certo irmão teve uma visão quando se encon-

trava em êxtase: viu frei Gil, irmão leigo de grande simplicidade mas

homem de contemplação, subir ao púlpito e comentar as sete petições da

oração dominical e os ouvintes eram apenas os irmãos leitores da Ordem.

Entrando, São Francisco ficou primeiramente em silêncio, mas depois

exclamou: ―Que vergonha para vós, que um homem sem cultura ultra-

passe os vossos méritos diante de Deus!‖ E acrescentou: ―E como a ciên-

————— 55

O texto que se segue, até ao número 71, inclusive, não consta na edição da AF.

Page 44: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

44

cia incha e a caridade edifica, muitos irmãos doutos que são muito res-

peitados… nada serão no reino eterno de Deus‖)56.

70. Um eminente leitor, que estudou comigo em Oxford, tivera

sempre este costume: enquanto o mestre ensinava e disputava, não o

escutava e ocupava-se noutras coisas, como em transcrever códices. Ora

aconteceu que, chegando a sua vez de leitor, os alunos estavam tão dis-

traídos que afirmava sentir-se tentado todos os dias a fechar o livro e ir-se

embora. Arrependido, declarou: Por justo castigo divino ninguém me quer

prestar atenção, porque eu tão-pouco a prestei a qualquer mestre‖. Além

disso, como tinha muito frequentes relações com os amigos seculares, e

como, por causa dessa familiaridade, prestava menos atenção do que

devia aos irmãos, com a sua conduta demonstrou aos demais que só no

silêncio e na paz se podem aprender as palavras da sabedoria e que não se

pode penetrar na lei de Deus, como diz um santo, senão na tranquilidade

da mente.

Quando mais tarde voltou a si, enamorou-se do sossego e do silên-

cio e tais progressos fez, que o bispo de Lincoln declarou que ele mesmo

não teria ensinado tão bem. Por isso, ao crescer a fama do seu valor, foi

chamado à Lombardia pelo ministro geral57 e ganhou a simpatia da própria

cúria pontifícia. Finalmente, a Mãe de Deus, por quem tinha grande devo-

ção, apareceu-lhe quando estava para morrer e, afastando dele os espíritos

malignos, alcançou-lhe a graça de entrar ditosamente no Purgatório, como

ele mesmo revelou a um dos seus amigos. Disse-lhe que estava no Pur-

gatório e que padecia muito dos pés, porque com muita frequência tinha

ido até junto duma piedosa senhora para a confortar, quando mais se devia

ter preocupado com as lições e outras ocupações mais necessárias; e pediu

————— 56

Este episódio manifesta a grande estima e veneração de que gozava Fr. Gil de

Assis, um dos primeiros companheiros de Francisco. Morreu em 1262. Além da simpli-

cidade, contemplação e espírito de trabalho que o caracterizavam, era também conhe-

cido pelo seu humor. Alguns dos seus ditos, cheios de sabedoria, são conhecidos como

―Ditos de Fr. Gil‖. Cf. 1C 25; LM 4. 3; TC 1; 32, 2; AP 14,4; 15, 7. 57

Não é conhecido o nome deste companheiro de Tomás Eccleston. Talvez fosse

Fr. Estêvão que, segundo Salimbene, foi enviado pelo Ministro geral João de Parma

como professor para Génova e depois para Roma.

Page 45: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

45

que mandasse celebrar missas por sua alma. O amigo mandou-as celebrar

durante dois anos seguidos e ofereceu muitos outros sufrágios58

.

71. Os mestres que vieram depois ensinaram por sua vez em Cam-

bridge: frei Vicente de Coventry, frei João de Weston, frei Guilherme de

Poitiers, frei Hermano Humphrey. Este último contou-me que, um dia,

estando doente em Cambridge, ouviu uma voz que lhe dizia: ―Fica quieto

como uma pedra!‖ Jazendo pois imóvel como uma pedra, apareceram-lhe

dois demónios que se sentaram à sua esquerda, e um anjo que se sentou à

direita. Os demónios começaram a molestá-lo com falsas acusações,

enquanto o anjo permanecia calmo, em silêncio. Por fim, os dois demó-

nios disseram: ―Quando os irmãos se põem a falar ou a beber em vez de

irem a Completas, ocupamo-nos deles; e quando vão, vamos trabalhar

para outro lado‖. Então o anjo disse-lhe: ―Vê como é grande a malícia

destes demónios: querem matar-te de desgosto, para que depois não pos-

sas estar em condições de louvar o nome do teu Criador‖. Confortado com

estas palavras, começou a transpirar e curou-se59.

COLÓQUIO XII

Instituição dos confessores

72. Houve também alguns irmãos que, embora não tivessem o ofí-

cio de pregadores ou de leitores, foram, por bondade e favor dos seus

prelados, encarregados de ouvir em vários lugares as confissões tanto de

religiosos como de leigos, por obediência e vontade do ministro provin-

cial. Entre estes, o mais conhecido foi frei Salomão, que chegou a ser con-

fessor geral dos cidadãos e dos membros da corte em Londres. No tempo

em que era guardião de Londres, depois da sua enfermidade, como antes

dissemos, o senhor Rogério, de santa memória, bispo de Londres, pediu-

-lhe a obediência canónica. Mas frei Salomão, que durante muito tempo

tinha estado de boas relações com o bispo, resistiu amigavelmente e

obteve uma prorrogação. Tinha o bispo uma tal estima pela Ordem que se

————— 58

Na edição de LITTLE seguem-se várias páginas com vários nomes de leitores de

Oxford. São acrescentos de autores posteriores. 59

Omitimos uma longa lista de nomes de leitores de Cambridge, que constam da

edição de LITTLE.

Page 46: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

46

punha de pé sempre que um irmão o saudava. Nesta ocasião, frei Agnelo

enviou sem demora à cúria romana um seu delegado e obteve para os

irmãos a bula intitulada “Nimis iniqua”60.

73. No ministério de confessor ficou também famoso frei Maurício

de Dereham, de boa memória. Certo dia, encontrara ele um rapaz que de

há muito sofria duma enfermidade incurável. Ouvido de confissão, impôs-

-lhe a penitência de rezar todos os dias três ave-marias e impetrar da bem-

-aventurada Virgem a saúde para poder vir a ser um frade menor. O rapaz

obedeceu e curou-se completamente. Por isso, quando chegou perto dos

quinze anos, frei Maurício obrigou-o a viver entre os irmãos como um

deles, até chegar à idade exigida; uma vez alcançada, vestiu logo o hábito,

sendo frei Agnelo o provincial.

74. Em Gloucester foi deveras famoso frei Vicente de Worcester,

verdadeiro pai para toda a região. Era de uma tal austeridade e rigor para

consigo mesmo, e de tanta doçura e afabilidade para com os súbditos, que

era amado de todos como um anjo. Devido à sua vida austera e à sua

extraordinária prudência, foi mais tarde promovido ao ofício de pregador

e chegou a ser confessor de Rogério, bispo de Coventry.

75. Em Lynn, frei Godofredo de Salisbury distinguiu-se pela fama

de santidade. Era um homem que, pela austeridade de vida, se mostrou –

se assim podemos exprimir-nos – qual outro Francisco e, pela sua virtude,

bondade e simplicidade, como um segundo António. Quando ouvia as

confissões, a piedade e compaixão eram nele tão grandes que, quando não

encontrava nos penitentes sinais de profunda contrição, comovia-os até ao

pranto com as suas próprias lágrimas e soluços, como sucedeu precisa-

mente com o nobre Alexandre de Bassingbourn. Confessava ele os seus

pecados como quem conta uma história, e frei Godofredo, chorando

amargamente, com os seus méritos e sábios conselhos convidou-o a tomar

————— 60

Cf. Colóquio III. A bula, de 21 de Agosto de 1231, é de Gregório IX. Cf. Bulla-

rium Franciscanum, T I, p. 54 e WADDINGO, Annales ad Annum 1231, n. 56, et ad a.

1324, n.7. Com esta bula, O Papa dirigia-se a todos os prelados e defendia os Frades

Menores contra a prepotência do clero secular, que muitas vezes dificultava a acção

pastoral dos irmãos.

Page 47: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

47

a decisão de entrar na Ordem dos menores. Nela entrado, nela morreu

santamente. Apareceu em seguida a um amigo, frei João de Stamford, e,

ao perguntar-lhe este como estava, respondeu: ―Le meye alme le fet cum

creature que est obeysant a sun Creatur; et repose est en celi k ela fit per

ducour” (a minha alma comporta-se como criatura obediente a seu Cria-

dor e encontra o seu descanso naquele que a criou por amor). Também o

instruiu sobre a fé no sacramento da Eucaristia de modo tão sublime, que

nenhum mortal estaria em condições de o imitar.

76. Em Oxford distinguiu-se frei Eustáquio de Merc, de boa memó-

ria. Foi guardião e finalmente custódio de York. Comprazia-se em contar

o seguinte episódio. Querendo São Lanfranco entrar numa Ordem reli-

giosa quando já era um eminentíssimo teólogo, vestiu um trajo de

palhaço61 e peregrinou por vários mosteiros, a fim de conhecer a vida

monástica. Chegava, batia à porta do coro com o bastão e, quando via os

monges olhar na direcção da porta e rir, dizia: ―Deus não está aqui‖. Mas

quando chegou a Bec-Hellouin e nenhum monge prestou atenção a quem

batia, entrou como converso. Quando, depois, o Papa celebrou um Capí-

tulo contra Berengário, obteve licença para ir com o seu abade e, enquanto

todos permaneciam em silêncio, consternados com as palavras do herege,

pediu para ser ouvido e desfez os seus argumentos com tanta clareza, que

Berengário disse: ―Ou tu és Lanfranco ou o diabo‖. E desta maneira foi

reconhecido pelo Concílio‖62.

COLÓQUIO XIII

Sucessão dos ministros gerais

77. O primeiro ministro geral depois de São Francisco foi frei Elias,

que tinha sido escrivão em Bolonha. Sucedeu-lhe frei João Parente de Flo-

rença, ministro provincial de Espanha, homem sábio, piedoso e de grande

austeridade. Removido do ofício pelos partidários de frei Elias, este foi

————— 61

A edição de LITTLE usa a palavra ―fatui‖, louco ou palhaço. A AF usa a palavra

―fratrum‖. Cf. AF, T I, p.244. Trata-se de S. Lanfranco, de Pavia, monge e abade de

Bec, grande mestre e mais tarde arcebispo de Canterbury. 62

Trata-se do Concílio de Latrão de 1059. Foi convocado por Nicolau II e levou à

submissão de Berengário de Tours, que negava a transubstanciação.

Page 48: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

48

novamente eleito ministro geral. As coisas passaram-se deste modo: no

Capítulo celebrado por ocasião da trasladação das relíquias de São Fran-

cisco63

, precisamente aqueles que Elias tinha autorizado a comparecer no

Capítulo – de facto, tinha concedido licença a todos os que a ele desejas-

sem assistir – queriam fazê-lo geral contra o parecer dos ministros provin-

ciais. Foram, pois, buscá-lo à sua cela e levaram-no até à porta da sala do

Capítulo e, depois de a arrombarem, quiseram instalá-lo no lugar de

ministro geral. Quando frei João isto viu, desnudou-se diante de todo o

Capítulo. Cheios de vergonha, os irmãos deixaram então de se agitar. E

não quiseram ouvir nem a Santo António nem a nenhum ministro provin-

cial. De qualquer modo, o povo julgou que a discórdia tinha surgido pelo

facto de o corpo de São Francisco ter sido trasladado três dias antes de os

irmãos se reunirem; mas cinco noviços, que tinham sido cavaleiros e esta-

vam presentes no Capítulo, onde tudo presenciaram, afirmaram, cho-

rando, que este alvoroço teria trazido um grande benefício à Ordem, por-

que a Ordem não devia conservar no seu seio qualquer elemento de dis-

córdia. E assim sucedeu, porquanto estes perturbadores foram dispersos

por várias províncias para que fizessem penitência. Depois, retirando-se

para um ermitério, frei Elias deixou crescer a barba e o cabelo e com esta

simulação de santidade, reconciliou-se com a Ordem e com os irmãos.

78. Este Capítulo enviou mensageiros ao papa Gregório IX para

obter uma declaração sobre a Regra, a saber, Santo António, frei Gerardo

Rossignol, penitenciário do Papa, frei Haymon, que mais tarde chegou a

ser ministro geral64, frei Leão, nomeado depois arcebispo de Milão, frei

Gerardo de Módena e frei Pedro de Bréscia65. Estes também informaram o

————— 63

A trasladação do corpo de S. Francisco foi a 25 de Maio de 1230. Cf. Besse,

VIII; Legenda da Úmbria, 11; Julião de Espira, 75. As informações que aqui são dadas

estão muito influenciadas pelo clima de hostilidade contra Fr. Elias. 64

Cf. nota 31. 65

É por Eccleston que temos informação sobre o grupo de irmãos, entre os quais

se encontrava Santo António, que compôs o comentário da Regra apresentado ao Papa.

Gregório IX respondeu com a bula Quo elongati, de 28 de Setembro de 1230. Há

alguma confusão na cronologia destes capítulos gerais. Jordão de Giano faz alguma luz

sobre estes capítulos (n.61). Frei Leão de Valvassori, nomeado bispo de Milão desde

1241, era grande pregador e orientou o povo de Milão frente ao movimento do Aleluia

e na guerra contra Frederico II; Gerardo de Módena vem referenciado também em

Page 49: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

49

Papa do grande escândalo provocado por frei Elias, pelo facto de o minis-

tro geral ter revogado o seu decreto, em que dava licença a todos os

irmãos que o desejassem, de assistir ao Capítulo, e fizeram-lhe saber tam-

bém que frei Elias, indignado por este motivo, tinha mandado trasladar o

corpo de São Francisco antes de os irmãos se reunirem. Deveras pertur-

bado com estas coisas, o Papa tomou uma atitude muito dura contra Elias

até que teve notícia da vida insólita que estava a conduzir no ermitério.

No entanto, mais tarde, no Capítulo geral de Rieti66, depois de João

Parente ter sido desligado do cargo, o Papa permitiu que Elias fosse

nomeado Ministro geral, tendo sobretudo em consideração a amizade que

existira entre ele e o bem-aventurado Francisco.

79. Mais tarde, uma vez que frei Elias era motivo de perturbação

para toda a Ordem em razão do seu amor às comodidades e dos seus

modos violentos, frei Haymon de Paris apresentou uma queixa contra ele.

Embora à revelia de frei Elias, muitos ministros e irmãos de provada vir-

tude das províncias cismontanas assentaram em celebrar um Capítulo

geral, sendo frei Arnolfo, penitenciário do papa Gregório IX, encarregado

dos assuntos da Ordem junto da cúria. Depois de longas discussões, foram

escolhidos de entre toda a Ordem irmãos com o encargo de preparar uma

reforma. Concluído o projecto, este foi lido na presença do Papa no

Capítulo geral em que estiveram presentes também sete cardeais67

. O

Papa pronunciou um sermão sobre a estátua de ouro vista por Nabucodo-

nosor, tomando como tema o versículo: “Ó rei, os pensamentos que te

vieram ao espírito enquanto estavas no leito…” (Dn 2,29). Acabado o

discurso, frei Elias começou a desculpar-se, aduzindo que os irmãos,

quando o elegeram para geral, estavam de acordo que comesse ouro e

tivesse cavalo, caso a sua má saúde o exigisse; mas agora acusavam-no,

escandalizados com a sua conduta. Frei Haymon quis responder-lhe, mas

o Papa não o consentiu, até que o cardeal Roberto de Somercotes lhe

—————

Salimbene, 31e 53. Aliás, Gerardo de Módena e Leão de Perego foram animadores do

movimento Aleleuia, referido por Salimbene (50-53) 66

Ao contrário de Jordão de Giano (n.61), esta informação parece certa. Jordão

diz que o Capítulo de 1232 foi em Roma. 67

Refere-se ao Capítulo de 15 de Maio de 1239. Também Jordão de Giano men-

ciona esse Capítulo (nn. 63-68).

Page 50: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

50

disse: ―Senhor Papa, este é um homem sábio; é bom que o escuteis, por-

que é conciso no falar‖.

80. Levantou-se, pois, frei Haymon quase intimidado e trémulo,

enquanto Elias se mantinha sentado completamente tranquilo e impertur-

bável, ao menos na aparência. Frei Haymon limitou-se a dizer que apre-

ciava as palavras de frei Elias como as de um pai venerando, mas fazia-

-lhe notar que se os irmãos tinham dito que desejavam que comesse ouro,

não tinham dito que aprovavam que possuisse um tesouro. E se tinham

dito também que queriam que tivesse um cavalo, não tinham dito que

aprovavam um palafrém. De imediato, frei Elias, perdendo a paciência,

declarou em alta voz que frei Haymon mentia68

. Os seus partidários

começaram a proferir injúrias e a vociferar, outro tanto fazendo os do lado

oposto. Perturbado, o Papa ordenou-lhes que se calassem e disse: ―Isto

não é um comportamento digno de religiosos‖. Depois, permanecendo

longo tempo sentado, em silêncio e reflexão, causou em todos um grande

espanto.

Durante esse tempo, o cardeal Reinaldo, protector da Ordem, suge-

riu abertamente a frei Elias que entregasse a sua demissão nas mãos do

Papa. Mas este respondeu publicamente que rejeitava a proposta. Ape-

lando antes às qualidades pessoais do irmão e realçando a amizade que

tinha havido entre ele e São Francisco, o Papa concluiu que tinha acredi-

tado que os irmãos estavam contentes de o terem como ministro geral;

mas, uma vez que já não o estavam, conforme se provava neste Capítulo,

decretava que fosse destituído das suas funções e de imediato o removeu

do cargo de ministro geral. Sucedeu-se uma explosão de alegria tão

grande e indescritível que os que tinham merecido estar presentes declara-

ram nunca terem testemunhado nada parecido.

81. Então o Papa retirou-se sozinho para um dos aposentos e cha-

mou os ministros e custódios para a eleição, ouvindo o parecer de cada

um deles, antes de votarem. Logo que foi nomeado canonicamente

Alberto de Pisa, ministro de Inglaterra, frei Arnolfo, penitenciário do

————— 68

É na Crónica de Salimbene que mais se nota a aversão contra Fr. Elias. Nos

parágrafos 21-28 lemos o enorme rol de acusações feitas contra Fr. Elias pelos seus

adversários.

Page 51: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

51

Papa, que tinha sido a alma de todo este caso, proclamou a eleição e

entoou o Te Deum laudamus. E como, conforme se dizia, frei Elias nunca

tivesse feito profissão da Regra confirmada com bula pelo papa Honório

III, pelo que se julgava autorizado a receber dinheiro, foi-lhe ordenado

imediatamente que professasse esta Regra, e a mesma disposição foi

estendida a todo o Capítulo e, consequentemente, a toda a Ordem. Assim

se fez. Celebrada a missa, o ministro neo-eleito disse aos irmãos que não

tinham tomado parte no Capítulo: ―Acabam de ouvir a primeira missa

celebrada por um ministro geral desta Ordem. Voltem agora para seus

conventos com a bênção de Jesus Cristo‖69.

82. Neste Capítulo foi eleito frei Haymon ministro de toda a Ingla-

terra, e frei João de Kethene, antes ministro da Escócia, nomeado ministro

da Irlanda.

83. Depois destes acontecimentos, frei Elias optou por morar em

Cortona e, sem licença e apesar da proibição do Ministro geral, foi visitar

o mosteiro das Senhoras Pobres, razão pela qual pareceu ter incorrido na

sentença de excomunhão decretada pelo Papa70

. Frei Alberto ordenou-lhe

que recorresse a ele para receber a absolvição ou, pelo menos, que se

encontrassem em qualquer lugar a meio caminho. Mas Elias recusou-se

rotundamente, e o facto chegou aos ouvidos do Papa. Sabendo frei Elias

que o Papa queria que obedecesse ao Ministro geral, como qualquer outro

irmão, não suportando a humilhação, ele que nunca tinha aprendido a

obedecer, mudou-se para a região de Arezzo71

. Foi então excomungado

publicamente pelo Papa, como bem merecia.

84. Quanto a frei Alberto, comportou-se duma maneira digna de

louvor no ofício de ministro geral, corrigindo os excessos do seu prede-

cessor e transferindo-se para além dos Alpes, onde o primitivo fervor da

————— 69

Os anteriores ministros gerais não eram sacerdotes. 70

A notícia de Eccleston sobre a visita de Fr, Elias a S. Damião, seguida de

excomunhão, revela a grande amizade e confiança que Santa Clara tinha por Fr. Elias.

Depois de afastado do governo da Ordem, foi certamente em S. Damião que se sentiu

acolhido com compreensão. 71

Por essa altura, fins de 1239 a Janeiro de 1240, encontrava-se em Arezzo o

imperador Frederico II, que deu apoio a Fr. Elias.

Page 52: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

52

Ordem se tinha debilitado. Morreu depois santamente em Roma, elo-

giando e distinguindo os ingleses entre todos os irmãos pelo seu zelo reli-

gioso.

85. Sucedeu-lhe frei Haymon, inglês, que se empenhou em conti-

nuar a obra iniciada pelo predecessor. Sob a sua administração, foi cele-

brado o primeiro e o último Capítulo dos definidores, pois nunca mais foi

convocado na Ordem por causa da insolência de alguns deles. Recorreram

estes a todos os meios para afastar os ministros provinciais que estavam

no Capítulo com o ministro geral; o que efectivamente aconteceu. Por

esse motivo, o estatuto que fora redigido na presença do Papa no Capítulo

em que foi deposto frei Elias (respeitante ao Capítulo dos súbditos e ao da

eleição canónica dos custódios e guardiães, precisamente por causa da

insolência dos súbditos), foi abolido no Capítulo seguinte. De facto,

alguns irmãos pediam que fossem completamente eliminados os custódios

da Ordem, dizendo que o seu ofício era supérfluo. Frei Haymon encon-

trava-se no outro lado dos Alpes quando lhe foi entregue, em pleno

Inverno, a citação da parte do protector da Ordem e dos demais cardeais.

Respondeu diante deles de uma maneira tão exaustiva às acusações feitas

contra ele, que reconquistou as suas graças.

86. Enquanto era ministro geral, foi publicado pelo Capítulo o

decreto segundo o qual se deviam designar irmãos em todas as províncias

da Ordem que anotassem as passagens da Regra sobre que existiam dúvi-

das e as transmitissem ao ministro geral. Foram eleitos na Inglaterra frei

Adão de Marsh, frei Pedro, custódio de Oxford, frei Henrique de Burford

e algum outro mais. Nessa mesma noite, São Francisco apareceu a frei

João de Bannister e mostrou-lhe um poço profundo. Frei João disse: ―Pai,

os padres querem explicar a Regra; seria muito melhor que fosses tu a

explicá-la‖. O Santo respondeu: ―Filho, vai ter com os irmãos leigos e eles

te exporão a Regra‖. Por isso, quando tiverem anotado alguns artigos, os

irmãos mandá-los-ão ao ministro geral, numa cédula sem selo, conju-

rando-o em nome do sangue precioso de nosso Senhor Jesus Cristo para

que permita que a Regra permaneça tal como tinha sido escrita por São

Francisco, por inspiração do Espírito Santo.

Este decreto agradou muito, tanto ao protector da Ordem como aos

irmãos das Províncias do Ultramar; e isto só confirma o testemunho que

Page 53: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

53

frei Alberto tinha dado a propósito dos irmãos de Inglaterra. Frei Haymon

morreu em Anagni. O papa Inocêncio dignou-se ir visitá-lo durante a

enfermidade.

87. Adenda72

. A respeito dos irmãos que, depois duma enfermidade,

não queriam voltar para o convento sem se terem restabelecido comple-

tamente, pelo receio de não poderem fazer mais uso do período de con-

valescença, frei Haymon disse que podiam comparar-se a um menino a

quem ensinassem as letras contra sua vontade. Quando a criança dissesse

A, embora soubesse pronunciar o B tão bem como o A, não queria conti-

nuar de maneira nenhuma, porque se dissesse B, o mestre mandá-lo-ia

dizer C, e assim sucessivamente.

Frei Haymon disse também que, quando secular, tinha tão fraca

saúde, que não podia viver sem muitas roupas e calçado, mas que depois

veio a ser mais forte sem tais cuidados. Todavia, quando frei Haymon

voltou do Capítulo geral em que fora eleito ministro provincial, temendo

pela sua débil constituição, pensou que, se mudasse para além dos Alpes,

nada teria a temer, mas aconteceu que foi precisamente onde mais se

devia preocupar com a saúde, que mais resistente se tornou, ao passo que

em França se sentia mais fraco.

88. Sucedeu-lhe frei Crescêncio, que fora médico famoso e ministro

provincial de Verona. O seu zelo era todo inflamado pela caridade,

modelado pela ciência e fortificado pela firmeza. Mas os irmãos da sua

província eram-lhe tão contrários que na mesma noite do Capítulo em que

foi eleito, após uma denúncia feita aos observantes da Ordem relativa-

mente a uma rebelião de seus irmãos, um irmão teve esta visão: viu frei

Crescêncio com a cabeça rapada, a barba branca e comprida até à cintura,

e ouviu uma voz vinda do céu que dizia: ―Eis Mardoqueu!‖ Quando frei

Rodolfo de Reims soube desta visão, disse logo: ―Certamente este será

eleito geral hoje mesmo‖. Depois de ter dirigido a Ordem por algum

tempo com fidelidade e prudência, frei Crescêncio pediu para ser remo-

vido do cargo; e foi logo eleito bispo da sua cidade natal73.

————— 72

Na AF esta adenda vem depois do número 88, sem ser como adenda. 73

O Capítulo geral de 1244, em Génova, elegeu Fr. Crescêncio de Jessi. Nele se

ordenou que todos os irmãos escrevessem as recordações que tinham de S. Francisco. A

Page 54: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

54

89. Adenda. Este frei Rodolfo de Reims, inglês, depois de muitos

trabalhos, tornou para Inglaterra e morreu santamente em Salisbury,

depois de se ter dedicado longo tempo à contemplação. Contava ele que,

enquanto São Francisco seguia ao longo dum caminho com vento gelado,

teve um desmaio. Cobrado o ânimo, subiu à montanha, desfez-se do

hábito e, voltando-se para o vento, a si próprio disse que se teria sentido

melhor se tivesse ficado com a túnica.

90. Sucedeu-lhe frei João de Parma74

, um dos mais observantes da

Ordem, que tinha lido em Paris as Sentenças como bacharel ―cursor‖.

Veio para Inglaterra no tempo de frei Guilherme de Nottingham, celebrou

um Capítulo provincial em Oxford e reconduziu à unidade os irmãos que

queriam impor-se aos outros sustentando ideias peregrinas75

. Exaltou

depois em todas as províncias a obediência e o fervor dos irmãos ingleses.

Em Paris reconciliou pessoalmente os irmãos com os mestres, reafir-

mando na Universidade a simplicidade da profissão da Ordem, depois de

ter revogado o apelo dos frades contra os mestres.

Decidiu que o Capítulo geral se devia celebrar daí em diante de

maneira alternada, aquém e além dos Alpes. Finalmente, ao não se sentir

já com forças para suportar o cargo de ministro geral, obteve do papa

Alexandre IV licença para renunciar.

Frei João de Parma dizia que o edifício da Ordem devia assentar em

dois pilares, a saber: a santidade de vida e a ciência, e que os irmãos

tinham levantado o muro da ciência até ao céu, ao ponto de se pergunta-

rem se Deus existia; em contrapartida, o muro da virtude tinham-no

rebaixado tanto que já era um grande louvor ouvir dizer de um irmão: ―é

um homem em quem se pode confiar‖. Por isso, considerava que se estava

a construir de modo errado. Queria, além disso, que os irmãos cuidassem

muito mais em se apresentar diante dos prelados e dos príncipes credita-

dos mais pela santidade de suas vidas e por méritos públicos, do que exi-

—————

partir desses dados, Tomás de Celano escreveu a Vita Secunda. Foi criticado pelos

espirituais, por ter combatido os movimentos separatistas. 74

Foi eleito no Capítulo de Lião, de Agosto de 1247. Salimbene na sua Crónica

tece-lhe rasgados elogios. Cf. Salimbene, nn. 41-44. 75

Tratava-se de disputas à volta da questão: Utrum Deus sit.

Page 55: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

55

bindo privilégios papais, e, enfim, que fossem verdadeiramente os

menores de todos pela humildade e mansidão.

91. Adenda. Frei João de Parma, ministro geral durante o Capítulo

geral de Génova, mandou a frei Bonifácio, que tinha sido companheiro de

São Francisco, que dissesse a verdade sobre as chagas do Santo, porque

no mundo muitos duvidavam. Frei Bonifácio respondeu chorando:

―viram-nas os meus olhos pecadores; tocaram-nas as minhas mãos peca-

doras‖.

92. Também frei Leão, companheiro de São Francisco, disse a frei

Pedro, ministro provincial de Inglaterra, que a aparição do Serafim a São

Francisco tinha ocorrido enquanto ele estava enlevado em contemplação,

e que a aparição tinha sido mais evidente do que se escrevera estando ele

vivo76; e que muitas coisas lhe tinham sido reveladas naquela aparição que

jamais deu a conhecer. São Francisco, todavia, tinha revelado a frei

Rufino, seu companheiro, que quando viu o anjo à distância, tinha ficado

muito assustado e que o anjo o ferira duramente, e que tinha dito que a sua

Ordem duraria até ao fim do mundo, que nenhum irmão de má vontade

nela perseveraria por muito tempo, que ninguém que odiasse a Ordem

viveria por muito tempo e que nenhum religioso que a amasse teria mau

fim. Depois, São Francisco tinha pedido a frei Rufino que lavasse e

ungisse com óleo a pedra em que o anjo pousara; e ele obedeceu. Estas

coisas, que escreveu frei Garino de Sedenefeld foram-lhe relatadas pes-

soalmente por frei Leão77.

COLÓQUIO XIV

Sucessão dos ministros provinciais

93. O primeiro ministro provincial de Inglaterra foi, pois, como se

disse mais acima78, frei Agnelo de Pisa. Era um homem dotado sobretudo

de prudência natural, maravilhoso em toda a virtude, na disciplina e

————— 76

Cf. 1C 94-95 77

Cf. EP 79. Na AF aparecem aqui duas Adendas que correspondem aos nnº 100 e

101 da edição de LITTLE. 78

Cf. Coloquio I e ss.

Page 56: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

56

honestidade de vida. Ao voltar duma missão conduzida exemplarmente na

cúria romana a favor dos prelados ingleses na companhia de frei Pedro de

Tewkesbury, então guardião de Londres, e alguns irmãos pregadores,

adoeceu de disenteria em Oxford, não só por causa do frio, como então se

dizia, e pelos trabalhos por que passara para conseguir a paz entre o rei e o

governador da região de Gales, como ainda pelas viagens através de

Inglaterra. Curado da disenteria por meio de medicinas, foi depois atin-

gido por uma colite intestinal e uma dor nas costas tão lancinante que difi-

cilmente conseguia conter os gritos.

Antes de morrer, durante três dias implorou continuamente: ―Vem

dulcíssimo Jesus!‖ Quando recebeu os sacramentos da Igreja, pediram-lhe

que propusesse o seu sucessor; e ele aconselhou que se enviasse frei Hugo

de Wellys a frei Elias, e que os irmãos lhe pedissem para ministro frei

Alberto de Pisa, ou então frei Haymon ou frei Rodolfo de Reims. Pelo que

lhe dizia respeito, designou frei Pedro de Twkesbury como seu vigário, e,

depois de ter pedido a cada um dos irmãos as suas orações e encomen-

dado a alma a Deus diante de toda a comunidade, expirou santamente.

Frei Walter de Maddeley, seu companheiro, julgou ver então um corpo

estendido no chão do coro, e este corpo parecia de alguém acabado de

descer da cruz, com as cinco feridas a sangrar, tal como Jesus Cristo.

Acreditando ser o corpo do próprio Senhor, aproximou-se mais e viu que,

afinal, era o de frei Agnelo.

Muitos anos decorridos, quando os irmãos precisaram de remover o

seu corpo, ou seja, quando destruíram a capela em cujo coro estava

sepultado, próximo do altar, encontraram não só a caixa de chumbo em

que jazia, como a própria cova, cheias de um óleo puríssimo e o seu corpo

incorrupto, ainda coberto com as próprias vestes, exalando um perfume

suavíssimo.

94. Adenda. É digno de menção o facto de o venerável mestre Serlo,

decano de Exeter, ter repreendido frei Agnelo por comer raramente fora

do convento. Aconteceu que um certo guardião, no mesmo dia em que

tinha pregado ao povo, se demorou a falar com um monge diante de um

secular, depois de terem comido com os irmãos; e esse secular disse em

voz baixa a um irmão, seu secretário, que tal modo de falar não era digno

de um prelado e de um pregador. Esse mesmo guardião disse-me depois

que teria preferido ser atravessado nas costas por uma lança, do que ter

Page 57: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

57

dado semelhante exemplo. Os irmãos preocupavam-se com o bom nome

da Ordem e frei Agnelo mais que ninguém, ao ponto de nem sequer ter

aberto excepção com o secretário do rei, antes o retirou da corte e não lhe

permitiu que desse ou recebesse coisa alguma.

95. Adenda79

. Frei Agnelo foi ministro de Inglaterra durante longo

tempo, embora só fosse diácono, e não quis ser promovido ao sacerdócio

antes de o Capítulo provincial ter pedido ao Capítulo geral que o promo-

vesse. Era tão devoto no ofício divino que não só na missa, como no coro

e quando ia de caminho, parecia chorar continuamente, mas de um modo

tal que não era notado por qualquer ruído, gemido ou alteração da voz.

Além disso, recitava sempre o ofício de pé e repreendeu asperamente um

irmão que, depois duma sangria, rezava as horas sentado. Quando sentiu

que a morte estava próxima, disse a frei Pedro de Tewkesbury: ―Conheces

toda a minha vida‖. E como frei Pedro lhe respondesse que nunca tinha

feito uma confissão geral, moveu a cabeça e, começando a chorar abun-

dantemente fez em seguida uma confissão de toda a sua vida com admirá-

vel contrição. Depois, chamados os irmãos, perdoou-lhes todas as faltas, e

quando, por sua manifesta vontade, começaram as orações pelos mori-

bundos, fechou os olhos com a própria mão e cruzou os braços sobre o

peito.

96. Quando frei Elias soube da morte de frei Agnelo, destruiu ime-

diatamente o selo da Província, em que estava representado um cordeiro

com a cruz. E como tivesse recebido com indignação o pedido dos irmãos

de Inglaterra para que nomeasse como ministro qualquer dos que eles

tinham designado, tanto bastou para que demorasse quase um ano a

nomear o novo ministro de Inglaterra. Finalmente, depois de ter chamado

de novo um irmão que tinha enviado anteriormente, ordenou a frei

Alberto de Pisa, que tinha sido ministro da Hungria, Alemanha, Bolonha,

Marca de Ancona, Treviso e Toscana, que partisse para Inglaterra e assu-

misse o cargo de ministro dos irmãos.

Tendo chegado a Inglaterra no dia de Santa Luzia, no dia da Purifi-

cação80 celebrou o Capítulo provincial em Oxford e pregou sobre este

————— 79

Esta Adenda falta na AF. 80

13 de Dezembro e 8 de Fevereiro.

Page 58: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

58

tema: “Considerai a rocha de que fostes talhados, a pedreira donde fos-

tes tirados” (Is 51, 1). Relativamente aos irmãos, agiu em todas as cir-

cunstâncias com inflexibilidade, segundo o seu juízo, e teve ocasião de

experimentar de muitos modos a humildade, a doçura, a simplicidade, o

zelo, a caridade e a paciência dos irmãos de Inglaterra. Embora tivesse

dito publicamente aos irmãos que o encontrariam sempre, até ao fim, tal

como se lhes tinha mostrado no Capítulo, no entanto, misturando desde

então, com sabedoria sempre crescente, o sal evangélico em cada sacrifí-

cio, mudou completamente. De facto, mais tarde, cresceu tanto a sua

estima pelos irmãos de Inglaterra que se entregou a eles com todo o afecto

do coração e a si os ligou com um vínculo inefável. Na verdade, encon-

trou-os conformes à sua vontade em cada propósito de perfeição e dis-

postos a sofrer a prisão e o exílio com ele, pela reforma da Ordem.

97. Frei Alberto estabeleceu que nas casas de hóspedes se devia

observar sempre o silêncio à mesa, a menos que estivessem presentes

irmãos pregadores ou religiosos de outras províncias. Quis também que os

irmãos usassem as suas velhas túnicas sobre as novas, por humildade, e

para que as novas durassem mais tempo. Mandou derrubar o claustro de

Southampton, que era de pedra, embora com muita dificuldade, devido à

resistência dos habitantes da cidade; e restituiu de bom grado o docu-

mento ou acordo estipulado entre os irmãos e os monges de Reading,

segundo o qual estes não podiam expulsá-los por mero capricho, e ele

mesmo se ofereceu para transferir os irmãos do convento, se assim quises-

sem. (Quanto à capela do convento, já que não a podiam despojar mais,

porque tinha sido construída pelo rei, desejou que fosse demolida pelo

céu). Só muito a custo logrou instalar os irmãos em Chester e Winchester.

98. Frei Alberto recebeu do papa Gregório IX uma bula, em que se

estabelecia que os irmãos pregadores não podiam impedir ninguém de

entrar na Ordem religiosa que escolhesse espontaneamente, e não podiam

admitir os seus noviços à profissão sem terem completado um ano de

prova81. Na realidade, estes tinham o costume de admitir à profissão, se

————— 81

Trata-se da bula Non solum de 11 de Julho de 1236. Os Frades menores recebe-

ram uma bula semelhante em 13 de Julho. Mas a obrigação do ano de noviciado já

Page 59: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

59

assim queriam, no mesmo dia do seu ingresso na Ordem, como fez frei

Roberto Bacon, de boa memória. Mas os irmãos pregadores, muito per-

turbados, recorreram ao papa Inocêncio IV pedindo-lhe que nenhum

irmão menor pudesse receber na Ordem quem já se tivesse comprometido

com eles, e que quem o fizesse fosse excomungado no próprio acto; e

prometiam que fariam o mesmo em relação a nós. Mas estes manietaram

de tal modo as pessoas com tais maneiras e de tal modo divulgaram o seu

privilégio, que a grande custo concediam a alguém mudança para outra

Ordem (irmãos menores). Mas esta contrariedade não durou muito. De

facto, Frei Guilherme de Nottingham, de boa memória, e frei Pedro de

Tewkesbury mostraram ao Papa o que o seu predecessor tinha decidido; e

ele, declarando que tinha sido enganado, revogou o decreto, embora só

depois de um atraso nocivo.

99. Frei Alberto disse uma vez que devíamos amar com todas as

veras os irmãos pregadores porque em muitas coisas tinham sido de

grande proveito para a Ordem e nos tinham ensinado ocasionalmente

como precaver-nos de perigos futuros.

100. Frei Alberto dizia que três coisas, sobretudo, tinham dado

esplendor à Ordem: ―a nudez dos pés, a vileza do trajo e o desprezo da

pecúnia‖.

101. Frei Walter de Reygate dizia que tinha sido revelado a um

irmão da província de São Francisco que os demónios celebravam todos

os anos um concílio contra a Ordem e que tinham encontrado três cami-

nhos para os prejudicar: a familiaridade com mulheres, a admissão de pes-

soas inúteis e o uso do dinheiro.

102. O ministro provincial, frei Alberto, costumava dizer a seu

companheiro, frei Ognibene, quando visitavam algum amigo espiritual:

―Come, come, que já podemos fazê-lo sem perigo‖. Mas cuidava-se muito

de frequentar os seculares.

—————

havia sido imposta por Honório II com a bula Cum secundum, de 22 de Setembro de

1220.

Page 60: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

60

103. Nesses dias aconteceu que dois irmãos muito conhecidos che-

garam a casa de um proprietário de terras, que os recebeu com honras e os

serviu com abundantes iguarias. Enquanto estavam à mesa, juntou-se-lhes

o reitor da igreja que, depois de os censurar por não o terem ido visitar, os

aconselhou instantemente a comerem os pratos de carne que tinham na

frente. Mas como não conseguisse demovê-los de tanta sobriedade, irado,

disse: ―Comei, comei, porque o frio mata os vossos corpos como a gula as

nossas almas‖. E levantando-se, desandou.

104. Na celebração do ofício divino, frei Alberto mostrou-se sempre

devotíssimo e evitava as distracções da mente fechando os olhos. Na

companhia dos irmãos, ganhou-lhes o afecto graças à sua jovialidade e

cortesia.

Um dia, em que todos os irmãos do convento se tinham submetido à

sangria82, frei Alberto propôs aos companheiros a seguinte parábola,

sobretudo para utilidade de um noviço que estava presente e que presumia

de muito sábio e se intrometia nas coisas que não lhe diziam respeito.

―Um camponês, disse, ao ouvir que no Paraíso há um grande sossego e

muitas delícias, partiu em busca delas, esperançado em poder entrar.

Quando, finalmente, chegou à porta, encontrou São Pedro e pediu-lhe

para entrar. São Pedro perguntou-lhe se era capaz de observar as leis em

vigor no Paraíso, e ele respondeu que sim, desde que lhe dissesse quais

eram. O Santo respondeu que era uma só: guardar silêncio. Aceitou-a e,

prometendo observá-la com muito gosto, foi introduzido.

Passeando pelo Paraíso viu um tal a lavrar com dois bois, um muito

magro, outro muito gordo. A este permitia que avançasse à vontade, ao

passo que aguilhoava continuamente o outro. O camponês interveio e pôs-

-se a censurá-lo. De imediato apareceu São Pedro e quis expulsá-lo, mas

perdoou-lhe mesmo assim, advertindo que andasse mais atento daí em

diante. Seguindo um pouco mais além, viu outro homem que carregava

uma trave comprida e queria entrar em casa com ela de través; correndo

para ele, o camponês ensinou-o a virar uma das extremidades da trave, de

modo a enfiá-la pela porta. De imediato interveio São Pedro e quis

expulsá-lo pelas mais santas razões do mundo, mas perdoou-lhe também

desta vez. Continuando o caminho pela terceira vez, viu um guarda-

————— 82

Naquele tempo era comum esta operação em determinados períodos do ano.

Page 61: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

61

-florestal a abater árvores. Deixando para trás as mais velhas e retorcidas,

cortava as que estavam aprumadas, verdes e perfeitas. De novo se apro-

ximou o camponês para o censurar. Interveio São Pedro e desta vez

expulsou-o‖.

Frei Alberto queria, em suma, que os súbditos fossem reverentes

para com os superiores, pois se impõe vigiar, dizia, para que ―a familia-

ridade não degenere em sobranceria‖.

105. Frei Adão de Marsh contava de um rapaz extremamente débil,

que, afectado por uma enfermidade e insistindo o pai para que comesse e o

fizesse por seu amor, já que era seu filho predilecto, respondeu que não era

seu filho. Do mesmo modo respondeu à mãe que lhe fizera idêntico pedido.

E quando o pai lhe perguntou outra vez de quem pensava ser filho se não

dele, respondeu com desdém e insolência: ―Sou filho de mim mesmo‖.

Assim são também aqueles que são escravos das suas paixões e caprichos.

106. Adenda. Na conversação anterior, frei Alberto narrou esta pará-

bola contra a presunção dos jovens. Havia um touro que andava livremente

pelos prados e pelos campos, mas, certo dia, pela hora de Prima ou de Tér-

cia, aproximou-se dum arado e viu uns bois velhos que avançavam lenta-

mente e que tinham lavrado bem pouco. Então, como os tivesse censurado e

lhes dissesse que ele podia fazer o mesmo trabalho num segundo apenas, os

bois pediram-lhe que os ajudasse. Posto sob a canga, pôs-se a lavrar com

uma tal fúria que, chegado ao meio do carreiro, exausto, começou a arfar e,

olhando em redor, disse: ―Como? Ainda não acabei?‖ Os bois velhos res-

ponderam que não, escarnecendo dele. O touro replicou que não podia mais.

Então os bois disseram que andavam mais lentamente porque tinham que

trabalhar de contínuo e não um instante apenas.

107. Frei Alberto estava presente num Capítulo em Oxford onde pre-

gou um jovem irmão. Dado que condenava duramente o luxo dos conventos

e a abundância das iguarias, frei Alberto acusou-o de ser um vaidoso.

108. Obrigou frei Eustáquio de Merc a comer peixe contra o cos-

tume, dizendo que a Ordem tinha perdido muito boas pessoas por falta de

discrição. E recordava que quando residia num hospício com São Fran-

cisco, o Santo tinha-o obrigado a duplicar todos os dias a quantidade de

Page 62: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

62

alimento que costumava tomar83. Frei Alberto era também tão generoso

que, uma vez, repreendeu severamente um guardião e o ecónomo por não

terem provido os irmãos com mais abundância depois dos trabalhos duma

grande solenidade. Era tão condoído e compreensivo que deu a um irmão

de débil saúde as obedienciais para ir até ao seu país natal, e de viajar de

um convento para outro em toda custódia, se assim o desejasse, pois lhe

pagaria os gastos sempre que fosse gravoso para os irmãos sustentá-lo.

Depois de ter regido a província de Inglaterra com solicitude

durante dois anos e meio, partiu juntamente com vários delegados para o

Capítulo convocado contra frei Elias. E depois de ter sido ministro geral,

morreu santamente em Roma, entre os seus irmãos ingleses.

109. Sucedeu-lhe frei Haymon. Homem de grande benevolência e

mansidão, preocupou-se em fazer reinar a paz e a caridade entre os

irmãos. Vestiu com o hábito da Ordem o bispo de Hereford, Rodolfo de

Maidstone, após uma visão que teve a propósito de frei Haymon, quando

este era arcebispo de Chester. Foi esta a visão: estando sentado enquanto

decorria um sínodo e nomeava o clero, aproximou-se dele um jovem que

lhe atirou com água à cara. De repente, transformou-se numa criança

digna de dó, aproximou-se do leito em que estava deitado frei Haymon e

pediu-lhe que o deixasse deitar-se a seu lado. E assim o fez.

Frei Haymon administrou a província de Inglaterra durante um ano,

no fim do qual foi eleito ministro geral.

110. Quando era ministro provincial de Inglaterra, frei Haymon

disse que quando os frades conseguiram fazer consagrar altares e cemité-

rios na área de seus conventos, uma espécie de agitação percorrera toda a

Ordem, porque estes lugares já não podiam ser destinados a usos profa-

nos. Era tão zeloso da pobreza que durante um Capítulo provincial se

sentou no chão do refeitório, vestindo um hábito pobríssimo e roto.

111. Sucedeu-lhe o seu vigário, frei Guilherme de Nottingham,

eleito por unanimidade e confirmado por aqueles a quem se tinha pedido a

eleição. Apesar de não ter experiência de cargos inferiores, como o de

guardião e custódio, frei Guilherme governou com tanta decisão e empe-

nho, que o seu zelo e honestidade tiveram eco em todas as províncias.

————— 83

Cf. LP 50; EP 27; 2C 22.

Page 63: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

63

112. Frei Guilherme costumava contar que Santo Estêvão, fundador

da Ordem de Grandmont, tinha depositado uma caixa num lugar secreto e

seguro, proibindo a todos que dela se aproximassem enquanto vivesse.

Estavam os irmãos deveras intrigados e curiosos por saber o que continha

a caixa, mas o Santo quis que todos tivessem por ela o maior respeito,

como ele, aliás. Depois da sua morte, não podendo esperar mais, os

irmãos abriram-na e só encontraram um cartão em que estava escrito:

―Frei Estêvão, fundador da Ordem de Grandmont, saúda seus irmãos e

suplica-lhes que cuidem dos seculares; porque assim como vós, enquanto

não soubestes o que estava na caixa, tivestes por ela muito respeito, assim

procederão convosco os seculares‖.

COLÓQUIO XV

Progressos espirituais de alguns irmãos

113. Finalmente, considero justo recordar que, enquanto ainda

viviam muitos irmãos que tinham implantado a vinha dos menores na

Inglaterra, os seus ramos se estenderam tanto na província e na Ordem

que os seus irmãos foram revestidos de várias dignidades e ofícios, tanto

na Ordem como fora dela, principalmente os mais humildes. Assim, frei

Nicolau, que era leigo e tinha estudado letras na Inglaterra, chegou a ser

mais tarde confessor do papa Inocêncio IV, e depois bispo de Assis.

Houve também um jovem que fora admitido muito novo na Ordem

como irmão leigo; mais tarde apareceu-lhe a gloriosa Virgem pondo-lhe

um dedo na boca para lhe fazer saber que chegaria a ser não só pregador e

eminente leitor, mas promovido aos mais altos cargos da Ordem.

É, porém, difícil narrar os progressos feitos singularmente por aqueles

que, movidos de um grande fervor, entraram na Ordem imediatamente após

a chegada dos irmãos. Embora alguns tenham sido antes bons bacharéis e

homens ilustres, traziam o ―capuz da provação‖ (ou seja, o caparão). Mais

tarde, vários deles distinguiram-se pela seriedade e louvor com que exerce-

ram o ofício da pregação, do ensino ou do governo da Ordem.

114. Frei Eustáquio de Merc, que foi durante muito tempo guardião

de Oxford e, mais tarde, custódio de York, observou continuamente até à

morte a abstinência, as vigílias e a mortificação da carne. Mas teve sempre

com os demais uma atitude de doçura afectuosa e angélica. No momento

Page 64: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

64

da morte, repetia continuamente, do fundo do coração, estas palavras à

Mãe de misericórdia: ―Por teu Filho, pelo Papa e pelo Espírito Santo, te

rogo, ó Virgem, que me assistas na morte e na última viagem‖.

Frei Roberto de Thornham, primeiramente guardião de Lynn e

depois custódio de Cambridge durante muitos anos, estimulado por um

fervor maravilhoso, pediu obedienciais para partir com os cruzados para a

Terra Santa. Depois de ter adquirido uma fama incomparável, tanto entre

os seculares como entre os irmãos, no cumprimento de ofícios gravosos,

deu sinais de salvação tão evidentes na sua morte, que ninguém deveria

pô-la em causa.

Frei Estêvão de Belassise, primeiro guardião de Lynn, depois custó-

dio de Hereford, foi um homem de tanta mansidão e virtude que mostrava

até com lágrimas o zelo do seu coração quando via o relaxamento dentro

da Ordem. Devido ao seu grande desejo de sossego, obteve dispensa de

todos os cargos, e o resultado foi uma vida santa, e finalmente, a vida

eterna (Rm 6, 22).

Frei Guilherme Cook, homem de força excepcional, gastou quase

todo o seu vigor nos trabalhos iniciais da custódia de Londres e noutros

labores; passou depois da vida activa à contemplativa e, rico de boas

obras, morreu em paz.

115. Frei Agostinho, irmão carnal de frei Guilherme de Nottingham,

de boa memória, foi no princípio fámulo do papa Inocêncio IV, depois

partiu para a Síria juntamente com o patriarca de Antioquia, sobrinho do

Papa, e chegou mais tarde a ser bispo de Laodiceia. Este contou diante de

todos, no convento de Londres, que tinha estado em Assis para a festa de

São Francisco, em que também participou o papa Gregório, e quando o

Papa se adiantou para pregar, os irmãos cantaram a antífona: “Hunc

sanctus praeelegerat in patrem”, e o Papa sorriu84.

No dito sermão, o Papa relatara como tinha acontecido a conversão

de dois hereges em Veneza, a ele enviados com cartas dos cardeais que

estavam presentes como legados. Nestas cartas se dizia que ambos os

hereges tinham visto numa certa noite, à mesma hora, a nosso Senhor

Jesus Cristo na atitude de juiz, sentado com os apóstolos e os represen-

————— 84

É a antífona III das primeiras vésperas do ofício de S. Francisco, composto por

Julião de Espira.

Page 65: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

65

tantes de todas as Ordens do mundo, mas não tinham visto nenhum irmão

menor, nem sequer a São Francisco, que um dos delegados tinha procla-

mado, numa prédica, maior que São João Evangelista, por causa das cha-

gas. Tinham visto seguidamente o Senhor inclinar-se sobre o peito de

João e este, por sua vez, sobre o de Jesus. Mas enquanto eles insistiam em

dizer, confirmando aliás a sua opinião, que o legado tinha blasfemado, e

por isso estavam gravemente escandalizados e tinham criticado o seu ser-

mão, – eis que o doce Jesus abriu com as suas mesmas mãos a ferida do

lado, e nela apareceu perfeitamente visível São Francisco dentro do peito

de Nosso Senhor; depois, o doce Jesus fechou a sua ferida, encerrando

nela a São Francisco. Apenas os hereges despertaram e se encontraram no

dia seguinte, contaram um ao outro a visão, confessaram-se depois publi-

camente diante dos cardeais e, como se disse, foram enviados ao Papa e

por ele plenamente reconciliados.

116. Oh, quão profundamente agradecidos, quão docemente cumu-

lados de dons divinos, quão imensamente honrados foram aqueles que

puderam encontrar conselho em suas dúvidas, consolação nas tribulações,

exemplo e estímulo nas coisas mais graves de tais pessoas, que tinham as

primícias do Espírito Santo (Rm 8,23). Oh, graça inefável! Oh, privilégio

incomparável! Oh, amor suavíssimo de uma doçura inesgotável, poder

gozar da confiança de tais homens, ser confortados durante a peregrinação

terrena com o especial afecto de tão eminentes pessoas, ser protegidos

pelo favor de homens tão assinalados85!

117. Depois desse sermão, os novos cavaleiros dirigiram-se a visitar

o Papa e ele depôs em cada um deles uma grinalda de flores. É neste

acontecimento que tem origem o costume, segundo o qual todos aqueles

que deviam ser armados cavaleiros recebiam as armas. Nesta ocasião o

Papa celebrou a missa fora da igreja, sobre uma mesa ao ar livre, por não

o poder fazer no interior por causa da enorme multidão.

118. Frei Pedro de Tewkesbury, ministro da Alemanha, com a ajuda

da graça de Deus, defendeu a causa da Ordem contra o rei, o legado e

vários falsos irmãos, e fê-lo com tanta mestria que a fama da sua interven-

————— 85

O texto do número 116 não consta na AF.

Page 66: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

66

ção se espalhou por muitas províncias e o seu amor à verdade se eviden-

ciou invencível.

Frei Pedro mereceu o afecto especial do bispo de Lincoln86 e dele

recebeu com frequência, em segredo, sábios conselhos. Com efeito, disse-

-lhe um dia que se os irmãos não cultivassem os estudos e não se ocupas-

sem em estudar com ardor a lei divina, certamente também nos acontece-

ria o mesmo que a outras Ordens religiosas, que vemos caminhar desgra-

çadamente nas trevas da ignorância.

Pediu também o bispo de Lincoln a frei João de Dya, que lhe

enviasse do seu país seis ou sete clérigos idóneos, a quem pudesse encar-

regar de alguns ofícios na sua diocese, embora não conhecessem a língua

inglesa, pois pregariam com o exemplo. Isto prova que o bispo não rejei-

tou nem os clérigos que o Papa tinha nomeado, nem os protegidos dos

cardeais, por não saberem a língua inglesa, mas porque só estavam inte-

ressados nas coisas temporais. Por isso, quando um advogado disse na

cúria: ―Os cânones ordenam isto‖, ele respondeu: ―Não são os cânones,

são os cães que ordenam isto!‖. Mas depois levantou-se e, de joelhos,

declarou a sua culpa em inglês, diante dos jovens que tinham sido apre-

sentados pelo cardeal e bateu no peito chorando e lastimando-se. Pertur-

bados, os jovens retiraram-se.

Noutra ocasião, durante a sua visita à cúria, um camareiro do senhor

Papa pediu ao bispo mil libras e queria que ele as pedisse emprestadas aos

mercadores; o bispo respondeu que não lhes queria dar uma ocasião de

pecar gravemente, mas que, se voltasse são e salvo a Inglaterra, deposita-

ria o dinheiro no templo de Londres; de outro modo, jamais o camareiro

veria um centavo87.

De outra vez, disse a um irmão pregador: ―Três coisas são necessá-

rias para a saúde do corpo: o alimento, o sono e o bom humor‖. Certa oca-

sião ordenou a um irmão de temperamento melancólico que bebesse um

copo cheio do melhor vinho como penitência, e quando o bebeu, embora à

má cara, disse-lhe: ―Caríssimo irmão, se tivesses feito com frequência esta

penitência, terias também melhor consciência‖.

————— 86

Trata-se de Roberto Grossatesta. 87

A casa dos cavaleiros do templo, servia também de banco.

Page 67: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

67

119. Além disso, frei Pedro contou que quando alguns clérigos do

arcebispo Santo Edmundo lhe pediram um favor para um dos parentes

que era cocheiro, este santo bispo respondeu: ―Se o seu carro está ava-

riado, mandá-lo-ei reparar em atenção aos seus rogos; se não puder ser

reparado comprar-lhe-ei outro, mas tenho como certo que nunca modifi-

carei o seu estado‖. O mesmo santo bispo disse também, quando lhe ofe-

receram jóias preciosas e insistiam para que as aceitasse: ―Que me enfor-

quem, se as aceitar! Entre as palavras latinas ―prendere” e “pendere” não

há senão a diferença de uma letra a mais‖.

Ainda o mesmo padre, frei Pedro, contou que o bispo de Lincoln

não tinha cavalos quando tomou posse da diocese. O seu mordomo foi vê-

-lo enquanto estava sentado no meio dos livros e anunciou-lhe que dois

monges brancos acabavam de chegar para lhe oferecer dois belíssimos

palafréns e insistiam que os aceitasse, alegando que os monges estavam

isentos. Mas o bispo, sem se mexer do lugar, recusou categoricamente e

disse: ―Se os aceitasse arrastar-me-iam para o Inferno com as suas

rédeas‖.

120. Roberto Grossatesta, bispo de Lincoln, ofendeu-se certa vez

pelo facto de o ministro provincial não ter permitido a um irmão que

morasse na sua casa, como o tinha feito em outras ocasiões, e não quis

falar a nenhum irmão, nem sequer ao seu confessor. Então frei Pedro

disse-lhe que, embora tivesse dado todos os seus bens aos irmãos, de nada

lhe serviria se não lhes desse também o afecto do coração. O bispo pôs-se

a chorar e disse: ―Na verdade estais a pecar, porque me afligis muito, já

que não posso deixar de vos amar, embora vos mostre esta cara‖. Com

efeito, embora os irmãos comessem com ele à mesa, não lhes quis falar.

O bispo disse a frei Pedro que os conventos situados sobre água não

são saudáveis, a não ser que os situem bem alto. Disse também que lhe

agradava muitíssimo ver as mangas remendadas dos irmãos. Acrescentou

também ser melhor, no molho, a pimenta pura que o gengibre. Disse ainda

que se alegrava quando via os alunos prestarem pouca atenção às suas

aulas, preparadas aliás com a maior diligência, porque lhe tiravam uma

ocasião de vanglória, e por isso não perdia nada do seu mérito.

Page 68: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

68

121. Frei Mansueto88, núncio do papa Alexandre IV na Inglaterra,

contou ao mesmo padre e no mesmo lugar, que no dia em que era lida em

consistório a carta de oito pontos que Inocêncio IV tinha publicado contra

os irmãos pregadores e os irmãos menores89, perdeu a fala e depois só

conseguia dizer a frase: ―Propter iniquitatem corripuisti hominem”, casti-

gando os seus erros, corriges o homem (Sl 38,12). Invocava amiúde São

Francisco, e quando ainda gozava de boa saúde, costumava dizer que

nenhum santo o tinha ajudado tanto como São Francisco.

O papa Alexandre IV tinha predito, quando ainda era bispo de

Óstia90, que certamente o Senhor afastaria o Papa, devido ao favor que

tinha concedido em prejuízo da Ordem. Mas quando morreu, todos os

seus familiares o abandonaram, menos os irmãos menores. E o mesmo

tinha acontecido na morte dos seus predecessores, Gregório, Honório e

Inocêncio, em cuja morte esteve presente o próprio São Francisco91. Frei

Mansueto acrescentou que nenhum mendicante, nem nenhum homem

morre mais miserável e vilmente do que um Papa92.

O mesmo frei Mansueto referiu que no próprio dia da sua eleição, o

papa Alexandre IV suspendeu a carta que Inocêncio IV tinha redigido

contra os irmãos pregadores e os irmãos menores, e que o primeiro acto

do seu pontificado foi o de a revogar. Com efeito, Inocêncio tinha decre-

tado que seriam excomungados todos os irmãos que acolhessem qualquer

paroquiano em dia de festa para ouvir missa, e outras coisas semelhantes.

122. Contou também frei Mansueto que, estando um irmão a rezar

no horto de uma localidade da Sicília, viu um poderoso exército de cinco

mil cavaleiros entrar no mar, e que o mar começou a crepitar como se eles

fossem todos de bronze liquefeito e a arder; e que um deles lhe disse que

era o imperador Frederico que ia para o monte Etna. Efectivamente, Fre-

derico morreu por esse tempo.

————— 88

Trata-se de Fr. Mansueto de Castiglione, homem culto e de grande virtude.

Esteve na corte pontifícia durante muitos anos e foi delegado em França e Inglaterra. 89

A bula Etsi animarum limitava os privilégios dos mendicantes no que concerne

à pregação e à confissão. 90

Cardeal Reinaldo de Segni, protector da Ordem dos Frades Menores. 91

Notícia preciosa. Francisco está ao lado de Inocêncio III, o Papa que lhe apro-

vou a Forma de Vida, quando este morre em Perusa, em dia 16 de Julho de 1216. 92

Conhecemos por Tiago de Vittry que o cadáver de Inocêncio foi maltratado.

Page 69: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

69

123. Contava também que, quando ainda era menino de uns dez

anos, os irmãos menores o tinham ensinado a ter uma muito grande reve-

rência pela Eucaristia, e ele, para poder ser digno de comungar no dia de

Páscoa, embora menino, tinha jejuado durante quase toda a quaresma. Ora

sucedeu que no mesmo dia de Páscoa, enquanto todo o povo comungava,

um verdadeiro celerado, um homem de péssima reputação chamado Gên-

cio93, aproximou-se também para receber a comunhão, e recebendo-a sem

o devido respeito, voltou logo para o lugar, sentou-se num banco e come-

çou a conversar com os vizinhos, comportando-se nem mais nem menos

como se tivesse comido um bocado de pão qualquer. Tinha visto então

sair da sua boca a sagrada hóstia e cair no chão a uma grande distância.

Correu logo para o sacerdote, que era um santo homem, e contou-lhe o

que tinha visto. O sacerdote ordenou-lhe que fosse buscar a hóstia onde a

tinha visto cair e encontrou-a no mesmo lugar, apesar de ser um sítio de

passagem dos que comungavam. O mesmo menino comungou essa hóstia

e todas as outras, igualmente consagradas, que tinham ficado sobre o altar.

A sua fé fortaleceu-se ainda mais do que é possível dizer.

124. Frei Pedro, ministro de Inglaterra, muito íntimo da casa de

Godofredo le Despenser, contou que, um dia, tinha ido a essa casa e, como

sempre, dele se tinha aproximado com grande afecto o filho do senhorio,

um menino chamado João. Indo logo com a mãe à capela, também ele tinha

assistido à missa celebrada por frei Pedro. Regressando a casa, o menino

começou a evitar o religioso, e nem sequer a mãe conseguia convencê-lo a

voltar para junto dele. Quando lhe perguntaram a razão, o menino respon-

deu que tinha visto frei Pedro a devorar um menino sobre o altar da capela,

e por isso tinha medo de que lhe fizesse o mesmo94.

125. Frei Garino de Erwelle entrou na Ordem ainda jovem e fez tais

progressos, que ensinou em vários conventos, com grande admiração de

muitos. Comportou-se com prudência nas suas relações com os grandes e

tratou os assuntos da Ordem de uma maneira digna de todo o louvor, cres-

————— 93

Ou Exécio, Gécio… ou porventura Ezelino. No texto latino da AF escreve-se

Gentius. Frei Mansueto, amigo de Salimbene terá vivido nessa região. 94

A Chronica XXIV generalium atribui o mesmo episódio a frei Pedro de Bra-

bant. Brabant era uma custódia da província de Colónia, onde fora ministro frei Pedro

Twkesbury (cfr. AF, III, pp. 240-241).

Page 70: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

70

cendo cada dia no ministério da pregação, como também, e maravilhosa-

mente, na contemplação. Morreu em Southampton, diante do altar, na

hora de Noa, abraçando e beijando o crucifixo. Aconteceu depois que um

irmão, chamado João, falecido havia muito, apareceu em Salisbury a frei

Simão de Wimbourne e lhe revelou que estava bem e que frei Garino,

após breve tempo no Purgatório, subira para o Senhor Jesus.

126. A província de Inglaterra tinha-se elevado a uma tal altura de

perfeição que frei João de Parma, ministro geral, estando na Inglaterra,

repetia com frequência: ―Como eu desejaria que esta província fosse colo-

cada no centro do mundo, para que servisse de exemplo a todos!‖ Este

mesmo ministro geral celebrou o Capítulo provincial de Inglaterra em

Oxford e nele confirmou as constituições provinciais respeitantes à

sobriedade e pobreza dos edifícios. Tendo dado aos irmãos a liberdade de

escolher entre confirmar ou remover o ministro provincial, estes pediram

a confirmação por unanimidade.

127. Este frei Guilherme95 contou que quando o bispo de Lincoln,

de santa memória, ensinava os frades menores em Oxford, pregou um dia

no Capítulo conventual sobre a pobreza, declarando que na escala da

pobreza o degrau mais próximo do céu era o da mendicidade; mas depois

disse confidencialmente a frei Guilherme que havia um degrau ainda mais

alto: o de viver do próprio trabalho. Por isso afirmava que as Beguinas são

uma Ordem santíssima e absolutamente perfeita, porque vivem do seu

trabalho e não constituem um peso para a sociedade, já que não saem a

esmolar96.

128. O mesmo padre disse também que um noviço, querendo

observar a abstinência, confidenciou a seu mestre que se propusera expe-

rimentar pouco a pouco até onde poderia chegar. O mestre deu-lhe con-

————— 95

Frei Guilherme de Nottingham, o ministro provincial de quem se fala escassa-

mente. 96

As Beguinas viviam uma vida consagrada sem emitirem votos públicos. Viviam

em beguinatos e dedicavam-se ao serviço dos mais necessitados. Particularmente flo-

rescente na primeira metade do século XIII, tiveram grande influência no norte da Itá-

lia, na Alemanha e na Bélgica, onde se mantiveram até meados do século XX. Devido á

influência que tiveram na Bélgica, os beguinatos estão incluídos nos circuitos turísticos

na Bélgica.

Page 71: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

71

sentimento com alegria. Este começou, e durante muitos dias, ao pergun-

tarem-lhe como se sentia, respondeu que tudo ia bem, mas um dia confes-

sou que receava estar a enfraquecer demasiado. Então o mestre disse-lhe:

―Come e bebe já, por amor de Deus, se não desmaiarás, porque é a fé que

te falta agora. Tal como São Pedro, que, por medo, se afundava nas

águas‖.

129. Dizia também frei Guilherme que é preciso considerar atenta-

mente o pensamento de São Francisco e a intenção que teve ao redigir a

Regra, de outro modo cresceriam as superfluidades dentro da Ordem, tal

como crescem insensivelmente os pelos da barba. É importante, pois,

resistir às tentações do mundo muito mais energicamente do que pareceria

necessário, de outra maneira isto nos podia arrastar mais baixo do que

seria desejável, como faz a onda do rio àqueles que querem atravessá-lo

para alcançar directamente a margem oposta.

Declarou também que um homem não pode saber se é bom ou mau

mudar de lugar enquanto não o experimentar, do mesmo modo que não

pode dar-se conta de que tem cabelo na cabeça enquanto não puxar por ele.

Este frei Guilherme dedicava-se ao estudo das Escrituras e tudo

eram estratagemas para interessar nelas os estudantes. Sucedia, até, que

quando se encontrava à mesa fora do refeitório, queria ter sempre consigo

o livro de leitura, venerava com um amor muito particular o nome de

Jesus e repetia com muita devoção as palavras do santo Evangelho. Com-

pilou também uma obra utilíssima sobre a Unum ex quator de Clemente97

e preocupou-se em fazer transcrever totalmente para a sua Ordem a Expo-

sitio composta pelo mesmo autor. Permanecia longo tempo em meditação,

especialmente depois de matinas, e não queria ouvir mais as confissões e

confidências dos irmãos durante a noite, como tinham feito os seus prede-

cessores. Declarou igualmente que, assim como é pior dar maus conselhos

sobre o modo de fazer uma coisa do que fazê-la mal, também são piores

os juízos malignos sobre factos da Ordem do que as obras dos irmãos com

alguma imperfeição.

Dificilmente acreditava nas acusações, a menos que o acusador

estivesse disposto a repeti-las diante de várias pessoas; e preocupava-se

————— 97

Trata-se da obra de Clemente de Langton, cujo título é Concordia quatuor

evangelistarum.

Page 72: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

72

sobretudo em evitar suspeitas. Evitava por isso, com sumo zelo, a intimi-

dade com os grandes e as mulheres, e com uma magnanimidade verdadei-

ramente admirável fazia pouco caso da ira dos poderosos, quando estava

em jogo a justiça. Afirmou certa ocasião que os grandes encandeiam os

amigos com os seus conselhos, e que as mulheres, como são trapaceiras e

cheias de malícia, tratam de fazer perder a cabeça igualmente às pessoas

devotas. Preocupava-se concretamente em restituir o bom nome às pes-

soas que o tinham perdido, se as via realmente arrependidas, e com grande

delicadeza as incentivava a confortar os aflitos, especialmente os que ocu-

pam lugares de responsabilidade na Ordem.

130. Assim, depois de ter governado a província de Inglaterra

durante quase catorze anos98, foi dispensado do cargo no Capítulo geral de

Metz e enviado ao Papa como delegado do mesmo Capítulo. Mas quando

chegou a Génova juntamente com o ministro geral, o seu companheiro,

frei Ricardo, contraiu a peste que havia irrompido na cidade. Enquanto os

demais se afastavam apressadamente, ele ficou para o assistir, e, ao conta-

giar-se, morreu também. Porém, tendo os irmãos de Inglaterra ouvido

dizer que tinha sido dispensado do cargo, e não sabiam da sua morte, con-

vocado o Capítulo provincial, voltaram a elegê-lo.

Quando o ministro geral soube da notícia de que os irmãos tinham

actuado mais por afecto que por motivo seriamente considerado, mandou

convocar novamente o Capítulo por meio do vigário, frei Gregório de

Bosellis, e ordenou que nunca mais se elegesse um irmão dispensado do

cargo pelo Capítulo geral. Pediu a confirmação do eleito aos irmãos João

de Kethene, Adão de Marsh e João de Stamford. E foi eleito e confirmado

frei Pedro de Twkesbury.

131. Quando frei Elias foi deposto de ministro geral, foi perguntado

ao papa Gregório se podia ser reeleito, e o Papa respondeu negativamente.

132. Uma vez, reclamando alguns frades que não se deviam contrair

dívidas indiscriminadamente, frei Guilherme confiou-me o seu pensa-

mento: os irmãos não deviam comprometer-se de nenhum modo a pagá-

-las, nem a fixar o tempo exacto para o pagamento, antes, e licitamente,

————— 98

A edição da AF regista ―circiter novem annos‖. Little afirma que a questão da

data deste Capítulo de Metz é insolúvel.

Page 73: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

73

deviam empenhar-se seriamente em que a divida seja escruplosamente

satisfeita99.

Dizia também que os irmãos podiam contrair dívidas legalmente

numa centena de casos e que o irmão não cometia pecado se distribuísse o

dinheiro pelos demais a título de esmola.

Frei Guilherme deixou dito que durante a sua longa estadia no con-

vento de Roma, ao não terem os irmãos outro alimento senão castanhas,

tinha engordado tanto que sentia muita vergonha. Também me disse que

quando estava ainda na casa dos pais, foram uns meninos pobres pedir-lhe

esmola; deu-lhes do seu pão e eles deram-lhe do deles, e pareceu-lhe que

aquele pão duro, mendigado por amor de Deus, era mais saboroso que o

pão fresco que ele e os seus comiam. Por isso, para fazer com que o seu

pão fosse mais saboroso, os meninos pediam uns aos outros pão por amor

de Deus. Dizia também frei Guilherme que, depois da visita dos irmãos,

precisava de gracejar um pouco para esquecer o que tinha ouvido. Confes-

sou-me também que o manso Jesus tinha suscitado uma nova Ordem para

estimular a nossa, e eu creio que isto se verificou com a instituição da

Ordem da Penitência de Jesus Cristo100.

133. No Capítulo de Stamford havia recomendado aos irmãos, de

um modo especial, os religiosos da Ordem de Santo Agostinho. Já antes

tinha acolhido com muita familiaridade os Carmelitas, que Ricardo de

Gray tinha levado para Inglaterra no regresso do conde Ricardo da Síria.

(O senhor Roberto, bispo de Lincoln, repeliu os irmãos da Ordem

dos Crucíferos, e do mesmo modo foram repelidos, mas justamente, os

irmãos da Ordem da Cruz). Os irmãos da Ordem da Trindade tinham ido

para Inglaterra muito tempo antes; tinham sido fundados por inspiração

divina, sob o papa Inocêncio III, por um mestre em teologia, chamado

João, a quem Jesus Cristo tinha aparecido enquanto celebrava a missa

diante do bispo de Paris e do clero.

————— 99

A sentença pode ser um pouco estranha se não for relacionada com o princípio

da pobreza absoluta. Quem nada possui não pode comprometer o que não tem. Por con-

seguinte, não pode assumir tal compromisso; antes deve garantir que fará tudo o que

estiver da sua parte (trabalho, esmola, recurso aos amigos) para que a dívida seja paga. 100

É natural que esta esperança se tenha difundido entre os ―espirituais devido à

influência do joaquinismo.

Page 74: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

74

Frei Pedro recebeu antes os irmãos da Penitência de Jesus Cristo e

recomendou-os no Capítulo de Londres101

. Estes surgiram na Provença,

no tempo do Concílio de Lião, e tinham sido fundados por um noviço

expulso da nossa Ordem. No terceiro ano do provincialado de frei Pedro,

chegaram a Inglaterra os irmãos da Ordem dos Mártires, fundada por um

tal Martinho, que, em Paris, tinha sido bufão de nobres alemães.

135. Um tal João102, homem de grande valor no mundo, por ser de

grande estatura e rico de bens de fortuna, mas simples, devido à pouca

instrução, tendo recebido o hábito e feito a profissão na Ordem, exerceu

até à velhice o ofício de porteiro. Pouco antes de morrer predisse com

certeza a hora do falecimento, afirmando que devia subir numa só noite a

um alto monte; mas quando ia apenas a meio, trepando com as mãos e os

pés, extenuado, desistiu de subir mais. Foi então que muitas crianças,

brincando felizes e com o rosto muito alegre, gritaram do alto: ―Coragem,

frei João! Porque paras? Sobe!‖ E de imediato algumas o tomaram nos

braços, outras puxaram-lhe pela corda e outros pelas mangas e o levaram

alegremente até ao cimo do monte. ―Eu creio, disse, que os meninos e os

pobres cuja fome saciei na portaria com os restos da mesa dos irmãos, me

ajudarão a alcançar o céu‖; e dizendo isto, expirou nas mãos do Salvador.

Tradução: Fr. José David Antunes

Introdução e notas: Fr. José António Correia Pereira

————— 101

Com este nome se mencionavam os Saccati (1251), chegados a Inglaterra em

1257, tendo sido fundados na Provença por um tal frei Raimundo Atanolfo, noviço

franciscano despedido. Cf. Salimbene 55. 102

Não aparece na edição na AF.

Page 75: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

75

AO ENCONTRO

DA RADICALIDADE DO EVANGELHO - Que tem Francisco de Assis para nos dizer hoje?

Doutora Manuela Silva

Page 76: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

76

AO ENCONTRO DA RADICALIDADE DO EVANGELHO

- Que tem Francisco de Assis para nos dizer hoje? *

1. Introdução

É para mim um privilégio poder dirigir algumas palavras à nume-

rosa família franciscana em Portugal, reunida aqui em Fátima, nesta data

em que se celebram oitocentos anos do reconhecimento pelo Papa Ino-

cêncio III da Regra de vida apresentada por Francisco de Assis, em nome

de uma primeira, mas já numerosa, comunidade de irmãos que se reu-

niam à sua volta movidos pelo desejo de viverem o Evangelho na sua

pureza original. Para Francisco, a Regra de Vida proposta podia sinteti-

zar-se, como ele próprio disse, numa única frase: Viver o Evangelho.

Oito séculos volvidos, o que leva uma multidão de homens e

mulheres, de diferentes idades, culturas e condições de vida, a deixarem-

-se seduzir, por este convite de Francisco: Viver o Evangelho.

Por outras palavras: Que tem Francisco de Assis para nos dizer

hoje?

Nesta apresentação, procurarei abrir pistas para responder a esta

interrogação.

Na minha apresentação, tentarei deixar alguns traços da personali-

dade de Francisco e do contexto histórico em que viveu. Procurarei, de

seguida, surpreender esse ponto de viragem na vida do Cavaleiro de

Assis e combatente na cidade rival de Perusa que o leva a perceber o

vazio e o absurdo da guerra e abre caminho ao seu encontro com o Cristo

————— * Conferência proferida no Centro Pastoral Paulo VI, em 3 de Outubro de 2009,

durante a Peregrinação Nacional da Família Franciscana.

Page 77: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

77

crucificado, encontro esse que há-de marcar, definitivamente, a orienta-

ção da sua vida na descoberta do Deus-Amor e, a esta luz, o impele a

viver a radicalidade do Evangelho. Nos pontos seguintes da exposição,

sublinharei alguns tópicos da espiritualidade franciscana que têm muito a

dizer-nos nestes nossos conturbados tempos de mudança.

2. Uma personalidade histórica num tempo de crise (viragem do

século XII para o século XIII)

Quem foi o santo que aqui nos convoca?

Sabemos que terá nascido em Assis, em 1181 ou 1182. Não se

sabe precisar esta data, pois é incerto o dia exacto do seu nascimento. A

Igreja celebra a data da sua morte a 3 de Outubro de 1226.

Sabemos que pertencia a uma família abastada. O seu pai era

grande negociante de panos, habituado a viajar fora do país. É, aliás, no

regresso de uma das suas viagens ao sul de França que o pai lhe muda o

nome de baptismo, João Bernardone, para Francisco. E é com o nome de

Francisco de Assis, sua terra natal, que ficou para a história.

Convém recordar que a transição do século XII para o século XIII

foi marcado por conflitos vários, nos quais Francisco se envolveu

durante a sua juventude.

Em síntese, podemos dizer que Francisco de Assis experimentou o

fervor dos combates de cavalaria em defesa da sua cidade e dos seus

interesses de classe burguesa na luta contra o império, assim como, pos-

teriormente, se empenhou, fora dos campos das batalhas, em viabilizar

uma sociedade mais fraterna e solidária com os mais pobres. Enfrentou a

rivalidade com a cidade vizinha de Perusa e aí ficou prisioneiro durante

um ano. Tomou partido nos confrontos entre o Imperador e o Papa. A

Europa de então estava, literalmente, a ferro e fogo e o jovem cavaleiro

corria os riscos próprios da sua época para fazer vingar os seus ideais. É

próprio dos tempos de crise que os mais argutos e generosos acreditem

na mudança que se anuncia como nova realidade emergente e dêem o

melhor de si para a viabilizarem. Então, como agora.

Quando olhamos para a nossa época, também temos a intuição de

que se anunciam tempos novos: os fundamentos do actual sistema eco-

nómico de matriz capitalista ameaçam ruir, mas ainda não se afirmam

alternativas credíveis. Apenas algumas experiências inovadoras, alguns

Page 78: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

78

sinais portadores de um futuro outro, alguns esforços para atenuar as

brechas que se vão cavando.

Apesar de importantes na sua vida, não foram, porém, estas lutas

que fizeram de Francisco um santo; terão, no entanto, preparado o seu

espírito para se abrir à novidade da radicalidade do evangelho.

Quando Francisco encontra o leproso e o beija, percebe que este

sinal simbólico o colocará para sempre do lado dos excluídos e dos mar-

ginalizados e de que a sua vida passará a ser, doravante, decidida em

função da libertação dos oprimidos. Na sociedade medieval, assim como

na Antiguidade e na tradição judaica, os leprosos eram gente à margem

da sociedade que causava repulsa e impunha regras de intocabilidade.

Isto por razões de defesa da saúde, mas também porque se associava à

doença e ao sofrimento físico do leproso o seu pecado e o merecido cas-

tigo divino. Francisco, porém, vê para além da aparência e, tal como

Jesus nos caminhos da Galileia, descobre no leproso a dignidade intocá-

vel de todo o ser humano. Como escreve José António Merino: Ao

assumir tudo o que havia de negativo e estranho no pobre marginali-

zado, redime o que de mais oculto se encontra nas zonas mais profundas

da sua personalidade1. Começa neste encontro com o leproso uma etapa

de conversão pessoal que levará Francisco a uma crescente identificação

com Cristo, através da pobreza voluntária e do serviço junto dos mais

pobres.

Esta é uma mensagem que tem toda a oportunidade nestes nossos

conturbados tempos, também eles a necessitar de combates sérios em

favor dos mais pobres e destituídos de direitos humanos fundamentais.

Adiante voltaremos a este tema.

3. O encontro decisivo de Francisco com o Cristo crucificado e a

descoberta de Deus-Amor

A conversão não é obra de um momento, mas antes um processo

em tudo semelhante a um encontro de amizade que se vai desenrolando,

aprofundando e consolidando.

Na vida de Francisco, ao encontro com o leproso e o que este lhe

traz de descoberta da dignidade humana segue-se uma intensa busca

————— 1 MERINO, J. A., São Francisco e tu, Editorial Franciscana, Braga, 2009

Page 79: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

79

espiritual, a busca de sentido para a sua própria existência. É nesse

estado de alma que procura o silêncio na natureza e se refugia na capela

abandonada de São Damião. Aí descobre um ícone bizantino com o rosto

de Cristo cuja contemplação o move ao entendimento de que Deus é

Amor e nada mais é pedido ao ser humano que ser imagem viva deste

Deus-Amor. Francisco encontra aqui a razão de ser da sua vida.

Acho que podemos recolher nesta etapa decisiva da vida de São

Francisco importantes lições para o nosso tempo e para as nossas vidas.

A primeira é que, face à agitação que é característica do estilo de vida

das nossas sociedades, é preciso saber parar para sermos capazes de nos

colocar a questão primordial do sentido que dou à minha vida.

A segunda lição é que importa aprender com Francisco a escutar o

que Deus tem para me dizer. Deus fala-nos através dos outros e das cir-

cunstâncias, mas nem sempre estamos disponíveis para escutar a palavra

e para a pôr em prática. Francisco viu no edifício da igreja de São

Damião em ruínas o apelo a que o reparasse e assim procedeu. Mais

tarde viria a entender que este episódio era apenas uma metáfora de um

desafio maior: a necessidade de revitalização da própria Igreja dilacerada

por lutas internas e sob a poderosa ameaça das heresias da época. Cristo

escolhera Francisco, um leigo empenhado em viver a radicalidade do

Evangelho no meio do mundo, para reconstruir a sua Igreja.

4. Actualidade da espiritualidade franciscana

Ao longo destes oito séculos foi-se aprofundando e consolidando

uma certa forma de viver, uma espiritualidade com traços comuns bebi-

dos nas fontes, ou seja junto do Fundador, o que leva a criar uma cor-

rente de espiritualidade própria dentro da Igreja.

Inspirada na radicalidade do evangelho e no empenho pessoal e

colectivo em procurar viver esta radicalidade na vida quotidiana, é uma

espiritualidade poliédrica que tem sabido adaptar-se a oito séculos de

história e responder aos desafios próprios de cada época.

No mundo contemporâneo, creio que podemos distinguir alguns

contributos do franciscanismo da maior actualidade:

- A paixão pela fraternidade universal

- A opção pelos pobres

- A vida simples e a ética do necessário

Page 80: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

80

- A contemplação como modo de ser, de estar e de viver

- O anúncio do Cristo vivo e da alegria pascal

4.1 A paixão pela fraternidade universal

Vivemos num tempo em que se caminha a passos acelerados no

sentido da mundialização. A economia que é a base da organização da

sociedade, está cada vez mais globalizada. Desde a produção (especiali-

zação produtiva, tecnologias utilizadas, relações comerciais), aos

padrões de consumo, ou às regras que presidem aos negócios.

Mas, como diz Bento XVI na sua última carta encíclica, Caritas in

veritate: a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas

não nos faz irmãos.2

Ora, sem uma maior consciência de fraternidade universal, ficarão

sem solução muitos dos problemas do mundo contemporâneo. O pro-

gresso tecnológico pode trazer aumento de riqueza e de rendimento, mas

não dá garantia de que estes resultados se destinem a satisfazer as neces-

sidades básicas dos seres humanos ou se repartam equitativamente.

E que dizer das movimentações de população dos países mais

pobres em direcção às zonas mais prósperas, se não existir um ambiente

de fraternidade à altura de as acolher, respeitar os seus direitos e provi-

denciar as ajudas indispensáveis à sua integração?

Ou, ainda, como contrariar a xenofobia que grassa em tantos

ambientes, senão através de um suplemento de fraternidade universal?

Ou, também, como enfrentar as discórdias, declaradas ou latentes,

que têm por base a religião ou a diversidade de culturas, se não houver

uma consciência mais profunda da fraternidade universal como projecto

de Deus em construção.

Francisco pode servir de exemplo, pois ele viveu apaixonadamente

a fraternidade para além de todas as barreiras e foi ousado na luta contra

todo o tipo de discriminação praticada no seu tempo.

4.2 A opção pelos pobres

A espiritualidade franciscana é conhecida pelo empenho posto no

amor aos mais pobres, incluindo os destituídos de bens materiais, mas

————— 2 BENTO XVI (2009) - A Caridade na verdade.

Page 81: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

81

também os doentes, os menos válidos ou certos grupos de população

particularmente vulneráveis (as crianças, os idosos, os deficientes, etc). É

uma espiritualidade que exalta a partilha dos bens, partilha essa tão

necessária num mundo caracterizado pela opulência e pela abundância

de bens materiais a par de extensa e severa pobreza de muitos que não

conseguem ter a parte que lhes é devida na mesa comum. A espirituali-

dade franciscana convida os seus seguidores a não fecharem os olhos a

estas duras realidades do nosso tempo, numa dupla preocupação: a da

partilha dos seus próprios bens com quem mais precisa e a do compro-

misso com a construção de caminhos de justiça e verdade na organização

da economia e da sociedade. No seguimento do pobre de Assis há que

não passar ao lado das necessidades dos nossos irmãos, necessidades de

ajuda material mas também de companhia, de apoio moral na solidão, de

conselho e apoio para encontrar sentido de vida, emprego e autonomia

em meios de subsistência.

A opção pelos pobres vai, porém, mais longe do que o movimento

de dar ou prestar ajuda, implica que se assuma, como nossa, a condição

do pobre, a luta pelos seus direitos, a sua perspectiva de relacionamento

com a sociedade. Implica, em suma, construir um mundo mais justo,

tendo os pobres como destinatários principais da mudança e seus prota-

gonistas.

4.3 O caminho da vida simples e da ética do necessário

É cada vez mais generalizada a convicção de que o actual modelo

de crescimento económico é insustentável a prazo, tanto por razões de

coesão social como de saúde ambiental do Planeta. Há que arrepiar

caminho relativamente a um consumismo voraz e predador de recursos

não renováveis, com destaque para a energia e para algumas matérias-

-primas.

Por outro lado, o elevado nível de consumo, que caracteriza a

sociedade ocidental, é conseguido à custa de ritmos de trabalho e custos

sociais em duração de transportes, segurança e outros que tornam a vida

nas sociedades urbanas particularmente stressante. A realidade seria bem

diferente se cada um de nós fizesse escolhas mais racionais quanto ao

seu padrão de consumo e quanto à utilização que faz do seu tempo.

Page 82: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

82

A espiritualidade franciscana tem abertura para liderar a indispen-

sável e urgente mudança de atitudes e comportamentos dos nossos con-

cidadãos e concidadãs, no sentido do maior apreço pela vida simples e

para fomentar a prática da ética do necessário, através do testemunho de

vida dos seus seguidores.

4.4 A contemplação como modo de ser, de estar e de viver

Conscientemente ou não, vivemos imersos numa cultura de cariz

materialista, uma cultura que privilegia o ter e desconsidera o ser, que

aposta na eficácia e põe de lado os menos capazes, que atafulha de coisas

a existência quotidiana e não deixa tempo para o cuidado dos outros, da

natureza, da relação com Deus. É uma Humanidade que vive aquém da

sua sede de infinito e transcendência e, por isso, este nosso tempo é, de

algum modo, um tempo triste, propício às depressões individuais e

colectivas.

Em Francisco de Assis podemos encontrar o exemplo de alguém

que soube enfrentar as seduções de um capitalismo nascente que fazia da

ostentação e do dinheiro um objectivo. Às honras da cavalaria e à gran-

deza da fortuna familiar, que pareciam estar-lhe destinadas, o poverello

soube contrapor o seu desejo de viver em profundidade a sua própria

humanidade no seguimento de Jesus de Nazaré: escutando a sua palavra

(a radicalidade do evangelho), contemplando os mistérios da sua vida,

morte e ressurreição, abrindo-se à beleza da criação.

Francisco tratou todas as criaturas por irmãs (o irmão sol, a irmã

água, o irmão lobo, …), encantou-se com o canto dos pássaros, com a

frescura das fontes, com a força dos ventos ou com a prodigiosa fecundi-

dade de uma pequena semente.

E nós? Não temos que salvaguardar esta dimensão contemplativa

do ser humano? Não temos que passar esta mundividência às gerações

mais novas? Não temos que desenvolver a nossa capacidade de contem-

plação como modo de ser e de estar neste mundo dominado pela força do

marketing e a ilusão da realidade virtual? Não temos que criar condições

para uma vida em harmonia com o que há de mais fundo no ser humano,

o seu sentido de transcendência?

Page 83: CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA · Francisco de Assis para nos dizer hoje? ... de origem inglesa, ... menores, quatro clérigos e cinco leigos,

83

4. 5 A missão do discípulo: anunciar o Cristo vivo e a alegria pascal

Por último, uma referência muito breve sobre uma outra dimensão

da espiritualidade franciscana que a bem dizer é o núcleo central da fé

cristã.

Os que seguem a Cristo vivem dum impulso da fé no Ressuscitado,

prolongam nas suas vidas o inesperado da manhã de Páscoa e a alegria

de verem com os olhos da fé para além do sepulcro vazio, a vitória de

Cristo e o começo do Reino por Ele anunciado. A missão do discípulo é

anunciar esta boa nova: Cristo ressuscitou e está vivo no meio de nós.

Quaisquer que sejam as dificuldades, as incoerências, os absurdos

do tempo presente, o crente em Jesus Cristo reconhece neles que, em

gérmen, está um mundo novo em construção, o Reino de Deus e anima-o

a esperança de que o Espírito Santo agirá no sentido da justiça, da ver-

dade e da paz. Não é de mais sublinhar como é importante o testemunho

desta alegria na vida quotidiana de cada cristão.

A Francisco de Assis, não faltaram contrariedades e obstáculos na

sua missão, mas em todas as circunstâncias nos deixou o exemplo de um

homem livre, centrado na contemplação, irradiando a alegria da novi-

dade pascal.