cadernos de espiritualidade franciscana · exprime a ideia de uma mudança espectacular, radical....

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1 CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 38 Editorial Franciscana BRAGA - 2010

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

38

Editorial Franciscana BRAGA - 2010

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Ficha Técnica

Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 38- 2010 Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos

1. Fr. Jean François Godet-Calogeras ofm

— O Movimento Franciscano – Uma revolução evangélica .............. 5

2. Fr. José Antonio Merino ofm

— Escoto e a Ecologia ...................................................................... 13

3. Fr. Martín Carbajo Núñez, ofm

— Actualidade de Duns Escoto na Sociedade de Informação ......... 33

II — Documentos

1. Bento XVI

Três Meditações sobre S. Boaventura ............................................. 57

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I — Estudos

O MOVIMENTO FRANCISCANO

UMA REVOLUÇÃO EVANGÉLICA

por Jean François Godet-Calogeras ofm1

1 Artigo publicado em Évangile Aujourd’hui, n.20 (2008) 28-34.

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O MOVIMENTO FRANCISCANO

UMA REVOLUÇÃO EVANGÉLICA

UM MOVIMENTO

Considerai estas páginas como um flash-back, um regresso às ori-

gens. O que pretendemos é relacionar o caminho que hoje percorremos,

com o caminho que outros homens e mulheres percorreram nos primei-

ros anos do movimento franciscano. Efectivamente, trata-se de um

movimento, não de uma aventura individual. Apesar da importância que

teve como fundador, não podemos separar Francisco do movimento que

gerou. Assim não corremos o risco de o considerar como simples perso-

nagem do passado.

De que falamos, quando falamos de movimento franciscano? Diri-

jamos o nosso olhar para Francisco, para os escritos que deixou. No Tes-

tamento, ditado pouco antes de morrer, Francisco fala de “fazer penitên-

cia”. A vida franciscana consiste em “fazer penitência”.

UMA MUDANÇA

A palavra latina utilizada é paenitentia, uma palavra que recorda a

“metanóia” grega, que significa uma mudança de espírito, uma mudança

radical de espírito. São termos do âmbito religioso. Na Idade Média o

vocabulário religioso é muito importante, uma vez que a Europa ociden-

tal se identifica com o cristianismo. Além disso, os termos religiosos são

uma alternativa à linguagem político. As pessoas voltavam-se para os

termos religiosos como alternativa ao vocabulário político. Presta-se

atenção às palavras da Escritura porque têm uma autoridade superior à

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do príncipe, do rei ou do imperador. Por isso, as palavras religiosas tam-

bém têm um sentido político. Quando Francisco diz “queremos fazer

penitência”, significa “queremos uma mudança radical e trabalhamos

para isso”.

Francisco também utiliza o termo convertere, converter, que

exprime a ideia de uma mudança espectacular, radical. Ao longo de toda

a história, em particular da história da Igreja, houve um conflito entre o

que foi chamado reforma, algo aceitável, e o que chamamos revolução, o

que é considerado negativo. Revolução traz para muitos a ideia de con-

flitos, violência, mortes, destruição. Na verdade, uma revolução significa

somente que há uma mudança espectacular, radical: eleva-se o que está

em baixo, abate-se o que estava por cima; o de fora passa para dentro e

vice-versa. É o verdadeiro sentido da palavra revolução. É também o

sentido do termo conversão. E aplica-se tanto a indivíduos como a

grupos.

UMA REVOLUÇÃO

Reformar, do latim reformare, significa dar uma nova forma. Isto

não afecta o núcleo, não afecta as raízes. Considerando as origens fran-

ciscanas não penso que se trate de uma reforma. Trata-se de uma revolu-

ção. Os primeiros franciscanos queriam algo totalmente diferente. Não

uma nova roupagem, não uma aparência melhor, não uma limpeza, mas

um sistema completamente diferente.

Desta forma, gostaria de definir o movimento franciscano como

uma revolução evangélica, isto é, uma mudança radical, fundamentada

no Evangelho.

Quando Francisco, e mais tarde outros homens, e depois Clara, e

outras mulheres, iniciaram o movimento, eram pessoas adultas. Sabiam

do que se tratava. Estavam implicadas com a sociedade. Eram observa-

dores do sistema do qual faziam parte e no qual tinham crescido e das

mudanças que se tinham produzido. A passagem do sistema feudal ao

sistema comunal era a mudança fundamental. No feudalismo os senhores

tinham o poder. No novo sistema comunal o poder é assumido pelos

mercadores e os homens de negócio, os detentores do dinheiro. O

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dinheiro converte-se numa fonte de poder mais importante que a posse

da terra. A transição aconteceu por etapas e não foi pacífica. Em Assis

os senhores não abandonaram o poder facilmente. Depois de mais de

uma década de conflitos armados e de negociações, a velha e a nova

classe chegaram a acordo. Concordaram na colaboração e na partilha das

riquezas e as novas fontes de lucro. Nos documentos de então, como na

Carta de Assis de 1210, quando se mencionam os maiores e os minores,

os primeiros são os senhores feudais, a antiga nobreza; os segundos são

os mercadores, a nova classe de negócios. Não se tratava de ricos e

pobres. Maiores e minores são os ricos, os proprietários. O que sucedeu

em Assis nos princípios de século XIII, aconteceu em todo o centro de

Itália e propagou-se depois a toda a Europa ocidental, em todo o lugar

onde os negócios e o dinheiro ganharam um lugar preponderante. Em

todos os lugares onde os mercadores faziam comércio, o feudalismo será

substituído pouco a pouco por uma nova comuna. Isto se deu na Bélgica,

na França e Alemanha.

NO INTERIOR E NO EXTERIOR

Os membros da comuna desejam a paz, a harmonia, o entendimen-

to, a liberdade e a felicidade. O problema é que isto só é válido para

aqueles que se encontram no interior dos muros da cidade. Disto se

demarcaram Francisco, Clara e os membros do movimento inicial. O

novo sistema só funciona para aqueles que formam parte da cidade, para

os cidadãos. Mas há pessoas que não formam parte da cidade, que vivem

fora dos muros. Para este o novo sistema não funciona. São excluídos da

riqueza comunal. Na realidade, a gente do condado, do campo, que vive

fora dos muros da cidade, trabalha muito em benefício da gente do inte-

rior das muralhas.

É neste contexto que devem ser vistos os leprosos, tão importantes

no início do movimento franciscano. Os leprosos são reais, há leprosos

fora de Assis. E os primeiros irmãos e irmãs estão muito próximos deles.

Comprometiam-se com os excluídos. Mas os leprosos são também um

símbolo para o movimento franciscano, um símbolo significativo: há

seres humanos aos quais se nega a dignidade humana. Por isso a hagio-

grafia franciscana nas suas primeiras biografias desenvolveram muito a

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importância do beijo ao leproso. Este episódio não é histórico, mas é um

símbolo e um símbolo muito forte.

O símbolo pode ter sido deformado. Tomás de Celano é o primeiro

que narra o episódio onde Francisco vai ao encontro do leproso e o beija.

Uns trinta anos mais tarde, Boaventura acrescentará muito de maravi-

lhoso à história, escrevendo que depois de ter abraçado o leproso, este

desapareceu, mostrando assim que se tratava de Jesus. Francisco teria

beijado Jesus; o verdadeiro leproso desapareceu. Mesmo sendo muito

edificante, o episódio está longe da realidade histórica. Mais importante

que beijar o leproso era reconhecer que os leprosos eram os excluídos,

seres humanos separados e rejeitados, com quem a gente do interior dos

muros de Assis não podia e não queria contactar; eram seres humanos

cuja existência era rejeitada e negada. Os cidadãos não queriam dar com

os olhos nos leprosos. Foi isso que Francisco compreendeu. E mesmo

que ao princípio lhe fosse difícil suportar os leprosos, tal como diz no

seu testamento (não podia suportar o seu cheiro, escreve Celano), volta-se

para eles e serve-os. E agindo assim integra-os no círculo dos humanos.

UMA NOVA ALTERNATIVA

Para o movimento franciscano os leprosos simbolizam o ponto

extremo onde se deve chegar para construir uma alternativa, para cons-

truir uma sociedade muito diferente onde ninguém se sinta excluído,

uma sociedade onde todos pertençam. Construir de baixo para cima, do

exterior para o interior. A meta é trabalhar para a construção de uma

sociedade inclusiva, onde todos tenham lugar. Quando olhamos as ori-

gens, é evidente que para Francisco e Clara e o primeiro grupo, um sis-

tema que não funciona para todos, é um sistema que não funciona. Um

sistema que não funciona para todos, não é um bom sistema e obriga a

mudar e a encontrar um sistema diferente.

Para os primeiros franciscanos a novo comuna de Assis era injusta,

por isso rejeitaram-na. Deixando a comuna, deixavam também a cidade

e ficavam fora dos muros. Misturavam-se com as gentes do campo, com

os trabalhadores e os pobres que viviam fora de Assis. Nos nossos dias a

situação geográfica é diferente. Nos Estados Unidos, por exemplo, as

pessoas que fazem parte do sistema vivem fora da cidade, enquanto os

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pobres, os que vivem do salário mínimo, os desempregados, os desaloja-

dos, os que vivem sem documentos, são obrigados a viver na cidade; ao

mesmo tempo, os outros, no entanto, fazem os seus negócios e lucros

durante o dia no centro da cidade onde não habitam2. Por isso, a situação

de hoje pode ser geograficamente diferente da de Assis do século XIII,

mas é um sistema fundamentalmente análogo, um sistema que gera

exclusão.

A REJEIÇÃO DO DINHEIRO

O movimento franciscano rejeita um sistema que não funciona

para todos, e não colabora com ele. A rejeição do uso do dinheiro faz

parte desta opção. O dinheiro é rejeitado porque não é acessível a todos.

E existem diferentes tipos de dinheiro. Só uma minoria privilegiada tem

acesso à moeda real. A grande massa tem de contentar-se com uma

moeda fraca, cujo valor andava ao sabor das conveniências dos detento-

res de moeda forte. As pessoas não dominam a mais valia que o seu tra-

balho acrescenta. Um dia trabalham e com o seu salário compram o pão

para a família. No dia seguinte, apesar do esforço, com o mesmo salário,

só podem comprar a metade do pão necessário para a família. Os que

decidem são os que menos fazem.

Fora de Assis, libertos do sistema comunal, os primeiros francis-

canos tentam construir uma sociedade diferente, uma sociedade justa e

inclusiva. Por isso, voltam-se para o Evangelho, para os ensinamentos e

as obras de Jesus. É no Evangelho que encontram a inspiração. Quando

observam algo que consideram que não é justo, tiram das palavras e dos

exemplos de Jesus a inspiração para encontrar o antídoto.

UMA RENOVAÇÃO RELIGIOSA?

É religiosa a motivação do movimento franciscano nas suas ori-

gens? Isto depende do que entendemos como “religioso”. Francisco e os

primeiros irmãos não queriam entrar numa estrutura eclesiástica, nesse

caso tinham-se integrado numa das estruturas já existentes. Havia várias

2 Esta análise fundamenta-se na realidade da América do Norte, onde a classe mais abastada vive nos arredo-res das grandes cidades, em vivendas ou bairros de grande qualidade, enquanto que no inner city vivem os

mais desfavorecidos.

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comunidades na sua época, mas não entraram em nenhuma. Começaram

algo novo. No entanto, a sua atitude foi religiosa no sentido mais pro-

fundo do termo. Sempre que actuam no campo político, social ou eco-

nómico seguem a inspiração da palavra de Deus. Sabem que a boa notí-

cia é para o aqui e agora. A Palavra de Deus acontece aqui e agora. Não

interessa outro lugar ou outro amanhã. Por isso, é aqui onde a Palavra de

Deus, a Boa Notícia se pode realizar. Mas só se realiza quando damos a

nossa contribuição, quando nos comprometemos com ela. Esta é a lição

de Jesus e do Evangelho.

PENITENTES EM PROCESSO DE CONVERSÃO

Deixando a comuna de Assis, os irmãos perderam a cidadania.

Quem eram? Foram precisos alguns anos para adquirirem uma nova

identidade social, e a organização como ordem que virá mais tarde não

correspondia verdadeiramente ao movimento do início. Eram penitentes

“em processo de conversão” a Deus e ao próximo. Eram verdadeiros

dissidentes, rebeldes que sorriam, cantavam, e eram felizes. Fundamen-

talmente eram rebeldes em relação ao sistema que proclamava a paz e a

riqueza, deixando de lado tantas pessoas.

Os primeiros franciscanos estavam em desacordo radical com o

sistema comunal. Identificavam os problemas e propunham uma alterna-

tiva. Enquanto a comuna se fundamentava em coisas materiais, o movi-

mento franciscano debruçava-se sobre as pessoas. Todas as pessoas são

importantes, todas são necessárias. Enquanto a comuna tinha como

objectivo a acumulação e a apropriação das coisas, o movimento decidiu

partilhar, porque as coisas são de Deus, dizem eles, e por isso, podemos

chamar-lhes dons, bens. Enquanto a comuna gere exclusão, o movimen-

to franciscano constrói de baixo para cima, a partir do mais pequeno, dos

verdadeiros minores, desenvolvendo a integração.

UMA ECONOMIA EVANGÉLICA

O movimento franciscano propõe uma sociedade distinta, uma

organização social diferente. Isto não quer dizer quo o mundo inteiro

tenha de ser franciscano. A finalidade não é colocar no mundo a etiqueta

franciscana. A finalidade é transformar este mundo num lugar mais justo

e melhor. Que se torne um lugar de Deus, onde todo o mundo possa

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viver, ganhar o seu pão e ser feliz. Como todos os sistemas se apoiam na

economia, a alternativa franciscana desenvolveu também uma economia,

uma economia evangélica. A forma como se administra um lar, terá efei-

to sobre esse lar. Não se constrói uma sociedade equitativa com práticas

injustas. Os primeiros franciscanos trabalharam verdadeiramente por um

outra economia e construíram a partir dali. A economia franciscana

pode-se resumir numa única palavra-chave: servir. O trabalho como ser-

viço, por oposição a uma economia de apropriação, de acumulação, de

capitalização. Quando o trabalho tem o lucro como objectivo, não há

trabalho suficiente para todos. Quando o trabalho é serviço, sempre há

abundância de trabalho.

UM ESPÍRITO DE COMPANHEIRISMO

Os primeiros franciscanos conseguiram-no em parte. É verdade

que todo o movimento se desviou quando foi organizado em ordem.

Depois da morte de Francisco, os irmãos voltaram ao interior dos muros

de Assis. Aproximadamente dez anos depois da morte de Clara, as irmãs

deixaram S. Damião para regressar ao interior dos muros de Assis.

Efectivamente, os primeiros anos não podem cair no esquecimento.

Constituem o autêntico movimento franciscano das origens, forte e apai-

xonante, ao qual sempre se pode voltar. Isto aconteceu várias vezes ao

longo da história.

A chave do êxito dos primeiros irmãos é que formavam fraternida-

de, viviam juntos, profunda e solidamente juntos. Tudo o que sucedia a

um afectava todo o grupo, e todo o grupo reagia, actuando, tomando

posição. Não sobreviveremos, não teremos nenhum impacto, se não

seguimos o mesmo caminho. Sozinhos, estamos perdidos, não podemos

fazer nada. O sistema é demasiado forte. Mas juntos podemos mudar as

coisas. Teremos de ser uma grande massa? Nada mais errado. No início

era só um punhado. Toda a revolução começa com um punhado de pes-

soas. O que é importante, é lutar juntos. Não abandonar a ninguém. Isto

cria uma sociedade, um espírito de fraternidade. As pessoas vivem jun-

tas, um por todos e todos por um. Então tudo é possível. Um mundo

melhor torna-se realidade.

Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

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ESCOTO E A ECOLOGIA

por José António Merino, ofm

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ESCOTO E A ECOLOGIA*

ECOLOGIA E RELIGIÃO

A defesa do meio ambiente é actualmente um dos problemas mais

urgentes e acutilantes da humanidade. Ela implica e engloba os proble-

mas da degradação ecológica, a fome no mundo, o melhoramento da

qualidade de vida, a insegurança por causa das condições que ameaçam

a convivência dos cidadãos e a paz entre os povos.

O problema ambiental não é só científico, técnico ou político, mas

também cultural, ético e religioso, uma vez que por detrás da crise eco-

lógica está a questão da justiça, da igualdade e direitos humanos e do

respeito pelo mundo natural. Dado que a ciência não prescreve o que é

bom, nem lhe compete fixar critérios de valores, tem de recorrer à deci-

são ética que lhe oferece uma consciência com o intuito de se orientarem

para o bem comum. Neste âmbito, a mensagem de Escoto tem muito a

dizer para podermos caminhar mais humanamente na casa comum, cha-

mada planeta Terra, e estabelecer relações humanizantes no universo

inteiro.

É verdade que a ecologia é uma questão das ciências interdiscipli-

nares, de técnicas sadias e de políticas protectoras. Mas é também ver-

dade que a ecologia necessita de uma nova mentalidade em todos os

habitantes deste universo, que se deve traduzir no respeito, salvaguarda e

protecção.

A crise no meio ambiente interpela também a religião e questiona-

-a. A ciência e a técnica provocam uma vez mais a crença religiosa.

Durante muito tempo acusou-se a religião de desprezar os deveres para

com a terra e de ser infiel aos imperativos da natureza.

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O grito simbólico de Nietzsche: “sede fiéis à terra!” era um protes-

to contra o homem religioso que se preocupava demasiadamente com o

céu e esquecia a terra. Agora, porém, os mesmos grupos que atacavam a

religião pelo seu desprezo da terra, atacam-na pelo seu apego à mesma,

porque, segundo eles, ao pôr em prática o imperativo bíblico de subme-

ter a terra, causaram-lhe tantos desajustes ecológicos.

É surpreendente que os naturalistas, que geralmente se declaram

ateus ou agnósticos, recorram agora ao factor religioso e solicitem o

apoio dos militantes das grandes religiões históricas para responder aos

problemas ambientais. Assim como, no princípio do século XX, Max

Weber estabeleceu as relações existentes entre a religião e a economia, e

também muitos cientistas, filósofos e historiadores perguntam-se agora

sobre o ensino e doutrinas das grandes religiões no que se refere ao

comportamento do homem religioso para com a natureza, as coisas e os

seres que há nela.

A polémica entre ecologia e religião saltou com força para a praça

pública a 26 de Dezembro de 1966 quando, no encontro anual da Asso-

ciação Americana para o progresso da ciência (American Asociation for

the advencement of science) realizado em Washington, o historiador

Lynn White, professor da Universidade da Califórnia, proferiu uma con-

ferência sobre As raízes históricas da nossa crise ecológica, publicada

na revista Science no mês de Março de 1967. Segundo a tese do Prof.

White “a ecologia humana encontra-se fortemente condicionada pelas

crenças sobre a nossa natureza e sobre o nosso destino, ou seja, pela

religião”1.

Inclusivamente na época pós cristã, segundo este autor, todos,

incluindo os marxistas, estamos marcados pela teologia judaico-cristã (o

islamismo e o marxismo não seriam no fundo outra coisa senão as here-

sias judaico-cristãs). O triunfo do cristianismo sobre o paganismo, que

era animista, supõe uma decisiva revolução psicológica na cultura que

dominaria depois, ou seja, a cultura cristã que, com o lugar privilegiado

que concede ao homem no universo, promoveu o antropocentrismo mais

radical que se conhece, pelo menos na corrente ocidental que forjou um

forte dualismo entre o homem e a natureza.

* Conferência pronunciada no Centro Cardeal Cisneros, Madrid, no dia 7 de Novembro de 2008. Texto publicado em Selecciones de Franciscanismo 38(2009)255-273. Título original: “Escoto y la ecología”. 1 L. WHITE, “Historical roots of our ecological crisis”, in Science Magazine 155 (1967) 1205.

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Fazendo a diferença entre as duas cristandades, a oriental, mais

contemplativa, e a ocidental mais voluntarista e dinâmica, acusa esta

última de ter favorecido o domínio incontrolado do homem sobre a natu-

reza. Não obstante, o dr. White acredita na possibilidade de uma “visão

cristã alternativa”. Para ele dever-se-ia encontrar uma nova religião ou

reformular profundamente a religião cristã. Nesta perspectiva vê em

Francisco de Assis “o mais radical dos cristãos” e o modelo de compor-

tamento para todos os homens. “Francisco propunha uma nova alternati-

va, ainda que não o tenha conseguido. De qualquer modo, apesar das

raízes dos nossos problemas serem em grande parte religiosos, o remé-

dio deve também ser religioso. (…) Eu proponho Francisco – continua

White – como o santo patrono dos ecologistas.”2 Este artigo suscitou

grande interesse entre os cientistas que encaravam a religião como res-

posta aos desafios ambientais.

As igrejas cristãs acolheram o desafio e estudaram a grande pro-

blemática ambiental. A Assembleia Ecuménica de Basileia (1989) disse

textualmente que “a defesa do meio ambiente chegou a ser o problema

número um da humanidade”. E a Assembleia Ecuménica de Seul (1990):

“A resistência à desintegração da criação deve converter-se numa priori-

dade universal da nossa época. Este é um desafio que não tem antece-

dentes históricos, pois a humanidade e a ecosfera converteram-se agora

numa comunidade de sobrevivência interdependente. Está em jogo o

futuro da própria vida. É necessário estabelecer uma ordem ecológica

internacional se queremos ter futuro. Exortamos os cristãos a trabalhar

para conseguir esta ordem e a examinar de novo o seu pacto com o Cria-

dor e sustentador de toda a criação”.

A ONTOLOGIA DO CONCRETO SEGUNDO ESCOTO.

Ainda que de forma fugaz e muito sucinta é necessário fazer uma

breve referência à ontologia do concreto no Doutor Subtil, pois isso é

expressão da importância, valorização e grande reconhecimento do ime-

diato. Há que sublinhar que para Duns Escoto só existe o indivíduo; e

tudo o que existe no indivíduo é de um modo individual ou individuali-

zado. A natureza comum não existe como comum no indivíduo, que a

esgota, já que se dá também em todos os demais indivíduos.

2 Idem. 1207.

17

É sabido que o princípio de individuação está estreitamente vincu-

lado à tese da natureza comum. A natureza comum é o factor específico

sobre o qual se apoia a individuação. E o princípio de individuação é o

elemento que caracteriza a natureza comum no composto substancial e

que a expressa e a concretiza na sua singularidade.

Para Escoto, o indivíduo, ou a coisa concreta, possui uma perfei-

ção mais intensa e uma unidade mais significativa que a espécie ou a

natureza comum. Ou seja, o indivíduo é um ser mais perfeito que a espé-

cie. Não está o indivíduo em função da espécie, mas ao contrário. Daqui

a urgência de encontrar uma entidade positiva que caracterize o ser sin-

gular.

Esta entidade positiva foi chamada, pelos seguidores de Escoto,

haecceitas, haeceidade, e apresenta-se como o aperfeiçoamento definiti-

vo da forma substancial. No caso do homem, por exemplo, a haeceidade

é o coroamento da forma humana em razão da qual, não é somente

homem, mas este homem como singular e irrepetível. A haeceidade

escotista, que deriva do latim haec, isto, poderia traduzir-se por istoida-

de que nos levaria ao conceito de “talidade” segundo Zubiri.

A tese escotista da individuação supõe o reconhecimento no indi-

víduo de um valor ontológico desconhecido na tradição escolástica. O

indivíduo adquire a primazia sobre o universal e o conhecimento do sin-

gular é mais perfeito. A natureza culmina no indivíduo. O individual

eleva-se acima dos meros géneros e espécies como forma superior da

existência, o supremo ser de todas as criaturas. A haeceidade fundamen-

ta a última realidade, o supremo ser de todo o concreto. Antecipa-se com

isto o individualismo da filosofia moderna.

Mas é necessário sublinhar que o denominado individualismo

escotista difere muito do individualismo da modernidade porque os pres-

supostos metafísicos e antropológicos são muito diferentes. O individua-

lismo escotista é antes um personalismo, como se demonstra na sua con-

cepção antropológica.

CRISTOCENTRISMO E UNIVERSO

Um sistema intelectual, seja científico, filosófico ou teológico, tor-

na-se compreensível a partir do horizonte cultural em que o homem se

coloca e desde o qual vê e interpreta a realidade de um modo determina-

do e torna possível a história do problema. Para o beato João Duns Esco-

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to, o horizonte mental teológico e o paradigma especulativo vital é o

cristocentrismo. Cristo não só como revelação e epifania do Deus invisí-

vel, mas também como princípio clarificador e de compreensão para a

teologia, a antropologia, a cosmologia, a moral, a cultura e a história. O

cristocentrismo escotista apresenta-se na perspectiva da totalidade cós-

mica. A partir dela as diferentes realidades, Deus, o homem, o mundo e

a história, tornam-se compreensíveis e encontram-se inter-relacionadas,

uma vez que o sistema escotista é concêntrico e implica todas as verda-

des existentes num projecto científico interpretativo e omnicompreensi-

vo. Ou seja, Deus, o homem, as criaturas e a história vinculam-se numa

unidade sinfónica.

O Doutor Subtil acentua abertamente que Cristo é o centro pri-

mordial e de maior importância da glória divina ad extra. O cristocen-

trismo escotista sustenta e defende que Cristo é o arquétipo e o paradig-

ma da criação. Ele é a obra suprema da criação em que Deus pode espe-

lhar-Se adequadamente e receber d’Ele a glorificação e a honra que lhe é

devida.

Partindo do postulado do primado do amor, compreende-se como

tanto a predestinação como a própria criação, são efeitos e consequência

de um acto livre da vontade divina; e como ambas as acções se articu-

lam, se harmonizam e se compreendem num mesmo projecto divino, já

que a primeira o determina e a segunda o realiza. Ambas as acções estão

entre si subordinadas: a predestinação tem razão de causa final e a cria-

ção de causa eficiente, mas é o mesmo agente divino quem as actualiza e

as faz operativas.

O mundo, com as criaturas que há nele, foi feito e configurado em

vista aos eleitos. Todos os seres criados levam em si um impulso de

orientação intrínseca e uma intencionalidade natural até ao ser que tem a

sua própria consistência. Ou seja, as coisas não se esgotam no seu con-

teúdo empírico mas tendem até ao princípio que lhes deu origem e signi-

ficação e é a sua última razão de existência. Toda a realidade criada ten-

de para o seu autor e criador. Até Àquele por quem foram criadas.

Segundo Escoto, todo o ser busca a sua própria perfeição final na

imediata comunicação e comunhão com o ser superior, ao mesmo tempo

que estabelece uma relação vinculativa entre todos os demais seres; e

todos, conjuntamente, orientam-se para o “primeiro princípio”. De tal

modo que, na hierarquia dos seres, se aspira à perfeição mais elevada, do

inferior ao superior, do superior ao supremo, até concluir no homem

19

privilegiado, que é Cristo, para o qual se orienta todo o universo e, atra-

vés dele, se vincula a Deus.

Nesta dinâmica ascensional a perfeição do universo conclui-se no

ponto de união do Verbo divino com a natureza humana, ou seja, em

Cristo. Para esta visão cristocêntrica, o Doutor Subtil inspirou-se na

“recapitulação” e na “instauração” paulinas (Col 1, 20; Ef 1, 10). Cristo

é visto e considerado como síntese e ponto de convergência de todas as

criaturas e, portanto, o caminho privilegiado e excepcional que conduz

ao Pai. O cosmos, por conseguinte, participa da dignidade e do dina-

mismo desse ponto ómega, que é Cristo.

O universo não se pode reduzir à pura matéria, como nem as leis

mecânicas ou vitalistas são capazes de explicar completamente o dina-

mismo intrínseco da matéria e da vida. Vendo e interpretando o cosmos

a partir de Cristo descobre-se e percebe-se nele uma certa sacralidade

que implica, por parte do homem, especial consideração e um trato de

respeito e cortesia.

O cristocentrismo escotista oferece uma visão mística do universo.

O mundo apresenta-se como luminoso sacramento da divindade, um

grande altar onde se celebra a liturgia do Deus Criador. A liturgia do

universo vincula-se com a liturgia da Eucaristia porque em ambas está a

grande presença de Cristo. Essa comunhão e vinculação entre a liturgia

cósmica e a eucarística viveu-a Francisco de Assis em perfeita harmonia,

transformando-a em cântico de louvor. Mas o seu filho escocês conse-

guiu transcrever esse mistério cristológico numa esplêndida página de

teologia mística. O cosmos inteiro é um grande espelho límpido da

divindade, porque tudo nele é presença constitutiva e linguagem invoca-

dora. O universo glorifica a Deus porque tende para Ele, causa eficiente

e final certamente, mas, sobretudo, porque está dotado de um impulso

intrínseco que o encaminha para a sua meta convergente, o Cristo

ómega.

Na concepção escotista todo o universo é harmonia metafísica. O

universo material, na escala gradual e perfectiva dos seres, tem a sua

máxima expressão no homem que, por sua vez, leva em si o impulso de

se encontrar e complementar com o homem autenticamente perfeito que

é Cristo, síntese do divino e do humano, ponte vinculativa entre o

criador e a criatura.

O universo é o grande sacramento da presença escondida de Deus.

E o homem tem que dar voz e palavra articulada ao logos silencioso dos

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seres inanimados e irracionais que invocam o ser. “O homem está orde-

nado ao seu fim mediante o bom uso das criaturas e cai na desordem

pelo abuso das mesmas”3.

Para Escoto o homem deve estar revestido de grande cortesia natu-

ral e fraterna com todos os seres, e não somente com alguns, porque por

vezes sucede que se dá um tratamento franciscano às coisas e aos ani-

mais e tem-se um comportamento cruel com os homens e indiferente ou

negligente para com Deus.

Cristo é o vértice da pirâmide como síntese conclusiva e perfectiva

da ordem cosmológica, lógica e teológica. A perfeição do universo, que

o Doutor Subtil apresenta como uma pirâmide ascensional, não se detém

no homem, compêndio do cosmos, mas conclui-se em Cristo, enquanto

união hipostática do homem Jesus com o Verbo divino.

“O cone ou a pirâmide do homem, com o qual se vincula

a Deus, é ainda de uma largura menor, porque se polariza no

único homem Cristo, e também de uma altura racional maior

que qualquer outro homem. Observa a ordem das coisas e o

vínculo das mesmas que se erguem em forma de pirâmide”4

A pirâmide cosmológica e cristocêntrica parte progressivamente da

matéria, passa pelo biológico, pelo vital e pelo humano até terminar

numa apoteose cristológica. Cristo, enquanto ponto ómega e culminação

vital e cósmica, está no ápice da pirâmide ascensional de todos os seres

criados. O cristocentrismo, pois, é um postulado teológico e, ao mesmo

tempo, um princípio hermenêutico de compreensão filosófica, cosmoló-

gica, histórica e antropológica.

Assim, o vértice da pirâmide escotista podemos colocá-lo em cima

ou em baixo, pois este ponto cimeiro, ou abissal, é a síntese suprema de

tudo o que o precede. Se o vértice da dita pirâmide se coloca em baixo,

teremos a redução das grandes magnitudes até ao totalmente pequeno,

expresso em energia, em força, em vazio dinâmico.

Segundo a Física moderna, que parte de Galileu Galilei e I. New-

ton, entre outros, até à actual de A. Einstein, W. Heisenberg, N. Bohr,

M. Planck, etc., a matéria e a energia são convertíveis. Agora a matéria

3 J. D. ESCOTO, De rerum principio, q. 13, a. 1, sec. 6 (ed. Vivès IV, 497). 4 Id. q. 10, a. 4 (ed. Vivès IV, 453).

21

pode ser estudada e analisada com maior precisão até penetrar nas suas

derivações energéticas. Desde as realidades, que percebemos pelos sen-

tidos, passa-se ao átomo até chegar às partículas elementares, aos

quarks, para desembocar no campo da energia, que implica o cruzamen-

to de partículas e de energia, até aterrar finalmente no vazio quântico,

que é a matriz última da que tudo procede e na que tudo desemboca.

Esse núcleo, ou vazio, não se consegue definir, e escapa a qualquer

conceitualização ou verbalização, segundo o que afirmam os cientistas.

Mas, o que há para além desse vazio dinâmico? Silêncio. Por este nosso

universo pode-se percorrer desde a matéria mais gigantesca até desem-

bocar nessa realidade inominável que se pode considerar como energia

simbólica ou mística. Ou seja, que o mundo da matéria pode ir desmate-

rializando-se até se transformar em energia, em força e em espírito (!?).

Certa vez perguntaram a um índio sobre o que é que se apoiava a

Terra para se suster. Ele respondeu que era sobre um elefante. E o ele-

fante em que é que se apoia? Foi a pergunta seguinte, ao que ele respon-

deu que era sobre uma tartaruga. E a tartaruga, sobre o que é que se

apoia? Insistiu-se. Então o índio, depois de um longo silêncio, respon-

deu: Pois, não sei! Esta parece ser a resposta de tantos cientistas à per-

gunta sobre qual é o fundamento último em que se apoia e sustenta o

universo. É lugar comum dizer que os cientistas sabem muitas coisas,

mas não se pode negar que o que ignoram é muito mais do que aquilo

que sabem. Esse fundo abismal surge sempre como um grande mistério.

Mas, se colocamos o vértice da pirâmide em cima, como acima da

esfera terrestre, o percurso seria o seguinte, desde o invisível ao visível:

a litosfera, formada pelas pedras, pelo magma e pelas rochas; a hidrosfe-

ra com a grande quantidade de água; a atmosfera ou o ar que envolve o

planeta; a bioesfera composta por todas as realidades em que se expressa

a vida. Mas não poucos cientistas postulam outra dimensão, chamada

noosfera, ou esfera do espírito. Isso deve-se a que, analisando a comple-

xidade do cérebro humano, a misteriosa trama que se estabelece entre as

pessoas, a riqueza das culturas, a intercomunicação dos povos, raças e

continentes, mediante os meios de comunicação, etc., pode-se razoavel-

mente lançar a hipótese de que está a surgir uma consciência terrestre

colectiva, que seria como o cérebro universal. Na perspectiva escotista,

podemos pensar na cristoesfera como a esfera de que tudo procede e

para a qual tudo olha; e onde tudo se realiza como síntese suprema do

ser, do actuar e do significar.

22

No processo cósmico ascensional, tal como o articula Escoto, o

homem tem um lugar privilegiado e uma missão específica, pois ele é,

de certo modo, o fim de todas as realidades sensíveis, porque foram

criadas e queridas graças ao homem predestinado.

“A razão total da unidade do homem e, por conseguinte,

de toda a natureza, baseia-se no facto de o homem ser o fim de

toda a natureza, o qual foi concluído em Cristo, dado que a sua

alma e o seu corpo possuem uma excelência sobre todas as

almas e sobre todos os corpos. Aí está o fim particular desta

natureza, ou seja, o homem bem-aventurado”5.

O impulso universal de tudo o que existe na natureza tende para

uma síntese suprema de convergência e de realização, já que tudo o que

ascende converge, e Jesus Cristo assume e resume esse ponto supremo

de unidade e de meta intencional. Jesus Cristo é o cume e a apoteose do

processo cósmico, a conclusão explicativa e clarificadora do problema

humano e a chave de compreensão da própria história.

O homem representa e vive a dialéctica inacabada da continuidade

e da ruptura na ordem cosmológica, biológica e cultural. Empregando

aqui a tese do filósofo X. Zubiri, sobre a religação, pode sustentar-se que

o homem está religado existencialmente com o mundo material, biologi-

camente com o mundo vital, antropologicamente com a comunidade

humana e teologalmente com Deus, através de Cristo. O homem, tendo

sido criado à imagem e semelhança de Cristo, tem uma natureza teologal

e é essencialmente cristiforme.

Aquilo que faz o homem semelhante a Cristo, ele não o adquire

num processo biológico e histórico, mas pertence-lhe constitutiva e

estruturalmente, enquanto criado e destinado a vincular-se existencial-

mente com Cristo. A natureza humana, desde a sua origem e no processo

evolutivo do cosmos, está orientada intencional e constitutivamente para

encontrar-se no corpo salvífico de Cristo, como membro do Salvador

universal. A antropologia tem o seu coroamento e completude na cristo-

logia. Cristo, homem-Deus, é a expressão mais acabada e perfeita do

mistério do universo e do humano.

5 De rerum principio, q. 9, a. 2, sec. 4 (ed. Vivès IV, 435).

23

Na concepção doutrinal de Escoto, Cristo ocupa o lugar mais cen-

tral na compreensão do universo, do homem e do mistério da salvação,

porque tudo parte de Cristo e tudo tende para Ele para unir-se finalmente

no Uno-trino. Portanto, um humanismo real e integral deve ser cristifor-

me, já que toda a realidade criada é crística. O cristocentrismo escotista

interpreta magistralmente a cristologia paulina, na qual Cristo é a ima-

gem de Deus invisível, o primogénito de toda a criação, Aquele pelo

qual tudo foi feito e no qual Deus nos escolheu antes da criação do mun-

do, predestinando-nos a sermos seus filhos adoptivos (Ef 1, 3-14).

Paulo VI, na Carta Apostólica Alma parens (14 de Julho de 1966),

proclamava Escoto como o cantador da centralidade de Cristo:

“Colocando sobre toda a ciência o primado universal de

Deus, obra mestra de Deus, glorificador da Santíssima Trin-

dade e redentor do género humano, rei na ordem temporal e

sobrenatural.”

Se Escoto, enquanto filósofo, possui uma metafísica própria e

peculiar, também, enquanto teólogo, tem uma visão doutrinal unitária e

coerente, que, partindo da fé e do dado da revelação, sublinha que o

amor é o modo de ser, de estar e de actuar de Deus. E deste postulado

tira todas as conclusões e consequências teológicas, antropológicas e

éticas derivantes e concomitantes. Se o amor é a causa motriz e operati-

va das acções divinas no horizonte da criação, é também causa de comu-

nicação que se difunde aí onde Deus cria os seres que procuram o

máximo bem e a máxima felicidade.

Nesta dinâmica do amor criativo e comunicativo, Cristo é o fim

primeiro e operativo em relação com todos os seres criados, dos quais é

modelo e fundamento referencial. O homem, aspirando a vincular-se a

esta dignidade superior, não se rebaixa, mas antes dignifica-se e encontra

nela a sua definitiva perfeição.

O amor para Escoto não é um sentimento romântico nem se reduz

a uma simples sensibilidade psicológica, mas é um princípio constitutivo

e operativo, característico dos seres racionais. Esta filosofia do amor

sustenta a atitude de participação comunitária e é fundamento de uma

antropologia aberta e relacional, com inevitáveis repercussões vinculan-

tes na sociedade, na natureza e em todos os seres que a integram.

24

O cristocentrismo implica uma visão especial de toda a criação,

pois a natureza é crística e as coisas naturais não podem reduzir-se à

simples dimensão empírica, já que todos os seres naturais são resultado e

expressão do amor trinitário e têm a sua consistência no alfa e ómega do

mundo. A natureza é também linguagem, expressão e símbolo do seu

autor. A criação, a incarnação e a redenção são três manifestações e

perspectivas diversas e complementares do amor unitário do Uno-trino.

Partindo de uma cristologia cósmica, poder-se-á elaborar uma visão mais

adequada do mistério da criação de que tanto necessitamos.

O universo está estruturado numa concepção piramidal, que par-

tindo do reino inorgânico, passando pelo orgânico e animal, chega ao

homem numa unidade de relação e de significação, de participação e de

comunhão, concluindo em Cristo como meta conclusiva de um processo

cósmico e salvífico. Face à natureza Cristo não é um suplemento ou um

ornamento, mas o alfa e o ómega, o princípio de plenitude que dá coe-

rência e consistência a todos os seres naturais.

Escoto vê Cristo como a Sabedoria que estava em Deus antes da

criação do mundo e por meio do qual todas as coisas foram feitas (cf.

Prov 8). Ele é o meio divino em que tudo o que existe subsiste e persiste

(cf. Col 1, 17). Se em Cristo têm consistência todas as coisas, pode afir-

mar-se que o sangue derramado por Ele alcança não só os homens mas

também todos os seres da criação, animados ou inanimados. De facto, no

corpo ressuscitado de Cristo está assumida toda a criação que geme com

gemidos inefáveis quando se submete à escravatura da violência.

No Ressuscitado a criação inteira sente-se liberta e totalmente

redimida, pois n’Ele todas as coisas têm a sua consistência e apoteose.

“N’Ele foram criadas todas as coisas, no céu e na terra (…) tudo foi

criado por Ele e para Ele. Ele é anterior a todas as coisas e n’Ele tudo

subsiste” (Col 1, 15-17). Se Cristo é tudo em todas as coisas, segundo S.

Paulo, Ele actua no universo, não só na sua criação mas também na sua

ressurreição.

Escoto segue S. Paulo na sua visão cristocêntrica; e daqui deduz

todas as consequências teológicas e cosmológicas. Paulo aplica a Cristo

a totalidade cósmica, a plenitude (pléroma) (Col 1, 19; 2, 2; Ef 1, 22; 4,

10). A plenitude crística enche o universo enquanto o enche do Espírito

e, por Ele, o cosmos retoma vitalidade. O ressuscitado enche o universo

com a sua vida nova e leva à plenitude o que iniciou na criação. O cos-

25

mos, e todas as coisas que existem nele, adquirem coerência e sentido na

sua referência a Cristo, cabeça de toda a criação.

O Verbo eterno, que se fez Verbo encarnado, converte-se em Ver-

bo transfigurado. E neste processo divino estão vinculados todos os seres

da criação, tanto humanos como naturais. Quem abraça o mundo e pene-

tra nele sente a energia que o habita e lhe dá consistência. Essa força

profunda sustenta-a Cristo. Por isso, Francisco de Assis celebra o grande

mistério do mundo como sacramento da presença visível de Deus, que,

em Escoto, tem o rosto de Cristo e, em S. Boaventura, a marca da Trin-

dade.

Nesta perspectiva é evidente que o motivo da encarnação do Filho

de Deus não se deve ao pecado humano, mas a uma razão muito mais

profunda: o grande amor livre e gratuito de Deus, que quis pôr fora de si

alguém que o amasse como Ele mesmo se ama. E esse Alguém é o Ver-

bo encarnado, Cristo. Por esta razão divina o mundo adquire sentido

divino e profundidade de eternidade. Por este motivo crístico, o cristão

não só deve evitar a destruição da natureza mas, desde a sua fé cristã,

tem de ser o guardião, defensor e protector do mundo natural como

sacramento visível do amor divino.

Face aos múltiplos e graves problemas ambientais, o cristocen-

trismo oferece-nos uma perspectiva teológica extraordinária para

implementar uma ecologia planetária e para criar relações mais humani-

zantes entre os homens e a natureza, articuladas e resumidas numa ética

ambiental como alternativa às éticas biocêntricas e ecocêntricas, que se

estão a impor, e onde o ser humano fica reduzido a um simples animal,

ainda que seja racional.

Se “toda a ciência é cosmologia”, e nisso reside o seu valor,

segundo a tese de K. Popper, pode dizer-se também que um sistema teo-

lógico, filosófico ou científico, é válido e tem interesse quando é lumi-

noso e é capaz de garantir uma importante cosmovisão e impelir o

homem a admirar-se diante da vida e a contemplar os enigmas do nosso

mundo. O cristocentrismo escotista não fica no plano meramente teórico

e especulativo, mas tem o significado e conotação profundamente exis-

tencialista, uma vez que a pessoa de Jesus Cristo ilumina e clarifica o

sentido da vida e o modo de ser do homem no mundo, na sociedade, na

história. Oferece uma elevada e nobre visão do universo que implica um

comportamento de respeito, de vigilância e salvaguarda da natureza e de

todos os seres que a compõem.

26

O SABER COMO CONTEMPLAÇÃO OU EXPLORAÇÃO

O saber, em sentido franciscano, conduz necessariamente à acção.

Na cosmovisão que nos oferece este mestre franciscano, a natureza não é

só um dom divino, mas é sobretudo o grande complemento do homem.

Este não é nada sem aquela e aquela deve ser protegida por este. Entre

ambos dá-se a grande irmandade que deve desembocar numa atitude de

respeito, guarda e defesa. Os pressupostos filosóficos do sistema escotis-

ta oferecem-nos os fundamentos culturais e éticos para alcançar uma

ecologia planetária, pois todo o universo é harmonia, ao mesmo tempo

que exige o imperativo humano para defender, promover e respeitar o

mundo natural maravilhoso, no qual viver é conviver no plano humano e

com grande sentido de fraternidade universal.

Para conseguir esta grande fraternidade o homem tem um papel

fundamental e uma missão cósmica, pois é ele quem preside à criação.

Para isso requer-se um conhecimento profundo do cosmos e uma grande

simpatia fraterna que nem sempre os cientistas são capazes de reconhe-

cer e de evidenciar. É sabido que a imagem que alguns cientistas ofere-

cem não erra no que afirma mas antes no que silencia. A ciência moder-

na descobriu a linguagem matemática e as leis da física que regulam o

universo, mas nem sempre conseguiu penetrar no mistério profundo que

o habita.

A ciência, a partir do século XVII, conhece um desenvolvimento

espectacular que ainda não acabou. Este desenvolvimento científico

pode resumir-se como a passagem da contemplação à manipulação. O

amor pelo conhecimento, base do crescimento da ciência, tem em si

mesmo um duplo impulso. Pode buscar-se o conhecimento de um objec-

to porque se aprecia e se ama, ou porque se deseja ter sobre ele poder e

domínio.

B. Russel, no seu livro A perspectiva científica, faz uma profunda

análise dos contrastantes impulsos pelos que se movem os cientistas que

produzem diversos tipos de conhecimento:

“O primeiro impulso conduz ao conhecimento de tipo

contemplativo; o segundo ao tipo prático. No desenvolvimento

da ciência, o impulso-poder prevalece cada vez mais sobre o

impluso-amor. O impulso-poder está representado pela indús-

tria e pelas técnicas governamentais. Está também representa-

27

do pelas conhecidas filosofias do pragmatismo e instrumentali-

zação (…). A ciência, nos seus começos, deveu-se a homens

que tinham amor ao mundo. Percebiam a beleza do mar, dos

ventos e das montanhas. Porque amavam todas estas coisas, os

seus pensamentos ocupavam-se delas e desejavam entendê-las

mais intimamente do que a mera contemplação exterior torna-

va possível”6.

Segundo Russell os primeiros cientistas eram homens do pensa-

mento apaixonado pelo saber e, por essa intensidade, derivou o mundo

moderno. Mas gradualmente, à medida que a ciência se ia desenvolven-

do, o impulso-amor, que lhe deu origem, foi sendo substituído pelo

impulso-poder que tomou o controlo em virtude da sua eficiência.

Assim, o homem de ciência, guiado e motivado pelo impulso dos inte-

resses, converteu-se em tirano da natureza. Desse modo, a ciência foi

substituindo o conhecimento-amor pelo conhecimento-poder e eficácia.

Esta é a origem psicológica das crueldades e desastres que é capaz de

cometer mediante uma técnica irracional e descontrolada ao serviço de

poderes omnipotentes e sem consciência.

De uma ciência que brota do amor contemplativo, passou-se a uma

ciência de interesse, que perdeu o sentido do mistério do universo e, com

isso, essa ciência desenvolveu-se sem cons-ciência. A dimensão científi-

co-técnica deve ser domesticada e integrada no horizonte vinculante

homem-natureza como dois pólos complementares e solidários. Median-

te a profunda humanização da natureza e das suas coisas, o homem

alcançará uma nova forma de existência no mundo e um estilo mais cor-

tês e fraterno de tratar os seres naturais, de convivência social e pacífica

com o meio ambiente.

A compreensão da natureza, em sentido moderno, traduz-se e

expressa-se em termos mecanicistas. E com isso o mundo perde o seu

mistério e o cientista terá a permanente tentação de submetê-lo ao seu

capricho. A visão de um mundo determinista e a descrição do mundo

cheio de átomos e de vazios colocou a muitos cientistas o que se costu-

ma chamar a ansiedade do homem moderno.

Como pode o homem reconhecer-se em linguagem de átomos e de

partículas se não chega a uma visão arquitectada e sinfónica do univer-

6 B. RUSSELL, La perspectiva científica, Barcelona 1981, 214-216.

28

so? Como relacionar homem e natureza? O sentimento de estranheza do

ser humano no mundo, interpretado como uma máquina, expressou-o

dramaticamente Monod em O azar e a necessidade:

“É necessário que o homem desperte do seu sono milenar

para descobrir a sua solidão total, a sua radical condição de

estrangeiro. Ele sabe agora que, como um nómada, está à mar-

gem do universo onde vive. Universo surdo à sua música, indi-

ferente às suas esperanças, aos seus sofrimentos e aos seus

crimes”7.

Que distante está esta abordagem da visão franciscana enquanto

fraternidade e solidariedade entre o humano e a mãe-irmã natureza! O

homem, como um nómada no universo, sente-se apátrida, estranho e

incapacitado de se integrar nele. Mas desta estranheza pode surgir a ten-

tação técnica de dominar o mundo, como rival, e explorá-lo como um

colono devastador. Essa é a tragédia actual do nosso meio ambiente!

“Muitas e tremendas forças tem a vida, mas nenhuma é compará-

vel ao homem” recita o famoso Coro de Antífona de Sófocles. Por vezes

a técnica omnipotente apresenta-se como o novo Prometeu, arrogante,

promissor e redentor. Mas não se deve esquecer que a civilização do

homem e a violação da natureza caminham frequentemente lado a lado

com um destino trágico que se deve evitar.

A ciência não pode definir-se em termos de oposição entre o

homem e a natureza, mas em clave de comunhão homem-natureza.

Assim, as imagens culturais que se forjaram do universo já não servem,

há que encontrar outras. São insuficientes as imagens do mundo como

relógio, criada pela ciência clássica, e a de mundo máquina, elaborada

pela revolução industrial. Haverá que passar para imagens de mundo

como morada, onde o homem e a natureza se inter-relacionam como

ingredientes necessários dum mesmo destino.

Ao mundo como lar o homem pode explorá-lo para o conhecer,

para o melhorar e para o poder habitar com o sentimento tranquilo de se

sentir na sua própria casa. Da imagem de um mundo frio, estranho e hos-

til, tem de se passar a uma concepção do universo como acolhimento,

7 J. Monod, El azar y la necesidad, Barcelona 1981, 184.

29

pacificação e fraternidade. Só assim a racionalidade matemática se trans-

formará em racionalidade estética e em impulso criador.

Não se trata de que a ciência renuncie à sua tarefa específica, mas

que, abandonando a sua arrogância mítica, saiba também escutar e res-

peitar a linguagem silenciosa da natureza. É a proposta das novas alian-

ças que I. Prigogine nos assinala como resultado das suas profundas

investigações científicas:

“O conhecimento científico, tirada dos sonhos de uma

revelação inspirada, ou seja, sobrenatural, pode também des-

cobrir-se hoje em dia como uma escuta poética da natureza e

processo natural dentro da natureza, processo aberto de produ-

ção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo.

Chegou o momento de novas alianças, ligadas desde sempre,

durante muito tempo desconhecidas, entre a história dos

homens, a história das suas sociedades, dos seus conhecimen-

tos e a aventura exploradora da natureza”8.

Nem a natureza física nem a vida nem o homem se podem enten-

der isoladamente, mas antes em inter-relação e interconexão, que consti-

tuem um único universo, e que tem a sua máxima expressão no conceito

de vida que vai desde as formas mais simples até às mais complexas. Por

isso, cruzando natureza e vida, descobriremos um novo lugar do homem

no cosmos.

Quando nos inserimos no universo e o investigamos com paixão e

amor intelectual, descobrimos grande quantidade de elementos que o

integram, que vão desde as partículas elementares até aos seres vivos

mais evoluídos, como é o homem; desde o nosso planeta até às galáxias

mais distantes, desde o mundo visível aos possíveis. Em tudo isto se

observa uma complexidade crescente de forma e de estruturas que ultra-

passam as concepções intelectuais mais audazes.

Mas, por outro lado, descobre-se que, nessa descontinuidade, exis-

te uma profunda homogeneidade e solidariedade. O grande achado da

ciência moderna foi, precisamente, o da homogeneidade do universo,

uma vez que todo ele é composto da mesma matéria, dos mesmos ele-

mentos e das mesmas constantes.

8 I. Prigogine, La nueva alianza. Metamorfosis de la ciencia, Madrid 1983, 282.

30

Esta homogeneidade e solidariedade fazem do universo uma imen-

sa rede de relações, de campos, de forças e de leis comuns para a sua

compreensão e inteligibilidade. A continuidade e descontinuidade che-

gam a solidarizar-se através da dialéctica e da integração, que, salvo as

diferenças de cada uma das formas do mundo inorgânico, vivente e

humano, se vinculam e solidarizam na unidade do todo. O homem, como

ser excepcional no universo, prolonga o processo de unificação desde o

cosmos e é um ponto privilegiado para poder ver e entender a natureza

em que vive. Compreender faz parte do existir. E o existir implica parti-

lhar, celebrar e solidarizar-se com a maravilhosa sinfonia da vida.

PARA UMA CULTURA DO HABITAR

Desde há alguns anos destacados analistas propõem uma ética

especial face à situação dilacerante do meio ambiente. Ou seja, que a

técnica e a ciência exigem uma consciência. Cabe destacar aqui o livro

de Hans Jonas, O princípio de responsabilidade, que, ainda que publica-

do em 1979, continua a ser um estudo mestre nas suas reflexões e pro-

postas sobre as questões ambientais.

Se a ética social leva à moral do aqui e agora, a ética ecológica

projecta-se mais no futuro e propõe uma moral do aqui e do depois, pois

obriga a pensar nas gerações futuras e a actuar em consequência. A terra

não nos pertence, mas é património de todas as gerações. Por isso somos

responsáveis perante as gerações futuras que têm o direito a usufruir da

irmã madre terra como os antepassados e os actuais, já que é a casa

comum de todos.

João Duns Escoto não oferece uma ética ambiental, mas algo mais

profundo e essencial, como é uma cultura ecológica ou uma espirituali-

dade ecológica, se se preferir, que brota do sentimento de simpatia cós-

mica e implica e traduz um comportamento fraterno e de respeito pela

natureza e por todos os seres que a habitam tanto animados como inani-

mados. Mais do que uma ética oferece-nos uma mística e uma estética

do mundo e da vida. A ética baseia-se no tu deves, a estética no eu sinto,

a mística no eu participo, ainda que as três se complementem e convir-

jam num estilo próprio de existir e actuar.

O conceito de ética implica certamente um dever. Mas o dever

pode expressar-se numa ética de rigor ou numa ética de mínimos. Uma

ética, em geral, propõe até onde é permitido chegar e até onde se pode

31

transgredir. Não se propõe aperfeiçoar mas a não ferir ou ofender, o que

não é pouco mas não é suficiente.

Numa sociedade onde se dá um claro eclipse de valores, como se

reflecte no niilismo reinante, quem será capaz de oferecer normas con-

vincentes e razoavelmente operativas? Evidentemente que os Estados

têm a obrigação política e de justiça de emanar leis concretas para retar-

dar o desastre ecológico e compromissos para sancionar os transgresso-

res contra empresas e instituições poderosas tanto no que contaminam

como no que degradam. Mas requer-se também formar as mentalidades

e os corações de todos os habitantes, de todos os cidadãos normais, habi-

tantes usuais neste universo maravilhoso. Educar o cidadão normal para

que a vida ordinária seja mais sã, limpa e de melhor qualidade é já tomar

consciência da nossa responsabilidade do aqui e do depois.

A ecologia ambiental necessita da ecologia mental. A ecologia

social deve fundamentar-se na ecologia cordial. A ecologia global neces-

sita de um pensamento globalmente humanizado. A ecologia planetária

só se alcançará a partir de uma ecologia humanizadora. O desenvolvi-

mento sustentado não conseguirá ser sustentável se não se apoiar na sus-

tentabilidade de um pensamento sustentado e na visão global e harmóni-

ca do universo. Para tanto, os pressupostos antropológicos e cosmológi-

cos de Escoto podem ser orientadores de um novo amanhã na relação

homem-natureza e no máximo respeito por defendê-la e guardá-la.

Trad. Gonçalo Figueiredo ofm

33

ACTUALIDADE DE DUNS ESCOTO

NA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO

por Martín Carbajo Núñez, ofm

34

ACTUALIDADE DE DUNS ESCOTO

NA SOCIEDADE DE INFORMAÇÃO *

Sete séculos depois da morte, o Beato João Duns Escoto é um

modelo que gera simpatia na sociedade de informação1, tanto pelo seu

pensamento como pela atitude vital. Efectivamente, apesar das limita-

ções impostas pela distância e da diversidade da época em que viveu2,

Duns Escoto oferece bases seguras para estabelecer relações pacíficas

num mundo cada vez mais interdependente.

Para aprofundar esta ideia, indicaremos a necessidade do diálogo

no nosso mundo mediático, para mostrar, depois, como a doutrina esco-

tista pode favorecer a abertura ao diálogo com o Outro e com os outros

na sociedade actual.

1. DUNS ESCOTO E A NECESSIDADE DE DIÁLOGO HOJE

A nossa sociedade oferece inumeráveis possibilidades de comuni-

cação à distância (Net e meios de comunicação social (MCS)3 e de

encontro interpessoal (migrações, turismo, viagens), mas, ao mesmo

tempo gera particularismos e descriminações.

* O artigo aqui apresentado foi publicado em Giovanni Duns Scoto, Studi e recerche nel VII Centenario della

sua morte. Em honra do P. César Saco Alarcón. Ao cuidado de Martiín Carbajo Nuñes (Medioevo, 15).

Roma, Ed. Antonianum, 2008, vol. II, 471-506

1 A expressão “sociedade de informação” designa um tipo de sociedade onde as tecnologias de informação são o elemento fundamental das actividades sócio-económicas. Sobre o assunto cf., R. WHITAKER, The end

of privacy. How total surveillance is becoming a reality, New York, 199, 48 2 Cf., C. KOSER, El character práctico de la theologia según Juan Duns Escoto, Carta do Vigário geral ofm, em Verdad y Vida, 24 (1966) 15-25. 3 MCS = Meios de Comunicação Social

35

A - Duns Escoto, modelo de diálogo

Neste contexto cheio de ambiguidades, Duns Escoto pode servir de

modelo e de base teórica para potenciar o diálogo e a abertura gozosa a

Deus, aos outros e à criação. Não é por acaso que o Doutor Subtil foi

proposto pelo magistério recente como modelo de diálogo inter-religioso

e intercultural: “na nossa época, rica em imensos recursos humanos,

técnicos e científicos (…), o beato Duns Escoto apresenta-se (…) como

mestre de pensamento e de vida para a Igreja e para toda a humanida-

de”4.

Paulo VI propôs Duns Escoto como modelo do espírito dialogante

que o Concílio Vaticano II incrementou, e que ele mesmo adoptou como

objectivo do seu pontificado5. O Papa recorda as palavras de João de

Gerson, que afirma que Escoto sempre se guiou “não por o afã singular

de vencer, mas pela humildade de conseguir um acordo”6. Escoto, com

efeito, demonstra um ânimo sincero na busca da verdade, analisa com

atenção e espírito construtivo as posições contrárias ao seu pensamento e

evita desclassificações gratuitas ou pouco fundamentadas.

A doutrina e a personalidade do Doutor Subtil encaixam naquele

objectivo que Paulo VI propõe para o diálogo ecuménico7 e inter-

-religioso, assim como para o encontro com o mundo contemporâneo e

com o ateísmo8. Mais concretamente, o Papa espera que a figura de

Escoto ajude a incrementar o desejado diálogo com os anglicanos, tendo

por base as antigas tradições comuns. Nesse sentido, Escoto impõe-se

como figura muito significativa. Por um lado, foi sempre fiel ao magisté-

rio eclesiástico9, por outro, é também uma personagem ilustre da Grã-

4 JOÃO PAULO II, Carta encíclica nas cerimónias de reconhecimento do culto litúrgico a Duns Escoto (20-3-

-1991), em Selectiones de Franciscanismo, n. 65 (1993), 164, nº 4. 5 Cf. PAULO VI, Carta encíclica Ecclesiam suam, (6-8-1964), em AAS (1964 609-659, nº 27: “A Igreja deve

dialogar com o mundo em que lhe toca viver. A Igreja faz-se palavra; a Igreja faz-se mensagem; a Igreja

católica faz-se colóquio (…) o diálogo deve caracterizar o nossa trabalho apostólico. 6 JOÃO DE GERSON, Lecciones duae “Poenitemini” lect., alt., consid. 5, citado em Paulo II, Carta Apostólica

Alma parens, em AAS 58 (1966) 164, nº 17 7 Alma parens 14: “O tesouro teológico de suas obras pode-nos oferecer reflexões valiosas para “colóquios serenos”, entre a Igreja católica e as outras confissões cristãs. 8 Ut supra 11: Da sua doutrina “podem-se extrair armas resplandecentes para combater e afastar a mão negra

do ateísmo que obscurece a nossa época. 9 Ibid 16: Na realidade o rei Henrique VI da Inglaterra, quando rompe a comunhão com a Igreja de Roma,

manda queimar os escritos de Escoto, pois considerava-o um dos papistas mais notáveis.

36

-Bretanha. Além disso, a sua doutrina foi património comum, durante

três séculos, nas escolas daquele país10

.

Também João Paulo II evidencia a exemplaridade de Escoto no

sentido de “um diálogo sério na busca da unidade”11

e confirma que

“continua ainda hoje um pilar da teologia católica, um mestre original e

rico de impulsos e estímulos”12

.

B – O diálogo, necessidade urgente

Se no período posconciliar se propunha o diálogo como atitude

fundamental no encontro da Igreja católica com os outros crentes e com

o mundo secularizado, actualmente continua a ser considerado uma con-

dição indispensável para a convivência pacífica numa sociedade cada

vez mais inter-relacionada. Baum afirma que o dilema actual da huma-

nidade consiste em “falar juntos ou morrer juntos”13

.

Hoje o próximo não é só quem vive ao lado, no espaço ou no tem-

po. Qualquer acção individual, por mais pequena e mais localizada que

seja, pode ter consequências imprevisíveis para o resto da humanidade e

até para toda a criação. Sucessos que noutras épocas ficavam circunscri-

tos a uma região, fazem, hoje, sentir a sua influência imediata mesmo

nos lugares mais longínquos do planeta. “O bater das asas de uma bor-

boleta no Brasil pode desencadear um tornado no Texas” (E. Lorenz,

1979).

A queda das barreiras espácio-temporais abre enormes possibilida-

des, mas também traz questões inquietantes14

. Jonas afirma que a ética

tem de ser profundamente reformulada, para responder aos novos desa-

fios15

. Tratar-se-ia de traduzir em termos éticos, o consenso que já existe

sobre a defesa dos direitos humanos. Desta forma, se evitaria que muitos

10 Ibid, 13-14. 11 JOÃO PAULO II, “Corfermazione del Beato Scoto e proclamazione della beata Dina Bélanger”, nº 4, em Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XVI/1 (1993) 710. 12 João Paulço II, “Discurso à comissão escotista”, 16-02-2002, em L’Osservatore Romano (1-03-2002), nº2.

De Escoto, diz o Papa, ressalta “a sua esplêndida doutrina sobre o primado de Cristo, sobre a Imaculada

Conceição, sobre o valor primário da Revelação e do magistério da Igreja, sobre a autoridade do Papa e sobre

a possibilidade de a razão humana tornar acessíveis, pelo menos em parte, as grandes verdades da fé e de

demonstrar a sua não contradição”. 13 Z. BAUM, “Parlare insieme o morire insieme: dilemma di tutto il pianeta, em Vita nostra 11 (2003) 14 João Paulo II, “Messagio per la giornata mondiale delle migrazione 2001”, 2-02-2001, nº 2, em

Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIV/1 287. 15 H. JONAS, Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, Frankfurt

am Main 19845, 15.

37

busquem refúgio em novos tipos de funda-mentalismo religioso, nacio-

nalista ou ético16

.

O risco do pensamento único e do colonialismo cultural provoca

reacções defensivas, frequentemente incontroladas. Huntington prevenia

o perigo de um crescente conflito entre civilizações17

. Para o evitar, a

Assembleia Geral da ONU proclamou o ano 2001 como “Ano das

Nações Unidas do Diálogo entre civilizações”18

. As propostas de diálogo

intercultural sucederam-se até aos nossos dias19

.

C – Muita informação mas pouca comunicação

Se é verdade que o diálogo a nível político e cultural é imprescin-

dível, o mesmo acontece a nível pessoal. A “rede social20

” permite que

naveguemos por um imenso oceano de informações, facilita a comunica-

ção global e instantânea e dá-nos a possibilidade de ir ao encontro de um

mundo virtual que ultrapassa as distâncias e as barreiras do tempo.

Podemos ter sensação de que o mundo inteiro nos fica ao alcance das

mãos sem sair da nossa casa, sem necessidade de correr riscos e sem

assumir responsabilidades. Quase sem nos darmos conta, podemos ficar

enredados nesse espaço virtual domesticado, terminando por fugir instin-

tivamente da dura realidade de cada dia e do exigente encontro com o

outro.

A comunicação virtual empobrece a relação ao pôr de lado a lin-

guagem corporal, os gestos, o olhar, a proximidade, o tacto. Já Platão

dizia que Sócrates tinha percebido alguns destes problemas na escrita.

Negava-se a usá-la porque a considerava algo material (de categoria

inferior), algo morto, sem interlocutor definido que possa apresentar

possíveis objecções, um meio que não nos pode levar à verdadeira com-

preensão das ideias. Mas na realidade, a comunicação oral em si mesma

não é suficiente. A busca da verdade ‒ segundo Sócrates ‒ exige diálogo

16 Sobre as propostas éticas para conferir um rosto humano ao processo de globalização, cf.: R. MANCINI,

Etiche della mondialitá, Assis 1996, 15-198; Cf., L. BOFF, Ethos mondiale. Alla ricerca di un’etica comune

nell’era della globalizzazione, Torino, 2000, 31-59. 17 S.P. HUNTINGTON, The clash of civilizations and the remaking of the world order, New York, 1997. 18 NACÕES UNIDAS, A/Res/53/22, 16-11-1998. 19 Em 21-09-2004, na 50ª Assembleia Geral da ONU, o primerio ministro espanhol, José Luís Zapatero,

retomava essa ideia para propor uma “Aliança de civilizações”, centrando-a especialmente nas relações entre

Ocidente e o mundo muçulmano. 20 M. CASTELLS, “Materials for an exploratory theory of Network society” em Britisch Journal of Sociology

51/1 (2000) 9-10.

38

e alguma simpatia entre um reduzido número de interlocutores capacita-

dos. Por isso rejeitava os charlatães, como os sofistas, que se dirigiam a

multidões21

.

Podemo-nos informar sem nos comunicar, podemos receber mui-

tos dados sem chegar a estruturar o nosso pensamento. Um dilúvio de

informações pode gerar a confusão em vez de acrescentar algo ao nosso

conhecimento; não é por falar muito que nos comunicamos mais. Dizia

Platão que um ser humano necessita de sete anos de busca silenciosa

para conhecer a verdade, e ao menos catorze para aprender a comunicá-

-la aos seus semelhantes… E Séneca perguntava ironicamente a Lúcio,

que lhe propunha inumeráveis sentenças; Haec sciam? Et quid igno-

rem22

?

O diálogo respeitoso ajuda-nos a ser reflexivos e a superar tanto a

homogeneização, que anula a riqueza das matizes, como o relativismo,

que nega os valores23

. Temos necessidade de desenvolver a capacidade

gratuita, gozosa, responsável, para poder caminhar juntos até a uma

humanidade reconciliada.

II – BASES ESCOTISTAS PARA UM AUTÊNTICO DIÁLOGO

Paulo VI afirmou que a escola Franciscana tem em Duns Escoto o

seu representante mais qualificado24

. Nesta linha de pensamento valori-

za-se o voluntarismo, que se contrapõe ao frio intelectualismo da filoso-

fia moderna25

. Partindo da liberdade divina e do seu amor incondicional

pelo homem concreto, o voluntarismo rebate o dualismo cartesiano, que

contrapõe corporalidade e pensamento, matéria e espírito26

. Opõe-se

21 PLATÃO, II Fedro, nº 275, em G. Modugno, ed. Platone. Le opere, X, 31 vol. Aquila, 1929, 186 22 Cf. PISARRA, “Laberinti dell’informazione”, em P. CARETTI – A. PIERRETTI – P. PISARRA, Informazione,

manipolazione e potere, Cinisello Balsamo, 1998, 31. 23 JOÃO PAULO II, “Discurso aos membros da Academia Pontifícia das Ciências Sociais”, 27-04-2002, nº 4,

em Insegnamenti di Giovanni Paolo II, XXIV / 1 (2001) 802. Cf. A. TOURAINE, “Faux et vrais problèmes”,

em M. Wieviorka, ed., Une société fragmentée? Le multiculturalisme en débat, Paris, 1997, 206. 24 Alma parens 6. “Ele é mestre e guia da escola franciscana”. 25 Cf.J. DUNS ESCOTO, Reportatio Parisiensis, (= Rep.), IV d. 49 n. 11, em L. Vivès, ed. Opera omnia, vol. 1-

-26, Paris 1891-1895 (= Vivès, XXIV 65: “Capacitas voluntatis perfectior est in via quam capacitas intellec-tus; igitur similiter et patria, quia non est alia capacitas hic er ibi.”. Cf. J. DUNS ESCOTO, Ordinatio (= Ord.),

III d. 33 q. un. n. 58, em Commissione Scotista, ed., Opera Omnia, Città del Vaticano 1950 ss (=Vat.), X

168-169: “Simpliciter nobilior erit electio recta quam dictamen rectum” 26 Descartes (1596-1650) considera que a essência do ser humano consiste na sua capacidade de pensar (res

cogitans), enquanto o corpo pertence a uma outra categoria de substâncias (rex extensa). O ênfase que se dá a

39

também a qualquer tipo de gnosticismo que reduza o que é mais especí-

fico do ser humano a uma dimensão espiritual ou racional, como se tudo

tivesse de ser subjugado e orientado para favorecer um desenvolvimento

primitivo do pensamento27

.

Frente a filosofias que interpretam a realidade como algo necessá-

rio e inevitável, porque lógico, Escoto defende a liberdade como para-

digma interpretativo de tudo o que existe. A verdade sobre a realidade

humana e cósmica não é redutível à pura racionalidade. No princípio não

foi a lógica nem a necessidade, mas a vontade amorosa, livre a gratuita

de Deus; por isso, a verdade é inseparável da bondade28

. Se o mundo

existe não é porque seja racionalmente necessário, mas por amor. Tudo é

radicalmente contingente29

, mas ao mesmo tempo valioso, porque queri-

do e desejado.

A – “DEUS CHARITAS EST”

Escoto proclama que Deus é amor30

, e, portanto, um ser totalmente

livre, criativo e desinteressado31

. Actuando em modo ordenado32

, Deus

ama-se a si mesmo, porque só Ele é o Bem33

; em segundo lugar, ama-se

a si mesmo nos outros. Deus não é um “motor imóvel”, distante e ina-

cessível, mas um ser apaixonado, caloroso de sentimentos, que cria por-

que ama34

.

Perante a impassibilidade da potência divina na filosofia grega e

no deísmo, Escoto mostra um Deus que é amor e, por isso, não pode

permanecer indiferente perante a humanidade35

. O Sumo Bem é ao

um destes elementos, dará origem a tendências contrapostas da compreensão do humano (idealismo e mate-

rialismo), mas ambas caracterizadas por um forte dualismo. 27 Escoto afirma a prioridade da vontade para alcançar a beatitude a que estamos destinados. Rep. IV d. 49 q.

2 n. 20 (Vivès XXIV 630). 28 A verdade não pode reduzir-se à pura racionalidade. João Paulo II, Carta encíclica Fides et Ratio(=FR), 14-09-1998, n. 38. 29 J. DUNS ESCOTO, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis (= QQMetaph.), IX q. 15 n. 12, em

ID., Opera philosophica, The Franciscan Institute, St. Bonaventure, N.Y., 1997ss. (= Oph), IV 678. 30 1Jo 4, 8; Ord. I d. 17 q. 173 (Vat, V 222): “Deus sit formaliter caritas et dilectio”. 31 Deus não cria por interesse, mas por bondade: Ord. III d. 27 q. un. n. 19-20 (Vat. X 53-55). 32 Amar ordenadamente, significa que primeiro se deseja o fim e, depois, gradualmente, todo o resto segundo a sua aproximação a esse fim. Cf. Rep. III d. 7 q. 4 n. 4 (Vivès XXIII 303); Ord. III d. 32 q. un. N. 21 (Vat. X

136). 33 Rep. III d. 27 q. un. N. 7 (Vivès XXIII 135). 34 Cf. Rep. II d. 27 q. un. n. 3 (Vivès XXIII 135). 35 Cf. Ex 3, 7; 6,5: Deus escuta o grito dos oprimidos.

40

mesmo tempo a suma comunicabilidade, de forma totalmente livre36

.

Assim Deus torna possível e garante o diálogo que leva à fruição comu-

nicativa.

1 – Amor em absoluta liberdade

O ser e o actuar de Deus não estão determinados pela lógica nem

pela necessidade, nem estão subjugados a nenhum condicionamento ou

interesse37

. A liberdade faz parte da perfeição do ser38

. Deus ama-se a si

mesmo de forma ordenada e, amando ordenadamente, cria a diversidade

de tudo quanto existe. A sua actividade ad extra não é emanação neces-

sária do seu ser, mas fruto absolutamente livre e gratuito da sua vontade

amorosa. O seu actuar não é caprichoso, porque nada do que faz contra-

diz o seu próprio ser39

. Antes de tudo, Deus é40

.

Ao afirmar a total liberdade divina, Escoto nega que Deus deva

eleger necessariamente o que, segundo os nossos parâmetros racionais,

seria a opção adequada. Deus actua ordenadamente, realizando o que é

digno da sua própria bondade, mas sem estar condicionado por outros

factores externos a si mesmo. Deus é subsistente, independente de qual-

quer outro ente41

e totalmente livre para se comunicar. Não é a coerência

lógica que determina o agir de Deus, mas o amor.

Ao pôr a liberdade divina por cima da racionalidade do ser, Escoto

afirma que o que existe podia ter sido criado de modo diferente e nem

por isso perderia a sua coerência interna42

. No princípio de tudo está a

vontade livre de Deus, o qual não impede a racionalidade subsequente de

36 J. DUNS ESCOTO, Tractatus De primo principio, c. 3 conclusio 22, editado por M. Müller, Freiburgo, 1941,

56-60. 37 Cf. Ord. III d. 1 p. 1 q. 1 n. 49 (Vat. IX 21-22). Em Duns Escoto, “o primado da vontade põe de manifesto que Deus é sobretudo caridade”. Bento XVI, “Carta apostólica na ocasião do VII centenário da morte do

beato Duns Escoto, em Selecciones de Franciscanismo n. 113(2009) 253. 38 De primo principio, c. 3 conclusio 22 (Müller) 60). 39 Deus pode fazer tudo que não seja contraditório com a sua própria essência. Ord. I d. 7 q. 1 n. 52 (Vat. IV

129); Rep. IV d. 46, q. 4 n. 8 (Vivès XXIV 584). 40 O decisivo em Deus não é o querer ou o entender, mas a sua essência, manifestada na coerência consigo

mesmo. Só nele se dão todas as perfeições. Ord. IV d. 13 q. 1 n. 32 (Vivès XVII 689); Rep. I d. 8 q. 1 n. 1

(Vivès XXII 153). 41 Ord. I d. 19 q. 2 n. 54 (Vat. V 290): “Subsistere autem, id est «incommunicabiliter per se esse», convenit personae primo”. 42 O. TODISCO, Il dono dell’essere. Sentieri inesplorati del medievo francescano, Pádua, 2006, 47: “As

criaturas foram (são) desejadas não por serem melhores ‒ mais verdadeiras que os outros, mais racionais, mais harmónicas que outros…‒ mas são melhores porque são desejadas”. O leitor encontra na obra de Todis-

co uma exposição ampla e articulada da linha de pensamento que aqui vem expressa sobre Escoto.

41

tudo o que ele denomina existência. O único ser necessário é Deus, tudo

o demais é contingente, porque tudo é fruto de sua bondade e liberdade.

A absoluta liberdade de Deus, Sumo Bem, implica que nada se lhe

pode impor como necessário e universal. O bem não é tal por sua intrín-

seca lógica, mas porque Deus assim o quis, quando poderia ter configu-

rado de forma diversa43

. Deus não só é livre de criar, mas também de

escolher a constituição lógica interna de cada uma das criaturas.

A liberdade divina reflecte-se nos seres humanos, criados à ima-

gem de Cristo e, por isso, livres e criativos44

, capazes de responder posi-

tivamente ao amor divino («condiligentes») dentro dos limites da própria

criaturalidade45

. O pecado obscureceu a nossa semelhança com o Deus

trinitário, mas não anulou a natureza humana, criada para a glorificação

de Deus, isto é, para o diálogo e a doação de si mesmo por amor. Supe-

ra-se assim o pessimismo antropológico dos que consideram o homem

incapaz de altruísmo.

2 – Amor gratuito, que cria diálogo e comunicação

Escoto sublinha a absoluta liberdade de Deus e o seu amor gratui-

to, sem limites. Tudo o que existe é fruto absoluto do seu amor desinte-

ressado e tem como finalidade o amor, independentemente de qualquer

mérito ou qualidade46

. Nem sequer a alma de Cristo mereceu a sua gló-

ria. Tudo é dom.

O homem existe porque Deus (Sumo Bem) o amou gratuitamente.

Não fomos criados porque essa foi uma opção razoável e lógica, mas

porque Deus, na sua imensa bondade, assim o quis, quando podia ter

optado por inumeráveis outras possibilidades. No princípio de tudo está

a vontade livre e gratuita de Deus, o qual não impede que, uma vez cria-

do, cada ser tenha uma lógica própria e coerente.

Se existimos não é por termos direito a isso (argumento racionalis-

ta), mas por puro dom, porque Alguém quis que fosse assim (volunta-

rismo)47

. Antes de receber o dom da vida, não éramos nada; portanto,

todo o nosso ser é fruto da vontade divina, que quis chamar-nos à exis-

43 Ord. II d. 1 q. 2 n. 91 (Vat. VIII 48). 44 Rep. IV d. 15 q. 4 n. 38 (Vivès XXIV 246): “libertas este pretiossima res, et nobilissima quae est in anima,

et per consequens in homine.” 45 Rep.I d. 17 q. 2 n. 7 (Vivès XXII 211). 46 A criação é fruto da vontade divina. Ord. II d. 1 q. 2 n. 91 (Vat VII 48). 47 Ord. I d. 8 p. q. un. N. 300 (Vat. IV 325).

42

tência, podendo optar por outras infinitas possibilidades. Por isso, tudo

quanto existe é ontologicamente contingente, fruto da vontade amorosa,

livre e gratuita de Deus. Nascemos como dom e estamos chamadas à

dádiva.

A actividade divina ad extra é sempre fruto do amor e orientada

para o amor. Criando, Deus manifesta a sua bondade infinita para espa-

ços diversos de si, e renuncia a ser o único existente. Cria porque ama e,

além disso, tudo predispõe para que todos possam amá-lo livremente. A

kenosis de Cristo manifestará ulteriormente esta dinâmica de amor infi-

nito, que respeita o fim de cada ser. Deste modo, Deus torna possível o

diálogo pessoal, algo muito distinto do monólogo do tipo de religiosida-

de consumista. Todos os seres são fruto do amor trinitário, que, gratui-

tamente, cria, e gera relações de comunhão e diálogo.

O ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador, mas

ontologicamente dependente e, por isso, nunca poderia dialogar com o

Deus transcendente se não fosse gratuitamente elevado à dignidade de

interlocutor. Encontramo-nos aqui com a complexa questão filosófica do

encontro entre absoluto e contingente, entre o infinito e o finito. A união

hipostática em Cristo realiza este enlace de forma eminente. Nele e por

Ele recebemos também nós a capacidade de amar livremente o nosso

Criador com um amor puro, ordenado. O conhecimento e a especulação

intelectual só podem servir de preparação para essa comunhão beatífi-

ca48

, que o amor de amizade pode proporcionar49

.

3 – Jesus Cristo, o perfeito interlocutor de Deus

A actividade ad extra de Deus-amor é expressão coerente e orde-

nada do seu ser. O Deus trinitário, comunidade de pessoas, decide criar,

livre e gratuitamente, o que é distinto de si, com a finalidade de compar-

tilhar o seu amor50

. Entre todos os possíveis interlocutores no amor,

Deus criou a Cristo como o mais perfeito, aquele que pode responder

com um amor infinito como o seu51

. A união hipostática das naturezas

humana e divina na pessoa de Cristo significa que ele é o mais próximo 48 Ord. prol. P. 5 q. 2 n. 353 (Vat. I 229). 49 Cf. Ord. IV d. 49 q. 2 n. 27-32 (Vivès XXI 52-55). Escoto distingues entre amor de desejo (concupiscência e amor de amizade (caridade). O segundo é mais perfeito, pois nos move a amar a Deus por Ele mesmo e ao

próximo por Deus. Ord. I d. 1 p. 3 q. 5 n. 193 (Vat. II 121); Rep. III d. 7 q. 4 n. 5 (Vivès XXIII 303); “(Deus)

diligit se aliis, est iste est amor castus.” 50 Deus quer criar uma família fundada no amor mútuo. Rep. III d. 7 q. 4 n. 5 (Vivès XXIII 303). 51 Ord. III d. 7 q. 3 n. 61 (Vat. IX 287).

43

ao amor com que Deus ama, o que melhor pode responder-lhe, o mais

próximo da sua finalidade essencial52

. Assim, a alma de Cristo é a pri-

meira a ser destinada à mais alta comunhão com a Trindade, indepen-

dentemente do os homens serem ou não criados53

.

A predestinação de Cristo e, nele, a de todos os seres racionais,

tem como fim primário a glória de Deus54

. Isso não impede, antes exige

a liberdade para amar55

, pois o que é fruto do amor tende para o amor56

.

Deus não nos necessita; ama-nos e deseja o nosso amor57

.

Enquanto obra-prima de Deus, Cristo é também o sumo bem de

todos os demais seres58

, o mediador universal, o centro de toda a activi-

dade amorosa de Deus ad extra, o ponto de encontro entre o divino e o

humano. N’Ele, por Ele e para Ele são pensados todos os anjos, os

homens e todas as coisas59

. Tanto a ordem natural como o sobrenatural

encontram nele o seu sentido. Maria imaculada será a primeira benefi-

ciária da sua mediação e, com ela, todos somos filhos no Filho.

Esta perspectiva eterna, amorosa de Deus não podia estar condi-

cionado pela acção posterior da criatura humana, pois, entre outras

razões, esta nem sequer estava prevista na mente de Deus60

. Cristo esta-

va predestinado a dar glória a Deus antes que o mundo existisse e antes

que fosse previsível a queda de Adão61

. Deus, que ama de modo ordena-

do, quer a glória de Cristo antes de qualquer outra actividade que possa

conduzir a essa meta62

. Por isso, a redenção não está contemplada nesse

primeiro momento, nem é o motivo primário da encarnação63

.

Tudo é livre escolha do amor de Deus, em conformidade com o

seu eterno plano amoroso. Deus podia ter optado por outros meios para

52 Rep. III d. 7 q. 4 (Vivès XXIII 303). 53 Rep. III d. 7 q. 4 (Vivès XXIII 303). 54 Ord. I d. 40 q. un. n 4 (Vat. VI 310). Ord. III d. 32 q. un. n 21 (Vat. X 136-137). “(Deus) vult alios habere

condiligentes, et hoc est velle alios habere amorem suum in se, ‒ et hoc est praedestinare eos.” 55 Deus deseja a salvação de todos e outorga os dons necessários para que possam acolhê-la em liberdade. Ord. I d. 46 q. un. n 7 (Vat. VI 379). De facto, a morte de Jesus Cristo será meritória porque a aceita volunta-

riamente. Ord. III d. 16 q. 2 n. 56 (Vat. VIX 559). 56 Ord. III d. 32 q. un. n 21 (Vat. X 136-137). 57 Rep. III d. 32 q. un n. 10 (Vivès XXIII 508). 58 Ord. III d. 7 q. 3 n. 63-66 (Vat. IX 288). 59 Rep. III d. 32 q. un. n. 11 (Vivès XXIII 508). 60 Ao falar do plano de Deus, não assinalam momentos de sucessão temporal. Mas somente lógica, pois em

Deus não há antes nem depois. 61 Ord. III d. 19 n. 6 (Vat. XIV 714); J. DUNS ESCOTO, Lectura (= Lect.), III d. 19 q. un. n. 20 (Vat XXI 32). 62 Ord. I d. 41 q. un. n. 41 (Vat. VI 332-333). 63 Rep. I d. 41 q. un. n. 18 (Vat. XXII 482).

44

nos redimir64

, mas escolheu aquele que melhor expressa o seu amor

incondicional por nós65

. Se Cristo aceita livremente a morte na cruz não

é para aplacar a ira divina ou para reparar a justiça enganada, mas como

expressão do amor infinito de um Deus que nos quer incorporar no seu

amor.

A comunicação amorosa é o primeiro objectivo da acção de Deus

ad extra. Esse objectivo é, pois, prioritário e anterior à ruptura do diálo-

go provocado pela queda de Adão. A queda do homem não pode ter des-

truído o plano primitivo de Deus, reduzindo a história a um retorno fas-

tidioso ao paraíso perdido e, além disso, exigindo a paga pela morte na

cruz. Essa concepção subordinaria Cristo ao homem, o que seria absur-

do66

. Cristo tem o primado absoluto sobre tudo o que é criado e, no fim

dos tempos, o apresentará ao Pai como oferenda de amor. Assim, pois, o

melhor está para chegar.

Frente ao relativismo religioso e a uma religiosidade desencarnada

e impessoal, Escoto proclama que tudo o que é humano encontra em

Cristo o seu sentido, mesmo o sofrimento e a fragilidade. O Crucificado

que sofre connosco, é o único rosto que Deus revelou. Em Cristo, Deus

experimentou a tragédia do ser humano e fez-se seu companheiro de

jornada. Cristo restabelece o diálogo amoroso que o pecado rompeu e fá-

-lo aceitando livremente a doação de si mesmo na cruz.

B – DIGNOS PORQUE AMADOS

O único ser necessário é Deus mesmo; todos a outros seres são

contingentes, isto é, existem porque Ele assim quis, sem outras razões67

.

A criação é um acto do amor gratuito, imerecido, completamente livre

de Deus.

1 – O valor incondicional da pessoa humana

O homem não é um ser pensante (res cogitans), dominador, mas

um ser pensado (res cogitata), infinitamente amado. Se existo é porque

Deus me amou e pensou em mim, sem outra razão para me ter escolhido.

64 A Encarnação é uma eleição livre e gratuita de Deus. Ord. IV d. 2 q.1 n. 11 (Vivès. XVI 248). Cf. Ord. III

d. 20 q. un. n 10 (Vivès XIV 737). 65 O amor de Deus evidencia-se na maneira como nos redimiu. Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès XIV 738). 66 Ord. III d. 7 q.3 n. 64-66 (Vat IX 288). 67 Rep. II d. 1 q. 3 n. 3 (Vivès XXII 531).

45

É uma questão de gratuidade, de amor desinteressado, de vontade68

. O

lema cartesiano “penso, logo existo”, muda-se em “sou amado, logo

existo”.

O valor do ser humano não reside na sua substância (“eu pensan-

te”, “racional”, dominador), mas na bondade de Deus. O homem existe

porque Deus (Sumo Bem) o amou gratuitamente e, em consequência é

um ser bom, chamado à doação de si mesmo por amor. O importante não

é a capacidade mental, mas o facto de ter sido amado gratuitamente,

escolhido entre muitos outros possíveis, é hospede sem o merecer.

A dignidade do ser humano não depende do êxito das suas acções,

mas da relação gratuita que Deus estabeleceu com ele desde a criação do

mundo. A sua identidade não resulta do que tem, mas da sua capacidade

de doação e da capacidade de construir relações significativas. Com a

ajuda da graça divina, podemos dialogar, confiar no outro, pois o homem

não é um lobo para o homem. A capacidade de amar é mais forte que o

egoísmo, que as tendências pecaminosas, mesmo que a prudência seja

necessária. A natureza humana não mudou radicalmente com o pecado

original69

.

2 – Reconhecer-se criaturas

Frente à pretensão ingénua do homem actual que pretende obter

tudo rapidamente e sem esforço, Escoto convida a reconhecer-se criatura

dependente e limitada, mas infinitamente amada por Deus. O ser huma-

no é contingente, ontologicamente dependente, e deve reconhecer-se

como tal, obedecendo humildemente ao seu Criador70

. Isto não significa

renunciar à própria dignidade e às potencialidades de cada um, mas

reconhecer que a verdade sobre si mesmo reside na liberdade bondosa e

gratuita de Deus.

Enquanto os filósofos tendem a afirmar a perfeição auto-suficiente

da natureza, Escoto insiste na necessidade da graça71

. Tudo o que temos

e somos é puro dom. Não somos amados porque somos dignos, antes

68 Deus nos amou porque assim quis, pois pode fazer livremente tudo o que não seja contradição. Ord. I d. 44 q. un. n. 3 (Vat. VI 363-364); Ord. I d. 8 p. 2 q. un. n. 283 (Vat IV 314). 69 Cf., Lctt. II d. 20 q. 2 n. 21-20 (Vat. XIX 195-197). 70 QQMetaph. IX q. 12 n. 3 (Oph IV 611-612). 71 Os filósofos pagãos tentam explicar tudo racionalmente, desde a auto-suficiência da natureza. Ord. prol. p.

q. un. n.5 (Vat. 14)

46

somos dignos porque somos amados72

. Mesmo sendo pequenos, somos

amados.

O ideal humano não é o super-homem impassível, sempre vence-

dor. Tudo o que o homem é e tudo o que o rodeia é querido e amado por

Deus, sem que existam razões suficientes para que assim seja. Nada do

que diz respeito ao homem é indiferente a Deus73

, que quis manifestar-se

na debilidade. Por isso, é possível uma relação harmónica, hospitaleira,

respeitosa com os outros, com a natureza e com o próprio corpo, pois a

sua dignidade deriva da livre vontade de Deus. Não se trata de dominar

ou subordinar o que sou e o que me rodeia, mas de coordenar tudo, res-

peitando a riqueza da diversidade.

3 – Livres para amar

Desde esta perspectiva, a matéria e o próprio corpo deixam de ser

algo alheio e perigoso. Todo o nosso ser, corpore et anima unus74

, é fru-

to do amor divino e, portanto, digno. Sendo fruto do amor livre e gratui-

to de Deus, estamos chamados a amar a todos na liberdade e na gratui-

dade. Maria é também nosso modelo, pela forma como colaborou livre-

mente na obra de Deus75

.

Por isso mesmo, de nada serviria a mortificação do corpo se não é

expressão da menoridade e da pobreza interior. Não se trata de subordi-

nar o corpo à alma, mas de coordenar tudo o que somos, para que nada

nos desvie da resposta agradecida a quem nos amou. Estar ordenado é

muito diferente de estar subordinado. No mundo clássico propunha-se a

subordinação do corpo, a mortificação como meio de subordinação, para

poder assim libertar a dimensão espiritual e racional que nele está como

que escravizada, isto é para poder pensar sem que as paixões o impeçam.

No pensamento de Escoto, no entanto, o corpo não é inimigo da

alma, mas complemento harmonioso e necessário. A corporeidade de

cada ser humano tem uma entidade e um valor ontológico em si mes-

ma76

. Por isso, a mortificação tem como objectivo o preparar-se para

72 Todos os seres criados são bons porque desejados, não por utilidade: 73 Ord. III d. 19 q. un. n. 7 (Vivès XII 512). 74 CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, (= GS), 7-12-1065. N. 14. Escoto defende que a substância do ser humano só se dá na unidade de alma e corpo. Ord. IV d. 45 q. 2 n. 14 (Vivès XX

306). 75 Numa sociedade que acentua a passividade da mulher, Escoto sublinha o papel active de Maria na sua maternidade virginal. Ord. III d. 4 q. un. n. 47 (Vat. IX 216). 76 Ord. IV d. 11 q. 3 n. 55 (Vivès XVI 436).

47

responder livremente, com todo o nosso ser, a Deus que livremente nos

criou. A mortificação permite-nos “conservar a paz da alma e do cor-

po»77

, isto é, faz-nos livres para amar. Tudo o que o homem é e realiza

deve ser a expressão da sua resposta amorosa a Deus. Amá-lo é o único

acto bom em si mesmo e, por isso, irrenunciável78

.

4 – O pecado, ruptura do diálogo amistoso

Deus criou o ser humano sem que existisse nenhum motivo para

isso e destinou-o em Cristo, para participar na vida trinitária. O pecado

original não destruiu a natureza que Deus lhe deu à imagem de seu

Filho79

. Se somos fruto do amor e a ele estamos destinados, pecar é ir

contra a nossa própria natureza, renunciando conscientemente à amizade

que Deus nos oferece.

Escoto rejeita o gnosticismo daqueles que identificam o pecado

com o erro, de forma que só o iluminado seria capaz de resistir às suges-

tões do mal. Antes da verdade e da alógica, Escoto acentua a liberdade e

o amor.

Mais que ruptura de uma ordem justa, Escoto entende o pecado

como uma infidelidade. Por isso mesmo, Escoto nega que o pecado ori-

ginal seja um contágio transmitido através da carne contaminada; per-

tence à ordem moral, não à ordem física80

. Rejeita assim qualquer seme-

lhança do pecado original e pessoal com um mecanismo mágico ou

automático, enquanto reafirma o seu carácter moral e relacional81

.

O pecado pessoal é ruptura do diálogo, é renúncia consciente de

amar o Amor82

. Desta maneira, a criatura contradiz o juízo da recta

razão83

e caminha para a morte do isolamento egoísta.

A encarnação não está determinada pelo pecado, isso significaria

que o agir divino estaria condicionado necessariamente pelo erro do

homem. Deus não está obrigado a reparar os destroços que o pecado do

homem ocasionou na ordem da justiça. Deus actua sempre livremente e

77 Ex. 15, 1-2 em Fontes Franciscanas I (= FFI) 2ª ed, Editorial Franciscana, Braga, 2005. 78 Rep. IV d. 28 q. un. n. 6 (Vivès XXIV 377). 79 Lect. II d. 29 q. un. n. 22 (Vat. XIX 289). 80 Ord. III d. 30 q. 2 n. 14 (Vat. VIII 322). 81 Ord. III d. 33 q. un. n. 76 (Vat. X 175). 82 Por isso, a criatura renuncia ao primeiro princípio, que é: “Deus est diligendus”. Ord. IV d. 46 q. 1 n. 10

(Vivès XX 426). 83 Um acto é moralmente bom quando há harmonia entre a vontade e a recta razão. Rep. II d. 35 q. un. n. 10

(Vivès XXIII 182); Ord. III d. 36 n. 74 (Vat. X 249).

48

na lógica do amor, porque quer que alcancemos o nosso verdadeiro fim.

O amor prevalece sobre a justiça84

. Não obstante, o amor de Deus não

podia permanecer indiferente ante a cegueira humana que, na sua infide-

lidade, caminhava para a morte. Daí a redenção, a doação de Cristo até à

morte de cruz.

C – RELAÇÕES BASEADAS NA LIBERDADE E NA GRATUIDADE

“O homem é um lobo para o outro homem”85

, repetem aqueles que

olham com suspeição o ser humano e aqueles que defendem a opção

armamentista como único modo de manter a paz (Si vis pacem, para

bellum). O cristianismo contradiz esta lógica. Frente á guerra de interes-

ses e às relações competitivas do eu dominador, a concepção antropoló-

gica de Escoto assenta as bases para relações em liberdade e gratuidade.

1 – Todo o ser humano é um interlocutor válido

Em Cristo, todos os seres racionais, começando por Maria, foram

predestinados ao eterno diálogo amoroso com Deus86

. Essa predestina-

ção à visão beatífica não é condicionamento escravizante, mas liberdade

para amar87

. Na sua infinita bondade, Deus quer que as criaturas racio-

nais alcancem, em Cristo, a sua meta final, isto é, a comunhão com

Deus88

. Alcançando essa beatitude, a pessoa realiza plenamente a sua

própria natureza89

, que foi criada por amor. A condenação, pelo contrá-

rio, é fruto do mau uso da liberdade90

.

O facto de que o ser humano seja imago Dei não deve entender-se

num sentido estático ‒ por ter uma natureza racional comum (res cogi-

tans) ‒ mas sobretudo um sentido relacional: a capacidade de amar e de

se dar em liberdade. Também as pessoas divinas são dinâmicas, em con-

84 Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès 738). 85 “Homo homini Lupus”. Esta afirmação de Plauto (Anasiria, acto II), longamente repetida, reflecte uma concepção antropológica pesimista. Tomás de Aquino preferia afirmar: “Homo hominis naturaliter amicus”.

S. Th. II-II q. 114 a. 1 ad 2. 86 Lect. III d. 19 q. un. n. 31 (Vat. XXI 36-37). 87 O homem pode rejeitar o destino beatífico que Deus lhe preparou. Ord. I d. 41 q. un. n. 40 (Vat. VI 332).

Cf. Ord. I d. 41 q. un. n. 42 (Vat. VI 333): “Reprobatio ergo habet ex parte obiecti rationem, scilicet pecca-

tum finale praevium.” 88 Só Deus pode satisfazer a ânsia profunda das criaturas. Rep. II d. 23 q. un. n. 6 (Vivès XXIII 109). Cf. Ord.

prol. p. 1 q. un. n. 32 (Vat. I 119). 89 Deus quer a realização plena do ser humano, se bem que este se pode opor e fazer malograr o plano de Deus. Ord. II d. 33 q. un. n. 18 (Vat. VIII 368). 90 Ord. I d. 41 q. un. n. 46 (Vat. VI 334).

49

tínua relação91

. Criado à imagem do Verbo encarnado, o homem está

feito para o diálogo livre e afectuoso com tudo o que o rodeia e com o

mesmo Deus92

. A bondade do ser ‒ de todos os seres ‒ leva à gratuidade

do dom.

Contrastando com a bondade e gratuidade que são a base da teolo-

gia escotista, predomina hoje uma concepção antropológica negativa,

que leva a relações ferozmente competitivas, ao eficientismo (do ut des)

e ao “usa e deita fora” do consumismo mais desenfreado. O eu auto-

-suficiente e individualista tenta conhecer e dominar; usa a informação

em termos de poder, em vez de buscar com ela a comunhão93

; conhecer

tudo dos outros para os dominar; é incapaz de reconhecer que o valor

dos outros seres não depende dele mesmo. Deste modo, a pessoa é

impulsionada para a “guerra de interesses” (capitalismo) ou é reduzida a

uma peça anónima numa engrenagem colectiva (colectivismo). Em

ambos os casos o sujeito não é respeitado nem respeita os outros, não se

sente motivado para o altruísmo, nem para se comunicar e gerar

comunhão94

.

O ideal liberal de um indivíduo completamente autónomo e auto-

-suficiente, que entra em sociedade por pura conveniência utilitarista,

corresponderia ao Deus único, monolítico e soberano de algumas filoso-

fias. Esse Deus não necessitaria de intervir no mundo, pois teria criado o

mundo como mecanismo autónomo.

Para o cristianismo, porém, a pessoa é intrinsecamente social, pois

foi criada à imagem de Deus trinitário, que é comunhão na pluralidade,

fonte de toda a unidade e de toda a diferença. O homem já nasce como

ser livre e social95

. A sua dignidade e sociabilidade são anteriores à evo-

lução e à história. O seu valor não depende do meu pensamento, mas de

Deus, sumo Bem, que o pensou e amou desde toda a eternidade. Mais

que conhecer, o sujeito tem de reconhecer o outro. Ele é um tu muito

91 J. DUNS ESCOTO, Quodlibet (= Quodl.), q. 12 n. 6 (Vivès XXV 476). 92 Ord. IV d. 49 q. 10 n. 2 (Vivès XXI 318-319). 93 Frente ao positivismo lógico, que define a informação como uma mera descrição objectiva do mundo,

alguns autores tentam recuperar o aspecto subjectivo, através da distinção entre informação e comunicação.

A comunicação plenamente humana não pode reduzir-se a uma simples transmissão de informação (como

acontece com uma máquina), mas implica fenómenos de interpretação e de compreensão. Comunicar é

relacionar-se, compartir com alguém um significado em vista a uma maior comunicação. Cf. F. MARTINEZ

DÍEZ, Theologia de la comunicación, Madrid, 1994, 28. 94 Comunicação e comunidade são termos afins, que se implicam e se exigem mutuamente. W. SCHRAMM-

-W.E.PORTER, Men women, messages, and media; understanding human communication, Harper& Row, Nova York, 1982, 2-3. 95 Cf. GS 24.

50

antes de se relacionar com o seu semelhante, porque, desde sempre,

Deus o tratou e amou como tal96

. Conhecer é amar, contemplar o misté-

rio do outro e sentir-se movido a admirá-lo e a amá-lo. Portanto, a ver-

dade é inseparável da bondade.

A dignidade e a razão da existência de todos os seres não depende

da mente do sujeito pensante, mas da absoluta liberdade e gratuidade de

Deus que é amor. O pecado dividiu o homem por dentro, mas não anu-

lou a sua capacidade de amar, de transcender o próprio egoísmo com a

ajuda da graça97

. Consequentemente, o domínio despótico do eu pensan-

te, que configura toda a realidade a partir de si mesmo, transforma-se em

acolhimento afectuoso de cada ser que, em si mesmo, é um dom divino.

2 – Relações gratuitas, desinteressadas

Partindo do paradigma escotista de liberdade, o que resulta é a res-

posta agradecida, gratuita, a Deus que nos ama, e o encontro respeitoso,

desinteressado com o outro e com a criação, A hospitalidade absoluta

para com todos os seres não acontece pelos benefício que delas podemos

tirar, mas porque todas são fruto do amor divino e, por isso, bons em si

mesmos. Quanto mais débil e frágil se mostra a vida (como embrião,

como doente, como idoso), mais forte é o apelo à nossa responsabilida-

de, pois Deus quis mostrar a sua grandeza na debilidade.

O ser humano é sempre um mistério para mim, porque a sua exis-

tência não depende de leis intrínsecas à sua pessoa, mas da vontade de

Alguém que me transcende. Por isso, sinto-me motivado a sair ao seu

encontro e a respeitar a sua alteridade, sem prepotência, sem fins domi-

nadores, porque a sua existência não depende de mim. Ele é um tu muito

antes que eu com ele me relacione, porque desde sempre Deus o tratou e

amou como tal. Portanto, o ser humano tem uma dignidade pessoal que é

prévia a qualquer contacto com os seus semelhantes. Deus concedeu-lhe

esse estatuto de pessoa que tornará possível o autêntico encontro com os

outros de igual para igual98

.

A resposta ética não será superficial, voluntarista, típica de um

sujeito dominador que “quer” amar o outro, que “quer” imitar a kenosis

de Cristo, mas uma ética de alteridade e de compaixão. Descobrindo que

96 J.L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios. Antropología teológica fundamental, Santander, 1988, 181-182. 97 Cf. Lect. II d. 34-37 q. 4 n. 50 (Vat. XIX 337). 98 O amor ao outro forma parte da resposta amorosa a Deus. Ord. III d. 28 q. un. n. 25 (Vat. X 91).

51

todos somos fruto do amor gratuito, imerecido, de Deus, o sujeito sente-

-se radicalmente motivado para o amor gratuito e para a hospitalidade

incondicional99

.

D – DIALOGANDO COM TODOS OS SERES NO JARDIM DO COSMOS

Na perspectiva de Escoto, todos os seres são irmãos, dignos de ser

amados por si mesmos, porque são fruto do amor divino que cria e sus-

tenta. O louvor, a admiração e o agradecimento proíbem qualquer inten-

ção de apropriação ou domínio. Isto não significa que não se possam

tocar ou melhorar. A criação não é algo estático, imutável, antes projec-

to, abertura, reino de liberdade. O homem está chamado a desenvolver as

potencialidades de tudo o que existe, mas sempre em conformidade com

o plano divino.

1 – O mundo, expressão de bondade

Deus criou gratuitamente e alegra-se com a sua obra. O acto cria-

dor não é fruto da necessidade, uma vez que Deus sempre actua livre-

mente. O mundo não é expressão de potência, mas expressão de bonda-

de, é um dom. Cada criatura é uma manifestação do amor divino que

supera a nossa capacidade de raciocínio, sem deixar, por isso, de ser

compreensível e lógica em si mesmo. Deus poderia ter criado coisas

melhores em si mesmas, mas, desde o momento que decide livremente

criar algo, isso converte-se objectivamente no melhor possível, pelo fac-

to mesmo de ter sido escolhido e querido gratuitamente por Deus. De

facto, Deus não deixará de amar o que criou100

.

Esta explicação do acto criador não vai contra a razão, nem faz

apelo a um comportamento caprichoso, não impede a formulação racio-

nal, antes aponta para uma liberdade divina que supera a nossa capaci-

dade de compreensão101

. Todos os seres são expressão do amor gratuito,

livre e incomensurável do Criador.

99 Imitando o amor gratuito, desinteressado de Deus, o homem está chamado a amar o seu semelhante sem

tentar possui-los, pois neles encontra o mesmo Deus. Ord. III d. 28 q. un. n. 15 (Vat. X 88). 100 Ord. I d. 41 q. un. n. 54 (Vat. VI 338). “Nullum enim aliud bonum, quia bonum, ideo amatum ab illa

voluntate.” 101 Escoto insiste em que Deus actua de modo ordenado e racional. Cf. Ord. III d. 32 q. un. n. 21 (Vat. X 136). Não tem, pois nenhuma base aqueles que o acusaram injustamente de defender um voluntarismo capri-

choso, mais próximo do fideísmo que da formulação raciomal.

52

A natureza não é inóspita e hostil, algo que o homem tem de sub-

jugar, mas um lugar, uma habitação acolhedora. Só o contemplativo cap-

ta a dignidade e beleza global do universo102

. Duns Escoto defende a

univocidade do ser103

, estabelecendo assim uma conexão fundamental

(não só analógica) entre os seres deste mundo e o mesmo Deus104

.

Ao mesmo tempo, Escoto afirma a singularidade única e irrepetí-

vel de cada ser, porque o Criador lhe deu esse estatuto ao elege-lo e ao

individualizá-lo entre todos os seres possíveis. A diferença não é defi-

ciência ou imperfeição. O individual prevalece sobre o universal e, por

isso, é mais perfeito o conhecimento concreto. O entendimento humano

está predisposto para perceber intuitivamente essa singularidade, ainda

que a situação actual, normalmente o faça partir do conhecimento uni-

versal. Escoto contradiz assim a filosofia grega, que defendia a superio-

ridade do conhecimento abstracto e a sua necessidade para poder chegar

à compreensão do individual.

Esta concepção filosófica de Escoto reforça a autonomia das cria-

turas. Nada é superficial e acessório, pois Deus tudo conhece e tudo ama

na sua singularidade105

. Isto pode-se aplicar ao diálogo como atitude

fundamental do ser humano. Dialogar é reconhecer a riqueza da diversi-

dade, respeitá-la e, ao mesmo tempo, buscar pontos de encontro e de

entendimento.

Desde a perspectiva escotista, pode-se afirmar que a perfeição não

se consegue afastando-se da matéria e do próprio corpo, para conseguir o

pensamento puro e o espírito imperturbável, mas assumindo e coorde-

nando tudo o que somos. A profissão da pobreza não deve ser entendida

como afastamento maniqueísta da realidade, mas como liberdade interior

para amar as pessoas e as coisas, sem o afã de as dominar ou possuir. O

único absoluto é Deus, por isso o homem não pode deixar-se dominar

pelas coisas, mas também não pode desprezá-las, nem utilizá-las arbitra-

riamente.

102 Ord. prol. p. 5 q. 2 n. 355 (Vat. I 231). 103 Ord. I d. 3 p. 1 q. 2 n. 26 (Vat. III 18). Cf. Ord. I d. 3 p. 1 q. 3 n. 137 (Vat. III 85). Escoto define a univo-

cidade como “unitate rationis eius quod predicatur”. Ord. I d. 8 p. 1 n. 89 (Vat. IV 105) e distingue três tipos: física, metafísica e lógica. Cf. De anima, q. 1 n. 89 (Vivès III 477). 104 Lect. I d. 3 p. 1 q. 2. n. 113 (Vat. XVI 266). 105 Escoto defende a dignidade e a liberdade metafísica do individuo, que é único e irrepetível. Ord. II d. 3 q. 1 q. 6 n. 183 (Vat. VII 481).

53

O tempo messiânico, já presente no meio de nós, mas sem chegar

ainda à plenitude, obriga o peregrino (homo viator), a não se deter a

escutar os cantos da sirene, mas a continuar o caminho, com os olhos

fitos no seu fim último, em Deus.

2 – Dignidade e valor de cada uma das criaturas

Na visão de Escoto, a contemplação e a escuta substituem o domí-

nio despótico. A criação tem um valor em si mesma, que é prévio e

independente da utilidade que se possa obter. Se o ser humano é digno

porque é amado, também os outros seres encontram em Deus o valor que

por si mesmos não merecem. A contingência de todos os seres criados

não impede a sua dignidade, pois esta fundamenta-se na bondade de

Deus. Também eles são fruto do amor divino e, por tanto, merecem res-

peito, independentemente da utilidade que podem ter para o homem.

Cada uma das criaturas foi chamada por Deus à existência, orde-

nada num “cosmos” e orientada para a nova criação. O homem é convi-

dado a colaborar nesse plano divino, pois a natureza necessita dele para

desenvolver as suas potencialidades106

, mas deve fazê-lo com responsa-

bilidade107

. Amar é querer que o outro seja ele mesmo, segundo a lógica

do seu próprio ser108

, por isso, o ser humano deve respeitar a entidade de

todo o que existe, independentemente de benefício que possa ter109

.

Rejeita-se, assim, o eu auto-suficiente da filosofia ocidental, que

reduz a criação à pura matéria neutra, que ele tem de converter em algo

útil e positivo. A Bíblia, ao contrário, afirma que a natureza é rica em si

mesma, uma bênção cheia de potencialidades e de vida: “Viu Deus

quanto tinha feito, e tudo era muita bom e belo.”110

Escoto defende a liberdade e a dignidade metafísica do indivíduo

que é único e irrepetível. A diferença individual (haeceidade “haeccei-

tas”)111

é uma característica ontológica positiva, que imita a infinita

individualidade divina. Graças a ela, cada um dos seres é único, irrepetí-

106 Em Cristo, o homem é o fim particular da criação. De rerum princ. q. 9 a 2 sec. 4 /Vivès IV 435-436) 107 J. DUNS ESCOTO, De rerum princ. q. 13 a I sec. 6 (Vivès IV 497-498): “Homo ordinatur ad finem suum

per bonum usum creaturarum, et deordinatur per abusum earum.” 108 O. TODISCO, “Daal’io penso tomista all’io voglio scotista”, em Miscellanea francescana 3-4 (2004) 521. 109 Ord. III d. 27 q. un. n. 16 (Vat. X 53). 110 Gn 1, 31; “As criaturas do mundo são saudáveis, não há nelas veneno de morte”. Sb 1. 14. 111 Ord. III d. 1 q. 3 n. 132 (Vat. XI 59): “Singularitas praecedi rationem suppositi.” Em portugês poder-se-ia traduzir por “istoidade” (o que faz com que algo seja isto e não outra coisa). Cf. Este caderno p. 13.

54

vel, independentemente da sua natureza que compartilha com o seu

género e espécie. Ressalta assim a bondade e singularidade dos seres,

pois todos imanam da vontade livre e amorosa de Deus.

Todos estamos intimamente relacionados em caridade, pois for-

mamos parte de um único projecto de amor, cada um com sua própria

dignidade e objectivo específico. A alteridade forma parte intrínseca do

ser humano. Estamos chamados a contemplar, maravilhados, o mistério

do mundo e a administrar responsavelmente o que Deus nos confiou.

A mentalidade utilitarista não possibilita o diálogo e a escuta. As

coisas não são meros objectos que podemos usar segundo o nosso capri-

cho, segundo a necessidade do momento. Nem sequer são degraus para

nos aproximarmos de Deus, pondo-as debaixo dos nossos pés. O cristão

não utiliza a natureza como senhor despótico, nem se deixa escravizar

por ela. Situando-se no meio dos seres, o franciscano descobre que é

irmão, afectuosamente, pois em tudo descobre a presença do Deus

encarnado. Mais que projectar sobre a natureza os seus sentimentos,

escuta, acolhe e une-se à sinfonia de todo o cosmos.

3 – Até que, em Cristo, todos sejamos um no Amor

O diálogo amoroso de Deus com a criação encontra em Cristo a

via adequada e definitiva. A criação inteira gravita em torno dele e nele

encontra a unidade e sentido. Todos os seres tendem para Deus em Cris-

to, o Verbo feito carne. Como se de uma pirâmide perfeita se tratasse,

Cristo é o vértice o ponto focal de tudo o criado, enviado para recapitular

em si todas as coisas, para as apresentar a Deus como oferenda de amor.

Esse ponto ómega da criação não será o fim da história amorosa, que já

antes dos séculos, Deus iniciou com a humanidade em Cristo.

Escoto, ao acentuar o valor do singular deveria ajudar-nos a apre-

ciar a diversidade das raças, culturas e religiões como uma riqueza que

Deus nos oferece para que, juntos, em hospitalidade absoluta, façamos o

mais belo mosaico em sua honra. Deveria também impelir-nos para um

maior apreço pela natureza. Todos os seres, mesmo os mais irrelevantes,

reflectem a Trindade e, por isso são portadores de uma dignidade que

deve ser respeitada. Eles necessitam do ser humano para articular o seu

louvor ao Criador e poder desenvolver as suas potencialidades. Unidos a

eles, percorremos o itinerário para Deus. Por isso, enquanto caminhamos

55

unidos a eles, esperando a salvação definitiva, empenhamo-nos em ante-

cipar a chegada dos novos céus e a nova terra.

A felicidade dos bem-aventurados não se poderá reduzir a “ver a

Deus”, isto é a um acto de entendimento sujeito-objecto, mas será uma

“fruição do Sumo Bem”, será unir-se a Ele como um acto de vontade112

.

O amor não acaba nunca: Quando Cristo apresentar todo as coisas ao

Pai, descobriremos a plenitude do sentido desse diálogo amoroso já ini-

ciado no tempo e que jamais terá fim.

CONCLUSÃO

No início deste artigo, recordamos que Paulo VI propôs Duns

Escoto como modelo do diálogo para o período pós-conciliar, tanto pelo

seu talento como pela sua doutrina. O Papa assinalava a influência posi-

tiva que Escoto poderia ter para o diálogo ecuménico e para o encontro

com a cultura contemporânea, marcada pelo ateísmo prático. Ao longo

destas páginas, tentou-se mostrar que essas afirmações do Papa, mais

tarde ratificadas por João Paulo II, continuam a ser válidas na sociedade

de informação.

A multiplicidade de meios técnicos e as crescentes oportunidades

de encontro pessoal não bastam por si só para garantir um mundo sere-

no, pacífico e solidário. É verdade que aumentaram as comunicações

entre os povos e culturas, mas também continuamos fechados em relação

ao Outro e frente aos outros, em lutas de interesses, e refugiando-nos no

intimismo. A isto há que juntar os perigos de destruição massiva, o terro-

rismo e a contaminação do meio ambiente.

Reeditando o dito “vício privado, pública virtude”, o liberalismo

afirma que a mão invisível do mercado converte automaticamente em

utilidade social o que, na realidade, é uma busca descarada do próprio

interesse. Em lugar de colaboração, o eu auto-suficiente tenta utilizar

todo o seu capricho buscando submeter os outros, excluindo a transcen-

dência e tratando o próprio corpo como se fosse um objecto possuído. A

própria natureza converte-se em objecto passivo de domínio despótico

do homo faber, que tenta submetê-la segundo os caprichos do momento,

sem se sentir implicada nela.

112 Ord. IV d. 49 q. ex. latere n. 2 (Vivès XXI 163).

56

Esta mentalidade competitiva bloqueia o diálogo e impede o

altruísmo. Reflecte também um conceito negativo da natureza humana

que é vista como facilmente propenso ao egoísmo e ao isolamento. Para

evitar males maiores, tenta-se orientar a questão pela “inevitável” guerra

de interesses, do individualismo feroz e da lei do mais forte. Neste con-

texto de desconfiança mútua, propõe-se o “homo oeconomicus” e a ido-

latria do mercado como único horizonte “viável” da actividade humana.

Frente a esta visão negativa da natureza humana, Escoto propõe

uma antropologia baseada na gratuidade e aberta à transcendência.

Somos dignos porque amados. O nosso valor é independente da nossa

eficácia e utilidade. Por seu lado, a criação tem um valor que é indepen-

dente do homem.

O ser humano é imagem perene de Deus que é Amor e, por isso,

está chamado ao altruísmo e à solidariedade. Se o egoísmo não é inevi-

tável, nem há necessidade de construir um sistema social excessivamente

centrado no conflito de interesses individualistas. Em lugar de levantar

berreiros, podemos potenciar a nossa capacidade inata para o diálogo e

autodoação.

Com estas premissas, o sujeito pode reconhecer-se criatura amada

por Deus, aceitar serenamente os próprios limites e iniciar com os outros

um diálogo sincero e enriquecedor entre iguais. Se o ser é um dom, as

relações meramente comerciais e utilitaristas do” homo oeconomicus”

têm de ser subordinadas à gratuidade, à contemplação, à hospitalidade, à

festa, ao sentido lúdico, à arte, ao estar juntos, à partilha gozosa e desin-

teressada.

Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

57

II — Documentos

BENTO XVI - TRÊS MEDITAÇÕES

SOBRE S. BOAVENTURA1

I - MEDITAÇÃO

Hoje gostaria de falar de São Boaventura de Bagnoregio. Confes-

so-vos que, ao propor-vos este argumento, sinto uma certa saudade, por-

que volto a pensar nas pesquisas que, como jovem estudioso, fiz preci-

samente sobre este autor, que me é particularmente caro. O seu conhe-

cimento influiu em grande medida na minha formação. Com muita ale-

gria, há alguns meses, fui em peregrinação à sua terra natal, Bagnoregio,

uma pequena cidade italiana no Lácio, que conserva com veneração a

sua memória.

Tendo nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele

viveu no século XIII, uma época em que a fé cristã, radicada profunda-

mente na cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecíveis

no campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia. Entre

1 As três meditações de Bento XVI sobre S. Boaventura foram proferidas nas Audiências Gerais nos dias 3,

10, e 17 de Março de 2010.

58

as grandes figuras cristãs, que contribuíram para a composição desta

harmonia entre fé e cultura, sobressai precisamente Boaventura, homem

de acção e de contemplação, de profunda piedade e de prudência no

governo.

Chamava-se João de Fidanza. Um episódio que teve lugar quando

ainda era jovem marcou profundamente a sua vida, como ele mesmo

narra. Tinha sido atingido por uma grave doença, e nem sequer o seu pai,

que era médico, esperava salvá-lo da morte. Então, sua mãe recorreu à

intercessão de São Francisco de Assis, que tinha sido canonizado há

pouco tempo. E João ficou curado.

A figura do Pobrezinho de Assis tornou-se-lhe ainda mais familiar

alguns anos mais tarde, quando se encontrava em Paris, aonde tinha ido

para estudar. Obtivera o diploma de Mestre de Artes, que poderíamos

comparar com o de um Liceu prestigioso dos nossos tempos. Nesta altu-

ra, como muitos jovens de ontem e também de hoje, João formulou uma

pergunta crucial: "O que devo fazer da minha vida?". Fascinado pelo

testemunho de fervor e de radicalidade evangélica dos Frades Menores,

que tinham chegado a Paris em 1219, João bateu à porta do Convento

franciscano daquela cidade, e pediu para ser acolhido na grande família

dos discípulos de São Francisco. Muitos anos depois, ele explicou as

razões da sua escolha: em São Francisco e no movimento por ele inicia-

do, entrevia a acção de Cristo. Assim escrevia numa carta endereçada a

outro frade: "Confesso diante de Deus que a razão que me fez amar mais

a vida do Beato Francisco é que ela se assemelha aos inícios e ao cres-

cimento da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores, e em

seguida enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sábios; a religião do

Beato Francisco não foi estabelecida pela prudência dos homens, mas de

Cristo" (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum innominatum, in

Opere di San Bonaventura. Introduzione generale, Roma 1990, pág. 29).

Portanto, por volta do ano de 1243 João vestiu o hábito francisca-

no e adquiriu o nome de Boaventura. Foi imediatamente destinado aos

estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris,

seguindo uma série de cursos muitos exigentes. Obteve os vários títulos

requeridos pela carreira académica, os de "bacharel bíblico" e de "bacha-

59

rel sentenciário". Assim, Boaventura estudou a fundo a Sagrada Escritu-

ra, as Sentenças de Pedro Lombardo, o manual de teologia daquela épo-

ca e os mais importantes autores de teologia; e, em contacto com os mes-

tres e os estudantes que afluíam a Paris de toda a Europa, amadureceu a

sua reflexão pessoal e uma sensibilidade espiritual de grande valor, que,

durante os anos seguintes, soube transferir para as suas obras e os seus

sermões, tornando-se assim um dos teólogos mais importantes da histó-

ria da Igreja. É significativo recordar o título da tese que ele defendeu

para ser habilitado ao ensino da teologia, a licentia ubique docendi,

como então se dizia. A sua dissertação tinha como título Questões sobre

o conhecimento de Cristo. Este argumento mostra o papel central que

Cristo teve sempre na vida e no ensinamento de Boaventura. Sem dúvi-

da, podemos dizer que todo o seu pensamento foi profundamente cristo-

cêntrico.

Naqueles anos em Paris, a cidade de adopção de Boaventura,

desencadeava-se uma polémica violenta contra os Frades Menores de

São Francisco de Assis, e contra os Padres Pregadores de São Domingos

de Guzmão. Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade, e

chegava-se até a pôr em dúvida a autenticidade da sua vida consagrada.

Certamente as mudanças introduzidas pelas Ordens Mendicantes no

modo de entender a vida religiosa, de que falei nas catequeses preceden-

tes, eram tão inovadores, que nem todos conseguiam compreendê-las.

Além disso, acrescentavam-se, como às vezes acontece também entre

pessoas sinceramente religiosas, motivos de debilidade humana, como a

inveja e o ciúme. Embora estivesse circundado pela oposição dos outros

mestres universitários, Boaventura já tinha começado a ensinar na cáte-

dra de teologia dos Franciscanos e, para responder àqueles que contesta-

vam as Ordens Mendicantes, compôs um escrito intitulado A perfeição

evangélica. Neste escrito, ele demonstra que as Ordens Mendicantes, de

modo especial os Frades Menores, praticando os votos de pobreza, de

castidade e de obediência, seguiam os conselhos do próprio Evangelho.

Para além destas circunstâncias históricas, o ensinamento oferecido por

Boaventura nesta sua obra e na sua vida permanece sempre actual: a

Igreja tornou-se mais luminosa e bonita pela fidelidade à vocação da

parte daqueles seus filhos e filhas, que não só põem em prática os precei-

tos evangélicos, mas, pela graça de Deus, são chamados a observar os

60

seus conselhos; e assim, através do seu estilo de vida pobre, casto e obe-

diente, são testemunho de que o Evangelho é nascente de alegria e de

perfeição.

O conflito foi pacificado, pelo menos por um certo período, e,

mediante a intervenção pessoal do Papa Alexandre IV, em 1257, Boa-

ventura foi reconhecido oficialmente doutor e mestre da Universidade

parisiense. Todavia, ele teve de renunciar a este cargo prestigioso, por-

que naquele mesmo ano o Capítulo geral da Ordem o elegeu Ministro

Geral.

Desempenhou tal encargo durante 17 anos com sabedoria e dedi-

cação, visitando as províncias, escrevendo aos irmãos e intervindo, por

vezes com uma certa severidade, para eliminar abusos. Quando Boaven-

tura deu início a este serviço, a Ordem dos Frades Menores desenvolveu-

-se de modo prodigioso: contavam-se mais de 30.000 frades espalhados

por todo o Ocidente, com presenças missionárias no norte da África, no

Médio Oriente e até em Pequim. Era necessário consolidar esta expansão

e sobretudo conferir-lhe, em plena fidelidade ao carisma de Francisco,

unidade de acção e de espírito. Com efeito, entre os seguidores do Santo

de Assis havia vários modos de interpretar a sua mensagem e existia

realmente o risco de uma ruptura interna. Para evitar este perigo, o Capí-

tulo Geral da Ordem em Narbona, em 1260, aceitou e rectificou um tex-

to proposto por Boaventura, em que se reuniam e unificavam as normas

que regulavam a vida diária dos Frades Menores. No entanto, Boaventu-

ra intuía que as disposições legislativas, por mais que se inspirassem na

sabedoria e na moderação, não eram suficientes para garantir a comu-

nhão do espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos

ideais e motivações. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma

genuíno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento. Reuniu, então,

com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e ouviu com aten-

ção as recordações daqueles que tinham conhecido Francisco directa-

mente. Daqui nasceu uma biografia do Santo de Assis, bem fundamenta-

da sob o ponto de vista histórico, intitulada Legenda Maior, redigida

também de forma mais abreviada, e por isso chamada Legenda Minor.

Diversamente do termo italiano, esta palavra latina não indica um fruto

da fantasia, mas, ao contrário, "Legenda" significa um texto autorizado,

61

"que se deve ler" oficialmente. Com efeito, o Capítulo Geral dos Frades

Menores de 1263, reunindo-se em Pisa, reconheceu na biografia de São

Boaventura o retrato mais fiel do Fundador, e deste modo ela tornou-se a

biografia oficial do Santo.

Qual é a imagem de São Francisco que sobressai do coração e da

pena do seu filho devoto e sucessor, São Boaventura? O ponto essencial:

Francisco é um alter Christus, um homem que procurou Cristo apaixo-

nadamente. No amor que impele à imitação, conformou-se de modo total

com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os seguidores de

Francisco. Este ideal, válido para cada cristão ontem, hoje e sempre, foi

apontado como programa também para a Igreja do Terceiro Milénio pelo

meu Predecessor, o Venerável João Paulo II. Tal programa, escreveu ele

na Carta Novo millennio ineunte, está centrado "no próprio Cristo, que

deve ser conhecido, amado e imitado, para viver nele a vida trinitária, e

transformar com Ele a história até ao seu cumprimento na Jerusalém

celeste" (n. 29).

Em 1273, a vida de São Boaventura conheceu outra mudança. O

Papa Gregório X quis consagrá-lo Bispo e nomeá-lo Cardeal. Pediu-lhe

também que preparasse um importantíssimo evento eclesial: o II Concí-

lio Ecuménico de Lião, que tinha como finalidade o restabelecimento da

comunhão entre as Igrejas latina e grega. Ele dedicou-se a esta tarefa

com diligência, mas não conseguiu ver a conclusão daquela assembleia

ecuménica, porque faleceu durante a sua realização. Um notário pontifí-

cio anónimo compôs um elogio de Boaventura, que nos oferece um

retrato conclusivo deste grande santo e excelente teólogo: "Homem bom,

afável, piedoso e misericordioso, repleto de virtudes, amado por Deus e

pelos homens... Com efeito, Deus concedeu-lhe tal graça, que todos

aqueles que o viam permaneciam imbuídos de um amo,r que o coração

não podia ocultar" (cf. J. G. Bougerol, Bonaventura, in A. Vauchez

(por), Storia dei santi e della santità cristiana. Vol. VI. L'epoca del

rinnovamento evangelico, Milão 1991, pág. 91).

Recolhamos a herança deste Santo Doutor da Igreja, que nos

recorda o sentido da nossa vida com as seguintes palavras: "Na terra...

podemos contemplar a imensidão divina mediante o raciocínio e a admi-

62

ração; na pátria celeste, ao contrário, mediante a visão, quando nos tor-

narmos semelhantes a Deus, e através do êxtase... entraremos na alegria

de Deus" (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, in Opere di San

Bonaventura. Opuscoli Teologici/1, Roma 1993, pág. 187).

II - MEDITAÇÃO

Na semana passada falei da vida e da personalidade de São Boa-

ventura de Bagnoregio. Esta manhã gostaria de continuar a apresentação,

reflectindo sobre uma parte da sua obra literária e da sua doutrina.

Como já disse, São Boaventura, entre os vários méritos, teve o de

interpretar autêntica e fielmente a figura de São Francisco de Assis, por

ele venerado e estudado com grande amor. Em particular na época de

São Boaventura uma corrente de Frades Menores, chamados "espiri-

tuais", afirmava que com São Francisco fora inaugurada uma fase total-

mente nova da história, aparecera o "Evangelho eterno", de que fala o

Apocalipse, que substituía o Novo Testamento. Este grupo afirmava que

a Igreja já tinha esgotado o seu papel histórico e seria substituída por

uma comunidade carismática de homens livres guiados interiormente

pelo Espírito, isto é, pelos "Franciscanos espirituais". Na base das ideias

de tal grupo havia os escritos de um abade cisterciense, Joaquim de Fiore,

falecido em 1202. Nas suas obras, ele afirmava um ritmo trinitário da

história. Considerava o Antigo Testamento como era do Pai, seguido

pelo tempo do Filho, o tempo da Igreja. Haveria que esperar ainda a ter-

ceira era, a do Espírito Santo. Assim, toda a história devia ser interpreta-

da como uma história de progresso: da severidade do Antigo Testamento

à relativa liberdade do tempo do Filho, na Igreja, até à plena liberdade

dos Filhos de Deus, no período do Espírito Santo, que, enfim, seria

inclusive o período da paz entre os homens, da reconciliação dos povos e

das religiões. Joaquim de Fiore suscitou a esperança de que o início do

novo tempo viria de um novo monaquismo. Assim, é compreensível que

um grupo de Franciscanos julgasse reconhecer em São Francisco de

Assis o iniciador do novo tempo e, na sua Ordem, a comunidade da nova

época, a comunidade do tempo do Espírito Santo, que deixava atrás de si

63

a Igreja hierárquica, para começar a nova Igreja do Espírito, desligada

das velhas estruturas.

Portanto, havia o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensa-

gem de São Francisco, da sua fidelidade humilde ao Evangelho e à Igreja,

e tal equívoco incluía uma visão errónea do Cristianismo no seu conjunto.

São Boaventura, que em 1257 se tornou Ministro Geral da Ordem

Franciscana, encontrou-se diante de uma grave tensão no interior da sua

própria Ordem, precisamente por causa de quem defendia a mencionada

corrente dos "Franciscanos espirituais", que se inspirava em Joaquim de

Fiore. Exactamente para responder a este grupo e dar nova unidade à

Ordem, São Boaventura estudou com atenção os escritos autênticos de

Joaquim de Fiore e os que lhe eram atribuídos e, tendo em consideração

a necessidade de apresentar correctamente a figura e a mensagem do seu

amado São Francisco, quis expor uma justa visão da teologia da história.

São Boaventura enfrentou o problema na sua última obra, uma colectâ-

nea de conferências aos monges do estúdio parisiense, que ficou incom-

pleta e chegou até nós através das transcrições dos auditores, intitulada

Hexaëmeron, isto é, uma explicação alegórica dos seis dias da criação.

Os Padres da Igreja consideravam os seis ou sete dias da narração sobre

a criação como profecia da história do mundo, da humanidade. Os sete

dias representavam para eles sete períodos da história, mais tarde inter-

pretados também como sete milénios. Com Cristo teríamos entrado no

último, ou seja no sexto período da história, ao qual depois se seguiria o

grande sábado de Deus. São Boaventura supõe esta interpretação histórica

do relatório dos dias da criação, mas de um modo muito livre e inova-

tivo. Para ele, dois fenómenos do seu tempo tornam necessária uma nova

interpretação do curso da história.

O primeiro: a figura de São Francisco, homem totalmente unido a

Cristo até à comunhão dos estigmas, quase um alter Christus, e com São

Francisco a nova comunidade por ele criada, diferente do monaquismo

até agora conhecido. Este fenómeno exigia uma nova interpretação,

como novidade de Deus que surgiu nesse momento.

64

O segundo: a posição de Joaquim de Fiore, que anunciava um

novo monaquismo e um período totalmente novo da história, indo além

da revelação do Novo Testamento, exigia uma resposta.

Como Ministro Geral da Ordem dos Franciscanos, São Boaventura

viu logo que, com a concepção espiritualista inspirada por Joaquim de

Fiore, a Ordem não era governável, mas caminhava logicamente rumo à

anarquia. Para ele, havia duas consequências:

A primeira: a necessária prática de estruturas e de inserção na rea-

lidade da Igreja hierárquica, da Igreja real, tinha necessidade de um fun-

damento teológico, também porque os outros, aqueles que seguiam a

concepção espiritualista, mostravam um aparente fundamento teológico.

A segunda: mesmo tendo em consideração o realismo necessário,

não se podia perder a novidade da figura de São Francisco.

Como respondeu São Boaventura à exigência prática e teórica? Da

sua resposta, posso dar aqui só um resumo muito esquemático e incom-

pleto, em alguns pontos:

1. São Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história.

Deus é um para toda a história e não se divide em três divindades. Por-

tanto, a história é uma só, embora seja um caminho e – segundo São

Boaventura – um caminho de progresso.

2. Jesus Cristo é a última palavra de Deus – nele Deus disse tudo,

doando-se e proclamando-se a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus

não pode dizer, nem doar. O Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho.

O próprio Cristo diz do Espírito Santo: "...ensinar-vos-á tudo o que vos

tenho dito" (Jo 14, 26), "receberá do que é meu para vo-lo anunciar"

(Jo 16, 15). Portanto, não existe outro Evangelho mais excelso, não há

outra Igreja a esperar. Por isso, até a Ordem de São Francisco deve inse-

rir-se nesta Igreja, na sua fé, no seu ordenamento hierárquico.

3. Isto não significa que a Igreja é imóvel, fixa no passado, e que

nela não possa haver novidade. "Opera Christi non deficiunt, sed pro-

65

ficiunt", as obras de Cristo não regridem, não vêm a faltar, mas progri-

dem, diz o Santo na Carta De tribus quaestionibus. Assim, São Boaven-

tura formula explicitamente a ideia de progresso, e esta é uma novidade

em relação aos Padres da Igreja e a uma grande parte dos seus contem-

porâneos. Para São Boaventura Cristo não é mais o fim, como era para

os Padres da Igreja, mas o centro da história; com Cristo, a história não

termina, mas começa um novo período. Outra consequência é a seguinte:

até àquele momento predominava a ideia de que os Padres da Igreja

fossem o ápice absoluto da teologia, e que todas as gerações seguintes só

pudessem ser suas discípulas. Até São Boaventura reconhece os Padres

como mestres para sempre, mas o fenómeno de São Francisco dá-lhe a

certeza de que a riqueza da palavra de Cristo é inesgotável, e que até nas

novas gerações podem despontar novas luzes. A unicidade de Cristo

garante também novidade e renovação em todos os períodos da história.

Sem dúvida, a Ordem franciscana – assim sublinha – pertence à

Igreja de Jesus Cristo, à Igreja Apostólica, e não pode construir-se num

espiritualismo utópico. Mas ao mesmo tempo, é válida a novidade de tal

Ordem em relação ao monaquismo clássico, e São Boaventura – como

eu disse na catequese precedente – defendeu esta novidade contra os

ataques do Clero secular de Paris: os Franciscanos não têm um mosteiro

fixo, e podem estar presentes em toda a parte para anunciar o Evangelho.

Precisamente a ruptura com a estabilidade, característica do monaquis-

mo, a favor de uma nova flexibilidade, restituiu à Igreja o dinamismo

missionário.

Nesta altura, talvez seja útil dizer que até hoje existem visões,

segundo as quais toda a história da Igreja no segundo milénio teria sido

um declínio permanente; alguns vêem o declínio já imediatamente após

o Novo Testamento. Na realidade, "Opera Christi non deficiunt, sed

proficiunt", as obras de Cristo não regridem mas progridem. O que seria

a Igreja sem a nova espiritualidade dos Cistercienses, dos Franciscanos e

Dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa de Ávila e de São João

da Cruz, e assim por diante? Até hoje, é válida esta afirmação: "Opera

Christi non deficiunt, sed proficiunt", progridem. São Boaventura

ensina-nos o conjunto do discernimento necessário, mesmo severo, do

realismo sóbrio e da abertura a novos carismas doados por Cristo no

66

Espírito Santo à sua Igreja. E enquanto se repete esta ideia do declínio,

há também outra ideia, o "utopismo espiritualista", que se repete. Com

efeito, sabemos que, depois do Concílio Vaticano II, alguns estavam

convictos de que tudo era novo, como se houvesse outra Igreja, que a

Igreja pré-conciliar tivesse terminado, e teríamos tido outra, totalmente

"outra". Um utopismo anárquico! E, graças a Deus os timoneiros sábios

da barca de Pedro, Papa Paulo VI e Papa João Paulo II, por um lado

defenderam a novidade do Concílio e por outro, ao mesmo tempo,

defenderam a unicidade e a continuidade da Igreja, que é sempre Igreja

de pecadores e sempre lugar de Graça.

4. Neste sentido, São Boaventura, como Ministro-Geral dos Fran-

ciscanos, assumiu uma linha de governo em que era bem claro que a

nova Ordem não podia, como comunidade, viver à mesma "altura esca-

tológica" de São Francisco, em quem ele vê antecipado o mundo futuro,

mas – guiado ao mesmo tempo por um realismo sadio e pela coragem

espiritual – tinha de se aproximar o mais possível da máxima realização

do Sermão da Montanha, que para São Francisco foi a regra, mesmo

tendo em consideração os limites do homem, marcado pelo pecado

original.

Vemos assim que, para São Boaventura, governar não era sim-

plesmente agir, mas era sobretudo pensar e rezar. Na base do seu governo

encontramos sempre a oração e o pensamento; todas as suas decisões

derivam da reflexão, do pensamento iluminado pela oração. O seu con-

tacto íntimo com Cristo acompanhou sempre o seu trabalho de Ministro

Geral e, por isso, ele compôs uma série de escritos teológico-místicos,

que expressam a alma do seu governo e manifestam a intenção de orien-

tar interiormente a Ordem, isto é, de governar, não só mediante manda-

tos e estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando para

Cristo.

Destes seus escritos, que são a alma do seu governo e mostram o

caminho a percorrer, tanto ao indivíduo como à comunidade, gostaria de

mencionar um só, sua obra-prima, o Itinerarium mentis in Deum, que é

um "manual" de contemplação mística. Este livro foi concebido num

lugar de profunda espiritualidade: o monte La Verna, onde São Francisco

67

tinha recebido os estigmas. Na introdução, o autor explica as circunstân-

cias que deram origem a este seu escrito: "Enquanto eu meditava sobre

as possibilidades de a alma se elevar a Deus, apresentou-se-me, entre

outros, aquele acontecimento admirável ocorrido naquele lugar com o

bem-aventurado Francisco, ou seja a visão do Serafim alado em forma

de Crucifixo. E meditando sobre isto, dei-me conta imediatamente de

que tal visão me oferecia o êxtase contemplativo do próprio pai Francisco

e, ao mesmo tempo, o caminho que a ele conduz" (Itinerário da mente

para Deus, Prólogo, 2 em Obras de São Boaventura. Opúsculos Teoló-

gicos/1, Roma 1993, pág. 499).

Assim, as seis asas do Serafim tornam-se o símbolo de seis etapas

que conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus

através da observação do mundo e das criaturas, e através da exploração

da própria alma com as suas faculdades, até à união total com a Trindade

por meio de Cristo, à imitação de São Francisco de Assis. As últimas

palavras do Itinerarium de São Boaventura, que respondem à pergunta

sobre o modo como se pode alcançar esta comunhão mística com Deus,

deviam tocar o mais fundo do coração: "Se agora desejas saber como

acontece isto (a comunhão mística com Deus), interroga a graça, não a

doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da

letra; o esposo, não o mestre; Deus, não o homem; as trevas, não a clareza;

não a luz, mas o fogo que tudo inflama e transporta em Deus, com as

fortes unções e os afectos ardentíssimos... Portanto, entremos nas trevas,

silenciemos os anseios, as paixões e os fantasmas; passemos com Cristo

Crucificado deste mundo para o Pai, para, depois de o ter visto, dizer-

mos com Filipe: basta-me isto" (Ibid., VII, 6).

Queridos amigos, aceitemos o convite que nos é dirigido por São

Boaventura, o Doutor Seráfico, e coloquemo-nos na escola do Mestre

divino: ouçamos a sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa no íntimo

da nossa alma. Purifiquemos os nossos pensamentos e as nossas acções,

a fim de que Ele possa habitar em nós, e nós possamos ouvir a sua Voz

divina, que nos atrai para a verdadeira felicidade.

68

III - MEDITAÇÃO

Esta manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gosta-

ria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaven-

tura de Bagnoregio. Ele é um teólogo eminente, que merece ser posto ao

lado de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de

Aquino. Ambos perscrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os

recursos da razão humana, naquele diálogo fecundo entre fé e razão que

caracteriza a Idade Média cristã, fazendo dela uma época de grande

vivacidade intelectual, e também de fé e de renovação eclesial, muitas

vezes não suficientemente evidenciada. Eles são irmanados por outras

analogias: tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano,

pertenciam às Ordens Mendicantes que, com o seu vigor espiritual,

como recordei em catequeses precedentes, renovaram no século XIII a

Igreja inteira e atraíram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja

com diligência, com paixão e com amor, a ponto de terem sido convida-

dos a participar no Concílio Ecuménico de Lião em 1274, o mesmo ano

em que vieram a falecer: Tomás, enquanto ia a Lião, Boaventura durante

a realização do mesmo Concílio. Também na Praça de São Pedro as

imagens dos dois Santos são paralelas, colocadas precisamente no início

da Colunata, a partir da fachada da Basílica Vaticana: uma na Ala da

esquerda, e a outra na Ala da direita. Não obstante todos estes aspectos,

podemos ver nos dois grandes Santos duas abordagens diversas da pes-

quisa filosófica e teológica, que mostram a originalidade e a profundida-

de de pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas

destas diferenças.

Uma primeira diferença diz respeito ao conceito de teologia.

Ambos os doutores perguntam se a teologia é uma ciência prática ou

uma ciência teórica, especulativa. São Tomás reflecte sobre duas possí-

veis respostas contrastantes. A primeira diz: a teologia é reflexão sobre a

fé, e a finalidade da fé é que o homem se torne bom, viva segundo a von-

tade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia deveria ser a de guiar

pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no fundo, ela é uma ciência

prática. A outra posição diz: a teologia procura conhecer Deus. Nós

somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir. Deus realiza em nós

o agir justo. Por conseguinte, trata-se substancialmente não do nosso

69

fazer, mas de conhecer Deus, não do nosso agir. A conclusão de São

Tomás é: a teologia implica ambos os aspectos: é teórica, procura

conhecer Deus cada vez mais, e é prática: procura orientar a nossa vida

para o bem. Mas há um primado do conhecimento: sobretudo, temos de

conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (cf. Summa Theologiae,

ia, q. 1, art. 4). Este primado do conhecimento em relação à prática é

significativo para a orientação fundamental de São Tomás.

A resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas os matizes

são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em

ambas as direcções, como São Tomás, mas para responder à pergunta se

a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma dis-

tinção tríplice – portanto, amplia a alternativa entre teórico (primado do

conhecimento) e prático (primado da prática), acrescentando uma terceira

atitude, que chama "sapiencial", e afirmando que a sabedoria abrange

ambos os aspectos. E depois continua: a sabedoria procura a contem-

plação (como a mais elevada forma do conhecimento) e tem como inten-

ção "ut boni fiamus" – que nos tornemos bons, sobretudo isto: tornar-nos

bons (cf. Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta: "A fé está no

intelecto, de tal modo que provoca o afecto. Por exemplo: saber que

Cristo morreu "por nós" não permanece conhecimento, mas torna-se

necessariamente afecto, amor" (Proemium in I Sent., q. 3).

A sua defesa da teologia, ou seja, da reflexão racional e metódica

da fé, move-se na mesma linha. São Boaventura enumera alguns argu-

mentos contra a prática da teologia, talvez difundidos também entre

alguns dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo: a

razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta em relação à palavra de

Deus, temos de ouvir e não analisar a palavra de Deus (cf. Carta de São

Francisco de Assis a Santo António de Pádua). A estes argumentos contra

a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o

Santo responde: é verdade que existe um modo arrogante de fazer teolo-

gia, uma soberba da razão, que se põe acima da palavra de Deus. Mas a

verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem

outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez

melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a

razão e sua busca motivada pela soberba, "sed propter amorem eius cui

70

assentit" – "motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consenti-

mento" (Proemium in I Sent., q. 2), e quer conhecer melhor o amado:

esta é a intenção fundamental da teologia. Portanto, no final, para São

Boaventura é determinante o primado do amor.

Por conseguinte, São Tomás e São Boaventura definem de modo

diferente o destino último do homem, a sua plena felicidade: para São

Tomás o fim supremo ao qual se dirige nosso desejo é: ver Deus. Neste

simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram solução: esta-

mos felizes, nada mais é necessário.

Para São Boaventura, o destino último do homem é outro: amar

Deus, o encontrar-se e o unir-se do seu e do nosso amor. Esta é para ele

a definição mais adequada da nossa felicidade.

Nesta linha, poderíamos dizer também que para São Tomás a cate-

goria mais elevada é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem.

Seria errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a

verdade é também o bem, e o bem é também a verdade; ver Deus é

amar, e amar é ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma

visão fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferen-

tes tradições e diversas espiritualidades, e assim mostraram a fecundi-

dade da fé, uma só na diversidade das suas expressões.

Voltemos a São Boaventura. É evidente que o aspecto específico

da sua teologia, do qual só dei um exemplo, se explica a partir do caris-

ma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para além dos debates intelec-

tuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o primado do

amor; era um ícone vivo e apaixonado de Cristo e assim, na sua época,

tornou presente a figura do Senhor não convenceu os seus contemporâ-

neos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São

Boaventura, precisamente também as obras científicas, escolares, vê-se e

encontra-se esta inspiração franciscana; ou seja, observa-se que ele pensa

a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. No entanto, para com-

preender a elaboração concreta do tema "primado do amor", temos de ter

presente mais uma fonte: os escritos do chamado Pseudodionísio, um

teólogo sírio do século VI, que se escondeu sob o pseudónimo de Dionísio,

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o Areopagita, referindo-se com este nome a uma figura dos Actos dos

Apóstolos (cf. 17, 34). Este teólogo tinha criado uma teologia litúrgica e

uma teologia mística, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos.

Os seus escritos foram traduzidos em latim no século IX; na época de

São Boaventura – estamos no século XIII – surgia uma nova tradição,

que despertou o interesse do Santo e dos outros teólogos do seu século.

Duas coisas chamavam a atenção de São Boaventura de modo particular:

1. O Pseudodionísio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes

tinha encontrado na Escritura e depois disposto à sua maneira, desde os

anjos simples até aos serafins. São Boaventura interpreta estas ordens

dos anjos como degraus na aproximação da criatura a Deus. Assim eles

podem representar o caminho humano, a elevação rumo à comunhão

com Deus. Para São Boaventura não há qualquer dúvida: São Francisco

de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins,

ou seja: era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos.

Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação a

Deus não pode ser inserido num ordenamento jurídico, mas é sempre um

dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem franciscana é

mais modesta, mais realista, porém deve ajudar os membros a aproxi-

mar-se cada vez mais de uma existência seráfica de amor puro. Na

quarta-feira passada, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e

radicalidade evangélica no pensamento e no agir de São Boaventura.

2. Contudo, São Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodio-

nísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para

Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a última

categoria do conhecimento, o Pseudodionísio dá mais um passo: na esca-

lada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a razão já não vê.

Mas na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê aquilo que permanece

inacessível à razão. O amor estende-se além da razão, vê mais, entra

mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura sentia-se

fascinado por esta visão, que se encontrava com a sua espiritualidade

franciscana. Precisamente na noite obscura da Cruz aparece toda a gran-

deza do amor divino; onde a razão já não vê, o amor vê. As palavras

conclusivas do seu "Itinerário da mente para Deus", a uma leitura super-

ficial podem parecer como expressão exagerada de uma devoção sem

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conteúdo; por outro lado, lidas à luz da teologia da Cruz de São Boaven-

tura, elas são uma expressão límpida e realista da espiritualidade francis-

cana: "Se agora desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada

para Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o

gemido da oração, não o estudo da letra; ... não a luz, mas o fogo, que

tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isto não é anti-

-intelectual e não é anti-racional: supõe o caminho da razão, mas trans-

cende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mís-

tica do Pseudodionísio, São Boaventura coloca-se nos primórdios de

uma corrente mística, que elevou e purificou em grande medida a mente

humana: é um ápice na história do espírito humano.

Esta teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do

Pseudodionísio e a espiritualidade franciscana, não nos deve fazer

esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis

também o amor pela criação, a alegria pela beleza da criação de Deus.

Cito nesta altura uma frase do primeiro capítulo do "Itinerário":

"Quem... não vê os inúmeros esplendores das criaturas é cego; aquele

que não desperta com tantas vozes é surdo; quem não louva a Deus por

todas estas maravilhas é mudo; aquele que de tantos sinais não se eleva

ao primeiro princípio é estulto" (I, 15). Toda a criação fala em voz alta

de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor.

Portanto, toda a nossa vida é para São Boaventura um "itinerário",

uma peregrinação – uma escalada rumo a Deus. Mas, só com as nossas

forças, não podemos elevar-nos à altura de Deus. O próprio Deus deve

ajudar-nos, deve "puxar-nos" para o alto. Por isso, é necessária a oração.

A oração – como diz o Santo – é a mãe e a origem da elevação – "sur-

sum actio", acção que nos leva para o alto – diz Boaventura. Por isso,

concluo com a prece, com a qual ele começa o seu "Itinerário": "Portanto,

oremos e digamos ao nosso Senhor Deus: "Conduz-me, Senhor, pela tua

via, e eu caminharei na tua verdade. Alegre-se o meu coração no temor

do teu nome"" (I, 1).