cadernos da adufrj que copa é esta

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QUE COPA É ESTA? Ano 1 - nº 1 - junho/julho/agosto de 2014 JUNHO DE 2013. No auge dos protestos, tropa posicionada diante do estádio Mané Garrincha, na capital do Brasil, durante a Copa das Confederações

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Cadernos da Adufrj-SSind - Que copa é esta ?

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QUE COPA É ESTA?

Ano 1 - nº 1 - junho/julho/agosto de 2014

JUNHO DE 2013. No auge dos protestos, tropa posicionada diante do estádio Mané Garrincha, na capital do Brasil, durante a Copa das Confederações

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O Maracanã do povão e das explosões das torcidas nas tardes de domingo não existe mais. Vestiram nele a roupa do mercado para a grande festa dos negócios. A assepsia da sua nova arquitetura e os preços proibitivos interditam o acesso da cidade suburbana às suas arquibancadas que, aliás, desapareceram. Pelo simbolismo, o estádio concentra as contradições que reduziram a realização da

Copa do Mundo no Brasil a uma grande encrenca. Enredaram o Maracanã em

contas superfaturadas e, em seguida, veio a privatização. O Maraca foi implodido como, aliás, sugeriu certa vez João Havelange.

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4 junho/julho/agosto de 2014

Diretoria da Adufrj-SSindPresidente Cláudio Rezende Ribeiro1ª Vice-Presidente: Luciana Boiteux de Figueiredo Rodrigues2ª Vice-Presidente Cleusa dos Santos1º Secretário José Henrique Sanglard2º Secretário Romildo Vieira do Bomfim1º Tesoureiro Luciano Rodrigues de Souza Coutinho2ª Tesoureira Regina Célia de Souza PuglieseCoordenador de Comunicação Luiz Carlos MaranhãoEditor Assistente Kelvin MeloProjeto Gráfico e Diagramação Gil CastroFoto de capa Midianinja Arte sobre foto Gil Castro

Uma publicação da Coordenação de Comunicação da Adufrj-SSind.

Os artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da Diretoria.

Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior

Ano 1 - nº 1 - junho/julho/agosto de 2014

2NO FOCO

5O público e o privado

6O sentido das palavras

12A bola vai rolar... pra que lado?

18A rua que educa

24

Copa para quem?Os grandes eventos esportivos sob o olhar dos direitos humanos

32Grandes eventos esportivos e a cidadeQuem joga e quem fica de fora?

38

Invisibilidades na cidade dos MegaeventosPlanejamento e a perspectiva do reconhecimento das desigualdades de gênero

46NO PRELOCopas e ditaduras

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LIVROSColetânea da Boitempo discute Copa e Olimpíadas

50PORTFÓLIOUma leitura plástica da Copa no Brasil

E-mails: [email protected], [email protected] Redação: [email protected] Diretoria: [email protected] Conselho de Representantes: [email protected] Página eletrônica: www.adufrj.org.br Sede e Redação: Prédio do CT — bloco D — sala 200 Cidade Universitária CEP: 21949-900, Rio de Janeiro — RJ Caixa Postal 68531, CEP: 21941-972Tel: 2230-2389, 3884-0701 e 2260-6368

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O Brasil nunca foi o território da passividade, da ausência de luta,

da aceitação de injustiças. As desigualdades que acompanham sua história sempre foram combatidas de formas variadas e muito intensas, seja no campo, seja nas cidades: dentre estas, o Rio de Janeiro possui uma tradição combativa e popular extraordinária.O cenário contemporâneo reforça esta história. Por um lado, há uma política urbana que aprofunda o processo de mercantilização do solo urbano, elevando seu preço, privatizando seu uso, ampliando desigualdades, enfim, transformando a cidade do Rio de Janeiro em um negócio que, para realizar seu ganho, demanda ações violentas que perpassam pela vigilância intensiva, o retorno

às remoções, a ampliação de vulnerabilidades várias. Estas ações têm consequências drásticas no campo dos direitos sociais tais como habitação, segurança, educação e saúde públicas. Cada vez mais, o espaço da cidade naturaliza seu uso, sua finalidade e seu controle privados. Como resposta, protestos das mais diversas formas e reunindo diferentes bandeiras têm cada vez mais tomado conta da paisagem urbana, retomando, na sua concretude, o lado público do espaço coletivo através da luta.Nesta a primeira edição da revista Cadernos Adufrj, que integra a comemoração dos 35 anos da Seção Sindical, trazemos para o debate diferentes maneiras de observação crítica a respeito da resistência a este projeto hegemônico de cidade, acelerado

pela realização dos megaeventos esportivos (Copa e Olimpíadas). Ensaios feitos por professores sindicalizados de diversas áreas da UFRJ, mostrando a possibilidade de articulação que o pensamento crítico possui constrói, ao mesmo tempo, um espaço de reflexão que abre um debate para além da esfera universitária, ampliando as formas de entendimento da realidade na direção de reforçar a necessidade de resgate daquilo que é público. Neste número, participam professores das áreas de Arquitetura e Urbanismo, Direito, Educação Física, Letras e Planejamento Urbano e Regional. Além dos seus ensaios, uma entrevista traz os estudantes do DCE-Mário Prata, entidade que tem protagonizado, de forma cada vez mais ativa, a retomada da vida política de nossas ruas. Somente uma educação pública, gratuita e de qualidade permite haver este tipo de ação reflexiva autônoma. É tarefa de todos nós batalharmos para manter um espaço público de reflexão por excelência: boa leitura!

Saudações sindicais,

Diretoria da Adufrj-SSind

O PÚBLICO E O PRIVADO

▼ IMPLOSÃO A cidade sob ataque da lógica neoliberal tem o seu espaço mercantilizado por decisões autoritáriasAGÊNCIA O DIA

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O SENTIDO DAS PALAVRAS

ARTIGO

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Uma reflexão sobre a linguagem dos muros na sua expressão simbólica e real. Muros da rebeldia, muros da segregação

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8 junho/julho/agosto de 2014

OS MUROS DO SIM E DO NÃO

prendera sobre os sentidos das palavras saudade e me-lancolia na linguagem dos

muros. O primeiro, ligado à in-fância, resgatava o vulto da avó, num vestido de minúsculas flo-res. Era carnaval. No colo do pai, visitaria o Centro da cidade, para assistir ao desfile de tradicionais blocos de frevo: Lenhadores, Pás Douradas, Vassourinhas. Ela, a avó, ficava. Cotovelos apoiados ao muro, com as pequenas mãos a sustentarem o rosto.

O segundo recuperaria a silhue-ta de um homem de meia-idade que, parecendo cumprir um ritu-al, à hora de sempre, aproximava-se do muro da casa em que mo-rava e ali se deixava ficar, com os olhos perdidos no vazio da rua. Quem por ele passava dirigia-lhe um cumprimento grave, quase

inaudível, carregado de reverên-cia. A casa verde talvez lhe recor-dasse um gramado antigo. Curio-samente, a cor seria mantida pe-los futuros ocupantes. Chamava-se Barbosa. Quem o via imaginava que o mesmo filme estaria rebo-binado em sua mente, na tentati-va frustrada de agarrar a bola que lhe escapava. Era goleiro na sele-ção brasileira de 50. Ao levar o gol, ao final do segundo tempo, silen-ciaria o Maracanã, inaugurado para a Copa daquele ano. Ghiggia, o ponta direita uruguaio, chutara com precisão. Barbosa para mui-tos representou o herói trágico.

As imagens, arquivadas em al-gum ponto da memória, retor-nam vivamente quando se per-corre as ruas do bairro. Tais ins-tantes parecem trançar os fios de elementos fortemente arrai-gados em nossa cultura — o car-naval e o futebol. Ambos passa-ram por mudanças. Quando se julgava que o primeiro desapare-

ceria frente ao aparato empresa-rial, dominando as grandes esco-las de samba, dos ingressos a cus-tos inacessíveis ao público, como se fora uma Fênix renascida, sur-giria revigorado, quer nas bandas dos bairros, quer na explosão dos incontáveis blocos da cidade. O futebol, parecendo acompanhar o mesmo movimento, se trans-formou, desapareceu dos “cam-pinhos” de terra batida nos su-búrbios, onde se praticava o es-porte de pés descalços, e migrou para as quadras de futebol de sa-lão. Ficariam para trás chutes ge-niais como a inesquecível “folha seca” do elegante Didi. O verde não evocaria apenas o gramado, ganhara um novo significado: o das altas transações comerciais.

Um pouco da história de recan-tos, lugares e cidades pode ser contado na linguagem dos mu-ros, numa intrigante trama al-química de palavras, símbolos e fórmulas pincelados.

* Professora da Faculdade de Le-tras da UFRJ

ARTIGO

▼ CINDA GONDA*

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9junho/julho/agosto de 2014

OS MUROS DO SIM E DO NÃO

“Não há retorno: tudo é labirinto.”

Eugénio de Andrade

Frases como Celacanto provoca maremoto, cujo enigma tentava-se decifrar, ou as explícitas Abai-xo a ditadura, Anistia para to-dos, Liberdade; ou ainda: Gentile-za Gera Gentileza, remetem-nos a um passado não muito distante, em que o espaço público funcio-nava como palco para as reivin-dicações que fervilhavam.

À mesma época, do outro lado do Atlântico, outras inscrições nos chegariam, mantendo por aqui a chama da esperança: Seja realista, exige o impossível, A ima-ginação no poder. Estávamos em maio de 68, na França. A força da juventude, como num rastilho de pólvora, parecia incendiar o planeta.

Pouco depois, José Cardoso Pi-res, seu livro E agora, José?, nos daria notícia dos diversos aspec-tos da Revolução dos Cravos, que, dia 25 de Abril de 1974, pôs fim a 48 anos de regime salazaris-ta. Ainda uma vez, os muros, até

então caiados, surgiriam em Lis-boa, da noite para o dia, repletos de inscrições:

Até os muros, que antes eram ve-dações impávidas ou autoritárias (na realidade recusavam qualquer aproximação com a ameaça do proibido: “proibido afixar”, “proi-bido estacionar”) até os muros se tornaram livres e populares. Mais ainda: falam, criticam a vida com o hábil diabólico humor do anoni-mato. 1

Daí que, como narra o autor, encontrássemos numa facha-da de igreja a anotação: “Deus é parvo!”. No dia seguinte ou-tra mão acrescentaria: “Parvo és tu. Assinado: Deus”. Numa ou-tra inscrição é possível se ler: “O voto é a arma do povo”. Logo em seguida outro responde: “Se vo-tas ficas desarmado”. Prossegue Pires, vivia-se o fértil período do diálogo, “diálogo a todas as vo-

1 PIRES, José Cardoso. E agora, José? Lisboa: Moraes Editores, 1977, p. 269.

zes, no diálogo dos muros”, [...] muito do nosso saber está resu-mido ali, [...] e foi escrito por to-dos e ninguém — o homem que passa e o militante nocturno, o artista de mão ignorada e o pro-feta comum”. (PIRES, p. 270)

Dez anos depois dos cravos, no Brasil, viveríamos o perío-do das “Diretas Já”. A votação da emenda constitucional Dan-te de Oliveira ocorreria em 25 de abril de 1984. Não poderia se tratar de simples coincidên-cia. O país clamava por mudan-ças. Comícios fantásticos pare-ciam revelar que finalmente re-cuperávamos a cidadania. Do desejo, passou-se à frustração — a emenda, por poucos vo-tos, foi rejeitada. Desorientado, sem que nenhum sentido, rumo ou direção lhe fosse proposto, o clamor silenciou.

Sabemos que tudo na vida se ergue sobre contradições. Se por um lado evocamos os muros e

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suas lições, também é certo que a simples menção à palavra vem carregada de outros significados.

Da euforia pela queda do Muro de Berlim, em 1991, assistimos, não sem perplexidade, à cons-trução de outros que se erguiam: nos Estados Unidos, demarcan-do a fronteira com o México; no Oriente Médio, isolando os pales-tinos, tendo como objetivo o de impedir a circulação de pessoas. A lógica perversa parece confir-mar que o capital se move. A mão que o produz, não.

O Brasil acompanharia a ten-dência. Há os que cercam as fave-las, os das vias expressas, como nas Linhas Vermelha e Amare-la. É certo que nem todo proces-so que separa e divide é facilmen-te visível, detectável. Lima Barre-to, ao final do século XIX, deno-minaria de “fronteira simbólica” a que separava os limites entre Zona Norte e Zona Sul.

A precarização do trabalho, a restrição aos direitos humanos, o sucateamento da saúde e da edu-cação, o rápido acesso à informa-ção se alastrando pelas redes so-ciais produziram um período de manifestações de rua em várias partes do mundo. Diversos seg-mentos da sociedade civil, servi-dores públicos, bancários, estu-dantes, médicos e professores de-nunciavam a precariedade das instalações hospitalares, com a crônica falta de recursos, as uni-versidades com salas de aula que se deterioravam e o consequente aviltamento dos salários, no ensi-no médio e fundamental. A cada chamado, a população compa-recia e correspondia, com todas as contradições que porventura ali pudessem existir. A morte de um cinegrafista se transformou

no estopim para que leis draco-nianas e repressivas surgissem, criminalizando o direito de pro-testar e semeando o medo, atrás do objetivo final de esvaziar as ruas. A prisão de dois jovens ser-viria como exemplo aos incautos. Um ano depois, junho retornaria, com outras palavras a anunciá-lo.

Sabe-se que a escolha do Bra-sil para sediar a Copa e os Jogos Olímpicos trouxe profundas al-terações. Algumas áreas, no su-búrbio, por exemplo, assistem à destruição de bairros inteiros. Os poucos espaços de lazer, uma pracinha — onde a garotada, a cada tombo da gangorra ou do balanço, ralava o joelho, porque grama tratada é privilégio para poucos (única diversão do lugar) — teve suas dimensões drastica-

mente reduzidas. Viadutos impo-nentes passam pela frente de es-colas, ocupam o lugar de lojas co-merciais e/ou casas centenárias. Isto para não falar do processo de remoção, que agora atinge o as-falto; “as casas simples com ca-deiras na calçada” desaparecem. Desorientadas, as pessoas não sabem a quem recorrer: “Aqui me criei. Nesta casa, me casei. Aqui, meus filhos e netos nasceram. Tinha o direito de aqui, em mi-nha casa, morrer.” Vinda de mui-to longe, de tempos imemoriais, outra voz a ela parece se juntar, “nada responde a nada”.

Em meio a tudo isso, o para-deiro das vigas da perimetral, da extensa e preciosa fiação de co-bre dos bondinhos de Santa Te-resa permanece desconhecido. Por onde andarão? Projetos ficam a meio do caminho, como o do Porto Maravilha.

A mobilidade se mantém pre-cária, como precárias e insufi-cientes são as políticas (se ao me-nos existissem...) de saúde e edu-

ARTIGO

▼ MURO DA VERGONHA O muro que separa o México (à direita) dos EUA (à esquerda). Vigilância 24 horas por patrulhas policiais fortemente armadas

RYAN

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11junho/julho/agosto de 2014

cação públicas. A carência des-sas importantes áreas, os parcos recursos a elas destinados ge-ram insatisfação, talvez por do-loroso contraste com os robustos aportes financeiros destinados à agenda esportiva programada e (in)consequentes investimentos. Ainda uma vez, os muros falam: Não vai ter Copa. As palavras de Gerd Bornheim parecem ga-nhar confirmação: “O povo não é bobo. Compra Omo sabendo que não lava mais branco”.

Não sem uma ponta de nos-talgia, experimenta-se a sensa-ção de vazio, de algo que se per-de, mas que ainda não se consu-mou, como se um pouco de nossa história, um pouco de nossa cul-tura lentamente se esfumaças-se. O fim da Geral do Maracanã, não deixa de marcar o término de uma era, fixada em imagens do “Jornal da Tela”, que antecedia a projeção do filme programado semanalmente. Ali o povão ex-plodia de alegria quando a rede balançava. A trilha sonora, com seus metais vibrantes, hoje so-fre uma releitura mais apropria-da, condizente com os tempos que correm. A letra da canção é sussurrada, talvez envergonha-da pelo alto preço do ingresso, acessível apenas ao novo público que poderá comparecer. Tempos de FIFA, porque a ela pertence o poder de determinar regras, ou, se preferirmos, tempos de “im-perialismo cultural”. Sigamos as palavras de Pierre Bourdieu em “O mundo norte-americano. A Nova Bíblia de Tio Sam”.

A difusão dessa nova vulgata pla-netária — da qual estão notavel-mente ausentes capitalismo, clas-se, exploração, dominação, desi-gualdade, e tantos vocábulos de-

cididamente revogados sob o pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência — é pro-duto de um imperialismo apro-priadamente simbólico: seus efei-tos são tão mais poderosos e perni-ciosos porque ele é veiculado não apenas pelos partidários da revo-lução liberal — que, sob a capa da “modernização”, entende recons-truir o mundo fazendo tábula rasa das conquistas sociais e econômi-cas resultantes de cem anos de lu-tas sociais, descritas a partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova ordem nascente, porém também por produtores cul-turais (pesquisadores, escritores e artistas) e militantes de esquerda que, em sua maioria, ainda se con-sideram progressistas.2

Joel Birman, reconhecido psi-canalista, em palestra proferi-da na Faculdade de Letras da UFRJ (2009), considerava que a época que vivemos encontra-se destituída de paixões. Ao dis-correr sobre o tema, recuperava os grandes embates, que se tra-vavam sempre, ou quase sem-pre, por (des)razões de amor, envolvendo estrelas e astros da MPB, como, por exemplo, Dal-va de Oliveira e Herivelto Mar-tins. Desses confrontos, resulta-vam os sambas-canções que ex-punham de forma rasgada a “dor de cotovelo”. Segundo ele, “hoje tudo é muito clean, tudo mui-to bem comportado”. As pistas fornecidas por Birman, talvez revelem a mudança radical da classe que frequenta o novo Ma-racanã. Afinal, se há algo caro à burguesia é o traço da conten-ção, tudo deve ser medido, con-

2 BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. O Mundo Norte-Americano. A Nova Bí-blia de Tio Sam. Trad. Teresa Vaer Acker. Fó-rum Mundial, Porto Alegre. 2002. www.dh-net.org.br

trolado — o gesto, a palavra, o prazer — porque o processo de produção tem de ser preserva-do a qualquer preço. No hori-zonte burguês, não há história, só natureza — a burguesa, por suposto.

A linguagem dos muros, como um toque de alerta, envia sinais. Grafites criativos, mensagens, continuam a significar. Rostos desenhados sem as bocas dão conta da censura, do silêncio imposto. De uma janela, avista-se a inscrição recente: “Emanci-pa Teresa. Bairro Anarquista Já. AUTOGESTÃO.”

No momento em que o Estado laico se vê ameaçado por fana-tismos religiosos, em que alian-ças políticas impensáveis proli-feram, limitando a possibilidade de escolhas em pleitos eleitorais, não deixa de ser estimulante o convite que dessacraliza o bair-ro antigo.

Recuperemos o dia 12 de ju-nho de 2012. Estávamos em gre-ve e a Universidade saindo de sua letargia. Dentre as ativida-des programadas, panfletaría-mos a Central, o Centro da Ci-dade. O fim da jornada nos en-contraria cansados, mas con-fiantes. Um coração vermelho, com a frase “Saúde e Educa-ção: Namore essa ideia”, cativou quem o recebia. Barrar os avan-ços da EBSERH, e a consequen-te privatização do Hospital Uni-versitário Clementino Fraga Fi-lho e de outros em diversas uni-versidades do país, foi um dos resultados da luta. Por vezes, um não é uma forma de se afir-mar, funciona como um porto onde, vez por outra, ancoramos a esperança.

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12 junho/julho/agosto de 2014

A BOLA VAI ROLAR...

▼ CARLOS VAINER*

* Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro, Coorde-nador da Rede de Observatórios de Conflitos Urbanos e do Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual.

I. A FAGULHA E A PRADARIA

em alguns casos, acaba tornando possíveis algumas transforma-ções sociais e políticas que pare-ciam inalcançáveis e inimaginá-veis poucos dias antes.

Governantes, políticos de to-dos os partidos, imprensa, cro-nistas políticos e grande núme-ro de cientistas sociais foram pe-gos de surpresa por eventos que mudavam a face e o quotidiano de nossas cidades. Também sur-preendente a maneira com que os acontecimentos vinham des-fazer, ao menos parcialmente, o paradoxo de uma sociedade ur-

De junho a agosto de 2013, 10 a 15 milhões de pessoas foram às ruas, em mais de 500 cidades, nas mais diferentes regiões do Brasil. Pela rapidez com que se espraia-ram, pelas multidões que mobili-zaram, pela diversidade de temas postos, as manifestações ofere-ceram à sociedade brasileira um desses raros momentos da his-tória em que a possibilidade de mudanças e rupturas se impõe à agenda política da sociedade, e,

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▼ RIO DE JANEIRO Cerimônia de sorteio preliminar da Copa do Mundo da Fifa Brasil 2014

PRA QUE LADO?

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13junho/julho/agosto de 2014

bana que, nos últimos 10 a 20 anos, viu os movimentos sociais rurais dominarem as pautas das lutas populares. Se no proces-so de democratização e nos anos 1980 o movimento operário e os movimentos urbanos pareciam traduzir politicamente as contra-dições da modernização e urba-nização aceleradas por que ha-via passado a sociedade brasilei-ra desde o pós-guerra, o período

que se abriu nos anos 1990 apon-

tou para uma espé-cie de “ruralização da

luta social”: MST (Mo-vimento de Trabalhado-

res Rurais Sem Terra), MAB (Movimento de Atingidos por

Barragens (MAB), resistência de populações tradicionais à des-truição de seus meios e modo de vida ocuparam o proscênio da arena política popular.

Há muito tempo, multiplica-vam-se, no tecido social urbano, diferenciadas, dispersas e frag-mentadas manifestações de pro-testo, insatisfação e resistência. O que provocou esta unidade que tantos desejaram e outros tantos procuravam evitar? Em termos imediatos e conjunturais, a res-posta provavelmente estaria na arrogância e brutalidade dos de-tentores do poder. Sua incapaci-dade de perceber a velha toupei-

ra1 que trabalhava no subsolo do tecido social, promoveu, em pou-cos dias, aquilo que militantes, organizações populares e setores do movimento social urbano vi-nham tentando há algum tempo: unificar descontentamentos, lu-tas, reivindicações, anseios.

Estamos assistindo, e ainda hoje, à prepotência dos grupos políticos e do conjunto de interes-ses que, em torno dos megaeven-tos esportivos (Copa do Mundo 2014, Jogos Olímpicos Rio 2916),

1 “Nos sinais que alarmam a classe média, a aristocracia e os infelizes profetas da reação, reconhecemos nosso bom amigo, Robin Hood, a velha toupeira que sabe trabalhar tão bem sob a terra para aparecer bruscamente: a revolução” (Marx, 1856).

ARTIGO

MIDIANINJA

▼ DESPEJO Mãe e filha expulsas da Favela da Telerj no Rio de Janeiro

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14 junho/julho/agosto de 2014

associaram a mídia, grandes cor-porações nacionais, especulado-res, empreiteiras e o cartel em-presarial internacional articula-do pela FIFA e COI. Sua cegueira, autossuficiência, violência, assim como o indisfarçável ataque ao fundo público, trouxeram para a esfera da ação coletiva centenas de milhares, milhões de jovens até ontem distantes da experiên-cia política, jovens e outros não tão jovens, que embora descon-tentes, até há pouco tempo acha-vam que nada se podia fazer... a não ser aceitar a reprodução do status quo. Chamamos a isso de autismo social e político dos do-minantes: as redes de televisão não apenas projetam um mun-do fictício através de suas men-sagens como, elas também, pa-recem ser envolvidas pela misti-ficação que produzem.

O fato é que foram rapidamen-te ultrapassados. Tiveram que re-conhecer que estavam diante de uma ampla, poderosa, profunda e abrangente manifestação po-lítica de protesto. À margem dos partidos e organizações políti-cas e sindicais tradicionais, in-capazes de canalizar e expressar a vitalidade e a diversidade dos protestos e reivindicações, nem por isso tratou-se de um proces-so “sem política” ou “sem foco”. O foco estava lá, só não viu quem olha para a árvore e não vê a flo-resta: transporte, saúde, educa-ção, corrupção, democracia, des-perdício dos recursos públicos, participação política, direitos humanos. Sob alguns aspectos, chega a ser surpreendente o al-tíssimo nível de consciência po-lítica expressa, embora de forma pouco organizada, pelos milhões que estavam indo às ruas.

Este movimento não foi casu-al. Embora não estivesse escrito desde o início dos tempos que ele ocorreria, não ocorreu por acaso. E se a violência repressiva o de-flagrou, não o explica. Uma fa-gulha pode incendiar uma pra-daria, dizia Mao Tsé-Tung2. Ora, qualquer esforço de análise que pretenda examinar os processos em curso desde uma perspecti-va histórica deve dirigir seu olhar não para a fagulha que deflagrou o incêndio, mas para as condi-ções da pradaria, que, estas sim, explicam porque o fogo pode se propagar. A pradaria, como ago-ra se sabe, estava seca, pronta pra incendiar-se. E o vento soprava de maneira intensa para espalhar o primeiro fogo.

II. A PRADARIA: A CIDADE NEOLIBERAL, A CIDADE-EMPRESA, A CIDADE-MERCADORIA

A pradaria são as cidades. O que aconteceu nas cidades

brasileiras nos últimos anos que

2 Texto escrito em 1930 que inte-grou o famoso livro vermelho que foi a bíblia da primeira etapa da Revolução Cultural.

as preparou para se tornarem não apenas o cenário, mas tam-bém, e sobretudo, o objeto e alvo das lutas de milhões?

Megaeventos, meganegócios, megaprotestos. Não há como não reconhecer a conexão estreita en-tre os protestos em curso e o con-texto propiciado pelos intensos e maciços investimentos urba-nos associados à Copa do Mundo 2014 e, no caso do Rio de Janei-ro, também aos Jogos Olímpicos 2016. Mas se queremos ir além da superfície, há que entender as transformações que estes megae-ventos imprimem em nossas ci-dades e a concepção de cidades que eles expressam e atualizam de forma intensa.

A adoção das diretrizes e con-cepções neoliberais que reconfi-guraram as relações entre capi-tal, estado e sociedade, a partir da última década do século pas-sado, teve profundas repercus-sões no lugar e papel da cidade no processo de acumulação. Sob a égide do Consenso Keynesiano e do que ficou conhecido como “estado do bem-estar social”, a ci-dade deveria ser regida pelas ne-cessidades mais gerais da acu-

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ARTIGO

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15junho/julho/agosto de 2014

mulação e circulação do capital, cabendo ao planejamento (mo-dernista) a tarefa da racionaliza-ção e funcionalização do espaço urbano através de instrumentos que se generalizaram a partir da II Guerra Mundial, planos dire-tores e zoneamento, em primei-ro lugar.

Agora, com a derrocada das economias e sociedades com pla-nejamento estatal centraliza-do e a crise do Consenso Keyne-siano, sob a égide do Consenso de Washington, a cidade passa a ser investida como espaço dire-to e sem mediações da valoriza-ção e financeirização do capital. Concebidas enquanto empre-sas em concorrência umas com as outras pela atração de investi-mentos, turistas e eventos, as ci-dades e os territórios se oferecem no mercado global, entregando a capitais cada vez mais móveis re-cursos públicos (subsídios, ter-ras, isenções). A guerra fiscal é apenas uma das formas da nova urbanidade global, que empurra coalizões locais de poder a bus-carem articulações a nível nacio-nal e internacional que assegu-rem a cada cidade — leia-se, aos

capitais e capitalistas localizados — uma inserção, mesmo que su-bordinada, no mercado global.

O que caracteriza esta nova concepção, neoliberal, de cida-de e de governo urbano? Em pri-meiro lugar, fiel à inspiração neo-liberal, o novo modelo vai levar ao banco dos réus a pretensão es-tatista e dirigista do planejamen-to moderno e seus planos dire-tores, condenando inapelavel-mente o voluntarismo dos que pretendiam, e ainda pretendem, impor os modos, ritmos e dire-ções do desenvolvimento urba-no. Na cidade, como na socieda-de de modo geral, a intervenção do Estado é vista como algo ne-fasto, que inibe o livre jogo das forças de mercado, que os câ-nones do liberalismo econômi-co proclamam ser o mecanismo mais eficiente para uma alocação ótima dos recursos. Na cidade, por analogia, trata-se se abando-nar a pretensão compreensiva e dirigista dos planejadores racio-nalistas e submeter a intervenção do Estado às lógicas, dinâmicas e tendências de mercado. Chegou a vez, para seguir a fórmula do Banco Mundial, do “planejamen-to amigável ao mercado” (market friendly planning) ou do “planeja-mento orientado para/pelo mer-cado” (market oriented planning).

III. DA CIDADE NEOLIBERAL À CIDADE DE EXCEÇÃO E À DEMOCRACIA DIRETA DO CAPITAL

Descartados o plano diretor e o zoneamento, por sua rigidez e constrangimentos inaceitáveis ao mercado, ensina-se agora nas escolas de planejamento, urba-

nismo e administração, assim como propagam agências multi-laterais e consultores internacio-nais: face à competição que lhes impõe a globalização, as cidades precisam de mecanismos ágeis e flexíveis que permitam aprovei-tar as “janelas de oportunidades” (“windows of opportunities”). Ao invés de regulação, negociações caso a caso, projeto a projeto, na concretização do que o urbanista francês François Ascher nomeou com a feliz expressão de “urba-nismo ad hoc”3. O master plan cede o lugar ao master project4.

Flexível, negocial, negociada, a cidade-negócio se atualiza, qua-se sempre, através de PPPs (par-cerias público-privadas), novas formas de relacionamento entre Estado, capital privado e cidade. A negociação entre a municipa-lidade e promotores privados, à margem e, quase sempre, em cla-ra violação do plano diretor, con-figura uma cidade de exceção, em que vige uma espécie de “de-mocracia direta do capital”.

Certamente, a cidade de exce-ção e da democracia direta do ca-pital não são o resultado dos me-gaeventos. Na verdade, pode-se afirmar que os megaeventos só se tornaram possíveis, no formato que adquiriram nas duas últimas décadas, porque têm à sua dis-posição cidades reconfiguradas pelos novos modelos de planeja-

3 “O neourbanismo privilegia a ne-gociação e o compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detri-mento da norma.” (Ascher, 2001: 84)

4 No caso brasileiro, esta concepção foi entronizada pelo Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10/07/2001, artigo 32), com o nome de “operação urbana consorciada”, que per-mite a aprovação de projetos em desacordo com a legislação vigente.

▼ CIDADE DIVIDIDA Favelas sem saneamento convivem com moradias da classe média

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16 junho/julho/agosto de 2014

mento (se é que o nome se apli-ca) neoliberal. Os Jogos Olímpi-cos de Barcelona se transforma-ram numa espécie de mito de ori-gem5. Mas, ao mesmo tempo, os megaeventos precipitam, inten-sificam, generalizam e consoli-dam a cidade de exceção e a de-mocracia direta do capital.

A cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos pro-blemas que nossas cidades her-

5 Realizados em 1992, os Jogos Olímpicos de Barcelona constituem, ain-da hoje, uma espécie de modelo ideal. Nes-ta cidade, em estreita conexão com a adoção de metodologia de planejamento estratégico competitivo inspirados nas tecnologias cria-das para grandes corporações capitalistas na Harvard Business School, no final da década de 1970, o megaevento esportivo associou-se a uma profunda transformação da forma e conceito de cidade. Em 1996, alguns dos ideólogos e propagadores do modelo cata-lão, com destaque para Jordi Borja e Manuel Castels, foram convidados a produzir texto de inspiração e diretrizes para a Habitat II — Second United Nations Conference on Human Settlements, organizada pela United Nations Centre for Human Settlements, em Istambul. O livro de Borja e Castel (1997) trasformou-se numa espécie de bíblia do novo modelo — estratégico, competitivo, empresarial — de cidade e planejamento urbano, adotado uni-versalmente pelas agências multilaterais.

daram de 40 anos de desenvol-vimentismo: favelização, infor-malidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades pro-fundas, degradação ambiental, violência urbana, congestiona-mento e custos crescentes de um tranporte público precário, espa-ços urbanos periféricos que mal merecem o qualificativo de ur-bano. Neste contexto, o surpren-dente não é a explosão das multi-dões que foram às ruas, mas que ela tenha tardado tanto.

IV. FOGO DEBELADO... AINDA RESTAM BRASAS?

Passado quase um ano da ex-plosão de junho de 2013, às véspe-ras do início da Copa do Mundo, muitos se perguntam: e agora?

Algumas certezas já se conso-lidaram, e não apenas entre pes-quisadores. Todos sabem que a Copa do Mundo e as Olimpía-das são um grande negócio, do qual poucos se beneficiam — es-peculadores, empreiteiras, cor-porações do cartel da FIFA e do

COI, grande mídia — a indús-tria nacional e internacional dos megaeventos. O legado para ci-dade é também conhecido: no Brasil, 170 a 200 mil remoções forçadas (no Rio de Janeiro, de 50 a 70 mil), endividamento pú-blico, aumento da segregação sócioespacial, privatização de es-paços e equipamentos públicos (esportivos, mas não apenas), au-mento da violência policial, cri-minalização dos pobres e dos movimentos sociais.

O governo não parece ter sido capaz de ir além de encenações de abertura ao diálogo, intensifi-cação de marketing e ameaças de promover uma verdadeira mili-tarização (pacificação?) das cida-des. As organizações e movimen-tos sociais, por sua vez, muitos dos quais nascidos no calor mes-mo dos embates, não parecem ter sido capazes de avançar em ter-mos de construção de alternati-vas que ultrapassem os limites do valoroso e combativo protes-to público.

A sociedade brasileira enfrenta um dramático e aparentemente insolúvel paradoxo. De um lado, as manifestações multitudiná-rias expressaram a vitalidade da sociedade e promoveram um processo de intensa e extensi-va politização de uma parcela da população, sobretudo de suas ca-madas mais jovens, reinventando os espaços públicos e a ação co-letiva. Na contraface dessa politi-zação da sociedade, os políticos, isto é, os operadores profissionais dos aparatos institucionais de re-presentação despolitizam suas práticas, numa desqualificação sistemática e permanente da es-fera pública.

Neste ano de 2014, ademais,

ARTIGO

INTERNET

▼ CAOS NO RIO Ruas e avenidas vulneráveis a qualquer chuva mais intensa

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17junho/julho/agosto de 2014

se completam os 50 anos do gol-pe militar que, em 1º de abril de 1964, lançou o país na mais lon-ga e brutal ditadura de sua his-tória. As ameaças às liberdades democráticas evocam o fantas-ma do Estado de exceção, quan-do vêm à luz muitas das barbari-dades cometidas pelo aparato re-pressivo, graças às Comissões da Memória e da Verdade a nível fe-deral e estadual. Enquanto a so-ciedade brasileira ainda luta para completar a transição democrá-tica, que envolveria não apenas a punição dos torturadores e as-sassinos que continuam impunes mas também o enterro do lega-do legal e institucional ditatorial, como a anacrônica e continuada vigência da Lei de Segurança Na-cional, novas sombras surgem no horizonte.

Desafiados pela cidade de exce-ção, pela cidade-empresa e pela democracia direta do capital, os movimentos agora os enfrentam. Querem outra cidade, outro espa-ço público. A convulsão social em que o país e suas cidades foram lançados abriu extraordinárias

MIDIANINJA

CARLOS TRINDADE

possibilidades de interpelação e transformação. Mas nada ainda está decidido. O jogo está aberto. A História nos revisita, nos pisca o olho, e nos lembra que uma ou-tra cidade é possível. Serão os mo-vimentos sociais emergentes ca-pazes de transformar e fazer con-vergir sua capacidade de protes-tar em capacidade de construir projeto(s) alternativo(s)? Será que as elites mostrarão uma vez mais, como há 50 anos atrás, que têm mais medo do povo que amor à democracia?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ascher, François — 2001. Les nouve-aux principes de l’urbanisme. La fin des villes n’est pasà l’ordre du jour, Paris, Éditions de l’Aube.

Borja, Jordi & Castells, Manuel — 1997. Local y global. La gestión de las ciudades en la era de la información. Madrid, United Nations for Human Sttlements/Taurus/Pensamiento.

Marx, Karl — 1856. “Les révolutions de 1848 et le prolétariat: un discours de Marx à une fête de «The People’s Pa-per». (http://www.marxists.org/fran-cais/marx/works/1856/04/km18560 414.htm)

SAMUEL TOSTA

SILVANA SÁ

▼ ESTRESSE COTIDIANO Congestionamentos em cidades emparedadas. Abaixo, o povo protesta

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OS LEVANTES DE JUNHO

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A RUA QUE EDUCA

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20 junho/julho/agosto de 2014

Um ano após os protestos de junho de 2013, estudantes do DCE UFRJ Mário Prata fazem a releitura das manifestações e apontam possíveis caminhos para os movimentos de resistência à Copa do Mundo de 2014

A INSURGÊNCIA

OS LEVANTES DE JUNHO

Os megaprotestos que emer-giram em junho de 2013 lançaram mais de um mi-

lhão de pessoas às ruas das cida-des brasileiras. O terremoto que abalou o Brasil, e rompeu a letar-gia política na qual o país esta-va mergulhado há anos, teve ori-gem numa bandeira específica, a luta contra o reajuste da tarifa de ônibus em São Paulo. As ma-nisfestações ganharam força e se propagaram como rastilho numa

explosão de sentimentos repre-sados. O país da prosperidade e pleno emprego era fictício. O que existia nas cidades eram massas de pessoas estressadas e insatis-feitas com a degradação dos ser-viços públicos (saúde, educação, moradia, transportes), corrupção e uma euforia artificial para jus-tificar altos investimentos com megaeventos esportivos

As massas em ruas e avenidas, a repressão insana da polícia, go-

vernos claudicantes, mídia pro-curando o caminho mais conser-vador para lidar com o que acon-tecia, um verdadeiro caldeirão pôs a temperatura nas alturas. Mas, afinal, o que estava acon-tecendo? Os setores organizados do movimento social (incluin-do aí os sindicatos mais combati-vos) também foram pegos de sur-presa. O que era, até certo ponto, surpreendente, porque afinal, as bandeiras erguidas naquele ju-nho de 2013 eram bandeiras co-

▼ MALINE DURÃES Especial para Cadernos Adufrj e Redação

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21junho/julho/agosto de 2014

muns às forças que querem uma outra agenda para o país – volta-da para os interesses mais am-plos da sociedade.

Na profusão de causas erguidas em placas artesanais pela multi-dão nas ruas, a Copa do Mundo no Brasil teve destaque. Indigna-da com a forma como os governos conduziram o processo de adap-tação do país para receber o me-gaevento esportivo, a população questionava a que preço o Bra-sil sediaria a Copa e para que e

de 2013. Na opinião de Brenner Oliveira, estudante de Engenharia Elétrica da Escola Politécnica (Po-li-UFRJ) e diretor de Assistência Estudantil do DCE, o despertar de interesse para assuntos relacio-nados à Política nos jovens foi o principal fruto deixado pelas ma-nifestações de 2013. “A juventu-de percebeu que pode construir a Política brasileira e interferir dire-tamente nos seus resultados. Hoje em dia, todo mundo quer saber o que está acontecendo no Brasil, nas ruas. Os jovens querem dis-cutir não só o futebol que o Bra-sil ganha, mas a que preço o país vai ganhar. Querem saber se esse preço serão as remoções, será a exploração ainda maior das clas-ses trabalhadoras, se será o pre-ço de termos vários direitos bási-cos e elementares de vida preteri-dos em detrimento de interesses de uma elite econômica brasileira e internacional”.

Para os estudantes, os movi-mentos de resistência que podem ocorrer às vésperas da Copa do Mundo de Futebol serão consequ-ências diretas dos levantes popu-lares de junho do ano passado. “As manifestações trouxeram muitos ensinamentos. Creio que os pro-testos nesse período da Copa vão ser mais claros: vão apontar um descontentamento com a Fifa, mas também com os governos coniventes com toda essa políti-ca que prioriza o evento em detri-mento da Educação, Saúde etc.”, pontua Luiza Foltran Aquino, es-tudante da Faculdade de Letras (FL-UFRJ) e diretora de Assistên-cia Estudantil do DCE.

A opinião dos discentes contras-ta com dados oficiais divulgados recentemente. Eles apontam um esvaziamento e perda de apoio

▼ MOVIMENTO ESTUDANTIL Gabriel, Luiza e Brenner, do DCE Mário Prata, da UFRJ

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quem serviria o evento. Um ano depois dos acontecimentos, in-daga-se sobre o legado os levan-tes de junho deixaram e os seus desdobramentos.

Para responder a esses ques-tionamentos e lançar novos, a re-vista Cadernos Adufrj conversou com três estudantes do DCE Má-rio Prata. Por muito tempo tacha-dos pelas gerações precedentes como despolitizados e desmobi-lizados, jovens como eles tiveram protagonismo nas manifestações

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popular dos atos. Uma pesquisa realizada em São Paulo pelo Ins-tituto Datafolha, há algumas se-manas, durante protestos contra a Copa, por exemplo, concluiu que 73% dos entrevistados acreditam que eles atrapalham mais do que ajudam. Outro que veio a público minimizar o possível efeito da re-sistência contra o Mundial foi José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça. Segundo ele, as manifes-tações durante o evento serão me-nores do que os levantes ocorridos em junho passado.

Pesquisas e declarações como essas são, entretanto, apenas ten-tativas de desqualificar a capa-cidade atual de mobilização do povo brasileiro, na opinião dos es-tudantes. “Quando a insatisfação explodiu, muita gente se assustou, principalmente os grupos que es-tão lucrando com essa Copa e pos-suem grandes interesses nela. Es-ses grupos, que dominam o go-verno e a imprensa, investem pe-sado para passar a mensagem que as manifestações não adiantam nada. E, por isso, é importante que a mobilização das ruas não pare”,

destaca Gabriel Guimarães, aluno da Faculdade de Letras (FL-UFRJ) e diretor de Combate a Opressões do DCE.

Na visão estudantil, nem mes-mo a ação policial violenta e des-medida, os confrontos com os “Black Blocs” e a previsão de au-mento do efetivo de policiais nas ruas durante a Copa são sufi-cientes para arrefecer o descon-tentamento da população com o evento. “A grande mídia tentou transformar a polarização entre policiais e Black Blocs no gran-de debate das manifestações do ano passado. Em vez de focar nas pautas de reivindicações, lançou luz sobre os conflitos. Mas apro-fundar o debate por esse viés é uma clara perda de tempo”, pon-tua Brenner Oliveira. “O governo do estado e a prefeitura criaram um estado de sítio, alimentaram um sentimento de caos genera-lizado. Isso, de fato, amedrontou a população e afastou muita gen-te das ruas. Mas se o medo de ir aos protestos aumentou, a revol-ta com a Copa também. E é esse sentimento do qual nós, como

movimento social, devemos nos valer para organizar cada vez mais atos e tentar dialogar com a população, fazendo com que seja superado esse medo perpetrado de forma absurda e autoritária pelas esferas de poder”, completa a estudante Luiza Aquino.

A QUESTÃO DA REPRESENTATIVIDADE

Um dos traços que mais cha-maram atenção nos protestos de 2013 foi a ausência de lideranças e de articulação entre manifes-tantes e movimentos sindicais e partidos políticos. Em algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, o repúdio ficou mais evidente, pois chegou a haver conflitos entre populares e militantes partidários que ten-tavam erguer suas bandeiras du-rante os atos. Até mesmo o movi-mento estudantil, que protagoni-zou diversos momentos impor-tantes de reivindicação no país, entre eles o “Diretas Já”, em 1984, e o “Fora, Collor”, em 1992, apre-sentou dificuldades de se inserir

OS LEVANTES DE JUNHO

SAMUEL TOSTA

▼ LARGO DE SÃO FRANCISCO Multidão reunida diante do IFCS/UFRJ organizando protestos

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23junho/julho/agosto de 2014

enquanto movimento social nos levantes.

A análise dos estudantes do DCE UFRJ Mário Prata é que a crise de representatividade ex-plica a resistência dos mani-festantes em se vincular a um ou outro movimento social e partido. “Depois de um gover-no como o do PT, que chega ao poder prometendo um manda-to para os trabalhadores, com redistribuição da renda e mais igualdade, mas que, na verda-de, cumpre o mesmo papel dos antigos governos, a gente enten-de porque existe esse antiparti-darismo”, observa Gabriel Gui-marães, lembrando ainda que a União Nacional dos Estudan-tes (UNE) também vem passan-do por um processo de aproxi-mação com o governo e, con-sequentemente, por uma per-da de legitimidade junto a seus representados.

O DCE da UFRJ mobilizou cerca de oito mil alunos da universidade para participar dos protestos do ano passado, o que, para os dirigentes da en-tidade, confirma o diretório como referência no imaginário estudantil quando o assunto é

organização para lutas. A UFRJ, aliás, também cumpriu seu pa-pel histórico de espaço demo-crático durante os levantes, tanto é que a Faculdade Nacio-nal de Direito (FND) e o Insti-tuto de Filosofia e Ciências So-ciais (IFCS)eram dois locais aos quais os manifestantes recor-riam quando precisavam fugir da ação policial e garantir sua integridade física.

“O movimento estudantil nunca dormiu. Por menor que fosse, sempre resistiu à conjun-tura. Se, antes, ele tinha o pro-tagonismo, de direção, hoje em dia, ele é mais um a resistir. Es-

tamos diante de uma nova ge-ração política, ainda sem tradi-ção e sem muita clareza do que quer. Ainda está em processo de organização. Muitos jovens que participaram dos protestos do ano passado nunca estiveram em uma assembleia ou em uma manifestação. Não têm cultu-ra de reivindicação. Mas a rua educa. E quanto mais gente na rua se questionando, aprenden-do e se motivando, pertencendo ou não a movimentos sociais, melhor”, salienta Luiza Aquino.

Para Brenner Oliveira, tanto os protestos do ano passado como os atuais sinalizam necessida-de de maior atuação dos movi-mentos sociais. “As pessoas estão indo para as ruas com visão des-politizada, mas se estão lá, é por-que têm tendência a se politizar. Cabe a nós — movimento estu-dantil, sindical, social, partidos políticos — organizar essa juven-tude e esses trabalhadores e mos-trar pra eles que a rua é o espa-ço democrático, é o melhor lugar para deliberação e para avançar-mos nas lutas”, finaliza o estu-dante de Engenharia Elétrica.

▼ REPRESSÃO Barbárie policial contra manifestantes. Acima, estudantes nas ruas

SAMUEL TOSTA

SAMUEL TOSTA

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24 junho/julho/agosto de 2014

COPA PARA QUEM?Os grandes eventos esportivos sob o olhar dos direitos humanos

ARTIGO

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25junho/julho/agosto de 2014

COPA PARA QUEM?

A escolha do Brasil para ser o país-sede da Copa do Mun-do de 2014 foi comemora-

da pelos governantes e pela mí-dia brasileira. Alardeavam os be-nefícios que a realização de uma Copa do Mundo no Brasil trariam para a população, como “investi-mentos” para o país e, em espe-cial, para as cidades-sede dos jo-gos mundiais. Entretanto, con-forme se desenvolveram as ações com as quais o governo brasilei-ro se comprometeu para sediar a Copa, os impactos negativos e os prejuízos em termos de direitos individuais e coletivos foram sen-tidos pela população brasileira.

Uma dessas violações de direi-tos é a política de remoção imple-mentada pelos governos das ci-dades-sede. Como aponta Car-los Vainer, nas cidades anfitriãs da Copa, 200 a 250 mil pessoas de baixa renda, moradores de fa-

▼ MARIANA TROTTA E ANA CLAUDIA TAVARES*

▼ VIOLÊNCIA Professora é imprensada entre escudos por PMs no Rio

*Professoras da Faculdade Na-cional de Direito e integrantes do Centro de Assessoria Popular Ma-riana Criola

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26 junho/julho/agosto de 2014

velas e assentamento irregulares em geral, estão sofrendo com o processo de remoção. Esses “in-desejáveis são mandados para as periferias distantes, a duas, três ou quatro horas dos locais de tra-balho, a custos monetários ab-surdos e condições de transpor-tes precaríssimas.”1 No Rio de Janeiro, há exemplos, como da comunidade da Estradinha, loca-lizada no Bairro de Botafogo: em 2010, 255 moradores foram remo-vidos para regiões distantes. Ou-tro caso emblemático é o proces-so de remoção da Vila Autódro-mo, comunidade localizada na baixada de Jacarepaguá, ao lado de terreno que será utilizado para os Jogos Olímpicos e em uma re-gião de avanço da especulação imobiliária.

As remoções violam vários di-reitos dos moradores das comu-nidades impactadas, como o di-reito à moradia, incorporado nos textos legais e constitucio-nais brasileiros e internacionais pela pressão dos movimentos so-ciais de luta pela moradia nas úl-timas décadas. O direito à mora-dia foi incorporado ao rol de di-reitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pela Emenda Constitucional nº 64 em 2010: “são direitos sociais a edu-cação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à in-fância, a assistência aos desam-parados, na forma desta Cons-tituição.” Antes desta emenda à Constituição, o direito à mora-

1 Vainer, Carlos, 2013. Quando a ci-dade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, p. 39.

ARTIGO

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27junho/julho/agosto de 2014

autora relaciona esse“boom imo-biliário” com os programas de infraestrutura do governo fede-ral, como os Programas de Ace-leração do Crescimento (PAC) I e II e do programa habitacio-nal Minha Casa Minha Vida (MCMV), que foram pensados junto aos empresários da cons-trução civil e do mercado imobi-liário. A autora explica que “en-quanto em 2009, o PIB brasileiro e da construção civil foram ne-gativos, contrariando a tendên-cia anterior, em 2010 o PIB na-cional foi de 7,5% e o da cons-trução civil, 11,7%.” Dessa for-ma, para os empresários do setor imobiliário e da construção ci-vil, a política garantiu uma ex-pansão dos lucros. Por outro lado, “para a maioria, sobrou o pior dos mundos”, com a manu-tenção dos problemas de acesso ao direito à moradia.2

Esse “boom imobiliário” pare-ce também ter chegado às favelas cariocas. No episódio recente da ocupação por mais de cinco mil famílias do imóvel da Telerj/OI no bairro do Engenho Novo, era comum escutar entre os mora-dores como motivos para a ocu-pação do terreno: a impossibili-dade de pagar alugueis no valor de R$ 300 a R$ 500,00, por pesso-as que viviam do trabalho infor-mal ou com um salário mínimo mensal. Essas famílias, após vio-lenta remoção pelas forças poli-ciais, por determinação judicial na ação de reintegração de pos-se nº 0010009-86.2014.8.19.0208 que tramitou na 6ª Vara Regio-

2 Maricato, Erminia (et. al.), 2013. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifes-tações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, p.23.

▼ TIRO AO ALVO Não há limites para silenciar as ruas à força

▼ CLAMOR O grito do menor desprotegido

TOMAZ SILVA/ABR

MIDIANINJA

dia já era reconhecido em outros dispositivos do texto constitucio-nal, como parte do artigo 7º, in-ciso V, que estabelecia como di-reito dos trabalhadores urbanos e rurais o salário mínimo “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia”. Instrumentos in-ternacionais de proteção aos di-reitos humanos também reco-nhecem o direito à moradia, en-tre os quais o Pacto internacional sobre direitos econômicos, so-ciais e culturais, ratificado pelo Brasil, através do Decreto Legis-lativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991 e a Declaração de Direi-tos Humanos de Viena, de 1993. Além disso, a política de remo-ção é expressamente proibida pelo artigo 429, inciso VI da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, que estabelece o prin-cípio da não remoção, ao prever que a política de desenvolvimen-to urbano visará a “urbanização, regularização fundiária e titula-ção das áreas faveladas e de bai-xa renda, sem remoção dos mo-radores, salvo quando as condi-ções físicas da área ocupada im-ponham risco de vida aos seus habitantes”.

Outra faceta da política de re-moções é o uso, pela Prefeitura Municipal, de parte dos imóveis destinados à habitação popular no reassentamento das famílias removidas, embora exista uma enorme demanda por habitação popular por parte de moradores de favelas que vivem de aluguel, visto que a cidade do Rio de Ja-neiro tem sofrido com um “boom imobiliário”. Maricato aponta que, de 2009 a 2012, o valor dos imóveis no Rio de Janeiro experi-mentou um aumento de 184%. A

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maior do que para os transpor-tes coletivos.

Essas políticas têm sido criti-cadas nos protestos que tomam as ruas desde junho de 2013. So-mando-se outras lutas como a greve dos rodoviários que rei-vindicam melhores condições de trabalho, a greve dos profes-sores municipais e estaduais pelas péssimas condições da educação pública, a greve dos técnicos-administrativos e a mo-bilização dos docentes das uni-versidades federais pela valori-zação da carreira e da educação superior.

Como forma de denunciar e re-agir aos efeitos negativos provo-

cados pela rea-lização da Copa do Mundo no Brasil, diversos grupos de mi-litantes políti-cos se organi-zaram em torno dos chamados Comitês Popula-res da Copa que funcionam nas c i d a d e s - s e d e dos jogos. Esses comitês forma-ram a Articula-ção Nacional de Comitês Popula-res da Copa, que relaciona uma série de pautas

sobre as violações de direitos co-metidas em razão da Copa no Brasil. Em Carta da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa, as remoções e os des-pejos forçados são consideradas “as violações mais comuns no Brasil e em outros países-sede de megaeventos”, acompanha-

nal do Fórum do Méier3, passa-ram a ocupar a frente da Prefei-tura Municipal reivindicando moradia popular. A resposta do prefeito foi a ausência de habita-ções disponíveis, orientando que as famílias, muitas já cadastra-das há anos no Programa Minha Casa Minha Vida, continuassem aguardando.

Essas medidas governamen-tais violam não apenas o direito à moradia, mas o direito à cida-de como um todo. O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, asse-gura o direito às cidades susten-táveis pela cidadania, compreen-dida como o “direito à terra ur-bana, à moradia, ao saneamento ambiental, à in-fraestrutura ur-bana, ao trans-porte e aos servi-ços públicos, ao trabalho e ao la-zer, para as pre-sentes e futuras gerações” (artigo 2º, I).

As políticas e m pr e e nd id a s nas cidades-se-de dos jogos da Copa do Mundo destinadas à mo-bilidade urbana agravam os pro-blemas de aces-so ao direito às cidades susten-táveis. As obras de infraestru-tura dedicadas à circulação de automóveis com “investimen-

3 Entretanto, a propriedade que não cumpre a sua função social, não merece pro-teção jurídica, como defende Eros Roberto Grau (Parecer. In A Questão Agrária e a Justi-ça. Org. Juvelino José Strozake. São Paulo: RT, 2000, p. 200-201).

▼ COVARDIA Cenas assim se tornaram comuns desde junho

ARTIGO

tos em obras de viadutos, pon-tes e túneis, além de ampliação de avenidas, não guardam qual-quer ligação com a racionalida-de da mobilidade urbana, mas com a expansão do mercado imobiliário, além, obviamen-te, do financiamento de campa-nhas ”, como alerta Maricato.4 Somam-se a essas obras os inú-meros subsídios destinados aos transportes individuais (como desonerações de impostos para os veículos automotivos), que é

4 Maricato, Erminia (et. al.), 2013. Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifes-tações que tomaram as ruas do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, p.25.

SAMUEL TOSTA

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das da “flexibilização das leis e suspensão de direitos antes e durante os jogos, ameaçando, assim, os mecanismos de defesa, proteção social, garantia e pro-moção de Direitos Humanos” 5.

Além das violações correntes, diversos projetos visando apro-var legislações mais repressi-vas tramitam no Congresso Na-cional e representaram ameaças concretas a aprofundar o estado de violação de direitos, para in-corporar, por exemplo, o tipo pe-nal de terrorismo, com possibili-dade de inclusão de ações típicas dos movimentos sociais, como paralisações e greves ou obstru-ção de vias públicas como con-dutas crimino-sas. Por exem-plo, o Projeto de Lei do Sena-do (PLS) 728/ 2011 pretende tipificar o cri-me de terro-rismo, propon-do penas de 15 a 30 anos para quem “provo-car ou infun-dir terror ou pânico gene-ralizado me-diante ofensa à integridade física ou priva-ção da liberda-de de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo”. O projeto ainda prevê o aumento da pena em 1/3 nos casos em que a ação

5 http://w w w.portalpopulardaco-pa.org.br/index.phpoption=com_content&-view=article&id=366&Itemid=279. Acesso em: 26 mai. 2014.

▼ DENÚNCIA O papel da polícia

Forças Armadas não seja o de promover a segurança pública, o Ministro da Defesa, Celso Amo-rim, autorizou as Forças Arma-das, através da Diretriz Ministe-rial nº 9, a entrarem “no Comple-xo da Maré, no Rio de Janeiro, a partir do primeiro minuto de sá-bado (5), em apoio às forças de se-gurança pública estaduais”7, per-mitindo a elas “efetuar prisão em flagrante, patrulhamento e visto-ria”. Note-se que as Forças Ar-madas são preparadas para atu-ação em cenários de guerra em combate a inimigos e a autori-zação de seu uso contra popula-ções civis já indica graves vio-lações aos direitos e garantias

fundamentais. Essa ação reve-

la ainda a violação ao direito à infor-mação da popula-ção, tendo em vis-ta que não foram publicizados nem o conteúdo inte-gral da referida Diretriz Ministe-rial e nem da Ex-posição de Moti-vos nº 39, do mi-nistro-chefe do Gabinete da Segu-rança Institucio-nal (GSI), general José Elito Siquei-ra, que fundamen-tou a autorização

da presidenta da República para o emprego de Forças Armadas

7 BRASIL, Ministério da Defe-sa. Maré: Forças Armadas são autoriza-das a atuar em operação de GLO no Rio. In: http://www.defesa.gov.br/index.php/ul-timas-noticias/8981-01-04-2014-defesa-ma-re-forcas-armadas-sao-autorizadas-a-atuar--em-operacao-de-glo-no-rio. Acesso em: 04 abr. 2014.

seja praticada em dias de jogos nos estádios de futebol de sede da Copa.6 Projetos de lei como este, que buscam impedir pro-testos no período dos grandes eventos esportivos, violam di-reitos fundamentais como de li-vre reunião e manifestação po-lítica previstos no artigo 5º da CRFB/88.

A militarização de territó-rios das favelas no Rio de Janei-ro é outro impacto negativo que pode ser atribuído à realização da Copa do Brasil. Embora o pa-pel constitucional atribuído às

6 O PLS 762 e PL 499 também tratam do crime de terrorismo.

SAMUEL TOSTA

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30 junho/julho/agosto de 2014

(DOU, 31 mar. 2014). Confor-me a Lei 12.527/2011 (Lei do Acesso à Informação), os ór-gãos e entidades públicas de-vem promover a divulgação em local de fácil acesso, no âmbi-to de suas competências, de in-formações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas (art. 8º) e na divul-gação dessas informações de-vem constar, no mínimo, “dados gerais para o acompanhamento de programas, ações, projetos e obras de órgãos e entidades” (art. 8º, § 1o, V).

As violações de direitos das operações militares contam, por vezes, com o apoio do Poder Ju-diciário, como ocorreu na fave-la da Maré, com a expedição de mandado de busca e apreensão genérico em 19 ruas da comuni-dade. Essa autorização judicial fere determinação expressa do artigo 5º da CRFB/1988, inciso XI: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela poden-do penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de fla-grante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

A atuação dos poderes públi-cos representa, no contexto de realização da Copa do Mundo no Brasil, um retrocesso em relação aos objetivos da República brasi-leira: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garan-tir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a margi-nalização e reduzir as desigual-dades sociais e regionais”; “pro-mover o bem de todos, sem pre-conceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for-mas de discriminação” (art. 3º, CF/1988).

A proibição de medidas dis-criminatórias também está pre-vista em tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte e que são normas vigentes no território brasileiro. O Pacto dos Direitos Civis e Políticos proíbe, mesmo em “situações excepcionais” pro-clamadas oficialmente, qualquer medida discriminatória funda-da em raça, cor, sexo, língua, reli-gião ou origem social (art. 4º).

Infelizmente, não é isso que ve-mos nas operações realizadas dentro de “favelas” cariocas, lu-gares em que a população pobre é afetada por medidas discrimi-natórias, como Unidades de Polí-cia Pacificadora (UPPs) e uso das Forças Armadas brasileiras, além das remoções forçadas e em des-cumprimento aos procedimen-tos legais existentes no Brasil.

As prisões para averiguação, as legislações proibindo o uso de máscaras, o uso indiscriminado de armas menos letais (bombas de gás lacrimogêneo, spray de pi-menta e armas de balas de bor-racha), as detenções arbitrárias e injustificadas de manifestantes desde junho de 2013, o processa-mento de manifestantes por cri-mes considerados revogados pela Comissão de Direitos Huma-nos da Organização dos Estados Americanos (como o desacato), todos esses fatos revelam como o Estado na prática vem impe-dindo ou dificultando o exercí-cio do direito à liberdade de pen-samento. Também revelam a fre-quente infração aos dispositivos do Pacto dos Direitos Civis e Polí-ticos que estabelecem os direitos de reunião pacífica e de livre as-sociação (arts. 21 e 22). Esses di-reitos não podem ser restringi-dos por “autoridades estatais” ao

ponto de tornarem “o exercício desse direito praticamente im-possível”, como pondera Fabio Konder Comparato.8

Como nos alerta E. Thompson, as leis cristalizam as relações de poder das sociedades, asseguran-do interesses das classes domi-nantes, mas muitas vezes também apresentando freios constitucio-nais ao poder dessas mesmas classes9. Percebemos, por outro lado, que em sociedades como a brasileira os direitos e limites inscritos na lei possuem gran-de dificuldade em serem efeti-vados. Entretanto, desistir das lutas contra as más leis e proce-dimentos classistas pode lançar homens e mulheres num peri-go ainda maior. Por isso, torna-se necessário o debate sobre es-ses projetos de lei e políticas pú-blicas discutindo a quem ser-vem. Esse debate tem tomado as ruas do país por meio de mani-festações, como no último dia 15 de maio, pois, como alerta Da-vid Harvey, “(…) o poder coleti-vo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado”10.

8 Comparato, Fabio Konder. A afir-mação histórica dos direitos humanos. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 314-315.

9 Thompson, E. P., 1997. Senhores e Caçadores, 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra.

10 Harvey, David, 2012. Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street encontra sua nêmesis. In: Ocuppy — movimentos de pro-testo que tomaram as ruas. São Paulo: Boi-tempo, p. 61.

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▼ TORTURA E MORTE O Caso Amarildo comoveu o país e repercutiu internacionalmente

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GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS E A CIDADEARTIGO

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GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS E A CIDADE

Foi-se a Copa?Carlos Drummond de Andrade

Foi-se a Copa? Não faz mal. Adeus chutes e sistemas. A gente pode, afinal, cuidar de nossos problemas.

Faltou inflação de pontos? Perdura a inflação de fato. Deixaremos de ser tontos se chutarmos no alvo exato.

O povo, noutro torneio, havendo tenacidade, ganhará, rijo, e de cheio, A Copa da Liberdade.

QUEM JOGA E QUEM FICA DE FORA?

▼ EM CONSTRUÇÃO. Obras da Cidade Olímpica, na Barra

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▼ MARCELO MELO, ALEXANDRE PALMA E LUÍS AURELIANO IMBIRIBA*

As escolhas do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 e da ci-

dade do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos em 2016 fo-ram saudadas em diversos meios como um retrato de um (supos-to) momento positivo que viveria o país e a referida cidade, além de indicar um novo posiciona-mento do país nos círculos inter-nacionais de poder. Assim, tais eventos poderiam proporcionar mostras de um novo país ao res-to do mundo em diversos cam-pos, para além dos aspectos es-portivos.

Tendo tais dimensões em con-ta, foi central a elaboração de vultosas candidaturas que en-volveram os organismos esporti-vos nacionais (Comitê Olímpico Brasileiro — COI e Confederação Brasileira de Futebol — CBF), ins-tâncias governamentais, organi-zações empresariais de diversas frações, muitos partidos políticos — embora não todos — e organi-zações na sociedade civil.

Nesse contexto, a promoção dos Grandes Eventos Esportivos é parte central das estratégias de

obtenção de consenso por parte do bloco no poder no país. Cum-pre registrar que as pretensões de sediar grandes eventos espor-tivos (Jogos Olímpicos e Copa do Mundo de Futebol) são ante-riores a 2003. Até porque o bloco no poder esportivo, representa-do pelas longevas lideranças de Ricardo Teixeira na Confedera-ção Brasileira de Futebol (1989 a 2012) e Carlos Arthur Nuzman no Comitê Olímpico Brasilei-ro (desde 1995), acalentava esse desejo como parte de sua busca para se reposicionar no âmbito de suas organizações esportivas em nível internacional.

É inegável o potencial políti-co-pedagógico que os grandes eventos esportivos apresentam, bem como sua face dinamizado-ra da economia capitalista, con-templando interesses de diversas

frações empresariais (financeira/serviços/comercial, industrial, bélica, midiática dentre outras), com vistas a alocar uma massa de capitais em busca de valorização. Bourg e Gouguet (2005) afirmam não ser nenhuma coincidência o fato de que os esportes como espetáculo de massa apresen-tam como um divisor de águas os Jogos Olímpicos de Los Ange-les em 1984, no bojo do Governo Reagan. Nessa edição dos Jogos Olímpicos, passaram a ocorrer a privatização do financiamen-to e dos contratos referentes à re-alização dos Jogos, a exploração comercial dos símbolos dos Jo-gos com afirmação rígida dos di-reitos autorais sobre os símbolos, a criação de um programa mun-dial de marketing, a privatização da transmissão, com a retirada do monopólio das televisões pú-

* Professores da Escola de Educa-ção Física e Desportos — UFRJ

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blicas, bem como o lançamento de muitos canais privados de TV. Isso tudo adequado ao conheci-do programa de desregulamen-tação e liberalização financeira e comercial que marca a receita do capitalismo neoliberal.

GRANDES EVENTOS ESPORTIVOS: A LUTA PELO CONSENSO E PELA EDUCAÇÃO DAS MASSAS

É possível apontar que os gran-des eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos e Copa do Mun-do, são momentos especiais das abordagens dominantes no âm-bito dos esportes. Mais do que isso, há uma precisa combina-ção de diversos elementos da nova pedagogia da hegemonia (NEVES, 2005; NEVES e MAR-

TINS, 2010), tanto na apresenta-ção dos projetos como na conse-cução e realização dos próprios eventos. Sua apresentação, divul-gação e defesa perante o conjun-to da sociedade não prescinde de elementos ditos sociais bem como de alegada preocupação ambiental e urbanística, median-te a menção constante da expres-são “LEGADO”.

Como dito, o Governo Federal aponta que a (suposta) herança positiva dos Jogos Pan-America-nos de 2007:

...foi a formatação do conceito de legado social associado a grandes eventos esportivos em território brasileiro. Já tendo no horizon-te a candidatura a outros even-tos, especialmente os Jogos Olím-picos e Paraolímpicos, o Governo Federal introduziu o debate entre as partes envolvidas com a prepa-ração dos Jogos Pan-Americanos visando a dar forma àquela ideia ainda incipiente no próprio Minis-tério do Esporte. A ideia central, em consonância com o ideário do Comitê Olímpico Internacional, é que os megaeventos esportivos se-jam propulsores do desenvolvi-mento social ao catalisarem ações de amplo espectro, de diferentes origens e com diversos focos, vol-tadas para a melhoria das condi-ções de vida da população das co-munidades pobres da cidade-sede, em particular aquelas no entorno das instalações esportivas a se-rem utilizadas no evento (BRA-SIL. PRESIDÊNCIA..., 2009, p. 10).

Dessa forma, as melhorias esta-riam radicadas na geração de em-pregos diretos e indiretos, cons-trução de instalações, projeção indireta da cidade e do país pe-rante o mundo, implicando no incremento da atividade econô-mica em geral. Portanto, sediar tais grandes eventos espor t i-vos passa a justificar uma gama

de modificações na estrutura ur-bana, fundiária, do aparato legal em diversas áreas que seriam vi-áveis ao bloco no poder, não sem duras resistências, num contexto apartado da necessidade de pre-parar as cidades e o país para a realização desses eventos.

O direito de sediar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016 impli-ca também em algumas mudan-ças jurídicas que tendem a tor-nar algumas leis não aplicáveis a questões relacionadas a tais eventos. Analisando sua impli-cação, fica nítido que as Organi-zações Esportivas Internacionais (COI e FIFA) exigem do país-sede a viabilização de todas as condi-ções para que tais eventos sejam rentáveis, inclusive isentando de tributos uma série de questões a que o conjunto dos cidadãos e as empresas do país ou estrangeiros em outras condições estariam sujeitos. E esses organismos es-portivos internacionais são rigo-rosos na exigência de alterações legislativas para que um país seja considerado apto a receber edições de seus eventos.

GRANDES EVENTOS E A CIDADE

Na cidade do Rio de Janei-ro, em particular, Brito (2013) aponta que a simples observân-cia dos mapas das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) in-dica haver uma espécie de cor-redor de segurança nas regi-ões diretamente envolvidas na realização dos grandes even-tos esportivos e/ou religiosos (por exemplo, a Jornada Mun-dial da Juventude, em junho de 2013). Isso foi explicitado como um cinturão de seguran-

▼ LOS ANGELES. Divisor de águas dos esportes como espetáculo de massas

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ça para Zona Sul, Centro e par-te da Zona Norte de forma a mi-nimizar possíveis danos à ima-gem da cidade para os referidos eventos. E para o restante da ci-dade e do estado sugere-se que seja mantida a lógica cotidia-na. Assim, não é possível deba-ter o significado das UPPs des-conectada do “...planejamento urbano carioca à formatação e viabilização de um modelo em-presarial de cidade que, além de direcioná-la para os grandes negócios empresariais, veicula-se a gestão empresarial propria-mente dita” (Brito, 2013, p. 97). Como exemplo, as relações ex-pressas entre as UPPs no Cen-tro do Rio de Janeiro e as in-tervenções no chamado Porto Maravilha.

Tal lógica de cidade requerida pelos grandes eventos esporti-vos implica em profundas inter-venções estatais e organismos privados com vistas a promover uma nova configuração urbana mais palatável à valorização de capital. Especulação imobiliá-

ria demanda a expulsão de po-bres do lugar que se pretende valorizar, ainda que haja neces-sidade de força de trabalho.

A dita nova imagem da cidade e do estado — quiçá do país — de-mandada pelos grandes eventos esportivos implica tanto numa busca como num resultado (Bar-reira, 2013). Tais eventos permi-tem intensificar a aplicação de recursos e investimentos estatais que valorizem a terra, bem como tornar flexíveis normas legais que pudessem atrasar tais processos.

Essa imagem do Rio de Janeiro como uma cidade atraente, sem conflitos e pacificada, passa por uma nova relação com as frações mais empobrecidas e exploradas da classe trabalhadora. O con-vencimento opera mediante a es-colha muito seletiva de alguns poucos jovens pobres para atua-rem em empregos direta ou indi-retamente relacionados aos gran-des eventos, malgrado a manu-tenção da precariedade para uma grande maioria. Assim, a dita pa-cificação representa a consolida-

ção e aprofundamento da lógi-ca história de abordar sequelas da questão social a partir da ló-gica policial, com vistas a manter “...ordeiramente intactos os con-flitos sociais por meio da cristali-zação de uma forma habitacional precária” (Botelho, 2013, p. 171);

O aprofundamento da peda-gogia da hegemonia dominan-te, descrita em detalhes em Ne-ves (2005) e da união da direi-ta para social com a esquerda para o capital (Neves, 2010) tem implicado na difusão em âm-bitos da vida social do que Pao-li (2007) chamou de técnicas so-ciais salvacionistas, mencionan-do programas estatais e/ou pri-vados voltados aos pobres que se apresentam como capazes de re-dimir tais grupos de seus graves problemas sociais a partir da fre-quência a tais programas. Tan-to que tais mecanismos salva-cionistas são usados como crité-rios de julgamento de ações esta-tais e de empresas envolvidas em programas de responsabilida-de social, não obstante “...sua fá-cil aceitação como critério de le-gitimidade, inclusive e combina-ção ótima, e em todos os sentidos rentável, com a ideia de liberda-de de agir e criar” (Paoli, 2007, p. 237). Os preceitos apresentados nos documentos de candidaturas aos Jogos de 2016 são prenhes de exemplos nesse sentido. A asser-tiva de que a realização dos mes-mos fatalmente implicará nas di-tas melhorias sociais em campos diversos remetem às tais técnicas sociais salvacionistas.

QUAL O LEGADO ESPORTIVO?

Tentar abordar qual o lega-do que tais eventos podem pro-

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▼ REAGAN. Este presidente americano (1981 a 1989) chancelou a marca neoliberal nos jogos de Los Angeles

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porcionar à adesão às práticas físico-esportivas não deve estar desconectado das questões pos-tas anteriormente. Ademais, tal-vez só possamos abordar a ques-tão do legado esportivo com mais propriedade no futuro. Neste sen-tido, está em curso uma pesqui-sa orientada por um dos autores do presente texto no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Educação Física. A partir de dados sobre a adesão à prática de ativi-dades físico-esportivas coletados (ou a serem coletados) em 2006, 2014 e 2017, a referida pesquisa buscará investigar o impacto que os Jogos têm sobre a adesão a es-tas práticas.

Por outro lado, os Jogos Pan-A-mericanos podem ajudar a eluci-dar tal questão. No livro intitula-do “Legados de Megaeventos Es-portivos”, Carvalho et al. (2008)

manifestam que a adesão à prá-tica esportiva e ao exercício au-mentou de 29% do período antes dos Jogos para 72% durante os Jo-gos e caiu para 66% após os mes-mos. Tal trabalho, no entanto, apresenta sérios problemas me-todológicos, especialmente, por-que lida com as percepções que profissionais de educação física tiveram em relação à prática de atividades físicas realizadas por outras pessoas, antes, durante e após os Jogos. Em contraste com tal dado, o Vigitel, inquérito so-bre comportamentos que esta-riam associados a diferentes do-enças, mostrou que na cidade do Rio de Janeiro a adesão à prática de atividades físicas no lazer va-riou de 16,4% em 2006, para 17,2% em 2007, 15,9% em 2008 e 16,1% em 2009 (BRASIL, 2007, 2008, 2009 e 2010).

Dessa forma, é possível questio-nar, ainda, se há, de fato, alguma política de Estado para oferecer ao cidadão espaço físico e orien-tação adequada para a prática de atividades físico-esportivas. Uma busca rápida no site da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer so-bre as Vilas Olímpicas da Prefei-tura da Cidade do Rio de Janei-ro revelou um total de dezessete locais. Destes, dez (58,8%) foram inaugurados há mais de dez anos.

Em conclusão, faltam, ainda, dois anos para os Jogos Olímpi-cos e pouquíssimo tempo para a Copa do Mundo. Entretanto, se o atraso em obras, infraestrutura, em planos para conter a violência ou quaisquer outros aspectos ur-banos estão sempre sendo apon-tados, não se pode esconder que muito pouco foi feito para o lega-do esportivo na cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARREIRA, Marcos. Cidade Olímpica: so-bre o nexo entre reestruturação urbana e a violência na cidade do Rio de janeiro. In: OLIVEIRA, Pedro Rocha e BRITO, Felipe (Orgs.). Até o último homem: visões cario-cas da administração armada da vida so-cial. São Paulo: Boitempo, p. 129-168, 2013.BOTELHO, Maurílio Lima. Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedo-rismo dos pobres. In: OLIVEIRA, Pedro Ro-cha e BRITO, Felipe (Orgs.). Até o último ho-mem: visões cariocas da administração ar-mada da vida social. São Paulo: Boitempo, p. 169-213, 2013.BOURG, Jean-François & GOUGUET, Je-an-Jacques. Economia do Esporte. Bauru: EDUSC, 2005.BRASIL. Presidência da República. Comitê de Gestão das Ações Governamentais Fede-rais para a Candidatura Rio 2016. Rio 2016: Legado Social. Brasília: Presidência da Re-pública do Brasil: 2009.BRASIL. Vigitel Brasil 2006: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministé-rio da Saúde, Secretaria de Vigilância em

Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2007.BRASIL. Vigitel Brasil 2007: vigilância de fa-tores de risco e proteção para doenças crô-nicas por inquérito telefônico. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saú-de, Secretaria de Gestão Estratégica e Par-ticipativa. — Brasília : Ministério da Saú-de, 2008.BRASIL. Vigitel Brasil 2008: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministé-rio da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2009.BRASIL. Vigitel Brasil 2009: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Ministé-rio da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. — Brasília : Ministério da Saúde, 2010.BRITO, Felipe. Considerações sobre a re-gulação armada de territórios cariocas. In:

OLIVEIRA, Pedro Rocha e BRITO, Felipe (Orgs.). Até o último homem: visões cario-cas da administração armada da vida so-cial. São Paulo: Boitempo, p. 79-114, 2013.CARVALHO, L.P.; MELO, A.C.; DACOSTA, L. Percepção dos profissionais de educa-ção física do Rio de Janeiro e Espírito Santo sobre impactos dos Jogos Pan-Americanos Rio 2007. In: DACOSTA, L.; CORRÊA, D.; RI-ZZUTI, E.; VILLANO, B.; MIRAGAYA, A. Le-gados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008.NEVES, Lúcia Maria W. (org.). A direita para o social e esquerda para o capital: intelec-tuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.NEVES, Lucia Maria W. (org.). A Nova Pe-dagogia da Hegemonia: estratégias da bur-guesia brasileira para educar o consenso na atualidade. São Paulo: Xamã, 2005.PAOLI, Maria Celia. O mundo indistinto: sobre gestão, violência e política. In: OLI-VEIRA, Francisco e RIZEK, Cibele Saliba. (orgs). A Era da Indeterminação. São Paulo: Boitempo, pp. 221-256, 2007.

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INVISIBILIDADES NA CIDADE DOS MEGAEVENTOS

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PLANEJAMENTO E A PERSPECTIVA DO RECONHECIMENTO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO

▼ ROSSANA B. TAVARES*

*Professora substituta da FAU/UFRJ e doutoranda em urbanismo PROURB/UFRJ.

INVISIBILIDADES NA CIDADE DOS MEGAEVENTOS

INTRODUÇÃODesde o anúncio dos chama-

dos Megaeventos Esportivos, vá-rias denúncias de violações de di-reitos humanos têm sido feitas e divulgadas através do esforço de diversos grupos, organizações, associações, fóruns, pesquisado-res/as, coletivos de mídia, docu-mentaristas, entre outros/as. Se analisar o município do Rio de Janeiro, um dos mais impacta-dos pelas ações do Estado, tem se utilizado o discurso “de preparar a cidade” para a Copa do Mun-do em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, como justificativa para o contínuo processo de violação de direitos em diversas áreas da cidade. No entanto, atrás de um

discurso dito universalista dos direitos humanos, ainda chama-do em alguns países como direi-to dos homens (como é o caso da França, onde na ocasião da Revo-lução Francesa, adota a “Déclara-tion des Droits de l’Homme et du Citoyen”), são excluídos as espe-cificidades de minorias de raça, sexualidade, classe e gênero. As-sim, destacamos a necessida-de do reconhecimento da ques-tão de gênero nesses debates, que tem tido pouca visibilidade quanto às denúncias e problemas específicos em uma das cidades-sede da Copa do Mundo.

O presente artigo visa trazer uma contribuição sobre o deba-te dos impactos sociais e urba-nos no Rio de Janeiro, a partir da lógica da mercantilização do es-paço em função dos Megaeven-tos Esportivos, caracterizando-se por um processo que valoriza

a competição e não as diversas dinâmicas sócioespaciais dos di-versos sujeitos sociais. Neste con-texto, se radicaliza a invisibili-dade das práticas sociais daque-les(as) já invisibilizados(as) pelo planejamento urbano, como as mulheres. Desta forma, preten-demos apresentar uma breve re-flexão associando a relação entre planejamento e a perspectiva do reconhecimento, e como as desi-gualdades sociais se rebatem de modo diferente na vida das mu-lheres que vivem em áreas peri-féricas e favelas da cidade. Foca-remos nossa crítica a partir dos processos em curso na área por-tuária do Rio de Janeiro.

O RIO PARA A COPA – UM PANORAMA GERAL

Quando a ideia do Rio de Ja-neiro de sediar a Copa do Mun-do e as Olimpíadas se torna uma

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▼ FAMÍLIA EXPULSA A injustiça fere pobres, mas o

sofrimento das mulheres tem

particularidades

▼ FUGIT OMNIHILIM iumque venime sum aut laborrum sit, nimusSed

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realidade, um projeto de cida-de já em curso começa a se evi-denciar mais brutalmente. Neste contexto, abriu-se a possibilidade de a cidade se transformar numa mercadoria. Não estamos nos re-ferindo apenas à terra e à paisa-gem urbana, mas à própria vida das pessoas. Referências socio-culturais e históricas, que fazem parte do cotidiano delas, tornam-se passíveis de serem fragmenta-das apenas com o objetivo do lu-cro para alguns(mas). A área por-tuária, por exemplo, é um desses lugares da cidade onde aque-les(as) que ainda vivem ali não sabem o que vai acontecer com suas vidas até os Jogos Olímpicos de 2016. Esta captura da vida das pessoas é um dos aspectos mais perversos dos processos de viola-ções de direitos na cidade.

A partir do discurso da melho-ria da qualidade de vida e em prol da “sustentabilidade”, se legiti-mam práticas de gestão em que o interesse privado e especulati-vo se sobrepõe ao interesse pú-blico (SÁNCHEZ, 2001). A lógica do empreendedorismo urbano

no planejamento, para colocar o Rio de Janeiro nas fileiras das ci-dades-globais, ganha força signi-ficativa nos últimos anos, tendo em vista, sobretudo, os chama-dos Megaeventos. Mas este pro-jeto de cidade não é algo recen-te. A construção da política urba-na tem sido pautada há algumas décadas pela lógica da competi-ção de fluxos de capital interna-cional que, territorialmente, se materializa pela mercantilização das dinâmicas sóciourbanas: ex-pressões culturais, identidades urbanas, modos de apropriação e de moradia das cidades, entre outras.

Quando a era César Maia (1993-2008) deu lugar ao Planejamento Estratégico em vez do Plano Di-retor da cidade (1991), deixou-se claro que a lógica empresarial e de resultado rápido iria imperar na gestão municipal. Alguns re-ferem-se a esse período como o da desconstrução do espaço ur-bano carioca na qual os projetos pontuais de remodelação e reur-banização de bairros e favelas da cidade se pautavam pelo cida-

dão(ã)-consumidor(a). Por isso, a produção do espaço buscava a padronização do consumo (RI-BEIRO, 2009) e não a valorização nas dinâmicas e modos de apro-priação. Na “era Eduardo Paes”, por conta dos Megaeventos Es-portivos, essa forma de gestão ganhou contornos mais visíveis. Com isso, é possível afirmar que estamos num período em que o planejamento pode ser caracte-rizado como reducionista, discri-minatório e remocionista.

Essa concepção de planeja-mento atual serve de instrumen-to poderoso para viabilizar as condições de reprodução do ca-pital. Para tanto, o Executivo tor-na-se agente potencializador de um modo de produção do espaço urbano que favorece não só pro-cessos especulativos da terra ur-bana, mas também a construção de uma imagem de cidade que pasteuriza a paisagem, e a vida urbana, facilitando a constitui-ção de superficialidades e a frag-mentação em prol da mercantili-zação da cidade. Como consequ-ência, assistimos a uma série de

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41junho/julho/agosto de 2014

▼ VIDA INCERTA O que esperar do futuro?

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violações de direitos humanos que promovem: remoções, pre-carização dos serviços, militari-zação de áreas estratégicas para os eventos. Por essa razão, a fal-ta de transparência e de partici-pação popular na construção da política urbana é conveniente para abrir espaço a um tipo de re-gulação urbana que precisa tan-to da gestão local, quanto do en-gajamento do aparato institucio-nal do Estado para a reprodução do capital em escala global. Es-sas medidas têm sido justificadas para conter a “desordem urbana”, conforme uma concepção asso-ciada principalmente à violência e à pobreza.

A criação da Secretaria Muni-cipal de Ordem Pública (Seop) é o retrato significativo da neces-sidade da prefeitura de regular o espaço conforme uma imagem e uma noção positivista de ordem pública. Seu principal objetivo, segundo a prefeitura, é o de or-denar os espaços públicos e fa-

zer valer as legislações munici-pais, inclusive o Código de Pos-tura da cidade1. Contudo, a prio-ridade de ação da secretaria se aproxima daquilo que entende-mos como planejamento higie-nista, ligado aos princípios do ur-banismo francês de Haussmann, conhecido como o artista-demo-lidor. A reforma urbana empre-endida na segunda metade do sé-culo XIX em Paris, que reverbe-rou em cidades da América Lati-na, teve no Rio de Janeiro uma de suas expressões. Com intuito de transformar O Rio, tido como co-lonial e inadequado à nova Repú-blica promulgada, em uma cida-de mais europeia e mais france-sa, o higienismo se expressou no aprofundamento de problemas sóciourbanos, sobretudo, pelas remoções promovidas no cen-tro e área portuária para a aber-tura de vias e remodelamento

1 Decreto n° 29.881, de 18 de setem-bro de 2008.

da região. Um projeto de cidade mais adequado à burguesia ca-rioca emergente do período, com um forte discurso de criminali-zação da pobreza. Hoje, o pres-suposto higienista do período Pe-reira Passos (1902-1906) é revi-sitado através do discurso e das práticas de Eduardo Paes. O que está no caminho de seus dese-jos de ordenamento e criação de uma paisagem urbana adequada às imagens internacionais de ci-dade-global é removido e coloca-do abaixo.

A fragmentação de políticas setoriais urbanas (habitação, saneamento e transporte) favo-rece a aproximação da política econômica de mercado com o planejamento, onde toda a luta pelo direito à cidade é captu-rada ou simplesmente deslegi-timada por inúmeros decretos e pela f lexibilização da legisla-ção. Os princípios da gestão de-mocrática e da função social da cidade conquistados através da

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ARTIGO

promulgação em 2001 do Es-tatuto da Cidade são postos de lado. O Porto Maravilha é uma das principais evidências desse processo, posto que, através da Operação Consorciada Urbana da Região do Porto do Rio que institui a CDURP — Compa-nhia de Desenvolvimento Urba-no da Região Portuária —, todas as diretrizes de planejamen-to da área portuária, que cons-tam no Plano Diretor de Desen-volvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro (2011), foram revogadas. Não es-tamos afirmando que este pla-no é uma grande conquista do movimento de reforma urba-na e de outros, comprometidos com a luta pelo direito à cida-de, mas minimamente conside-rava premissas mais razoáveis de controle do uso e ocupação do solo, segundo o significativo patrimônio histórico e cultural dos bairros portuários.

As remoções de comunida-des pobres das cidades é uma das faces mais perversas. Dian-te dessa lógica, para os(as) ex-pulsos(as) só restam os lugares “sem cidade”, sobretudo quan-do são famílias residentes em favelas de áreas centrais2 do Rio de Janeiro. Para aquelas que são “beneficiadas” pelo programa Minha Casa Minha Vida, a úni-ca opção dada à maioria é o re-assentamento a mais de 40 km de distância de seu bairro de origem, infringindo a Lei Orgâ-nica do município que garante, através do artigo 429, “o assen-tamento em localidades próxi-

2 Consideramos áreas centrais, tan-to o centro da cidade como os bairros que se configuram como centralidades nas regiões onde se localizam.

mas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento”.

Aos olhos do Executivo Muni-cipal, o interesse público se tor-na invisível e toda a legislação que garante seus interesses, tam-bém. O não reconhecimento e a invisibilidade dada às reais de-mandas da população mais atin-gida pelos processos de violação desencadeados têm rebatimento perverso, sobretudo, aos(às) que já são invisibilizados(as), inclusi-ve nas denúncias. Escolhemos a problemática de gênero para pro-por uma breve reflexão teórica, da necessidade de ampliarmos não só a perspectiva das denún-

cias como das reinvindicações na política urbana.

A INVISIBILIDADE DO DEBATE DE GÊNERO – PERSPECTIVA DO RECONHECIMENTO PARA A POLÍTICA URBANA

Grande parte dos relatos liga-dos à problemática dos Megae-ventos no país, quando se preo-cupam em evidenciar as mulhe-res, as enquadram como mães, responsáveis por seus filhos e fi-lhas, que têm o seu direito à mo-radia violado, principalmen-te devido às remoções forçadas.

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▼ NO IMPROVISO O que será o amanhã?

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Há um discurso ainda muito pre-sente que reforça a naturalização do papel social das mulheres em nossa sociedade, vinculada à re-produção e ao cuidado com a fa-mília. As mulheres que não se en-quadram nesse padrão sofrem de forma ainda mais violenta os im-pactos desse processo. Em áreas mais precárias das cidades brasi-leiras, sobretudo em favelas e pe-riferias, é evidente o percentu-al elevado de mulheres que são as únicas responsáveis econo-micamente pela casa onde resi-dem, principalmente em locais mais precários e vulneráveis ju-rídica e urbanisticamente. O que as submete a um maior risco de

expulsão de suas casas. Os da-dos mais recentes do IBGE 2010 revelam que em diversas favelas do Rio de Janeiro, o percentual pode ultrapassar os 50% das resi-dências recenseadas. Apesar dis-so, outros tipos de violação vêm acontecendo e não são focados na maioria das pesquisas e de-núncias, além da própria política urbana, como o impacto da atual política de segurança na vida das mulheres, moradoras de favelas “pacificadas”.

É emergente cada vez mais dar visibilidade aos temas mais mar-ginais. A relevância é evidente nos dados estatísticos. Ao olhar os dados específicos para área

portuária, nas áreas mais pobres e mais precárias da Providência, grande parte dos domicílios tem como responsáveis as mulheres, como é o caso da parte alta da Pe-dra Lisa (83,7%). Na Rua do Livra-mento, vemos inúmeras famílias vivendo nos cortiços que tam-bém apresentam número signi-ficativo de mulheres responsá-veis por seus domicílios. No pré-dio chamado “Apê”, na Ladeira do Faria nº 125, onde foram re-movidas dezenas de famílias, 21 mulheres eram responsáveis por 34 apartamentos mapeados. Essa área da favela é considerada uma das mais precárias.

Em 2012, através da Relatoria das Nações Unidas para o Direi-to à Moradia Adequada, a urba-nista Raquel Rolnik foi responsá-vel pela elaboração de uma carti-lha chamada “Como fazer valer o direito das mulheres à moradia?”, conforme os esforços da ONU do chamado gender mainstreaming desde a Conferência das Mu-lheres em Pequim, 1995. Gender mainstreaming é um conceito de política pública que considera as diferentes implicações entre os gêneros, a partir de uma aborda-gem transversal que reverbere na legislação e programas em todos os níveis de governo. Comparti-lhamos a opinião dos limites da governança que se paute por di-retrizes internacionais, uma vez que acaba por homogeneizar a problemática de gênero nos di-ferentes países e territórios. Tal perspectiva de transversalização de gênero está associada ao Con-senso de Washington que “cor-responde a uma série de progra-mas inspirados nas abordagens de Milton Friedman e dos Chi-cago Boys, com o objetivo de fa-

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▼ É DESESPERO Pra onde ir?

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zer com que o Estado deixe pleno espaço ao mercado” (LABREC-QUE, 2010, p.903). Ou seja, é pre-ciso cuidado quando se propõe a inclusão de problemáticas que não são tidas como centrais, pois podemos recair em superficiali-dades ou mesmo em armadilhas que reforcem a lógica neoliberal na política urbana.

Atentos a isso, não nos furtamos de ressaltar a importância do de-bate. Para tanto, consideramos de extrema importância a apropria-ção das reflexões na contempo-raneidade sobre duas categorias da ciência política: reconhecimen-to e redistribuição, na perspecti-va da justiça e da igualdade, a fim

de não recair em erros analíticos quanto ao debate sobre o enfren-tamento das desigualdades de gê-nero no espaço urbano.

A estadunidense feminista Nancy Fraser (2006) apresenta reflexões que se baseiam no que ela considera “dilemas da justiça numa era ‘pós-socialista’”, levan-tando o conflito político que cer-ca questões relacionadas à identi-dade, cultura e classe. Afirma que pessoas sujeitas à injustiça cultu-ral e econômica necessitariam de reconhecimento e redistribuição. Assim, quem procura promover a diferenciação do grupo tenderia à política do reconhecimento, e quem defende a sua desestabili-

zação ou sua pulverização tende-ria à política da redistribuição.

Fraser assume que a sua pers-pectiva de justiça se relacio-na à redistribuição e ao reco-nhecimento, mas há uma ten-são neste debate, pois parecem ter, frequentemente, objetivos contraditórios:

Lutas por reconhecimento assu-mem com frequência a forma de chamar a atenção para a presumi-da especificidade de algum grupo [...] e, portanto, afirmar seu valor. Desse modo, elas tendem a promo-ver a diferenciação de grupo. Lu-tas de redistribuição, em contras-te, buscam com frequência abolir os arranjos econômicos que em-baçam a especificidade do grupo (FRASER, 2006:233).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Quando analisamos mulheres pobres que vivem em favelas, po-demos associá-las ao que Fraser (2006) considera coletividades bivalentes, “diferenciadas como coletividades tanto em virtude da estrutura econômica-política quanto da estrutura cultural-va-lorativa da sociedade”3. Por isso, tais coletividades necessitariam dos dois para a busca da justiça.

Na política urbana, a consi-deração da dimensão de gênero surge apenas naquilo que refor-ça os seus papéis sociais tradi-cionais. Por esta razão, deman-das por creches, posto de saúde, praça para crianças (isto é, aquilo que remete a sua responsabilida-de doméstica e do cuidado com a família) são utilizados nos dis-cursos políticos como reivindica-ção das mulheres, mas, de fato, as encaram somente como mães. Sendo assim, a invisibilidade e a desconsideração da necessidade de mudanças na valoração cul-tural de gênero em favelas, por exemplo, não encontra solução na redistribuição, mas no reco-nhecimento (PHILLIPS, 2009).

A experiência urbana, em mui-tos fatores, se diferencia entre os indivíduos e grupos sociais, prin-cipalmente se olharmos para a perspectiva de gênero. Nesta di-reção, barreiras tanto materiais quanto simbólicas deveriam ser quantificadas e qualificadas na política urbana e habitacional da cidade. Os programas de urbani-zação de favelas e de construção de moradia popular precisariam caracterizar e dimensionar estes aspectos, pois reforçam lógicas que vão contra o que chamamos de direito à cidade.

3 FRASER, 2006, p.233.

A política urbana na lógica de mercado, neste contexto de Me-gaeventos, tende a homogenei-zar a tudo e a todos(as), refor-çando a invisibilidade de gêne-ro, ou mesmo o lugar das mu-lheres na sociedade, quando já são evidentes práticas e rela-ções sociais que desafiam essa mística. É emergencial que o debate político acerca do direito

à cidade considere de forma co-existensiva as desigualdades de gênero frente a outros processos de opressão. Por isso, acredita-mos que a vida das mulheres, em suas diversas manifesta-ções, precisa ser cada vez mais desmistificada, a fim de gerar instrumentos de luta e pressão política para a ampliação de di-reitos em nossa cidade.

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COPAS E DITADURASLivro investiga a relação entre os regimes militares no Brasil e na Argentina e o campeonato mundial de futebol da Fifa nos anos de 1970 e 1978

▼ DA REDAÇÃO

A historiadora Lívia Guima-rães decidiu dar amplitude aca-dêmica à sua paixão pelo fute-bol. Ela lança na primeira quin-zena de julho o livro Com a taça nas mãos — sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Editora Lamparina).

Trata-se de sua tese de doutora-do em História Social pela Uni-versidade Federal Fluminense (UFF). Desde 2006, Lívia traba-lha com o tema, quando iniciou o mestrado em Estudos Latino--americanos na Universidade Nacional de San Martín (UN-SAM — Argentina). Para en-tender a teia de interesses que envolveu as ditaduras dos dois países (Brasil 1964-1985 e Ar-gentina 1976-1983) e as Copas do Mundo de 1970 e 1978, Lívia percorreu arquivos em cidades de quatro países: Rio, Buenos Aires, Paris e Zurique, na Suíça, onde fica a sede da Fifa.

O Brasil foi tricampeão do Mundo em 1970, no México.

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▼ LÍVIA. Paixão pelo futebol motivou pesquisa

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COPAS E DITADURAS

Em 1978, a Argentina, do gene-ral Jorge Videla, foi a anfitriã da Copa. Lívia Guimarães pôs foco nessas fases sombrias dos dois países. Em 1970, aqui no Brasil, o general Garrastazu Médici co-mandava um dos períodos mais duros do regime. A conquista do campeonato mundial deixou a população em êxtase. O regi-me aproveitou a atmosfera para propagar uma onda de patrio-tismo e humanizar a figura do ditador, como mais um brasilei-ro apaixonado por futebol. Nos porões da ditadura, a realidade era de prisões, torturas e mortes de perseguidos políticos.

Na Argentina, em 1978, laços profundos se estabeleceram en-tre a Fifa, presidida então pelo brasileiro João Havelange, e os

comandantes da ditadura san-guinária que durante sete anos impôs o terror ao país: números indicam 30 mil mortos e desa-parecidos. Lívia Guimarães ex-plica que o seu estudo não bus-ca atestar o uso do futebol pe-los governos ditatoriais para buscar consenso na sociedade. Isto é muito óbvio, ela diz. Nes-ta entrevista à revista Cader-nos Adufrj, a escritora assegu-ra que suas pesquisas a permi-tem superar o simplismo em re-lação a algumas conclusões e/ ou informações correntes so-bre o assunto. Ela destaca como um dos pontos que procura des-mistificar a ideia de que “o fute-bol é usado apenas como ferra-menta de manipulação de regi-mes autoritários, como se fosse

▼ DITADOR Médici, comandante do terror de Estado, ao lado de Havelange

▼ VIDELA. Genocida cumprimenta jogadores em 1978

AFP

ARQUIVO / AGÊNCIA O GLOBO

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A duração das duas ditadu-ras teve alguma relação com a conquista das Copas?Não. No caso do Brasil, a ditadu-ra ainda permaneceu por mais 15 anos após a Copa, e no caso da Argentina, por mais cinco. Isso não tem relação com a vitória. O que as Copas geraram foi um momento de euforia, de renovação de consenso, mas de forma alguma elas podem ser lidas como responsáveis pela permanência destes regimes.

Quem soube usar melhor a vitória na Copa, o Brasil ou a Argentina?Acredito que a Argentina, em função de ter sido a sede do evento. Isso lhe proporcionou diferentes ferramentas de pro-paganda a seu favor.

Qual foi o nível de cumplici-dade da Fifa com a ditadura argentina?Esse é um tema complicado. João Havelange, presidente da FIFA, estabeleceu relações pessoais especialmente com o Almirante Carlos Lacoste, Vice-Presidente do Ente Autár-quico Mundial 78, o verdadeiro responsável pela organização do evento. Lacoste chegou a ser vice-presidente financeiro da FIFA depois. O fato é que as relações entre Havelange e a Junta Militar Argentina nunca foram difíceis.

Além do episódio Saldanha, há outras revelações que

um espaço sem autonomia, sem uma história e uma dinâmica próprias”.

As pesquisas da historiado-ra também a fizeram relativi-zar versões correntes sobre as relações da ditadura brasileira com a seleção de 1970. Ela con-testa, por exemplo, a história segundo a qual o técnico João Saldanha foi afastado da sele-ção às vésperas da Copa do Mé-xico, mesmo após ter vencido as eliminatórias, por ser comu-nista e por ter desafiado Médi-ci. O ditador queria a escala-ção do atacante Dario, do Atlé-tico Mineiro, e Saldanha te-ria replicado com a frase “ele (o general) escala o seu minis-tério e eu, o meu time”. A con-clusão de Lívia é que Saldanha deixou o time porque já estava desgastado com os jogadores por causa de seu temperamen-to explosivo.

Quando o tema é a Copa na Argentina, as investigações da historiadora trazem informa-ções relevantes, como a de que os dois principais grupos guer-rilheiro em armas no país, os Motoneros e o Exército Revo-lucionário do Povo (ERP) di-vulgaram nota apoiando o tor-neio porque consideravam que “a Copa não era da ditadu-ra, mas do povo”. A Argenti-na havia sido indicada para se-diar a Copa do Mundo de 1978 em 1966, portanto, bem antes do golpe militar de 1976. Lívia também afirma que “João Ha-velange, presidente da FIFA, estabeleceu relações pessoais especialmente com o Almiran-te Carlos Lacoste”. Esse militar chegou a ser vice-presidente fi-nanceiro da FIFA depois.

TORCER OU NÃO TORCERdesmistificam algumas “ver-dades” tidas como incontes-táveis?Acho que a principal que pro-curo desmistificar é a de que o futebol é usado apenas como ferramenta de manipulação de regimes autoritários, como se fosse um espaço sem autono-mia, sem uma história e uma dinâmica próprias.

Que conclusão (conclusões) da sua tese você gostaria de destacar?Destaco, novamente, o fato de que a leitura na dicotomia apoio/oposição não é suficiente para compreender as socieda-des estudadas, não dão conta da complexidade dessas ditadu-ras. E isso vale também para as relações com o futebol: torcer ou não torcer para a seleção não pode ser interpretado como apoiar ou resistir à ditadura.

▼ HAVELANGE. Cúmplice do terror

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LIVROS

COLETÂNEA DA BOITEMPO DISCUTE COPA E OLIMPÍADATer um olhar crítico sobre os megaeventos no Brasil não é patriótico nem antipatriótico. É apenas o necessário olhar crítico — Juca Kfouri

Em meio a um crescen-te número de manifes-tações e uma intensa discussão dos impactos da Copa do Mundo em nossas cidades, a Boi-tempo Editorial amplia o debate ao lançar agora em junho a coletânea Bra-sil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, editada no calor da hora, com contribuições diversas, como o jornalista investiga-tivo escocês Andrew Jennin-gs; o secretário executivo do Ministério do Esporte, Luis Fernandes; a relatora espe-cial da ONU, Raquel Rolnik; os urbanistas Erminia Maricato (USP) e Carlos Vainer (UFRJ); o jornalista Juca Kfouri (quarta capa), entre outros. Para tornar

o livro acessível ao maior núme-ro de pessoas, autores cederam seus textos, possibilitando que o volume chegue ao mercado a preço de custo (R$ 10,00). Um dos grandes méritos de Brasil em jogo é trazer argumentos dos dois lados em um embate de ideias que só tem a enri-quecer o leitor. Assim, o livro apresenta perspectivas varia-das sobre o papel do esporte na sociedade brasileira e na construção da identidade na-cional, os impactos urbanísti-cos e as transformações dos megaeventos esportivos ao longo da história. A coletâ-nea conta ainda com uma cronologia detalhada sobre os megaeventos esporti-vos, desde a origem até os tempos atuais.

PAIXÕES E DESCONFIANÇASAo conquistar o direito de sediar a Copa do Mundo 2014 e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, o Brasil aceitou o desafio de realizar dois megaeventos esportivos globais, que despertam, ao mesmo tempo, paixões e desconfianças. Há argumentos que defendem os eventos como uma janela singular e histórica de oportunidades, mas, longe do consenso, também surgem críticas que consideram tais proje-tos excludentes, potencializadores da desigualdade social nas cidades-sede e do endividamento público.

A polêmica abre espaço para um amplo debate sobre o que significa para o Brasil sediar os megaeven-tos esportivos mais simbólicos do mundo na atual conjuntura política, econômica e social. É nesse senti-do que a Boitempo Editorial publica a coletânea Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?, editada no calor da hora, com contribuições de Andrew Jennings, Luis Fernandes, Raquel Rolnik, Er-mínia Maricato, Carlos Vainer, Jorge Luiz Souto Maior, José Sergio Leite Lopes, Nelma Gusmão de Oliveira,

Antonio Lassance, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, João Sette Whitaker (apresentação) e Juca Kfouri e Gilberto Maringoni (quarta capa).

Título: Brasil em jogoSubtítulo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?Autores: VáriosPáginas: 96Preço: R$ 10,00 | Ebook: R$ 5,00Ano: 2014Coedição: Boitempo e Carta Maior

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