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SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE CADERNOS da n.º2 | semestre jul/dez 2016 Nota de abertura A FALIBILIDADE DA AÇÃO HUMANA | Pag. 5 Luís Mendes Cabral Sessão Solene TOMADA DE POSSE | PRESIDENTE DA DELEGAÇÃO REGIONAL DOS AÇORES DA ORDEM DOS FARMACÊUTICOS | Pag. 9 Margarida Martins Casos resolvidos PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/3) | Pag. 77 PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/4) | Pag. 99 Artigos SAÚDE: UMA QUESTÃO DO PROVEDOR DE JUSTIÇA | Pag. 15 José de Faria Costa TOXICODEPENDÊNCIA: DA ACEITAÇÃO INDIFERENTE À MOBILIZAÇÃO DESCRENTE | Pag. 23 Alberto Peixoto O ESTATUTO APLICÁVEL AOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA DO SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE DOS AÇORES | Pag. 41 Paulo Jorge Gomes ALGUNS ASPETOS SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS PÚBLICOS NA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES | Pag. 55 João Barbosa Macedo

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SERVIÇOREGIONAL DE SAÚDE

CADERNOS da

n.º2 | semestre jul/dez 2016

Nota de abertura

A FALIBILIDADE DA AÇÃO HUMANA | Pag. 5Luís Mendes Cabral

Sessão Solene

TOMADA DE POSSE | PRESIDENTE DA DELEGAÇÃO REGIONAL DOS AÇORES DA ORDEM DOS FARMACÊUTICOS | Pag. 9Margarida Martins

Casos resolvidos

PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/3) | Pag. 77

PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/4) | Pag. 99

Artigos

SAÚDE: UMA QUESTÃO DO PROVEDOR DE JUSTIÇA | Pag. 15José de Faria Costa

TOXICODEPENDÊNCIA: DA ACEITAÇÃO INDIFERENTE À MOBILIZAÇÃO DESCRENTE | Pag. 23Alberto Peixoto

O ESTATUTO APLICÁVEL AOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA DO SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE DOS AÇORES | Pag. 41Paulo Jorge Gomes

ALGUNS ASPETOS SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS PÚBLICOS NA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES | Pag. 55João Barbosa Macedo

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FICHA TÉCNICA

PROPRIEDADE: GOVERNO DOS AÇORES – SECRETARIA REGIONAL DA SAÚDEEDIÇÃO: INSPEÇÃO REGIONAL DE SAÚDEPAGINAÇÃO: VITOR MELO

ISSN 2183–8143

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A FALIBILIDADE DA AÇÃO HUMANA | Pag. 5Luís Mendes Cabral

Nota de abertura

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NOTA DE ABERTURAA FALIBILIDADE DA AÇÃO HUMANA

Luís Mendes Cabral*

Ao afirmar categoricamente que “todos têm direito à proteção da saúde” a Constituição da República Portuguesa obriga o Estado a disponibilizar um serviço público de saúde, tendencialmente gratuito, contudo universal, que “apenas” pode zelar pela saúde, ou seja, que não pode causar qualquer dano, quer seja por dolo ou por negligência.

Simultaneamente, o cidadão tem “o dever de defender e promover” a sua saúde pelo que, qualquer ação ou omissão que seja contrária a essa obrigação, poderá ser eventualmente invocada para diminuir o direito à proteção que a Constituição lhe confere.

Se tivermos em consideração a falibilidade da ação humana, rapidamente concluímos que, neste contexto, é necessário existir uma entidade que garanta ao sistema de saúde um juízo sobre o acesso dos utentes aos cuidados de saúde e que tenha em conta a incerteza de uma ciência cada vez mais tec-nológica, mas que tem, ainda, grandes limitações.

Fazendo fé que a Justiça assume legitimamente a sua responsabilidade, mas conscientes que padece do mesmo mal que parece estar a afetar o funcionamento dos restantes serviços públicos, tornou-se impor-tante, para o cidadão, a existência de um serviço que, numa proximidade fácil, lhe garanta, sem o peso e o custo da litigância, a certeza da qualidade e do bom funcionamento dos serviços disponibilizados.

O Governo Regional dos Açores decidiu em maio de 2011 operacionalizar a Inspeção Regional de Saúde (IReS), tendo como missão fiscalizar o cumprimento das normas aplicáveis ao Serviço Regional de Saúde, gozando, para o efeito, de autonomia e independência técnica nos termos do seu estatuto.

As suas atribuições são latas e vão para além da simples fiscalização de normas. Competências no controlo interno e externo do Serviço Regional de Saúde, na fiscalização dos agentes do setor da saúde, tendo em vista a certeza e segurança, confiança, racionalidade, eficácia e eficiência do Serviço Regional de Saúde, foram formalmente reconhecidas por todos os agentes do setor.

Ao longo dos cinco anos de existência, através de uma postura competente, idónea, tecnicamente independente, a IReS tem fiscalizado e auditado periodicamente as instituições e os profissionais de saúde, identificando falhas, recomendando melhorias e protegendo os legítimos direitos dos cidadãos.

A publicação dos Cadernos da IReS é, por isso, um passo natural na evolução deste serviço público, que dá corpo à atitude preventiva e pedagógica característica da equipa que o constitui, bem como con-fere prestígio, credibilidade e notoriedade ao excelente trabalho desenvolvido, que infelizmente é aba-fado pelo empolamento mediático de algumas conclusões técnicas a que chegam nos seus relatórios.

Na certeza de que este instrumento de trabalho servirá como fonte de reflexão e aprendizagem para um universo que contêm, mas ultrapassa, as instituições do Serviço Regional de Saúde, é com muita honra que, como Secretário Regional da Saúde da Região Autónoma dos Açores, vos convido a ler e partilhar os artigos selecionados para esta edição.

Angra do Heroísmo, 11 de outubro de 2016

(*) Secretário Regional da Saúde do XI Governo Regional dos Açores

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Sessão solene

Tomada de posse da Presidente da Delegação Regional dos Açores da Ordem dos Farmacêuticos

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Senhoras e senhores convidados Caras e caros Colegas farmacêuticos Caros amigos e amigas Minhas senhoras e meus senhores

Começo por agradecer a honra da presença de Vossas Excelências, o que muito enobrece esta ce-rimónia de posse, apresentando os meus cumpri-mentos de elevada estima e consideração a todos os presentes.

Saudar os farmacêuticos açorianos que, nas dife-rentes áreas de atuação, diariamente se empenham em garantir os melhores cuidados farmacêuticos ao utente, amplamente reconhecidos pelos nossos concidadãos, contribuindo, desta forma, para o enaltecer da nossa profissão.

Saudar o Senhor Diretor Regional de Saúde, Dr. João Soares, que nos concede a honra de presidir a esta cerimónia. Em nome dos farmacêuticos aço-rianos, reitero a nossa total disponibilidade para com o Serviço Regional de Saúde.

Saudar a Senhora Bastonária da Ordem dos Far-macêuticos, Prof. Doutora Ana Paula Martins, confessa apaixonada das nossas ilhas. É uma hon-ra recebê-la, mais uma vez, nos Açores. Permita-me congratulá-la pela sua eleição e pelo meritório trabalho já desenvolvido, em conjunto com a sua notável equipa, pelos farmacêuticos portugueses. Vaticino um mandato notável, que muito contribuirá para o prestígio da nossa profissão e para o benefício dos Serviços Nacional e Regional de Saúde. Não posso deixar de salientar, e de muito agradecer, a disponibilidade e o cuidado que tem demonstrado, em tão breve mandato, para com os

TOMADA DE POSSE | PRESIDENTE DA DELEGAÇÃO REGIONAL DOS AÇORES DA ORDEM DOS FARMACÊUTICOS

Hotel Caracol, Angra do Heroísmo, 21 de julho de 2016

Margarida Martins

farmacêuticos açorianos. Seja, hoje e sempre, bem-vinda aos Açores.

Saudar a Senhora Presidente da Secção Regio-nal do Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos, Dr.ª Ema Paulino. Foi com gran-de entusiasmo que recebemos o anúncio da sua recandidatura. É notável o dinamismo que tem empreendido à Secção Regional.

Os vários projetos implementados durante o seu mandato têm sido repercutidos na comunidade científica e na sociedade civil, trazendo ao debate temas tão pertinentes como o uso responsável do medicamento, envolvendo todos os intervenientes e trazendo à reflexão multidisciplinar a busca de novas soluções para os sistemas de saúde. Dr.ª Ema Paulino: é nosso desejo estender aos Açores o de-bate frutuoso sobre esta temática. Conte connosco e seja sempre bem-vinda aos Açores.

Saudar o Senhor Delegado Regional dos Açores da Ordem dos Farmacêuticos, Dr. João Pedro Toste de Freitas, colega que altruisticamente dirigiu esta delegação por mais de duas décadas. Duas décadas de compromisso, dedicação, rigor e ética. Presto-lhe hoje, em meu nome pessoal e em nome dos farmacêuticos açorianos, a mais digna homenagem pelo seu trabalho, pela sua entrega, pelo seu exem-plo. Muito obrigada!

I1. Como farmacêutica, sinto-me herdeira de uma

grande responsabilidade, de uma profissão secular, em constante mutação, que grandes progressos tem permitido à humanidade.

A tarefa que nos foi delegada, ao assumirmos a nossa profissão, é imensurável e, por isso, temos

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que olhá-la tendo a exata consciência do que ela representa, não só para nós, mas também para o utente e para a sociedade.

2. O Farmacêutico é o profissional de saúde que, pelas suas competências científicas específicas e pluralidade do exercício da sua profissão, garan-te, de forma racional e eficaz, a gestão da cadeia do medicamento: desde o seu desenvolvimento, regulamentação, produção, armazenamento, dis-tribuição, indicação, administração, monitoração e otimização da terapêutica; mas também, a par com as demais profissões da saúde, a cogestão dos cuidados de saúde ao doente, gerando valor para o utente em particular e para a sociedade em geral.

3. O medicamento, os dispositivos médicos e os meios complementares de diagnóstico são hoje tecnologias da saúde cada vez mais eficazes, per-mitindo elevados ganhos em saúde, traduzidos num aumento significativo da esperança de vida. Hoje vivemos mais. Mas são tecnologias revestidas de elevada e crescente complexidade, importando, pois, a otimização e individualização da sua utili-zação, por forma a colher os melhores benefícios, diminuindo o risco do seu uso, para que possamos viver melhor, gerando valor e qualidade de vida, com os benefícios daí resultantes para a sociedade.

4. Vivemos mais, acumulamos morbilidades e a doença crónica é o novo paradigma para o qual, os decisores políticos, a sociedade em geral e as pro-fissões da saúde em particular, têm que encontrar rápida e continuamente soluções válidas e susten-tadas para que possamos não só viver mais, mas melhor; para que possamos rentabilizar de forma efetiva os recursos finitos disponíveis.

É na pluralidade do conhecimento, traduzido no trabalho em equipas multidisciplinares, integradas e articuladas com a rede de cuidados disponível,

que estrategicamente deveremos assumir a batalha contra a doença crónica.

5. Os resultados do Inquérito Nacional de Saú-de com Exame Físico (INSEF) (1), recentemente di-vulgados, permitem um diagnóstico do estado de saúde da população e a avaliação dos programas de saúde e investigação em saúde pública. O INSEF classifica a Região Autónoma dos Açores na cau-da nacional para a grande maioria dos indicadores avaliados.

São resultados que não nos orgulham e obrigam-nos a refletir, a encontrar e a propor soluções cons-trutivas para o Serviço Regional de Saúde. É nosso dever promover um melhor Serviço Regional de Saúde, com o cidadão como foco das nossas priori-dades e inverter, rápida e eficazmente, esta tendên-cia agora diagnosticada.

6. Apostar na prevenção; na consolidação dos mecanismos de informação ao utente, por forma a combater a iliteracia em saúde; na identificação e referenciação precoce de utentes com alto risco para o desenvolvimento de doença crónica; no es-treito acompanhamento dos doentes crónicos já diagnosticados (com doença metabólica, cardio-vascular ou respiratória, etc.), é o compromisso cívico que as gerações futuras deverão herdar da sociedade atual.

7. Os Farmacêuticos dos Açores, evidenciando aqui o papel dos farmacêuticos comunitários, estão estruturados e preparados para, em estreita par-ceria com os médicos, os enfermeiros e restantes profissões da saúde, assumirem esta corresponsa-bilidade.

II1. Senhor Diretor Regional: tem à sua disposição

(1) Disponível online em http://repositorio.insa.pt/handle/10400.18/3832 (última consulta 17-06-2016)

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uma rede de 54 farmácias e 10 laboratórios de aná-lises clínicas, uniformemente distribuídos pela Re-gião Autónoma dos Açores, onde os farmacêuticos comunitários e os farmacêuticos analistas clínicos estão perfeitamente capacitados para formalizar a implementação de protocolos de monitorização e educação de doentes crónicos, e de identificação e referenciação de utentes de elevado risco para o desenvolvimento de doença crónica; num mode-lo com claros benefícios de acessibilidade, rigor e confiança.

2. Embora a doença crónica e a prevenção primá-ria se assumam como os principais focos de aten-ção da sociedade atual, não podemos negligenciar a importância que os cuidados diferenciados têm assumido nas últimas décadas, com relevantes e constantes avanços nas técnicas de diagnóstico e tratamento que hoje possibilitam a vida, com qua-lidade, ao doente que, até há bem poucos anos, te-ria reduzidas ou inexistentes hipóteses de sobrevi-vência.

3. Saliente-se, nesta área, o desempenho fun-damental do farmacêutico hospitalar, enquanto inquestionável mais-valia na prestação e garantia dos cuidados de saúde hospitalares. Integrados nas equipas clínicas multidisciplinares, garantem dia-riamente aos doentes uma terapêutica otimizada, mais segura, mais eficiente e aos menores custos, incutindo confiança na prestação dos cuidados e a obtenção de outcomes favoráveis.

4. Devo também salientar a intervenção do far-macêutico do sector grossista de distribuição de medicamentos, garantindo aos cidadãos e aos pro-fissionais de saúde a acessibilidade ao medicamen-to em condições de segurança, cujo trabalho, dada a nossa condição insular, se reveste de uma com-plexidade acrescida.

5. Merece igual destaque o trabalho do farmacêu-tico analista clínico que, nos laboratórios de proxi-midade ou nos laboratórios hospitalares, garante a obtenção de resultados fiáveis e rigorosos, contri-buindo desta forma como meio de diagnóstico cre-dível, indispensável ao apoio à decisão clínica, para o correto diagnóstico e monitorização do estado de saúde dos nossos utentes.

6. Cabe-me ainda transmitir uma mensagem po-sitiva aos jovens, e aos futuros farmacêuticos em formação, que escolheram ou escolherão os Açores para exercício da sua profissão, uma profissão com muitos desafios, mas uma profissão com futuro. A Delegação Regional dos Açores da Ordem dos Far-macêuticos dá-vos as boas vindas.

III1. O cargo que agora assumo, com grande res-

ponsabilidade e sentido de dever, arrogo-o com a certeza e a consciência do que representa, mas acreditando também que a Ordem e a Delegação Regional não se esgotam nos órgãos sociais eleitos. A Ordem dos Farmacêuticos tem e deve ser assu-mida por todos os que exercemos a profissão far-macêutica, participando ativa e responsavelmente nos seus desígnios, contando, por isso, com a valio-sa contribuição de todos os colegas açorianos.

2. Acredito numa Ordem coesa, participada, onde todos os farmacêuticos se vejam representa-dos. Um fórum de debate, partilha de experiências e de alavancar propósitos comuns. Para isso, serão abertos canais de comunicação privilegiados com os associados, por forma a promover a aproxima-ção e mobilização dos associados à Delegação.

3. Senhora Bastonária, Senhora Presidente da Secção Regional do Sul e Regiões Autónomas, apre-sento-me ao serviço da Ordem dos Farmacêuticos

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para o cumprimento da função que me foi confia-da. Contem com o contributo dos farmacêuticos açorianos para a prossecução da missão da Ordem dos Farmacêuticos.

IV1. Senhor Diretor Regional de Saúde, senho-

res convidados, caros colegas e amigos. É meu propósito, é o nosso compromisso:

— Promover e garantir a intervenção farmacêu-tica;

— Garantir o acesso de todos os cidadãos açoria-nos aos cuidados farmacêuticos;

— Atuar conduzidos pela mais elevada evidência científica e pelo ético e escrupuloso exercício pro-fissional;

— Promover a manutenção da qualidade técni-co-científica do farmacêutico, garantindo mecanis-mos de formação contínua adequados;

— Obter consensos através do diálogo, pratican-do a tolerância como instrumento fundamental de atuação com as diversas instituições públicas e pri-vadas que atuam, e com responsabilidade, no sec-tor da saúde, conforme tem sido a nossa maneira de estar. Porém, sem com isso atrasar indefinidamente as reformas, urgentes e identificadas, a empreen-der, que garantam aos farmacêuticos as condições técnicas e humanas adequadas ao exercício da sua profissão, transversalmente em toda a Região, onde se mostre necessária a ação do farmacêutico, para que a segurança do utente, ao cuidado do Serviço Regional de Saúde, esteja garantida;

— Cooperar com a tutela na definição das polí-ticas de saúde, promovendo mais e melhores cui-dados de saúde aos cidadãos açorianos, sem pôr em causa a garantia da sustentabilidade do Serviço Regional de Saúde;

— Contribuir para a confiança do cidadão no Serviço Regional de Saúde;

— Ser um instrumento de transformação do Ser-

viço Regional de Saúde para que as próximas gera-ções sejam mais saudáveis;

V

1. Por fim, agradecer a confiança em mim depo-sitada para o cumprimento das funções de Delega-da Regional da Ordem dos Farmacêuticos. Muito obrigada e bem hajam.

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TOXICODEPENDÊNCIA: DA ACEITAÇÃO INDIFERENTE À MOBILIZAÇÃO DESCRENTE | Pag. 23Alberto Peixoto

O ESTATUTO APLICÁVEL AOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA DO SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE DOS AÇORES | Pag. 41Paulo Jorge Gomes

ALGUNS ASPETOS SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS PÚBLICOS NA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES | Pag. 55João Barbosa Macedo

Artigos

Todos os textos publicados nesta secção apenas vinculam os seus autores, não representando qualquer posição oficial ou institucional da Inspeção Regional de Saúde ou da entidade a que pertencem os autores, exceto quando o contrário for expressamente assumido.

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SAÚDE: UMA QUESTÃO DO PROVEDOR DE JUSTIÇA (*)

Health: an issue of the Ombusdman José de Faria Costa (**)

Resumo O Provedor de Justiça procura a realização do direito à proteção da saúde, quer na sua vertente

de instituição de direitos humanos, quer no âmbito de uma atuação clássica destinada ao controlo da legalidade administrativa. No presente texto revisitam-se algumas intervenções que, no domínio da saúde, mais nitidamente refletem o recurso a princípios éticos e a juízos de justiça para fundar decisões definitivas, assim se sublinhando a especificidade deste mecanismo de administração da justiça, também caracterizado pela informalidade e flexibilidade procedimental. No final pretende-se demonstrar, com recurso à praxis, que a saúde é uma questão de justiça.

AbstractThe Portuguese Ombudsman promotes the citizen’s right to health protection, both in its role as a hu-

man rights institution and also in the context of its traditional scope of ensuring administrative legality. The present text revisits examples of interventions within the right to health protection that reflect how the Ombudsman resorts to ethical principles and justice judgements to support its final decisions. These examples emphasize the specificity of the Ombudsman as a mechanism that promotes the administra-tion of justice supported by a culture of informality and procedural flexibility. In the end, it is intended to demonstrate, through praxis, that health is a matter of justice.

Palavras-chave: Provedor de Justiça; direitos humanos; serviço regional de saúde; direito à proteção da saúde; justiça

Keywords: Ombudsman; human rights; regional health service; health protection; justice

Sumário I. Justiça e equidade na proteção da saúde; II. A justiça como medida de decisão na prática do Pro-vedor de Justiça; III. Dos desafios; IV. Conclusão

(*) Este texto teve a colaboração da Senhora Dra. Sara Vera Jardim, Assessora do Provedor de Justiça, e serviu de base à comunicação proferida na Conferência Justiça em Saúde, no dia 6 de maio de 2016, organizada pela Secretaria Regional da Saúde da Região Autónoma dos Açores e pela Inspeção Regional da Saúde.

(**) Provedor de Justiça. Professor Catedrático em Direito, na área de especialização em Ciências Jurídico- Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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SAÚDE: UMA QUESTÃO DO PROVEDOR DE JUSTIÇA

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What matters most, apart from being alive at all (and arguable matters more than that) is being in good health, in as far as this is the nec-essary condition for achieving many of one’s goals. It makes a difference to job opportuni-ties, to abilities to have and raise children, and generally to the chance of enjoying life.

Brian Barry (1)

I. JUSTIÇA E EQUIDADE NA PROTEÇÃO DA SAÚDE

A saúde é um estado, necessariamente instável, que pode refletir uma situação individual ou um fenómeno coletivo, tendo suscitado uma profícua análise dogmática que lhe atribui as mais diversas classificações, definições e até categorias normati-vas consoante a perspetiva a partir da qual a olhe-mos ou valoremos mesmo que de maneira tenden-cialmente objetiva. Mas tão importante ou mais do que aquilo que acabámos de dizer urge que reflita-mos, ainda que só por breves momentos, sobre a dimensão antropológica da saúde. Na verdade, não podemos perceber a saúde sem termos presente a dimensão do cuidado. É o cuidado para com o “outro”, que é nosso igual e que que só existe por-que “eu” existo e em que “eu”, outrossim, só existo porque aquele “outro” existe, que faz com que “eu” atue de modo a curar o “outro”. Este ato de curar é primevo, logo, somos sempre e definitivamente homo dolens. Jamais nos podemos libertar desta condição. Somos seres finitos, inacabados e antro-pologicamente “doentes”. Daí que o ato de curar, o ato de cuidar seja, ao lado do ato jurídico, que aqui nos abstemos de aprofundar, o que de mais essen-cial, o que de mais humano se pode conceber.

Porém, para o que, de momento, nos importa, centremo-nos na ideia de que em ambos os pata-mares ou degraus, isto é, a saúde olhada em uma (1) Cf. B. Barry, «Why Social Justice Matters», Cambridge, 2005, p.72.

ótica individual ou na sua projeção coletiva, coin-cide, sempre, uma indiscutível dimensão de fun-damentalidade, a qual é indissociável do progresso jurídico e social da doutrina e prática dos direitos humanos, aceção entre nós expressamente reco-nhecida no artigo 64.º da Constituição da Repúbli-ca Portuguesa.

Que a saúde é crítica para o desenvolvimento do ser humano, dir-se-á que não merece, neste nosso tempo, contestação; em uma dimensão coletiva, o estado sanitário de uma população constitui um dos mais relevantes indicadores do desenvolvimen-to civilizacional alcançado, enquanto se olharmos para a relação entre os cidadãos e o Estado, o pron-to acesso a cuidados de saúde de qualidade emerge do comprometimento político para com o valor in-trínseco de cada um dos membros da comunidade que serve.

Esta brevíssima introdução bastaria para indicar o ponto onde se entrecruza o Provedor de Justiça, concebido, entre tantas perspetivas, como vértice dos mecanismos não jurisdicionais de defesa dos cidadãos, com a possível ameaça ou desrespeito do direito à proteção da saúde ou com algum dos outros direitos fundamentais que convergem com a defesa da saúde, como sejam, o direito à vida, à integridade física, o direito à não discriminação, à constituição de família ou o direito à intimidade e à proteção de dados pessoais.

Todavia, valerá a pena densificar dizendo que, ao feixe de competências e meios de atuação, coloca-dos através do Provedor de Justiça ao serviço do ci-dadão com o fito de prevenir e promover os direitos humanos, acrescem aqueles que decorrem de uma vertente mais clássica de intervenção, subsidiária da figura do Ombudsman, de origem escandinava, dirigida, primacialmente, ao controlo da legalidade e da justiça na prática administrativa quotidiana.

Em ambos os domínios, cujos contornos se es-batem, recorde-se que na génese do Provedor de

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José de Faria Costa

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Justiça se acha a finalidade constitucional de preve-nir e reparar injustiças. Uma função que, para lá de iluminar os critérios de apreciação do Provedor de Justiça enquanto fautor e centro de imputação de virtudes públicas, avoca a força de imperiosa obri-gação institucional, literal razão de ser do órgão que ora encarno.

A busca da justiça surge inscrita no artigo 23.º da lei fundamental e interceta a saúde nas mais diversas frentes, mais uma vez coletivas e indivi-duais, tendo-se vindo a acentuar a complexidade dos parâmetros de intervenção possível em um do-mínio de natureza técnico-científica, que convoca juízos éticos característicos das ciências da vida e delimitado pela mundana escassez das possibili-dades materiais existentes, tão própria da função prestacional do Estado.

Uma coisa é absolutamente certa, não existe justi-ça social sem adequada proteção na saúde.

Esta ideia forte terá conduzido, na maioria dos Estados da União Europeia, à adoção de sistemas de saúde com financiamento público a partir dos impostos, assim prosseguindo no reconhecimen-to dos valores da solidariedade e igualdade que os fundam, ao abrigo das diretrizes de um Estado So-cial e ainda do próprio desenvolvimento consoli-dado até ao presente, embora longe do grau de exe-cução desejável. Condicionados por contingências orçamentais, complexificados pela exponencial va-lorização do bem saúde pelo mercado e acossados pelas inexoráveis diferenças sócio-económicas que influenciam as determinantes da saúde, os esforços que têm surtido efeito na consciencialização do di-reito a que nos referimos não lograram o mesmo grau de sucesso no que se refere à respetiva con-cretização.

O encontro entre a busca da justiça e a realização do direito à proteção da saúde vive-se, portanto, no dia-a-dia, a propósito do tratamento de queixas so-bre situações individuais ou refletido em interven-

ções com caráter sistémico, algumas de iniciativa do próprio Provedor de Justiça. Do ponto de vista material, umas vezes provendo pela justiça social, neste campo sobressaindo a preocupação com a verificação do respeito pelos limites éticos que delimitam as escolhas públicas, assim como pela aferição da proporcionalidade e justiça das priva-ções impostas e aceites pelo indivíduo em prol da sociedade, outras vezes, pugnando por uma mais justa solução normativa ou decisão administrativa. Em qualquer delas, a justiça revela-se como axioma norteador e fundamento de decisão.

Ora, a possibilidade de se socorrer de princí-pios éticos para fundar decisões definitivas cons-titui, na verdade, um dos valores ínsitos à atuação do Provedor de Justiça, acrescendo à sua notória especificidade a informalidade e flexibilidade pro-cedimental, características distintivas em relação aos demais mecanismos clássicos de administração da justiça.

Apesar de as suas decisões não serem vincula-tivas, a força da adequação, da justiça, da funda-mentada argumentação, da razoabilidade e de uma intransigente defesa dos princípios constitucionais da igualdade e equidade beneficiam a magistratura de influência exercida, ainda que sem julgar, sem legislar e sem governar.

De certo modo equiparado à crescente relevân-cia social atribuída à saúde, a prática institucional do Provedor de Justiça tem registado ao longo dos últimos anos um progressivo aumento das queixas na área da saúde, não somente em quantidade mas também em complexidade (com nota de ligeiro abrandamento quantitativo apenas no último ano). A esta tendência não será alheio o reforço da cida-dania ativa, a par do robustecimento da capacita-ção dos doentes e cidadãos quanto aos seus direitos em relação ao Estado, mas também em relação aos profissionais de saúde. A maior visibilidade da ne-cessidade de uma escolha pública, forçada pelo au-

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mento das possibilidades terapêuticas disponíveis, desacompanhado do proporcional incremento de recursos financeiros necessários para as garantir a todos os doentes, afigura-se como mais um fator a considerar.

No quadro acabado de delinear, repescaremos algumas das intervenções que traduzem o sentido específico e particular do Provedor de Justiça e nas quais, indo além do contributo para correção de ilegalidades, sobressai com especial nitidez a ne-cessidade de assegurar uma ética de comprometi-mento, entre a expressão individual do direito fun-damental à proteção da saúde e a dimensão coletiva da imposição constitucional que sobre o Estado impende de garantir a proteção da saúde de todos, assim garantindo maior justiça em saúde.

I. A justiça como medida de decisão na prática do Provedor de Justiça

O regular funcionamento de um serviço nacional de saúde universal, geral e tendencialmente gra-tuito constitui no nosso país um desiderato cons-titucional, instrumento primordial ao serviço da realização do direito à proteção da saúde (cf. artigo 64.º, n.º 2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa).

Os enumerados pilares do serviço nacional de saúde estendem-se, com igual obrigação, aos ser-viços regionais de saúde, na exata medida em que os princípios estabelecidos pela Constituição da República Portuguesa se impõem às autonomias regionais.

Foi neste plano que durante o ano transato, o Pro-vedor de Justiça sugeriu que o serviço regional de saúde da Região Autónoma dos Açores assumisse o ónus financeiro suportado por um cidadão aqui residente (de valor superior a € 8 000,00), em con-sequência do tratamento cirúrgico a que se subme-teu no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, proposta que foi acatada.

Em termos muito sucintos, o doente cumulava a qualidade de beneficiário do serviço regional de saúde dos Açores com a de beneficiário de determi-nado sistema de saúde complementar, tendo sido encaminhado pelo Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, para o IPO de Lisboa, naquela primeira condição.

Por razões que não importa nesta sede dirimir, a unidade hospitalar de Lisboa imputou o custo do tratamento efetuado ao referido sistema com-plementar de saúde do utente, enquanto terceiro responsável, acabando este por repercutir no bene-ficiário o pagamento de determinada percentagem (significativa) daquele custo total, em função de uma interpretação dos seus estatutos aplicáveis.

Apesar da natureza jurídica intrincada de uma situação que envolvia quatro partes (três delas de natureza pública) e obrigava, designadamente, a uma definição das relações jurídicas estabelecidas entre o serviço nacional de saúde e duas potenciais entidades terceiras financeiramente responsáveis, o princípio da igualdade norteou a adoção da única solução justa para o cidadão, independentemente da conformação legal de base: aquela que refletia o princípio constitucional ao abrigo do qual todos os cidadãos têm o direito de acesso a um serviço de saúde universal, geral e tendencialmente gratuito, evitando que fosse o doente a suportar o signifi-cativo custo pelo tratamento que recebeu em uma entidade hospitalar pública. A justiça da solução proposta foi reconhecida pelo serviço regional de saúde.

Em distinta vertente, merece ainda realce, no quadro dos fundamentos que guiaram a solução encontrada, a arguição do postulado da igualdade quando aplicado aos efeitos da cumulação da qua-lidade de utente do SNS e beneficiários de um ou-tro subsistema ou sistema complementar de saúde.

Neste horizonte, aproveitamos para ilustrar uma intervenção com vocação geral que possui bastante

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atualidade, qual seja a da reiterada defesa do en-tendimento que sustenta a ilegitimidade de um tratamento desigual dos beneficiários do serviço nacional (ou regional) de saúde que cumulem a qualidade de beneficiários de outro subsistema pú-blico ou privado.

Trata-se de uma temática que tem sido suscitada em diversas ocasiões, mais recentemente a propó-sito do acesso aos cuidados respiratórios domiciliá-rios (oxigenoterapia, ventiloterapia) e, embora em menor medida a meios complementares de diag-nóstico, por parte de beneficiários da ADSE que, na qualidade de utentes do SNS se encontram isen-tos do pagamento de taxas moderadoras, como é o caso das grávidas. Atualmente, tendo sido lograda concertação quanto à questão substancial dogmáti-ca que cumula na afirmação do princípio da igual-dade, foi possível alcançar novo impulso, após uma intervenção junto dos responsáveis dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde E.P.E. tendente à superação de constrangimentos técnicos que obs-tavam ao cabal exercício daquele.

Neste aspeto particular, desde julho de 2015 que o sistema informático das unidades de cuidados de saúde permite a alteração casuística da entida-de financeira responsável, procedimento que pode ser concretizado pelo médico no ato da consulta e alterado sempre que considerado relevante. Desta possibilidade têm sido informados os diversos ci-dadãos beneficiários de subsistemas que ao Prove-dor de Justiça têm recorrido inconformados, e até perplexos, perante uma situação de discriminação em relação a outros utentes do SNS, resultante do simples facto de serem adicionalmente beneficiá-rios de um sistema complementar que, no limite, lhes deveria trazer mais vantagens (até porque pre-sentemente o financiam por inteiro em acréscimo ao financiamento do SNS através dos impostos).

Mantendo-nos sob a alçada da primordial ques-tão sobre quem deve ter direito a cuidados de saú-

de, vale a pena retroceder no tempo e recordar a paradigmática atuação do Provedor de Justiça face à situação dos estrangeiros legalmente residentes em Portugal, que culminou com a aprovação do Despacho n.º 25360/2001, de 12 de dezembro, do Ministro da Saúde. Motivado pela recusa de tra-tamento a um cidadão de um país africano a re-sidir legalmente em Portugal há 18 anos, pugnou-se pela consagração normativa do acesso ao SNS, em igualdade de circunstâncias com os cidadãos portugueses, de cidadãos estrangeiros legalmente residentes em Portugal. Mais foi afirmado o carác-ter absoluto, logo universal, do direito de qualquer pessoa a receber assistência médica, ainda que permanecendo em situação irregular no país, sem prejuízo da assunção da responsabilidade pelos en-cargos incorridos. Ainda que longe da crise huma-nitária atualmente vivida no mediterrâneo, colossal desafio para os países europeus, o direito de acesso a cuidados de saúde foi então como é agora, afir-mado pelo Provedor de Justiça como absoluta con-dição de respeito pela dignidade das pessoas.

Em razão da relação com as entidades promo-toras da presente conferência, mas também por se tratar de um exemplo paradigmático da amplitude de poderes do Provedor de Justiça que a concre-tização da justiça legitima, avancemos para uma queixa desencadeada pela falta de resposta da Ad-ministração Regional Autónoma a uma reclamação apresentada no Livro em uso em determinada uni-dade de cuidados de saúde primários.

Em termos substantivos estava em causa a condu-ta de um médico que, em contexto de atendimen-to clínico, teria feito uso de força excessiva (à data da queixa, a interessada desistira do procedimento criminal e da queixa junto da Ordem dos Médicos). Desrespeitado o dever de resposta pelo Centro de Saúde, que se limitou a encaminhá-la para a Dire-ção Regional de Saúde, também esta entidade re-gional terá optado por apenas informar a unidade

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de saúde do dever que lhe competia assegurar, sem iniciar autonomamente qualquer procedimento, mormente nas suas implicações disciplinares, ini-ciativa que na perspetiva do Provedor de Justiça se impunha, face à gravidade da situação relatada e às competências próprias.

Ora, apesar de prejudicadas nos respetivos re-sultados pelo lapso temporal, de vários anos, de-corrido desde a data em que ocorreram os factos alegados, a nossa intervenção motivou a adoção de diversas diligências instrutórias, que culminaram na apresentação à interessada de um pedido de desculpas, conforme oportunamente sugerido face aos resultados alcançados.

Longe de esgotar a panóplia de situações e temas que na atuação provedoral mais diretamente de-mandam o recurso a um juízo de justiça, as ques-tões de índole financeira, conformadas pela carac-terística da tendencial gratuitidade do SNS, estão diretamente ligadas à realização da justiça social e comprometem uma percentagem assaz relevante das queixas em saúde, adensada aquando da modi-ficação do regime de isenção das taxas moderado-ras, ocorrida com a aprovação do Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro.

Neste contexto, ainda que declinando a adoção de uma posição a respeito do quantum associado ao aumento das taxas moderadoras consagrado, procurou-se até ao momento presente prover pelo reforço da equidade nas soluções legalmente verti-das, essencialmente quanto ao regime da isenção, tendo daí resultado a formulação de recomendação cujo acompanhamento persiste em contactos com o ministério da saúde sob ponderação e insistência.

Embora as recentes alterações legislativas as-sumam um significado não despiciendo no aper-feiçoamento do regime, em conformidade com propostas formuladas pelo Provedor de Justiça (2),

(2) Referimo-nos, designadamente, ao Decreto-Lei n.º 117/2014, de 5 de agosto, através do qual foi alargada a isenção do pagamento de taxas moderadoras às crianças e jovens sob proteção do Estado e aos requerentes de asilo e refugiados, bem como ao artigo 205.º, da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de

mantém-se a especial inquietação quanto à des-consideração da relevância da composição de cada agregado familiar, bem como em relação a outros aspetos relacionados com a necessidade de uma mais justa delimitação do rendimento relevante para efeitos de determinação da condição de insu-ficiência económica.

Para terminar este ponto, deixemos cair o nosso olhar em um plano que se sobrepõe, da forma mais crua, ao conceito de justiça, detendo-nos na pro-teção votada aos mais enfraquecidos e socialmen-te isolados, em função de doença do foro mental de que padecem, em especial de todos quantos se encontram diminuídos também na sua liberdade e até na elementar capacidade de comunicar.

Centram-se nestes tão vulneráveis cidadãos os esforços do Provedor de Justiça (enquanto tal) mas também o trabalho assumido na qualidade de Me-canismo Nacional de Prevenção no âmbito do Pro-tocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (3), assumida desde 2013. E neste plano, acresce à verificação do respeito pelos direi-tos fundamentais dos cidadãos quando conduzidos contra a sua vontade expressa e em situação de ur-gência a uma avaliação psiquiátrica, o empenho na defesa do respeito por todos os doentes e pela dig-nificação dos serviços oferecidos.

Em ambos os casos, ao Provedor de Justiça com-pete garantir que são respeitados a dignidade e au-tonomia dos visados, nomeadamente reforçando a necessidade de estrito cumprimento do princípio da proporcionalidade antes da adoção de qualquer das medidas passíveis de limitar a liberdade das pessoas, com particular premência para aquelas que são sujei-

março, que aprova o Orçamento do Estado para 2016, sobretudo na parte em que reconhece a dispensa do pagamento de taxas moderadoras a prestações acedidas no contexto de uma referenciação prévia. (3)Adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro de 2002, este Protocolo Facultativo «tem por objetivo estabelecer um sistema de visitas regulares, efetuadas por organismos internacionais e nacionais independentes, aos locais onde se encontram pessoas privadas de liberdade, a fim de prevenir a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes» (artigo 1.º).

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tas a medidas de contenção física durante os períodos de internamento. Abrangidos são igualmente os atos das autoridades de saúde pública, desde o procedi-mento administrativo prévio ao internamento até ao eventual ingresso em serviço de psiquiatria, incluindo este período. As sobreditas preocupações motivaram, quer no contexto do tratamento de queixas, quer na faceta de Mecanismo Nacional de Prevenção, recentes tomadas de posição endereçadas a unidades hospita-lares com serviços de psiquiatria.

II. DOS DESAFIOS

São de três ordens os desafios à atuação do Provedor de Justiça que com maior acuidade se colocam à sua iniciativa em matéria de saúde, os quais, imprimindo limites à amplitude da atuação possível não impedem a preocupação em garantir o respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos.

O primeiro aspeto é indissociável da natureza dos direitos sociais, categoria na qual se inscreve consti-tucionalmente o direito à proteção da saúde, assim o posicionando sob a tormentosa reserva do possível, particularmente relevante na faceta de direito positi-vo ou a prestações, i.e., direito cuja realização exige do Estado uma conformação não só político-legislativa como especialmente material.

Com efeito, a confrontação do âmbito do direito à proteção da saúde com a fronteira demarcada pelas possibilidades materiais existentes comporta em si um tremendo potencial de contenda com o basilar princípio da generalidade que enforma o SNS, além de interferir com uma apreciação do Provedor de Jus-tiça sobre aspetos relacionados com a extensão do ca-tálogo de prestações incluídas. Em que termos devem os cuidados de saúde oral fazer parte do direito aos cuidados hospitalares? Quem deve integrar o concei-to de grupos vulneráveis, para efeitos de acesso gratui-to à vacina da gripe? Que terapêuticas e, em particu-

lar, quais os medicamentos devidos aos doentes pelos hospitais integrados no serviço nacional de saúde?

Estas, entre outras dúvidas tantas vezes sobrevin-das, sofrem um adensamento quando concatenadas com o respeito devido à margem de liberdade da de-cisão política envolvida na afetação de recursos – cujo cerne escapa à sindicância deste órgão do Estado e que constitui o segundo desafio à sua intervenção.

Paradigmática das linhas de orientações seguidas a propósito da amplitude de cuidados disponibilizáveis é a questão do acesso à inovação, em especial, no cru-zamento com a política do medicamento, a qual não deixa de confluir com reflexões de cariz ontológico, de certo modo vizinhas da ética médica e com resul-tados por vezes perturbadores.

Apesar da necessidade da reflexão ética, na prática do Provedor de Justiça, perante pretensões de acesso a tratamentos e fármacos na área da oncologia, das doenças raras e até da hepatite C (como chegou a su-ceder antes do acordo alcançado entre o Governo e a indústria, no final do ano passado), para além da verificação da regularidade do decurso do processo administrativo, parte-se do entendimento de base de que a proteção e a promoção da saúde de todos pode-rão justificar uma determinada priorização na aloca-ção de recursos. Inabalável, conforme é dado a refletir aos responsáveis pelas entidades com competência na matéria, mostra-se a defesa da equidade, e em outro nível da transparência, no acesso aos medicamentos (como, de resto, a todos os demais cuidados de saú-de).

Também é almejada a plena fundamentação das decisões administrativas que exprimam uma negação da pretensão de um doente, frequentemente ancora-da em um juízo clínico do médico prescritor disso-nante do juízo da comissão de farmácia e terapêutica do hospital e da administração hospitalar.

Outrossim, não exclui o Provedor de Justiça a sina-lização de oportunidades de aperfeiçoamento ou de formulação de sugestões que considera poderem con-

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tribuir para a melhoria do sistema, em prol do direito das pessoas. Este fito justificou em tempos recentes a formulação de algumas propostas de melhoria, quer em contacto próximo com os sucessivos Ministros da Saúde, quer junto da Autoridade Nacional do Me-dicamento e Produtos de Saúde I.P. (Infarmed), de-signadamente reforçando a urgência da adoção de qualquer das soluções aventadas para a superação de dicotomias regionais subsistentes, quer como para a indesejável demora na conclusão dos processos de avaliação fármaco-económica dos medicamentos.

Um terceiro obstáculo à atuação do Provedor de Justiça surge associado à discricionariedade técnica que enforma diversas das decisões frequentemente contestadas pelos cidadãos, acrescendo no plano da saúde a natural complexidade científica envolvida.

E, neste horizonte, cabe-nos clarificar que a respon-sabilização dos profissionais pela violação dos deve-res funcionais encontra-se, por princípio, excluída da esfera de intervenção do Provedor de Justiça, na me-dida em que convoca uma apreciação técnica sobre atos ou alegadas omissões clínicas, confluentes com um resultado de negligência ou má prática médica. E neste contexto específico, não posso deixar de referir que a isenção do cumprimento de um procedimento probatório típico, característica ímpar do Provedor de Justiça, sem embargo de permitir um procedimento mais célere e justo em situações de erro grosseiro ou manifesto ou relativamente às quais estejam firmados os factos, acarreta limitações de prova, nem sempre ultrapassáveis, sobretudo pela indisponibilidade do recurso a peritos médicos.

Ainda assim, paralelamente ao encaminhamento do cidadão para as entidades administrativas com competência para fiscalizar o funcionamento dos ser-viços, mormente através do exercício do poder dis-ciplinar sobre os profissionais de saúde, mantém-se possível a intervenção do Provedor de Justiça no con-trolo do cumprimento do dever de resposta da enti-dade envolvida, bem como na apreciação do seu teor,

pugnando-se, sempre que necessário, para que sejam efetivamente esclarecidas todas as dúvidas expostas e alegações imputadas.

Em certos casos, o recurso aos Tribunais afigura-se a solução mais consentânea com as preocupações dos cidadãos, só ao poder judicial se reconhecendo, no atual enquadramento jurídico nacional, o recurso aos meios de prova especializados requeridos para diri-mir a imputação de responsabilidade, civil ou penal, em matéria de tamanha complexidade técnica.

III. CONCLUSÃO

Não sendo possível ilustrar, em tão curto espaço de tempo, a pluralidade substantiva de que se compõe a intervenção do Provedor de Justiça em matéria de saúde, a qual extravasa o já de si extenso conjunto de aspetos relacionados com o funcionamento dos ser-viços nacional e regionais de saúde, abrangendo o funcionamento dos subsistemas públicos de saúde, quer em sede de inscrição, quer de comparticipação e, outrossim, a verificação de aspetos diretamente rela-cionados com a regulação e fiscalização, optámos por ilustrar o papel da justiça na prática do Provedor de Justiça. Julgamos assim ter contribuído para o tema discutido, demonstrando com recurso à praxis que a saúde é uma questão de justiça; seja porque a distri-buição de recursos circunda em torno da noção de justiça (equidade), seja porque a conformação nor-mativa dos direitos relacionados com a proteção da saúde deve ser moldada por princípios como a solida-riedade, a proporcionalidade ou a necessidade.

Expressão da dignidade da pessoa humana, a pro-teção da saúde é um direito de todos, sendo a defesa dos mais fracos, dos que não têm voz, um desígnio particular, caro ao Provedor de Justiça.

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TOXICODEPENDÊNCIA: DA ACEITAÇÃO INDIFERENTE À MOBILIZAÇÃO DESCRENTEDrug addiction: from indifferent acceptance to a disbelieved mobilization

Alberto Peixoto (*)

ResumoPassando em revista a bibliografia e os estudos realizados em torno da problemática das dependên-

cias, foi nossa intenção proceder à caraterização crítica de um fenómeno que, sem se esgotar, possui ligações profundas ao setor da saúde.

Como tem evoluído o fenómeno à escala mundial, nacional e em especial nos Açores? Partindo do passado e tendo em conta o presente, procuramos deixar pistas para uma estratégia que, socialmen-te, entendemos desejada.

AbstractAnalyzing the main bibliography and other studies made about the questions around drug depen-

dencies, we pretend to make a critic characterization of the phenomenon that, without exhausting it, has a profound link to the health sector. How has this phenomenon evolved worldwide, nacional and at regional level? Starting from the past and taking into account the present reality, we try to leave some clues for a strategy that, socially, we think is the most desirable.

Palavras-chave: dependências; liberalização; delinquência; prevenção; saúde pública

Keywords: dependencies; liberalization; delinquency; prevention; public health

Sumário1. Uma trajetória; 2. Se não consegues vencê-los, junta-te a eles; 3. O caso português e açoriano; 4. Prevenção e saúde pública; 5. Ordem pública e dignidade da pessoa humana; 6. O fruto proibido (nem sempre) é o mais apetecido; 7. Uma imagem; 8. Síntese conclusiva.

(*) Licenciado em Sociologia e em Direito, Mestre em Comportamentos Desviantes e Ciências Criminais, Doutorado em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa. Docente convidado do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna.

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DEDICATÓRIA

A todos quantos numa postura de participação predisposta acreditam que é possível fazer bem mais e melhor.

“Cientistas da Rand Corporation determinaram ainda que se se providenciasse tratamento a todos os toxicodependentes nos EUA, com um investimento de 21 biliões de dólares, poupar-se-iam 150 biliões em custos sociais nos 15 anos seguintes, ou seja, um retorno sete vezes superior ao capital investido.” (1)

1. UMA TRAJETÓRIA

Assistimos, no espaço temporal de uma geração, a transformações profundas nas formas de vida e participação familiar. Os jovens e adolescentes fo-ram socialmente treinados para a necessidade de afastamento do sofrimento e para a busca inces-sante do bem-estar materializando novas formas de sociabilidade.

Reconhecidas que são as transformações exis-tentes no meio familiar, ao longo das últimas dé-cadas, desde logo ao nível do conceito de família, bem como dos modelos organizacionais familiares, parece-nos consensual que exista hoje um maior individualismo em detrimento de outros modelos orgânicos de integração dos indivíduos. Tal cená-rio conduziu a um maior protagonismo da escola a par de uma certa desresponsabilização dos pais na educação dos filhos. As famílias, com as exigências laborais dos progenitores, passaram a dispor de uma menor disponibilidade de acompanhamento dos filhos a par de um aumento das dificuldades de

(1) Manuel Pinto Coelho, Um Portugal Livre de Drogas, Gradiva, Lisboa, 2004, p. 58.

negação das suas reivindicações.As ausências ou falências dos pais e das suas

responsabilidades parentais passaram a ter de ser compensadas, gerando por vezes excessos de protecionismo dos descendentes. Problemáticas identificadas nos progenitores reproduzem-se nos descendentes com a probabilidade acrescida de prevalência de distúrbios comportamentais. Diver-sas investigações científicas têm demonstrado essa mesma realidade (Fleming et. al., 1988; Wallers-tein & Kelly, 1998).

A questão da redução da duração média das rela-ções conjugais levou à maior frequência da rutura dos laços parentais com os descendentes. Recorde-se que a questão da perda ou separação da mãe ou do pai é fator motivador da propensão para o com-portamento desviante, nomeadamente ao nível da delinquência bem como do consumo de substân-cias psicoativas. Abundam as investigações que têm demonstrado tal realidade (2). Por outro lado, são inúmeros os estudos sobre comportamentos sociais e humanos que demonstram a tendência, para ao longo do tempo, se reproduzirem hábitos e propensões, considerando-se os seres humanos, por natureza, congruentes.

Tal como Hegel, acreditamos que não é possível modificar comportamentos sociais sem ser atra-vés da força e/ou do constrangimento normativo. Entenda-se «força», mais do que em sentido físico próprio das revoluções e das guerras, mas a força normativa, ou a força das circunstâncias, como, por exemplo, uma doença, a falta de dinheiro re-sultante do desemprego, entre outras.

Se desde a antiguidade se fez uso de substâncias psicoativas, também se tem procurado controlar os efeitos produzidos por tais substâncias, de Ebers, em 1500 a.C., Hipócrates, em 400 a.C, Dioscóri-

(2) Entre outros, Tarde, 1890; Farrington, 1978; Patterson, 1989; Loeber & Hay, 1997; Patterson & Bank, 1989; Maccoby, 1980 têm procurado dar conta da influência dos pais nos comportamentos antissociais dos filhos. Haley (1976) falou na existência de um “triângulo perverso” em que os adolescentes agem por imitação dos quadros de referência parentais.

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des, em 50 d. C, Maimonides, em finais do século XII, Paracelsus, na primeira metade do século XVI, a Orfila, no início do século XIX, com a publicação, em 1814, do Tratado de Toxicologia Geral.

Volvidos duzentos anos, a revista francesa Scien-ce & Vie, de Maio de 2007, dava conta de que, en-tre todas as substâncias psicoativas, do tabaco ao álcool, passando pelas substâncias ilícitas, todas alteram a atividade cerebral, por via da libertação de dopamina. Ora, quanto maior a dopamina li-bertada maior é o prazer e o potencial viciante da substância.

Ao longo de séculos, o homem, como forma de superação individual, tanto física como emocional, de superação social, do recreativo ao laboral ou religioso, socorreu-se de substâncias capazes de o acalmar, anestesiar, alegrar, ou desinibir.

Desde sempre, sendo por regra, o consumo de uma qualquer substância psicoativa de caráter pri-vado, é sobretudo na dimensão social que se situam as principais motivações para o início, permanên-cia ou abandono do uso ou abuso dessa mesma substância.

2. SE NÃO CONSEGUES VENCÊ-LOS, JUNTA-TE A ELES

Um pouco na lógica do adágio popular “se não consegues vencer os teus inimigos, junta-te a eles”, te-mos assistido à apologia de um discurso em defesa da descriminalização internacional do consumo de substâncias ilícitas. Além da descriminalização do consumo, emerge também uma tendência de des-criminalização da produção para consumo pessoal e fins recreativos das denominadas “drogas leves”.

Embora as leis vigentes por vezes digam o contrá-rio, tem imperado uma certa divergência entre as representações sociais, as correntes jurídicas e por vezes entre os próprios operadores judiciários. No

caso português, embora os órgãos de polícia crimi-nal detenham os produtores de canábis, ainda que estes invoquem ser para consumo próprio, o Mi-nistério Público tende a suspender tais processos. No caso da canábis, é possível falar-se na existência de uma desconformidade procedimental.

Em diversos países têm surgido posições díspa-res. Na Argentina é tolerado o consumo, mas proi-bido o cultivo e a comercialização. A Austrália tem um regime idêntico aos Estados Unidos da Améri-ca. Nuns Estados, é legal, noutros, ilegal. No Ban-gladesh, não existem leis locais sobre a canábis e o seu consumo é tradicional. Na Bélgica, é permitido o cultivo de uma planta fêmea por pessoa e o con-sumo é tolerado. No Camboja, o uso da canábis é comum. No Canadá, é legal apenas para uso medi-cinal. No Chile, é legal o cultivo para uso pessoal embora seja proibida a comercialização. Na Co-lômbia, é legal o consumo, sendo proibido o cultivo de mais de 20 plantas. Na Coreia do Norte, está à venda nos supermercados sem restrições. Na Costa Rica, também não há restrições. Na Croácia, a ven-da é crime e a posse contraordenação. No Equador, o cultivo é crime embora seja permitida a posse até 10 gramas. Em Espanha, é tolerado o cultivo e a posse. Na Holanda, não está legalizada embora seja permitida a comercialização e consumo nos cof-fee shops. Nas Ilhas Maldivas, não existe legislação sobre a canábis embora seja considerada ilegal. Na Índia, é ilegal, mas socialmente tolerada. No Iraque, não existe legislação e também é tolerada socialmente. Na Islândia, é proibida a posse. Em Is-rael e Itália, é legal o seu uso para fins medicinais. Na Jamaica, é permitida a posse até 57 gramas e o cultivo até 5 plantas. No México, apesar das leis vi-gentes ditarem o contrário, o Supremo Tribunal do México foi mais longe e emitiu parecer com uma votação de 4 juízes contra 1 a favor da legalização da marijuana sem fins lucrativos. Em 2009, passou a ser permitida a posse até 5 gramas. No Nepal e

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Paquistão, é ilegal, mas socialmente tolerada. No Perú, apenas é proibida a comercialização. Na Re-pública Checa, é legal a posse até 15 gramas e legal o uso medicinal. Na Rússia, é permitida a posse até 6 gramas. Na Suíça, é permitido o cultivo até 4 plantas e até 10 gramas. Na Ucrânia, é proibida a venda, mas tolerada a posse até 5 gramas ou 10 plantas. No Uruguai, é legal para maiores de 18 anos. Na Venezuela, é proibido o cultivo, mas tole-rada a posse até 20 gramas.

Tal como noutras matérias, se a nível de cada um dos Estados é possível encontrar tantas divergên-cias no entendimento da problemática, muito mais difícil é gerarem-se consensos a nível internacional sobre as estratégias de combate e prevenção do fe-nómeno.

3. O CASO PORTUGUÊS E AÇORIANO

Em 2001, com António Guterres, assistiu-se a uma transferência do enfoque da toxicodependên-cia. O que era tratado sobretudo como uma ques-tão jurídica passou a ser uma questão de saúde. O consumo de substâncias ilícitas até então crime passou a ser contraordenação da competência das comissões de dissuasão da toxicodependência per-tencentes à área da saúde. O que foi muito ques-tionado, à época, volvidos 15 anos passou a ser en-carado, pela própria ONU, como uma boa prática (DA, 19/abr/2016, p. 11).

Passámos a ter o regime mais liberal do mundo em matéria de drogas. Descriminalizou-se o con-sumo de todas as substâncias e a posse dentro dos limites legalmente considerados adequados ao consumo, embora a produção, o cultivo e a comer-cialização tenham continuado a ser considerados crime punido com penas que podem ir até aos 15 anos de prisão (3).

(3) Lei n.º 30/2000 de 29 de novembro, alterada pelo Decreto-Lei n.º 114/2001 de 30 de novembro.

Da transferência do enfoque da esfera jurídica para a esfera da saúde nasceu um conjunto de pro-gramas de prevenção e tratamento de proximidade junto dos toxicodependentes, uns melhor sucedi-dos que outros. Entre eles destacamos o programa de substituição de opiáceos, com a distribuição de metadona, com resultados muito positivos nos Açores (4). Estamos convencidos de que a forma como a iniciativa se concretizou nos Açores po-deria ser apresentada como uma boa prática a ní-vel internacional, e só o não foi por falta de uma estrutura regional que congregasse os resultados, os analisasse do ponto de vista científico e os di-vulgasse.

Referem os diferentes relatórios que citaremos ao longo do texto, que a toxicodependência nos Açores tem expressão. Em conformidade, têm sido desenvolvidas algumas estratégias bastante pertinentes. Contudo, podemos desde já assegu-rar que, em nosso entender, pecam pela dispersão avulsa, falta de coordenação, falta de avaliação sis-temática de resultados e falta de planeamento para implementação e reajustamento na estratégia. Não estamos sós nesta apreciação (5).

Na realidade, tivemos no passado um progra-ma regional de prevenção e tratamento para o uso e abuso de substâncias psicoativas. Tivemos uma direção regional de prevenção e combate às dependências. No entanto, são desconhecidos os resultados bem como os fundamentos do fim da-quelas iniciativas.

(4) A estratégia açoriana passou pela disponibilização de metadona aos dependentes de opiáceos, através de postos móveis, numa estratégia de proximidade, permitindo fazer tratamento e prevenção através da redução de riscos.(5) Veja-se DA, 11/dez/2015, p. 19. Em 2004 e 2009, a Secretaria Regional dos Assuntos Sociais, posteriormente apenas Secretaria Regional da Saúde, e o Comando Regional da PSP dos Açores, apoiaram os dois únicos estudos regionais sobre a toxicodependência nas nove ilhas açorianas e nos dezanove concelhos, em que tivemos a honra de coordenar. Em 2014, a Secretaria Regional da Saúde optou por não disponibilizar qualquer apoio ou manifestar interesse na continuidade de tais estudos, com periodicidade quinquenal, os quais, a nosso ver, consubstanciavam uma boa prática no acompanhamento e monitorização da problemática.

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4. PREVENÇÃO E SAÚDE PÚBLICA

Não é consensual o investimento em campanhas de prevenção e tratamento de dependentes. Se por um lado os “cientistas da Rand Corporation deter-minaram ainda que se se providenciasse tratamento a todos os toxicodependentes nos EUA, com um in-vestimento de 21 biliões de dólares, poupar-se-iam 150 biliões em custos sociais nos 15 anos seguintes, ou seja, um retorno sete vezes superior ao capital in-vestido” (6), no relatório de 1980 da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, fazendo-se referência aos setenta e seis mil milhões de dólares gastos numa década em campanhas, os indicadores de consumo de drogas atingiram os valores mais elevados de sempre.

Posicionamo-nos a favor dos cientistas da Rand Corporation. Consideramos que apostar em cam-panhas de combate e prevenção é um investimento com retorno garantido, considerando os ganhos ao nível da saúde pública, segurança e ordem pública, isto sem quantificar o impacto social e familiar dos afetados direta ou indiretamente.

Portugal distinguiu-se como um dos países que mais tem investido no combate às dependências, a par da Irlanda, República Checa e Polónia. A Ir-landa investiu 214 687 000,00 euros, o que repre-senta 0,39% do total da despesa pública. Portugal apresentou um investimento na ordem dos 75 195 175,00 euros, ou seja, 0,11% da despesa pública. A Polónia, 82 373 000,00 euros, sendo 0,08% da des-pesa pública, e a República Checa, 17 869 000,00 euros, o que representa 0,04% da despesa pública (7). Combater as dependências, é sem dúvida um investimento. Por exemplo, tomando como refe-rência o programa da distribuição de metadona para substituição de opiáceos, classificado como um programa de redução de riscos, estima-se que (6) Manuel Pinto Coelho, ob. cit., p. 58.(7) Tendo como referência valores anteriores a 2008, cfr. Observatorio Europeu da Droga e da Toxicodependência, A Evolução do Fenómeno da Droga na Europa, 2008, p. 22.

cada euro investido permita poupar dez euros em despesas ao nível da saúde e ao nível da justiça (8).

As dependências são indiscutivelmente uma questão de saúde pública que ultrapassam grande-mente a esfera social e familiar dos dependentes. O tratamento dos dependentes tem de ser encara-do como a grande aposta. Segundo o Observató-rio Europeu das Drogas e da Toxicodependência, o esforço de redução dos riscos é o primeiro passo dessa grande aposta, sendo mesmo recomendada como uma boa prática. São inúmeros os estudos que precisam as consequências das diferentes de-pendências, desde os transtornos comportamen-tais disruptivos até à materialização de mudanças bruscas de humor e mesmo em agressividade. São consensualmente aceites as correlações entre vio-lência e alguns consumos de algumas substâncias psicoativas, em especial, o álcool. Entre outros, po-demos citar os estudos de Wolfgang (1969), ou de Monot (1994). Saiz (1992) procurou demonstrar os transtornos por abuso de substâncias, chegando a estabelecer relações entre o álcool e a compulsi-vidade para as compras. Soler & Gascom (1999) procuraram demonstrar a correlação entre o abuso de álcool e a compulsividade para o namoro, sexo, exercício físico e, até, ao trabalho.

Com o estudo da prevalência da violência, Steadman (1998), num período de dez semanas num indivíduo normal, evidenciou que o consu-mo de substâncias psicoativas mais que triplica a propensão para a prática da violência. Se, com o abuso de substâncias, a probabilidade da prática de violência era de 11,1%, sem o abuso a prevalência da prática baixava para os 3,3%. A prevalência da prática da violência era ainda mais elevada, pra-ticamente quintuplicando, quando o consumo da substância era realizado por indivíduos portadores de doença mental. Se, com o abuso de substâncias, a prevalência da violência era de 22%, sem abuso, a

(8) Idem, p. 22.

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prevalência caía para os 4,7%.Idênticos resultados foram conseguidos por De-

jong (1993). Indivíduos dependentes de substân-cias químicas (3% entre os homens e 1% entre as mulheres de uma população considerada normal) apresentavam transtorno de personalidade. Tal in-cidência aumentava para 30% em populações clí-nicas, chegando a atingir uma incidência de 92% numa população portadora de dependência cróni-ca.

Através de um estudo com dependentes de co-caína, Sonne & Brady (1998) evidenciaram a elevada incidência em vários tipos de transtornos de personalidade, com a regularidade de abuso da substância, materializada em comportamentos antissociais, borderline ou paranóide, atingindo os 68% de casos positivos. No mesmo sentido conclu-sivo sobre a incidência de transtornos de persona-lidade, Bernardo & Roca (1998) apontaram para uma frequência de 64% em indivíduos alcoólicos, ou dependentes de cocaína.

São hoje sobejamente conhecidas as consequên-cias do uso e abuso de substâncias psicoativas a nível individual (físico e psicológico), familiar e social, mais concretamente no âmbito do relacio-namento interpessoal, do lúdico ao laboral, pas-sando pela dimensão jurídica. Se a dependência de substâncias psicoativas afeta o desempenho laboral, sabemos hoje que a precariedade laboral é também um fator a ter em conta na propensão para consumos excessivos de tabaco, álcool, drogas lícitas e ilícitas, conforme foi demonstrado através do estudo sobre o consumo de substâncias psicoa-tivas na população em meio laboral, divulgado pela UGT (9).

Se as implicações do fenómeno da toxicodepen-dência são multifacetadas, é na vertente da saúde que encontrámos a mais complexa teia de intera-ções de sinal ambivalente. Sabemos que, por exem-(9) União Geral dos Trabalhadores, Uso/abuso de Álcool e Drogas em Meio Laboral, março 2015, relatório disponível em http://www.ugt.pt/SST_GuiaintervencaoSindical.pdf (última consulta a 29/setembro/2016).

plo, através de uma amostra de 112 toxicodepen-dentes testados pelo Centro das Taipas, em Lisboa, no primeiro trimestre de 2003, mais de 60% dos toxicodependentes eram portadores do vírus da hepatite C e 8% de HIV. Em 2004, o relatório do Observatório Europeu das Drogas e Toxicodepen-dência dava conta de que entre 15 a 16% dos toxi-codependentes estavam infetados com HIV e entre 45 a 62% dos toxicodependentes, com hepatite C.

O relatório sobre A Evolução do Fenómeno da Droga na Europa, de 2008, chamou a atenção para o facto de, entre 2006 e 2007, as mortes relaciona-das com o consumo de droga terem subido 45%, das quais 91% eram homens, com a idade média de 34 anos. Portugal registou uma taxa de morta-lidade de 31 consumidores por cada milhão de ha-bitantes, ao passo que a Hungria registou 4 mortes por cada milhão de habitantes. Com as taxas mais elevadas que a portuguesa surgiu a Estónia, com 73 mortes, seguindo-se o Luxemburgo, com 60, e o Reino Unido, com 47 mortes por cada milhão de habitantes (10).

Na Europa, de 1990 a 2002, morreram, vítimas de overdose, 100 000 jovens (DA, 14/jan/2005, p. 11), correspondendo a uma média anual de 8 000 a 9 000 indivíduos, na maior parte consumidores de heroína e outros opiáceos frequentemente associa-dos ao consumo excessivo de álcool (11).

Para se perceber a evolução dos padrões de con-sumo e do grau de pureza das substâncias é funda-mental a comunicação, registo e tratamento de in-formação referente a todas as mortes por overdose.

Outra tendência foi-nos apresentada pelo relató-rio da Eurojust, de 2007, tendo alertado para o fac-to de ter diminuído na Europa a atividade terroris-ta, e em sentido contrário estar a aumentar o tráfico de droga e a corrupção (CA, 12/mar/2008, p. 21). Entre 1998 e 2007, o acesso às drogas, na Europa, (10) União Geral dos Trabalhadores, ob. cit., p. 92.(11) A este respeito, recorde-se o que se disse no primeiro parágrafo do ponto 4 supra.

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tornou-se mais fácil, e as drogas tornaram-se mais baratas (DN, 12/mar/2009, p. 25). Assim, não terá sido por acaso que Nicholas Kristof, jornalista do New York Times, após dissecação estatística, tenha assegurado que existe hoje uma clara noção de que a guerra contra a droga é uma luta perdida, em que a legalização da droga apresenta-se como a opção pelo mal menor (I, 18/jun/2009, p. 4).

Sendo reconhecido que a luta contra a droga, nos últimos anos, tem ficado aquém do desejado, pode ser visto como um indicador positivo que o Rela-tório das Drogas da Agência das Nações Unidas para Assuntos de Droga e Crime, em 2009, tenha apresentado um decréscimo de 19% na produção de papoila, no Afeganistão, um decréscimo de 18% de plantações de coca, na Colômbia, apesar de uma tendência de crescimento da produção e circula-ção de estimulantes de origem química (DA, 25/jun/2009, p. 13).

Sendo a saúde afetada pelo uso e abuso de subs-tâncias psicoativas, é neste setor que reside o maior potencial de controlo do fenómeno quer do ponto de vista preventivo, quer do ponto de vista reativo.

A questão do aumento ou diminuição da produ-ção e da procura de substâncias ilícitas é da maior importância para o direcionamento de estratégias de luta e prevenção das dependências. Neste con-texto, novas metodologias têm sido ensaiadas para a respetiva quantificação, destacando-se nos últimos anos Fritz Sörgel e Verena Jakob com a deteção de resíduos de cocaína nos esgotos das cidades, para além da análise dos vestígios de cocaína nas notas utilizadas para consumo. Tendo sido analisados esgotos de 29 locais na Alemanha, estimou-se que os alemães consumissem cerca de 20 toneladas de cocaína por ano, quando, naquele país, por ano, as autoridades apenas conseguem apreender cerca de uma tonelada (CINT, 20/jun/2007, p. 38), mantendo válida a estimativa de M. Kendall, ex-Secretário-Geral da Interpol (Moncomble, 1997, p. 9).

5. ORDEM PÚBLICA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Dentro da lógica do adágio popular já referido “se não consegues vencer os teus inimigos, junta-te a eles”, têm sido visíveis os esforços na defesa da le-galização das drogas, vulgarmente classificadas de leves, por diferentes quadrantes sociais. O modelo holandês tem erroneamente sido apontado como um modelo ao nível da liberalização da comercia-lização das drogas leves. Recorde-se que depois de em 1976 ter sido legalizada a comercialização de canábis em pequenas quantidades, em 2009, dada a existência de problemas criminais, reacendeu-se o debate sobre a continuidade do modelo bem como a necessidade de introdução de mecanismos de controlo de vendas através de cartões, restringin-do o acesso apenas a “sócios” dos conhecidos coffee shops, que comercializam as substâncias.

Até hoje nenhum país no mundo ousou liberali-zar a produção, o consumo de drogas e muito me-nos a sua livre comercialização. A questão da dis-tinção entre “drogas leves” e “drogas duras” é hoje mais contestada que nunca. Recorde-se que o caso da canábis, vulgarmente classificada como “droga leve”, devido ao aumento dos teores de THC que apresenta na atualidade, é responsável por uma ex-tensa listagem de consequências indesejáveis (12).

A questão da liberalização da produção e comer-cialização de substâncias ilícitas, ainda que deno-minadas de “drogas leves”, em nosso entender, põe em causa a ordem pública por um lado e por outro a dignidade da pessoa humana. Portanto, duas questões estruturais com salvaguarda

(12) A literatura científica associa o uso de canábis ao desenvolvimento de surtos psicóticos, problemas de memória, de aprendizagem, xerostomia, sonolência, problemas de coordenação motora, ansiedade, depressão maior, transtornos de humor, problemas de atenção e de motivação, redução dos níveis de testosterona entre 50 a 60%, cancro do pulmão, cancro da laringe, cancro do testículo, carcinoma espinocelular bucal, disfunção sexual, taquicardia, acidente vascular cerebral, e até psicoses como a esquizofrenia que pode levar ao suicídio. Perante esta panóplia de efeitos secundários como pode a canábis ser considerada uma “droga leve”?

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constitucional. O artigo 1.º da Constituição da República Portu-

guesa (CRP) fixa que “Portugal é uma República so-berana, baseada na dignidade da pessoa humana”. Sem qualquer pretensão moralista, conhecendo-se as consequências, físicas, psicológicas, familiares, profissionais, e sociais da dependência de substân-cias ilícitas, como será possível conciliar uma hipo-tética liberalização com a necessidade de garantia por parte do Estado, da dignidade da pessoa hu-mana?

Em alinhamento com o artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 27.º da CRP consigna o direito à liberdade e à segurança pessoal. Ou seja, o direito à liberdade pura de cir-culação, de nos movimentarmos, de nos deslocar-mos em segurança, entre outras. Como será possí-vel encontrar-se um equilíbrio entre a produção, a comercialização, a dependência, e o que lhe subjaz, e a ordem pública?

Temos leis ordenadoras de direitos fundamen-tais, interpretativas, condicionadoras, protetoras, promotoras, ampliativas e conformadoras. As leis que proíbem a produção e comercialização, são claramente condicionadoras. Condicionam direitos fundamentais, todavia sem os impedir. Mas, como será possível conciliar o direito fundamental à liberdade e segurança sem condicionar a produção e a comercialização de substâncias ilícitas, sejam “leves” ou “pesadas”?

A questão da dignidade da pessoa humana não pode ser entendida como uma questão de retórica. Compete ao Estado, por via do contrato social, garantir que as liberdades individuais abdicadas a troco da convivência social, da ordem pública, per-mitam a paz, a harmonia, a justiça e a felicidade essenciais à realização pessoal.

O n.º 2 do artigo 18.º da CRP consigna que “a lei só pode restringir os direitos, liberdades, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar

outros direitos ou interesses constitucionalmente pro-tegidos”. A dignidade da pessoa humana possui sal-vaguarda constitucional. A segurança pública pos-sui salvaguarda constitucional. O direito à proteção da saúde (artigo 64.º da CRP) possui salvaguarda constitucional. Entenda-se aqui a proteção da saú-de em sentido reativo para assegurar os cuidados de saúde sempre que necessários pela via curativa e de reabilitação, mas também pela via preventiva (al. a) do n.º 3 do artigo 64.º da CRP).

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, pode ler-se “considera-se censurável social-mente o consumo de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, desde logo pela quebra de responsabi-lidade de cada cidadão perante os outros. Tal não significa, todavia, que o toxicodependente não deva ser encarado, em primeira linha, como alguém que necessita de assistência médica e que tudo deve ser feito para o tratar, por sua causa e também pela pro-teção devida aos restantes cidadãos.” Está aqui plas-mado o equilíbrio desejável entre a liberdade indi-vidual, o anseio coletivo e o dever do Estado. Não nos parece que tais interesses, como uma política de liberalização de cultivo, produção e comerciali-zação de substâncias psicoativas, ainda que apenas das denominadas “drogas leves”, sejam devidamen-te acautelados.

6. O FRUTO PROIBIDO (NEM SEMPRE) É O MAIS APETECIDO

A questão de que o “fruto proibido é mais apete-cido” e, como tal, a liberalização apresenta-se como uma solução para combater o consumo, é uma fal-sa questão. Como sabemos, a comercialização e o consumo de álcool, em Portugal, não é alvo de qualquer penalização. Por outro lado, o cultivo, a produção e a comercialização de substâncias ilíci-tas é crime, e o consumo desde 2000 passou a ser

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contraordenação. Perante o quadro jurídico descrito, segundo as

estatísticas oficiais, possuímos cerca de um milhão de alcoólicos e cem mil dependentes de drogas a nível nacional. Os estudos de 2004 e o de 2009 (13) apontavam para a existência de trinta mil alcoóli-cos e cinco mil dependentes de drogas ilícitas.

Como facilmente se conclui, a proibição não fo-menta o consumo pelo contrário, inibi-o. Se as-sistíssemos a uma liberalização da produção, co-mercialização e consumo de substâncias ilícitas, o consumo, sem margem para dúvidas, tenderia a aumentar.

Como exemplo demonstrativo da nossa posição, temos o caso do consumo de tabaco em Portugal. Com os sucessivos agravamentos dos preços de venda ao público por via do aumento da carga fis-cal, tem-se assistido a uma tendência de diminui-ção de consumo.

A nível Açores, em termos estatísticos, desco-nhecemos a evolução do consumo de substâncias psicoativas desde 2009, data em que foi realizado o último estudo referente a toda a região. Não existe um relatório anual em matéria de toxicodependên-cia produzido pelo setor da saúde. Para além dos números referentes às apreensões de substâncias ilícitas, realizadas pelas forças policiais e vertidas para o relatório anual de segurança interna (14), pelo menos, não é do domínio público, o que anual-mente é feito em termos reativos e preventivos em matéria de toxicodependência.

A representação social em torno da toxicode-pendência é um discurso pessimista. É recorrente ouvir-se: “a situação está cada vez pior”. Todavia,

(13) Alberto Peixoto, Dependências e outras violências, DRJEFP-PSP, Ponta Delgada, 2005, estudo comparativo de 2004 e 2009, realizado nos 19 concelhos dos Açores.(14) O relatório anual de segurança interna, aprovado pela Assembleia da República, cinge-se à apresentação dos resultados operacionais das forças policiais, o que diz muito pouco em matéria de toxicodependência a nível nacional ou a nível regional. As apreensões de droga estão muito dependentes da proatividade e capacidade operacional de cada força policial. Mesmo o volume de apreensões também não nos dizem muito visto que, fruto da nossa localização geográfica, grande parte das substâncias apreendidas nem se destinam ao consumo nacional de estupefacientes.

não é linear que assim seja. Cremos mesmo que, em termos gerais, temos assistido a um recuo do consumo de substâncias psicoativas.

Já o estudo de 2009 tinha evidenciado uma ten-dência de decréscimo do consumo de tabaco. Ten-do-se assistido a um aumento do número de mu-lheres fumadoras, fruto da retração do número de homens fumadores, em termos gerais, diminuiu. Já quanto ao consumo de álcool e de substâncias ilí-citas, as evidências não eram tão claras, podendo falar-se, nesse período, numa estabilização da pro-pensão para tais práticas.

É nossa convicção que, de 2009 em diante, a prevalência das dependências dos Açores terá mesmo regredido (15), sobretudo devido a um dos fatores com maior capacidade de condicionamento dos comportamentos sociais e humanos. Portugal, em 2009, mergulhou numa profunda crise econó-mica e financeira, tendo sido necessária a interven-ção do Fundo Monetário Internacional.

Contrariamente à representação social, as crises económicas não conduzem ao aumento de com-portamentos desviantes, bem pelo contrário. Se as-sim não fosse, Portugal, ao longo de décadas entre os países mais pobres da Europa, com índices sig-nificativos de pobreza, não se teria destacado com as taxas de criminalidade mais baixas. A França, a Alemanha e a Inglaterra, entre os países mais ricos da União Europeia, têm apresentado as taxas de criminalidade mais elevadas.

Os estudos de James Wilson (16), em 1983, de Jan van Dijk, em 1991, de Sebastián Roché (17), em

(15) Quando falamos em regressão do consumo, não quer dizer que existam menos indivíduos com experiências de consumo. Nesta matéria, a menos que existam movimentações muito significativas da população, de cinco em cinco anos é esperado um aumento do número de indivíduos com experiências de consumo. Em 2009, tínhamos os indivíduos de 2005, descontando os que morreram ou migraram mais todos aqueles que desde 2005 até 2009 tiveram experiências. Assim, quando falamos em regressão de prevalência de consumo centramo-nos sobretudo nos quadros de dependência e de incidências de consumo nos últimos seis meses antes do estudo.(16) George Fenech, Tolerância Zero, Editorial Inquérito, Mem Martins, 2001, p. 110.(17) Sebastien Roché, La Société incivile. Qu’est-ce que l’insecurité, Éditions du Seuil, Paris, 1996, p. 78.

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1996, de Julien Dray (18), em 1999, entre outros (19), já nos tinham demonstrado a evidência de que existe uma relação entre desenvolvimento econó-mico e prática criminal. Ou seja, quanto mais au-mentam as taxas de crescimento económico, mais cresce a propensão para a prática da criminalidade e dos comportamentos desviantes em geral.

Sabemos que a propensão para a prática desvian-te varia de acordo com as expetativas dos indiví-duos. Se, numa sociedade, vivemos um período de pujança económica, as expetativas dos elementos dessa comunidade tendem a aumentar e a predis-posição para a prática desviante aumenta de igual forma.

Por ano, na Europa, registavam-se mais de um milhão de apreensões de drogas ilícitas. Conside-rando o que defendia M. Kendall, ex-Secretá-rio-Geral da Interpol (Moncomble, 1997, p. 9), que estimava que apenas 5% do total da produção mundial de estupefacientes fosse apreendida pelas autoridades, permite fazer uma estimativa da di-mensão do tráfico de droga. Só no caso português, tendo por base o volume das substâncias apreendi-das, em 2009, é possível estimar em 113 048 712,00 euros o valor das apreensões de um total de merca-do de 2 147 925 531,00 euros, ano. Na Europa, 78% das apreensões são de canábis, 9% de cocaína, 5% anfetaminas, 4% heroína, 2% MDMA. A tendência de aumento da procura do consumo de canábis fez com que a produção e comercialização se transfor-massem na maior fonte de receita do crime orga-nizado.

(18) George Fenech, ob. cit., p. 110.(19) Também Alain Peyrefite, em 1977, num estudo encomendado pelo presidente francês, Giscard d’Estaing, demonstrou que contrariamente ao que se julgava, as crises económicas não provocam um aumento da prática criminal. Em França, no início da década de 70 do século passado, quando a economia mais cresceu as taxas de criminalidade acompanharam a mesma tendência de crescimento, quando era suposto baixarem.

7. UMA IMAGEM

O Observatório Europeu da Droga e Toxicode-pendência, em 2005, através do seu relatório, in-dicava que a Dinamarca detinha, entre os 15 e os 64 anos, uma prevalência de consumo de canábis de 31%, enquanto a França, 23%, a Espanha e a Ir-landa, 20%, a Holanda, 15%, a Suécia, a Grécia e o Luxemburgo, 13%, Portugal, 8%, e a região Açores, 8% (20).

O relatório europeu sobre drogas de 2016 aler-tou para o facto de se estar a verificar um aumento do consumo de canábis, de drogas estimulantes e situações de policonsumo, onde o consumo de fár-macos apresentava principal preponderância (DA, 5/jun/2016, p. 7). O referido relatório alertava para a necessidade de alargar a abrangência das políti-cas em matéria de drogas na Europa, confrontada com a particularidade do comércio eletrónico bem como a diversidade de produtos disponíveis.

No mesmo relatório de 2016, é estimado que, ao longo da vida na Europa, entre os 15 e os 64 anos de idade, existam 83,2 milhões de consumidores de canábis, 17,1 milhões de consumidores de cocaína, 13 milhões de consumidores de MDMA e 12 mi-lhões de consumidores de anfetaminas.

Em 2009, O Relatório das Drogas da Agência das Nações Unidas para Assuntos de Droga e Crime, apontava para a existência, em 2007, de 172 a 250 milhões de pessoas em todo o mundo, com ida-de superior a 15 anos, que já tinham consumido pelo menos uma vez uma substância ilícita, re-presentando entre 2,6 e 3,7% da população mun-dial. Apontava ainda para, do total do consumo na Europa, 59,7% ser de opiáceos, 19,5% de canábis, 10,9% de anfetaminas e 8,4% de cocaína. A África destacava-se pelo consumo de canábis entre 63% dos consumidores. Na América do Sul, era a cocaí-na, com 52,1% dos consumidores. A América do

(20) Alberto Peixoto, Dependências e Outras Violências…cit., p. 125.

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Norte detinha 33,5% de consumidores com prefe-rência pela cocaína, 23,3% pela canábis e 20,7% pe-los opiáceos. Entre os consumidores da Ásia, 64,6% preferiam os opiáceos e na Oceânia a canábis era substância mais consumida (47%).

Apesar de Portugal estar entre os países da Euro-pa com menor prevalência de consumo de substân-cias ilícitas, à semelhança dos anteriores relatórios, o relatório anual de 2014 sobre a situação do país, em matéria de drogas, demonstrava uma distribui-ção disforme da problemática. Colocava os Açores a par de Lisboa e Alentejo como as regiões com maiores prevalências de consumo tanto nos últi-mos doze meses como ao longo da vida.

Também o relatório sobre A Evolução do Fenó-meno da Droga na Europa, de 2008, caracterizou Portugal como sendo um dos países com as mais baixas prevalências de consumo em todos os ti-pos de drogas. Porém, foi ali destacado o número de mortes relacionadas com o consumo, visto que Portugal apresentava taxas de mortalidade muito elevadas quando comparadas com as taxas de ou-tros países.

Para além das prevalências de consumo de subs-tâncias ilícitas, importa também conhecer o grau de pureza das substâncias. O relatório anual de 2015, do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comporta-mentos Aditivos e nas Dependências), denunciou um aumento da pureza das substâncias comerciali-zadas a par de uma estabilização do preço. Tal facto ajuda a compreender a tendência de aumento das mortes por overdose. Apontava para um aumento de 50% de mortes por tal facto face a 2013 (DA, 4/fev/2016, p. 10). A cocaína, em 64% dos casos, sur-ge como a substância mais referenciada nas mortes por overdose, seguindo-se os opiáceos, com 45%, e a metadona, com 42% dos casos.

No âmbito do protocolo assinado entre o Minis-tério da Defesa Nacional e o Ministério da Saúde, em 2015 foi realizado um estudo pelo SICAD com

uma amostra de 70 646 jovens com 18 anos, e que participaram no Dia da Defesa Nacional. Foi reali-zado um inquérito aos comportamentos aditivos, tendo-se concluído que 88% tinham experiências de consumo de álcool, 62% de tabaco, 31% de subs-tâncias ilícitas e 7% tranquilizantes/sedativos. Em relação ao consumo, referente aos últimos 12 me-ses, no que respeita ao álcool foi assumido por 83% dos jovens, ao tabaco, por 52%, às substâncias ilíci-tas, por 24%, e aos tranquilizantes, por 5%.

A Madeira foi apontada como a região com me-nor prevalência de consumo diário de álcool, os Açores de tabaco, o Alentejo de canábis e o Algarve de tranquilizantes.

Em relação ao consumo de álcool, foi assumido pelos inquiridos a sua associação a problemas rela-cionados com a condução de veículos, com violên-cia, com relações sexuais desprotegidas, enquanto o consumo de drogas ilícitas apareceu associado a problemas financeiros, afetação do rendimento es-colar e ou laboral e a comportamentos indesejáveis em casa.

Nos finais do século XIX, assistiu-se à alvorada de uma certa consciencialização do álcool enquanto fator de perturbação social. Em termos geográficos, foi na Inglaterra que surgiram as primeiras preo-cupações comunitárias. Outros países, apesar de grandes produtores de bebidas alcoólicas, com in-teresses económicos no setor de atividade, como a França ou a Itália, rapidamente se juntaram às preocupações inglesas.

Convictos da existência de um nexo de causali-dade entre a prevalência da prática da violência, nomeadamente ao nível das ofensas à integridade física e dos homicídios e o consumo abusivo do ál-cool, decidiram agir. Por exemplo, a França iniciou o combate ao consumo excessivo de álcool antes de ter proibido as salas de fumarias especializadas no consumo de ópio que perduraram até aos princí-pios do século XX. A Suécia foi mais longe, ao op-

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tar por combater todas as substâncias consumidas fora de contexto médico.

Para Morel (1857), segundo a “teoria da degene-rescência”, e para Legrain (1895), com a “teoria da degenerescência social”, o vício do álcool apresenta-se como fator responsável de todos os problemas individuais bem como das degenerescências so-ciais. A problemática das dependências mantém-se uma problemática social atual, apresentando-se a dependência alcoólica com a tradição de ser apon-tada como a que apresenta a maior dimensão (21).

Com Skinner (1904-1990), no âmbito das teo-rias de aprendizagem comportamentalistas, os comportamentos dos indivíduos são reproduzi-dos em função das experiências vivenciadas e que proporcionam uma aprendizagem. O comporta-mento do indivíduo passou a ser entendido como o resultado do condicionamento, da alteração ou adaptação do conhecimento que esse mesmo indi-víduo obtém do contexto em que se move. Aqui faz sentido que um indivíduo oriundo de uma família de fumadores possua uma maior propensão para se tornar fumador, ou que um indivíduo oriundo de uma família em que são frequentes os abusos al-coólicos possua maior propensão para a repetição de tal comportamento.

Volvidos mais de cem anos sobre o nascimento de Skinner, novas teorias sociológicas, psicológi-cas, neurofisiológicas, entre outras, explicativas dos efeitos comportamentais têm-se sucedido, em que os fatores contextuais não são descurados.

Um inquérito com uma amostra de 1 540 pes-soas, realizado pela Cruz Vermelha Portuguesa, em 2008, com indivíduos dos 16 aos 18 anos, sobre a perceção dos riscos do consumo de álcool, permi-tiu concluir que 80% dos jovens tinha consciência das consequências do consumo de álcool (DA, 21/out/2009, p. 5).

(21) Estima-se que, no caso português, se consumam, por dia, 2,8 milhões de litros de álcool (DN, 09/Abril/2006, p. 18).

Se o consumo de álcool tradicionalmente se ini-cia em família, o início de consumo de tabaco e de substâncias ilícitas inicia-se na escola, apesar de, em relação ao tabaco, mais de metade dos fu-madores (51,9%) entre os 12 e 13 anos terem pais fumadores. O mais recente estudo da Universida-de Coimbra veio confirmar a tendência (DA, 17/nov/2015, p.11).

Em termos individuais, o abuso de álcool produz efeitos indesejáveis sobre o aparelho digestivo, so-bre o estômago, podendo acarretar gastrites agudas ou crónicas, sobre o fígado, como a cirrose. Re-duz o grau de resistência do organismo a doenças como a tuberculose, a pneumonia e a alguns casos de cancro. Atinge, também, os órgãos dos sentidos e o sistema nervoso, provocando perturbações do sono, irritabilidade, esgotamento, confusão mental, delírio do ciúme e demência alcoólica.

O consumo de tabaco constitui, sem margem para dúvidas, a maior das dependências no mun-do. Segundo a Organização Mundial de Saúde (CA, 17/nov/2004, p. 13), estima-se que em todo o mun-do existam mil e duzentos milhões de fumadores dos quais duzentos milhões são mulheres, sendo o tabaco apontado como a principal causa de morte evitável, atingindo 4,9 milhões de pessoas por ano (DA, 01/mar/2005, p. 3).

Segundo um estudo de 2010 da World Lung Foundation e da American Cancer Society, estimava-se que, em 2010, em todo o mundo, seis milhões de pessoas fossem vítimas mortais do consumo de tabaco, devido ao desenvolvimento de cancros, problemas cardiovasculares, enfisemas pulmonares, entre outras patologias. A perda de produtividade e as despesas médicas relacionadas com o consumo de tabaco atingiria os 500 mil mi-lhões de dólares. (DA, 25/set/2009, p. 21).

O tabaco continua a ser a substância de inicia-ção em relação a outras substâncias e a outras de-pendências, pelo que faz todo o sentido que o mais

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forte investimento ao nível da prevenção e do tra-tamento seja ao nível do tabaco.

Investir na prevenção e tratamento do tabagismo e retardar o máximo possível o início do consumo, indiretamente produzirá efeitos na redução da pro-pensão para o consumo e dependência de outras substâncias. Segundo dados do Serviço Nacional de Saúde, doenças relacionadas com o consumo de tabaco representam um encargo de 490 milhões de euros/ano enquanto os encargos com o consumo abusivo de álcool atingiam os 189 milhões de eu-ros/ano (DN, 19/set/2008, pp. 6-7).

Os Açores não fogem a esta realidade, com uma prevalência tabágica próxima dos 30% do total da população. No nosso caso, segundo o Centro de Oncologia dos Açores, registam-se, em média, 120 mortes por ano resultantes de cancro no pulmão, o que perfaz um risco de morte pela doença de 46,3 por cada 100 000 habitantes/ano. Além do referido, são diagnosticados, anualmente, 130 novos casos (DA, 2/dez/2015, p. 5). Estima-se que 80 a 90% dos internamentos no Hospital de Ponta Delgada, por questões respiratórias, devem-se a patologias dire-tamente relacionadas com o tabagismo (DA, 17/nov/2009, p. 5).

Nesta matéria, temos de saudar o esforço legisla-tivo em torno das restrições tabágicas, nem sem-pre socialmente compreendidas, embora em nosso entender se devesse ter avançado mais depressa. Recorde-se a título de exemplo que a utilização de imagens chocantes nos maços de tabaco foi uma es-tratégia de prevenção a nível europeu desde 2006, mas que no Canadá foi implementada em 2000, existindo estudos que confirmavam os resultados positivos ao nível do decréscimo do consumo.

A Comissão Europeia, em 2006, chegou mesmo a apresentar um conjunto de 28 imagens sobre con-sequências de fumar para cobrir metade dos maços de tabaco (DN, 08/abr/2006, p. 19). A Bélgica foi o primeiro país da Europa a por em prática a estra-

tégia e foram necessários dez anos para tal inicia-tiva se concretizar também em Portugal. Só a 20 de maio de 2016, imagens chocantes como doentes em fase terminal e caixões de crianças passaram a ser impressas nos maços de tabaco como forma de sensibilização dos fumadores para o abandono ta-bágico.

Proibiu-se o consumo de tabaco no interior dos edifícios públicos e dos recintos escolares, o que provocou uma deslocalização dos fumadores, en-tre alunos, professores e demais funcionários para a ocupação da via pública em frente aos estabele-cimentos, proporcionando novas oportunidades de consumo proporcionadas por traficantes que estrategicamente se posicionaram. Mais uma vez, foram necessários dez anos, para se avançar para a proibição de fumar em frente aos recintos escola-res, aguardando-se a publicação da nova legislação.

8. SÍNTESE CONCLUSIVA

Skinner, enquanto discípulo de Ivan Pavlov, apresentou-nos o princípio das “condições operan-tes”. Tal teoria procurou explicar a motivação de o indivíduo tender a repetir um comportamento. Se da prática resultou um sinal positivo, o comporta-mento tenderá a ser repetido e se o sinal for negati-vo o indivíduo tenderá a abandoná-lo e a substitui-lo por outro comportamento que produza um sinal positivo.

As “condições operantes” podem explicar a rein-cidência comportamental, sendo a demonstração de que o indivíduo não recebeu estímulos de sinal negativo, capazes de alterar o seu comportamento. Ou seja, não forma desencadeados mecanismos de censura individual, familiar, social, e jurídica, ca-pazes de o fazer abandonar a prática.

Neste quadro teórico conceptual, perante um dependente, há que promover a motivação para o

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abandono da dependência por via do ensinamento da negatividade do hábito.

Dos estudos realizados em 2004 e em 2009, sa-bemos que as taxas de sucesso de abandono das dependências decaiu significativamente. De uma taxa de sucesso de 32,3% decaímos para 12,5%, o que também foi corroborado pelo estudo de Sofia Ravara. A queda do sucesso pode também ter-se ficado a dever ao aumento considerável do número de pessoas à procura do abandono de uma qual-quer dependência, tendo sido o abandono do ta-baco a mais visível. Parece-nos da maior importân-cia o registo estatístico sistemático como forma de avaliação das estratégias seguidas na região.

Na Washington University School of Medicine, em St. Louis, nos Estados Unidos, foi realizado um es-tudo demonstrativo de que os genes responsáveis pela propensão para a dependência de álcool são os mesmos para a propensão da dependência de ca-nábis. Se a questão hereditária influência em 50% a propensão, os restantes 50% resultam das influên-cias ambientais (DA, 25/dez/2009, p. 21). Tal facto ajuda-nos a compreender as dificuldades do aban-dono da dependência.

Compreendidas as dificuldades de abandono das dependências, importa redefinir estratégias que vi-sem a melhoria das taxas de sucesso. Para tal é in-dispensável a análise sistemática de resultados de modo a rentabilizar recursos humanos e materiais. Por exemplo, os estudos reunidos no Effectiveness of dentist’s intervention in smoking cessation: a review (22) demonstraram que o sucesso do abandono tabá-gico melhora quando o plano de tratamento envolve consultas de medicina dentária. Descoberto tal fac-to, há que repensar as estratégias disponibilizadas aos fumadores. Tal como verificado no controlo de outros fenómenos, a abordagem multidisciplinar constitui-se como estratégia privilegiada.

(22) Carlos Omañana-Cepeda, Enric Jané-Salas, Alberto Estrugo-Devessa, Eduardo Chimenos-Küstner, José López-López, «Effectiveness of dentist’s intervention in smoking cessation: A review» in J. Clin. Exp. Dent. (Journal of Clinical and Experimental Dentistry), 8, 2016, pp. 78-83.

Como vimos, a problemática das dependências possui contornos pluridimensionais e suscita preo-cupação por implicações na dimensão individual e coletiva, caraterizando-se sobretudo por ser um problema de saúde pública bem como de seguran-ça e ordem pública.

No caso dos Açores, fruto da visibilidade social do fenómeno obtida na última década do século passado e na primeira década do segundo milénio, é possível falar-se na existência de uma consciência coletiva sobre as particularidades do fenómeno.

Tendo por base o conhecimento veiculado so-bretudo através dos órgãos de comunicação social, conclui-se que existem três possibilidades de pos-tura individual e ou coletiva face ao fenómeno das dependências: (i) aceitação indiferente; (ii) mobili-zação descrente; (iii) participação predisposta.

(i) Na postura de aceitação indiferente, conhe-cendo-a, ignora-se a problemática, considerando-a algo que afeta apenas os outros. Havendo uma indiferença, subjaz uma negação na capacidade de afetação em termos individuais e mesmo em termos coletivos num círculo restrito de âmbito familiar ou não. Ninguém nega a existência do fe-nómeno, nem se nega o facto de as dependências serem um problema social. Mesmo no caso de o indivíduo poder ser considerado tecnicamente um dependente, por não ser capaz de cumprir as suas rotinas e compromissos sem antes satisfazer os seus ímpetos pela substância ou comportamento, numa postura de aceitação indiferente não se admite a de-pendência, nem é capaz de se atribuir responsabili-dade à dependência pelo quadro de consequências indesejáveis a que se encontra diariamente exposto.

Num quadro de aceitação indiferente em termos coletivos perante o fenómeno, há uma grande di-ficuldade em mobilizar os indivíduos e as insti-tuições para a adesão a estratégias de prevenção e combate do fenómeno, através de autojustificações de legitimação da inação visto que “não vale a

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pena”, “há preocupações mais prementes”, “há outras entidades que têm a obrigação de agir e nada fazem…”

(ii) A postura da mobilização descrente consis-te na participação, na concretização de iniciativas, mas derrotadas à partida. Materializam-se ações por necessidade de demonstração, de fundamenta-ção, de justificação social. Todavia, não se garante a continuidade das ações. Não são definidos crité-rios de avaliação de resultados com receio de serem utilizados para por em causa as iniciativas. Aliás, é uma postura muito típica ao nível do poder polí-tico, pelo temor de os resultados negativos serem utilizados como arma de arremesso. Talvez isso ex-plique o porquê de nunca ter sido criado um obser-vatório regional para a toxicodependência, ou uma outra entidade técnica independente que acompa-nhasse a evolução do fenómeno nas diferentes va-lências e ajudasse a definir uma verdadeira política de prevenção e combate às dependências na região.

(iii) É na postura de participação predispos-ta onde reside a postura adequada à prevenção e combate às dependências. Independentemente das representações sociais, dos valores sociais e dos in-teresses, materializa-se num esforço contínuo de concretização de ações que, embora conscientes dos resultados sempre modestos e imprevisíveis, em termos de comportamentos sociais e humanos, não baixam a guarda. Não deixam de se mobilizar em torno da crença de que é possível minimizar impactos. A modéstia e a imprevisibilidade dos resultados não são utilizados para a inação, pelo contrário, são utilizados para uma aprendizagem contínua e uma capacidade para a todo o momento reajustar estratégias com vista à melhoria de resul-tados.

Depois de, em termos coletivos, nos Açores, du-rante décadas, se ter vivido um período de aceita-ção indiferente, pelo próprio poder político, o que foi publicamente reconhecido pelo então Presiden-

te do Governo Regional dos Açores, levando-o a criar a Direção Regional de Prevenção e Combate às Dependências, como forma de colmatar a lacu-na, em 2005, com a apresentação do plano regio-nal de prevenção do uso e abuso de substâncias psicoativas, viveu-se um período de mobilização descrente. Multiplicaram-se as iniciativas. Fez-se a apresentação, em todos os concelhos dos Açores, do plano regional junto de todas as forças vivas que quiseram participar, apelando à respetiva partici-pação. Contudo, com honrosas exceções, ficou-se apenas pela apresentação do plano. Não se avan-çou. Não se deu continuidade a um projeto, em nosso entender, muito bem conseguido.

Nesse período, em 2008, criou-se a Direção Re-gional de Prevenção e Combate às Dependências cuja capacidade de mobilização da comunida-de em torno do fenómeno ficou muito aquém do desejado. Tanto assim foi que só durou uma legis-latura, tendo o poder político optado pela sua ex-tinção. O maior feito neste período de mobilização descrente foi a concretização do programa de redu-ção de riscos no consumo de opiáceos, através dos postos móveis de distribuição de metadona. A este nível atingiu-se a postura de participação predis-posta dos técnicos de instituições, com a Arrisca ou a Alternativa. Aqui a prevenção e o combate às dependências deu um salto qualitativo, contudo, em termos comunitários, assistiu-se a um retroces-so de postura. Voltámos à aceitação indiferente em que vivemos com muitas cumplicidades (23).

(23) Em 2014, assistiu-se a um episódio, em Ponta Delgada, bastante pertinente ao nível da ilustração da postura social de aceitação indiferente do fenómeno das dependências. As antigas instalações do tribunal de família e menores, de Ponta Delgada, sitas na rua do Aljube, foram disponibilizadas à ARRISCA, onde pretendia desenvolver as suas atividades junto dos dependentes locais. Logo se levantou uma onda de protestos por parte de comerciantes e até da própria Câmara Municipal de Ponta Delgada, que, numa atitude verdadeiramente primária, defendiam que a presença de dependentes num local tão central era prejudicial aos interesses comerciais e turísticos da comunidade. Ficamos a saber que a estratégia dos mobilizados consistiu em esconder o problema, deslocalizando-o do centro para a periferia. Aliás, como sempre se tem feito na gestão dos espaços urbanos. Tudo o que é indesejado, deslocaliza-se para a periferia, materializando um esforço de negação e não de assunção do problema. Na realidade, em termos técnicos, como forma de rentabilização do investimento, maximizando os resultados sobretudo ao nível da prevenção, exigia que as referidas instalações fossem

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O plano nacional de prevenção e luta contra as dependências, a implementar até 2020, fixa metas bastante ambiciosas. Reduzir o consumo de drogas em 10%. Reduzir as prevalências de jogo de risco e de dependências de jogo em 20%. Diminuir em 30% o início do consumo de álcool por menores de 13 anos.

E para os Açores, quais são as metas?

Ponta Delgada, 06 de Outubro de 2016

ABREVIATURAS UTILIZADAS

DA Diário dos AçoresDN Diário de NotíciasCA Correio dos Açores

I Jornal iCINT Courrier InternationalCRP Constituição da República Portuguesa

SICAD Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências

ocupadas com as atividades da ARRISCA. A visibilidade de um fenómeno com todas as suas implicações, que se pretende combater, é a melhor forma de prevenção. Pena foi que ninguém tivesse compreendido esta realidade em prol do verdadeiro interesse comunitário.

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Paulo Jorge Gomes

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O ESTATUTO APLICÁVEL AOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA DO SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE DOS AÇORES (*) The legal status applied to the Administration Board of the Island Health Units of the Regional Health Service of the Azores

Paulo Jorge Gomes (**)

ResumoAs Unidade de Saúde de Ilha são estruturas orgânicas relativamente recentes, definidas como ins-

titutos públicos regionais de regime especial. A especialidade do regime levanta dificuldades no que concerne à determinação do estatuto a que se submetem os elementos dos conselhos de adminis-tração das USI. Com este breve texto ensaiamos uma hipótese de solução que, na nossa opinião, é coerente com as normas convergentes e especiais aplicáveis às USI.

AbstractThe Island Health Unit (ISU) are a relatively new organic structures, legal defined as regional public

institutes of a special legal regime. This special legal regime raises difficulties regarding the determina-tion of the status to which the elements of the administration boards of the ISU are submitted. With this brief text we try to rehearse a hypothesis of a solution that, in our opinion, is consistent with the converging and special rules applied to the ISU.

Palavras-chave: Unidades de Saúde de Ilha; Serviço Regional de Saúde; conselho de administração; estatuto dos membros.

Keywords: Island Health Units; Health Regional System; administration board; legal status of mem-bers.

Sumário1. As Unidades de Saúde de Ilha e os centros de saúde; 2. O silêncio quanto ao estatuto dos elemen-tos dos conselhos de administração das USI; 3. Truncando conceitos: o princípio da legalidade no século XXI; 4. “Aut…aut, vel…vel” 5. O sistema misto do estatuto dos elementos dos conselhos de administração das USI; 6. Conclusão.

(*) Agradeço ao meu amigo e colega Mestre Tiago Martins pelas suas fundadas críticas, que muito robuste-ceram este trabalho. Agradeço-lhe também pela revisão final do texto.

(**) Jurista. Licenciado (2003) e Mestre em Direito (2004-2008) pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Inspector Regional de Saúde da Região Autónoma dos Açores (2011-2016). O autor segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

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O ESTATUTO APLICÁVEL AOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA DO SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE DOS AÇORES

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1. AS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA (USI) E OS CENTROS DE SAÚDE

As Unidades de Saúde de Ilha (USI) do Serviço Regional de Saúde são uma estrutura orgânica relativamente recente na Região Autónoma dos Açores (1). A experiência piloto iniciou-se em 2003, com a USI do Pico. A última USI a ser criada e instalada data de 2011, com a USI da Terceira. Esta nova estrutura foi prevista logo em 1999, na versão inicial do Estatuto do Serviço Regional de Saúde (ESRS) (2).

A lei regional define as USI como “…estruturas de planeamento, coordenação e prestação de cuidados integrados de saúde, assumindo a natureza de sistema local de saúde”, dotadas de autonomia administrativa e financeira (artigo 6.º, n.º 1 e 2 do ESRS). As USI não se confundem com os centros de saúde das respectivas ilhas, conforme se deduz do artigo 7.º do ESRS. A lei regional prevê a existência autónoma dos centros de saúde, a par das USI. Sucede, porém, que no caso das ilhas com um único centro de saúde a USI passou a ser a única estrutura orgânica (artigo 6.º, n.º 5 do ESRS). Ou seja, em 5 das 9 ilhas dos Açores, os centros de saúde foram assimilados ou fundidos nas USI, a saber, nas ilhas de Santa Maria, Graciosa, Faial, Flores e Corvo. (1) Os diplomas orgânicos de cada uma das USI da Região Autónoma dos Açores são, por ordem cronológica, os seguintes: 1) Decreto Regulamentar Regional n.º 16/2003/A, de 1 de Abril: USI do Pico;2) Decreto Regulamentar Regional n.º 25/2006/A, de 2 de Agosto: USI de São Jorge;3) Decreto Regulamentar Regional n.º 19/2010/A, de 19 de Novembro: USI das Flores;4) Decreto Regulamentar Regional n.º 20/2010/A, de 19 de Novembro: USI do Corvo;5) Decreto Regulamentar Regional n.º 2/2011/A, de 28 de Janeiro: USI da Graciosa;6) Decreto Regulamentar Regional n.º 3/2011/A, de 28 de Janeiro: USI do Faial;7) Decreto Regulamentar Regional n.º 5/2011/A, de 10 de Fevereiro: USI de Santa Maria; 8) Decreto Regulamentar Regional n.º 26/2011/A, de 9 de Dezembro: USI de São Miguel;9) Decreto Regulamentar Regional n.º 27/2011/A, de 15 de Dezembro: USI Terceira.

Doravante, sempre que indicarmos uma norma regulamentar constante num dos diplomas acima mencionados, por mera economia expositiva referiremos tão só a orgânica da ilha a que pertence (v.g. artigo 1.º da orgânica da USI do Pico). (2) Decreto Legislativo Regional n.º 28/99/A, de 31 de Julho, alterado pelos Decretos Legislativos Regionais nº 2/2007/A, de 24 de Janeiro e n.º 1/2010/A, de 4 de Janeiro.

Nas restantes ilhas, portanto, São Miguel, Terceira, Pico e São Jorge, os centros de saúde mantiveram-se enquanto unidades funcionais de prestação de cuidados de saúde, com autonomia técnica, ainda que integrados na estrutura orgânica das respetivas USI.

Muito embora os diplomas orgânicos das USI não tenham feito expressa menção da integração dos centros de saúde nas USI, o artigo 53.º do ESRS previu que a estrutura orgânica dos centros de saúde, incluindo a sua autonomia administrativa e financeira (3), se manteria em vigência condicionada à criação e activação das USI. O processo de criação e activação das USI dos Açores culminou em 2011, pelo que podemos concluir, sem hesitação, que o Decreto Regulamentar Regional n.º 3/86/A, de 24 de Janeiro, encontra-se plenamente revogado.

As USI podem, contudo, integrar mais do que os centros de saúde das respectivas ilhas. O artigo 6.º, n.º 3, do ESRS atribuiu às USI um âmbito territorial e subjectivo compósito, ao permitir que possam ser constituídas “…por todas as entidades prestadoras de cuidados de saúde do sector público da respectiva ilha, podendo integrar centros de saúde, hospitais e serviços especializados”. A lei regional é pois bastante flexível no que concerne às estruturas funcionais que podem ser integradas nas orgânicas das USI, ao ponto de se poder conformar uma organização específica em cada ilha, em função dos serviços ou entidades agrupadas pelo respectivo diploma orgânico (4).

(3) Plasmada no artigo 11.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 3/86/A, de 24 de Janeiro, que definia a estrutura orgânica dos centros de saúde da Região Autónoma dos Açores.(4) Mesmo no caso dos hospitais da Região terem um regime específico, dada a sua natureza pública empresarial, fixada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 2/2007/A, de 24 de Janeiro.

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2. O SILÊNCIO QUANTO AO ESTATUTO DOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS USI

As USI são institutos públicos regionais de regime especial (artigo 48.º, n.º 1, alínea b) do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2007/A, de 11 de Maio, na versão do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2011/A, de 11 de Maio – Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, doravante apenas RJIPR). Aplica-se-lhes a disciplina jurídica prevista em lei específica, nomeadamente a do ESRS e dos respectivos diplomas orgânicos. Só subsidiariamente é aplicável o regime geral plasmado no RJIPR(5).

No ESRS não se vislumbra normas incidentes ou que mencionem qualquer estatuto específico aplicável aos elementos dos conselhos de administração das USI, nomeadamente, quanto a deveres funcionais especiais, por exemplo, deveres de cooperação dos elementos entre si e com a respectiva tutela. Pergunta-se: os elementos dos conselhos de administração das USI terão algum estatuto específico, isto é, um conjunto de normas especiais aplicáveis em função da responsabilidade e dignidade dos cargos que exercem (6)? No caso de (5) É o que decorre do n.º 1 do artigo 48.º do Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais: “… gozam de regime especial, com derrogação do regime comum na estrita medida necessária à sua especificidade…”, referindo o n.º 2 do mesmo artigo que “… cada uma destas categorias pode ser regulada por uma lei específica”. Ou seja, em face da disciplina jurídica específica das USI, aplicam-se prioritariamente as normas legais do ESRS, por se tratar de um acto legislativo em matéria da organização na área da saúde. Muito embora os Decretos Regulamentares Regionais, que aprovaram as orgânicas das USI, não tenham valor normativos de acto legislativo, mas regulamentar, consideramos todavia que devem ter prioridade em relação às normas do Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, porquanto consubstanciam regulamentos complementares ou de execução da disciplina do ESRS (artigo 6.º, n.º 1 do ESRS). Esgotada a disciplina jurídica plasmada no ESRS e nos diplomas orgânicos das unidades de saúde, só então é que se deve aplicar o Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais.(6) A noção de estatuto, derivada do termo latino status, está tradicionalmente associada aos conceitos modernos de personalidade e capacidade jurídica, aplicável quer a pessoas singulares quer colectivas. No Direito Romano a pessoa não era entendida como indivíduo, mas como membro das associações de que fazia parte, em especial a família enquanto primeiro núcleo organizativo, e do qual derivaram outras noções organizacionais e civilizacionais, tais como as cidades, guildas ou corporações, e mais tarde, só no Renascimento, a própria noção de Estado. Como refere Max Kaser, Römisches Privatrecht (1992), trad. port. Direito Privado Romano, FCG, Lisboa, 1999, p.99, “…status não é capacidade jurídica mas antes a situação jurídica do homem em geral. Enquanto hoje a capacidade jurídica é entendida de modo unitário, com base na liberdade e na igualdade de todos os homens perante a lei, os Romanos, à questão sobre quais os direitos que competem a

resposta positiva, que estatuto será esse? A questão não é simples nem isenta de

dúvidas. O artigo 25.º, n.º 1 do RJIPR, aplicado subsidiariamente por força do n.º 1 do artigo 49.º do mesmo regime, refere que “…aos membros do conselho directivo é aplicável o regime definido no presente diploma e, subsidiariamente, o fixado no estatuto do gestor público ou no estatuto do pessoal dirigente da administração pública regional, nos termos a definir no diploma a que se refere o artigo 33.º”.

O artigo 33.º do RJIPR refere, por sua vez, que “os institutos públicos regionais dispõem de serviços indispensáveis à efectivação das suas atribuições, sendo a respectiva organização, funcionamento e quadro de pessoal fixados por decreto regulamentar regional, a aprovar pelo Governo Regional” (ênfase nossa).

Ou seja, aos elementos que constituem os conselhos de administração das USI aplica-se, em primeiro lugar, o ESRS e as normas regulamentares de execução previstas nos diplomas orgânicos; em segundo lugar, o disposto no Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais; e em terceiro lugar, o Estatuto do Gestor Público ou o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Púbica Regional (Decreto Legislativo Regional n.º 2/2005/A, de 29 de Maio (7)), consoante o que for definido no respectivo diploma orgânico.

Parece que entramos num círculo: o RJIPR manda aplicar, primeiro, a legislação especial. A legislação especial, no caso o ESRS e diplomas orgânicos das USI, são aparentemente omissos sobre o estatuto a que estão adstritos os elementos dos conselhos de

cada indivíduo, respondem de forma diferente para cada grupo de pessoas.” A situação jurídica do indivíduo era graduada segundo a sua liberdade (status libertatis), cidadania (status civitatis) e posição na família (status familiae), cfr. A. Santos Justo, Direito Privado Romano – I Parte Geral, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 106. O status do Direito Romano ajuda a compreender a razão de ser de estatutos específicos aplicados ao exercício de determinadas funções públicas (titulares de cargos políticos, dirigentes da Administração Pública, magistrados, gestores públicos, etc.), enquanto conjuntos de normas especiais. (7) Na última versão promovida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, de 29 de Dezembro.

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administração. Donde, aplica-se subsidiariamente o Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, o qual, por sua vez, não só não prevê qualquer estatuto específico aos corpos dirigentes como determina no seu artigo 25.º, n.º 1 a aplicação do regime que vier a ser definido no diploma orgânico – no presente caso, sem enunciado expresso – e, subsidiariamente, o fixado no Estatuto do Gestor Público ou no Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional, também nos termos do que for fixado no diploma orgânico. Pergunta-se então: qual o regime aplicável?

Para responder à questão é necessário aferir uma questão prévia: no caso de o diploma orgânico das USI não aplicar expressamente qualquer um dos estatutos indicados no Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, significará isso a exclusão ou omissão intencional desses regimes? Prima facie, poder-se-ia ponderar esta hipótese, uma vez que a aplicação dos estatutos em questão parece ter ficado dependente do que viesse a ser definido no diploma orgânico, enquanto regulamento complementar à norma legal (artigo 33.º do Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais). Seguindo este raciocínio, se a Administração não mencionasse nas orgânicas das USI uma expressa opção por um dos referidos estatutos, o seu silêncio significaria já uma escolha, a saber uma opção em não aplicar qualquer um desses regimes. Neste sentido, em matéria de deveres funcionais, por exemplo, os elementos dos conselhos de administração das USI ficariam apenas sujeitos aos deveres gerais a que todos os trabalhadores da Administração Pública estão igualmente adstritos (artigo 73.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho – Lei Geral do Trabalho em Funções Pública – LGTFP).

Aparentemente esta conclusão tem respaldo legal. Com efeito, a comissão de serviço celebrada com os elementos do conselho de administração

das USI corresponde a um dos vínculos de trabalho em funções públicas, nos termos da LGTFP (artigo 9.º), aos quais se aplicam os correspectivos deveres gerais. Todavia, consideramos esta conclusão errada, por dizer de menos e não acautelar a especialidade do regime. São três os argumentos que consideramos relevantes para afastar esta solução: literal, teleológico e estrutural.

Do ponto de vista literal, se se analisar o enunciado do artigo 33.º do Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, a fixação da orgânica das USI, enquanto institutos públicos regionais de regime especial, diz respeito à matéria da “…organização, funcionamento e quadro de pessoal…”. Não é mencionado que o concreto estatuto dos elementos do conselho diretivo deve vir expressamente referido no diploma orgânico. Não sendo exercida essa opção, de modo declarativo ou expresso por parte do Governo Regional, parece no entanto haver amplitude legal para se aplicar ou o Estatuto do Gestor Público, ou o Estatuto do Pessoal Dirigente, atendendo à natureza do comando normativo do referido artigo 33.º do RJIPR.

Por outro lado, do ponto de vista teleológico ou finalístico, e ainda em matéria de deveres funcionais, parece-nos difícil aceitar que os elementos dos conselhos de administração das USI, pelas suas especiais responsabilidades no exercício de funções de gestão e administração, para além da autonomia administrativa e financeira das estruturas orgânicas que administram, fiquem submetidos apenas e só a deveres gerais aplicáveis à generalidade dos trabalhadores em funções públicas, sem qualquer estatuto específico ou deveres especiais. Aceitar semelhante conclusão implicaria admitir-se um verdadeiro privilégio, sem justificação legal e, seguramente, não pretendido pela lei, ao remeter a escolha dos estatutos para o Governo Regional, através de Decreto Regulamentar Regional. Essa situação de privilégio seria tanto mais gritante se

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comparada com a generalidade dos dirigentes do Sector Público Administrativo, sujeitos ao Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública regional, e com os gestores e administradores do Sector Público Empresarial, sujeitos ao Estatuto do Gestor Público.

Finalmente, do ponto de vista estrutural, a norma que se retira do enunciado normativo do artigo 25.º, n.º 1 do RJIPR, consubstancia uma norma de competência que por sua vez remete para normas de conduta (8). Dito de outro modo, a norma que estabelece a aplicação de outros regimes jurídicos é uma norma que remete para outras normas. Sucede que essas outras normas, para as quais o RJIPR remete, referem-se a normas de conduta aplicáveis aos dirigentes da Administração Pública ou aos administradores públicos. Razões pelas quais consideramos errada a conclusão de que os elementos dos conselhos de administração das USI não teriam qualquer estatuto próprio, mas tão só o estatuto geral aplicável à generalidade dos trabalhadores em funções públicas.

Sucede que no âmbito dos serviços da Administração Pública sempre que se retira uma conclusão a partir do silêncio legal ou regulamentar, surge a possibilidade de nos confrontarmos com a crítica escorada numa potencial violação do princípio da legalidade administrativa, em particular a precedência e reserva de lei. Para melhor compreensão da tese aqui defendida, é conveniente compreender o sentido real e actual do princípio da legalidade.

(8) As normas de competência, ou normas secundárias, são normas que se reportam a outras normas, isto é, normas cujo objeto são normas. As normas de conduta, ou normas primárias, são normas que se aplicam a ações ou comportamentos, que têm por objeto a realidade exterior do mundo do direito, cfr. David Duarte, A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa – A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 100 e ss.

3. TRUNCANDO CONCEITOS: O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NO SÉCULO XXI

O princípio da legalidade é nuclear a toda a actuação da Administração Pública. Marcello Caetano, caput scholae do Direito Administrativo português, definia o princípio da legalidade como a impossibilidade de um “...órgão ou agente da Administração Pública te[r] a faculdade de praticar actos que possam contender com interesses alheios senão em virtude de uma norma geral anterior” (9). Esta definição assentava sobretudo na vertente negativa ou proibitiva do princípio. A doutrina posterior, especialmente através de Freitas do Amaral, incluiu na definição do princípio da legalidade uma feição positiva, isto é, enquanto comando em que “…órgãos e agentes da Administração Pública devem agir no exercício das suas funções com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos” (10).

No quadro da evolução e do cálculo dos riscos sociais (11), o princípio da legalidade, incluindo a reserva e a precedência de lei, é actualmente entendido como princípio operativo da unidade do sistema jurídico, sob a tutela de um princípio mais amplo: o princípio da juridicidade (artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e 3.º do Código do Procedimento

(9) Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 1980, p. 30. (10) Freitas do Amaral, «Legalidade (Princípio da)» in Pólis Enciclopédia Verbo do Estado e da Sociedade, 2.ª ed., vol. 3, Verbo, Lisboa/São Paulo, pp. 1004-1023 (1006); idem, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 49 e ss.. Sobre princípio da legalidade, consulte-se também Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987, pp. 17 e ss. Sobre o princípio da reserva e precedência de lei, cfr. igualmente Maria Lúcia Amaral, «Reserva de lei», in Pólis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, 2.ª ed, vol. 5, Verbo, Lisboa/São Paulo, p. 448-464; Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral, tomo I, Dom Quixote, Lisboa, 2004, pp. 153 e ss.(11) Ulrich Beck, Welrisikogesellschaft (2007), trad. esp. La Sociedad del Riesgo Mundial – En busca de la seguridad perdida, Paidós, Barcelona, 2008, passim. A propósito do cálculo do risco refere o Autor (p. 24): “este «cálculo del riego» involucra a ciências naturales, técnica y ciências sociales y puede aplicarse a fenómenos completamente diversos, ya sea la gestión sanitária (…) la economia, el desempleo, los acidentes de tráfico o el envejecimiento de la población.”. Sobre a decisão numa sociedade atual multiopção, com diferentes níveis de complexidade e ritmos sociais, cfr. Daniel Innerarity, El futuro e sus enemigos (2009), trad. port. O Futuro e os seus Inimigos, Teorema, Alfragide, 2011, pp.67 e ss.

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Administrativo) (12). A reserva de lei obriga a que certas matérias se sujeitem à intervenção primária do poder legislativo; a precedência de lei respeita à necessidade de a actuação administrativa se fundar em lei habilitante.

A reserva de lei conhece limites jurídicos e factuais. Não pressupõe um tratamento integral da matéria jurídica em questão. A reserva de lei respeita a uma intervenção primária, ordenadora ou essencial por parte do legislador, em que a concretização ou operacionalização da finalidade normativa cabe noutros graus de regulamentação. Do mesmo modo, a precedência de lei também tem limitações, das quais se destaca a existência de lacunas, antinomias jurídicas ou mesmo zonas de reserva entre as diferentes funções do Estado.

Neste contexto, o princípio da legalidade (reserva e precedência de lei) perde toda a sua funcionalidade quando entendido na sua versão original, isto é, enquanto legado do período liberal assente na luta política entre o poder legislativo, eleito e representante do povo, e o poder executivo, exercido pelo monarca (13). Esta concepção está largamente ultrapassada pela própria realidade e natureza das coisas (14), sobretudo se se tiver

(12) Propugnando a maior adequação em referir a actuação administrativa sujeita ao direito através de um princípio da juridicidade e não tanto da legalidade, cfr. Vieira de Andrade, «O Ordenamento Jurídico Administrativo Português» in AA. VV., Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, 1986, p. 41. Adoptando este princípio lato, cfr. Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, pp.367 e ss. (13) O nascimento do princípio da legalidade dá-se com parlamentos nacionais essencialmente compostos pela burguesia revolucionária, nascida da Revolução Francesa, contra os privilégios nobiliárquicos personificados no monarca e aristocracia. Como refere Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, 2.ª ed., Coimbra Editora/Wolters Kluwer, Coimbra, 2010, p. 827, “…não faria sentido entrar no século XXI com um Estado manietado por exigências e limites nascidos para responder às circunstâncias particulares da luta política e da garantia da liberdade do século XIX, como foi tipicamente o caso da reserva de lei.”(14) Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, op. cit., p. 34. Não se está a defender a filosofia da Natureza das Coisas como fonte normativa, mas como ponte de ligação entre o que é (o ser) e o que deve ser (o dever-ser), em todo o caso sempre extrajurídica. Como refere Castanheira das Neves, Questão-de-Facto – Questão-de-Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, Almedina, Coimbra, 1967, p. 842-843, a Natureza das Coisas está sempre antes ou depois da normatividade, mas nunca com. Em sentido contrário, Pedro Pais Vasconcelos, «A Natureza das Coisas», in Estudos em Homenagem do Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp.707-764.

em linha de conta a expansão da Administração prestacional típica do Estado Social em detrimento da Administração agressiva do Estado liberal (15); o reconhecimento do optimismo ingénuo relativo à plenitude da lei ou omnisciência do legislador; a legitimidade democrática e popular do poder executivo, em tudo idêntica ao poder legislativo (16).

Por conseguinte, a reserva e a precedência não impedem a natural imperfeição intrínseca da lei, como sugestivamente refere Paulo Otero (17). A lei deixou de ser os “olhos do príncipe”, tal como o intérprete a mera “bouche de la loi” (18). O princípio da legalidade é hodiernamente entendido como comando normativo ordenador, fundamento com diferentes níveis de concretização no quadro das funções do Estado, em especial a função administrativa (19). O princípio da legalidade resulta (15) O Estado social assumiu o legado do Estado liberal, sobretudo no que respeita às exigências da reserva e precedência de lei nas actuações da Administração agressiva (v.g. actos de polícia administrativa). (16) Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, ob. cit., p. 156; Rogério Ehrhardt Soares, Direito Administrativo, Associação Académica da Universidade Lusíada, Porto, 1992, pp. 84 e ss.(17) Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 158-159. “O Estado-administrador é hoje (…) uma inevitabilidade histórica.” (…) A alternativa subjacente a um cenário contrário, procurando encontrar na lei a resposta exacta para cada problema concreto, isto num quadro idílico da mais completa vinculação decorrente de um modelo silogístico-subsuntivo de aplicação da lei pela Administração e pelos tribunais, revelaria ainda uma muito maior imperfeição da lei, observando-se que o cristalizar das previsões normativas conduziria à sua rápida desactualização e a uma visível formulação lacunar da norma legal…” Sublinhe-se que a autonomia da função administrativa perante as restantes funções do Estado foi acerrimamente defendida na doutrina germânica em 1950 por Hans Peter, Die Staatsrechtliche Ermächtigung, (apud Sérvulo Correia, Legalidade…cit., p. 85). Segundo o autor, o princípio da separação dos poderes é incompatível com uma visão de supremacia de uns poderes sobre outros, devendo antes propugnar-se por um equilíbrio mediado por cada uma das funções do Estado. Todas as funções do Estado estão suportadas numa legitimidade democrática (incluindo a função administrativa) e o seu mau uso ou abuso não é coutada específica da função administrativa, aplicando-se igualmente à função legislativa e jurisdicional. (18) Montesquieu, Do Espírito das Leis, Edições 70, 2011, Livro VI, cap. V e Livro XI, cap. VI. Donde a importância da fundamentação jurídica que permita o escrutínio racional da norma de decisão. Ao intérprete cabe a apresentação de juízos decisórios com uma dimensão de veritas, mas também de auctoritas, só alcançável através de um discurso jurídico-argumentativo, cfr. A. Castanheira Neves, «Fontes do Direito - contributo para a revisão do seu problema», in Digesta – escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, vol. II, Coimbra, 1995, p. 30.(19) Sobre as funções do Estado, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 7-42; idem, «Funções do Estado», Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. IV, Lisboa, 2001, p. 416; e Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, op. cit., pp. 32-48. Estes últimos autores classificam as funções do Estado em função constituinte para a instituição de uma Constituição material, a que se junta a função de revisão constitucional de modo a acompanhar a evolução da sociedade. Como funções primárias, incluem a função política e a função legislativa, a partir das quais o Estado realiza as escolhas para a colectividade. Como funções secundárias, a função jurisdicional e a função administrativa, ambas caracterizadas por se submeterem às funções primárias – pelo que as

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numa preferência da ordem jurídica, considerada como um todo, em que a lei deixa de ser o único parâmetro jurídico, passando a incluir todo o direito enquanto vector estrutural de qualquer habilitação decisória (20). Pelo que cabe à lei regular o essencial, cuja graduação e pormenorização variará consoante a matéria em causa, e à Administração a sua execução e especificação (21).

Fala-se então do bloco de legalidade, no qual se inclui a Constituição, o direito internacional, direito comunitário, a lei ordinária, regulamentos administrativos (22) e os próprios actos administrativos, enquanto normas de decisão (23).

funções secundárias devem reconduzir-se ao conjunto ou sistema normativo em que se integram. (20) David Duarte, Procedimentalização, Participação e Fundamentação: para uma concretização do princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro decisório, Almedina, Coimbra, 1996, p. 341. (21) A teoria da essencialidade da reserva de lei foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional alemão e colheu recepção por parte do Tribunal Constitucional português, cfr. inter alia, Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 3/89, n.º 311/93 e n.º 23/02. (22) Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, cit., p. 157. (23) Não é pacífica a inclusão de actos administrativos no bloco de legalidade. Assumidamente contra esta inclusão, Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, cit., p. 157. Em sentido oposto, considerando o princípio da legalidade como premissa maior da norma de decisão administrativa, consubstanciada no acto administrativo, cfr. David Duarte, A Norma…cit., pp. 327 e ss. e Pedro Moniz Lopes, Princípio da Boa Fé e Decisão Administrativo, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 146 e ss. Também incluindo no princípio da legalidade a legalidade formal, bastando que cada acto concreto da Administração se apresentasse com um conteúdo conforme à legalidade substancial, cfr. Eisenmann, Cours de Droit Administratif, II, 1983, apud Sérvulo Correia, Legalidade…cit. p. 62. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos sustentam a sua oposição à inclusão dos actos administrativos no bloco de legalidade na revogabilidade dos actos administrativos, incluindo os actos constitutivos de direitos, como demonstração da impossibilidade de tais actos servirem de parâmetro de legalidade e, por conseguinte, na conformação da actividade administrativa. Também Pedro Machete, Estado de Direito Democrático e Administração Paritária, Almedina, Coimbra, 2007, pp.431-433, defende a aproximação do acto administrativo ao negócio jurídico do direito civil, defendendo que a Administração Pública se encontra “…numa situação estruturalmente paralela à dos particulares”.Salvo o devido respeito aos insignes autores, discordamos da perspetiva do acto administrativo enquanto mero acto de vontade, mais próximo do negócio jurídico do que de uma norma pertencente ao bloco de legalidade. Relativamente aos argumentos de Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, também a Lei, Decreto-Lei, Decreto Legislativo Regional, Decreto Regulamentar Regional ou mesmo o regulamento não se eximem à revogabilidade, sendo no entanto inquestionável a sua pertença ao bloco de legalidade. Não será a maior ou menor dificuldade na revogação dos actos normativos que servirá de critério para excluir os actos administrativos do bloco de legalidade. Há, para além disso, vários indícios que apontam para a inclusão dos actos administrativos no bloco de legalidade, enquanto actividade deôntica, assumindo a natureza de normas de decisão: a sua emissão é sempre precedida e conforme uma norma de competência; a sua interpretação faz-se nos moldes da lei, isto é, é objectiva (artigo 9.º do Código Civil), ao contrário dos negócios jurídicos, em que prevalece a interpretação subjetiva do declaratário normal, colocado na posição real do declaratário perante o comportamento do declarante (artigo 236.º, n.º 1); a construção da norma de decisão é uma consequência das normas do conjunto normativo; a norma de decisão tem conteúdo deôntico, definindo a situação jurídica com carácter normativo, logo com pretensões de universalidade (aplicável a todas as situações do mesmo género).

Em face deste bloco de legalidade é inquestionável que a função administrativa é a que maior espectro de actividade assume e por isso com um figurino menos definido, passando por diferentes formas de acção que vão desde a emissão de actos normativos até meras operações materiais. A Administração está permanentemente vinculada à prossecução do interesse público (artigo 266.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), em particular aos mencionados na Constituição e na lei, no quadro de uma actividade de conformação social, de modo ininterrupto e contínuo. Administrar é pois “…satisfazer, com continuidade e regularidade, os interesses públicos da comunidade definidos primariamente pela função legislativa num determinado momento temporal” (24).

Dentro deste entendimento, a reserva e a precedência da lei podem ser reconduzidas a dois termos descritivos: conformidade e compatibilidade, respectivamente (25). A «compatibilidade», enquanto termo explicativo da precedência de lei, determina que as normas ou decisões não podem contrariar as normas do ordenamento. A «conformidade», como noção sintetizadora da reserva de lei, é uma subordinação que exige uma norma de padronização dos efeitos jurídicos a criar, bem como as suas condições, isto é, consiste numa regularidade positiva, não “… apenas uma ideia de ausência de conflito, mas a de similitude ou Nem sempre é mencionado pela doutrina a que legalidade está a função administrativa adstrita. Apenas a inserida em subdivisões ou nas funções político-estaduais (v.g. direito administrativo)? Ou todo o ordenamento jurídico, incluindo, por exemplo, normas de direito privado? Para que o bloco de legalidade estivesse condicionado à aplicação de normas de determinada categoria ou ramo do direito seria necessário uma norma limitativa. Não existindo semelhante norma, por «legalidade» deve-se entender todo o ordenamento jurídico como potencialmente aplicável à função administrativa, incluindo o direito privado, enquanto direito comum, sem embargo do recurso a critérios de pertença (com outros fundamentos, mas defendendo a aplicação do direito privado à Administração Pública, Paulo Otero, Legalidade…cit., p. 811 e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, tomo I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 55 e ss., este último invocando a relação de subsidiariedade do direito comum à natureza especial do direito administrativo). Sobre a norma de pertença, discordando do entendimento do direito civil enquanto direito comum, Pedro Moniz Lopes, ob. cit., pp. 103 e ss.(24) Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado Matos, op. cit., p. 43. (25) Sérvulo Correia, Legalidade…cit., pp. 58 e ss.; David Duarte, A Norma…cit., p. 346.

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reprodução: um acto da administração é conforme a uma norma se a tiver como modelo” (26).

Estes dois graus de subordinação não têm fronteiras claras, na medida em que a sua diferença é meramente quantitativa, consoante a menor ou maior densificação da norma de legalidade (27). O grau de conformidade pode ser ora mais, ora menos intenso, mais explícito ou implícito. Deverá no entanto existir uma “…relação funcional de realização concretizante”, ou seja, uma conformidade lógica ou racional com o bloco de legalidade. David Duarte utiliza como critério gradativo entre conformidade e compatibilidade a existência ou não de uma norma de conduta – e não apenas uma regra de competência – que atribua um padrão de decisão, ou seja, que apresente uma razão ou um critério normativo para que se possa decidir num sentido ou noutro. Dito de outro modo, uma relação de subordinação enquanto compatibilidade traduz-se na existência de uma norma de competência sem norma de conduta associada; já uma subordinação de conformidade implica que a norma de competência também inclua uma norma de conduta (28).

A norma de legalidade está configurada como uma norma princípio, enquanto critério ou comando de optimização aplicável a todos os géneros de situações, assumindo particular expansibilidade e regulando as condições de relacionamento normativo no exercício da actividade administrativa até aos limites da verificação de normas de sinal contrário, abrangendo tudo o que não estabeleça um impedimento de modo a que a função administrativa se realize no quadro de uma subordinação normativa de conformidade – incluindo-se aqui os juízos de ponderação ou balanceamento (29). A compatibilidade e (26) Sérvulo Correia, Legalidade…cit., p. 59. (27) David Duarte, A Norma…cit., pp. 346-347.(28) Cfr. nota 8 supra.(29) Robert Alexy, «On the Structure of Legal Principles», in Ratio Juris, vol. 13, 3, 2000, pp. 294-304.

conformidade das hipóteses em vista à criação de uma norma de decisão devem, assim, ser aferidas a partir do bloco de legalidade em vigor.

A nosso ver, o princípio da legalidade, enquanto comando de optimização, aplicar-se-á de modo distinto consoante o tipo de intervenção da Administração Pública na relação jurídica administrativa e dos direitos em confronto, isto é, se se trata de uma actuação agressiva ou ablativa, prestacional, ou prospectiva – nada impedindo que uma determinada situação jurídica implique os três tipos actuações. Recorrendo a uma analogia matemática, perspectivamos a função administrativa típica do Estado Liberal, configurada a partir de uma Administração Pública agressiva, limitada pelo princípio de legalidade a partir de uma geometria rígida ou euclidiana, congruente e com linhas de demarcação sem flexibilidade, ainda que deslocáveis (30). Já o exercício da função administrativa típica do Estado Social de Direito Democrático, assente numa Administração prestacional, o princípio da legalidade estará configurado por uma geometria afim, abandonando deslocações rígidas e permitindo a flexibilização e alteração das distâncias entre linhas, com interação assente num plano e sob o mesmo vértice, mas com cruzamentos e intersecções várias (31). Finalmente, no Estado pós-social, tendo como modelo uma Administração Pública prospectiva, concertada com os particulares, o princípio da legalidade obedecerá a uma geometria projectiva, assente na perspetiva ou no plano de projecção em análise (32) (33). (30) Será o caso, por exemplo, dos atos administrativos de natureza ablativa, como expropriações, cassação de alvarás, procedimentos sancionatórios (v.g. contra-ordenações). (31) Por exemplo, a atribuição de subsídios ou apoios estatais, muito embora os critérios devam estar legalmente fixados, podem ter – e geralmente têm – uma ampla margem de apreciação discricionária, em função dos objetivos pretendidos e das situações jurídicas concretamente apreciadas. Do mesmo modo, incluiu-se na Administração prestacional a prestação de cuidados de saúde pelo Serviço Regional de Saúde.(32) Será, por exemplo, o caso da Administração de planeamento, em particular no Direito do Ambiente (v.g. planos de ordenamento do território) mas também no Direito da Saúde (v.g. saúde pública, investimento a médio longo prazo, Plano Regional de Saúde).(33) Quanto às relações dos diferentes modelos de Estado e a Administração Pública, cfr. Vasco Pereira da Silva, Em busca do Acto Administrativo

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As razões referidas no ponto anterior e o quadro do princípio da legalidade ou da juridicidade, interpretado à luz das necessidades do século XXI, expurgado de uma visão monotética tributária do Estado Liberal, constituem a nosso ver predicados mais do que suficientes para que se considere o silêncio dos regulamentos orgânicos das USI como inconclusivo, muito menos enquanto opção para a não aplicação de um estatuto próprio aos elementos dos conselhos de administração das USI, com normas reguladoras das suas condutas perante as funções que exercem. Se esta nossa posição de base estiver correta, a questão que imediatamente se coloca, então, é saber qual o estatuto aplicável.

4. “AUT…AUT, VEL…VEL”

A resposta à questão atrás colocada está, a nosso ver, associada à determinação semântica da partícula disjuntiva constante na segunda parte do enunciado normativo do artigo 25.º, n.º 1 do RJIPR, na qual se prevê a aplicação subsidiária do Estatuto do Gestor Público ou do Estatuto do Pessoal Dirigente. Pergunta-se: o conector «ou» consubstancia uma disjunção inclusiva ou exclusiva (34)? A disjunção é inclusiva, ou fraca, quando o conector «ou» significa «quer um, quer outro, quer ambos simultaneamente». Será exclusiva, ou forte, quando o mesmo conector significa «quer um, com a exclusão do outro, quer o outro com a exclusão do primeiro».Perdido, Almedina, Coimbra, 1995, pp. 34-144. Para noções da geometria euclidiana, afim e projectiva, cfr. AA. VV. Princeton Companion to Mathematics, ed. Tomothy Gowers, June Barrow-Green, Imre Leader, Princeton University Press, 2008, pp. 83; David Ruelle, The Mathematician’s Brain – A personal tour through the essentials of mathematics and some of the great minds behind them, trad. port. Edgar Rocha, O Cérebro do Matemático – os conceitos essenciais da matemática e os cérebros que os criaram, Gradiva, Lisboa, 2011, pp. 27 e ss. (34) Conforme é sublinhado pela generalidade dos lógicos e lexicógrafos, a disjuntiva inclusiva e exclusiva deriva da distinção latina dos termos aut…aut, de natureza objectiva, correspondente ao «ou» forte ou exclusivo, em contraste com o termo vel…vel, a disjuntiva fraca, de natureza subjectiva, referindo-se ao «ou» inclusivo. Com referências à generalidade dos autores que seguem esta distinção clássica, muito embora dela discordando por a considerar “um mito”, cfr. R. E. Jennings, The Genealogy of Disjunction, Oxford University Press, Oxford, New York, 1994, pp. 239 e ss.

Recorrendo à linguagem simbólica da lógica deôntica (35), a norma pode ser apresentada numa das seguintes proposições (36):

(1) a → O (p1 F p2)em que o estatuto dos elementos do conselho

de administração das USI [a] implica [→] a obrigatoriedade [O] do Estatuto do Gestor Público [p1] ou [F] do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública [p2], ou ambos.

Pode, no entanto, a proposição normativa também ser representada no seguinte modo:

(2) a → O (p1 W p2) em que o estatuto dos elementos do conselho

de administração das USI [a] implica [→] a obrigatoriedade [O] do Estatuto do Gestor Público [p1] ou [W] do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública [p2], mas não ambos.

Em linguagem natural, se a proposição normativa constante no artigo 25.º, n.º 1, do RJIPR for interpretada como uma proposição do tipo (2) a partir de um conector disjuntivo forte ou exclusivo (W), a condicional será inválida se ambos os elementos que constituem a consequente (p1 e p2) forem aplicáveis. Ao invés, o enunciado normativo será válido se, e apenas se, um e apenas um dos elementos da consequente for aplicável. Ou

(35) A lógica da modalidade incidente em normas designa-se por lógica deôntica. A lógica modal parte de proposições que especificam o tipo ou a modalidade de ligação entre o predicado e o sujeito (possibilidade, impossibilidade, necessidade e contingência). No caso da lógica deôntica, trata-se de proposições acerca de normas (proibição, obrigação e permissão ou faculdade), cfr. Georges Kalinowski, Introductión a la Lógique Juridique (1965), trad. esp. Introducción a la Lógica Jurídica, 1973 p. 63 e ss.; Georg Henrik von Wright¸ «Is There a Logic of Norms?» in Ratio Juris, vol. 4, n.º 3, 1991, pp. 265-283; AA. VV., New Studies in Deontic Logic – Norms, Actions and Foundations of Ethics, ed. Risto Hilpinen, colec. Synthese Library, 152 coord. Jaakko Hintikka, Dordrecht, Holland, Boston, USA, 1981 e Pablo. E. Navarro/Jorge L. Rodríguez, Deontic logic and Legal Systems, Cambridge University Press, 2014. Na notação recorremos à concepção de ponte (bridge conception) em que o operador deôntico (O de obrigatoriedade) apenas afecta a consequente da expressão condicional, atendendo à possibilidade de destacar o elemento factual da proposição – cfr. Pablo. E. Navarro/Jorge L. Rodríguez, ob. cit., p. 92. (36) O recurso à lógica não significa que o Direito possa ser integralmente traduzido em proposições, silogismos, premissas ou conclusões, mas ajuda à sua determinação analítica. A este propósito, Eugenyo Bulygin, «What can one expect from Logic in the Law? (Not everything, but more than something)» in Ratio Juris, vol. 21, n.º 1, 2008, pp.150-156, (p. 151):“That logic cannot give a full account of any legal system is obvious; I wonder who (…) could expect it to. I know of no legal philosopher who would raise such a claim. What logic, or rather logical analysis, can do, however, is to clarify legal concepts and thus introduce greater order, thereby deepening our understanding of legal phenomena.”

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seja, o conector disjuntivo exclusivo corresponde, na prática, a um operador bi-condicional, isto é, o enunciado normativo só será verdadeiro se, e apenas se (↔), (ou “somente”) um dos termos da consequente for aplicável: ou aplica-se o Estatuto do Gestor Público ou o Estatuto do Pessoal Dirigente, mas nunca ambos (37).

Já se se interpretar aquela proposição normativa como do tipo (1), ou seja, como que possuindo um conector disjuntivo fraco ou inclusivo, a condicional será inválida apenas se ambos os termos p1 e p2 da consequente não forem aplicáveis. O enunciado normativo já será válido se um ou ambos os termos da consequente forem aplicáveis: ou aplica-se o Estatuto do Gestor Público ou o Estatuto do Pessoal Dirigente, ou ambos simultaneamente.

A questão, uma vez mais, não é isenta de dúvidas. O estudo comparativo dos diplomas orgânicos das USI poderá, contudo, oferecer auxílio, não tanto no sentido de inverter a ordem hierárquica dos actos normativos, isto é, interpretando a lei a partir de regulamentos administrativos, por tal opção se encontrar constitucionalmente vedada (n.º 5 do artigo 112.º da Constituição da República Portuguesa), mas em face da complementaridade e prioridade metodológica dos diplomas orgânicos no caso específico dos institutos públicos especiais com a tipologia de estabelecimentos de saúde, por expressa imposição legal (artigos 25.º, n.º 1 e 48.º, n.º 1 do Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais).

A ordem abaixo efectuada segue a cronologia dos diferentes diplomas orgânicos, partindo do mais antigo para o mais recente: 

(a) USI do Pico: o artigo 30.º, n.º 1, da orgânica da USI Pico manda aplicar os n.os 1, 2, 3 e 7 do artigo 18.º e os artigos 20.º, 22.º e 24.º, e n.o 1 do artigo 32.º da Lei n.º 44/99, de 22 de Junho, diploma que correspondia ao

(37) Ou seja, a ↔ Op1 ou se se quiser a ↔ Op2.

anterior Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública, entretanto revogado pela Lei n.º 2/2004, de 15 de Janeiro, na versão da Lei n.º 128/2015, de 3 de Setembro, não totalmente coincidente com o regime regional, previsto no Decreto Legislativo Regional n.º 2/2005/A, de 29 de Maio, na versão do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, de 29 de Dezembro – Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional.

(b) USI de São Jorge: o artigo 30.º, n.º 1, sob a epígrafe «pessoal dirigente», refere que “os cargos de presidente e vogais do conselho de administração, administrador-delegado e titulares dos órgãos de direcção técnica regem-se pelas disposições constantes do regime legal respectivo, exceptuadas as matérias expressamente reguladas no presente diploma”.

(c) USI das Flores: não existe qualquer preceito no diploma, nem sequer por remissão, referente ao estatuto aplicável aos elementos que compõem o conselho de administração. O anexo indicado no final do diploma prevê o «pessoal dirigente», mas para efeitos remuneratórios, com remissão expressa para despacho “…dos membros do Governo com competência em matéria de finanças e de saúde”.

(d) USI do Corvo: o mesmo referido em (c).(e) USI da Graciosa: idem.(f) USI do Faial: idem.(g) USI Santa Maria: idem.(h) USI de São Miguel: idem.(i) USI da Terceira: idem.

Os diplomas orgânicos das USI não optam expressamente por um específico estatuto aplicável aos elementos do órgão máximo de gestão, a não ser por remissões vagas e indeterminadas, e por isso supérfluas, como sucede no caso da orgânica da

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USI de São Jorge. O que poderia levar o intérprete a concluir por uma lacuna legal, carente de integração – que na realidade não existe, conforme mencionaremos adiante.

Aparentemente, e só aparentemente, a orgânica da USI do Pico parece optar pelo Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública. Tal opção não é, porém, decisiva, porquanto é efectuada pontualmente e por remissão a normas, maxime quanto ao vínculo laboral, e não a um regime. Isto é, o regulamento da USI do Pico não remete para um estatuto próprio, mas para concretas normas do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública (38). Por outro lado, a orgânica da USI do Pico, de 2003, não só é anterior ao Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional de 2005, como é anterior ao próprio Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, de 2007. Permite, pois, duvidar da integral vigência do diploma orgânico, nomeadamente por uma potencial revogação implícita, superveniente e parcial, das normas regulamentares desconformes com o Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais.

Tal não invalida, naturalmente, que se procure a melhor solução jurídica, recorrendo aos cânones e à metodologia da ciência jurídica. Se a opção se encontrasse expressa e taxativamente prevista nos diplomas orgânicos das USI, seria tentador defender que a disjunção constante na segunda parte do artigo 25.º, n.º 1 do RJIPR teria natureza exclusiva ou forte, isto é, revelaria uma opção excludente por parte do Governo Regional, enquanto órgão máximo da Administração Pública, aplicando aos elementos do conselho de administração das USI um determinado estatuto em detrimento do outro, mas não ambos. A

(38) Os n.os 1, 2, 3 e 7 do artigo 18.º da Lei n.º 44/99, diziam respeito às condições para o provimento do cargo; o artigo 20.º, à cessação da comissão de serviço; o artigo 22.º, ao regime de exclusividade; o artigo 24.º, à isenção de horário;  e o n.º 1 do artigo 32.º, ao tempo de serviço a contabilizar na carreira.

remissão legal constante no RJIPR deixa margem de manobra ao Governo Regional para através de regulamento administrativo de execução (orgânica da USI) optar de modo exclusivo por um ou por outro estatuto.

Mas se é verdade que a lei permite a escolha por parte do Governo Regional, também não impede a opção pela aplicação de um estatuto misto, ou seja, normas regulamentadoras que apliquem simultaneamente o Estatuto do Gestor Público e o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional. Uma coisa é o Governo Regional exercer a opção inclusiva ou exclusiva dos estatutos previstos na lei regional; outra coisa é a própria lei regional optar pela existência de dois estatutos funcionais relativamente aos quais é concedido ao Governo Regional a hipótese de escolha. Dito de outro modo, a lei regional prevê a existência de dois estatutos potencialmente aplicáveis aos elementos dos conselhos de administração das USI, o que não se confunde com o exercício da opção por parte do Governo Regional, na qualidade de órgão máximo da Administração Pública Regional.

Pelo que, na verdade, o conector disjuntivo da segunda parte do artigo 25.º, n.º 1 do RJIPR assenta numa disjuntiva inclusiva ou fraca, permitindo ao Governo Regional, em sede de Decreto Regulamentar Regional, optar por um ou por outro estatuto, ou até por ambos. Não se trata, na verdade, de uma permissão, mas da obrigatoriedade de aplicação de um ou dos dois regimes estatutários, cuja opção cabe ao Governo Regional.

Ponderando todas as normas convergentes potencialmente aplicáveis neste âmbito (39), se se analisar o quadro normativo das orgânicas das USI chegamos à conclusão de que, summo rigore, os regulamentos orgânicos patenteiam uma opção,

(39) A saber, o Estatuto do Serviço Regional de Saúde, os diplomas orgânicos das USI, o Regime Jurídico dos Institutos Públicos Regionais, o Estatuto do Gestor Público Regional, o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública, o Regime Jurídico do Sector Empresarial do Estado; ou o Regime Jurídico da Administração Directa da Região Autónoma dos Açores.

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não tanto expressa, quanto implícita; não tanto por um determinado estatuto em detrimento de outro, quanto pela aplicação mista (inclusiva) de ambos; não tanto através de norma concludente ou peremptória, quanto por inferência de toda a disciplina regulamentar aplicável, materializando, justamente, a especialidade de regime, tal como referido no artigo 48.º, n.º 1, alínea a) do RJIPR. Não haverá, pois, qualquer lacuna legal nos diplomas orgânicos das USI no que respeita ao estatuto a aplicar aos membros dos conselhos de administração das USI, mas a fixação de um regime misto decorrente das normas regulamentares e legais aplicáveis.

5. O SISTEMA MISTO DO ESTATUTO DOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS USI

Os indícios que a análise conjunta dos diplomas orgânicos das USI parece induzir subscrevem a nossa tese da aplicação mista do Estatuto do Gestor Público e do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional aos membros dos respetivos conselhos de administração.

Quanto às normas regulamentares que ostentam critérios de pertença ao Estatuto do Gestor Público Regional, em confronto com as normas regulamentares que indiciam a aplicação do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional (40), podemos identificar as seguintes situações:

(a) Nas USI não há, na realidade, um conselho directivo, mas um conselho de administração, nem vogais de direcção, mas vogais do

(40) As normas do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública aplicáveis no continente português aplicam-se na Região Autónoma dos Açores em tudo o que não foi alterado pelo Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional – artigo 1.º do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2005/A, de 19 de Maio, na versão promovida pelo Decreto Legislativo Regional n.º 34/2010/A, de 29 de Dezembro. Identificaremos quer um, quer outro, consoante seja aposto o termo «regional» ou não.

conselho de administração (41), o que vai ao encontro do previsto no artigo 1.º do Estatuto do Gestor Público Regional versus artigo 2.º, n.º 1, do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional.

(b) Prevê-se a figura de vogais do conselho de administração com funções executivas, a par de vogais com funções não executivas, ora em simultâneo, ora em singelo (42), à semelhança da dicotomia prevista nos artigos 17.º e 18.º Estatuto do Gestor Público Regional.

(c) A remuneração dos elementos do conselho de administração, presidente e vogais, é fixada por despacho dos membros do Governo Regional com competências nas áreas das finanças e da saúde (43), indo ao encontro do artigo 25.º, n.º 2 do Estatuto do Gestor Público Regional, quando comparado com o fixado nos artigos 25.º, n.º 4 do RJIPR e 31.º do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública, por força do artigo 1.º do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional. Ou seja, a remuneração não é atribuída por indexação a um nível remuneratório fixado por lei, mas determinada por despacho governamental.

Já as normas regulamentares das USI que indiciam normas de pertença ao Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional respeitam às seguintes situações:

(a) Previsão expressa, para todas as USI, de um conselho consultivo, na esteira do fixado no artigo 29.º do RJIPR.

(41) Cfr. artigos 9.º e 12.º da orgânica da USI de Santa Maria; 9.º e 11.º da orgânica da USI Terceira; artigo 9.º, n.º 2 e 11.º da orgânica da USI do Corvo; artigo 9.º e 11.º da orgânica da USI de São Miguel; artigo 7.º, n.º 1 e artigo 10.º da orgânica da USI de São Jorge; artigo 9.º e 11.º da orgânica da USI da Graciosa; artigos 9.º e 11.º da orgânica da USI do Faial; artigo 7.º, n.º 1 e 10.º da orgânica da USI do Pico; artigo 9.º, n.º 1 e 11.º da orgânica da USI das Flores. (42)Cf. artigos 11.º da orgânica da USI das Flores; da orgânica da USI do Corvo; e da orgânica da USI de São Miguel.(43) Cfr. artigos 10.º, n.º 2 e 11.º, n.º 2 das orgânicas das USI de Santa Maria, Terceira, Corvo, Graciosa e Faial e os artigos 10.º, n.º 2 e 11.º, n.º 3 das orgânicas das USI de São Miguel e das Flores.

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(b) As atribuições das USI não têm, por natureza, qualquer escopo lucrativo ou empresarial. São estruturas de “…planeamento, coordenação e prestação de cuidados integrados de saúde, assumindo a natureza de sistema local de saúde” (artigo 6.º, n.º 1 do Estatuto do Serviço Regional de Saúde).

(c) As USI, enquanto institutos públicos regionais de regime especial, são parte integrante do Sector Público Administrativo e não do Sector Público Empresarial da Região, conforme decorre, inter alia, do artigo 3.º do Decreto Legislativo Regional n.º 7/2008/A, de 24 de Março, na versão do Decreto Legislativo Regional n.º 2/2014/A, de 29 de Janeiro (Sector Público Empresarial da Região Autónoma dos Açores).

(d) A estrutura colegial do órgão de administração das USI é compatível e conforme as normas do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Regional (artigo 2.º, n.º 1 do referido Estatuto).

(e) Os anexos constantes nas orgânicas das USI, referentes ao quadro de pessoal dirigente, têm como epígrafe, precisamente, «pessoal dirigente» e nalguns casos «pessoal dirigente e de chefia», o que constitui um indício, ainda que meramente nominal, da proximidade ao Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública em detrimento do Estatuto do Gestor Público, por regra aplicável às entidades do Sector Público Empresarial cujos elementos dos órgãos máximos são, por norma, designados por “gestores” ou “administradores” (previstos enquanto cargos dos órgãos sociais e não integrados num quadro de pessoal).

Em suma, à questão inicialmente colocada, isto é, se aos elementos dos conselhos de administração das USI se deve aplicar ou Estatuto do Gestor Público ou o do Pessoal Dirigente da

Administração Pública Regional, não deve haver uma resposta binária, dual ou exclusiva, de tudo ou nada. Não se trata de um tertium non datur ou terceiro excluído, no sentido de se aplicar ou um ou outro estatuto. Nem sequer deve ser respondida num bloco unitário. A resposta, a nosso ver, deve ser efectuada em função da questão concreta que se quer ver respondida e a respectiva solução jurídica normativamente fixada, cabendo ao intérprete socorrer-se de critérios de pertença das normas regulamentares em face dos regimes estatutários em jogo (44).

Por exemplo, no que concerne aos deveres especiais dos elementos do conselho de administração das USI, aplicam-se, sobretudo, os princípios gerais de ética e de gestão dos dirigentes da administração pública regional (artigos 4.º e 5.º do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública). O Estatuto do Gestor Público mostra-se irrelevante na determinação de deveres funcionais especiais no caso de eventual responsabilidade disciplinar, tão só por não se aplicar a estes cargos.

Já no que concerne, por exemplo, à remuneração dos elementos do conselho de administração das USI, nomeadamente quanto aos critérios para a sua atribuição, aplicam-se as normas previstas no Estatuto do Gestor Público, as quais não prevêem um valor legalmente indexado, podendo variar consoante os objectivos contratados ou as maiores ou menores exigências gestionárias da USI concretamente considerada.

Ainda assim, apesar da natureza mista do estatuto aplicável aos elementos do conselho de administração das USI, em face da natureza jurídica dessas específicas unidades de saúde, pertencentes ao Sector Público Administrativo, e do tipo de conteúdo funcional, quer do órgão, quer dos elementos do órgão, o estatuto jurídico preponderante será o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração

(44) Sobre o critério da norma de pertença, cfr. Pedro Moniz Lopes, ob. cit., pp. 103 e ss.

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O ESTATUTO APLICÁVEL AOS ELEMENTOS DOS CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO DAS UNIDADES DE SAÚDE DE ILHA DO SERVIÇO REGIONAL DE SAÚDE DOS AÇORES

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Pública. Segundo um critério de pertença, escorado no exercício da função administrativa, quer das USI, quer no que respeita às funções e competências exercidas pelos conselhos de administração das USI, as normas de conduta previstas no Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública são as que estão mais próximas dessa natureza, e por isso devem ser as prevalecentes no estatuto misto dos elementos do conselho de administração das USI.

Em caso de dúvida quanto ao estatuto aplicável, deve pois prevalecer o regime jurídico dominante relativamente às normas regulamentares aplicáveis – a saber, o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública. Neste caso, deve recorrer-se à teoria da absorção, sem embargo das devidas adaptações nos casos especialmente regulamentados, aos quais deve ser aplicada a teoria da combinação entre os diferentes estatutos, desde que compatíveis (45).

A aplicação de um regime misto ao estatuto dos membros dos conselhos de administração das USI mostra-se compatível e conforme com as normas legais e regulamentares, não beliscando, por conseguinte, o princípio da legalidade ou da juridicidade. Pelo contrário, vai ao encontro da especialidade do regime dos estabelecimentos de saúde, tal como prevista no artigo 49.º, n.º 1, alínea a) do RJIPR.6. CONCLUSÃO

As USI são estruturas orgânicas relativamente

(45) Atendendo à identidade estrutural da matéria em apreciação, consideramos útil recorrer à metodologia do direito dos contratos atinente à regulamentação dos contratos mistos. Segundo a teoria da absorção, deve individualizar-se no contrato misto a parte preponderante e enquadrá-la no tipo contratual a que fundamentalmente pertence, com excepção das modalidades diferenciais. Segundo a teoria da combinação, a regulamentação do contrato misto faz-se a partir da aplicação combinada das normas pertencentes aos vários tipos contratuais que servem de inspiração. À semelhança de Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 474, “… nenhuma das teorias no seu extremismo está dentro da verdade. Em certos casos deve aplicar-se a teoria da absorção, noutros a teoria da combinação.” Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, pp. 230 e ss. refere ainda a teoria da analogia e a teoria da criação, a primeira correspondente “…à transição do exercício conceptual para o exercício tipológico no direito dos contratos”; a segunda aplicável “quando falta um tipo de referência, quando a analogia não seja possível, [sendo] necessário recorrer à criação de uma solução concreta, através de interpretação complementadora…”.

recentes na Administração Pública da Região Autónoma dos Açores e no Serviço Regional de Saúde. O processo da sua criação e instalação culminou em 2011, ou seja, há apenas 5 anos.

Estas novas estruturas orgânicas têm a natureza jurídica de institutos públicos regionais de regime especial. No que concerne à determinação do estatuto a que estão adstritos os elementos dos conselhos de administração das USI, não existe uma norma expressa ou uma resposta clara e isenta de dúvidas, o que não impede, naturalmente, a procura de uma solução jurídica compatível e conforme com o regime jurídico aplicável.

Partindo do quadro legal e das normas legais e regulamentares aplicáveis às USI, defendemos que os elementos dos conselhos de administração das USI estão submetidos a um estatuto misto, aplicando-se o Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública e o Estatuto do Gestor Público da Região Autónoma dos Açores.

Em caso de dúvida, o regime jurídico preponderante deve ser o do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública, absorvendo as regras do Estatuto do Gestor Público. No caso de existirem normas regulamentares cujo critério de pertença as aproxime das normas do Estatuto do Gestor Público, devem estas ser combinadas com as do regime do Estatuto do Pessoal Dirigente da Administração Pública Regional.

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ALGUNS ASPETOS SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS PÚBLICOS NA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES Some aspects about the Legal Regime of the Public Procurement in the Autonomic Region of Azores

João Barbosa Macedo (*)

ResumoO presente artigo tem por objeto uma pequena reflexão sobre o recente Regime Jurídico dos Con-

tratos Públicos na Região Autónoma dos Açores, procurando contribuir com algumas observações e com uma visão prática para a comunidade que terá que lidar com esse diploma no dia-a-dia pro-fissional. Face à natureza do presente texto, procurar-se-á uma visão geral das principais soluções inovadoras do diploma relativas à tramitação pré-contratual. Não pretendemos debruçar-nos de forma aprofundada sobre cada uma das inovações do novo regime, nem sobre as restantes soluções, genericamente já previstas pelo regime anterior.

AbstractThis paper is a small reflection about the recent legal regime of public procurement in the Autonom-

ic Region of Azores. We try to contribute with some observations, in a practical point of view, for the professional community that have to deal with this legal regime in a daily base. Given the nature of this paper, we will seek some of the main innovations in the pre-contractual procedure. We do not pretend to go further, deepening the analysis of each innovation, or including the analysis of other solutions already given in the previous regional legal regime.

Palavras-chave: contratação pública; direito regional; procedimento pré contratual.

Keywords: public procurement; regional law; pre-contractual procedure.

Sumário 1. Introdução; 2. Âmbito de aplicação; 3. Procedimentos e valor do contrato; 4. Divisão em lotes; 5. Anúncios e prazos; 6. Impedimentos; 7. Plataformas eletrónicas; 8. Cadernos de encargos relativo a empreitadas de obras públicas; 9. Habilitação; 10.Celebração de contrato; 11. Outros aspetos especí-ficos relativos às peças do procedimento; 12. Conclusão.

(*) Advogado. Vogal do conselho de administração da SAUDAÇOR, S.A. – Sociedade Gestora de Recursos e Equipamentos da Saúde.

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1. Introdução (1)

Não é novidade a existência de legislação especial na Região relativamente ao regime nacional dos contratos públicos. Logo quando foi aprovado o Código dos Contratos Públicos (doravante CCP) (2) o legislador regional sentiu a necessidade de apro-var legislação especial, no exercício dos poderes de conformação e do primado do direito regional, para de algum modo mitigar as soluções nacionais e adaptá-las à realidade específica dos Açores (3), sobretudo as que “caracterizam um mercado onde a concorrência entre agentes económicos está mui-to condicionada a questões de escala e de organiza-ção empresarial de média ou reduzida dimensão, mas cuja participação na atividade económica tem maior expressão socioeconómica do que um olhar menos atento pode olvidar”, conforme consta do preâmbulo do diploma.

No entanto, apesar de alguma latitude das insti-tuições nacionais e regionais na conformação do regime da contratação pública, existe uma matriz base comum que é determinada a nível suprana-cional, designadamente no que respeita às Direti-vas Comunitárias (4). A “geração” de Diretivas que moldou o regime que, desde 2008, tem regido esta matéria é composta, designadamente, pela Diretiva 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conse-lho, de 31 de março de 2004 (relativa à coordena-ção dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públi-cos de fornecimento e dos contratos públicos de

(1) O presente artigo responde ao desafio lançado pela Inspeção Regional de Saúde dos Açores para participar nos Cadernos da IReS e que desde logo aceitámos. Honrados pelo convite e por participar nesta fértil iniciativa, fazemos votos para que a publicação perdure e se assuma com os pergaminhos de referência regional.(2) Decreto-Lei n.º 18/2008 de 29 de janeiro.(3) A adaptação foi efetuada através do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/A de 28 de julho, alterado pelo Decreto Legislativo Regional Nº 15/2009/A, de 6 de agosto. Também a Região Autónoma da Madeira utilizou essa faculdade através do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/M de 14 de agosto.(4) Ver sobre esta temática Maria João Estorninho, Direito Europeu dos Contratos Públicos, Almedina, 2006.

serviço). Essa Diretiva foi a base do atual regime, uma vez que a sua transposição para o ordenamen-to interno consubstanciou uma profunda alteração nas regras aplicáveis à contratação pública e serviu de matriz à atual legislação nacional (CCP), mas também à legislação regional. Acontece que a Di-retiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos públicos, revogou a Diretiva 2004/18/CE e veio oferecer novas respostas e criar novas solu-ções (5) que implicarão uma revisão dos atuais orde-namentos nacionais dentro dos prazos de transpo-sição definidos (6).

Foi neste contexto que o legislador regional apro-vou o Regime Jurídico dos Contratos Públicos na Região Autónoma dos Açores (7) que procura trans-por para o ordenamento regional a nova Diretiva, conjugando esse desígnio com a adaptação das so-luções da mesma à realidade específica regional, à semelhança do que já acontecia com a legislação regional anterior, e ainda com a consolidação de alguma legislação regional dispersa sobre esta ma-téria (8).

Em comparação com a opção anterior, através da qual a Região aprovou regras especiais da con-tratação pública na Região Autónoma dos Açores, o Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A, de 29 de dezembro, aprovou o regime jurídico dos contra-tos públicos na Região Autónoma dos Açores (do-ravante RJCPRAA), numa transparente intenção de proceder a uma regulamentação mais robusta

(5) Ver Miguel Assis Raimundo, «Primeira Análise das Novas Diretivas (parte i)», in Revista dos Contratos Públicos, n.º 9, 2013.(6) Esta nova geração de Diretivas é completada pela Diretiva 2014/23/EU (relativa à adjudicação de contratos de concessão) e pela Diretiva2014/25/EU (relativa aos contratos públicos celebrados pelas entidades que operam nos setores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais e que revoga a Diretiva2004/17/CE), ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia (JOUE), de 28 de março de 2014.(7) Aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A de 29 de janeiro. (8) O que acontecia designadamente no Decreto Legislativo Regional n.º 14/2009/A, de 29 de julho, que aprovou o regime excecional de liberação da caução nos contratos de obras públicas e com normas constantes dos diplomas que aprovam os Orçamentos Regionais.

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e extensa, quase como criando um “mini” código dos contratos públicos para a Região (9). Dada a sua jovialidade, e atentas as soluções inovadoras que contém, compreende-se não existir ainda um acer-vo jurisprudencial ou doutrinal sobre este novo re-gime jurídico (10).

A opção do legislador regional de transposição da nova Diretiva é de salientar, uma vez que a mesma possui soluções interessantes, que se podem revelar de grande utilidade para as entidades adjudicantes regionais e que acabaram por ser previstas no atual regime. Por outro lado, é igualmente de referir que o legislador regional andou à frente do legislador nacional, que ainda não efetuou a transposição desta nova Diretiva, mantendo-se em vigor o De-creto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro. Apesar des-te ponto ser de sublinhar, pela iniciativa demons-trada, a opção poderá revelar algumas dificuldades futuras, na medida em que apesar de extensa regu-lamentação regional o diploma não dispensa nem se substitui ao CCP, o qual continua a aplicar-se em muitas matérias, existindo inclusivamente normas que remetem expressamente para artigos específi-cos do CCP. Esta necessidade de coerência entre os dois diplomas poderá originar dificuldades práti-cas e até a necessidade de alteração da legislação regional quando o CCP vier a ser revisto para aco-modar a transposição das novas diretivas. Desco-nhecendo-se, nesta fase, em que moldes isso será feito, poderão existir adaptações meramente siste-máticas (se as opções fundamentais não diferirem muito das regionais), ou necessidades de compa-tibilização mais profundas (em caso de existirem matérias com soluções estruturantes díspares) (11).(9) Veja-se que enquanto o Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/A de 28 de julho possuía 41 artigos, o Decreto Legislativo Regional n.º 27/2015/A de 29 de janeiro possui 104 artigos. (10) Veja-se, no entanto, AA. VV., Comentário ao Regime Jurídico dos Contratos Públicos da Região Autónoma dos Açores, (coord.) Paulo Linhares Dias, Pedro Melo, Almedina, 2016. (11) Entre a data de escrita deste artigo e a data da sua publicação foi posto a consulta pública o anteprojeto de revisão do Código dos Contratos Públicos, com previsão de entrada em vigor em janeiro de 2017. Não existindo tempo para uma revisão e comparação de regimes, o que apenas poderia ser feito noutro texto autónomo, diga-se apenas que nos parece que as soluções

De todo o modo, procurar-se-á uma análise aos pontos que nos parecem mais relevantes do novo diploma, pela sua importância prática ou novidade.

2. Âmbito de aplicação

Antes de entrarmos na análise propriamente dita do âmbito de aplicação do diploma, importa reter a referência aos princípios de contratação pública (artigo 4º), uma vez que o legislador os inseriu sis-tematicamente na parte I respeitante, precisamen-te, ao âmbito de aplicação (12).

A relevância dos princípios da contratação públi-ca é imensa, e está longe de ser uma questão mera-mente teórica, uma vez que a forma como interpre-tamos as normas legais em conformidade com os princípios base da contratação pública pode fazer a diferença entre conseguirmos, ou não, conduzir um procedimento pré-contratual a bom porto.

No regime anterior, a legislação regional não fazia especial referência a estes princípios, reme-tendo-os para o CCP que os regulava no n.º 4 do artigo 1º, identificando apenas de forma expressa os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência (13).  O RJCPRAA alarga o leque dos princípios expressamente aplicáveis determinando que as entidades adjudicante regionais garantem o respeito pelos princípios gerais da garantia da le-galidade administrativa e pelos princípios funda-mentais da contratação pública, nomeadamente os decorrentes do Código do Procedimento Adminis-trativo (CPA) e dos tratados da União Europeia, em especial, pelos princípios da transparência, da

previstas, se se vierem a confirmar na versão final, deverão implicar uma revisão da legislação regional.(12) Pensamos que em termos de sistematização talvez tivesse sido preferível colocar a referência aos princípios de contratação pública logo no início do diploma, em artigo autónomo ou no seu atual artigo 1º, ao invés da sua colocação sistemática entre os artigos específicos do âmbito de aplicação respeitantes às entidades adjudicantes e contraentes públicos (âmbito de aplicação subjetivo) e dos contratos e contratação excluída (âmbito de aplicação objetivo). (13) O que não significa que não se aplicavam os restantes princípios gerais da atividade administrativa.

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igualdade de tratamento, da proporcionalidade e da concorrência, da não discriminação, da impar-cialidade, da boa fé e da tutela da confiança.

A análise desta norma e dos princípios aí pre-vistos, bem como das potenciais implicações nas diversas fases da contratação pública, daria lugar a uma exposição mais extensa, inadequada ao pre-sente texto, justificando um estudo autónomo. De todo o modo, sempre se dirá que a observância e cumprimento da ratio inerente aos princípios da contratação pública tem uma implicação prática muito grande, na medida em que a generalida-de das impugnações e reclamações em concursos públicos decorrem da divergente interpretação da aplicação de determinada norma em face do cum-primento ou não dos referidos princípios. Na ver-dade, como sabemos, o direito não é matemática e, salvo as raras vezes em que existe uma violação direta de uma norma clara e imperativa (como é o caso p.ex. de preterição de uma fase processual es-sencial e legalmente prevista ou a não observância de um prazo mínimo obrigatório), o juízo de lega-lidade efetuado centra-se em saber se a aplicação em concreto observou os princípios gerais referi-dos. Por essa razão, o intérprete terá de ter sempre em conta nas decisões que toma as diretrizes gerais por eles emitidas.

É de salientar ainda a preocupação com a previsão expressa da invalidade dos atos que resultem de ati-vidades das entidades adjudicantes regionais que visem subtrair-se à aplicação das regras do diplo-ma (n.º 2 do artigo 4º). Esta norma, apesar de em rigor nos parecer resultar das regras gerais aplicá-veis, acaba por ser importante na medida em que o legislador sentiu a necessidade de reforçar a sanção de invalidade deste tipo de atos (14). Destaca-se ain-da a existência de duas injunções legais às entida-des adjudicantes regionais para que zelem, por um

(14) Torna-se ainda mais relevante, portanto, para as entidades adjudicantes regionais terem em atenção as normas agora previstas, além das já existentes que visam p.ex. a proibição do fracionamento da despesa, a serem conjugadas com as regras de determinação do valor do contrato, como veremos infra.

lado, pelo respeito de normas aplicáveis em maté-ria ambiental, social e laboral, e, por outro lado, da garantia da inexistência de conflitos de interesses, previstas respetivamente nos n.ºs 3 e 4 do artigo 4º.

No que respeita já especificamente ao âmbito de aplicação do diploma existem alguns aspetos que são semelhantes ao regime anterior, no entanto, existem também algumas novidades que vale a pena salientar.

Quanto ao objeto e âmbito objetivo o RJCPRAA mantém a tendência anterior e regula simultanea-mente aspetos pré-contratuais (contratação públi-ca) e aspetos de execução dos contratos que revis-tam natureza de contrato administrativo (regime substantivo). O regime pré-contratual é aplicável, à semelhança do anterior, aos contratos que sejam celebrados pelas entidades adjudicantes regionais (15) independentemente da sua designação ou natu-reza, e o regime substantivo dos contratos adminis-trativos, respeitante à fase de execução dos contra-tos, é aplicável aos contraentes públicos regionais (16) (artigo 1º n.º 1).

Focando a nossa análise na vertente pré-contra-tual, verifica-se que, no que respeita às entidades adjudicantes regionais, não existem diferenças sig-nificativas entre o regime atual (artigo 2º) e o regi-me do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/A de 28 de julho (também no artigo 2º).

No que respeita, porém, aos contratos e contrata-ção excluída existem alguns aspetos de importante relevância prática e inovadores relativamente ao regime anterior.(15) É assim a natureza da entidade contratante que define a sujeição ao regime especial da Região Autónoma dos Açores, sendo que as entidades adjudicantes reginais são as previstas no artigo 2º. (16) Contraentes públicos regionais são os previstos no n.º 2 do artigo 3º. A lei adota, à semelhança do que já acontecia, diferentes noções para as entidades públicas (utilizado neste contexto de forma lata) a quem se aplica, referindo-se a entidades adjudicantes no que respeita à parte pré-contratual, e a de contraentes públicos para se referir à parte referente à execução dos contratos (sendo que a opção do legislador foi de regular também a fase substantiva de execução do contrato, apesar da mesma não ser objeto das Diretivas Comunitárias o que, apesar disso, se saúda). As duas vertentes do regime não coincidem exatamente no seu âmbito de aplicação. Veja-se sobre a matéria, inter alia, Mário Aroso de Almeida, «Contratos administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código dos Contratos Públicos», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º66, Setembro/Outubro, 2007.

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O RJCPRAA mantém a existência de dois tipos de isenções na aplicação das suas regras: a não apli-cação total do regime do Código, quer na parte pré-contratual quer na parte de execução dos contratos (artigo 5º), e a não aplicação apenas da parte II, respeitante aos procedimentos pré-contratuais (ar-tigos 6º e 7º). Os contratos totalmente excluídos da aplicação do diploma são os que, genericamente, já estavam isentos no regime anterior, designadamen-te contratos que, com incidência específica sobre o território da Região, sejam celebrados ao abrigo de tratados ou convenções internacionais (alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 5º), contratos de trabalho em funções públicas e contratos individuais de traba-lho, contratos de doação de bens móveis a favor de quaisquer entidades adjudicantes regionais ou con-tratos referentes a bens imóveis e a conteúdos au-diovisuais e de radiodifusão (alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 5º), tudo aspetos de redação semelhante ao CCP.

Existem algumas novidades como a exclusão relativa a serviços de arbitragem e conciliação, prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 5º (17), ou a alínea f) do n.º 2 do artigo 5º que trouxe uma al-teração relevante (18) que se prende com a exclusão de contratos de serviços jurídicos (representação em processos judiciais, arbitrais ou administrati-vos, aconselhamento jurídico quando efetuada em preparação dos referidos processos, certificação e autenticação de documentos, serviços prestados por administradores ou tutores ou em exercício de funções semelhantes por nomeação dos tribunais, e outros serviço jurídicos ligados ao exercício de

(17) Existindo, no entanto, uma novidade de redação pois é especificado que inclui serviços prestados por um técnico da área de engenharia a ser escolhido pelo dono de obra no âmbito da arbitragem. Temos bastantes reservas quanto a esta redação pois, em primeiro lugar, parece-nos desnecessária e redundante por já estar abrangida pela exceção geral da primeira parte da alínea. E depois porque especifica apenas a categoria de engenheiros, podendo existir diversas profissões e categorias profissionais na área da arbitragem e cuja inclusão poderá levantar dúvidas em face desta especificação. Além disso, também nos parece confusa a referência a «um técnico da área de engenharia». Apenas está excluído se for um único técnico? Não poderá o dono de obra indicar mais que um árbitro? Pensamos que a redação poderia ser melhorada neste ponto.(18) No seguimento aliás, da Diretiva.

autoridade pública). Esta exclusão é bastante im-portante na vida prática das entidades públicas, e tem por base o carácter específico desta atividade e a especial relação de confiança que se cria e que está na base da relação de mandato jurídico (19).

Foi igualmente acrescentada uma exclusão rela-tiva a contratos que tenham por objeto serviços de defesa civil e prevenção de riscos, desde que presta-dos por entidades sem fins lucrativos (alínea g) do n.º 2 do artigo 5º). Esta exclusão, se preenchido o pressuposto referido, é aplicável no domínio dos serviços de incêndios (20), de prevenção de incên-dios, de luta contra incêndios florestais, serviços de socorro, serviços relacionados com defesa civil e com segurança nuclear.

Outra nova causa de exclusão é a que abrange serviços relacionados com campanhas políticas (21) (alínea g) do n.º 2 do artigo 5º), mas quando ad-judicadas por um partido político no contexto de uma campanha eleitoral, nos domínios de campa-nhas publicitárias, produção de filmes de propa-ganda e produção de videocassetes de propaganda.

Importante exclusão, no âmbito das instituições de saúde, é a prevista no n.º 3 do artigo 5º que dispensa a aplicação do CCP aos contratos de servi-ços de ambulâncias e de transporte de doentes, cujo valor seja inferior ao previsto na alínea c) do artigo 4.º da Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Euro-peu e do Conselho, de 26 de fevereiro (22). Este tipo (19) Já no regime anterior a especial relação de patrocínio jurídico motivava que se utilizasse um regime especial que possibilitava a não submissão plena à concorrência através da utilização do critério material do ajuste direto, previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 27º do CCP, o que não era sempre bem aceite pelo Tribunal de Contas (v.g. Acórdão n.º 15/2013 - 15.mai. - 1ª S/SS, Processo n.º 217/2013). Sobre a temática João Amaral e Almeida/Pedro Fernández Sánchez, «A contratação pública de serviços de assessoria jurídica»  in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, II, Coimbra, 2010, págs. 373 (20) Apesar de não ser muito claro o âmbito destas isenções. A lei isenta na subalínea i) «serviços de incêndios», traduzindo uma margem muito grande do que pode ser conexo com esta matéria, na medida em que nas subalíneas seguintes especifica ainda a prevenção de incêndios, a luta contra incêndios florestais, o que significa que estas matérias não estão abrangidas pela subalínea i). Ora a lei acaba por isentar a luta contra incêndios florestais, e já não a luta contra os outros tipos, e, ao invés, isenta já a prevenção de todos os tipos de incêndios e serviços conexos com todo o tipo de incêndios. De qualquer maneira a solução transpõe a própria Diretiva, pelo que acompanha o normativo europeu.,.(21) Exclusão também prevista na Diretiva.(22) Atualmente fixado nos €209.000.

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de contratos, muitas vezes assegurados por corpo-rações de bombeiros e instituições sem fins lucrati-vos, passam a poder ser livremente celebrados (23), desde que dentro dos limiares de valor referidos.

Relativamente às instituições de saúde, verifica-se que não existe agora norma semelhante à alínea f) do n.º 4 do artigo 5.º do CCP, que excluía do seu âmbito de aplicação contratos de aquisição de ser-viços que tenham por objeto os serviços de saúde e caracter social, bem como os contratos de aquisi-ção de serviços que tenham por objeto os serviços de educação e formação profissional (que confiram certificação escolar ou certificação profissional), previstos no anexo II-B da Diretiva 2004/18/CE. Assim, estes contratos deixam de estar isentos de cumprimento das regras de contratação.

Além da isenção de cumprimento total (parte pré-contratual e regime de execução dos contratos administrativos), continuam a existir situações em que não é aplicável (apenas) a parte II, relacionada com os procedimentos pré-contratuais, e que estão previstas nos artigos 6.º e 7.º. Continua a existir uma exclusão genérica relativa aos contratos cujo objeto não seja suscetível de estar submetido à con-corrência de mercado (n.º 1 do artigo 6º), destacan-do-se também a maior concretização do critério da contratação in house (24). Em termos genéricos, a contratação in house é aquela que é efetuada entre duas entidades adjudicantes que, apesar de distin-tas juridicamente, possuem entre elas uma especial relação que justifica a não aplicação das normais re-gras da concorrência, logo, não se torna necessária a aplicação das regras pré-contratuais. São basica-mente duas as condições para que se possa falar em contratação in house: o exercício de um controlo sobre a entidade análogo ao que se exerce sobre os seus próprios serviços; e que essa entidade desen-(23) Claro que cumprindo as demais regras legais que sejam aplicáveis em termos financeiros, de autorizações legais prévias etc…(24) Veja-se, exemplificativamente, sobre esta temática Bernardo Azevedo, «Contratação in house: entre a liberdade de auto-organização administrativa e a liberdade de mercado«, in Estudos de Contratação Pública – I, Ed. Coimbra Editora, 2008.

volva o essencial da sua atividade em benefício de uma ou várias entidades adjudicantes que exerçam sobre ela esse controlo. Este tipo de contratação, atendendo aos seus critérios subjetivos, deu azo a imensas posições e controvérsias, designadamente ao nível da interpretação (restritiva) que era aplica-da pelo Tribunal de Contas (25).

Com o presente diploma, e também no segui-mento do que são as soluções das novas Diretivas nesta matéria, existe uma maior concretização dos critérios de verificação desta exclusão. Nos termos do n.º 2 do artigo 6.º não é assim aplicável a parte II do CCP a contratos que sejam celebrados entre duas entidades adjudicantes regionais (requisito prévio constante no n.º 2), desde que cumulativa-mente a entidade adjudicante regional exerça sobre a atividade da outra um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços e desde que mais de 80% da atividade da entidade em causa seja realizada no desempenho de funções que lhe foram confiadas pelas entidades adjudicantes regionais que a controlam direta ou indiretamente (ou seja, por intermédio de outras entidades que estas con-trolam). Com o presente regime são definidos por lei determinados critérios que visam eliminar al-gumas das dúvidas e subjetividades anteriormente existentes na concretização da noções base ligadas à contratação in house, uma vez que, além da per-centagem da atividade a exercer a favor da entidade adjudicante, o RJCPRAA determina que o controlo análogo é exercido isoladamente quando é exercida influência decisiva sobre os objetivos estratégicos e as decisões relevantes da entidade controlada (n.º 4 do artigo 6.º), ou é exercido em conjunto quando os órgãos de decisão da entidade controlada sejam compostos por representantes de todas as entida-des adjudicantes regionais participadas e a enti-dade controlada não prossiga quaisquer interesses contrários aos interesses das entidades adjudican-

(25) Existem inúmeros Acórdãos do Tribunal de Contas sobre a matéria, inter alia, Ac.50/2011-1.ª S/SS, Ac.11/2012-1.ª S/PL ou Ac.14/2016-1.ª S/PL.

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tes regionais que a controlam (26). Reflexo também das razões inerentes à contrata-

ção in house, passam também a não estar sujeitos ao cumprimento das regras pré-contratuais os contra-tos de cooperação entre duas entidades adjudicantes regionais em determinadas condições (artigo 6.º n.º 6). Assim, quando estivermos perante (i) um con-trato entre duas entidades adjudicantes regionais e (ii) quando o contrato estabeleça ou execute uma cooperação entre as mesmas (iii) a fim de assegurar que o objeto do contrato que lhes cabe executar seja prestado com o propósito de alcançar os objetivos que têm em comum, (iv) se for unicamente regido por razões de interesse público e (v) se essas entida-des exercerem no mercado livre menos de 20% das atividades abrangidas pela cooperação, o contrato está isento de cumprimento das regras de contrata-ção pública. Esta exceção torna-se bastante impor-tante e útil na prática, pois permitirá resolver vá-rias situações em que, de facto, se procura celebrar acordos ou protocolos em áreas específicas de enti-dades ao abrigo de interesses claramente públicos, mas, como implicam despesas ou contrapartidas, colocam-se entraves na sua contratação (sobretu-do em caso de valores elevados que ultrapassem os limiares do ajuste direto). É claro que este regime terá de ser utilizado com o devido cuidado, pois poder-se-á cair na tentação de subtrair à contrata-ção pública contratos que apesar de terem o nomen iuris de «protocolo de cooperação», não são mais do que verdadeiros contratos de fornecimento de bens ou serviços (27). É portanto necessário verificar se, em concreto, as obrigações assumidas mutua-mente são para cumprimento dos objetivos que são comuns a ambas as entidades e que atuam apenas

(26) A lei acaba por verter muitos dos critérios já apontados pela doutrina e jurisprudência nacional e europeia na concretização das normas abertas do regime anterior.(27) Deve ter-se sempre em atenção que não é o título ou designação que determina a natureza jurídica de um ato, mas sim o conteúdo concreto das suas cláusulas e da natureza das obrigações das partes.

por motivos de interesse público (28) e também se as entidades participantes exercem menos de 20% das atividades abrangidas pela cooperação no mercado livre (devendo ser considerado para esse cálculo preferencialmente o volume médio total de negó-cios ou uma medida alternativa adequada baseada na atividade, designadamente nos custos suporta-dos pelas entidades em causa nos últimos três anos, conforme determina o n.º 7).

Mantêm-se também as cláusulas de exclusão ge-nericamente já existentes no CCP, agora previstas nas alíneas a) a f) do artigo 7.º, ligadas a aspetos como a existência de direitos exclusivos legalmente atribuídos, alienação ou locação de bens e serviços pelas próprias entidades adjudicantes, atribuição de subsídios e subvenções, contratos de sociedade, serviços financeiros ou empréstimos.

Refere-se igualmente que o diploma exclui a apli-cação aos setores especiais (água, energia, trans-portes, serviços postais, exploração de redes públi-cas de comunicações ou serviços de comunicações eletrónicas), remetendo para o CCP, que possui regras específicas. Existem, no entanto, algumas regras específicas, designadamente os artigos 10º a 13º, o que não deixa de causar alguma dificuldade prática e conceptual na interpretação da intenção do legislador.

Como já referido anteriormente, o RJCPRAA não prejudica a aplicação das normas do CCP, quer no que respeita à parte pré-contratual quer à parte da execução dos contratos, conforme resulta do n.º 3 do artigo 1º.

3. Procedimentos e valor do contrato

O RJCPRAA não traz grandes alterações no

(28) Por exemplo, não vemos que possa ser aplicado este regime a um protocolo de cooperação celebrado entre duas entidades públicas em que uma delas se compromete, mediante compensação monetária, a construir um anexo nas instalações da outra, se nenhuma delas se dedicar a um objeto ligado a obras públicas, na medida em que isso configura tipicamente um contrato de empreitada.

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que respeita aos tipos de procedimentos existen-tes, consagrando no artigo 14.º que as entidades adjudicantes regionais devem adotar um dos tipos de procedimentos previstos, que são o ajuste direto, o concurso público, o concurso limitado por pré-via qualificação, o procedimento de negociação e o diálogo concorrencial, conforme já previsto no CCP. O regime aplicável a esses procedimentos é igualmente o previsto no CCP, exceto quando o RJCPRAA determinar regra específica diferente (artigo 15.º n.º 1). A novidade é a criação de um novo procedimento designado por parcerias para a inovação, conforme determinado no n.º 2 do artigo 15.º e que tem um regime específico, ex-tensamente previsto no diploma. Compreende-se que assim seja, na medida em que pela inovação deste procedimento (apesar de previsto na Direti-va) não está ainda regulado no CCP. Num estudo sobre as soluções inovadoras do CCPRAA, não poderíamos deixar de falar no único procedimento de contratação novo consagrado e que não tem, ainda, paralelo a nível nacional. Este procedimento é utilizado quando se pretende admitir produtos ou serviços ainda não existentes no mercado. No en-tanto, não nos iremos debruçar em demasia sobre este novo procedimento, quer pela falta de tempo que o âmbito limitado do presente estudo permite, quer porque nos parece que terá pouca adesão prá-tica, um pouco à semelhança do processo de diálo-go concorrencial criado pelo CCP.

Salientam-se também as regras para escolha de procedimentos de formação de contratos de ser-viços sociais e outros serviços específicos, previstas no artigo 21º. Para contratos públicos de serviços sociais e outros serviços específicos enumerados no Anexo XIV da Diretiva 2014/24/EU, de 26 de fevereiro (29), mantém-se o regime de possibilidade de celebração de ajuste direto para contratos de va-

(29) Inclui serviços como os de saúde, serviços sociais e conexos, serviços administrativos na área social, educação, e cultura, segurança social e prestações sociais, hotelaria e restauração e outros que deverão ser consultados na lista da Diretiva.

lor inferior a €75.000. No entanto, a celebração de concurso e concurso público limitado por prévia qualificação sem publicação no JOUE é permitida para contratos com valor até €750.000, significan-do na prática um alargamento do regime geral com as reduções de prazos e exigências de publicação que isso implica.

Mantém-se a regra atualmente existente no CCP de que a escolha do tipo de procedimento condi-ciona o valor do contrato, o que significa que as en-tidades adjudicantes regionais devem ter em aten-ção o tipo de procedimento escolhido, pois a sua execução não poderá ultrapassar o valor máximo previsto para esse procedimento. Assim, se esco-lherem, por exemplo, o procedimento de ajuste di-reto ao abrigo do critério do valor para celebração de um contrato de prestação de serviços, esse con-trato não poderá ter um valor superior a €75.000, cumprindo reforçar que o valor do contrato não é necessariamente (apenas) o seu preço. Esta era já a regra existente desde o CCP.

Particular relevância face ao exposto assumem, portanto, os critérios para a determinação do valor do contrato (30). Também no seguimento do determi-nado no CCP, a lei regional determina que o valor do contrato a celebrar não é apenas o preço a pagar, mas sim o valor máximo do benefício económico que, em função do procedimento adotado possa ser obtido pelo adjudicatário com a execução de todas as prestações que constituem o seu objeto. Nos ter-mos do n.º 2 do artigo 17.º, o benefício económico inclui, além do preço a pagar, o valor de quaisquer contraprestações a efetuar a favor do adjudicatário e ainda o valor das vantagens que decorram direta-mente da execução do contrato ou emergentes do ciclo de vida do mesmo, desde que possam ser con-figuradas como contrapartidas das prestações que

(30) O CCP, e por inerência o regime aplicado na Região, utilizam diversas noções como o «valor do contrato», «preço base» e ainda o «preço contratual». Estes conceitos não são inócuos e a sua delimitação deve estar presente no dia-a-dia das entidades adjudicantes regionais. Sobre esses conceitos ver Jorge Andrade da Silva, «Código dos Contratos Públicos comentado e anotado», 2ª edição, 2009, Almedina, pág. 182-184.

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lhe incumbem. A norma é semelhante à anterior do CCP, pelo que deve ser considerado pelas entidades adjudicantes regionais no momento da escolha do procedimento. Reportando ao exemplo referido supra, se estivermos perante um contrato de aqui-sição de bens móveis em que o preço da aquisição é de € 70.000 que tem associado um valor de ma-nutenção de €6.000 ou a cedência a título definitivo ao adjudicatário em troca de bens móveis naquele valor, o valor do contrato é superior a € 75.000, não podendo ser adotado o ajuste direto geral (exceto se existirem motivos para utilização de critérios materiais independentemente do valor).

Tal como refere o n.º 2 do artigo 17.º, no cálculo do valor do contrato deve ser atendido o ciclo de vida do contrato, o que é um conceito novo deste diploma, previsto na Diretiva, e inexistente nesta data no CCP. A concretização e critérios de cál-culo do ciclo de vida são feitos no artigo 18.º, que determina que devem ser tidos em conta a parte ou totalidade dos custos relevantes integrados ao longo do ciclo de vida de um produto, serviço ou obra suportados pela entidade adjudicante regio-nal que respeitem a aquisição, utilização (como consumo de energia e outros recursos), manuten-ção e fim de vida (recolha e reciclagem), e ainda os custos relativos aos efeitos ambientais. Este cálculo é feito com base numa estimativa da entidade ad-judicante regional, e sempre que a mesma efetuar essa estimativa através de cálculos devem ser in-cluídos nas peças de procedimento os dados que os concorrentes devem apresentar para se fazer esse cálculo e a metodologia que a entidade adju-dicante regional utilizará para calcular os custos com base nesses dados, tal como previsto no n.º 2 do artigo 18.º. É necessário incluir essa exigência na lista de documentos a apresentar nas propostas dos concorrentes que devem ser compostas por um documento justificativo do cálculo dos custos do ciclo de vida do contrato (artigo 18.º n.º 4). As me-

todologias a utilizar no cálculo devem obedecer às regras previstas no n.º 3 do artigo 18.º, os critérios devem ser objetivos e verificáveis, não discrimina-tórios nem suscetíveis de fomentar o favorecimen-to ou desfavorecimento dos concorrentes (31), abso-lutamente acessíveis a todos os interessados (32). Os dados exigidos aos concorrentes nas suas propostas devem ser também acessíveis e de normal obtenção pelos concorrentes no âmbito da atividade econó-mica que desenvolvem.

Esta opção do legislador regional tem um poten-cial e uma intenção de louvar, na medida em que procura trazer alguma transparência à contratação, evitando que existam custos encapotados que dis-torçam as regras de escolha dos procedimentos e, consequentemente, o princípio da concorrência. No entanto, parece-nos que se terá ido longe de mais no conceito do ciclo de vida e sobretudo na abrangência objetiva e temporal atribuída, em face do excessivo ónus que impende sobre as entidades adjudicantes regionais e os próprios adjudicatários. Se existem custos fáceis de calcular e associados à aquisição, estes estariam em bom rigor já engloba-dos nos critérios de determinação do valor do con-trato existentes no CCP que obrigavam ao cálculo de todo o benefício económico possível, entenden-do-se aí englobadas as contraprestações e vanta-gens para o adjudicatário. Parece-nos de extrema complexidade técnica a determinação de aspetos como os custos ambientais ou os custos de utiliza-ção, e muitos desses custos podem até ser custos perante terceiros que não o adjudicatário (como o consumo de energia), não fazendo muito sentido que sejam considerados para o valor do contrato. Além disso, acaba por se transformar uma figura que a nível da Diretiva estava pensada para os crité-rios de adjudicação numa figura a considerar logo

(31) Não é mais que uma consequência do princípio da concorrência a que nos referimos supra.(32) Refletindo desta forma o princípio da transparência, significando que deverão ser previamente fixados e disponibilizados nas peças de procedimento.

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no início do procedimento, quando se deve avaliar e calcular o valor do contrato, e sempre que possam existir vantagens para o adjudicatário emergentes do ciclo de vida do contrato e que possam ser con-figuradas como contrapartidas das prestações que lhe incumbem, deve ser considerado na determi-nação desse valor, o que dificilmente é conciliável com os n.ºs 2 e 4 do artigo 18º, os quais exigem que os próprios concorrentes apresentem documentos justificativos do cálculo desses custos, feito numa fase posterior da tramitação depois de se escolher o procedimento adotado (33). Pensamos que a conse-quência prática desta norma será, em muitos casos, a impossibilidade das entidades adjudicantes cal-cularem de forma rigorosa o valor do contrato ou, a fazerem-no de forma defensiva, onerarem-no em demasia, remetendo procedimentos que poderiam ser tramitados de forma mais simples por ajuste direto ou concurso sem publicação no JOUE para maiores exigências pelo facto do procedimento escolhido limitar o valor do contrato. Isso poderá prejudicar as pequenas e médias empresas, contra-riando um pouco o desiderato do diploma, apesar da própria lei possuir salvaguardas de escape, na medida em que os critérios do n.º 3 incluem algu-mas cláusulas de razoabilidade nas exigências feitas às entidades adjudicantes regionais e aos próprios concorrentes, além de que apenas devem ser consi-derados os custos ambientais quando “seja possível realizar objetivamente a sua quantificação” (artigo 18.º n.º 1 alínea b) in fine).

De qualquer modo, face ao teor desta norma, doravante as entidades adjudicantes regionais te-rão que ter especial atenção na agregação de todos os potenciais custos que possam estar associados ao produto ou serviço durante um largo horizon-te temporal, correspondente à estimativa do ciclo de vida do produto ou serviço (34) e, se foram res-(33) Acompanhamos, portanto, as dúvidas manifestadas por AA. VV., Comentário ao Regime Jurídico dos Contratos Públicos da Região Autónoma dos Açores, cit., pág. 62 e segs.(34) Que poderá ser superior aos três anos, correspondente ao prazo limite em

peitantes a contrapartidas que possam ser afetas ao próprio adjudicatário, devem considerar toda essa agregação no momento de fixar o valor do contrato e escolher o procedimento de contratação a seguir.

4. Divisão em lotes

Outro aspeto de particular relevância no diplo-ma, pelas novidades que traz, é a regulação da di-visão dos contratos em lotes (artigo 24.º) que nos termos desse normativo passa a ser a regra para as entidades adjudicantes e não apenas uma faculda-de. Ou seja, quando um único objeto contratual for constituído por prestações do mesmo tipo, suscetí-veis de ser divididas em lotes (a que cada lote cor-responda um contrato separado), devem as entida-des adjudicantes obrigatoriamente proceder a essa divisão. Apenas não o devem efetuar através de decisão devidamente fundamentada (que deverá constar do procedimento) onde seja explicitado o motivo da opção de agregar os lotes e as mais-valias ou vantagens dessa opção para o interesse público. É, portanto, um ónus da entidade adjudicante re-gional justificar porque não desagregou o contra-to em lotes. Caso contrário, sempre que isso seja possível, está legalmente obrigada a fazê-lo (35). Esta medida é uma nítida tentativa de privilegiar as PME, permitindo que mais empresas tenham acesso aos procedimentos mesmo que não tenham recursos ou capacidade para executar os contratos na sua totalidade (somatório dos lotes).

No entanto, além da regra da divisão em lotes,

regra previsto no art. 440º do CCP.(35) Concordamos nesta matéria com o defendido por AA. VV. Comentário ao Regime Jurídico dos Contratos Públicos da Região Autónoma dos Açores, cit., pág. 75 e segs., no sentido em que a mais-valia para a entidade adjudicante não deverá ser um cálculo e requisito meramente económico, pois a própria existência da norma já desconsidera esse (único) interesse, em detrimento do princípio da maior concorrência e defesa das PME, ao obrigar à divisão em lotes. Deverá ser uma avaliação conjunta dos meios e condições de execução do contrato e do interesse público inerente à junção dos lotes no mesmo adjudicatário, por razões de praticabilidade e garantia de coerência da execução ou necessidade de coordenação de trabalhos ou até uma consideração económica, caso a desagregação torne desproporcionadamente mais oneroso o contrato para a entidade adjudicante regional.

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existem ainda outras inovações previstas relati-vamente à seleção e adjudicação de propostas em procedimentos abertos em lotes, nomeadamente a possibilidade de existir um número máximo de lotes adjudicado por concorrente (alínea b) do n.º 3 do ar-tigo 24.º) e a possibilidade de realizar a adjudicação por um critério que combine vários lotes (n.º 3 do artigo 24.º). A possibilidade de fixar um limite má-ximo de lotes a adjudicar por concorrente (que terá de ser previamente determinado nas peças de proce-dimento) é uma novidade absoluta no ordenamento português, na medida em que até aqui era expressa-mente negado pela jurisprudência dos nossos tribu-nais, designadamente do Tribunal de Contas (36). En-tendia-se que a limitação do número de lotes violava a concorrência, na medida em que os concorrentes que apresentassem melhores propostas para todos os lotes não seriam os vencedores, potenciando ao mesmo tempo um prejuízo para o interesse público que não receberia as prestações mais vantajosas em todos os lotes. Não deixa de ser curioso que exista aqui uma inversão total da consideração do que é a defesa do princípio da concorrência em face à que era entendida pelo Tribunal de Contas e a da Dire-tiva, baseada na já mencionada proteção das PME que o regime pretende consagrar. Entende-se que a limitação do número de lotes ao mesmo concorren-te promove a diversidade de fornecedores e potencia essa mesma concorrência e a defesa das empresas mais pequenas (37).

Apesar disso, e além da já referida possibilidade de não se dividir em lotes por razões fundamentadas de mais-valias e de interesse público, existe uma outra possibilidade de limitação ao princípio da divisão em (36) Ver Acórdão n.º 25/2012 - 24.jul. - 1ª S/SS (Processos n.ºs 448, 449, 450, 451 e 452/2012).(37) De facto o princípio da concorrência deve ser visto em duas perspetivas, a da entidade adjudicante, na medida em que determina que quanto maior concorrência, maior a possibilidade de se obter uma proposta mais vantajosa para o interesse público (que acaba por ser a perspetiva da posição anterior de proibição da limitação de lotes ao mesmo fornecedor) e a perspetiva externa da defesa do mercado livre e concorrencial em igualdade de circunstâncias (justificadora das posições de defesa das PME e limitação de concentrações de contratos). Ver sobre a matéria Rodrigo Esteves de Oliveira, «Os princípios gerais da contratação pública», in Estudos de Contratação Pública I, Coimbra Editora, 2008, páginas 51 e seguintes.

lotes e da procura da maior repartição de adjudicatá-rios prevista no diploma. Trata-se da possibilidade da adjudicação através de um critério que combine vá-rios lotes. Esta era outra dificuldade que as entidades adjudicantes tinham, a de escolher propostas que em conjunto melhor serviam o interesse público, mas que não podiam à partida ser salvaguardadas no mesmo contrato por razões ligadas à concorrência ou outras (38). Agora é permitido precisamente às entidades ad-judicantes regionais criar critérios de adjudicação que combinem vários lotes desde que (i) prevejam essa possibilidade desde início nas peças de procedimento (ii) indiquem previamente a forma como os lotes ou grupos de lotes se podem combinar entre si e (iii) efe-tuem sempre a avaliação de cada lote individual face ao critério de adjudicação, comparando-a em seguida com as propostas apresentadas para uma combinação de lotes (39). Cabe porém ressalvar que a possibilida-de de combinação em lotes deve ter em atenção os princípios da transparência e concorrência, e a pró-pria ratio inerente à divisão em lotes, como forma de potenciar a concorrência, pelo que deve obedecer aos mesmos princípios de ponderação dos interesses em causa e não o de servir para contornar as restantes obrigações previstas no diploma.

(38) Pense-se, por exemplo, no caso em que a entidade adjudicante pretendia adquirir 3 produtos diferentes, mas apenas existia um interessado no mercado que fornecia os três, apesar de existirem vários fornecedores que fornecem cada um deles. Ao fazer uma consulta que agregasse obrigatoriamente todos os lotes e exigisse proposta a todos, estaria a limitar a concorrência apenas a um fornecedor, ao passo que se abrisse a consulta individual aos três lotes o fornecedor que possuía os três perdia a economia de escala, pois não tinha garantia que pudesse ganhar todos os produtos quando num deles p.ex. tinha condições de tal maneira favoráveis que na globalidade compensasse, mesmo que apresentasse um preço unitário ligeiramente mais caro num dos outros produtos. (39) Dando um exemplo meramente teórico e com propósito explicativo, a entidade X abre um concurso para 2 lotes que pontua individualmente de 0 a 20, consagrando a possibilidade de adjudicação combinada dos dois lotes, caso a soma das pontuações de ambos seja na globalidade superior (poderão ser utilizados outros critérios de combinação, como a média das pontuações ou a aplicação de um coeficiente a cada lote, consoante o seu peso na economia global do contrato). Os concorrentes A e B concorrem para 2 lotes (1 e 2) num critério que pontua as propostas de 0 a 20. O concorrente A obtém 10 pontos para o lote 1 e 14 pontos para o lote 2, enquanto o concorrente B obtém 9 pontos para o lote 1 e 18 pontos para o lote 2. Apesar de individualmente o concorrente A ganhar o lote 1 com 10 pontos e o concorrente B ganhar o lote 2 com 18 pontos, uma vez que existem propostas a ambos os lotes utilizando o critério previamente definido, o concorrente A tem na totalidade 24 pontos e o concorrente B 27 pontos, ganhando assim a combinação dos lotes. Deve no entanto ser ressalvado por questões de coerência que as ponderações são todas no mesmo referencial (neste caso, pontuação de 0-20), caso contrário poderemos ter grandes dificuldades de aplicação prática desta combinação.

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5. Anúncios e prazos

Em termos genéricos, o RJCPRAA continua a aplicar as regras da fase de formação dos contra-tos do CCP (artigo 25.º), mas com as especificações previstas no diploma, que veremos de seguida.

Foi instituída formalmente uma prática já con-sagrada de consulta preliminar ao mercado (artigo 26.º), no sentido de permitir às entidades adjudi-cantes regionais auscultar previamente o mercado sobre os preços ou obter contributos técnicos ou pareceres destinados a elaborar as peças de pro-cedimento, obviamente com os limites da razoa-bilidade e desde que não promova futuros confli-tos de interesses ou comprometa os princípios da imparcialidade e concorrência. Saúda-se esta me-dida, que entendemos ser já permitida no anterior regime, sobretudo depois da alteração da alínea f) do artigo 55.º do CCP, pois promove o são diálogo com o mercado, sem tabus e com a transparência necessária, evitando dúvidas e desconfianças por parte dos potenciais concorrentes quanto às opções que a entidade adjudicante tomou.

Outra das importantes alterações ocorreu a nível das exigências de publicação e divulgação dos contratos, aproveitando o legislador regional a latitude permitida pela Diretiva. Deste modo, o artigo 27.º determina que sempre que não seja exi-gível a publicação de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia (JOUE) os anúncios dos contratos a adjudicar por entidades adjudicantes regionais são apenas publicados no Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores (JORAA), podendo ser di-vulgado por qualquer outro meio conveniente, como a plataforma eletrónica (40). Esta é uma me-dida de grande importância, pois vem reduzir as exigências de publicação, acabando por privilegiar as empresas regionais que poderão ter mais facil-mente acesso aos meios de divulgação. Em termos

(40) Ou um jornal, por exemplo.

práticos, conjugando o artigo 27.º e o artigo 28.º, significa que sempre que, pelo facto do seu valor ultrapassar os limiares comunitários, o procedi-mento tiver que ser alvo de publicação no JOUE, , terá que ser simultaneamente publicitado no Diá-rio da República (DR) e no JORAA. Nos casos em que esteja abaixo desse limiar e não tenha que ser publicado no JOUE (41) apenas deverá ser publicado no JORAA, que deixa de ser de publicação mera-mente facultativa como era no Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/A, de 28 de julho, e passou não só a ser obrigatório como, em alguns casos, ex-clusivo. Devem portanto as entidades adjudicantes regionais estar atentas a estes preceitos, passando a efetuar as publicações no JORAA nos termos legal-mente exigidos (42).

Esta norma cria uma outra dificuldade que se prende com o cumprimento do artigo 465.º do CCP, que determina que é obrigatória a publicita-ção, no portal da Internet dedicado aos contratos públicos, dos elementos referentes à formação e à execução dos contratos públicos, desde o início do procedimento até ao termo da execução, nos ter-mos a definir por portaria dos membros do Gover-no responsáveis pelas áreas das finanças e das obras públicas. Uma vez que atualmente a publicação dos concursos públicos no portal dos contratos públi-cos é efetuada apenas através da ligação do Diário da República (DR), existe ainda uma impossibili-dade prática de publicação no portal dos contratos públicos dos concursos não publicados no DR (43).

Além da alteração relativa aos anúncios, existiu também uma redução dos prazos mínimos de en-trega das propostas e candidaturas referentes aos concursos com publicação no JOUE e no DR (44). (41) Situações em que ao abrigo do CCP a publicação é feita apenas no DR.(42) Refira-se apenas que os modelos de anúncios foram já alvo de regulamentação, através da Portaria n.º 23/2016 de 4 de março, da Vice-presidência do Governo, Emprego e Competitividade Empresarial, Secretaria Regional do Turismo e Transportes, Secretaria Regional Adjunta da Presidência para os Assuntos Parlamentares.(43) Situação que terá de ser regularizada com criação de uma ligação direta do JORAA para o portal dos contratos públicos.(44) Aos restantes continuam a aplicar-se as regras e prazos mínimos previstos

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Nos termos do artigo 39.º, o prazo mínimo passa a ser de 30 dias a contar do envio do anúncio, ou 35 dias caso a entidade adjudicante permita que as propostas não sejam entregues por meio eletróni-co. Em paralelo com esta redução é agora também consagrada a possibilidade de redução dos prazos mínimos em caso de urgência fundamentada (n.º 3 do artigo 39.º) para 15 dias ou 10 dias consoante seja, respetivamente, respeitante a concurso públi-co ou concurso limitado por prévia qualificação. Esta possibilidade é nova, e distingue-se do con-curso público urgente. Na medida em que se trata de um procedimento com todas as formalidades e tramitação normal, a única redução é no prazo mínimo desde que exista uma situação de urgência devidamente fundamentada, que não tem de reves-tir o caracter de urgência imperiosa.

6. Impedimentos

Também ao nível da tramitação processual exis-tem algumas regras específicas do RJCPRAA que cumpre salientar e que as entidades adjudicantes regionais devem ter em conta, apesar de se manter a aplicação do CCP em tudo que não esteja expres-samente regulado de forma diferente (artigo 38.º).

Existe desde logo um artigo específico relativo aos impedimentos, o artigo 33.º, que vem com-pletar a aplicação do atual artigo 55.º do CCP (45) e alargar os impedimentos nos termos previstos na Diretiva em termos genéricos para consagrar im-pedimentos ligados à condenação em determina-dos crimes ligados a casos de terrorismo e trabalho infantil (alínea b) do n.º 1), ou a condenações em matéria ambiental (alínea c) do n.º 1). No entanto, existe um impedimento que é de destacar: a proi-bição de concorrer ou de se candidatar a entidades

no CCP.(45) Nos termos da alínea a) do art. 33º continuam a aplicar-se os impedimentos do art. 55º do CCP.

que «tenham incorrido em deficiências persistentes na execução contratual, num aspeto essencial de um contrato público anterior celebrado com a enti-dade adjudicante em causa, desde que devidamente comprovadas pela fiscalização do contrato, e que te-nham conduzido à resolução contratual por incum-primento, à condenação por responsabilidade civil por danos causados ou a outras sanções contratual ou legalmente previstas» (alínea d) do n.º 1 do ar-tigo 33.º). Este era um aspeto cuja forma de trans-posição causava alguma expectativa às entidades adjudicantes regionais pois, até aqui, havia muitas dificuldades em impedir concorrentes que à parti-da pelo seu histórico já se sabia que tinham poucas ou nenhumas possibilidades de cumprir o contrato mas, face à apresentação da documentação formal regular, não existia forma de não adjudicar o con-trato com todos os inconvenientes futuros e pre-visíveis que isso colocava. É, portanto, uma medi-da interessante e de grande utilidade e relevância para o interesse público, mas que não pode deixar de transmitir algum amargo de boca pela sua mais que provável utilidade diminuta atento o regime que foi consagrado. Na verdade, para que as enti-dades adjudicantes regionais possam prevalecer-se deste impedimento é necessário o preenchimento de vários (demasiados) requisitos designadamente (i) que existam deficiências persistentes na execu-ção de um contrato público anterior, (ii) mas que esse contrato seja necessariamente com a mesma entidade, (iii) desde que o mesmo seja comprovado pela fiscalização do contrato, (iv) que tenha condu-zido à resolução do contrato por incumprimento, à condenação por responsabilidade civil por danos causados ou a outras sanções contratuais e (v) nos termos previstos no n.º 2 do artigo 33º que o im-pedimento tenha ocorrido há menos de um ano a contar da data da resolução do contrato, da san-ção aplicada ou do trânsito em julgado da senten-ça condenatória. Ora, são demasiados requisitos e

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construídos de tal forma que tornam esta medida de aplicação quase impossível, ou pelo menos, de utilidade prática quase nula (46).

7. Plataformas eletrónicas

A nível da apresentação de propostas, o diplo-ma consagra no artigo 35.º a regra (com exceções muito relevantes) de que os documentos que cons-tituem a candidatura, a solução ou a proposta são apresentados diretamente em plataforma eletrónica utilizada pelas entidades adjudicantes regionais, através de meio de transmissão escrita e eletrónica (47). Esta é uma matéria em que a Região está bas-tante atrás do território continental, onde a prática de uso destas plataformas está largamente instituí-da e é legalmente obrigatória. É uma “promessa” le-gal que já existia no regime anterior, mas até à data nunca se concretizou (48).

A utilização das referidas plataformas reves-te várias vantagens a nível da transparência e do combate à burocracia, facilitando o trabalho das entidades adjudicantes, possibilitando aos concor-rentes uma vista transparente do processo, pelo que entendemos a consagração legal da sua obriga-toriedade como uma medida importante.

Apesar disso, o atual diploma continua a con-sagrar um regime transitório (artigo 91.º), que (46) Acompanhamos também as reservas manifestadas por AA. VV., Comentário…ob. cit., pág. 101 e seguintes, quanto à limitação dos impedimentos a contratos com a mesma entidade adjudicante, à necessidade de comprovação pela fiscalização (devendo entender-se que nos contratos onde não exista fiscalização esse ónus incumbe aos serviços da própria entidade adjudicante) e quanto à impraticabilidade do limite temporal perante os timings dos processos e decisões judiciais, por exemplo. (47) O regime jurídico das plataformas eletrónicas é o instituído pela Lei n.º 96/2015, de 17 de agosto.(48) O artigo 5º do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/A já referia que a plataforma eletrónica é de utilização obrigatória para os serviços e organismos da Assembleia Legislativa, da administração regional autónoma, incluindo os institutos públicos regionais, nas modalidades de serviços personalizados, de estabelecimentos públicos e de fundos públicos, para o sector público empresarial regional e para as autarquias locais dos Açores, determinando também que seria disponibilizada, em endereço a definir por resolução do Conselho do Governo, uma plataforma eletrónica dedicada à contratação pública da Região. No entanto, apesar dessa norma legal, o artigo 30.º condicionou a entrada em vigor dessa obrigatoriedade apenas para quando a plataforma fosse disponibilizada, o que acabou por não acontecer, mantendo-se o regime transitório indefinidamente.

determina que o uso da plataforma eletrónica só é obrigatório nas datas referidas no artigo 90.º da Diretiva 2014/24/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro (49). Enquanto não for obrigatória a utilização de plataforma eletróni-ca nos procedimentos de formação de contratos públicos a celebrar pelas entidades adjudicantes regionais, estas podem determinar, no programa do procedimento ou no convite, que todos os atos que, nos termos do CCP e do artigo 35.º, devam ser apresentados em plataforma eletrónica, possam ser praticados através do envio pelo correio, correio eletrónico ou telecópia.

Também de forma semelhante ao regime ante-rior, compete ao membro do Governo Regional com competência em matéria de ciência e tecno-logia selecionar o modelo de plataforma eletrónica a utilizar pelos serviços e organismos da adminis-tração regional autónoma, incluindo os institutos públicos regionais, nas modalidades de serviços personalizados, de estabelecimentos públicos e de fundos públicos, bem como pelas empresas do se-tor público empresarial regional (50).

Destaca-se ainda que, mesmo quando for con-sagrada a utilização obrigatória das plataformas eletrónicas essa utilização não será necessária nos procedimentos de ajuste direto (alínea f) do n.º 2 do artigo 35º).

8. Caderno de encargos relativo a empreitadas de obras públicas

São ainda dignas de destaque duas normas es-pecíficas sobre procedimentos de empreitada de obras públicas51 referentes ao conteúdo do caderno

(49) Sendo a data limite 18 e outubro de 2018.(50) Apesar do regime atual determinar a obrigação de selecionar, e já não disponibilizar a plataforma por parte do Governo Regional.(51) Com relevância para o tema, de forma genérica, ver Licínio Lopes Martins, «Alguns aspectos do contrato de empreitadas de obras públicas no Código dos Contratos Públicos - I», in Estudos de Contratação Pública, II, Coimbra Editora, 2010, págs. 345 a 415 e «Alguns aspectos do contrato

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de encargos e aos direitos de autor em contratos de projeto.

O artigo 30.º determina que, como em muitas matérias, são aplicáveis aos cadernos de encargos de empreitada de obras públicas as regras do CCP, designadamente o artigo 43.º, que fixa o conteúdo obrigatório dessa peça do procedimento (52). No entanto, o legislador regional deu igualmente um passo em frente relativamente ao impasse atual do CCP na questão da obrigatoriedade da revisão de projeto (53), na medida em que consagrou critérios para a necessidade da realização da revisão de pro-jeto, que se torna obrigatória quando a obra seja de categoria III ou superior, prescindindo de requi-sitos referentes ao valor da obra no que respeita à classe de alvará. Existem quatro categorias de obra e a sua definição é determinada nos termos do ar-tigo 11.º e anexo II da Portaria n.º 701-H/2008 de 29 de julho, devendo a sua referência ser definida pelo projetista e constar no contrato de projeto, nos termos do artigo 7º da Lei n.º 31/2009 de 3 de ju-lho. Este é um ponto de especial atenção para as entidades adjudicantes regionais, nomeadamente na realização de procedimentos de empreitadas de obras públicas, uma vez que, caso as mesmas sejam de categoria III ou superior, devem ser obrigatoria-mente alvo de revisão de projeto e esse é um dos elementos exigidos no âmbito da fiscalização pré-via do Tribunal de Contas (54).

de empreitada de obras públicas no Código dos Contratos Públicos II: Em especial, a reposição do equilíbrio económico-financeiro do contrato e a determinação» in Estudos de Contratação Pública, III, Coimbra Editora, 2010, págs. 339 a 394 (52) Devendo ser observado o disposto nesse artigo, sob pena de nulidade do caderno de encargos e, consequentemente, de todo o procedimento.(53) Nos termos do artigo 43.º n.º 2 do CCP, a revisão de projeto por entidade terceira distinta do projetista é obrigatória para obras de categoria III ou superior, ou para obras cujo preço base seja enquadrável na classe 3 de alvará ou superior. Acontece que essa norma resultou da alteração ao CCP operada pelo Decreto-lei n.º 149/2012 de 12 de julho, e nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, a produção de efeitos desta obrigação depende da entrada em vigor do diploma que estabeleça o regime aplicável à revisão de projeto, o que ainda não aconteceu. Nessa medida, no que respeita à revisão de projeto para efeitos do CCP, ainda está em vigor o regime do CCP anterior ao Decreto-lei n.º 149/2012 de 12 de julho que, de forma algo subjetiva, assumia como obrigatória a revisão de projeto apenas quando “a obra a executar assuma complexidade relevante ou quando sejam utilizados métodos, técnicas ou materiais de construção inovadores”. (54) Ver Resolução n.º 14/2011, do Plenário da 1ª Secção, publicada no Diário da República, 2ª série, n.º 156 de 16 de Agosto.

Outro aspeto que o diploma procurou regular no artigo 31.º foi a sempre conturbada situação relativa aos direitos de autor dos projetos de arquitetura, uma vez que geralmente existe algum atrito entre os projetistas iniciais de determinada obra e os donos de obra que pretendem fazer-lhe alterações. Geralmente é utilizado o argumento dos direitos de autor (55) para se tentar impedir que sejam contratados outros projetistas para alterarem a obra. Importa no entanto ter presente que a reali-zação de um projeto não confere ao seu projetista o direito eterno de ser contratado para realizar toda e qualquer alteração ao projeto. Além de violador da concorrência, isso não é o que resulta do arti-go 60.º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos (56).

O legislador regional procurou regulamentar essa situação, determinando no n.º 1 do artigo 31.º que relativamente a contratos de projeto o caderno de encargos deve regular os termos e condições da consulta prévia ao projetista autor do projeto para efeito de consentimento quanto às modificações ou alterações ao projeto que sejam necessárias realizar após a adjudicação. No que respeita a eventuais al-terações à obra depois de edificada, é criada uma solução, que nos parece a correta, inspirada no Có-digo dos Direitos de Autor e Direitos Conexos: em caso de existir necessidade resultante de interesse público superveniente devidamente fundamentada de alterar o projeto durante a construção ou após a mesma, deve ser consultado o autor do projeto

(55) Os projetos de arquitetura estão abrangidos pelo conceito de obras originais do art. 2º n.º 1 alínea g) do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (CDADC).(56) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, e alterado pelas Leis n.ºs 45/85, de 17 de Setembro, e 114/91, de 3 de Setembro, e Decretos-Leis n.ºs 332/97 e 334/97, ambos de 27 de Novembro, pela Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 24/2006 de 30 de Junho e pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril. Reza o preceito: “1 — O autor de projeto de arquitetura ou de obra plástica executada por outrem e incorporada em obra de arquitetura tem o direito de fiscalizar a sua construção ou execução em todas as fases e pormenores, de maneira a assegurar a exata conformidade da obra com o projeto de que é autor. 2 — Quando edificada segundo projeto, não pode o dono da obra, durante a construção nem após a conclusão, introduzir nela alterações sem consulta prévia ao autor do projeto, sob pena de indemnização por perdas e danos. 3 — Não havendo acordo, pode o autor repudiar a paternidade da obra modificada, ficando vedado ao proprietário invocar para o futuro, em proveito próprio, o nome do autor do projeto inicial.”

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para efeitos de consentimento. No entanto, caso não exista acordo, o projetista não tem um direito ad eternum de ser contratado para projetar a alte-ração, nem tem o direito de impedir essa alteração, mas apenas o de repudiar a paternidade da obra modificada, ficando o dono de obra impedido de invocar de futuro para proveito próprio o nome do autor do projeto inicial.

O diploma consagra ainda um regime para o caso da inexistência de acordo, determinando que pode-rá ser motivo de resolução do contrato o facto das soluções técnicas contidas no projeto se apresenta-rem desajustadas ou desadequadas às necessidades decorrentes de lei superveniente, se essas alterações ou modificações implicarem um aumento do pre-ço contratual da empreitada em pelo menos 25%, e se se verificarem ponderosas razões de interesse público que justifiquem e fundamentem as altera-ções necessárias a introduzir no projeto inicial, no caso das soluções técnicas se apresentarem super-venientemente desajustadas ou desadequadas em termos de funcionalidade, segurança ou dimensio-namento (57).

9. Habilitação

Outro dos aspetos que traz uma inovação com grande relevância prende-se com o regime de habi-litação dos adjudicatários, constante no artigo 40º.

Em termos genéricos, à semelhança de outros pontos, conforme definido no n.º 1 do artigo 40.º, aplicam-se as regras dos artigos 81.º a 87.º do CCP com as especificidades regionais, das quais se des-taca desde logo a existência de um modelo especí-fico de declaração, emitida conforme modelo cons-tante do Anexo III desse diploma, que substitui o

(57) Também aqui manifestamos bastantes reservas na solução definida pela lei e alguma dificuldade em atingir a razão de ser de algumas soluções, nomeadamente na consagração de causas de resolução de contrato que são imputáveis à potencial decisão da própria entidade adjudicante em produzir alterações. Ver quanto a estes pontos, AA. VV., Comentário ao Regime Jurídico dos Contratos Públicos da Região Autónoma dos Açores, cit., pág. 97.

Anexo II a que se refere a alínea a) do n.º 1 do ar-tigo 81.º do CCP, e que as entidades adjudicantes regionais deverão passar a fazer constar dos seus procedimentos.

No entanto, a principal alteração deste regime é que permite, conforme determina o n.º 3, que o convite ou o programa de procedimento exijam a demonstração de outros elementos de habilitação relativos à capacidade económica e financeira e à capacidade técnica e profissional do adjudicatário para executar o contrato. Como se sabe, a possi-bilidade de considerar características relativas ao próprio concorrente estava vedada, apenas sendo possibilitada no âmbito do concurso limitado por prévia qualificação (58). Com esta norma as entida-des adjudicantes passam a ter a possibilidade de poder filtrar os concorrentes a quem adjudicam os contratos, exigindo determinados requisitos liga-dos à sua capacidade e não relativos à sua proposta, fazendo-o apenas em sede de habilitação, e portan-to validando o seu cumprimento apenas quanto ao próprio adjudicatário (59), faculdade que não tem paralelo na legislação nacional.

Nos termos do n.º 4, para efeitos de aferição da capacidade económica e financeira, as entidades adjudicantes regionais podem exigir documentos comprovativos de que o adjudicatário possui um volume de negócios anual mínimo que garanta a execução do contrato, designadamente contas anuais demonstrativas do rácio entre ativos e passi-vos, documentos comprovativos de que o adjudica-tário possui um volume de negócios anual mínimo

(58) O artigo 75.º n.º 1 do CCP determina expressamente que o critério de adjudicação não pode dizer respeito, direta ou indiretamente, a situações, qualidades, características ou outros elementos de facto relativos aos concorrentes. Veja-se sobre este tipo de procedimento Ana Gouveia Martins, «Concurso Limitado por Prévia Qualificação», in Estudos de Contratação Pública – I, Coimbra Editora, 2008, pág. 229 e seguintes.(59) Passam a existir dois momentos em que isso é possível, ou previamente, em sede de concurso limitado por prévia qualificação em que todos os concorrentes devem demonstrar o cumprimento, ou num segundo momento, apenas depois da adjudicação e só relativamente ao adjudicatário. Esta opção, apesar de grande interesse e utilidade para as entidades adjudicantes, acabará, na prática por esvaziar grande parte do conteúdo e interesse do concurso limitado por prévia qualificação, e por arrasto coloca um pouco em causa o princípio da tipicidade do procedimento, pelo que nos causa algumas reservas em termos de enquadramento face à Diretiva.

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nas atividades abrangidas pelo objeto do contrato a fim de garantir a respetiva execução, ou documen-tos comprovativos de possuírem um nível adequa-do de seguros contra riscos profissionais (alíneas a) a c) do n.º 4). Para efeitos da aferição da capacida-de técnica e profissional, podem exigir documen-to comprovativo de que o adjudicatário dispõe de recursos humanos e técnicos para assegurar a boa execução do contrato, documento comprovativo de que os recursos humanos e técnicos de que o ad-judicatário dispõe detêm experiência profissional adequada à boa execução do contrato, ou referên-cias comprovadas, relativas a contratos executados pelo adjudicatário no passado, que demonstrem um nível suficiente de experiência adequada à boa execução do contrato (alíneas a) a c) do n.º 5).

Salienta-se apenas que, sendo um requisito essen-cial para cumprimento por quem tiver interesse em concorrer, sempre que for utilizada esta faculdade as entidades adjudicantes regionais estão obriga-das a indicar no anúncio de procedimento os ní-veis mínimos de capacidade económica e financei-ra e de capacidade técnica e profissional exigidos, bem como os documentos que as comprovem (n.º 6 do artigo 40.º). Os requisitos a fixar devem, ob-viamente, ser definidos em moldes que garantam o cumprimento dos princípios da concorrência e transparência, sendo de aplicar, analogicamente o previsto no artigo 165.º do CCP relativo ao con-curso limitado por prévia qualificação, e devem ser adequados à natureza das prestações objeto do contrato a celebrar nem devem ser fixados de for-ma discriminatória.

10. Celebração de contrato

Outro dos aspetos relevantes para a prática das entidades adjudicantes prende-se com a exigibili-dade de celebração de contrato escrito (artigo 41º).

Nos termos do n.º 1 desse normativo não é exigível a redução do contrato a escrito quando se trate de contrato de empreitada de obras públicas, de loca-ção ou de aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços cujo procedimento adotado na forma-ção do contrato tenha sido o regime simplificado do ajuste direto e quando se trate de locar ou adquirir bens móveis ou de adquirir serviços sempre que o fornecimento dos bens ou a prestação dos serviços deva ocorrer integralmente no prazo máximo de trinta dias a contar da data em que o adjudicatário comprove a prestação de caução ou, se esta não for exigida, da data da notificação da adjudicação e a relação contratual se extinga com o fornecimento dos bens ou com a prestação de serviços, sem pre-juízo da manutenção de obrigações acessórias que tenham sido estabelecidas inequivocamente em fa-vor da entidade adjudicante, tais como as de sigi-lo ou de garantia dos bens ou serviços adquiridos. Nos termos do n.º 2, é ainda possível a redução do contrato a escrito ser dispensada mediante decisão fundamentada do órgão competente para a decisão de contratar, quando a segurança pública interna ou externa o justifique, quando seja adotado um concurso público urgente, ou por motivos de ur-gência imperiosa resultante de acontecimentos im-previsíveis pela entidade adjudicante, seja necessá-rio dar imediata execução ao contrato.

Nesta matéria o diploma traz alterações relevan-tes, quer quanto ao CCP, quer quanto ao regime re-gional anterior. Na verdade, a acrescer aos motivos de dispensa de celebração de contrato escrito exis-tem ainda no CCP outras causas, designadamente quando se trate de contrato de locação ou de aqui-sição de bens móveis ou de aquisição de serviços cujo preço contratual não exceda €10.000 (alínea a) do n.º 1 do artigo 95º) e quando se trate de locar ou de adquirir bens móveis ou de adquirir serviços ao abrigo de um contrato público de aprovisiona-mento (alínea b) do n.º 1 do artigo 95º). Também

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nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2008/A, de 28 de Julho, era motivo de dispensa de celebração de contrato escrito o preço contratual não exceder os €50.000 e quando se tratasse de locar ou adquirir bens mó-veis ou de adquirir serviços ao abrigo de um con-trato público de aprovisionamento.

Ora, uma vez que o CCP se aplica apenas nas ma-térias que o diploma regional não regula de forma expressa, e existindo um bloco de legalidade regio-nal precisamente para a questão da inexigibilida-de de celebração de contrato escrito, entendemos que não se poderão aplicar na Região as normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 95.º do CCP, mas apenas as causas de inexigibilidade de celebra-ção de contrato previstas no artigo 41.º do diploma regional. Assim, a atual opção do legislador acaba por retirar a possibilidade de dispensa de celebra-ção de contrato em razão do seu valor (60), bem como da isenção no caso de celebração por contratos pú-blicos de aprovisionamento. Esta opção parece-nos discutível, pois não vislumbramos razão para haver uma inversão tão grande e passarmos a ser mais exigentes que o CCP nesta matéria. Pensamos que poderá inclusivamente ser um lapso ou desatenção do nosso legislador, até porque se por um lado se retira a faculdade aos contratos públicos de apro-visionamento de isentarem algumas formalidades como a assinatura de contrato, por outro mantém

(60) Passando assim de uma isenção de contratos até €50.000 para inexistência de isenção pelo valor, nem sequer os €10.000 do CCP, exceto nos casos em que a contratação seja efetuada por ajuste direto simplificado. Não se podendo aplicar a isenção das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 95.º do CCP, apenas admitimos como possível uma dispensa de celebração de contratos inferiores a €15.000, por estarem dentro do limite permitido para o ajuste direto simplificado, que dispensa qualquer formalidade, incluindo celebração do contrato, ainda que o procedimento utilizado seja um ajuste direto regime normal. Pense-se, por exemplo, num contrato de €5.000 celebrado ao abrigo de um acordo quadro vinculativo para uma determinada entidade. Numa interpretação literal da lei, apesar de num contrato normal poder dispensar qualquer formalidade, existindo um acordo quadro (que em alguns casos são obrigatórios para algumas entidades e que, por definição tem por objetivo simplificar os formalismos de contratação, possibilitando até ajuste direto independentemente do valor), as entidades estariam obrigadas a celebrar contrato escrito, uma formalidade mais exigente do que se não existisse nenhum acordo quadro! Por nos parecer uma solução kafkiana e desproporcionada, que contraria a ratio inerente ao sistema, admitimos que até ao limite do ajuste direto simplificado (€15.000) as entidades adjudicantes possam dispensar a celebração de contrato escrito, ainda que utilizem um ajuste direto em regime normal (p.ex. através de um acordo quadro a que estejam vinculadas), a maiori, ad minus.

a redação do diploma anterior relativamente à dis-pensa do período stand still na alínea c) do n.º 5, continuando a prevalecer essa condição para esses contratos “quando a redução do contrato a escrito não tenha sido exigida ou tenha sido dispensada”. Parece-nos que existiu um lapso do legislador a ca-recer de revisão numa futura alteração, até porque esta norma onera as entidades adjudicantes regio-nais com formalismos desnecessários de celebra-ção sucessiva de contratos em situações em que podiam perfeitamente ser dispensados.

11. Outros aspetos específicos relativos às peças de procedimento

No que respeita às regras de elaboração das pe-ças de procedimento em si continuam a aplicar-se muitas das regras do CCP, seguindo-se de muito perto a tramitação desse diploma na Região, apesar de existirem algumas regras específicas que impor-ta reter.

Relativamente à fixação do preço anormalmente baixo passa a existir um único regime supletivo no artigo 29.º, aplicável aos contratos de fornecimento de bens móveis e prestação de serviços, bem como de empreitadas de obras públicas que considera um preço anormalmente baixo o preço de uma propos-ta 40% ou mais inferior ao preço base, deixando de se se distinguir o regime quanto aos tipos de con-tratos, à semelhança do CCP (61). No entanto man-tém-se a possibilidade das entidades adjudicantes regionais definirem no convite ou programa de for-ma diferente do critério supletivo da lei, nos termos do n.º 1 do artigo 29.º.

Esta não é a única novidade nesta matéria, uma vez que o diploma procurou, a nosso ver um pouco timidamente, resolver uma querela provocada pelo CCP e que tem ocupado os nossos tribunais, no-(61) Que determina que para as empreitadas de obras públicas a percentagem é de 40% e para os contratos de aquisição de bens móveis e aquisição de serviços de 50%.

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meadamente a questão da opção a tomar quando um concorrente não apresenta com a proposta um documento justificativo do seu preço anormalmen-te baixo. A questão não é nova face ao CCP e resul-ta da existência de normas contraditórias, designa-damente o artigo 57.º n.º 1 alínea b) que obriga à apresentação com a proposta de um documentos que contenham os esclarecimentos justificativos da apresentação de um preço anormalmente baixo, quando esse preço resulte, direta ou indiretamente, das peças do procedimento e cuja não apresentação tem como sanção a exclusão, nos termos do arti-go 70.º, n.º 2, alínea e), e artigo 146.º, n.º 2, alínea d); e, por outro lado, a norma do artigo 71.º, n.º 3, que determina que nenhuma proposta pode ser excluída com fundamento no facto de dela constar um preço total anormalmente baixo sem antes ter sido solicitado ao respetivo concorrente, por escri-to, que, em prazo adequado, preste esclarecimentos justificativos relativos aos elementos constitutivos da proposta que considere relevantes para esse efei-to (62).

O diploma parece-nos consagrar a solução já de-fendida pelos tribunais na medida em que o n.º 3 do artigo 29.º mantém a exigência de que “nenhuma proposta pode ser excluída com fundamento no facto de dela constar um preço anormalmente baixo sem antes ter sido solicitado, pela entidade adjudicante re-gional, ao respetivo concorrente, por escrito, que, em prazo adequado, preste esclarecimentos justificativos relativos aos elementos constitutivos da proposta que (62) Face à incoerência das duas soluções que colocavam o júri perante a opção de excluir ou de solicitar esclarecimentos, os Tribunais acabaram por decidir no sentido de que se o concorrente não tem como saber que a sua proposta vai ser qualificada como de  preço  anormalmente  baixo (não está fixado preço base) devem ser solicitados esclarecimentos (contraditório posterior). Já se o concorrente sabe ou tem obrigação de saber que a sua proposta vai ser qualificada como de  preço  anormalmente  baixo, tem de apresentar com ela a justificação (contraditório antecipado). Assim, o n.º 3 do art. 71º do CCP apenas se aplica quando o preço anormalmente baixo não está definido ou não é possível ser apreendido previamente pelo concorrente, caso contrário, quando o concorrente sabe que a sua proposta vai ter um preço anormalmente baixo, a falta de justificação prévia importa a exclusão da proposta. Ver v.g., entre outros, o Acórdão do TCAS de 11.04.2013 disponível em www.dgsi.pt. Sobre esta matéria veja-se ainda João Amaral e Almeida, «As propostas de preço anormalmente baixo», in Estudos de Contratação pública – III, Coimbra Editora.

considere relevantes para esse efeito, só podendo esse concorrente ser excluído no caso dos meios de prova apresentados não serem satisfatoriamente esclarece-dores dos baixos preços apresentados ou dos custos propostos”. No entanto, essa regra é aplicada “sem prejuízo do disposto no n.º 7”, que, por sua vez obriga a que sejam excluídas as propostas com um preço total anormalmente baixo, cujos esclarecimentos justificativos “…não tenham sido apresentados”, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 57.º do Códi-go dos Contratos Públicos, ou “…não tenham sido considerados satisfatoriamente esclarecedores”. As-sim, o diploma consagra a regra de que, face a um concorrente que não apresente o documento justi-ficativo do preço anormalmente baixo logo com a proposta inicial, deve ser excluído nos termos do n.º 7. Refira-se que a redação não nos parece a mais fe-liz, acabando por levar às mesmas dúvidas e incoe-rências do próprio CCP. Se a intenção era resolver a questão de uma vez por todas, entendemos que de-veria ter sido mais explícita a determinação de que o n.º 3 apenas se aplica aos casos em que não seja possível conhecer à partida o preço anormalmente baixo. Além disso, parece também estranha a exi-gência do n.º 1 do artigo 29.º, ao prever que quando o caderno de encargos não fixar o preço base, nem o preço anormalmente baixo, o convite ou progra-ma de procedimento devem fixar os critérios para a determinação desse preço anormalmente baixo. Não se vislumbra como isso poderá ser conseguido se à partida a entidade adjudicante regional não definiu nem preço base, nem preço anormalmente baixo, pois se tivesse critérios para o fazer provavelmente tê-lo-ia feito. Pensamos que se perdeu a oportunidade de clarificar e melhorar este regime, e tememos que com as soluções criadas venha a aumentar a dúvida e litigiosidade nesta matéria. No entanto, atendendo ao histórico nesta matéria, parece não haver dúvidas da opção a tomar daqui em diante sempre que isso se verifique (63).(63) Ficará na disponibilidade das entidades adjudicantes diligenciaram

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ALGUNS ASPETOS SOBRE O REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS PÚBLICOS NA REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES

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Outro dos aspetos inovadores no diploma é a criação de rótulos, nos termos do artigo 32.º, trans-pondo a solução da Diretiva. Os rótulos são consti-tuídos por um documento, certificado ou atestado que confirme que as obras, produtos, serviços, pro-cessos ou procedimentos preenchem determinados requisitos que possibilitará às entidades adjudican-tes exigirem num determinado procedimento a existência desse rótulo que ateste determinadas ca-racterísticas técnicas, ambientais, sociais ou outras. Funciona, em suma, como uma certificação do produto ou serviço. Esta é uma matéria ainda em fase embrionária, pois que carece de regulamenta-ção pelo Governo Regional. Mas julgamos que po-derá ser útil às entidades adjudicantes regionais, na medida em que facilitará a fixação das especifica-ções técnicas exigidas, dos critérios de adjudicação ou dos requisitos de habilitação, garantindo com o sistema de rótulos determinados parâmetros de qualidade ou segurança, sem que isso onere as pró-prias entidades na elaboração dos requisitos técni-cos e na avaliação dos mesmos.

12. Conclusão

Atendendo à natureza do presente texto, e às ine-rentes limitações de conteúdo de dimensão, não é possível uma avaliação extensiva de todo o diplo-ma, nem um estudo aprofundado de cada uma das suas soluções, ou mesmo da sua dinâmica quando conjugadas com o atual CCP. Procurou-se, tão só, efetuar algumas notas sobre os aspetos inovadores que nos parecem mais relevantes em sede pré-con-tratual, ficando ainda de foram as questões ligadas à execução dos contratos.

As soluções novas trazem algumas oportuni-dades às entidades adjudicantes para resolverem dificuldades atuais, nomeadamente em contratos no sentido de as peças de procedimento sejam bastante claras e precisas, procurando dessa forma, pela margem que possam ter na elaboração, procurar clarificar e obstar a dúvidas futuras dos potenciais concorrentes.

que passam a estar excluídos, ou na possibilidade da considerar requisitos de capacidade técnica ou financeira em sede de habilitação. Mas trazem tam-bém alguns desafios, que exigirão uma mudança de paradigma e de hábitos instalados em alguns aspe-tos, como a consideração do ciclo de vida no valor do contrato ou a obrigação de divisão em lotes.

O diploma é ainda relativamente recente, e co-meçarão agora a ser testadas as suas soluções em termos de litigiosidade administrativa, ou mesmo em sede de jurisprudência do Tribunal de Contas. Essa aprendizagem deve ser tida como útil, na me-dida em que a futura revisão do CCP implicará, com certeza, a necessidade de revisão do diploma regional para acomodar as alterações, oferecendo uma boa razão para efetuar os ajustes que a prática reclamará.

Este texto pretende ser um modesto contributo para o inevitável crescimento gradual do diplo-ma, na medida em que na aplicação da lei, como na vida, nas palavras do poeta castelhano António Machado, o caminho faz-se caminhando.

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PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/3) | Pag. 77

Declaração de presença em consulta, emissão de documento, falsificação ideológica, deveres gerais dos trabalhadores da Administração Pública.

PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/4) | Pag. 99

Declaração de presença em consulta, emissão de documento, falsificação material e ideológica, acumulação de funções, deveres gerais dos trabalhadores da Administração Pública

Casos resolvidos

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INSTRUÇÃOENQUADRAMENTO JURÍDICO-FORMAL

1. Na sequência do Processo de Inspeção Extraor-dinária com o n.º 3.2/2015/XX, conduzido por esta Inspeção Regional de Saúde, determinou o Sr. Inspetor Regional da Saúde, por despacho datado de 22/06/2015, a instauração de proces-so disciplinar ao(à) trabalhador(a) arguido(a), Assistente Técnico(a) na Unidade de Saúde de Ilha 1, tendo o ora relator sido nomeado instru-tor do mesmo, ao abrigo do artigo 208.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (dora-vante, apenas LTFP).

2. A trabalhadora visada está vinculada à entidade 1 por contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado;

3. Pelo que está sujeita ao poder disciplinar da en-tidade empregadora nos termos do artigo 176.º da LTFP.

4. O presente processo foi instaurado nos termos do artigo 196.º do anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, em virtude da alínea i) do artigo 30.º do DRR n.º 5/2013/A, de 21 de Junho, em conjugação com o artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Despacho n.º 1227/2011 (Regulamento de Pro-cedimentos da IReS), por força do artigo 9.º do DL n.º 276/2007, de 31 de Julho, aplicável na RAA pelo DLR n.º 49/2012/A, de 8 de Outubro.

5. A instrução iniciou-se dentro do prazo de 10 dias, conforme prescrito no n.º 1 do art.º 205.º da LTFP (cfr. fls. 13 dos autos), não se tendo con-cluída a mesma no prazo referido naquele mes-

mo inciso legal (45 dias) devido às contingên-cias orçamentais a que esteve sujeita esta IReS na rubrica relativa às deslocações dos inspetores para a realização de diligências processuais (os factos foram praticados na Ilha XXX, na qual trabalha e reside a trabalhadora visada, sendo que a sede da IReS situa-se na Ilha Terceira). Face às razões que originaram a ultrapassagem do prazo (razões diretamente relacionadas com as funções do dirigente máximo e discutidas nas reuniões mensais do pessoal desta Inspeção), não propusemos a prorrogação do prazo de ins-trução nos termos estabelecidos no mesmo n.º do já referido artigo da LTFP.

DA PARTICIPAÇÃO

6. Em XX-XX-XXXX, o responsável pela Direção da entidade 2, sito na XXXXXX, XXXX, con-celho de XXXXX, dirigiu um ofício a esta IReS com o seguinte teor:

“ 1- Nos dias XX de XXXX e XX de XXXX de XXXX, a trabalhadora A, a exercer funções nes-ta instituição (…), esteve ausente do serviço, por razões de saúde.

2- Mediante tal facto, a funcionária em causa, para justificar a não comparência no espaço laboral, procedeu à entrega de duas justificações emiti-das pela Unidade 1, documentos que referen-ciam a permanência da mesma, no espaço em causa, num período temporal específico (ver cópia dos mesmos em anexo).

3- No entanto, considerando que o período indi-cado revela uma amplitude algo elevada, vimos requer uma eventual intervenção da estrutura inspetiva que V. Ex.ª dirige a fim de se confirmar a informação constante nas declarações referen-

PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/3)

Declaração de presença em consulta, emissão de documento, falsificação ideológica, deveres gerais dos trabalhadores da Administração Pública.

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ciadas em 2.”

7. Em anexo ao ofício foram juntas cópias das mencionadas declarações as quais, para os efei-tos do presente processo, extraímos cópia digi-talizada conforme se mostra a seguir:

[imagem das declarações omitidas]

8. Como se vê, tais declarações atestam a presença na Unidade 1 da respetiva beneficiária A; foram produzidas em modelo próprio, pré-impresso e parcialmente pré-escrito, em uso na Unidade 1, conforme o logótipo que ostenta; os campos em branco foram preenchidos de forma manuscri-ta; foram carimbadas e assinadas.

9. As declarações ostentam, ainda, os carimbos de entrada dos documentos da entidade 2, a enti-dade empregadora da beneficiária das declara-ções, A, e, em formato manuscrito, as respeti-vas datas de entrada dos documentos: “XX/XX/XXXX” e “XX/XX/XXXX”.

10. Por despacho de XX-XX-XXXX, o Sr.º Inspetor

Regional da Saúde ponderou o teor da partici-pação e, com base no art.º 10.º do Regulamento de Procedimento da IReS, ordenou a abertura de processo inspetivo extraordinário, “dado os indícios de fraude na emissão do documento ad-ministrativo” tendo acrescentado, nesse mesmo despacho, que “conforme refere o participante, segundo as máximas de experiência comuns, não se compreende por que motivo o(a) traba-lhador(a) [do da entidade 2] esteve presente numa unidade de saúde por longos períodos (das XX:XXh às XX:XXh, no dia XX-XX-XXXX; e das XX:XXh às XX:XXh, no dia XX-XX-XXXX), sem consulta. Pelo que a suspeita de falsificação ideológica do documento é verosímil.”

11. O processo de inspeção extraordinária foi con-cluído em XX-XX-XXXX e do mesmo resultou o presente processo disciplinar conforme já re-ferido no ponto 1.

DOS ATOS INSTRUTÓRIOS

12. Parte do acervo factual trazido aos presentes autos de processo disciplinar resultou da ins-trução desenvolvida no antecedente processo de inspeção extraordinária n.º 3.2/2015/XX, do qual juntámos aos presentes autos cópia:i. Da Participação da responsável pela Direção

da entidade 2, referida nos ponto 5 e 6, (fls. 23 e 24 dos autos);

ii. Do e-mail com o pedido e a resposta rela-cionados com a obtenção das listagens que a seguir referimos, (fls. 25 dos autos).

iii. Da listagem das consultas realizadas na Uni-dade de Saúde 1, nos dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, e que anonimizamos, das quais se retira que a trabalhadora A do da entidade 2, não teve consulta programada para nenhum daqueles dias, (fls. 26 e 27 dos autos).

iv. Cópia da Informação final da equipa inspe-tiva que conduziu o antecedente processo de inspeção extraordinária n.º 3.2/2015/10 (fls. 9 a 12 dos autos).

13. No dia XX-XX-XXXX, por entendermos con-veniente, procedemos à inquirição do(a) traba-lhador(a) arguido(a), para melhor aferir todo o circunstancialismo dos atos praticados, incluin-do a ponderação das circunstâncias dirimentes ou atenuantes dos eventuais juízos de censura-bilidade (v.g. confissão, demonstração de arre-pendimento, concurso de culpas) e às demais si-tuações suscetíveis de ponderação para integral cumprimento dos princípios da proporcionali-

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dade e da justiça perante o caso concreto, tendo o respetivo auto de inquirição ficado a constar de fls. 18 dos autos (artigo 189.º da LTFP).

14. No dia seguinte, com o mesmo fim, procede-mos à inquirição da superior hierárquica da trabalhadora, Dr.ª B, tendo o respetivo auto fi-cado a constar de fls. 21 dos autos.

15. Requeremos à Unidade 1 a confiança do pro-cesso individual da trabalhadora, bem como o certificado do registo disciplinar da mesma.

16. Em resposta, o Serviço de Recursos Humanos da Unidade 1 informou que: “o processo indi-vidual físico da trabalhadora foi totalmente des-truído devido ao incêndio que afetou as antigas instalações da Unidade 1, em XX-XX-XXXX”. E, a propósito do certificado do registo discipli-nar, informou que não obstante ter desapareci-do pelas mesmas razões, foi consultada a chefia direta da trabalhadora e os recursos humanos, nomeadamente os trabalhadores com mais an-tiguidade e que eram responsáveis pela gestão do cadastro da mesma, tendo sido informado “não existir histórico de registo disciplinar do(a) [trabalhador(a)] em causa.”

17. Ademais, foi remetida cópia de registos de dis-tribuições no SGC (Sistema de Gestão Docu-mental), relativos à trabalhadora, desde a data de XX-XX-XXXX (fls. 29 a 32 dos autos), sen-do, portanto, a partir desse período que existem, em suporte informático, elementos do processo individual do(a) trabalhador(a) arguido(a). Importa sublinhar, porém, que não tivemos acesso aos documentos associados às ditas dis-tribuições mas apenas à cópia extraída do res-petivo histórico donde se retira a descrição do documento sujeito a distribuição e a data.

DO ENCERRAMENTO DA INSTRUÇÃO

18. Tendo em conta o objeto do processo, conside-ramos que se encontram suficientemente reu-nidos todos os elementos de facto pertinentes para a formulação de uma proposta de decisão, sendo desnecessária a realização de quaisquer outras diligências.

19. Não existem nulidades ou irregularidades pro-cessuais que obstem à emissão de uma justa proposta de decisão.

ACUSAÇÃO

ENQUADRAMENTO FÁCTICOI. FACTOS PROVADOS

1. O(a) trabalhador(a) arguido(a) chama-se XXXXX, nasceu em XX-XX-XXXX, é funcioná-rio(a) da Unidade de Saúde 1, exerce as funções de Assistente Técnico(a) desde XX-XX-XXXX e tem, atualmente, o domicílio profissional na Unidade 1, concelho de XXXX.

2. O(a) trabalhador(a) está vinculado(a) à Unida-de 1 por contrato de trabalho em funções públi-cas por tempo indeterminado;

3. No dia XX de XXX de XXXX, estando ao serviço no seu posto de trabalho, na Unidade 1, o(a) tra-balhador(a) arguido(a) recebeu um telefonema de uma amiga de nome A no qual, alegando não poder ir trabalhar por estar com muitas dores de cabeça, pediu-lhe que emitisse uma declaração em seu nome, atestando a sua presença na Uni-dade de Saúde 1, a fim de comparecer a consulta médica, entre as XX:XXh e as XX:XXh daquele próprio dia XX-XX-XXXX;

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4. O(a) trabalhador(a) arguido(a) acedeu ao pe-dido e, nesse mesmo dia XX-XX-XXXX, em hora não concretamente apurada, mas sendo que foi no fim do dia de trabalho, antes de sair, produziu uma declaração de presença em que atestava a comparência de A na Unidade de Saú-de 1 entre XX:XXh e as XX:XXh, do dia XX-XX-XXXX, por motivos de consulta médica.

5. Fê-lo preenchendo, com o seu próprio punho, o modelo pré-impresso e pré-escrito em uso na Unidade 1 para atestar os períodos de tempo de presença de utentes nas Unidades de Saúde quando estes ali se deslocam para comparecer a atos médicos ou de enfermagem, por si ou como acompanhantes, ou simplesmente para tratarem de assuntos relacionados com os serviços pres-tados pela Unidade de Saúde.

6. Em concreto, o(a) trabalhador(a) arguido(a) manuscreveu nos campos em branco da decla-ração os seguintes dizeres: “A” (o nome da be-neficiária da declaração); “XX-XX-XXXX”, das “XX:XX”h às “XX:XX”h (a data e hora de com-parência); “consulta” (o motivo da comparência) “Z XX-XX-XXXX” (o local e data de emissão da declaração). Por fim, apôs o carimbo da enti-dade 1 sobre o qual manuscreveu “(data) XXX (assinatura do(a) trabalhador(a) arguido(a))”.

7. Posteriormente, em hora não concretamente apurada, mas no mesmo dia XX-XX-XXXX, de acordo com o que ficara combinado na conversa telefónica acima referida no ponto 3 da presente acusação, A passou por casa do(a) trabalhador(a) arguido(a) tendo esta entregado àquela, em mão, a declaração, preenchida nos termos já descritos.

8. A declaração em causa destinou-se a ser entre-gue à entidade empregadora de A, entidade 2, a

fim de atestar facto juridicamente relevante qual seja o de justificar a falta dada ao trabalho no dia XX-XX-XXXX, por parte de A, funcionária da referida instituição.

9. Efetivamente, no dia XX-XX-XXXX, a declara-ção deu entrada nos serviços administrativos da entidade 2 que lhe apôs, além da data de entra-da, o carimbo da instituição.

10. Para melhor esclarecimento, reproduz-se aqui a declaração de presença em causa depois de a mesma ter dado entrada nos serviços adminis-trativos da entidade 2:

[imagem omitida]

11. No dia XX de XX de XXXX, estando ao ser-viço no seu posto de trabalho, na Unidade de Saúde 1, o(a) trabalhador(a) arguido(a) re-cebeu novo telefonema da amiga A no qual, alegando igualmente não poder ir trabalhar por estar com muitas dores de cabeça, pediu-lhe que emitisse uma declaração em seu nome atestando a sua presença na Unidade de Saúde 1, a fim de comparecer a consulta médica, entre as XX:XXh e as XX:XXh naquele próprio dia XX-XX-XXXX;

12. O(a) trabalhador(a) arguido(a) acedeu ao pe-dido e, nesse mesmo dia XX-XX-XXXX, em hora não concretamente apurada, mas sendo que foi no fim do dia de trabalho, antes de sair, produziu uma declaração de presença em que atestava a comparência de A na Unidade de Saúde 1 entre XX:XXh e as XX:XXh, do dia XX-XX-XXXX, por motivos de consulta médica.

13. Fê-lo preenchendo, com o seu próprio punho, o modelo pré-impresso e pré-escrito em uso na

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Unidade 1 para atestar os períodos de tempo de presença de utentes nas Unidades de Saúde.

14. Em concreto, o(a) trabalhador(a) arguido(a) manuscreveu nos campos em branco da decla-ração os seguintes dizeres: “A” (o nome da be-neficiária da declaração); “XX-XX-XXXX”, das “X:XX”h às “XX:XX”h (a data e hora de compa-rência); “consulta” (o motivo da comparência) “Z XX-XX-XXXX” (o local e data de emissão da declaração). Por fim, apôs o carimbo da Unida-de de Saúde 1 sobre o qual manuscreveu “[data] [assinatura do(a) trabalhador(a) arguido(a)]”.

15. Posteriormente, em hora não concretamente apurada, mas no mesmo dia XX-XX-XXXX, de acordo com o que ficara combinado na conver-sa telefónica acima referida no ponto 11 da pre-sente acusação, A passou por casa da trabalha-dor(a) arguido(a) tendo esta entregado àquela, em mão, a declaração, preenchida nos termos já descritos.

16. A declaração em causa destinou-se a ser entre-gue à entidade empregadora de A, a entidade 2, a fim de atestar facto juridicamente relevante qual seja o de justificar a falta dada ao trabalho no dia XX-XX-XXXX, por parte de A, funcio-nária da referida instituição.

17. Efetivamente, no dia XX-XX-XXXX, a decla-ração deu entrada nos serviços administrativos da entidade 2 que lhe apôs, além da data de en-trada, o carimbo da instituição.

18. Para melhor esclarecimento, reproduz-se aqui a declaração de presença em causa depois de a mesma ter dado entrada nos serviços adminis-trativos da entidade 2:

[imagem omitida]

19. Consultados os registos de consultas realizados na Unidade de Saúde 1 nos dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, constatou-se a inexistência de qualquer registo de consulta em nome de A (fls. 26 e 27 dos autos).

20. Questionada, em XX-XX-XXXX (no âmbito do proc. insp-extra n.º 3.2/2015/10) sobre a vera-cidade das declarações de presença, o(a) traba-lhador(a) arguido(a), acabou por admitir:i) “a Sr.ª A lhe telefonou para o seu telemóvel

pessoal nos dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, referindo que tinha dores de cabeça e que precisava de uma declaração para apre-sentar no serviço”.

ii) Que foi a própria A “a indicar as horas que queria que constassem na declaração”.

iii) Que “emitiu as declarações conforme lhe ha-via sido solicitado pela Sr.ª A e que havia pas-sado em sua casa, ao final da tarde dos dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, para levan-tar o documento”.

iv) “Que nos dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX a Sr.ª A não esteve, em momento al-gum, na Unidade 1”.

21. Questionada de novo nos mesmos termos, em XX-XX-XXXX, já no âmbito dos presentes au-tos de processo disciplinar, o(a) trabalhador(a) arguido(a) declarou: i) Que “efetivamente, nos dias XX-XX-XXXX e

XX-XX-XXXX, recebeu um telefonema de A, sua amiga, em que aquela lhe pediu para a de-poente lhe passar uma declaração de presença na Unidade 1, entre as XX:XXh e as XX:XXh, do primeiro referido dia, e das XX:XXh às XX:XXh do 2.º referido dia”;

ii) Que “anuiu a esses pedidos e, no fim do dia

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de trabalho, antes de sair, produziu pelo seu próprio punho as declarações, nos termos so-licitados pela sua amiga A, nas quais apôs o carimbo da Unidade 1 e a sua assinatura.

iii) Que “posteriormente, no mesmo dia, e tam-bém como haviam combinado no telefonema, A passou por sua casa e levou as declarações.”

22. Tendo-lhe sido exibidas, na ocasião da inqui-rição, a cópia das declarações, a trabalhadora confirmou-as “tal como se apresentam nas có-pias constantes de fls. 10 verso dos autos”.

23. Declarou que “emitiu as declarações apenas por ser amigo(a) da beneficiária, sendo certo que não tem com A uma amizade muito profunda”.

24. Questionada sobre se havia obtido vantagens económicas ou outras pela emissão das decla-rações respondeu que “não teve contrapartidas de qualquer natureza pela emissão das declara-ções”.

25. Mais declarou que “nunca havia emitido qual-quer outra declaração desconforme com a verda-de” e que “as que deram origem ao presente pro-cesso disciplinar foram as únicas e aconteceram porque A insistiu muito com o(a) depoente para as passar, fazendo crer que estava com muitas do-res de cabeça e que não podia ir trabalhar”.

26. Asseverou que “na altura não tinha a noção da gravidade de tais atos. Nem lhe passava pela cabeça que tais atos pudessem até constituir a prática de crime”.

27. Por fim, o(a) trabalhador(a) arguido(a) asse-gurou que “está profundamente arrependido(a) de ter emitido as declarações” e que “não vol-tará, vez alguma, a emitir declarações que não

sejam verdadeiras.”

28. B, superior hierárquica do(a) trabalhador(a) arguido(a), inquirida no dia XX-XX-XXXX, disse que o(a) trabalhador(a) arguido(a) “é uma pessoa que demonstra algumas fragilida-des psicológicas sendo que, inclusive, de XX-XX-XXXX a XX-XX-XXXX, esteve internado(a) na [omitido] para tratamento psiquiátrico”.

29. Acrescentou que o(a) trabalhador(a) argui-do(a) é um(a) funcionário(a) com muitos anos de serviço e que nunca foi alvo de qualquer processo disciplinar tendo sempre exercido as funções administrativas na área do atendimen-to público.

30. Indagada sobre a qualidade do trabalho do(a) trabalhador(a) arguido(a), disse que se trata de um(a) funcionário(a) que “cumpre suficien-temente as suas funções”;

31. E que, atualmente, conta com o(a) trabalha-dor(a) arguido(a) na Unidade 1 e também nas Unidades 3 e 4 sempre que, nestas últimas, ocorrem faltas pontuais de funcionários (no-meadamente por férias ou doença).

32. Não foi possível aceder ao processo individual do(a) trabalhador(a) arguido(a) pela razão de que se perdeu irremediavelmente no incên-dio que atingiu a anterior sede da Unidade 1 e, pela mesma razão, não foi possível obter o certificado de registo disciplinar do(a) traba-lhador(a) arguido(a), sendo certo, porém, que os serviços da Unidade 1 afirmam não ser do seu conhecimento que o(a) trabalhador(a) ar-guido(a) tenha sido condenada em qualquer pena disciplinar.

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33. Foi possível, no entanto, obter um extrato do histórico dos registos de distribuições no SGC relativos ao(à) trabalhador(a) arguido(a), des-de a data de XX-XX-XXXX (fls. 29 a 32), no qual se observa:i) Uma prolixa quantidade de entradas deno-

minadas “Certificado de Incapacidade Tem-porária para o Trabalho” e de “Atestado mé-dico”.

ii) Que o número de entradas com aquelas de-nominações aumenta nos anos de XXXX (9) e XXXX (9).

iii) Que nas datas de XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, constam duas entradas denomina-das “declaração de internamento” (cfr. ponto 28 da presente acusação).

II. FACTOS NÃO PROVADOS

34. Concluída a instrução nenhum facto principal ficou por provar.

MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E ENQUADRAMENTO JURÍDICO

35. Na emissão do juízo qualificativo dos tipos de infração e na dosimetria concreta da pena, a entidade administrativa goza de uma ampla margem de liberdade de apreciação e avaliação. A obrigação de fundamentação que impende sobre o instrutor, a obrigação de exposição de motivos de facto e de direito que hão de fun-damentar a proposta de decisão significa que a acusação há de conter os elementos que, em razão da experiência, ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do instrutor se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as pro-

vas que concorreram para a formação da con-vicção do instrutor num determinado sentido.

III. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

36. A convicção do instrutor assentou no conjunto da prova produzida na fase instrutória e livre-mente analisada.

37. A permanência de utente numa unidade de saúde a aguardar consulta por um período de 6 horas e, decorridos 12 dias, no mesmo local, passar outras 7 horas a aguardar por consulta, mostra-se inverosímil.

38. Foi precisamente esta estranheza que motivou a participação dos factos por parte da entidade recetora das declarações administrativas (enti-dade 2) a esta IReS, bem como esteve na base da decisão de instaurar o antecedente processo de inspeção extraordinária, que serve de base ins-trutória ao presente processo disciplinar, uma vez que os longos períodos de permanência na unidade de saúde, atestados pelas declarações, desafiam as máximas de experiência comuns.

39. As suspeitas de que havia ocorrido fraude na emissão dos documentos administrativos veio a confirmar-se quer pela verificação dos regis-tos de consultas realizadas na Unidade de Saú-de 1 nos dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, nos quais não constava o nome de A, quer pelas próprias declarações da autora dos documentos, o(a) trabalhador(a) arguido(a), que confessou a falsidade do conteúdo das declarações de pre-sença e que as emitiu em benefício de A.

40. Assumimos como credíveis, na generalidade, as declarações do(a) trabalhador(a) arguido(a) e

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como credíveis, sem reserva, as declarações da testemunha B.

41. Os critérios para a aferição da maior ou menor credibilidade dos testemunhos socorrem-se das máximas de experiência (comuns, técnicas e axiológicas) inerentes à livre apreciação da pro-va testemunhal.

42. O(a) trabalhador(a) arguido(a) confessou a prática dos factos, tendo acrescentado que não teve a completa noção da gravidade dos factos que praticava e que se tratou de um ato gratuito, sem contrapartidas de qualquer natureza, feito por amizade à beneficiária das declarações.

43. O(a) trabalhador(a) arguido(a) deu mostras credíveis de que se encontra muito arrependi-do(a) e que não voltará nunca a praticar seme-lhantes factos.

44. Tendo ainda manifestado de modo credível que a instauração deste e do antecedente processo de inspeção extraordinária teve sobre si um efeito “aflitivo” e de consternação.

45. Damos por assente que o(a) trabalhador(a) não tem contra si qualquer passado de registo disciplinar, quer por desconhecermos o even-tual conteúdo desse registo, que se perdeu por facto não imputável ao(à) trabalhador(a) ar-guido(a), quer por os serviços da Unidade 1 declararem não ser do seu conhecimento que o(a) trabalhador(a) arguido(a) tenha sido condenado(a) em qualquer pena disciplinar, quer ainda por B, superior hierárquica do(a) trabalhador(a) arguido(a), afirmar que o(a) trabalhador(a) arguido(a) nunca foi alvo de qualquer processo disciplinar.

46. A avaliar pelos registos de entrada no SGC de certificados de incapacidade temporária, na época dos factos o(a) trabalhador(a) argui-do(a) atravessava um período instável no que respeita à sua saúde, tendo, inclusive, estado in-ternado(a) para tratamento psiquiátrico entre os dias XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX.

IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS

DA ILICITUDE

47. A relação de serviço jurídico-pública é antes de tudo uma abrangente relação de dever que ser-ve o interesse público em nome da integridade e da confiança. Se através de um certo comporta-mento o funcionário viola aquela relação de de-ver (que lhe incumbe pela posição em que está investido e pela função que cumpre) e, por aí, a integridade e a confiança de que certo serviço deve gozar, comete, sob determinados pressu-postos, um ilícito disciplinar e torna-se passível de medidas (sanções) disciplinares (1).

48. O artigo 183.º do Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, define a infração disci-plinar como “o comportamento do trabalhador, por ação ou omissão, ainda que meramente cul-poso, que viole deveres gerais ou especiais ineren-tes à função que exerce”.

49. De acordo com o vertido no acórdão do Supre-mo Tribunal Administrativo, de 23-10-2008, “deveres, para fins disciplinares, são todos aque-les imperativos comportamentais e funcionais que visam assegurar o bom e regular funciona-

(1) Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 158.

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mento dos serviços: gerais, os que normalmen-te se impõe a todo o servidor público; especiais, aqueles cuja observância decorre das particula-ridades especiais de cada serviço”.

50. A infração disciplinar é uma infração formal, isto é, a verificação da facti specie normativa é, por si só, considerada danosa, sem que seja ne-cessária a ocorrência ou a demonstração de um dano específico, ou seja, o resultado da conduta ilícita não é um elemento constitutivo do tipo legal.

51. A infração disciplinar resulta, pois, da violação dos deveres que impendem sobre o trabalhador público e a ilicitude da conduta na negação dos valores que lhes subjazem.

52. Em abstrato, a falsificação da declaração de pre-sença constitui o(a) trabalhador(a) arguido(a) na violação dos deveres gerais de:

i. PROSSECUÇÃO DO INTERESSE PÚBLI-CO, que consiste na defesa do interesse pú-blico, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (2).

a) Dever de amplitude máxima que exprime a natureza da atuação da Administração Pú-blica e do qual a maioria dos restantes deve-res são espelhos particularizados. O interes-se público é a causa exclusiva e determinante da atividade administrativa e é a prossecu-ção desse interesse que justifica e limita os poderes e competências dos órgãos e servi-ços públicos.

Na sua atividade, os trabalhadores estão exclusivamente obrigados à prossecução do

(2) Artigo 73.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), aprovada pela lei 35/2014 de 30 de junho.

interesse público do qual decorre o dever de não apoiar ou patrocinar interesses particu-lares, de não intervir nos assuntos em que possam ter interesses diretos ou indiretos e de não prosseguir interesses próprios que possam conflituar com os interesses públi-cos que devem defender e realizar.

b) O(a) trabalhador(a) arguido(a) violou o dever de prossecução do interesse público, na medida em que a emissão das declarações administrativas de XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, a favor de uma amiga, em autoria material, de modo livre e consciente, bem sabendo que não correspondiam à verdade, consubstanciam a prossecução de um inte-resse privado, proibido por lei, sem suporte em direito subjetivo ou interesse legalmen-te protegido, fazendo uso ilícito de meios e documentos oficiais que lhe estão confiados para o exercício de funções públicas.

ii. ISENÇÃO, que consiste em não retirar van-tagens, diretas ou indiretas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exerce (3).

a) Seguindo de perto Ana Fernanda Neves, o dever de isenção concretiza-se, “no dever de atuar com independência em relação aos interesses e pressões particulares de qualquer índole, de caráter económico, político ou ou-tro, sejam seus ou de terceiros…”; “no dever de abster-se de participar nas adoção de decisão, atividades ou tarefa que por qualquer forma envolva os seus interesses pessoais ou de orga-nizações a que esteja ligado…”; “ dever de não adotar qualquer comportamento discrimina-tório…” (4).

(3) Artigo 73.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4, da LTFP. (4) Ana Fernanda Neves, Direito Disciplinar da Função Pública, (dissertação

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b) O(a) trabalhador(a) arguido(a) violou o dever de isenção, na medida em que a emis-são das declarações administrativas de XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, a favor de uma amiga, em autoria material, de modo livre e consciente, bem sabendo que não correspon-diam à verdade, permitiriam à amiga do(a) trabalhador(a) arguido(a) justificar as fal-tas dadas ao trabalho nas datas a que cor-respondiam as declarações administrativas, obtendo assim vantagens por meios ilícitos proporcionados pelo(a) trabalhador(a) ar-guido(a). Com efeito, as declarações foram entregues à entidade patronal de A para os mencionados fins, só não logrando sucesso devido à desconfiança da entidade emprega-dora recetora das declarações.

iii. IMPARCIALIDADE, que consiste em de-sempenhar as funções com equidistância relativamente aos interesses com que seja confrontado, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspetiva do respeito pela igualdade dos cidadãos (5).

a) Em íntima consonância com o princípio da prossecução do interesse público, surge o princípio da imparcialidade que impõe que a Administração Pública e os seus tra-balhadores atuem de forma equidistante re-lativamente aos interesses que estejam em confronto ou que sejam postos em causa em resultado da sua atividade. A imparcialida-de, enquanto princípio regulador da ativida-de administrativa, tem como primeira repre-sentação a proibição de “favores” e de “odia”.

b) O(a) trabalhador(a) arguido(a) violou o de-ver de imparcialidade, na medida em que a

de doutoramento não editada), vol. II, Lisboa, 2007, p. 196, p. 221.(5) Artigo 73.º, n.º 2, alínea c), e n.º 5, da LTFP.

emissão das declarações administrativas de XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, a favor de uma amiga, em autoria material, de modo li-vre e consciente, bem sabendo não que corres-pondiam à verdade, representa a prestação de um favor o qual, mais do que um tratamento privilegiado mas ainda enquadrado pela ati-vidade administrativa prosseguida pela enti-dade pública, é, a todos os títulos, ilícito.

iv. ZELO, que consiste em conhecer e aplicar as

normas legais regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objetivos que tenham sido fixados e utilizan-do as competências que tenham sido consi-deradas adequadas (6).

a) Este dever assume-se como dever de diligên-cia, de competência, de aplicação e de brio profissional no concreto desempenho e exe-cução das funções por parte do trabalhador, violando tal conduta funcional se o mesmo se afastar daqueles padrões, mormente, por não aplicação do empenho, dos conheci-mentos e meios apropriados.

b) O(a) trabalhador(a) arguido(a) violou o dever de zelo, na medida em que a emissão das declarações administrativas de XX-XX-XXXX e XX-XX-XXXX, a favor de uma amiga, em autoria material, de modo livre e consciente, bem sabendo não que corres-pondiam à verdade, manifesta a ausência de brio profissional e desconsideração pela integridade e confiança do serviço público onde exerce funções, valores em relação aos quais, ao invés, tinha a obrigação de diligen-ciar e de zelar pela sua defesa.

(6) Artigo 73.º, n.º 2, alínea e), e n.º 7, da LTFP.

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DA CULPA

53. A par da ação objetivamente ilícita (a emissão das declarações com conteúdo falso, produzi-do em violação de deveres da trabalhadora), a infração disciplinar é necessariamente culposa.

54. A categoria da culpa “adiciona um novo elemen-to (…) à ação ilícita (…), sem a qual nunca po-derá falar-se de facto punível. (…) [é necessário que] a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude in-terna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exi-gências do dever-ser…” (7).

55. A exigência da culpa, de censurabilidade ética e individual do trabalhador constitui elemento integrativo da infração disciplinar e exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente que, em face das circunstâncias espe-cíficas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo entre o facto e a vontade do autor e pode revestir duas formas: o dolo e a negligência (8).

56. O dolo é a intenção de provocar um evento ou resultado contrário ao Direito. O agente prevê e quer o resultado antijurídico, tendo consciência da ilicitude da conduta (9). Ou, numa formula-ção mais sintética, o dolo consiste no conheci-mento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito (10).

(7) Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 230. (8) A. Varela, Das Obrigações, 3.ª ed., 1.º p. 456; e 5.ª ed., 1., p. 519. (9) Galvão Telles, Direito das Obrigações, 4.ª ed., p. 269.

(10) Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 332.

57. Por seu turno, a negligência consiste em o agen-te não ter usado da diligência exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o evento (11). Ou, de outro modo, é a violação do cuidado a que o agente, segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos, está obrigado a ter e é ca-paz de prestar (12).

58. Perante a configuração dos factos dados como provados, damos por assente que o(a) traba-lhador(a) arguido(a) atuou com dolo na mo-dalidade mais intensa de dolo direto.

DO NEXO DE CAUSALIDADE

59. O nexo de causalidade ou, com maior proprie-dade, a imputação objetiva do resultado à con-duta, é um capítulo da dogmática jurídica res-peitante aos ilícitos de resultado, ou seja, ilícitos em que atividade do agente tem repercussões no mundo físico (ou jurídico), importando ve-rificar não apenas se o resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído (impu-tado) à conduta, dependendo a responsabiliza-ção do agente da verificação da imputação – o facto como “obra” do agente.

60. Dissemos já, no ponto 50 da presente acusa-ção, que a infração disciplinar é uma infração formal, o que significa dizer que o resultado da conduta ilícita não é um elemento constitutivo do tipo ou, de outro modo, o preenchimento objetivo do tipo de ilícito disciplinar satisfaz-se com a mera atividade do agente que viole deve-res inerentes à função que exerce, independen-temente dos efeitos físicos (ou jurídicos) que a violação dos deveres ocasione.

(11) Eduardo Correia, Direito Criminal, 1963, I – p. 421. (12) Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 631.

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61. Assim, se se mostra irrelevante a análise do nexo de causalidade na determinação da res-ponsabilidade do trabalhador, já no que con-cerne ao passo seguinte de determinação da medida da sanção a aplicar importa ponderar eventuais circunstâncias agravantes da respon-sabilidade disciplinar, sendo que, de entre elas, a lei estabelece uma que remete para a ocorrên-cia efetiva de resultados prejudiciais ao serviço ou ao interesse geral produzidos pela conduta violadora de deveres.

62. Reza o artigo 191.º da LTFP:“São circunstâncias agravantes especiais da infração:a) (…)b) A produção efetiva de resultados prejudiciais ao

órgão ou serviço ou ao interesse geral, nos casos em que o trabalhador pudesse prever essa conse-quência como efeito necessário da sua conduta;

(…)” 63. A circunstância agravante da responsabilidade

disciplinar prevista na alínea b) do art.º 191.º da LTFP, aplica-se sempre que o agente da infração previu a produção de resultados prejudiciais ao serviço ou ao interesse geral como consequên-cia necessária da sua conduta, ou seja, quando o agente tenha atuado com dolo necessário.Nos casos de dolo necessário, a realização do facto surge como consequência necessária no sentido de consequência inevitável, se bem que secundária relativamente ao fim da conduta.

64. O(a) trabalhador(a) arguido(a) não pretendeu com a sua conduta, em primeira linha ou como objetivo primeiro, prejudicar o serviço ou o in-teresse geral (dolo direto) mas não pôde deixar de representar como consequência necessária e inevitável a lesão do interesse geral ou coletivo

na medida em que (e julgamos desnecessário referir mais do que estas razões) o(a) trabalha-dor(a) arguido(a) é funcionário(a) público(a), Assistente Técnico(a) na Unidade 1 desde há muitos anos, sendo-lhe exigível - bastando para isso recorrer ao padrão do trabalhador público médio - que tenha já adquirido a consciência dos valores básicos a prosseguir e a defender pela Administração Pública, bem como dos de-veres que lhe são especialmente acometidos no exercício das funções como trabalhador(a) da Administração Pública. Ademais, afirmamos a existência do dolo ne-cessário porque não se tratou de um compor-tamento de menor importância (ainda que vio-lador de deveres) de tal modo que se pudesse arguir a inexistência do dolo ou que o resultado não tivesse sido de molde a prejudicar o servi-ço ou o interesse geral. Na verdade, a conduta do(a) trabalhador(a) arguido(a) reveste-se de especial gravidade a tal ponto de se tratar de um comportamento que fere bens jurídicos passí-veis da mais intensa tutela social, a tutela penal, traduzida na consagração do tipo de crime de falsificação de documentos, previsto e punido pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, a que acresce o facto de se tratar de um crime de natureza pública (punido independentemente de apresentação de queixa por eventual lesado).

65. Assim, consideramos provado o nexo de cau-salidade entre a conduta do(a) trabalhador(a) arguido(a) e o prejuízo para o serviço ou o in-teresse geral, tendo o(a) trabalhador(a) argui-do(a) agido com dolo necessário quando, ao emitir as declarações de presença sabendo que se destinavam a alterar a verdade a respeito de facto juridicamente relevante, sabia igualmente que, com isso, prejudicava necessariamente a reputação do serviço e o interesse geral na inte-

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gridade da Administração Pública e a confiança que a Administração Pública deve gozar peran-te os cidadãos que serve (13).

DA ILICITUDE PENAL

66. Vista e ponderada a matéria de facto e verifica-da que está a ilicitude e a culpa do(a) trabalha-dor(a) arguido(a), que nos permitem, desde já, concluir pela prática, em autoria material e com dolo direto, de duas infrações disciplina-res, importa ponderar se a conduta do(a) tra-balhador(a) arguido(a) não é ainda suscetível de configurar a prática de crime.

67. Em abstrato, a conduta do(a) trabalhador(a) arguido(a), pode consubstanciar a prática, em autoria material e com dolo direto, de dois cri-mes de falsificação de documentos previstos e punidos pelo art.º 256.º, n.º 1, alínea b) do Có-digo Penal (14).

68. Como se concluiu, as declarações administrati-vas de XX-XX-XXXX e de XX-XX-XXXX cujas cópias constam dos pontos 10 e 18 da presente acusação, enfermam de falsidade intelectual (15).

69. A falsidade em documento consiste em fazer constar em documento narrativo facto falso ju-

(13) Note-se que o dolo direto sustentado nos pontos 51 a 55, reporta-se não à relação entre a vontade do agente e o resultado consubstanciado nos prejuízos efetivos para o serviço ou para o interesse geral, mas à relação entre a vontade do agente e os factos principais (que são, neste caso, a emissão das declarações administrativas destinadas a alterar a verdade a respeito de factos juridicamente relevantes). (14) Segundo o qual: “Quem, com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo: (…), b) fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante.” (15) Falsidade ideológica ou intelectual é a discrepância entre o conteúdo do documento e a verdade, cfr. Castro Mendes, Direito Civil Teoria Geral, 1979, III, p.355.   É a omissão da verdade em documentos materialmente verdadeiros, ou neles inserir declaração falsa, com a intenção de criar uma obrigação ou alterar a verdade a respeito de facto juridicamente relevante; o mesmo que falsidade intelectual. In http://www.enciclopedia-juridica.biz14.com/pt (último acesso em 30-07-2015).

ridicamente relevante (16).

70. O bem jurídico protegido pela incriminação da falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.

71. Quanto ao tipo subjetivo do ilícito, o crime de

falsificação de documentos é um crime inten-cional, isto é, o agente necessita de atuar com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pes-soa benefício ilegítimo”.

72. Diante da prova recolhida, resultou provado que o(a) trabalhador(a) arguido(a) emitiu as duas declarações administrativas de modo in-tencional, livre e consciente, bem sabendo que produzia documentos falsos que se destinavam a atestar facto juridicamente relevante, qual seja o de justificar faltas ao trabalho por parte da trabalhadora A da entidade 2, que, deste modo, retiraria um benefício ilegítimo proporcionado pelo(a) trabalhador(a) arguido(a).

73. Consequentemente, em tese, haveria lugar a de-núncia obrigatória ao Ministério Público, pre-vista nos artigos 179.º, n.º 4, da LTFP e artigo 242.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por fortes indícios de se verificar a práti-ca do crime de falsificação de documento.

74. Todavia, na esteira do entendimento desde logo assumido pelo Sr. Inspetor Regional da Saúde, em despacho proferido no processo de inspeção extraordinária que esteve na génese dos presen-tes autos, é igualmente do nosso entendimento que tal denúncia não deve ocorrer. Porque subscrevemos na íntegra os fundamen-

(16) Cfr. Helena Moniz, comentário ao art.º 256.º do Código Penal, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, e José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, 2.ª ed. atualizada, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 61 e ss.

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tos explanados no referido despacho, passamos a reproduzi-los:

“A IReS tem adotado uma postura pedagógica e preventiva noutros processos similares em que, por ausência de rotinas de fiscalização, displi-cência dos inspecionados e tomando em consi-deração a sua maior ou menor colaboração (v.g. confissão), opta-se por um alerta veemente, sem tolerância no futuro.Precisamente sustentado na função administra-tiva que a IReS prossegue, a decisão final pode submeter-se a um princípio de oportunidade.No presente caso considero que a denúncia ao MP, nos termos do art.º 242.º do CPP, é dispen-sável, não só por força do princípio da oportuni-dade, mas também e sobretudo do da boa admi-nistração; da lógica de economia de meios; a que se associa a regular administração da justiça (e dos custos associados), devendo evitar-se o seu congestionamento com “bagatelas penais” (cf. Diário de Notícias, «Bagatelas penais entopem a justiça», 14-11-2010).Conforme refere FREDERICO DE LACERDA DA COSTA PINTO, «Delitos de bagatela (in minimis doctrine in criminal cases), Revista Penal, n.º 35, ja-neiro, 2015, p. 338, existem três filtros de legitimida-de da intervenção penal: a relevância constitucional do bem jurídico; a dignidade penal do facto proibido (em função, designadamente, da sua elevada dano-sidade e intolerabilidade social) e a adequação da tutela penal aos fins preventivos do sistema (cf. tam-bém TEREZA PIZARRO BELEZA, Direito Penal, vol. I, 2.ª ed., AAFDL, 1984, pp. 35 e ss.; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª ed. Coimbra, 2007, pp. 106 e ss.)Se, por um lado, as responsabilidades do(a) traba-lhador(a) da Unidade 1, bem como a existência de alternativas à tutela penal tornam desnecessária, a meu ver, a referida denúncia ao MP, por outro lado

considero que no presente caso o mero alerta seria insuficiente para acautelar os efeitos pedagógicos e preventivos. A ostensividade e gravidade do caso indiciam hábitos que urgem ser combatidos e debe-lados sem parcimónia, em vista a assegurar a pre-venção geral (isto é, relativamente a outros trabalha-dores “tentados” a idêntica conduta de “amiguismo” ou favorecimento). Pelo que este caso reclama, a meu ver, a instauração de procedimento disciplinar.”

CIRCUNSTÂNCIAS DIRIMENTES

75. Não se vislumbra qualquer circunstância diri-mente, isto é, que exclua a ilicitude dos factos praticados pelo(a) trabalhador(a) arguido(a) ou que exclua a sua a culpa (artigo 190.º, n.º 1 da LTFP).

CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES ESPECIAIS

76. Acompanhando o entendimento de PAULO VEIGA E MOURA/CÁTIA ARRIMAR, “as circunstâncias atenuantes especiais são circuns-tâncias anteriores ou posteriores à prática da infração que diminuem de forma acentuada a necessidade da punição disciplinar. Nada reve-lam, como tal, em sede de ilicitude nem de culpa, mas o passado do empregado público ou o com-portamento posterior à infração conduzem po-tencialmente a uma diminuição das exigências disciplinares e da gravidade da pena com que efetivamente se vai sancionar o comportamento ilícito e culposo” (17).

77. Na mesma obra e no mesmo local, aqueles au-

(17) Paulo Veiga e Moura/Cátia Arrimar, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º vol., 1.ª ed., ed. Arco de Almedina, 2004, p. 566.

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tores entendem ainda que a enunciação legal das atenuantes especiais é “efetuada de forma taxativa, pelo que as únicas circunstâncias que podem atenuar a pena disciplinar são as mencio-nadas nas diversas alíneas do n.º 2”.

78. Ousamos discordar desta última asserção no sentido de não considerarmos o elenco das cir-cunstâncias atenuantes especiais como taxativo na medida em que:

a) Do enunciado do n.º 2 do art.º 190.º –“São circunstâncias atenuantes especiais da infra-ção disciplinar” – não se retira a taxatividade da enumeração que se lhe segue, sendo certo que também não se retira a conclusão con-trária.

b) À semelhança do argumento maioritário na

doutrina que sustenta a não taxatividade das alíneas respeitantes ao n.º 1 do mesmo ar-tigo (circunstâncias dirimentes da respon-sabilidade, de cuja enunciado legal não se retira, igualmente a não taxatividade), com base na ideia de que o princípio da unidade jurídica impõe que uma conduta considera-da lícita por um ramo do direito não pode nunca ser reputada de ilícita à face do direi-to disciplinar, razão pela qual, para além das enumeradas no n.º 1, outras circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar se terão de admitir, também em relação ao n.º 2 procede o argumento da unidade ju-rídica, sob pena de vermos no âmbito do direito sancionatório ramos em que são ad-mitidas determinadas atenuante especiais e/ou que recorrem a cláusulas abertas e outros em que as atenuantes especiais se encontram “blindadas”.

A exemplo disso, o n.º 2 do artigo 72.º do Có-

digo Penal (18) prevê atenuantes especiais da pena em cláusula aberta e incluindo na enumeração exemplificativa, entre outras, a figura do arrependimento sincero.

c) A considerar-se taxativa a enunciação das atenuantes especiais do n.º 2 do art.º 190.º da LTFP, ficar-se-ia sem espaço legal em ma-téria disciplinar para, nomeadamente, pon-derar o arrependimento sincero do trabalha-dor como atenuante da pena, uma vez que a figura do arrependimento não consta das alíneas do n.º 2 e não seria ao abrigo do n.º 3 do mesmo artigo que essa ponderação seria possível. Efetivamente, o n.º 3 reporta-se às circunstâncias atenuantes que diminuam a culpa do trabalhador e não às circunstâncias que atenuem a pena a aplicar, previstas no n.º 2. A culpa, elemento constitutivo da infra-ção penal, é apreciada em momento anterior porque contemporânea da conduta ilícita. O arrependimento sincero só pode ocorrer em momento posterior à conduta ilícita e culpo-sa e, por isso, a sua ponderação só tem lugar para efeitos de atenuação da pena.Acresce que também não vemos que esteja no art.º 189.º da LTFP a base legal de inter-venção do arrependimento sincero como atenuante: atender ao “grau de culpa”, à “personalidade” do trabalhador e a “todas as circunstâncias em que a infração tenha sido

(18) Art.º 72.º, n.º 1 do Código Penal: “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.” Reza o n.º 2: “Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente atuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;  b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;  c) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.” Finalmente, diz o n.º 3: “Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”

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cometida” é atender a realidades diversas da figura do arrependimento porque contem-porâneas da infração.

79. Assim, da lista do artigo 190.º, n.º 2 da LTFP, são suscetíveis de beneficiarem o(a) trabalha-dor(a) arguido(a) as circunstâncias atenuantes especiais da medida da pena que se reportam à “prestação de mais de 10 anos de serviço com exemplar comportamento e zelo”, à “confissão espontânea da infração”, às quais acresce, con-forme sustentamos, o arrependimento sincero.

i. Prestação de mais de 10 anos de serviço com exemplar comportamento e zelo

a) O(a) trabalhador(a) arguido(a) exerce fun-ções na (atual) Unidade 1 há 33 anos.

b) Não tivemos acesso ao seu processo indivi-dual, pelas razões aduzidas nos pontos 16 e 32 da presente acusação, nem, consequente-mente, às avaliações de serviço do(a) traba-lhador(a) arguido(a).

c) Tem sido entendido pela jurisprudência e pela doutrina que a aplicação da atenuante prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 198.º da LGTFP tem como pressuposto “…que se tenha pelo menos dez anos de serviço avaliados com a menção máxima” (19), ou o trabalhador “…denote elementos que permitam qualificá-lo como modelar” (20), ou seja, “…cujo desempe-nho e comportamento constituam um exemplo para os demais e não aos funcionários que,

(19) Paulo Veiga e Moura, ob. cit., p. 175. Considera-se, porém, que o entendimento do autor só deve ser atendido se se entender «avaliação máxima» como «desempenho relevante» ou «bom» e não «desempenho excelente» ou «muito bom», caso contrário estar-se-ia a adicionar um requisito sem sustentação legal. Até porque no quadro do SIADAPRA a menção de «desempenho excelente» só pode ser atribuído a pedido do superior hierárquico ou do avaliado.(20) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 09/12/1998, proc. n.º 38100, apud M. Leal-Henriques, Procedimento Disciplinar, 4.ª ed., Rei dos Livros, Lisboa, 2002, p.218.

ainda que de forma séria, empenhada e edu-cada, cumpram com normalidade o seu dever funcional, ou seja, a referida atenuante está reservada para funcionários que, pela quali-dade do seu trabalho e do seu comportamento, se destaquem dos demais e que, por isso, são apontados como exemplo a seguir” (21).

d) A superiora hierárquica do(a) trabalha-dor(a) arguido(a) não foi indagada a propó-sito do comportamento e zelo da trabalha-dora mas, nas declarações que resumimos no ponto 28 a 30 da presente acusação, refe-re-se ao(à) trabalhador(a) arguido(a) como sendo um(a) funcionário(a) que “cumpre su-ficientemente as suas funções”.

e) Temos que essa apreciação da superior hie-rárquica do(a) trabalhador(a) arguido(a) é bastante para que entendamos não estarem reunidas as condições para a aplicação desta circunstância atenuante.

ii. Confissão espontânea da infração

a) Relativamente à atenuante prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 190.º da LGTFP, a norma refere que não basta a mera confissão, pois é necessário que seja igualmente espontânea (22). É jurisprudência unânime que “…a con-fissão só é tida como relevante quando for fei-ta em tempo útil e de molde a ter contribuído decisivamente para a descoberta da verdade e sem que resulte evidência dos factos, pelo que a mesma não releva quando, face à exuberância dos elementos de prova constantes no processo disciplinar, o reconhecimento da prática dos factos por parte do arguido em nada contri-

(21) Acórdão do TCAS, proc. n.º 06736/02, de 04/10/2007 (relator: Rui Pereira), in www.dgsi.pt (última consulta 01/07/2007). (22) Do latim tardio spontaneus, querer por livre vontade, correlato de (sua) sponte, por seu próprio acordo.

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buiu para o apuramento da verdade” (23).

b) O(a) trabalhador(a) arguido(a) colaborou com a instrutora quando foi ouvido(a) nos âmbito do antecedente processo de inspeção extraordinária e com o ora instrutor no âm-bito dos presentes autos de processo disci-plinar. O seu testemunho e confissão foram considerados credíveis, na generalidade, ajudando no apuramento dos factos e da verdade material.

c) Donde, dever-se-á aplicar ao(à) trabalha-dor(a) arguido(a) a atenuante especial de confissão espontânea.

iii. Arrependimento sincero

a) Considerámos como credíveis as declara-ções do(a) trabalhador(a) arguido(a) (pon-to 40), sendo que tivemos a oportunidade de proceder à sua audição presencialmente.

b) O(a) trabalhador(a) arguido(a) disse estar

“profundamente arrependido(a) de ter emiti-do as declarações” e, a avaliar pelos indícios verbais e não-verbais manifestados, conside-ramos sincera tal declaração, pelo que deve ser tida em conta como atenuante da sanção.

CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES EXTRAORDINÁRIAS

80. A atenuante prevista no n.º 3 do artigo 190.º da LTFP, reporta-se a circunstâncias que tenham a virtualidade de diminuir substancialmente o juízo de censura a formular sobre o trabalhador.

(23) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proc. n.º 42135, de 25/01/2000 apud M. Leal-Henriques, ob. cit., p.218; Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, proc. n.º 02105/08, de 29/09/1999 (relator: António Coelho da Cunha) in www.dgsi.pt (última consulta 01/07/2011).

81. Porém, são atenuantes que não operam sobre os

juízos de graduação da pena a que corresponde o ilícito, mas antes ao nível da própria escala da sanção disciplinar a aplicar ou, no dizer do n.º 3, “aplicando-se sanção disciplinar inferior”.

82. Tratam-se, portanto, de circunstâncias que não alcançando a virtualidade de excluir a culpa do trabalhador (estas são as dirimentes, v. pon-to 76), são, ainda assim, de tal modo intensas que devem resultar na aplicação de uma sanção de grau inferior àquele a que corresponderia à simples subsunção do ilícito às normas que pre-veem os tipos de sanções disciplinares. Isto é, se se apurasse, por hipótese, que o ilícito praticado decorrera de negligência ou má compreensão dos deveres funcionais, em princípio aplicar-se-ia ao trabalhador, nos termos do artigo 185.º da LTFP, uma sanção disciplinar de multa. No entanto, se interviesse uma circunstância ate-nuante extraordinária, diminuindo “substan-cialmente a culpa do trabalhador” seria então de aplicar uma sanção disciplinar inferior que seria a de repreensão escrita (art.º 184.º da LTFP).

83. Ora, vem tudo isto a propósito de entendermos ser de relevar, com interesse para a graduação da culpa, a circunstância de, na época dos fac-tos, o(a) trabalhador(a) arguido(a) atravessar um período de especial fragilidade psicológi-ca, tendo estado internado(a) para tratamento psiquiátrico entre as datas de XX-XX-XXXX a XX-XX-XXXX (cfr. ponto 28 e 33).

84. Entendemos, porém, que tal facto não tem vir-tudes suficientes para ser ponderado nesta sede, como circunstância atenuante extraordinária. Para este tipo de circunstâncias reservam-se os

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casos especiais, extraordinários ou excecionais, em que uma justa ponderação dos mesmos não se satisfaz com o mero abaixamento da pena dentro de cada uma das molduras disciplinares normais.

85. Assim, entendemos não existir qualquer cir-cunstância atenuante extraordinária, relegan-do-se para a operação de graduação da sanção a ponderação das “condicionantes psicológicas” do(a) trabalhador(a) arguido(a) aquando da prática dos factos.

CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES

86. São suscetíveis de aplicação ao(à) trabalha-dor(a) arguido(a) duas circunstâncias agra-vantes especiais da responsabilidade disciplinar previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 191.º da LTFP.

i. A produção efetiva de resultados prejudi-ciais ao órgão ou serviço ou ao interesse geral.

a) Empreendemos já, nos pontos 61 a 65 da presente acusação, a fundamentação pela qual entendemos ser de aplicar ao(à) tra-balhador(a) arguido(a) esta circunstância agravante e também ali estabelecemos o ne-cessário nexo de causalidade entre a conduta do(a) trabalhador(a) arguido(a) e o resul-tado a que se refere a agravação.

ii. A comparticipação com outros indivíduos para a prática da infração.

b) Nos pontos 3, 4, 7 a 9, 11, 12 e de 15 a 18, des-ta acusação, demos como provada a cumpli-

cidade na prática da infração, em co-autoria moral, da beneficiária das declarações admi-nistrativas, A.

Assim, dando aqui por reproduzidos os pontos da acusação atrás referidos, entendemos ser de aplicar ao(à) trabalhador(a) arguido(a) esta circunstância agravante.

V. ESCOLHA E MEDIDA DA SANÇÃO DISCIPLINAR

87. Recapitulando: o(a) trabalhador(a) arguido(a) praticou 2 infrações; em cada uma das quais violou 4 deveres gerais; beneficia de 2 circuns-tâncias atenuantes especiais a que se opõem 2 circunstâncias agravantes especiais.

88. Na aplicação das penas disciplinares, para além dos casos exemplificativos previstos nos tipos (abertos) de sanções possíveis, desde a repreen-são escrita (artigo 184.º da LTFP) até à pena de demissão (artigo 187.º da LTFP), devem ser ponderadas a natureza, missão e atribuições do serviço da unidade de saúde; o cargo e categoria do trabalhador; as particulares responsabilida-des inerentes à modalidade do seu vínculo de emprego público, ao grau de culpa; à sua per-sonalidade; e a todas as circunstâncias em que a infração tenha sido cometida que militem con-tra ou a favor dela (artigo 189.º da LTFP).

89. A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do in-frator, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infração.

90. Pese embora de exercício discricionário, também deve ser ponderada a possibilidade de eventual SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA SANÇÃO,

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perante o previsto no artigo 192.º, n.º 1 da LG-TFP, isto é, quando atendendo à personalidade do trabalhador, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior à infração e às cir-cunstâncias em que ocorreu, “…se conclua que a simples censura do comportamento e a ameaça da sanção disciplinar realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.

91. O(a) trabalhador(a) arguido(a) é Assistente Técnico(a) e aufere uma remuneração de 902,26 euros (fls. 33 dos autos), de nível médio tendo em conta o nível salarial português.

92. Vive sozinho(a), em casa própria livre de en-cargos à banca.

93. A aplicação da disciplina laboral deve obedecer a um padrão de exigência, atuando de modo im-parcial para com todos os trabalhadores.

94. Deve, pois, afastar-se demonstrações de força para com os trabalhadores mais “fracos” (como é o caso dos da categoria de grau de complexi-dade funcional 2, a que pertence o(a) trabalha-dor(a) arguido(a)) e demonstrações de fraque-za perante os trabalhadores mais “fortes” (como é o caso das categorias profissionais com grau de complexidade funcional 3).

95. Deve a sanção ponderar os efeitos preventivos gerais, isto é, impedir que outros trabalhadores pratiquem condutas semelhantes e transmitir aos utentes e demais utilizadores da Unidade 1 a inaceitabilidade do comportamento do(a) trabalhador(a) arguido(a); e os efeitos pre-ventivos especiais, isto é, de modo a impedir, de uma vez por todas, a repetição da mesma conduta pelo(a) trabalhador(a) arguido(a) (24).

(24) Sobre os conceitos de «prevenção especial e geral» no direito penal, com utilidade para o direito disciplinar, cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 41 e ss. Contra

96. A sanção de repreensão escrita aplica-se a in-frações leves do serviço, o que não é manifesta-mente o caso (artigo 184.º da LGTFP).

97. A sanção de multa é aplicável aos casos de negli-gência ou má compreensão dos deveres funcionais, nomeadamente nas situações exemplificativas re-feridas nas alíneas do artigo 184.º da LGTFP, que também não tem a virtuosidade de se aplicar aos factos apurados nos presentes autos.

98. A pena de despedimento ou demissão aplica-se quando a infração inviabilize a manutenção do vínculo de emprego público. Perante o circuns-tancialismo apurado revelar-se-ia despropor-cional (artigo 187.º da LGTFP).

99. A sanção de SUSPENSÃO aplica-se aos traba-lhadores que “…atuem com grave negligência ou com grave desinteresse pelo cumprimento dos de-veres funcionais e àqueles cujos comportamentos atentem gravemente contra a dignidade e o pres-tígio da função” (artigo 186.º da LTFP)

100. A título exemplificativo, o artigo 186.º da LTFP descreve diversos comportamentos passíveis de serem punidos com a sanção de SUSPEN-SÃO nos quais se incluem as situações em que os trabalhadores “Violem, com culpa grave ou dolo, o dever de imparcialidade no exercício das funções” (artigo 186.º, alínea l) da LTFP).

a finalidade preventiva geral das penas disciplinares, Ana Fernanda Neves, ob. cit., p. 514. A própria autora reconhece, porém, que “a confiança a recuperar [através da sanção disciplinar] não é, por vezes, apenas a do interlocutor disciplinar ou titular do respetivo poder (…) é também a confiança dos elementos da instituição no «acerto» da disciplina vigente (previsibilidade nas atuações futuras; efeito preventivo ou dissuasor da repetição da prática de infrações disciplinares) e, nalguns casos, a compreensão social ante os ecos do exercício da disciplina (inaceitibilidade dos «resultados» da não reação a ações ou omissões disciplinarmente censuráveis)”, embora conclua que não é a prevenção geral que motiva a punição disciplinar. Consideramos que não é a principal motivação da sanção disciplinar, mas não deixa de se encontrar presente, sobretudo perante os desafios que a «sociedade de risco» coloca à generalidade da Administração Pública, cf. Ulrich Beck, Risikogesellschaft: Auf dem Weg in eine andere Moderne (1986), trad. ingl. Risk Society – Towards a New Modernity, SAGE Publications, 1992, pp. 9 e ss.; idem, La Sociedad del Riesgo Mundial – en busca de la seguridade perdida, Paidós, Barcelona, 2008; Daniel Innerarity, La Sociedad Invisible, 2004, trad. port. A Sociedade Invisível, Teorema, 2009. M. Leal-Henriques, ob. cit. p. 118, reconhece expressamente a prevenção geral da pena disciplinar.

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Efetivamente, este foi um dos deveres violados pelo(a) trabalhador(a) arguido(a).

101. De resto, a cláusula geral estabelecida no refe-rido artigo, determina a aplicação da sanção de SUSPENSÃO sempre que o comportamento do trabalhador revele grave desinteresse pelo cum-primento dos deveres funcionais e/ou atentem gravemente contra a dignidade e o prestígio da função. Efetivamente, consideramos que o comportamento do(a) trabalhador(a) argui-do(a) é subsumível a tais cláusulas.

102. A sanção de SUSPENSÃO é, portanto, a san-ção mais adequada à conduta do(a) trabalha-dor(a) arguido(a).

103. A sanção disciplinar de SUSPENSÃO consiste no afastamento completo do trabalhador do órgão ou serviço durante o período da sanção, com a correspondente perda de remuneração e de antiguidade, podendo a suspensão variar entre 20 a 90 dias por cada infração, até ao li-mite máximo de 240 dias por ano (artigo 181.º, n.º 3 e 4 e 182.º, n.º 2 da LGTFP).

104. O(a) trabalhador(a) arguido(a) praticou 2 infrações, com o mesmo perfil de comporta-mento e violadoras dos mesmos deveres, a que corresponderia, em abstrato, uma pena de sus-pensão mínima de 40 dias (=20x2) e máxima de 180 dias (90x2 = 180).

105. Atendendo aos deveres funcionais violados;Ponderado o grau de culpa e as circunstâncias atenuantes especiais e as circunstâncias agra-vantes especiais;Atendendo à missão e natureza do serviço pres-tado pela unidade de saúde, ao cargo e categoria do(a) trabalhador(a) arguido(a), à sua remu-

neração e às suas responsabilidades;Atendendo ainda à personalidade e contexto sociofamiliar do(a) trabalhador(a) arguido(a) e à ausência de antecedentes disciplinares;Ponderado o limite mínimo e máximo abs-trato (40 vs. 180 dias de suspensão) pro-põem-se a aplicação de pena de suspensão de 60 dias, suspensa na sua execução pelo período mínimo legal de 1 ano (25).

O instrutor

Rui Gomes

(25) O artigo 3.º da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, refere que a contagem dos prazos na LTFP faz-se nos termos do Código do Procedimento Administrativo. Por conseguinte, há que apurar se o prazo em questão é adjetivo ou procedimental, ou um prazo substantivo ou material – neste último caso, não se submetendo ao regime do Código do Procedimento Administrativo. Ora, a suspensão enquanto sanção disciplinar é o resultado de um poder diretivo da entidade empregadora (artigos 74.º e 76.º da LTFP), de natureza substantiva e não adjetiva ou procedimental. Pelo que o artigo 72.º Código do Procedimento Administrativo, referente à contagem dos prazos procedimentais, não tem aplicação nos prazos substantivos ou materiais, como é o presente caso de suspensão de funções. Por outro lado, a pena de suspensão é contada com sábados, domingos e feriados na medida em que implica o afastamento do trabalhador arguido das funções, mas também no “…afastamento completo do trabalhador do órgão ou serviço durante o período da sanção” (artigo 181.º, n.º 3 da LTFP). O trabalhador arguido, enquanto tal (já não, obviamente, enquanto utente ou doente que possa vir a recorrer ao serviço nessa qualidade) está impedido de qualquer contato com a entidade empregadora, mesmo nos sábados, domingos e feriados. A contagem dos 60 dias de suspensão de funções deve ser, pois, aferida continuamente, não se suspendendo nos sábados, domingos e feriados.

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RELATÓRIO FINAL

1.1. Nos termos do n.º 1 do artigo 214.º da Lei Ge-ral de Trabalho em Funções Públicas, a 30-11-2015, o(a) trabalhador(a) arguido(a) foi pes-soalmente notificado(a) da Acusação contra si deduzida, com o número IRS-SAI/2015/747, de XX/XX/XXXX (fls. 35 a 66 dos autos), sen-do ainda informado(a) para, querendo, exer-cer o seu direito à audiência prévia.

1.2. Foram-lhe concedidos 10 dias para o exercício do contraditório.

1.3. No mesmo dia, o(a) trabalhador(a) argui-do(a) veio juntar aos autos declaração (a fls. 68 dos autos) manifestando que “aceita a apli-cação da sanção disciplinar proposta”.

1.4. No referido documento, acrescenta o(a) tra-balhador(a) arguido(a) que “prescinde do prazo de 10 dias, que lhe foi concedido, para o exercício do direito ao contraditório”.

1.5. Neste sentido, revelar-se-ia espúrio, por ma-nifesta inutilidade na economia deste Relató-rio, a mera repetição do vertido na Acusação, considerando-se suficiente a sua integração no presente Relatório Final, o que agora se faz expressamente, dando-se aqui por inte-gralmente reproduzida, para todos os legais efeitos.

1.6. Por conseguinte, as faltas disciplinares prati-cadas pelo(a) trabalhador(a) arguido(a), a sua apreciação, qualificação e ponderação e conclusões sobre as matérias de facto e de di-reito, bem como a sanção disciplinar proposta, são as que se encontram vertidas na Acusação, de fls. 35 a 66 dos autos e que agora apenas se

sintetizam:(i)Deveres gerais violados: a) Prossecução do interesse público; b) Isenção c) Imparcialidade; d) Zelo.

(ii)Circunstâncias atenuantes especiais: a) Confissão espontânea da infração; b) Arrependimento sincero.

(iii)Circunstâncias agravantes especiais: a) A produção efetiva de resultados prejudiciais

ao órgão ou serviço ou ao interesse geral; b) A comparticipação com outros indivíduos

para a prática da infração.

(iv)Sanção disciplinar proposta:

PENA DE SUSPENSÃO DE 60 DIAS, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO PELO PERÍODO MÍNI-MO LEGAL DE 1 ANO.

O Instrutor,

Rui Gomes

[A entidade patronal do(a) trabalhador(a) concordou com a proposta]

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INSTRUÇÃO

1. Na sequência do Processo de Inspeção Extraor-dinário n.º 3.2/2015/14, conduzido pela Inspe-ção Regional de Saúde, determinou o Sr. Inspe-tor Regional da Saúde, por despacho, datado de XX/XX/XXXX, a instauração de processo disci-plinar ao(à) trabalhador(a) arguido(a), Assis-tente Operacional da Unidade de Saúde 1.

2. O referido processo foi instaurado “nos termos do artigo 196.º do anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, em virtude da alínea i) do artigo 30.º do DRR n.º 5/2013/A, de 21 de Junho, em conjugação com o artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Despacho n.º 1227/2011 (Regulamento de Proce-dimentos da IReS), por força do artigo 9.º do DL n.º 276/2007, de 31 de Julho, aplicável na RAA pelo DLR n.º 49/2012/A, de 8 de Outubro” (1).

3. No despacho do Sr. Inspetor Regional de Saúde, foi a ora Relatora nomeada, ao abrigo do arti-go 208.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (doravante, apenas LTFP), como ins-trutora do presente Processo Disciplinar n.º 3.4/2015/4.

4. Foram efetuadas as comunicações previstas no n.º 3 do artigo 205.º da LTFP, nos termos do qual “o instrutor informa a entidade que o tenha no-meado, bem como o trabalhador e o participante, da data em que dê início à instrução” (v. fls. 10 a 13-A).

5. Foi requerida a confiança do processo individual do(a) trabalhador(a) arguido(a), bem como o

(1) O despacho foi exarado na Etapa 1 da Distribuição IRS/2015/328 (cf. fls. 1 a 2 dos autos).

certificado de registo disciplinar, de acordo com o estatuído no n.º 1 do artigo 212.º da LTFP.

6. Em sede de instrução processual, foram inqui-ridas as seguintes pessoas no dia e horas indica-dos, bem como nas respetivas qualidades:

•(nome), técnica superior, superiora hierár-quica da arguida (fls. 15 a 17)

•(nome), assistente operacional, arquido(a)(fls. 19 a 21)

7. Foi ainda notificado para prestar declarações, na qualidade de testemunha, no dia 16/10/2015, pelas 10h00, o Sr. B, o qual faltou, sem que ti-vesse apresentado qualquer justificação (v. fls. 14 dos autos).

8. Foram juntos aos autos do processo os seguintes documentos:

•RelatóriodetalhadodaDistribuiçãoIRS/2015/328 (fls. 1 a 2)

•RelatóriodetalhadodaDistribuiçãoIRS/2015/246 (fls. 4 a 9)

•Cópiadadeclaraçãodepresençaemitidapelo(a) trabalhador(a) arguido(a) (fls. 3)

•OfícioSAI->>/XXXX/XXXX,deXX/XX/XXXX (fls.23 a 24)

•DocumentosremetidospelaUnidade1,comadesignação>>> – Processo PROC-IND/XXXX/XXX (fls. 25 a 28);

•Cópia do recibo de remuneração do(a) trabalhador(a) arguido(a), relativo ao mês de Agosto de XXXX (fls. 29 a 30).

PROCESSO DISCIPLINAR (proc. 3.4/2015/4)

Declaração de presença em consulta, emissão de documento, falsificação material e ideológica, acumulação de funções, deveres gerais dos trabalhadores da Administração Pública

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9. Faz parte integrante da base instrutória do pre-sente Processo 3.4/2015/4 – DIS, o Processo Inspetivo Extraordinário n.º 3.2/2015/14 – Declaração de Justificação – XXXX– XXXX– Indícios de Irregularidade, composto por um volume, contendo 46 (quarenta e seis) folhas.

10. O(a) ora trabalhador(a) arguido(a) é porta-dor(a) do Cartão de Cidadão n.º XXXXXXXX, com o NIF XXXXXXXXX, encontra-se inte-grada na carreira/categoria de Assistente Ope-racional e está vinculado(a) à Unidade 1 por contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.

11. O(a) trabalhador(a) arguido(a) está sujei-to(a) ao poder disciplinar da entidade empre-gadora nos termos do artigo 176.º da LTFP.

12. Sobre o processo individual do(a) trabalha-dor(a) arguido(a), importa atender às infor-mações prestadas pela Unidade 1, no ofício n.º SAI->>>>/XXXX/XXXX, designadamente (v.fls. 23 a 24):

“… na sequência do incêndio que destruiu a anterior sede desta Unidade 1, no dia XX de XXXX de XXXX, o respetivo processo físico se perdeu irre-mediavelmente, não tendo sido assim possível re-cuperar qualquer informação do mesmo”.

13. Sobre o certificado de registo disciplinar do(a) trabalhador(a) arguido(a), pode ler-se no identificado ofício:

“…não se torna possível também elaborar o certifi-cado de registo disciplinar (…), embora não seja do nosso conhecimento que o(a) colaborador(a) tenha sido condenada em qualquer pena disci-plinar”.

14. A IReS é competente para a instrução (artigo

1.º, n.º 2 do Decreto Legislativo Regional n.º 28/99/A, de 31 de Julho; artigo 24.º, alínea d) do Decreto Regulamentar Regional n.º 5/2013/A, de 21 de Junho e artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento de Procedimentos da IReS).

ACUSAÇÃO

I. FACTOS

1. Na sequência de participação, remetida pela Sr.ª Chefe da Divisão de Inspeção do Instituto da Se-gurança Social dos Açores, IPRA, por e-mail, da-tado de XX de XXXX de XXXX (fls. 01 do Pro-cesso 3.2/2015/14), foi relatado que, no âmbito de uma fiscalização domiciliária, “no dia X/X/XXXX, cerca das XX:XX, os Inspetores da DI dirigiram-se à pousada da juventude e ao bar da piscina da XXXX, espaços explorados pelo Sr. B, tendo os inspetores sido informados por uma trabalhadora que «o patrão não se encontrava naquele local, em virtude de se encontrar a fazer compras para ven-der na festa XXXX»”.

2. De acordo com o vertido na referida participa-ção, “pelas 14h20m, os inspetores dirigiram-se ao domicílio da PS tendo verificado que estava ausente do domicílio. Deixada notificação foi apresentada justificação (…) como o mesmo se encontrava em consulta médica pelas XX:XX” (fls. 01 do Processo 3.2/2015/14).

3. Acrescentou a Sr.ª Chefe da Divisão de Inspe-ção do Instituto da Segurança Social dos Aço-res. IPRA: “…contatada a Unidade de Saúde 1 fomos informados que o Sr. B foi a uma consulta de urgência no dia X de XXX entre as XX:XX e as XX:XX” (fls. 01 do Processo 3.2/2015/14).

4. A declaração de justificação apresentada pelo

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referido Sr. B no Instituto da Segurança Social dos Açores, IPRA foi emitida pela trabalhadora da Unidade de Saúde 1, pelo(a) ora trabalha-dor(a) arguido(a) (Processo 3.4/2015/4 - fls. 3).

5. O(a) trabalhador(a) arguido(a) conhecia bem o Sr. B, tendo-o identificado como “o responsável pelo restaurante XXXX” (Processo 3.2/2015/14 - fls. 20, linhas 2 a 3).

6. O(a) trabalhador(a) arguido(a) “costuma ir trabalhar para o Sr. B [nas festas] do XXXX e durante o último verão foi ajudar, aquando da realização da festa do XXXXX” (Processo 3.2/2015/14 - fls. 20, linhas 4 a 6).

7. A arguida não possui autorização para a acu-mulação de funções privadas, designadamen-te para prestar serviços ao Sr. B (Processo 3.4/2015/4 – fls. 20, linhas 2 a 3).

8. De acordo com o referido pela arguida, “o tra-balho que faz a mais é para poder ter outro desa-fogo, para si e para a filha” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 20, linhas 8 a 9).

9. No dia XX de XXX de XXXX, o(a) trabalha-dor(a) arguido(a), Assistente Operacional da Unidade 1, emitiu, a pedido do Sr. B, seu ami-go, uma declaração administrativa, de acordo com a qual este teria permanecido na Unidade de Saúde 1 “entre as XX.XX e as horas XX.XX do dia XX/XX/XXXX, por motivo de ir a consulta” (v. Processo 3.4/2015/4 - fls. 3).

[imagem omitida]

10. Acontece que, no dia XX/XX/XXXX, o(a) tra-balhador(a) arguido(a) estava “de férias e a trabalhar na barraca do Sr. B na festa XXXX” (Processo 3.2/2015/14 - fls. 21, linhas 17 a 19).

11. No dia XX/XX/XXXX, o utente B “não esteve na Unidade 1” (Processo 3.2/2015/14 - fls. 21, linha 20).

12. Após ter tomado conhecimento da fiscaliza-ção realizada pela Segurança Social, o utente B solicitou ao(à) trabalhador(a) arguido(a) (e amiga) que lhe “emitisse uma declaração de presença” (Processo 3.2/2015/14 - fls. 21, linhas 20 a 22).

13. Com efeito, o(a) ora trabalhador(a) argui-do(a) emitiu o documento que lhe fora solici-tado pelo amigo B “quando regressou de férias”, no dia XX/XX/XXXX (Processo 3.2/2015/14 - fls. 21, linhas 23 a 24).

14. O(a) trabalhador(a) arguido(a) confessou ter procedido à emissão da declaração de presen-ça, contendo declarações não verdadeiras.

15. O(a) trabalhador(a) arguido(a) descreveu os procedimentos que executou, no sentido de re-gistar a informação falsa no sistema informáti-co, mais concretamente na agenda do médico Dr. XXXX, que se encontrava então de serviço, no dia XX/XX/XXXX.

[imagem omitida]

16. Em data que não soube precisar, o(a) trabalha-dor(a) arguido(a) foi alertado(a) pela colega XXX, da informática, para o facto de a consulta do utente B ainda se encontrar “pendente”, por estar registada apenas a saída e por não ter sido paga a taxa moderadora (Processo 3.2/2015/14 - fls. 21, linhas 32 a 34).

17. Após o alerta do mencionado colega, o(a) tra-balhador(a) arguido(a) procedeu, ele(a) pró-prio(a), ao pagamento da taxa moderadora, no valor de 4 euros, relativa à consulta que regis-

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tou no sistema, em nome de B (fls. 21, linhas 35 a 36).

18. O médico Dr. XXXXX, em cuja agenda foi registada a falsa consulta, não é o médico de família do utente B e não teve conhecimento ou intervenção na marcação efetuada na sua agenda.

19. O(a) trabalhador(a) arguido(a) revelou ainda que anteriormente - em datas não apuradas -, já havia solicitado, a pedido do mesmo utente B, a emissão de duas baixas médicas:

20. “…Solicitou uma primeira baixa para o utente ao médico Dr. XXXXX, por um período de 12 dias, e (…) solicitou ao médico Dr. XXXXX que passasse ao utente uma baixa de 30 dias” (Pro-cesso 3.2/2015/14 - fls. 20, linhas 9 a 11).

21. De acordo com o declarado pelo(a) trabalha-dor(a) arguido(a), “em nenhuma das situações o utente se dirigiu à Unidade de Saúde 1 para ter consulta médica” (fls. 20, linhas 12 a 13).

22. O(a) trabalhador(a) arguido(a) utilizou os bens relacionados com o seu trabalho, desig-nadamente, programas informáticos e agendas médicas, e aproveitou-se da circunstância de ser trabalhador(a) em funções públicas, para elaborar um documento que sabia ser total-mente falso.

23. O(a) trabalhador(a) arguido(a), socorrendo-se da relação de confiança, da proximidade funcional e contacto direto com os médicos do serviço, pediu, pelo menos duas vezes, que fossem emitidos certificados de incapacidade temporária ao utente B, sem que este tivesse tido qualquer consulta com os médicos identi-ficados.

24. O(a) trabalhador(a) arguido(a) revelou, com o seu comportamento, falta de integridade, de honestidade e de imparcialidade no exercício das suas funções públicas.

25. Nas palavras da superiora hierárquica da ar-guida, Dr.ª A: “ele(a) violou um dos princípios fundamentais: uma pessoa tem de ser íntegra no trabalho” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 17, linhas 29 a 30).

26. Quando inquirido, o(a) trabalhador(a) argui-do(a) mostrou sempre arrependimento e preo-cupação com toda a situação.

27. O(a) trabalhador(a) arguido(a) confessou os factos de forma integral e sem reservas; ma-nifestou nunca ter tido qualquer problema de índole disciplinar.

28. O(a) trabalhador(a) arguido(a) mencionou que “não foi pressionada pelo utente a fazer nada” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 20, linha 15).

29. O(a) trabalhador(a) arguido(a) disse que “quando pensa no sucedido entende que o fez para agradar” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 20, linhas 12 a 14).

30. O(a) trabalhador(a) arguido(a) mencionou também que “na altura, quando pediu as bai-xas e fez a declaração de presença ao utente não teve consciência da gravidade da sua atuação” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 21, linhas 21 a 22).

31. O(a) trabalhador(a) arguido(a) aufere cerca de 620 euros mensais, tem uma filha de 18 anos e vive com a mãe (Processo 3.4/2015/4 – fls. 20, linhas 6 a 7).

32. O(a) trabalhador(a) arguido(a) foi descrito(a) pela sua superiora hierárquica, Dra. A, como

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um(a) “trabalhador(a) dinâmico(a), interessa-do(a) no trabalho, assíduo(a), responsável, que cumpre com as suas obrigações” e “um elemento que faz muito boa equipa” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 16, linhas 13 a 16).

33. O comportamento do(a) trabalhador(a) ar-guido(a) causou na sua chefia direta um sen-timento de tristeza, desilusão, tendo sido transmitido, de forma clara, pela identificada chefia: “…o procedimento do(a) trabalhador(a) foi grave e que não sabe que razões a terão mo-vido a passar uma declaração, sabendo que o utente não havia estado no serviço” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 17, linhas 22 a 25).

II. FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS

34. Consideram-se como provados todos os factos mencionados no Ponto I, conforme toda a pro-va carreada no processo.

III. QUADRO NORMATIVO

DEVERES GERAIS

35. De acordo com o vertido no Acórdão do Su-premo Tribunal Administrativo de 23/10/2008, “deveres, para fins disciplinares, são todos aque-les imperativos comportamentais e funcionais que visam assegurar o bom e regular funciona-mento dos serviços: gerais, os que normalmente se impõem a todo o servidor público; especiais, aqueles cuja observância decorre das particula-ridades específicas de cada serviço” (2).

36. O artigo 73.º da LTFP enuncia os deveres ge-

(2) Cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23/10/2008, Processo 0561/07, disponível em www. dgsi.pt.

rais a que todos os trabalhadores da Adminis-tração Pública (lato sensu) estão submetidos.

37. Analisada toda a prova carreada nos autos, para o presente caso, salvo melhor entendi-mento, destacam-se o dever de prossecução do interesse público (n.º 3 do artigo 73.º), o dever de imparcialidade (n.º 5 do artigo 73.º), o dever de zelo (n.º 7 do artigo 73.º) e o dever de leal-dade (n.º 9 do artigo 73.º).

38. O dever de prossecução do interesse público “consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” – n.º 3 do artigo 73.º da LTFP.

39. O interesse público é causa exclusiva e deter-minante da atividade administrativa e é a pros-secução desse interesse que justifica e limita os poderes e competências dos órgãos e serviços públicos.

40. Na sua atividade, os trabalhadores estão exclu-sivamente obrigados à prossecução do inter-esse público, do qual decorre o dever de não apoiar ou patrocinar interesses particulares, de não intervir em assuntos em que possam ter interesses diretos ou indiretos e de não pros-seguir interesses próprios que conflituem, ou possam conflituar, com os interesses públicos que devem defender e realizar.

41. O dever de imparcialidade “consiste em desempenhar as funções com equidistância rela-tivamente aos interesses com que seja confronta-do, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspetiva do respeito pela igualdade dos cidadãos” – n.º 5 do artigo 73.º da LTFP.

42. Na verdade, em íntima consonância com o

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princípio do interesse público surge o princí-pio da imparcialidade, que impõe que a Ad-ministração Pública e os seus trabalhadores atuem de forma equidistante relativamente aos interesses que estejam em confronto ou que se-jam postos em causa, em resultado da sua ati-vidade.

43. A Administração Pública e os seus trabalhado-res devem prosseguir apenas o interesse públi-co e abster-se de ter em conta outros interesses, seja de quem e de que natureza for.

44. A imparcialidade, enquanto princípio regula-dor da atividade administrativa, tem como pri-meira representação a proibição de “favores” e “odia”.

45. A imparcialidade da Administração Pública é sustentada, desde logo, pelo regime legal de incompatibilidades e impedimentos, previstos nos artigos 19.º e ss. da LTFP.

46. Relativamente à acumulação de funções públi-cas com outras funções ou atividades, exerci-das em regime de trabalho autónomo ou su-bordinado, com ou sem remuneração, a regra vigente consta do artigo 20.º da LTFP: “as fun-ções públicas são, em regra, exercidas em regime de exclusividade”.

47. Com efeito, a acumulação é excecional.

48. A verificação dos requisitos carece de uma ponderação caso a caso, daí a necessidade de autorização prévia da entidade competente.

49. O dever de zelo “consiste em conhecer e aplicar as normas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objectivos que tenham sido fixados e utilizando

as competências que tenham sido consideradas adequadas” – n.º 7 do artigo 73.º da LTFP.

50. Este dever assume-se como um dever de dili-gência, de competência, de aplicação e de brio profissional no concreto desempenho e ex-ecução das funções/serviço por parte do tra-balhador, violando tal conduta funcional se o mesmo se apartar daqueles mesmos padrões ou objectivos, mormente, por não utilização do empenho, dos conhecimentos e meios ap-ropriados (3).

51. O dever de lealdade “consiste em desempe-nhar as funções com subordinação aos objecti-vos do órgão ou serviço” – n.º 9 do artigo 73.º da LTFP.

52. A utilização pelo trabalhador dos meios e do-cumentos oficiais - que lhe estão confiados, por causa e para realização de funções públicas -, por decisão própria, para fins meramente pri-vados ou para defesa de interesses particulares, constitui violação do dever de lealdade (4).

ILICITUDE PENAL

53. A gravidade da conduta do(a) trabalhador(a) arguido(a) também é suscetível de se refle-tir na tutela penal, podendo consubstanciar a eventual prática de crime de falsificação de do-cumento por funcionário (v. artigo 256.º, n.º 4 do Código Penal).

54. Com efeito, de acordo com o previsto no n.º 4 do artigo 256.º do CP, o funcionário que, no exercício das suas funções, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de

(3) Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 19-04-2013, relativo ao Processo 02271/10.5BEPRT, disponível em www.dgsi.pt.(4) V. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 06-11-1990, Processo 027483, disponível em www.dgsi.pt.

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obter para si ou para outra pessoa benefício ile-gítimo, elabore um documento falso, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

55. De acordo com o Acórdão do Supremo Tribu-nal de Justiça, de 20/12/2006 (5):

“I - O bem jurídico protegido pelo crime de fal-sificação de documentos é o da segurança e cre-dibilidade do tráfico jurídico relacionada com os documentos.

II – Documento para efeitos penais é a decla-ração independentemente do material em que a mesma está corporizada, enquanto representa-ção de um pensamento humano.

III – A declaração constante do documento deve ser idónea a provar facto juridicamente relevan-te – função probatória – e permitir reconhecer o emitente – função garantia.”

IV. O DIREITO

56. Entende-se por «infração disciplinar» o “…comportamento do trabalhador, por ação ou omissão, ainda que meramente culposo, que vio-le deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce” (artigo 183.º da LTFP).

57. A infração disciplinar tem, pois, de correspon-der a uma (i) ação; (ii) ilícita, ou contrária ao cumprimento de deveres impostos por normas jurídicas; (iii) culposa, isto é, que implique um juízo de censura; (iv) e que haja um nexo cau-sal ou nexo de imputação ao trabalhador.

(5) V. CJ, Acs. Do STJ, ano XIV, tomo 3, p. 255, citado por MANUEL LOPES MAIA GONÇALVES, Código Penal Português – Anotado e Comentado, 18.ª edição, Almedina, 2007, p. 889.

ILICITUDE

58. Todos os trabalhadores da Administração Pú-blica, em sentido lato, estão adstritos aos deve-res gerais previstos no artigo 73.º da LTFP.

59. O comportamento do(a) trabalhador(a) ar-guido(a) que elaborou, depois de regressar de férias, no dia XX/XX/XXXX, uma declaração de presença que sabia ser inteiramente falsa, utilizando meios e documentos oficiais - que lhe estão confiados, por causa e para realização de funções públicas -, viola, de forma grave, os deveres gerais de prossecução do interesse pú-blico, zelo e lealdade.

60. O comportamento do(a) trabalhador(a) ar-guido(a) que, já em data anterior (não con-cretamente apurada), havia solicitado para o mesmo utente B a emissão de duas baixas mé-dicas, sem que, em nenhuma das situações este se dirigisse à Unidade de Saúde 1;

61. Acrescendo ao facto de o(a) trabalhador(a) arguido(a) prestar serviços para o utente B, acumulando assim funções privadas, sem para tal estar autorizada pela entidade empregadora pública, constitui a ostensiva violação do prin-cípio e do dever geral de imparcialidade.

62. O(a) trabalhador(a) arguido(a) agiu no sen-tido de “agradar”, de dar resposta pronta e prevalência ao interesse de um particular, seu amigo, em detrimento da prossecução do inte-resse público a que se encontra adstrita.

CULPA

63. Para além de uma ação ilícita, a infração disci-plinar é necessariamente culposa.

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64. A categoria da culpa “adiciona um novo ele-mento (…) à ação ilícita (…), sem o qual nunca poderá falar-se de facto punível. (…) [é neces-sário que] a conduta seja culposa, isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agen-te, por aquele se revelar expressão de uma atitu-de interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser…” (6).

65. O juízo de culpa desdobra-se na exigência de imputabilidade; exigibilidade e de censura, a título de dolo ou de negligência (mera culpa).

66. Na âmbito disciplinar, ao contrário do ilícito criminal, a exigência de culpa é genérica, pois “sendo um dos elementos constitutivos ou indis-pensável a todas as infrações disciplinares, não é identificativa, nas suas espécies, de cada uma delas, como elemento subjetivo do tipo ou é-o apenas de certas infrações” (7).

67. Na infração praticada com dolo o trabalha-dor configura a ilicitude da sua conduta, quer praticá-la e sabe que viola o dever ou deveres funcionais a que está adstrito – ao contrário da mera culpa ou negligência, em que ocorre ape-nas a violação de deveres objetivos de cuidado ou de garante.

68. Ora, o(a) trabalhador(a) arguido(a), sem ter sido pressionado(a) para tal, elaborou a de-claração falsa, no dia XX/XX/XXXX, pediu a emissão de baixas médicas ao utente B, sem que este se dirigisse sequer à Unidade de Saúde 1, sempre de modo intencional e livre.

69. O(a) trabalhador(a) arguido(a) utilizou

(6) Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 230.(7) Ana Fernanda Neves, O Direito Disciplinar na Função Pública, vol. II, (tese de doutoramento em edição dactilografada, não editada), Lisboa, 2007, p. 264.

meios e documentos oficiais - que lhe estão confiados, por causa e para realização de fun-ções públicas -, violando, de forma repetida e consciente, os deveres gerais de prossecução do interesse público, zelo e lealdade.

70. O(a) trabalhador(a) arguido(a) presta ser-viços para o utente B, acumulando funções privadas, sem para tal estar autorizada pela entidade empregadora pública, o que constitui ainda a violação do princípio e do dever geral de imparcialidade.

71. De acordo com as informações prestadas pela Unidade 1 (v. fls. 23 a 24), em XXXX, o(a) ora trabalhador(a) arguido(a) foi autorizado(a) a acumular funções em XXXX (apoio Admi-nistrativo para XXXXX), pelo que não pode-ria desconhecer agora a necessidade de auto-rização prévia da entidade empregadora, para que pudesse acumular o exercício de funções públicas com funções privadas na empresa do utente B.

72. Considera-se, pois, haver dolo direto da argui-da.

73. O dolo, pode ser definido como o conhecimen-to e vontade de praticar o facto e reveste qual-quer uma das modalidades seguintes: dolo di-recto [o agente representa o facto que preenche o tipo e actua com intenção de o realizar], dolo necessário [o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo como consequên-cia necessária da sua conduta] e dolo eventual [o agente representa a realização de um facto que preenche o tipo como consequência pos-sível da sua conduta e actua conformando-se com aquela realização].

74. Crê-se que o(a) trabalhador(a) arguido(a) poderia e deveria ter atuado em conformidade

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com os deveres a que estava adstrito(a), tendo por bitola o comportamento a adotar por outro profissional Assistente Operacional, mediana-mente exigente, colocado na mesma posição do(a) trabalhador(a) arguido(a).

75. O comportamento do(a) trabalhador(a) ar-guido(a) merece, portanto, censura ético-jurí-dica no quadro da relação laboral e institucio-nal (8).

NEXO DE CAUSALIDADE

76. Os atos praticados pelo(a) trabalhador(a) ar-guido(a) foram causa direta para a violação dos deveres de prossecução do interesse públi-co, imparcialidade, zelo e lealdade a que estava e está adstrito(a), enquanto trabalhador(a) que exerce funções públicas.

77. Existe um nexo de imputação do evento que resultou, de forma direta e evidente, do com-portamento infracional do(a) trabalhador(a) arguido(a).

CIRCUNSTÂNCIAS DIRIMENTES

78. Não se vislumbra qualquer circunstância di-rimente, isto é, que exclua a ilicitude dos atos praticados pela arguida (n.º 1 do artigo 190.º da LTFP).

CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES ESPECIAIS

79. Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 190.º da LTFP, e perante o caso concreto do(a) tra-balhador(a) arguido(a), deve ser ponderada

(8) Acórdão Supremo Tribunal Administrativo, 03-02-2005, processo n.º 01238/04.

a hipótese de atenuação especial por confissão espontânea da infração.

80. Com efeito, o(a) trabalhador(a) arguido(a) revelou um comportamento colaborante e útil para a descoberta da verdade material, quer no decurso do Processo Inspetivo Extraordinário 3.2/XXXX/XXX, quer aquando da sua inquiri-ção no âmbito do presente Processo Discipli-nar 3.4/2015/4, na qual manteve um discurso coerente, sem reservas ou expressões de defesa ou de desconto, em inteira consonância com o que já havia declarado no Processo 3.2/XXXX/XXX (cf. Processo Disciplinar 3.4/2015/4 – fls. 19 a 21).

81. Considera-se que a confissão do(a) trabalha-dor(a) arguido(a) foi oportuna, operante, ten-do contribuído, de forma importante, para o melhor apuramento da verdade material.

CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES

82. O comportamento do(a) trabalhador(a) ar-guido(a) preenche duas circunstâncias agra-vantes especiais: a premeditação e a acumula-ção de infrações.

83. Premeditação. Conforme estabelecido no n.º 2 do artigo 191.º da LTFP, “a premeditação consiste na intenção de cometimento da infra-ção, pelo menos, 24 horas antes da sua prática”.

84. Conforme resulta dos factos acima referidos, o(a) trabalhador(a) arguido(a) premeditou a emissão da declaração de presença falsa.

85. Note-se que, no dia XX de XXXX de XXXX, uma quinta-feira, o(a) trabalhador(a) argui-do(a) estava de férias, a trabalhar para o Sr. B, na festa XXXX. Foi o utente B quem “lhe solici-

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tou que emitisse uma declaração de presença”.

86. O(a) trabalhador(a) arguido(a) afirmou que só quando regressou de férias, no dia XX de XXXX de XXXX, terça-feira, “emitiu o docu-mento solicitado pelo utente”.

87. Posteriormente, a XX de XXXX de XXXX, o(a) trabalhador(a) arguido(a) concluiu a marca-ção efetuada, na agenda do médico Dr. XXXX (Processo 3.2/2015/14 - fls. 18), tendo inclusi-ve sido o(a) próprio(a) a fazer o pagamento da taxa moderadora devida.

88. Pelo que o cometimento da infração revestiu sempre caráter intencional e premeditado.

89. Conforme referido supra, o(a) trabalhador(a) arguido(a) não pode ainda alegar desconhe-cimento quanto à necessidade de autorização prévia da entidade empregadora pública, para poder acumular o exercício de funções públi-cas com funções privadas na empresa do uten-te B.

90. Acumulação de infrações. “A acumula-ção ocorre quando duas ou mais infrações são cometidas na mesma ocasião ou quando uma é cometida antes de ter sido punida a anterior” – n.º 4 do artigo 191.º da LTFP.

91. Conforme referido e explicitado supra, o com-portamento do(a) trabalhador(a) arguido(a) gerou a violação de quatro deveres gerais: pros-secução do interesse público; zelo; imparciali-dade e lealdade.

V. ESCOLHA E MEDIDA DA PENA

92. Recapitulando: o(a) trabalhador(a) argui-do(a) violou quatro deveres gerais - prossecu-

ção do interesse público; zelo; imparcialidade e lealdade -, sujeitando-se a duas circunstân-cias agravantes especiais (premeditação e acu-mulação de infrações) e beneficiando de uma circunstância atenuante especial (confissão es-pontânea da infração).

93. Na aplicação das penas disciplinares, para além dos casos exemplificativos previstos nos tipos (abertos) de sanções possíveis, desde a repreen-são escrita (artigo 184.º da LTFP) até à pena de demissão (artigo 187.º da LTFP), devem ser ponderadas a natureza, missão e atribuições do serviço; o cargo e categoria do trabalhador; as particulares responsabilidades inerentes à mo-dalidade do seu vínculo de emprego público, ao grau de culpa; à sua personalidade; e a todas as circunstâncias em que a infração tenha sido cometida que militem contra ou a favor dele (artigo 189.º da LTFP).

94. A aplicação da disciplina laboral deve obedecer a um padrão de exigência, atuando de modo imparcial para com todos os trabalhadores.

95. Não deve ser indiferente à presente Acusação a circunstância de não ser do conhecimento da entidade empregadora pública que o(a) ora trabalhador(a) arguido(a) tenha sido conde-nada em qualquer pena disciplinar (Processo 3.4/2015/4 – fls. 23).

96. Também não deverá ser indiferente a perso-nalidade da arguida, descrita designadamente como “dinâmica”, “interessada”, “atenciosa”, “agradável” (Processo 3.4/2015/4 – fls. 16, li-nhas 13 a 19), bem como a sua situação econó-mica (o(a) trabalhador(a) arguido(a) aufere cerca de 620 € mensais, tem uma filha de 18 anos e vive com a mãe - Processo 3.4/2015/4 – fls. 20, linhas 6 a 7).

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97. Assim, deve a sanção ponderar os efeitos pre-ventivos gerais, isto é, impedir que outros tra-balhadores pratiquem condutas semelhantes e transmitir aos utentes e demais utilizadores da USISM a inaceitabilidade do comportamento da arguida;

98. Bem como os efeitos preventivos especiais, isto é, de modo a impedir, de uma vez por to-das, a repetição da mesma conduta pelo(a) tra-balhador(a) arguido(a) (9).

SANÇÃO DISCIPLINAR

99. A sanção de repreensão escrita aplica-se a in-frações leves do serviço (artigo 184.º da LTFP).

100. A pena de multa é aplicável aos casos de ne-gligência ou má compreensão dos deveres funcionais, nomeadamente nas situações exemplificativas referidas nas alíneas do arti-go 185.º da LTFP.

101. A pena de suspensão é aplicável aos traba-lhadores que atuem com grave negligência ou com grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais e àqueles cujos com-

(9) Sobre os conceitos de «prevenção especial e geral» no direito penal, com utilidade para o direito disciplinar, cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 41 e ss. Contra a finalidade preventiva geral das penas disciplinares, Ana Fernanda Neves, op. cit., p. 514. A própria autora reconhece, porém, que “a confiança a recuperar [através da sanção disciplinar] não é, por vezes, apenas a do interlocutor disciplinar ou titular do respetivo poder (…) é também a confiança dos elementos da instituição no «acerto» da disciplina vigente (previsibilidade nas atuações futuras; efeito preventivo ou dissuasor da repetição da prática de infrações disciplinares) e, nalguns casos, a compreensão social ante os ecos do exercício da disciplina (inaceitibilidade dos «resultados» da não reação a ações ou omissões disciplinarmente censuráveis)”, embora conclua que não é a prevenção geral que motiva a punição disciplinar. Consideramos que não é a principal motivação da sanção disciplinar, mas que não deixa de se encontrar presente, sobretudo perante os desafios que a «sociedade de risco» coloca à generalidade da Administração Pública, cf. Ulrich Beck, Risikogesellschaft: Auf dem Weg in eine andere Moderne (1986), trad. ingl. Risk Society – Towards a New Modernity, SAGE Publications, 1992, pp. 9 e ss.; idem, La Sociedad del Riesgo Mundial – en busca de la seguridade perdida, Paidós, Barcelona, 2008; Daniel Innerarity, La Sociedad Invisible, 2004, trad. port. A Sociedade Invisível, Teorema, 2009. Reconhecendo expressamente a prevenção geral da pena disciplinar, M. Leal-Henriques, Procedimento Disciplinar, 4.ª ed., Rei dos Livros, Lisboa, 2002, p. 118.

portamentos atentem gravemente contra a dignidade e o prestígio da função, nomeada-mente nas situações exemplificativas referidas nas alíneas do artigo 186.º da LTFP, nomea-damente as previstas nas alíneas e), l) e m), a saber:

e) Dispensem tratamento de favor a determinada entidade, singular ou coletiva;

l) Violem, com culpa grave ou dolo, o dever de im-parcialidade no exercício das funções;

m) Usem (…) quaisquer bens pertencentes aos ór-gãos ou serviços, cuja posse ou utilização lhes esteja confiada, para fim diferente daquele a que se destinam.

102. A pena de despedimento ou demissão aplica-se quando a infração inviabilize a manuten-ção do vínculo do emprego público (artigo 187.º da LTFP).

103. Considerando os factos, o grau de culpa, as circunstâncias agravantes especiais, afigurar-se-ia aplicável a PENA DE SUSPENSÃO (n.º 3 do artigo 181.º e artigo 186.º da LTFP).

104. Sopesando, ademais, a ausência de anteceden-tes disciplinares, a personalidade demons-trada pelo(a) trabalhador(a) arguido(a)

em todo o decurso da instrução processual, a circunstância atenuante especial de confis-são espontânea da infração, entende-se que, ao abrigo do n.º 3 do artigo 190.º da LTFP, “a sanção disciplinar pode ser atenuada, aplican-do-se sanção disciplinar inferior”.

105. No caso em análise, crê-se que a aplicação ao(à) trabalhador(a) arguido(a) da PENA DE MULTA (n.º 2 do artigo 181.º e artigo 185.º da LTFP) satisfaz os fins de prevenção

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especial e sobretudo geral das penas.

106. A pena de multa é fixada em quantia certa e não pode exceder o valor correspondente a seis remunerações base diárias por cada in-fração e um valor total correspondente à re-muneração base de 90 dias por ano (n.º 2 do artigo 181.º da LTFP).

107. A remuneração base mensal da arguida é de €532,08 (cf. Processo 3.4/2015/4 – fls. 29 a 30).

108. A base diária da remuneração da arguida é de €17,736 (= 532,08/30).

109. Tendo como limite €106,416 por cada infra-ção (= €17,736 x 6) e um valor limite total correspondente de €1596,24 (= € 17,736 x 90).

110. Perante as circunstâncias agravantes, o grau de culpa, os fins de prevenção geral e espe-cial das sanções, propõe-se como pena de multa pelas infrações cometidas o valor de €425,66 – quatrocentos e vinte e cinco euros e sessenta e seis cêntimos (= 4 x106,416).

111. Concede-se ao(à) trabalhador(a) arguido(a) um prazo de 10 (dez) dias, para, querendo, apresentar a sua defesa escrita.

A Instrutora,

Carla Araújo Resendes

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RELATÓRIO FINAL

1. INTRODUÇÃO

1.1. Nos termos do n.º 1 do artigo 214.º da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, o(a) trabalhador(a) arguido(a) foi notificado(a), mediante notificação pessoal, da Acusação de-duzida com o número IRS-SAI/XXXX/XXX, de XX/XX/XXXX (fls. 31 a 56), sendo ainda informada para, querendo, exercer o seu direi-to à audiência prévia.

1.2. Foram concedidos 10 dias para o exercício do contraditório.

1.3. A XX de XXXX de XXXX, o(a) trabalha-dor(a) arguido(a) veio juntar aos autos uma declaração, a fls. 58, do Processo 3.4/2015/4, registada com o n.º IRS-ENT/XXXX/XXX, na qual pretende “manifestar que aceita o conteú-do da acusação recebida” (fls. 58).

1.4. No referido documento, acrescenta o(a) tra-balhador(a) arguido(a): “…prescindo do pra-zo de 10 dias que me foi concedido para defesa” (fls. 58).

1.5. Neste sentido, revelar-se-ia espúrio, por ma-nifesta inutilidade na economia deste Relató-rio, a mera repetição do vertido na Acusação, considerando-se suficiente a sua integração no presente Relatório Final, dele fazendo parte, e que agora se faz expressamente, para todos os legais efeitos.

1.6. Por conseguinte, as faltas disciplinares prati-cadas pelo(a) trabalhador(a) arguido(a), a sua qualificação e ponderação, bem como a sanção disciplinar proposta são as que se en-contram vertidas na Acusação, de fls. 31 a 56

dos autos, incluindo a apreciação e conclusão sobre as matérias de facto e de direito, e que agora apenas se sintetizam:

Deveres gerais violados: (1) pros-secução do interesse público; (2) impar-cialidade; (3) zelo; (4) lealdade.

Circunstâncias atenuantes espe-ciais: (1) Confissão espontânea da in-fração.

Circunstâncias agravantes espe-ciais: (1) Premeditação; (2) acumulação de infrações.

Sanção disciplinar proposta: PENA DE MULTA, NO VALOR DE € 425,66 (quatrocentos e vinte e cinco eu-ros e sessenta e seis cêntimos).

A Instrutora,

Carla Araújo Resendes

[A entidade patronal do(a) trabalhador(a) concordou com a proposta]

(I)

(II)

(III)

(IV)

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