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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Dora Leal Rosa Reitora

FACULDADE DE ARQUITETURA Naia Alban Suarez Diretora

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO Francisco de Assis da Costa Coordenador

CADERNOS PPG-AU/FAUFBA Nmero Especial Cidade e Cultura Thais de Bhanthumchinda Portela Fernando Gigante Ferraz Paola Berenstein Jacques Editores Francisco de Assis da Costa (coordenao) Priscilla Huapaya Schimitt (apoio editorial) Ncleo de Apoio Produo Editorial - NAPE

Beneficirio de auxlio financeiro CAPES MinC Programa Pr-Cultura CAPES - Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior MinC - Ministrio da Cultura

Ano X nmero especial 2011

Francisco de Assis da CostaCapa

Alana Gonalves de CarvalhoProjeto Grfico

Amanda Santana da SilvaEditorao Eletrnica

Editora da Universidade Federal da BahiaApoio Editorial

Tnia de Arago BezerraReviso

Normaci Correia dos SantosNormalizao

Biblioteca Central UFBACadernos PPG-AU/FAUFBA / Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. - Ano 10, nmero 1, (2011) - Thais Portela, Fernando Ferraz, Paola B. Jacques (Org.). Salvador : PPG-AU/FAUFBA, 2011. 145 p.: il. Semestral. ISSN 1679-6861 1. Arquitetura Literatura cientfica Salvador (BA). 2. Urbanismo Literatura cientfica Salvador (BA). 3. Universidade Federal da Bahia Ps-Graduao. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Arquitetura. CDU 72(813.8) CDD 720.098142

SUMRIO

APRESENTAO PROJETO EQUIPE RELATOS Denis Tavares, Patrcia Assreuy e Milena Batista Durante1 ENCONTRO CIDADE E CULTURA: rebatimentos no espao pblico contemporneo, Rio de Janeiro, 2010

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Carolina Fonseca

SESSO LIVRE CIDADE E CULTURA: rebatimentos no espao pblico contemporneo, XIV ENANPUR, Rio de Janeiro, 2011

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ARTIGOS Pasqualino Romano Magnavita ECONOMIA CRIATIVA DE RESISTNCIA: cultura e cidade subjetividade e micropoltica Paradigma tico/esttico Fernando Gigante Ferraz A CRIATIVIDADE ECONOMICIZADA E O IMPROFANVEL Washington Drummond e Alan Sampaio A GAIOLA E O PSSARO O ESTADO E A CULTURA URBANA Regina Helena Alves da Silva e Roger Andrade Dutra MINC: POLTICAS PBLICAS DE CULTURA? Thais de Bhanthumchinda Portela SENTIDOS DA CULTURA CONCEITO REACIONRIO E LINHAS DE FUGA Cibele Saliba Rizek PRTICAS CULTURAIS E AES SOCIAIS NOVAS FORMAS DE GESTO DA POBREZA

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APRESENTAO

Este nmero especial dos Cadernos do PPG-AU/FAUFBA marca o incio das atividades do projeto de pesquisa CIDADE E CULTURA: rebatimentos no espao pblico contemporneo apresentado por uma equipe interdisciplinar de pesquisadores da UFMG, da UFRJ e da UFBA e contemplado pelo Edital CAPES/MinC PrCultura. Este projeto, por sua vez, aparece como um novo desdobramento de uma colaborao j existente entre professores-pesquisadores brasileiros e franceses em torno da questo da culturalizao das cidades contemporneas (ver Nmero Especial dos Cadernos do PPG-AU/FAUFBA Territrios Urbanos e Polticas Culturais CAPES/COFECUB). O ponto central que fundamenta a pesquisa a proposio de uma reflexo conjunta e comparativa em torno de uma mesma problemtica: as relaes entre cidade e cultura, entre polticas urbanas e polticas culturais, e seu rebatimento no espao pblico. Exploramos as diferentes relaes entre cidade e cultura, entre elas o papel que a cultura vem desempenhando nos processos urbanos contemporneos, analisando as polticas culturais, suas relaes com as polticas urbanas, e, principalmente, suas conseqncias sociais no espao pblico das cidades contemporneas. Temos por hiptese que a agenda poltica para o espao pblico apresentou recentemente uma ampliao substancial, uma diversificao de seus instrumentos e de resultados e efeitos. Neste sentido, realizamos o primeiro encontro pblico do projeto de pesquisa no Rio de Janeiro 1 encontro CIDADE & CULTURA: rebatimentos no espao pblico nos dias 23 e 24 de novembro de 2010 (http://cidadeculturaprocult.blogspot.com) e participamos, com a proposta de uma sesso livre Cidade & Cultura no XIV Encontro Nacional da ANPUR, tambm realizado no Rio de Janeiro entre os dias 23 e 27 de maio de 2011. Este nmero especial dos Cadernos do PPG-AU/FAUFBA comea por uma apresentao geral da pesquisa e pelos relatos das mesas redondas dos dois encontros ocorridos no Rio de Janeiro. Os relatos referentes ao 1 encontro CIDADE & CULTURA: rebatimentos no espao pblico foram realizados pelos mestrandos (bolsistas do projeto) Patrcia Martins Assreuy (PROURB/FAU/UFRJ), Milena Durante (PPG-AU/ UFBA) e Denis Tavares (PPGHIS/UFMG); j o relato da seo livre no XIV ENANPUR foi feito pela doutoranda Carolina Ferreira da Fonseca (PPG-AU/FAUFBA). O udio completo destas mesas ser disponibilizado no site da pesquisa. Os artigos publicados neste nmero especial da revista PPG-AU/FAUFBA tem como denominador comum uma crtica ao processo de esvaziamento da potncia criadora e/

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ou criativa inerente s prticas sociais no mbito da cultura. As artes, as manifestaes populares, o cotidiano, o lugar ou um simples fazer que envolva algum engendramento criativo, tendem cada vez mais, tanto pelas indstrias culturais quanto pelas polticas pblicas, a se tornar uma mercadoria padronizada, um bem passvel de consumo em larga escala, atravs da estetizao espetacularizada do fazer criativo. Esta parece ser a gide poltica da denominada economia criativa, alvo de crticas em todos os artigos e tambm nos relatos publicados no presente volume. Assim, Pasqualino Romano Magnavita insiste na idia de que o capitalismo contemporneo descobriu como seu motor no a fora do corpo, mas a da gnose, da cognio ao que se deu o nome de criatividade. A partir dessa idia o autor faz uma reflexo propondo-a como um ato de resistncia criao no mbito do Ministrio da Cultura da Secretaria de Economia Criativa. O texto de Fernando Ferraz tambm faz uma crtica mercantilizao do criativo operada pela economia criativa. O autor, a partir de conceitos de Giorgio Agamben, sugere que o capitalismo uma grande mquina de produo de Improfanveis. Com o auxlio da noo benjaminiana de valor de exposio, afirma que o capitalismo contemporneo uma mquina de produo do exposicionvel. J Washington Drummond e Alan Sampaio, em um dilogo profcuo com os dois textos anteriores tomam de emprstimo as crticas de Adorno, Benjamin

e Nietzsche quanto ao conservadorismo da cultura, para construir uma crtica ao intervencionismo do Estado brasileiro que enquadraria a imaginao criativa da cultura urbana para fins publicitrios e prticas de favorecimentos. O artigo de Regina Helena Alves da Silva e Roger Andrade Dutra mais conjuntural e tematiza as polticas pblicas de cultura gestadas no mbito federal pelos ltimos governos, colocando uma lente sobre o imobilismo das polticas pblicas que acabam por privilegiar os produtos culturais que seguem o modelo das mercadorias de consumo de massa. Thais de Bhanthumchinda Portela refora ocontexto apontado pelos autores anteriores na medida em que acompanha a produo das polticas culturais da Unesco e, com o apoio de Suely Rolnik e Flix Guatarri, afirma o sentido reacionrio do conceito de Cultura. Mas a autora se pergunta: no h como escapar dessa produo de subjetividade subordinada ao desenvolvimentismo e ao mercado? Cibele Saliba Rizek, no texto que fecha este nmero, inicia uma reflexo preocupante sobre as consequncias do crescimento significativo de propostas e prticas de interveno cultural nas periferias e territrios da precariedade. Acompanhando casos especficos na cidade de So Paulo, a autora aponta para novas formas de gesto da pobreza atravs de prticas de incluso social que realizam intervenes mesclando formas de constituio de um campo scio assistencial que define atores, enuncia e propaga discursos, constitui consensos de colaborao e cooperao, mas que desti-

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tuem as formas de enfrentamento poltico desses novos territrios de pobreza culturalizada, os quais continuam mantendo-se como periferia e territrios da precariedade. Observa-se, ao longo de todos os textos, que as dinmicas geradas pelas intervenes propostas pelas polticas pblicas parecem cair no contrrio de suas proposies iniciais ao tornar a questo cultural algo meramente operacional, seja pela gesto cultural da pobreza, seja pela gesto econmica da cultura, em particular, nos processos urbanos contemporneos de espetacularizao das cidades.

Os editores

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PROJETO

O PROJETO

O projeto Cidade e Cultura: rebatimentos no espao publico contemporneo, aparece como um novo desdobramento de uma colaborao j existente entre professores-pesquisadores de trs programas de ps-graduao em arquitetura, urbanismo e planejamento urbano (PPG-AU/UFBA, IPPUR e PROURB/UFRJ) em torno da questo da culturalizao das cidades contemporneas. Estes programas de ps-graduao nacionais participaram do Programa de Cooperao Universitria Internacional CAPES-COFECUB (binio 2004/2005 com renovao 2006/2007) - coordenado pela professora Paola Berenstein Jacques (UFBA) no Brasil e por Henri-Pierre Jeudy na Frana - com o projeto Territrios urbanos e polticas culturais (ver Nmero Especial do Cadernos PPG-AU/FAUFBA, 2004). A partir do desenvolvimento das aes deste projeto se deu a formao de um grupo de pesquisadores nacionais que resultou no encontro Corpocidade: debates em esttica urbana 1. A partir das discusses durante o encontro Corpocidade em Salvador desenvolvemos este novo projeto de pesquisa conjunto que promove a integrao, atravs dos pesquisadores envolvidos, de Programas de Ps-graduao em Arquitetura e Urbanismo (UFRJ e UFBA), Histria Social da Cultura (UFMG), Comunicao e Prticas Sociais (UFMG), Cultura e Sociedade (UFBA), Artes Visuais (UFBA) e Planejamento Urbano (UFRJ), a partir, principalmente, de 3 linhas de pesquisa que se correlacionam diretamente: Histria Social da Cultura (PPGHIS/ UFMG), Processos Urbanos Contemporneos (PPG-AU/UFBA) e Histria da Cidade e do Urbanismo (PROURB/UFRJ). Alm da colaborao acadmica, alguns professores pesquisadores envolvidos tambm esto diretamente relacionados com as instituies culturais de seus estados e municpios, em particular, a Fundao Cultural de Belo Horizonte e o Conselho Estadual de Cultura da Bahia. O ponto central que fundamenta este projeto de pesquisa a proposio de uma reflexo conjunta e comparativa em torno de uma mesma problemtica de estudo as relaes entre cidade e cultura, entre polticas urbanas e polticas culturais. Pretendemos explorar vrias dimenses do campo das relaes entre cidade e cultura, entre elas o papel que a cultura vem desempenhando nos processos de revitalizao urbana, e, em particular, analisar as polticas culturais, as suas relaes com os planos, projetos e as polticas urbanas, e, principalmente, suas conseqncias sociais e seu rebatimento no espao pblico das cidades contemporneas. Nesta proposta a cidade mais do que um conceito de anlise, pois aparece como uma categoria da prtica social e cultural. A cidade nunca absolutamente sincrnica: o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as polticas de planificao urbans-

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tica, econmica ou social desenvolvem-se segundo temporalidades diferentes. Mas, ao mesmo tempo, a cidade est inteira no presente. Ou melhor, ela inteiramente presentificada por atores sociais nos quais se apia toda a carga temporal. Entender a cidade como um espao vivido pens-la como um espao cultural no sentido mais amplo deste termo: um espao do movimento, da diferena, da multiplicidade, da hibridao, do conhecimento, da subverso e da liberdade. Assim, a partir desta abordagem da cidade contempornea e, sobretudo, dos usos de seus espaos pblicos, que propomos a integrao de programas de Arquitetura e Urbanismo rea da Histria Social da Cultura. preciso ressaltar que a idia de espao pblico neste projeto se constitui como objeto social e cultural, ou seja, os ritmos de vida devem ser analisados em sua dimenso social e cultural para que possamos qualificar os usos desses espaos vividos. Entendemos que os usos do espao urbano sempre escapam de alguma forma intencionalidade funcional de quem o concebe. Estes espaos tm a potencialidade de reunir dimenses, tanto materiais quanto imateriais, de ontem e de hoje, que concordam e discordam entre si. Ao mesmo tempo em que o espao urbano est no presente por completo, ele tambm composto por muitos tempos, ou seja, se apropria dos tempos/espaos outros segundo novas normas. Mas os sentidos social e cultural associados a ele nunca levado a cabo de forma idntica e se referem sempre a uma prtica presente. Para melhor explorar o campo de relaes entre urbanismo e cultura, nos centraremos nas recentes transformaes dos espaos pblicos que colocam as cidades contemporneas no contexto da espetacularizao e da culturalizao urbana. A partir de uma abordagem interdisciplinar e crtica, nos indagamos principalmente sobre alternativas no sentido de se tentar escapar da gentrificao (expulso da populao de baixa renda) geralmente resultante desses processos urbanos. A interface entre polticas urbanas e polticas culturais parece estar dominada hoje pelos processos de revitalizao urbana nos quais a cultura usada como estratgia principal, em que se destacam equipamentos culturais monumentais em primorosos espaos pblicos. Potencializados por eficiente marketing, tornam-se casos espetaculares e paradigmticos. Decorrentes deste uso, primordialmente econmico da cultura, seus efeitos j vem sendo criticados. Outras experincias de natureza participativa buscam corrigir desigualdades e democratizar o acesso s oportunidades culturais. A dita incluso social pela cultura para as populaes excludas se tornou um desafio fundamental nas atuais polticas culturais e urbanas. este campo que nos propomos a investigar. Visamos o conhecimento do universo contemporneo do uso prioritariamente social da cultura nas polticas urbanas, suas dimenses tericas e empricas, seus impasses, conflitos e limites.

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A crtica hoje ao que chamamos de espetacularizao urbana1 j se tornou recorrente no meio acadmico e este processo est cada vez mais explcito. Fala-se muito em cidade-museu, cidade genrica, cidade-parque-temtico, cidade-shopping, em resumo: cidade-espetculo (no sentido debordiano). A frmula passa a ser conhecida de todos, discursos contemporneos quase esquizofrnicos: propostas preservacionistas para os centros histricos, que se tornam receptculos de turistas, e construo de novos bairros fechados nas reas de expanso perifricas, que se tornam produtos para a especulao imobiliria. Muitas vezes os atores e patrocinadores destas propostas tambm so os mesmos, assim como semelhante a no-participao da populao em suas formulaes (cada vez mais encenada uma pseudo-participao, burocrtica), e a gentrificao (enobrecimento com expulso da populao mais pobre) das reas como resultado, demonstrando que as duas correntes antagnicas so faces de uma nica moeda: a mercantilizao espetacular das cidades. possvel se falar em processos urbanos distintos, como culturalizao, patrimonializao, museificao, musealisao, estetizao, turistificao, gentrificao, mas estes fazem parte de um mesmo processo contemporneo: a espetacularizao das cidades contemporneas. Este processo, por sua vez, indissocivel das novas estratgias de marketing, ou mesmo do que podemos chamar hoje de branding urbano (construo de marcas) dos projetos ditos de revitalizao urbana que buscam construir uma nova imagem para as cidades contemporneas que lhe garantam um lugar na nova geopoltica das redes globalizadas de cidades tursticas e culturais. Na lgica contempornea de consumo cultural massificado, a cultura concebida como uma simples imagem de marca ou grife de entretenimento, a ser consumida rapidamente. Com relao s cidades, o que ocorre semelhante: a competio, principalmente por turistas e investimentos estrangeiros, acirrada e os polticos, com apoio dos empreendedores do setor privado, se empenham para melhor construir e vender a imagem de marca, ou o logotipo, de suas cidades cenogrficas, cada dia mais padronizadas e uniformizadas. Neste processo urbano de espetacularizao, a cultura vem se destacando como estratgia principal da revitalizao urbana - os atuais projetos urbanos contemporneos, em particular de espaos pblicos, vem sendo realizados no mundo inteiro segundo uma mesma estratgia : genrica, homogeneizadora e espetacular - e a nfase das polticas urbanas recai cada vez mais sobre as polticas culturais2. Nessa lgica de consumo cultural urbano, as vedetes so os grandes equipamentos culturais, franquias de museus e suas arquiteturas monumentais - cada vez mais espetaculares com projetos de arquitetos do starsystem global e visados pela mdia e pela indstria do turismo que passam assim a ser as principais ncoras de megaprojetos urbanos inseridos nos novos planos estratgicos. Tanto a cultura quanto a cidade passaram a ser consideradas como virtuais mercadorias estratgicas, manipuladas como imagens de

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marca, principalmente dentro do atual processo de globalizao da economia. Para os marketeiros de cidade, como os consultores catales que vendem o modelo Barcelona, a pretensa especificidade (a busca da tal identidade ) de cada cidade se encontra fortemente ligada a uma cultura local, ou seja, principalmente atravs dessa cultura prpria que as cidades poderiam construir suas marcas, e esses particularismos geram slogans que podem ajudar a construir uma nova imagem da cidade. Alm disso, a animao cultural nos espaos pblicos tambm deve ser usada pelas cidades como um meio de promover suas imagens de marca. Nas polticas e nos projetos urbanos contemporneos, principalmente dentro da lgica do chamado planejamento estratgico, existe uma clara inteno de se produzir ou forjar uma imagem de cidade. Essa imagem, de marca, seria um produto de uma cultura prpria, da identidade de cada cidade. Paradoxalmente, essas imagens de marca de cidades distintas, com culturas distintas, se parecem cada vez mais. Essa contradio pode ser explicada: cada vez mais as cidades precisam seguir um modelo internacional extremamente homogeneizador, imposto pelos financiadores multinacionais dos grandes projetos urbanos. Este modelo visa basicamente o turista internacional - e no o habitante local - e exige um certo padro mundial, um espao urbano tipo, padronizado. Como j ocorre com os espaos padronizados das cadeias dos grandes hotis internacionais, ou ainda dos aeroportos, das redes de fast food, dos shopping centers, dos parques temticos, dos condomnios fechados, equipamentos (hoje chamados de empreendimentos, a sua maioria privados) que fazem as periferias das grandes cidades mundiais tambm se parecerem cada vez mais, como se formassem todas uma nica imagem: paisagens urbanas idnticas, ou talvez mesmo, como diz Rem Koolhaas, genricas3. Quais seriam ento algumas alternativas ou desvios possveis ao espetculo urbano? Todas as pistas levam para a questo da experincia ou prtica dos espaos urbanos, em particular de seus espaos pblicos. A reduo da ao urbana, ou seja, o empobrecimento da experincia urbana pelo espetculo leva a uma perda da corporeidade, os espaos urbanos se tornam simples cenrios. Os novos espaos pblicos contemporneos, cada vez mais privatizados ou no apropriados, so cada dia mais cenogrficos, ou seja, esto cada vez mais distantes de seus usos sociais e culturais. Em resumo: os processos urbanos foram progressivamente induzidos pela competitividade entre as cidades. Atravs de novos planos estratgicos passou-se a oferecer no somente melhores condies de acessibilidade, comunicao, segurana e educao - recuperando edifcios e reas abandonadas, ampliando a oferta de novos espaos pblicos - mas tambm a enfatizar os aspectos culturais e simblicos. O lugar, a sua imagem e a sua identidade se tornaram fundamentais nesta lgica de mercado. Como a especificidade e a dita identidade se encontram fortemente ancoradas na imagem e na cultura local, seria principalmente atravs da cultura que as cidades poderiam se

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individualizar, acentuando essas identidades, ou seja, marcando seu lugar no panorama mundial globalizado. Por isso, privilegia-se nas polticas e projetos urbanos recentes revelar, reforar ou criar a imagem, ou identidade, de cada cidade. Este um dos fatores que fazem a cultura se destacar como estratgia principal dos projetos urbanos, em particular de espaos pblicos, e a nfase destas polticas urbanas recair sobre as polticas culturais. Pode-se destacar neste enfoque, a contribuio dos equipamentos culturais e de suas arquiteturas, cada vez mais visados pela mdia e pela indstria do turismo. Estes passam assim a ser as principais ncoras de megaprojetos urbanos que se inserem nos novos planos estratgicos. O que poderia ser classificado como uma culturalizao ou musealizao (proliferao dos museus nas cidades) urbana contempornea. Por outro lado, o que significa a atual patrimonializao ou museificao (transformao das cidades em museus) das cidades? Essas mega intervenes muitas vezes se iniciam por uma patrimonializao das prprias cidades, tambm tendo em vista uma revitalizao urbana que possibilitaria uma efetiva insero destas cidades dentro de uma competitiva rede global de cidades ditas culturais, ou seja, tursticas. A unio cada vez mais freqente entre os interesses da indstria turstico-cultural e interesses poltico-urbanos estariam delineando uma especfica gesto urbano-cultural cujo pice transforma a prpria cidade em espetculo a ser consumido. Esta forma espetacular de cultura tem sido responsvel por grandes transformaes urbanas. As polticas culturais participam cada vez mais na transformao das cidades. O que parece predominar nas intervenes espaciais, tanto nas criaes artsticas quanto nas criaes arquitetnicas, em relao s finalidades dessas polticas culturais, so as questes de identidade e de incluso social. Os projetos pblicos, encomendados a arquitetos, artistas, urbanistas ou paisagistas, esto cada vez mais relacionados revitalizao de reas abandonadas, e implicam na conjuno de uma dimenso patrimonial a um projeto contemporneo, ou seja, implicam em fenmenos de atualizao e de presentificao da cidade historicamente construda e vivida. A temtica do patrimnio cultural urbano se subordina ao tema maior da atual articulao entre polticas urbanas e polticas culturais, sendo um caso importante a ser observado dentro de uma anlise comparativa. Trata-se de analisar como arquitetos e urbanistas podem intervir no espao pblico dentro de uma viso contempornea, e sobretudo de atualizao, em territrios urbanos e culturais ditos histricos ou tombados. Os rebatimentos deste processo de espetacularizao urbana e, de sua relao com as questes culturais nos espaos pblicos contemporneos, ser um dos focos principais deste projeto. Esta questo j foi inicialmente tratada no projeto As transformaes na agenda de polticas de espaos pblicos dentro do Programa de Cooperao Universitria Internacional CAPES- DAAD (Binios 2005/2006 e renovao 2007/2008),

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coordenado no Brasil pela professora Lilian Fessler Vaz (UFRJ) e na Alemanha por Max Welch Guerra, o ponto de partida deste projeto foi a mudana na avaliao e no planejamento dos espaos pblicos compreendidos no seu sentido urbanstico -, em muitas cidades da Europa e da Amrica Latina desde os anos 1990. Esta mudana se explicou inicialmente devido exatamente descoberta do espao pblico como cenrio para medidas urbansticas de revitalizao, tendo por modelo a cidade de Barcelona, e por objetivo, fortalecer a atratividade das reas centrais em contraposio s reas de expanso dispersa, buscando desta maneira um destaque na competio mundial entre cidades. Por outro lado, o campo do desenho dos espaos pblicos se ofereceu como alternativa inicial para comunidades de poucos recursos, para, com meios reduzidos, apresentarem indcios visveis de uma forte ao de desenvolvimento urbano. No incio da dcada de 1990 formulava-se discretamente uma nova agenda da poltica dos espaos pblicos, principalmente atravs de debates locais que acompanhavam a progressiva reduo do sentido de segurana na cidade. Finalmente, nos ltimos anos a percepo, principalmente nos meios universitrios, da crescente polarizao e excluso social que na Amrica Latina alcanam formas espetaculares de expresso realou o significado dos espaos pblicos para a vida social. Em vrias cidades foram criados programas para um redesenho sistemtico de espaos pblicos selecionados praas, ruas, parques e ainda projetos envolvendo edificaes culturais, polticas e administrativas. Pode-se mesmo dizer que estes programas constituram uma verdadeira poltica urbana especfica para os espaos livres pblicos. Visando ampliar esta discusso nossa proposta busca entender o espao urbano enquanto lugar pblico por excelncia que comporta toda sorte de atores individuais e coletivos, usos territoriais institucionalizados e cotidianamente configurados, memrias e discursividades diversas, sentidos atribudos e construdos, experincias e experimentaes, apropriaes simblicas e concretas, entre outros. E que, tambm, simultaneamente, comporta uma rede complexa e intensa de relaes sociais antagnicas, complementares, paralelas, convergentes, simbinticas, parasitas, consensuais, conflitantes; refletindo diferentes padres de dilogo e negociao. Uma das conseqncias tericas desta polifacetada ampliao das anlises sobre o espao urbano contribuiu para se conceituar as cidades como um processo mais complexo de articulao das culturas. A partir disto a inovao deste projeto a proposta de procurar buscar os sentidos produzidos pelos vrios discursos sobre a revitalizao de reas centrais das cidades. Importa-nos os acionamentos de sentidos histricos dos espaos apontados como sendo um dos fundamentos destas intervenes. Nos ltimos dez, quinze anos, multiplicaram-se livros, teses e colquios que passaram a buscar refletir sobre os impactos das novas tecnologias e de novos comportamentos coletivos, sobretudo no que diz respeito (des)construo do tecido social e urbano.

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Enfocando a cultura virtual ou a globalizao e suas cidades, essa produo passou a enfatizar temas como a novidade do funcionamento das chamadas sociedades em rede, a mobilidade, a desconcentrao e a re-localizao das atividades econmicas, a excluso, a governana ou a ao pblica. Mais recentemente, em decorrncia das discusses sobre os espaos pblicos e a esfera pblica, passaram a ser desenvolvidos os estudos sobre planejamento e gesto participativo/a das cidades. Em contraponto reflexo sobre tendncias, situaes ou questes vistas como contempor4neas tambm cresceu o interesse sobre o passado, sobre a histria urbana, sobre os processos de territorializao das prticas sociais e culturais ou sobre as culturas urbanas em suas sedimentaes ou mutaes, de modo geral. Temos por hiptese que a agenda poltica para o espao pblico apresentou recentemente uma ampliao substancial, uma diversificao de seus instrumentos e de resultados e efeitos. Apesar da aparente disparidade das muitas intervenes registradas em diversas cidades, supe-se que haja conexes e relaes de sentido entre elas, revelando coerncias nas transformaes desta poltica, sobretudo no que diz respeito aos usos sociais e culturais destes espaos. Os resultados das pesquisas podero subsidiar a elaborao de novas polticas pblicas que articulem de uma forma mais responsvel as polticas urbanas com as polticas culturais, com o foco central nas intervenes em espaos pblicos, pensados alm de sua materialiadade, ou seja, no sentido mais amplo de esfera pblica. Neste sentido trs questes, ou inquietaes, complementares guiam nossa investigao: a crise do sujeito corporificado, a pacificao do espao pblico e a esterilizao da esfera pblica. O mundo da hegemonia do capital financeiro, em simbiose com as disputas por capital simblico, caracteriza-se por nveis crescentes de abstrao e pelo predomnio de leituras reducionistas do espao pblico, que tendem a substituir a co-presena por representaes programadas, repetitivas e petrificadas da experincia urbana. nestas circunstncias que adquire ainda maior relevncia a valorizao do sujeito corporificado, resistente defesa apenas formal dos direitos sociais e retrica de uma solidariedade que no se transforma em convivncia, compartilhamento e dilogo. A pacificao do espao pblico, atravs da fabricao de falsos consensos, busca esconder as tenses que so inerentes a esses espaos, o que despolitiza e esteriliza a esfera pblica. Assim, a explicitao dos dissensos e diferenas pode ser uma forma ativa de resistncia, de ao poltica.

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NOTAS1

Ver Espetacularizao urbana contempornea. In: FERNANDES, Ana; BERENSTEIN JACQUES, Paola. Territrios urbanos e polticas culturais. Cadernos do PPGAU/FAUFBA, Salvador, 2004. Nmero especial. Ver JACQUES, Paola Berenstein; VAZ, Lilian Fessler. Reflexes sobre o uso da cultura nos processos de revitalizao urbana. In: Anais do IX ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 9., 2001, Rio de Janeiro. p. 664-674. Ver KOOLHAAS, Rem. The generic city em S,M,L,XL. New York: The Monacelli Press, 1995. p. 1239-1264

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EQUIPE

EQUIPE

Equipe UFMG PROFESSORES DOUTORESRegina Helena Alves da Silva - Historia UFMG (coordenadora geral) Geane Alzamora - Comunicao Social UFMG Thais Velloso Cougo Pimentel - Histria UFMG Fundao Municipal de Cultura

PESQUISADORESDenis Tavares- Mestrando histria UFMG (bolsista PROCULTURA) Mara Alves Brando - Designer Grfica Rafael Cerqueira Pinheiro - Socilogo Pedro da Silva Marra - Mestre em Comunicao Social UFMG Lucas Andrade Dutra - Graduando do Curso de Arquitetura UFMG (bolsista IC) Clarissa Nunes Alexandrino - Graduanda do Curso de Urbanismo UFMG (bolsista IC)

Equipe UFRJ PROFESSORES DOUTORESAna Clara Torres Ribeiro IPPUR/UFRJ Lilian Fessler Vaz (coordenadora) PROURB/FAU/UFRJ Margareth da Silva Pereira PROURB/FAU/UFRJ

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PESQUISADORESPatricia Martins Assreuy Mestranda PROURB/FAU/UFRJ (bolsista PROCULTURA) Claudia Seldin - Doutoranda PROURB/FAU/UFRJ (bolsista CNPq) Ronaldo de Morais Brilhante Doutorando PROURB/FAU/UFRJ (bolsista CAPES) Carlos Rodrigo Avilez A. B. da Silva Mestre (bolsista AT)

Equipe UFBA PROFESSORES DOUTORESPaola Berenstein Jacques (coordenadora) FAUFBA/PPG-AU Pasqualino Romano Magnavita PPG-AU Fernando Gigante Ferraz IHAC UFBA/PPG-AU Thais de B. Portela FAUFBA/PPG-AU Washington Drummond Histria UNEB/PPG-AU

PESQUISADORESMilena Durante - mestranda PPG-AU (bolsista PROCULTURA) Priscilla Schimitt mestranda PPG-AU (bolsista CNPq) Carolina Fonseca doutoranda PPG-AU (bolsista CAPES) Priscila Lolata doutoranda PPG-AU (bolsista FAPESB)

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REL ATOS

Denis Tavares Patrcia Assreuy Milena Batista Durante

CIDADE E CULTURA rebatimentos no espao pblico contemporneo

Relatos das mesas do 1 Encontro do Cidade e cultura: rebatimentos no espao pblico contemporneo, acontecido no Rio de Janeiro entre os dias 23 e 24 de novembro de 2010.

TEMA DO ENCONTROO encontro procurou explorar as relaes entre cidade e cultura, entre elas o papel que a cultura vem desempenhando nos processos urbanos contemporneos, analisando as polticas culturais e urbanas, e suas conseqncias sociais, investigando sua complexidade e criando novas possibilidades de discusso, representao e visualizao de espaos pblicos urbanos.

Mesas/ Eixos de anlise e debatesMesa 1- Espao pblico e memria Mesa 2- Espao pblico e territrio Mesa 3- Espao pblico e diversidade

Relato de Denis Tavares Mesa 1: Espao Pblico e MemriaFrederico Araujo (IPPUR/UFRJ) e Laura Maciel (PPGH/UFF) Mediadora: Margareth da Silva Pereira (PROURB/UFRJ)

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Dando seguimento proposta do 1 Encontro Cidade e cultura: rebatimentos no espao pblico contemporneo, a primeira mesa aprofundou as discusses em torno dos eixos espao pblico e memria, noes entendidas pelos autores no como um dado em si, intrnseco e neutro, mas enquanto processo humano e social atravessados por relaes de poder, disputas e conflitos entre os grupos sociais. O debate se estruturou a partir de uma primeira exposio do problema pelos palestrantes seguida de trs sees de perguntas, interlocues e respostas entre debatedores, mediadora e pblico.

Primeira fala: Laura MacielA palestrante Laura Maciel, Ps-Doutora em Histria pela PUC de So Paulo, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense, trabalha com os temas histria da imprensa, cidade, cultura e memria e formao de profissionais em ensino de histria sempre destacando o compromisso social implcito na prtica profissional do historiador. Em sua exposio oral, ela procurou, inicialmente, ressaltar que as questes que levanta em torno do tema proposto expressam no somente um ponto de vista terico, mas indicam tambm posies sociais e polticas assumidas pela mesma. Desse modo, reconhecendo a no neutralidade da fala e das intervenes no debate pblico, ela sinalizou sua forma de compreender memria pensando-a, como prope Antnio Augusto Arantes,como qualquer outra experincia humana, um campo atravessado por conflitos sociais, um campo de luta, de disputas polticas, onde tanto a gente encontra foras que se organizam em torno de comemoraes, de preservao, de valorizao de determinadas experincias e prticas, como tambm esforo no sentido contrrio, de apagamento, de ocultao, de negligncia com a memria.

Laura Maciel entendeu, portanto, memria no como um acmulo, um depsito de algo, ou algo que se inscreve naturalmente pela passagem do tempo numa superfcie qualquer e se deposita naturalmente, mas como escolhas que articulam, que do sentido a projetos polticos, a projetos de poder. Laura Maciel trouxe para pensar a relao entre esforo de produo de memria e espao pblico, o exemplo das comemoraes dos 200 anos da chegada da Famlia Real Portuguesa festejos comemorativos protagonizados pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2008. Segundo Maciel, estas comemoraes em torno da vinda da Famlia Real estiveram marcadas pelo conservadorismo poltico e por uma perspectiva de reviso histrica em torno no s de 1808, do significado daqueles eventos l em 1808, mas, principalmente, sobre personagens, figuras, leituras e interpretaes sobre o passado. Nesse sentido, ela ressaltou que alm de um esforo de enquadramento da memria do prprio 1808 e de seus significados, as comemoraes encetadas pela Prefeitura investiram na criao de uma imagem e de uma logomarca para o Rio

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de Janeiro, procurando afirmar um papel central para a cidade, como capital cultural dos trpicos, desde 1808 at a contemporaneidade. A palestrante destacou ainda que as ditas comemoraes, centradas, sobretudo, em torno da figura de Dom Joo, no partiram de poltica aleatria da Prefeitura do Rio de Janeiro, mas de um planejamento oficial de dois anos, que contou com um oramento em torno de trinta milhes. Um planejamento bastante meticuloso, constitudo por uma comisso de intelectuais, inclusive, e que reuniu as sinergias da iniciativa pblica com a iniciativa privada principalmente as agncias que lidam com a venda de pacotes tursticos ao Rio de Janeiro, donos de restaurantes, de hotis, promotores culturais, empresas de publicidade, etc. numa tentativa de coordenar e de planejar a srie de eventos que pretendiam transformar a cidade em palco dessas comemoraes. Outro aspecto ressaltado pela autora diz respeito s intervenes pontuais na cidade, ou seja, uma srie de obras de restauro e outras obras pblicas de interveno que se concentraram no centro da cidade, em tono do eixo da Praa XV, que trabalharam e fizeram ressurgir em uma srie de logradouros pblicos essa compreenso do Rio de Janeiro como um carto-postal imperial, afirmando a centralidade da cidade como um local que tem a marca da cultura. A partir desse exemplo, Laura Maciel colocou em discusso a questo da articulao entre o investimento na produo de significados e releituras do passado com as intervenes pontuais na cidade, nas palavras da prpria autora,[...] construes simblicas e imaginrias com intervenes fsicas concretas em determinados pedaos da cidade que so recortados e instrumentalizados, vamos dizer, ou orientados e legitimados a partir de uma memria que se quer hegemnica.

Se de um lado as intervenes e festejos comemorativos promoveram espaos pontuais na cidade espaos onde os trpicos estavam virando Europa , assim como os recursos pblicos foram alocados na preservao de acervos e bens simblicos alusivos ao patrimnio da Famlia Real na sua chegada ao Brasil, por outro lado, como colocou Laura, se optava ou se escolhia minimizar ou at paralisar investimento, organizao e tratamento em outros acervos. Laura Maciel destacou o conjunto de lutas e articulaes polticas em torno da constituio do espao pblico, bem como as assimetrias e as relaes de poder que atravessam o campo da memria e, nesse sentido, props pensar, como questo central, o direito ao passado e o direito memria tambm como possibilidade de afirmao de um universo de construo de direitos, sendo o direito a ter memria uma ampliao dos direitos sociais. Aprofundando a discusso ela chamou a ateno quanto prpria atuao do historiador no interior desse campo e, em sintonia com Maria Clia Paoli, utilizou o conceito de

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horizonte de validade histrica para pensar a prtica do historiador nesse processo de afirmao e legitimao de memrias que no se reconhece com validade, com legitimidade para a construo de uma memria pblica. Laura Maciel sinalizou ainda que a construo de outro horizonte historiogrfico permite que outros sujeitos e experincias sociais menos visveis consideradas socialmente irrelevantes no sejam silenciadas e subsumidas numa memria harmnica e hegemnica.

Segunda fala: Frederico ArajoLogo em seguida, o palestrante Frederico Arajo, professor adjunto do IPPUR e autor dos livros Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: histria e tempo, geografia e espao, ecologia e natureza e Identidades e territrios: questes e olhares contemporneos, sendo este uma coletnea organizada junto com o Rogrio Haesbaert (professor

do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense), iniciou suafala afirmando a possibilidade de interlocuo com apresentao anterior da professora Laura Maciel, sobretudo, com relao a idia da disputa, da disputa pelas falas, da disputa pela memria, da disputa em relao ao que espao pblico. Nessa chave de entendimento, a questo das construes discursivas, o campo das interpretaes lingsticas, o dizer sobre o mundo e a disputa pela fala sobre as noes de memria e espao pblico permaneceu cara exposio de Frederico Arajo. Frederico Arajo, se inserindo na linha de pensamento de Jacques Derrida, buscou tangenciar o tema proposto pela mesa de um modo particular, no se referindo de forma direta s expresses espao pblico e memria, mas procurando descentr-las a partir da criao do conceito memria-espao-pblico pensado enquanto uma palavra, que ele (ele quem?) constri e coloca em discusso. Dessa maneira, o autor se esforou em explorar as condies da prpria linguagem, deixando a trama que ele construiu sem um sentido fixo, mas aberta a significaes: a conjugao da palavra memria-espao-pblico demanda uma semntica. De acordo com Arajo, a palavra memria e a palavra espao pblico incorrem no risco de cair em uma semntica rgida que as toma como representaes de algo dado no mundo e, desse modo, a construo da trama memria-espao-pblico auxiliaria a desvencilhar do risco da objetivao destas noes e permitiria entend-las enquanto construes e interpretaes historicamente situadas, na medida em o que dito como mundo no mais do que tambm uma construo, se tomada histrica e politicamente, esta construo em geral pode ser entendida como um dizer hegemnico espao-temporalmente situado. Ao longo de sua exposio Frederico Arajo procurou dar colorao ao seu conceito aproximando-o do conceito derridariano de Khra, isto , uma espcie de receptculo

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aberto interpretao e impresso de sentido que no possui forma sensvel fixa, vinculada a algum centro especfico. Para Frederico Arajo, a juno dos conceitos memria-espao-pblico e Khra pode ampliar as possibilidades da prpria linguagem, porque se constitui como modo de expresso que nunca se fecha em modos e formas encerradas em si. Memria-espao-pblico-khra teria a propriedade de receber, acolher os sentidos que lhe so atribudos. As interpretaes, ento, viriam dar forma a memria-espao-pblico-khra, deixando nela a marca esquemtica da sua impresso e depositando o sedimento de sua contribuio, apesar disso jamais se deixa esgotar por esses tipos de traduo trpica ou interpretativa. A trama memria-espao-pblico-khra, possibilitaria ento a ampliao dos sentidos de memria e espao pblico, atravs da desconstruo, descentramento e retirada da marca de significao fixa dos mesmos, situando-os no interior do campo dos jogos da linguagem, no mbito das mltiplas e sucessivas construes, interpretaes e disputas entre discursos diferentemente empoderados. Aps as exposies dos debatedores, teve incio a seo de perguntas, respostas e provocaes entre os presentes e as questes levantadas pelos expositores puderam ser comentadas, desenvolvidas e ganharam novos contornos. A problemtica da relao entre memria e esquecimento, mencionada por Pasqualino Magnavita, professor da UFBA; e a questo sobre a perspectiva popular quando Laura Maciel falava da construo de direitos a partir da noo de horizonte de validade histrica levantada por Ciro, discente da UFRJ, permearam a primeira seo de provocaes. Frederico Arajo, respondendo primeira questo, destacou constituio da memria tambm como uma forma de esquecimento. Para ele, a construo do passado estar sempre marcada pelo silenciamento de determinadas memrias e pela no constituio de outras. Logo em seguida, Laura Maciel, voltando-se ao segundo questionamento, pensando, sobretudo, a questo da cultura e da memria como direito, afirmou que a noo de horizonte de validade histrica serve de gatilho para refletir sobre a prtica do historiador nesse processo de afirmao e reconhecimento pblico da memria como histria. Ressaltou, ainda, que quando fala de memria, pensa tambm na possibilidade de construo de outro espao, que no seja aquele da memria nica e totalizante. Durante a segunda seo, algumas questes recorrentes como: as inscries, sinais e lugares de memria que demarcam e conotam o espao, apresentada por Francisco, aluno da UFRJ; a atuao do Estado na promoo das polticas dos Pontos de Memria, levantada por Isabel, Pr-reitora de extenso da UFRJ; e a questo do processo contemporneo de estandardizao e mercantilizao da memria enquanto megaproduto

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a ser vendido em forma de pacotes e concorrido entre editais, discutida por Regina Helena, mediadora da mesa - animaram o debate e suscitaram novas provocaes. Laura Maciel, se atendo primeira questo, pensou a memria como uma construo que se d no presente, em decorrncia das correlaes de foras, disputas e antagonismos que vo alm das questes da linguagem e extrapolam seus referentes textuais. Maciel destacou o espao enquanto lugar de memria, no como mero suporte onde as memrias se depositam naturalmente, mas, como fato social que envolve formas diferenciadas de se inscrever, embates e assimetrias em torno dessas demarcaes do prprio espao. Quanto questo da memria e cultura virarem edital, Maciel respondeu que enxerga isso com ressalva e, focando no exemplo das comemoraes dos 200 anos da Famlia Real Portuguesa, afirmou que a alocao de recursos pblicos para o fomento daquela memria se deu em um nvel particular de detalhamento de como, por exemplo,se deveria lembrar, no s o que, mas como lembrar, ento, como deveria ser encenada aquela presena, em quais lugares da cidade, ou seja, no deixou margem nem para o contraditrio, que dir para penar a disputa entre outras possibilidades de pensar sobre 1800.

Apontou ainda que o prprio significado do acirramento da escravido nunca esteve presente nestas comemoraes. Em relao poltica dos Pontos de Memria, Laura comentou que o prprio Estado pode estar fomentando, com a profuso de museus e pontos identitrios, por exemplo, a pacificao e a esterilizao de conflitos e dissensos de grupos dentro desses espaos de memria. Frederico Arajo tambm pensou os lugares de memria como espaos marcados por significaes que esto sempre em disputas. Do mesmo modo, refletiu sobre a questo das polticas culturais do Estado e sobre o fomento aos pontos de memria, dizendo que tais pontos so espaos de disputa, onde o que vai ser possvel ou no, depende de como foras contra-hegemnicas se posicionam. Encerrando a terceira seo de questes, Carlos Rodrigo, do PROURB/UFRJ, props pensar a dimenso afetiva do espao, como a nostalgia, as sensaes de infncia e a relao dessas experincias urbanas com o processo de subjetivao. Denis Tavares, mestrando do PPGH/UFMG, levantou a questo da memria enquanto possibilidade, isto , procurou pensar na dimenso cognitiva da memria, enquanto ferramenta essencial para a prpria compreenso do passado e tambm para a prpria constituio da narrativa histrica. E Lucas, integrante do Projeto Jovens Reprteres, comentou um pouco sobre a experincia do seu grupo, com o trabalho minha rua tem histria, percorrendo os bairros de Nova Iguau e ouvindo a fala de grupos at ento marginalizados em relao a uma memria oficial da cidade.

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Laura Maciel, comeando pela questo do afeto, falou que os sentimentos e subjetividades podem ser pensados e trabalhados nessa direo da cultura urbana. Contudo, a autora ponderou que os pesquisadores no podem cair na armadilha do sentimento pelo sentimento, ficando somente com as evidncias do individualismo extremo, mas deve pensar os mecanismos que os fazem lembrar imersos em um campo de relaes sociais. Se voltando questo colocada por Denis Tavares, Maciel pensou a memria no somente como ferramenta para a compreenso do passado, mas, principalmente, como chave para a compreenso e afirmao do prprio presente, para a construo de um presente diferente daquela via nica imposta como nica possibilidade para o presente. Em relao experincia dos Jovens Reprteres, Maciel considerou que a prtica de trabalho deles oferece oportunidade para pensar as memrias que se colocam em disputa em Nova Iguau e procuram se afirmar e constituir um lugar de reconhecimento da e na cidade. Frederico Arajo, fazendo um ltimo comentrio sobre a prtica dos Jovens Reprteres de Nova Iguau, disse que a memria um processo de construo marcado tambm pela imaginao do futuro e pelas disputas do presente. Desse modo, dependendo do momento histrico e das disputas de presente, no s Nova Iguau, mas toda a baixada fluminense se vincularia e faria parte da construo de memria de alguns setores, sua significao dependeria, portanto, das disputas, das relaes de poder e dos projetos de futuro que constituem aquele espao.

Relato de Patrcia Assreuy Mesa 2: Espao Pblico e TerritrioClaudia Pfeiffer (IPPUR/UFRJ), Catia Antonia da Silva (FFP/UERJ), Marcella Camargo e Camila de Oliveira (Jovens Pesquisadores) Mediadora: Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ)

Primeira fala: Catia Antonia da SilvaSegundo a professora Catia Antonia da Silva, o desafio da mesa seria a compreenso do espao pblico e do territrio, no sentido de entender as duas noes e o que media essas esferas. Por meio de imagens, ela procura demonstrar o conceito de territrio usado de Milton Santos, que consiste em um manifesto. Vrias imagens so de navios e da regio porturia prxima ponte Rio-Niteri, numa proposta de olhar a metrpole a partir das guas, um olhar diferente.

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Catia Antonia da Silva cita Hannah Arendt: a esfera pblica corresponde ao comum. Ou seja, espao pblico uma dimenso do comum, o que pode ser visto e ouvido por ns e por outros. Nesse sentido, espao pblico pode ser pensado como a prpria realidade, significa o prprio mundo. Ela coloca a esfera pblica como lugar das sociabilidades, numa contradio com a lgica capitalista que se apropria dos espaos. Essa dimenso interfere na compreenso das pessoas do que esse espao pblico, ocasionando sentimentos como o estranhamento, por exemplo. Nesse sentido, pode-se dizer que muitas vezes o processo de dominao acontece por meio da destruio das noes de territrio. A professora faz um breve histrico do conceito de territrio. Comeou com Friedrich Ratzel, gegrafo alemo que usava o conceito para justificar a ao do Estado. O Estado tem que ter soberania e, para isso, deve controlar o territrio. Ao longo do tempo, o conceito foi ganhando novos sentidos, dados por diversos autores. Mas o que necessrio compreender o conceito trazido por Milton Santos de espao banal, ou seja, o territrio tem que ser pensado como um espao de todos, sob o risco de ser apropriado apenas por alguns grupos especficos e no por todos. Assim, necessrio pensar que o espao passvel de apropriao por diversos grupos, no s os grandes e conhecidos, mas tambm os invisveis. Da o interesse da pesquisadora por comunidades de pescadores. A palestrante coloca que o conceito de territrio multifacetado: pode significar lugar, memria, identidade, reconhecimento. Ela cita novamente Milton Santos: o territrio tem que ser pensado a partir dos usos. Nesse sentido, ela coloca que o conceito acaba sendo utilizado pelos autores de acordo com o que lhes interessa. Catia Antonia da Silva dedica especial interesse as comunidades de pescadores da Baa de Guanabara, sendo esse o seu foco de pesquisa no momento. Ela traz tona o caso do lixo na Baa de Guanabara e pergunta: ela espao pblico? O entendimento de muitos do que seria espao pblico de que esse sinnimo de rua, ou seja, o lugar do visvel e palpvel por todos. Nesse sentido deve-se observar a dimenso da visibilidade no tratamento da questo do espao pblico. Esse conceito extremamente complexo, pois, ainda que se parta de uma referncia do comum, cai na contradio em relao dimenso do comum. Ao mesmo tempo em que pode ser o lugar da liberdade, pode ser tambm o lugar da dominao. Para exemplificar esse fato, Silva fala do caso dos pescadores da regio da APA do Guapimirim na ocasio do derramamento de petrleo na Baa de Guanabara em 2000. Sua presena no identificada pelas cartas nuticas da marinha, ou seja, sua presena invisvel. Por causa disso, a prpria circulao da comunidade pesqueira na regio prejudicada. Catia Antonia Silva coloca a questo do Estado como expresso da sociedade civil, e no s da poltica. Ele exerce um controle sobre o domnio pblico. Assim, como pensar um

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Estado que confunde o pblico com o territrio? A palestrante termina sua fala com a seguinte pergunta: Se o espao pblico o lugar da visibilidade, como que podemos criar mecanismos que nos permitam ver? Como ver o outro em sua totalidade?

Segunda fala: Marcella Camargo e Camila de OliveiraA fala inicia com Marcella Camargo, contando sobre o trabalho com jovens, o grupo Informao, Conhecimento, Atitude (ICA) e o grupo Jovens Pesquisadores. Segundo Marcella, o territrio se constri a partir da nossa perspectiva. O grupo ICA uma ONG fundada em 2005 que procura unir jovens de escolas internacionais a jovens de favela a partir de atividades como peas de teatro, msicas, viagens, etc. O objetivo do trabalho o empoderamento da juventude, enquanto o foco a produo, a experimentao, a autoria e a produo coletiva. Marcella considera que as representaes ligadas ao territrio sejam uma juno entre as percepes do cotidiano e momentos de reflexo, baseados na noo de direitos humanos. Nesse contexto, os movimentos sociais constam como produtores de representaes legtimas e reconhecidas na contemporaneidade. Segundo a palestrante, o territrio do ICA a juventude. A escola de pesquisa se aprofunda na diversidade territorial. Ela acredita que o territrio depende de onde a pessoa se encontra. Assim, o intuito das atividades do ICA provocar no apenas conhecimento, mas tambm promover atitude e mobilizao, no sentido de respeitar a diversidade e os direitos humanos. Em seguida, Camila de Oliveira fala sobre o grupo Jovens Pesquisadores, do qual faz parte. Segundo Camila, o jovem no tem domnio sobre o territrio no qual ele est inserido, da a importncia da escola de pesquisa, que sistematiza os projetos sociais que existem em Nova Iguau - RJ. A escola fornece informaes importantes para a tomada de decises da Secretaria de Cultura do municpio, sendo uma de suas atribuies o monitoramento e avaliao da atuao dessa Secretaria. Camila levantou alguns pontos acerca da ligao entre territrio e afetividade e sua relao com o aprendizado do respeito ao outro e s diferenas. Segundo a palestrante, a pessoa s pode fazer diferena na sociedade se ela tem conhecimento sobre como fazer isso. A escola funciona no sentido de prover uma ferramenta de conhecimento e apropriao, alm de ajudar na formao dos jovens como pesquisadores. Isso proporciona aos jovens uma viso ampliada de sua realidade. Assim, os jovens passam a ser mais aptos a discutir seu territrio e sua prpria atuao dentro dele. O fato de a escola estar inserida no contexto de um rgo do governo possibilita que as investigaes sejam de fato utilizadas para a proposio de polticas pblicas que atendam s necessidades dos jovens enquanto cidados.

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Camila citou ainda alguns pontos marcantes da trajetria dos Jovens Pesquisadores, como a pesquisa Minha rua tem histria, que envolveu formao tcnica e resgate da memria de Nova Iguau. Alm disso, o grupo promoveu o 1. Encontro Juvenil As artes e as cincias por uma vida sustentvel na Urca. O grupo Jovens Pesquisadores tambm participou do 5. Frum Urbano Mundial, em 2010.

Terceira fala: Cludia PfeifferA palestrante inicia sua fala com definies pessoais dos conceitos de territrio e de espao pblico.Territrio seria a rea geogrfica na qual pessoas e grupos desenvolvem sua existncia. Espaos pblicos seriam os espaos nos quais ns, com nossos corpos e com nossas diferenas, nos encontramos em interao ao vivo e a cores.

Pfeiffer diz ainda que desenvolve projetos em locais no Rio de Janeiro, como Vila Elza (Rio Comprido), Cidade de Deus, Santa Cruz e Vila Aliana. Segundo Cludia Pfeiffer, ao passo em que h situaes de encontro e consenso, h tambm situaes de diferenas e arrogncias, no que diz respeito gesto de conflitos nessas reas. Encontros no sentido de comprometimento com as outras pessoas e com seus direitos em vrios segmentos, inclusive no governo e no empresariado (grupos que a priori no se acredita terem tais compromissos). E encontros no sentido de descobrir novas possibilidades de interao e de vida na cidade, que s vezes resulta na criao de redes cvicas (redes cvicas seriam redes de pessoas imbudas de esprito pblico, no grupos, o que resulta em conexes mais fluidas). A palestrante coloca ainda a existncia de dissenso na identificao de problemas, o que resulta em conflito por si s, alm de desencontro de pessoas em equipes voltadas para projetos sociais, ocasionadas por discordncias relacionadas ao modo de ser, pensar, sentir e agir de cada um. H tambm o preconceito de um grupo em relao a outro grupo, o que dificulta a interao e os acordos coletivos. Ademais, Cludia Pfeiffer discorre sobre a existncia de uma valorizao excessiva da prpria experincia que vem caracterizando a atuao de muitos de ns no espao pblico da cidade. Segundo ela, isso vem sendo observado no apenas na atuao do governo, mas tambm na atuao das ONGs e das lideranas comunitrias. Por fim, Pfeiffer coloca que todas essas questes so encontradas nos espaos pblicos dos territrios, podendo nos levar a encontros ou desencontros, conflitos ou consentimentos, consensos e colaboraes. Nesse sentido, a grande pergunta que deve ser respondida como cada um de ns deve agir para construir nossa sociedade? E que legado cultural queremos deixar para as prximas geraes?

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CONSIDERAES DURANTE O DEBATE:Alguns pontos interessantes foram levantados durante o debate. A professora Margareth da Silva Pereira (PROURB/UFRJ) falou sobre o uso do conceito de construo para permear a discusso sobre espao pblico e territrio, uma vez que espao pblico e espao urbano so construdos. Nesse sentido, a pergunta que deve ser feita : territrio e espao/esfera pblica construdos por quem e para quem? Segundo Pereira, territrio um recorte de um campo identitrio contingente. Ou seja, territrio , antes de mais nada, um recorte. A pesquisadora falou ainda sobre o conceito de empoderamento e o uso da palavra: claro que est sendo falado de regimes de presena, visibilidade e poder. Mas me pergunto se no mais uma questo de presena e visibilidade do que necessariamente poder? Catia Antonia Silva falou um pouco sobre o perigo do uso descuidado do conceito de territrio, uma vez que este est intrinsecamente ligado noo de poder. Mesmo quando o conceito de territrio est ligado idia de memria, a noo de poder permanece, uma vez que o desejo de memria relacionado ao desejo de secularizao, de permanncia de uma coisa escolhida. Ou seja, importante cuidar da dualidade do conceito, e no considerar s poder ou s permanncia, sob pena de ser tendencioso, vendo apenas conflito ou apenas consenso. Cludia Pfeiffer levantou um questionamento sobre a conceituao de espao pblico e territrio: Nessa diviso conceitual entre espao pblico e territrio, pode-se dizer que o espao pblico o territrio socialmente visvel? Alm disso, a professora falou sobre a importncia da valorizao dos resultados quando se trabalha na rea social; muito comum que os processos acabem sendo supervalorizados e no se d importncia aos resultados. Por fim, Marcella Camargo questiona: at que ponto a prpria academia no seria responsvel pela arrogncia que a Cludia colocou durante a sua fala?

Relato de Milena Batista Durante Mesa 3: Espao Pblico e DiversidadeLivia de Tommasi (PPGS/UFF), cio Salles (Secretaria de Cultura de Nova Iguau) e Alessandro Conceio (Centro de Teatro do Oprimido) Mediadora: Lilian Fessler Vaz (UFRJ)

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Primeira fala: Livia de TommasiComea falando sobre como o momento atual particularmente importante para se discutir a diversidade porque todas as manifestaes culturais que acontecem hoje e das quais tanto se fala nunca deixaram de acontecer. Atualmente, porm, esto tendo uma valorizao particular no s de programas de polticas pblicas, mas como os dos Pontos de Cultura e tambm uma srie de intervenes da mdia, programas como a Central da Periferia de Regina Cas. Tambm declaram que possvel encontrar excertos de jornal sobre literatura marginal, etc., ou seja, as atenes, de um modo geral, se voltam para as chamadas manifestaes populares. Todo um campo de interveno nessa rea, interveno pelos Editais, do Ministrio, a Secretaria da Identidade Cultural, enfim, um campo que est sendo particularmente visado e tambm fala da questo da diversidade e sua relao com toda a histria dos movimentos sociais que tambm em algum momento comearam a focar nessa questo de diversidade - ou seja - essa verdadeiramente uma pauta tanto na mdia quanto nos rgos pblicos, de acordo com a palestrante. Tommasi, afirma que vai discutir o uso que se faz desse paradigma da diversidade atravs de dois acontecimentos por ela analisados: a criao do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) - do qual participou em 2005 - e o Encontro Nacional da Diversidade Cultural organizado pelo Ministrio da Cultura no Rio de Janeiro e precedido por uma srie de encontros estaduais. No caso do Conjuve (Conselho Nacional da Juventude), uma das questes importantes durante a criao do rgo foi o desejo de saber quem vai representar a juventude. Em outros conselhos a participao, que no governo Lula foi bastante ressaltada, se deu por segmentos que representam algum tipo de modalidade de atuao naquela rea. Segundo ela, a rea da juventude, sendo uma rea nova e no existindo um movimento anterior - como no caso dos movimentos das mulheres ou daqueles que tratam da questo racial e j existiam antes, e quem estava frente dessa deciso - entre elas um antroplogo carioca - decidiu fazer essa representao atravs de uma mistura ente segmentos identitrios (GLBTT, juventude deficiente, rural, ndios) e segmentos temticos (juventude e trabalho, juventude e educao, mulheres, meio ambiente) criando caixinhas identitrias que no existiam antes e reproduziram esses padres aos conselhos municipais e estaduais que se seguiram e criou-se o estigma de que para se discutir juventude preciso discutir por segmentos. Livia de Tommasi alega, que a segmentao temtico-identitria foi realizada porque[...] vrios especialistas comearam a falar que no se pode falar de juventude no Brasil, existe uma grande diversidade de condies juvenis ento temos que falar de juventudes no plural portanto, essas diferentes juventudes - pautadas tambm por vrias publicaes da UNESCO gerou discusses interminveis porque cada segmento tinha que ter sua opinio sobre cada assunto em pauta e discutir a partir

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da sua diversidade, da sua particularidade dificultando, e s vezes impossibilitando, a discusso em diversos momentos por ser impossvel criar uma bandeira comum.

A palestrante continua sua fala contando sobre o Encontro da Diversidade Cultural promovido pelo MinC onde tambm havia a diviso por segmentos identitrios e, de acordo com a palestrante,[...] o prprio formato do evento, formado por testemunhos fazia com que cada um s testemunhasse as dificuldades e as particularidades do prprio segmento identitrio, sem dilogo entre eles. Em vez disso, cada segmento queria se mostrar mais excludo, desprovido de polticas pblicas e necessitado de ateno especial, criando uma competio entre eles.

Tommasi discorre que h uma forma bastante tpica de pensar em que se cria um grupo, um segmento que no existia antes da interveno do governo e que esse grupo vai ser meu interlocutor. Eu te organizo pra voc participar e que essa maneira de trabalhar a diversidade cultural est bastante relacionada discusso levantada pelo socilogo francs Jacques Donzelot, sobre o social de competio entre diferentes grupos, algo que vem se instalando nos ltimos dez anos e tambm, por outro lado, est relacionado discusso de Nikolas Rose, que desde o comeo dos anos 1990 identificava[...] a deteriorao do social enquanto intermedirio entre a populao e o estado em contraposio s comunidades mltiplas e fragmentadas que substituem a centralidade nas estratgias, como sujeito e objeto de governo, em que cada um responsvel por enfrentar os problemas daquela sociedade atravs da energia e das escolhas individuais e atravs da moralidade pessoal em uma comunidade dada - em contraposio centralizao, paternalismo e incapacidade do governo social.

Por fim, Livia de Tommasi conclui que essa diviso por segmentos deveria respeitar a diversidade e dar voz s diversidades, e permitir que cada um enfrentasse suas questes de maneira ativa e se fazendo responsveis pela soluo dos problemas, mas, diferentemente, os jovens que so vistos como problemas a serem enfrentados na questo da juventude de forma geral, como enfrentamento dessa questo emerge o pensamento de que o jovem pode ser soluo e, ento - surge o protagonismo juvenil e outros movimentos de empreender a vida como fala Nikolas Rose, em que o jovem pode se tornar responsvel pelo prprio destino.

Segunda fala: cio Sallescio Salles inicia sua fala contando a prpria trajetria desde que nasceu na franja do Complexo do Alemo - ondeno conseguiu fazer ligao intelectual com a questo da favela a no ser afetivamente at 1995 quando foi convidado pelo AfroReggae para revisar o jornal e acabou entrando para o grupo cultural como voluntrio quando eles eram ainda poucos jovens que se

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amontoavam numa sala minscula num prdio na Senador Dantas - agora tem uma supersala na Lapa - lugar para 100 pessoas trabalharem, mas j indicavam o que o grupo poderia vir a ser.

Salles discorre que hoje inevitavelmente faz parte de sua biografia ser um cara com doutorado do Complexo do Alemo e declara que no se via dessa maneira quando era mais novo porque para sua famlia era muito confuso morar prximo da favela por causa do estigma e do preconceito, mas continua contando como depois virou um valor porque algo fundamental, uma influncia decisiva e se relaciona com tudo que fez na vida e, por isso ele nunca deixa de falar dessa origem, de onde nasceu e se criou. O debatedor coloca em seguida que preciso apontar os limites do espao pblico e fala sobre como os discursos que se constroem sobre a cidade definem alguns espaos como pblicos, mas o acesso de todas as pessoas a eles problemtico e cita o trabalho Galinha (2002) do grupo Bijari, citando-o como um grupo que faz interveno urbana e que normalmente vo para o espao pblico e ocupam o espao que deveria ser pblico e conta sobre as diferentes experincias geradas pela galinha que o grupo solta em dois lugares diferentes: no Largo da Batata, bairro popular poca marcado por forte presena de terminais de nibus e comrcio ambulante informal e no shopping Iguatemi, conhecido por suas lojas de grifes internacionais, fala sobre a diferena entre a interao com a galinha e a durao da ao nos dois lugares (pessoas se relacionam com a galinha no Largo da Batata x estranhamento no shopping) e afirma que o trabalho um tratado de sociologia. cio Salles d o exemplo do grupo Bijari (coletivo de artistas) e diz que a cidade tem esses recortes e que neles que devemos trabalhar afirma de acordo com sua experincia como secretrio da cultura em Nova Iguau - municpio da periferia do Rio, mas que tambm tem seu centro e suas periferias. Segundo ele, as polticas pblicas implementadas no municpio - visassem a diversidade ou no - de seis ou sete anos atrs eram apresentadas quase que exclusivamente no centro, onde havia certa estrutura e servios enquanto o restante do municpio era abandonado. Ele ainda complementa dizendo do smbolo que Lindberg (Farias, prefeito do municpio poca) usou que era o saco plstico que as pessoas no precisariam mais usar nos ps para no sujar os sapatos [quando fossem asfaltadas as ruas de terra). O palestrante destaca que:[...] no campo da cultura, pensando a questo da diversidade, o que a gente buscou foi essa capilaridade, algo que faz parte de um processo nico. Como era um tema do Lindberg, a gente foi para os bairros, ou seja, saiu do centro e buscou um trabalho pra entender cultura no como conhecimento estabelecido (teatro, msica, dana dominantes, do centro), mas tambm que no fosse apenas o que a periferia consagrou (como o Hip hop e a capoeira) numa forma de ampliar aquilo que se faz politicamente com o dinheiro direcionado para a rea da cultura, ou seja, alargar o espectro territorial.

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Para exemplificar esse alargamento, Salles conta o episdio em que 22 funkeiros cariocas foram convidados para uma reunio, mas apenas um deles apareceu para servir de bucha de canho porque eles achavam que a prefeitura queria reunir todos para prend-los e que o convite para o projeto era apenas uma isca e, que assim que o nico que compareceu reunio chegou, ele assobiou e chamou os outros que faltavam. Outro exemplo de busca pela diversidade dos agentes culturais foi o caso das rezadeiras, onde foi criado um site que aborda questo das senhoras rezadeiras. Salles comenta que nosso dever quebrar e continuar quebrando esses limites do espao pblico. Salles ainda elucida sobre a emergncia da chamada classe C nos tempos atuais, de como a FGV est abrindo cursos para que se estude essa classe com mais de 40 milhes de pessoas entrando na classe C, de como o mercado est se organizando para ganhar dinheiro com essa classe, mas, na opinio dele preciso se organizar para pensar esse fenmeno de forma que no se restrinja ao consumo, ao mercado, lgica do consumismo. De acordo com Salles, realizar isso muito difcil, uma disputa e em seguida faz uma meno ao projeto jovens reprteres e fala que a potncia desse fenmeno da emergncia da nova classe mdia determinante porque ela definir o rumo da eleio e est ativando setores da economia que estavam na inrcia - de acordo com texto promocional da prpria FGV que o palestrante cita. Portanto, ele acredita que vivemos uma oportunidade nica para tentar interferir nesses processos e completa que[...] a cultura e educao tm papel determinante, fundamental embora na rea da cultura haja uma mobilizao j estabelecida e exemplos da sociedade civil que podem contribuir para organizar/desorganizar essa populao de maneira criativa, enquanto a educao uma tarefa ainda a ser feita.

cio Salles finaliza afirmando que[...] nem tudo que pblico comum - Bijari demonstra isso, tudo que a gente aprendeu em Nova Iguau: nem tudo que pblico acessvel a todos e d o exemplo da universidade pblica brasileira, que pblica e no acessvel a todos - embora isso esteja comeando a ser alterado com polticas pblicas e aes afirmativas.

Por fim, ele comenta das barreiras quase intransponveis para falar-se numa diversidade de forma ampla e facilmente reconhecvel e convida Larissa Eleutrio, uma das reprteres do projeto para dar um depoimento mesa.

Interferncia: Larissa EleutrioLarissa Eleutrio fala da falta de hbito de conversar com a prefeitura, de como desde que comeou com o projeto, descobriu a cidade pela perspectiva do projeto. Larissa complementa dizendo que aceitar adolescentes na prefeitura uma coisa recente, e tambm sobre como pensava que cultura referia-se apenas a capoeira e galera

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tocando violo. E como a partir disso comearam a acontecer muitas coisas e polticas comearam a surgir: surgiu o Fundo Nacional de Cultura mostrando um universo diferente para o jovem e ainda que Nova Iguau no s aquele velho laranjal e que a cidade est crescendo muito.

Terceira fala: Alessandro ConceioAlessandro Conceio inicia sua fala contando sobre sua formao, falando de sua relao com o Teatro do Oprimido, que completa quarenta anos em 2011, e uma metodologia genuinamente brasileira, criada por Augusto Boal. Fala tambm do Centro de Teatro do Oprimido (CTO), um lugar onde se estuda e pratica. Ele conta como o objetivo do Teatro do Oprimido a democratizao dos meios de produzir cultura. No h aulas de teatro e sim a capacitao de multiplicadores dentro da metodologia. Conceio explica como a primeira tcnica que surgiu foi o Teatro Jornal nos anos 1970, durante um momento bem forte da ditadura, em que tudo era analisado pela censura antes de ser permitido. Faziam encenaes de notcias de jornal. Ele continua perguntando se so mesmos isentos e imparciais os jornais se eles dependem de anunciantes? Atravs dessa encenao comeam ento a revelar a manipulao que estava por trs de cada notcia. Continuando sua fala, o convidado expe como depois do exlio, Boal desenvolveu o Teatro do Oprimido em pases da Amrica Latina como Peru, Argentina, Bolvia, etc. e depois desenvolveu o Teatro Frum atravs de apresentaes com tribos indgenas e as pessoas encenavam seus problemas e o frum auxiliava na resoluo deles. D o exemplo da moa que foi trada pelo marido que a roubou e conta como atravs de uma dessas experincias as pessoas da platia passaram a ir ao palco e encenar. Teatro invisvel - vai fazer com a platia na rua, envolver transeuntes na discusso porque nem sempre aquilo que o pblico pretendia com suas sugestes, apenas falando, era possvel de ser encenado pelo elenco - o prprio pblico que devia faz-lo. Alessandro Conceio complementa falando do Teatro Invisvel: quando a gente ensaia com o elenco e vai para a rua fazer esse teatro sobre uma questo muito urgente com a platia, envolvendo todos os transeuntes e todos os cidados sem dizer que teatro para que as pessoas no pensem que pegadinha e no se sintam ofendidas. E d um exemplo de uma encenao sobre assdio sexual que foi realizada em uma estao do metr no horrio de pico e que causou tanta movimentao - inclusive com a chegada da polcia militar e da guarda municipal - em que, nesse caso, foi revelado que aquilo era Teatro Invisvel e at hoje h uma placa dizendo proibido fazer Teatro Invisvel. E conta como foi atingido o objetivo de trazer tona essa discusso naquele momento.

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O convidado ainda destaca que trabalham por meio de projetos com a criao de grupos populares: grupos que tenham algo em comum e que querem discutir aquela opresso, como por exemplo, um morador de favela que sofre preconceito toda vez que vai ao centro ou desce do morro. Conta que existem grupos populares formados em prises, hospitais psiquitricos, conta das dificuldades e impossibilidades de algumas encenaes que foram proibidas.Em 2008 houve o II Frum Internacional de Sade Coletiva, Sade Mental e Direitos Humanos e um dos grupos de um manicmio judicirio queria realizar uma encenao no Frum, que s foi aprovada pelo juiz (depois de passar por todas as tentativas hierrquicas anteriores) autorizando a sada apenas de alguns dos integrantes do grupo porque outros eram considerados perigosos. Foram transportados pelo SOE (Servios de Operaes Especiais), todos fortemente armados e queriam lev-los algemados e a apresentao deveria acontecer com os atores algemados - o que foi evitado; foram algemados apenas no caminho, mas se apresentaram na UERJ causando bastante comoo entre os participantes do evento, inclusive nos que pensavam que ningum jamais poderia sair do manicmio judicirio. E, depois, por terem conseguido a simpatia do juiz, fizeram uma outra apresentao numa praa na Cinelndia.

Alessandro Conceio complementa que tambm trabalham com idosos, grupos de homossexuais, e que, nesse momento, continuam com oficinas e com outro elenco. Esto agora com quatro grupos: um de sade mental, um de homossexuais e um de empregadas domsticas que existe h doze anos e conta a histria de uma mulher do grupo de empregadas domsticas que se emocionava antes da cena e dizia que era porque os patres dela sempre a haviam tratado como uma coisa e agora ela seria vista como gente e que tambm estava emocionada porque a luz tem que focar em voc quando ela na verdade sempre havia sido acostumada a se esconder. Conceio ainda afirma que sabe da importncia das pessoas falarem de suas questes e fala das variedades de lugares e formas de ocupar espaos na cidade lembrando que Boal afirmava que no necessrio um lugar especfico pra se fazer teatro e conta como houve apresentaes nas ruas, em shoppings, estaes de metr, etc. O debatedor conclui dizendo que o trabalho do Teatro do Oprimido uma forma de se apropriar da cultura, ocupar o espao e exercer a cidadania - que fundamental pra gente ocupar esse espao.

DEBATERafael, aluno de Cincias Sociais da UFMG: O reconhecimento da diversidade sempre se d de cima pra baixo, criando culturas: a cultura da periferia, a cultura do Hip hop, funk, etc. e h um perigo muito grande de estigmatizar esses grupos, essas pessoas e mant-las no lugar onde elas esto. E pensando na idia do espao pblico/diversidade,

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pelo pouco que eu conheo Belo Horizonte e do Rio eu penso que h uma dificuldade das pessoas lidarem com essa diversidade. Queria saber do cio: voc concorda com isso? Como voc se posiciona? Regina Helena, UFMG: Pensando na provocao da Livia, das caixinhas identitrias. Essa conceituao de cima pra baixo, criar essas caixinhas, essa complicada confuso que temos feito atualmente entre prtica artstica e cultura, entre manifestao artstica e cultura e manifestao cultural, entre evento cultural, evento artstico e prticas e a somos todos ns - esse entender a diversidade como a criao dessas caixinhas onde a gente coloca separadamente as pessoas: os gays, as lsbicas, as mulheres, negros, deficientes. Ao fazer um projeto cultural voc tem que marcar tanto x e responder quem voc vai atender. Estou respondendo agora a um questionrio sobre o programa cultura viva e assim: quantas pessoas voc atendeu? Ningum, no atendi ningum, no sou psicloga. Quantos negros, ndios, homossexuais voc atendeu? Eu no sei, eu no contei. A provocao que eu quero fazer : como explicar o que saiu dessas caixinhas nas ltimas eleies, que foi uma onda tenebrosa de microfascismos, porque se eu me coloco na posio de legitimar o outro e de dizer ao outro que ele se distingue de uma determinada maneira de todos e que essa distino dele tem que disputar com todos para ganhar... A quando temos as eleies, as pessoas tentam queimar, matar, destruir a diferena, as mesmas que reivindicam pra si a diversidade. Paola Berenstein, UFBA: No final da mesa de territrios, eu estava questionando exatamente os territrios culturais que so questes identitrias e que no fundo delimitam determinadas coexistncias conflituosas, assim eu acho que esses territrios culturais vo no caminho dessas caixinhas identitrias. E como a gente faz para tentar entender e para, sobretudo, aceitar essa tenso, esse conflito e esse dissenso cultural sem cair na pacificao, separao, na idia do estado de exceo, da guerra? A minha grande questo que eu tenho a impresso de que essa separao entre esses segmentos dentro das caixinhas tem uma repercusso direta no espao pblico, no mais como esfera pblica, e sim como espao fsico. Se as caixinhas esto se tornando de fato caixinhas, ou melhor, cercadinhos, onde vai ficar a esfera pblica? cio Sales: Eu me lembrei da msica Little boxes da Malvina Reynolds. Se eu entendi direito, as questes todas passaram por essa problemtica das identidades, essa coisa das caixinhas. Essa coisa da diversidade uma fbula eu nem gosto desse termo, eu penso a diferena em como tratar a convivncia e no tolerncia -, a gente tem que criar meios de conviver e produzir juntos. Sobre a questo da identidade, as caixinhas so sempre muito ruins porque produzem quase sempre esses microfascismos que

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vimos nessa ultima eleio, o que no novidade, a novidade que eles apareceram de uma forma muito evidente, mas j estiveram ai em outras situaes. Eu, por exemplo, fiquei muito chocado quando o Rio de Janeiro elegeu com grande votao trs notrios representantes de grupos de extermnio para vereadores. impressionante como espremendo, o fascismo sempre aparece nos programas de televiso faltou muito pouco para pedirem de novo a pena de morte. evidente que se trabalhar de cima pra baixo muito ruim, mas eu j trabalhei na elaborao desse tipo de dispositivo [de classificao e segmentao] muito difcil convencer o outro de que no precisamos disso. Mas pra fazer qualquer tipo de ao afirmativa, a gente precisa das caixinhas: como que voc diz que no existem raas e voc quer colocar cotas pra negros na universidade? Porque pode-se dizer que no h raas mas como que voc v que no h negros na universidade? Eu sou totalmente favorvel ao que voc falou, mas quem espancado na Av. Paulista e em Copacabana so os gays. E que a gente no pode esquecer que tem um movimento que de baixo pra cima que um movimento forte e que muito necessrio, e que dever da poltica pblica reconhecer essa movimentao, no nome-la, design-la, estabelec-la, mas reconhec-la. Esse encontro da diversidade, por exemplo, eu acho que tem um milho de contradies, porque organizado de cima pra baixo por melhores intenes que se tenham. Quando colocamos nas caixinhas, corremos o risco de errar, mas no podemos esquecer o movimento. Jamais daremos conta [de resolver os problemas de cada um dos grupos identitrios], mas trabalhar para isso fundamental. Livia de Tommasi: Vou comear dizendo que sou branca, europia, de olhos azuis, que no sou lsbica, negra, no sou da periferia e que, portanto, no me encaixo em nenhuma dessas caixinhas que vimos por ai. Posso caber naquelas de opressor ento por isso que eu devo estar falando aquilo que eu falo. Mas eu acho que isso est nos levando a um racismo e a uma valorizao do avesso. Agora eu te reconheo e reconheo sua fala s se ela vem de algum lugar, que se reconhece como oprimido, e voc s pode falar de um lugar se estiver nele, se voc padece daquela situao: sobre mulher se mulher, sobre negro se negro, e eu acho que isso leva direto para aquilo que a Lena falou de microfascismos, s podemos falar sobre determinada condio se sofremos dela, seno no podemos falar e isso leva direto para os microfascismos. A questo identitria uma questo que foi muito levantada nos movimentos sociais e partia da busca da identidade, de se afirmar no espao pblico a partir de um lugar que foi sempre um lugar de no visibilidade, no reconhecimento. Mas no a condio social que motivadora de um movimento social, de uma mobilizao ou reivindicao. Quais so hoje as questes que esto sendo colocadas na sociedade e de que forma essas questes nos fazem entrar numa luta? Acho que hoje a questo fundamental a desigualdade. Basta dar alguma migalha para aqueles que at agora no tinham para que o Brasil se torne um pas mais igualitrio. tambm preciso tirar daqueles

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5% que tem mais, que sempre tiveram demais. Como que a gente faz isso? E essa questo da desigualdade uma coisa que motiva a todos independentemente das nossas caixinhas identitrias. A questo racial uma questo fundamental no tanto por causa da cor da pele - porque eu defendo tambm a poltica afirmativa, mas de fato uma coisa to evidente que existem poucos negros na universidade pblica enquanto a enorme maioria nos bairros populares so negros que no parece uma questo que exija a defesa de uma identidade para que a gente tenha que defender o acesso universidade. O uso que se tem feito do movimento Hip hop o que h de mais perverso de uma manifestao cultural de ruptura e que criou conflito. E sobre essa coisa da praa: em Recife isso comeou com o Carnaval, mas acho que no podemos confundir estilos musicais com essncia identitria porque a a gente faz um bocado de confuso. Gostaria de falar de um encontro lindssimo em Duque de Caxias em que reuniu periferias da Frana e periferias do Brasil e o debate que mais me marcou, em vez de discutir polticas pblicas, reivindicaes, poltica se discutiu cinema. cio: eu tambm acho, acompanhei o Hip hop quando era o mximo da ruptura. Ningum fica a vida inteira s na resistncia. Acho que chega de resistncia, acho que mais forte a re-existncia. A partir do influxo da Cooperifa, os saraus se alastraram na zona sul de So Paulo e eles reivindicam muito isso de literatura marginal, o Ferrz de literatura perifrica, o Srgio Vaz de literatura marginal. E eles tem uma percepo de que mais interessante do que se dizer apenas literatura, eles conseguem aparecer e existe um nicho para eles sendo assim e ele defende com muita galhardia e sem nenhum pudor e com um rigor de argumentao impressionante: disputar com os grandes eu nunca vou aparecer. Fui destinado a ser ladro, quase fui e agora sou um escritor de certa projeo nacional. Eu vou nessa, porque nessa estou me construindo como ser humano, minha subjetividade est se construindo a, no com a literatura, diz Srgio a cio. Alessandro Conceio: Essa discusso realmente muito complexa, a gente sempre fala de igualdade sim, igualdade de oportunidades, de direitos, mas como indivduo eu perteno a um grupo de pessoas, grupo cultural, tnico e essa diferena precisa ser respeitada, valorizada e isso todo mundo concorda. E ai que eu fortaleo minha identidade porque se eu no reconheo minha identidade como tal eu quero exclu-la, neg-la e negando minha identidade, pensando no quero ser assim, eu quero ser o outro porque aquele modelo o ideal eu tambm no vou ser aceito pelo outro. E a gente no tem que ser aceito ou tolerado pelo outro, porque diferena existe, e eu quero ser respeitado por todos e devo respeitar todos; e se eu no sou respeitado com a minha diferena, com a minha identidade ai eu tenho que exigir respeito, e ai entra a questo legal. E gostaria de dizer que essa questo de oportunidade e identidade est muito ligada ao grupo que eu perteno.

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FIM DO DEBATE E A APRESENTAO DO GRUPO PIREI NA CENA provvel que a parte mais interessante do debate viesse a ser a seguinte caso o debate houvesse continuado quando, depois de todos indicarem mais ou menos seus interesses prtico-tericos e as proximidades de seu campo de pensamento, fossem discutidas as principais questes levantadas justamente nos pontos em que terminavam algumas argumentaes enquanto outras se iniciavam: um aprofundamento poderia ter sido criado pela tentativa de encontrar e ampliar os limites dos caminhos possveis em relao s polticas pblicas na rea da cultura. Como notou Alessandro em sua fala final, em diferentes propores, todos concordaram sobre os problemas criados pelas classificaes e segmentaes, tanto temticas quanto identitrias: elas no so uma forma interessante de diviso e classificao de pessoas, como apontado por Livia, por dificultarem a busca daquilo que comum a todos os segmentos, das questes que so relevantes e pertinentes no apenas a um grupo ou segmento. Tambm por levarem a microfascismos e busca da eliminao da diferena, como coloca Regina Helena. E ainda por poderem ter relao direta com segmentaes e fragmentaes que comeam a aparecer no espao pblico de fato, na cidade, como apontou Paola Berenstein. Porm, um ponto de extrema importncia levantado por Ecio, foi o de que no se pode negar os movimentos sociais que surgiram e surgem no Brasil com intensidade e de baixo pra cima (no impostos pela lgica dominante, mas justamente em busca de transformaes dessa prpria lgica). Esses movimentos articularam e articulam diversas transformaes importantes seja na conquista efetiva de direitos ou na transformao subjetiva provocada naqueles que os formam e deles se aproximam em suas diversas reas de atuao em sua maioria, segmentadas de forma temtica ou identitria: movimentos de moradia, movimento negro, movimento Hip hop, movimentos GLBTT, etc ainda que alguns de seus processos e modos de organizaes sejam por vezes questionveis. Ainda assim, buscar os problemas e falhas de organizao nos movimentos talvez seja to pouco produtivo quanto a fragmentao da discusso por pontos de vista segmentados. Culpabilizar os movimentos e seus processos tambm no so aes que paream levar s transformaes desses processos e muito menos s questes comuns como a desigualdade que permeia toda a discusso das caixinhas identitrias e foi apontada apenas por Livia. Essa culpabilizao tambm indica um caminho em direo a microfascismos: identificando o outro como aquele que est em busca da essncia identitria e no aquele que est experimentando em torno de possibilidades de criar sua prpria subjetividade e tambm inventar novas formas de poltica. preciso que os

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movimentos nos sejam prximos para que se possa construir em conjunto atravs de discusses e transformaes e no apont-los como os desertores da teoria em suas condies ideais os conceitos nos devem servir e no ao contrrio. Ainda que Livia tenha dito em relao ao momento atual em que a diversidade est sendo visada por todos e que inclusive h toda a histria dos movimentos sociais que tambm em algum momento comearam a focar nessa questo de diversidade podendo nos dar a impresso de que os movimentos embarcaram na moda da diversidade, importantssimo lembrar que nos ltimos trinta anos os movimentos vem construindo a poltica desse pas de forma bastante ativa com sua existncia. E ainda que essa construo, em diversos momentos, tenha se dado atravs de compartimentaes identitrias e temticas, foram elas que determinaram certas prticas do governo Lula em relao participao e a escolhas temticas e identitrias e no o contrrio ainda que diversas crticas possam ser feitas em relao aos usos e aplicaes feitas. Portanto, os movimentos e sua participao, em muitos casos, determinaram a pauta do governo atravs de suas reivindicaes, o que pde ser especialmente notado na rea da cultura diferentemente dos que nos indica a gesto atual do MinC. Um fator importante indicado por Lvia foi a declarao de especialistas da Unesco sobre a multiplicidade de juventudes no Brasil algo certamente condizente como nossa realidade econmica ainda que tenha havido mudanas na ltima dcada. Mas essa declarao pode ser um bom indicador de como buscar tentar implementar teorias distantes atravs da aplicao de metodologias nem sempre leva aos objetivos esperados. No h frmulas e repetir a segmentao para a criao de qualquer tipo de grupo/conselho um equvoco que deve ser avaliado em busca de outras alternativas. Outro ponto fundamental levantado por cio aquele em que diz que jamais daremos conta de resolver os problemas e corrigir as falhas apontadas por cada segmento, mas que importante continuar tentando. Certamente dentro do MinC durante a gesto Lula houve diversos tipos de tentativas e experimentaes que levaram a resultados muito produtivos e outros menos em termos de participao e de criao de condies para tal, por exemplo. Diversos mecanismos e dispositivos interessantes em relao a essas condies foram criados e algumas conquistas foram realizadas. A partir da fala de Regina Helena, por outro lado, tambm, importante observar onde pode-se estar querendo chegar a partir de questionrios como os que ela respondeu. Se o desejo for o de estudar e tentar compreender ainda que entre equvocos o que foi construdo durante esse governo, esse pode ser um recurso interessante, mas que certamente precisa poder ser avaliado de outras maneiras. Mas, se o objetivo desses questionrios criar dados mostrando aos movimentos e populao em geral quantos atendimentos foram realizados em relao a suas questes e como elas esto cada vez mais prximas de serem resolvidas, cabe a todos a funo que sempre deve

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caber: no aceitar tais argumentos e continuar buscando encontrar a melhor forma de manifestar suas novas posies a partir do aprendizado j realizado, continuar buscando novas conexes e escapes, mas diferentes daqueles encontrados at agora para que o processo de transformao no cesse e no vire uma modelizao a ser replicada como frmula de eliminao da desigualdade.Denis Tavares bolsista do Projeto Cidade e Cultura: rebatimentos no espao pblico contemporneo, mestrando do Programa de Ps Graduao em Histria/UFMG. Patrcia Martins Assreuy bolsista do Projeto Cidade e Cultura: