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    Expediente

    Cadernos Marcha Mundial das MulheresPublicao Marcha Mundial das Mulheres

    Secretria ExecutivaRua: Ministro Costa e Silva, 36 - Pinheiros05417-080 - So Paulo/SPTel/Fax: (11) 3819 - 3976Correio eletrnico: [email protected]: www.sof.org.br/marcha

    Twitter: @marchamulheresFacebook.com/marchamundialdasmulheresbrasil

    Diagramao:Jssika Martins Ribeiro

    Ilustrao da capa:Biba Rigo

    Julho de 2013

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    ndice

    Apresentao 04

    Perspectivas feministas para a igualdade e autonomia das mulheres 05

    O mundo no uma mercadoria! As mulheres tambm no! 17

    Carta das Mulheres para a Humanidade 23

    Plataforma brasileira da ao 2010 28

    Elementos para o debate e denio da 4 Ao Internacional

    da Marcha Mundial das Mulheres em 2015 34

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    Apresentao

    Entre os dias 25 e 31 de agosto de 2013, o Brasil sediar pela primeira vez um EncontroInternacional da Marcha Mundial das Mulheres. Este ser um momento importante para a

    Marcha porque iremos denir a prxima ao internacional de 2015 e tambm ser iniciada

    a transio do secretariado internacional da Marcha, que est no Brasil desde 2006. Alm das

    delegadas da Marcha de cerca de 50 pases, o Encontro ter a presena de um grande nmero

    de militantes da MMM do Brasil e da Amrica Latina, em um espao de intercmbio de prticas

    polticas e experincias de construo de alternativas, de formao e aprofundamento das nossas

    reexes sobre temas constitutivos da nossa agenda poltica.

    O mote do Encontro Feminismo em marcha para mudar o mundo reete a centrali-

    dade do da do debate, reexo e propostas para avanar na construo do feminismo da marcha,enraizado nas lutas locais, em aliana com os movimentos sociais que compartilham conosco

    o objetivo de uma transformao estrutural na sociedade, que seja geradora de igualdade entre

    homens e mulheres. Este caderno de textos foi organizado para contribuir com a preparao da

    Marcha do Brasil para o Encontro. Combinamos documentos internacionais da Marcha com an-

    lises da Marcha brasileira.

    O primeiro texto Perspectivas feministas para a igualdade e autonomia das

    mulheres apresenta uma reexo sobre os avanos e desaos da construo do feminismo

    anticapitalista. O texto seguinte O mundo no uma mercadoria! As mulheres tambm no!

    apresenta nosso debate feminista frente a uma das dimenses centrais da luta social hoje:o avano do capital sobre os territrios e a mercantilizao da vida e da natureza. Em seguida,

    apresentamos a Carta das Mulheres para a Humanidade e a Plataforma brasileira da ao 2010,

    que so importantes referncias na construo da MMM.

    Por m, o documento internacional de contexto com Elementos para o debate e

    denio da 4 Ao Internacional da Marcha Mundial das Mulheres em 2015. Este documento

    atualiza a viso da Marcha sobre a conjuntura e a referncia para o debate poltico no Encontro

    Internacional e, em especial, para a denio da nossa prxima ao internacional.

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    Perspectivas feministas paraigualdade e autonomia das mulheres1

    Introduo

    Na trajetria do feminismo, h um intenso debate sobre as explicaes tericas para a

    opresso das mulheres. Esse debate passou por vrias compreenses dos conceitos de patriarcado,

    gnero e diviso sexual do trabalho, no sentido de denir qual deles explica melhor essa relao de

    opresso e seu carter. Este texto no retoma todo este debate, mas busca abordar a coextensivida-

    de da opresso das mulheres com o capitalismo.

    Utilizaremos o termo patriarcado para nos referir a essa dominao. Em nossa trajetriamilitante na Marcha Mundial das Mulheres, recuperar o termo patriarcado contribuiu para a

    armao de um posicionamento poltico anti-sistmico, frente a pasteurizao e perda de radica-

    lidade na trajetria e utilizao do conceito de gnero. A utilizao do termo patriarcado no nos

    coloca em conito com o conceito de diviso sexual do trabalho que, tal como Daniele Kergoat

    (1996), consideramos o que est em jogo na opresso das mulheres, nas relaes patriarcais.

    Capitalismo e patriarcado um s modelo?

    Entendemos que o capitalismo incorporou o patriarcado como estruturante das relaes

    sociais. Para isso, aprofundou a diviso sexual do trabalho, a partir da denio de uma esferapblica como da produo mercantil e a esfera privada como no-mercantil, da famlia e da

    maternidade. Reforou o pblico como o espao da produo, da igualdade, da poltica e que

    pertence aos homens; s mulheres cabe o espao privado da reproduo, da intimidade, do

    cuidado. Para isso, foi construda a idia de que h harmonia e complementariedade nas relaes

    entre homens e mulheres. Isso tem como objetivo esconder as relaes de conito e de poder dos

    homens sobre as mulheres na famlia e no conjunto da sociedade. Alm disso, aos homens foram

    designadas as atividades de maior valor agregado.

    Essa formulao permite abordar a relao entre produo e reproduo, explica a

    simultaneidade das mulheres nos trabalho produtivo e reprodutivo e sua explorao diferenciadano mundo produtivo e no trabalho assalariado. Dessa forma, os homens so considerados os

    provedores e as mulheres reprodutoras, do lar, chamadas comumente de inativas. Ao mesmo

    tempo em que isso conrma o no reconhecimento dessa enorme quantidade de trabalho

    domstico e de cuidados realizado pelas mulheres, esconde que o modelo homem-provedor na verdade

    um mito e que nenhuma sociedade pode prescindir do trabalho das mulheres no campo da produo.

    Nesse modelo houve uma reduo do conceito de trabalho limitado ao que ocorre na

    esfera mercantil (da produo), sem considerar como trabalho as atividades de reproduo e

    cuidado da vida humana portanto, estas so consideradas como uma externalidade do modelo

    econmico. Essa diviso esconde a dependncia masculina do trabalho invisvel e no

    1 Texto: Nalu Faria , atualizao do texto Feminismo e transformao social, publicado em 2012 pelaSOF no Caderno Perspectivas Feministas para a igualdade e autonomia das mulheres.

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    reconhecido das mulheres e parte das falsas dicotomias criadas pela ideologia patriarcal. Essas

    falsas dicotomias se constituem como uma caracterizao do masculino e do feminino: produo-

    -reproduo, cultura-natureza, objetivo-subjetivo, razo-emoo. So os valores e viso de mundo

    impostos pelo grupo dominante e, portanto, essas dicotomias no so neutras, mas hierrquicas(C. Carrasco, 2003).

    Uma grande parte do trabalho realizado pelas mulheres no reconhecido, seja no campo

    ou na cidade. Em uma famlia em que a mulher no assalariada, muito mais bens e servios so

    produzidos em casa. Quando se coloca que o lugar das mulheres em casa, no reconhecido seu

    direito autonomia econmica e sua insero no mercado de trabalho marcada pela desvaloriza-

    o e segregao em guetos denidos pela diviso sexual do trabalho. O fato que a desigualdade

    das mulheres estrutura o conjunto das relaes e prticas sociais e h uma coextensividade entre

    classe, raa e gnero, na medida em que estas relaes se reproduzem e co-produzem mutuamente.

    A presena das mulheres no trabalho assalariado ou no campo no alterou em nada a

    responsabilidade quase exclusiva pelo trabalho domstico e de cuidados. Para as mulheres a reali-

    zao deste trabalho se coloca como parte de sua identidade primria, uma vez que a maternidade

    considerada seu lugar principal. Essa identidade introjetada de forma profunda pelas mulheres

    e sua vivncia est marcada pela avaliao das funes maternas e valores associados: a docilidade,

    compreenso e a sabedoria nos cuidados. Na verdade esse discurso da boa me uma construo

    ideolgica para que as mulheres continuem fazendo o trabalho domstico.

    No campo, essa diviso sexual do trabalho tambm se estrutura entre o que realizado

    no mbito da casa e no roado (Miriam Nobre, 1996). Dessa forma, historicamente muitas dasatividades produtivas realizadas pelas mulheres so consideradas uma extenso do trabalho

    domstico. Esto includas a a criao de pequenos animais, o cultivo de hortas, entre outras

    atividades. importante ressaltar que essa modalidade da diviso sexual do trabalho no campo

    est vinculada introduo da noo capitalista de trabalho, que justamente reduz trabalho ao que

    pode ser trocado no mercado.

    Muitas feministas falam de um patriarcado moderno, que recebeu uma contribuio

    fundamental dos lsofos iluministas, ao construir um discurso misgino de legitimao da

    desigualdade das mulheres que se estendeu para os campos da medicina, da moral e da polti-

    ca. A desigualdade das mulheres naturalizada e a subordinao das mulheres aos homens colocada como parte de uma essncia feminina. Esse discurso atribui isso maternidade e o papel

    natural das mulheres na criao da prole.

    Para isso, h uma imposio de um modelo de feminilidade socialmente constru-

    do que dene como as mulheres devem se comportar e desenvolver sua personalidade e ha-

    bilidades para que estejam adequadas ao seu papel social de me e esposa. Ou seja, por

    detrs da naturalizao da opresso das mulheres houve a denio de um modelo de

    feminilidade considerado adequado ao ser mulher. Evidentemente, neste modelo h cortes de

    classe e raa/etnia, porm a docilidade, altrusmo, pacincia, exibilidade, disponibilidade

    permanente para esposos e lhos, so traos comuns. Simultaneamente, h uma exigncia de que

    a mulher seja bela, agradvel e, cada vez mais, magra e jovem.

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    Famlia e sexualidade

    Uma estratgia fundamental para a consagrao dessas relaes no capitalismo foi o estabe-

    lecimento de um novo papel da famlia nuclear burguesa que se estendeu para o mundo operriocomo o lugar de supremacia dos homens, ou seja, onde todos os homens so senhores, inclusive os

    da classe trabalhadora. Um dos elementos estruturadores desse modelo de famlia foi a imposio

    da heterossexualidade obrigatria, baseado na dupla moral em que para os homens incentivado

    mltiplas relaes sexuais diante de uma suposta sexualidade passiva das mulheres. Assim, foi

    imposto um modelo baseado na heteronormatividade, que normatiza e hierarquiza a sexualidade.

    uma sexualidade androcntrica (centrada na experincia masculina), que naturali-

    za as prticas sexuais como se fossem parte de uma essncia em que a sexualidade masculina

    baseada na virilidade e agressividade descontroladas, enquanto a vivncia das mulheres seria

    dcil e passiva. Esse discurso foi a base para a manuteno de uma moral que justica e incentivaa prostituio e a aceitao das relaes promscuas para os homens e do castigo para as mulheres.

    Isso comum na histria dos nossos pases: homens com mais de uma famlia ou com um grande

    nmero de lhos bastardos, como se costumava denir.

    Hoje podemos falar de novas modalidades e prticas sexuais, que convivem com uma alta

    desresponsabilizao masculina frente paternidade, mas, no que se refere sexualidade, segue

    a hegemonia de um padro em que as mulheres so classicadas como santas ou profanas. As

    mulheres negras esto associadas ao profano, sexual e brutalmente erotizado, conceitos reforados

    pela mdia e grandes corporaes que perpetuam ideias sexistas e racistas dos idos do perodo

    colonial.

    Uma decorrncia das relaes de poder dos homens sobre as mulheres a violncia sexista,

    que um mecanismo de controle em que as mulheres so coisicadas como objetos de posse.

    Dessa forma, quando no se incorpora a anlise do patriarcado a uma viso crtica do capitalismo

    e como parte de um sistema opressor, no se enxerga a forma particular como a opresso e subor-

    dinao das mulheres foi estabelecida nesse modelo.

    O feminismo teve uma ao contundente de denncia dos traos androcntricos desse

    modelo e buscou construir novos marcos analticos para enfocar e resolver os problemas de outra

    forma. No entanto essa ainda uma questo pendente e faz com que, facilmente, nos espaos onde

    se discutem alternativas, o patriarcado continue invisibilizado, principalmente no que se refere

    ao trabalho domstico e de cuidados. Alm disso, permanecem as prticas sexistas no interior

    da classe trabalhadora e nas organizaes polticas de esquerda. Essa permanncia do machismo

    e de prticas patriarcais no interior da esquerda contribui para que, no movimento de mulheres,

    continue existindo uma tenso entre luta feminista e de classes.

    O modelo patriarcal e capitalista racista e colonial

    Se o patriarcado, o colonialismo, racismo e as classes sociais so anteriores ao capitalismo,tambm indiscutvel que a consolidao do capitalismo redeniu essas relaes. um modelo

    que se organiza a partir da explorao da mais valia da fora de trabalho e incorpora de maneira

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    estruturante outras hierarquias e formas de opresso. Ou seja, para compreendermos as questes

    do patriarcado, do racismo necessitamos analisar como o capitalismo redeniu essas relaes pr-

    ticas sociais.

    Aqui nos interessa ver como o patriarcado que bastante universal se entrelaou como ou-

    tras relaes de opresso como o caso de raa, classe e colonialismo. Nesse sentido a experincia

    da Amrica Latina e Caribe, bastante elucidadora. H a falsa ideia de democracia racial, algo que

    garante privilgios de uma pequena parcela em detrimento da maioria absoluta da populao. O

    racismo estruturante na sociedade capitalista e patriarcal e, no processo de histrico de constru-

    o da nao brasileira, o povo negro sempre esteve s margens da sociedade, colocado no centro

    de teorias higienistas que ainda prevalecem.

    O capitalismo que se tornou hegemnico em nossa sociedade. Aqui em nosso continente,

    se formou a partir do colonialismo que se utilizou de forma intensa as relaes patriarcais e oescravismo que deu as bases para o racismo. Isso signicou enquanto modelo capitalista redenir

    as representaes binrias sobre as mulheres e a feminilidade bastante marcadas pelos valores oci-

    dentais cristos e as guras de Eva e Maria como os dois plos. Evidentemente entre dois plos h

    um leque de diversidade e matizes, principalmente no cruzamento com outras formas de opresso

    como de classe, do racismo e da sexualidade.

    As representaes so parte de um discurso que busca legitimar uma opresso e no

    necessariamente reete a realidade das mulheres e muito menos de todas e que se transformam em

    mitos. Por exemplo, a ideia da fragilidade feminina e da proteo masculina. A que experincias

    reais se est referindo? Na verdade o capitalismo estabeleceu que a existncia de um modelo defeminilidade adequado que dene o ideal de mulheres. Isso vinculado a um modelo de famlia e

    sexualidade, funcionais a organizao da diviso sexual do trabalho no marco da diviso entre

    produo e reproduo, estruturada pelo trabalho domstico e de cuidados na famlia, e pela se-

    parao e hierarquizao de trabalho de homens e trabalho de mulheres. Mas essa denio de

    um modelo adequado de feminilidade continua dizendo respeito a um plo, onde tudo que est

    fora considerado anormal e estigmatizado. Assim em relao a feminilidade, a sexualidade e a

    famlia.

    O modelo no abarca e nem para abarcar, mas hierarquiza e normatiza. Voltando a pro-

    teo e fragilidade: de quem? quando? No inicio do capitalismo quando as mulheres pobres dacidade foram incorporadas massivamente na fbricas, as do campo continuavam nas lavouras?

    As mulheres burguesas no tinham direitos sobre seus bens, totalmente dependentes dos maridos

    como seu amo e senhor, ameaadas pela violncia e sem direito legal a nada . As mulheres negras

    j trabalhavam de ganho para sustentar suas famlias e ainda hoje so maioria nas atividades

    informais e sem garantias sociais.

    E s podemos compreender o que realmente ocorreu com essas mudanas no capitalismo,

    em nvel mundial, se incorporamos a dimenso de raa e do colonialismo. Isso estruturante nas

    representaes do ser mulher, como adequadas ou desviadas em nossa histria e para refor-

    ar as hierarquias e divises entre as mulheres. A medida em que se avana no reconhecimento

    de alguns direitos para as mulheres nos marcos desse modelo hegemnico essas hierarquias se

    aprofundaram.

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    O resultado que em nossa sociedade o racismo estruturante do conjunto das relaes e

    organiza lugar social das mulheres negras, sendo estas as que esto em maior nmero cumprindo

    tarefas do cuidado e expostas precarizao de suas condies de vida e trabalho. O patriarcado

    racista e escravagista organiza uma hierarquia e desigualdade tambm entre os homens brancos enegros, mas isso no signica que a vivencia do racismo torna os homens negros igualitrios com

    as mulheres negras. As relaes patriarcais vividas pelas mulheres negras no so apenas exercidas

    pelos homens brancos e da classe dominante, mas sua opresso as coloca na base da pirmide so-

    cial e a materialidade da explorao recai sobre seus corpos e vidas.

    Os paradoxos da globalizao neoliberal

    inegvel que, a partir das lutas feministas, houve uma ampliao da identidade

    feminina para alm da maternidade. Alm disso, so parte das transformaes das ltimas dca-

    das a incorporao das mulheres de forma mais diversicada no mercado de trabalho, a ampliao

    do divrcio e mudanas nos padres de sexualidade em vrios pases, o reconhecimento como

    direitos de questes antes consideradas do mundo privado, como a questo da violncia sexista e a

    legalizao do aborto em muitos pases. Mas os dados em relao situao das mulheres trazem

    elementos complexos, seja em relao pobreza e ao desemprego, ao trco e prostituio, res-

    ponsabilidade individual de manter suas famlias, assim como o aumento da contaminao pelo

    HIV, entre outros.

    Tal como ocorreu nas fbricas no m do sculo XIX, no neoliberalismo as mulheres foram

    incorporadas massivamente aos setores da produo e de servios com pior remunerao e que

    estiveram marcados pela terceirizao e pela precarizao. Por outro lado, um pequeno contingen-

    te de mulheres com alta escolarizao foi incorporado em funes super-especializadas e executi-

    vas. Assim, essas mulheres passaram a ter, diretamente, interesses opostos aos daquelas que esto

    nos trabalhos precrios, mal remunerados e em tempo parcial.

    Entre os retrocessos trazidos pelo neoliberalismo, est a expanso da mercantilizao do

    corpo e da vida das mulheres, que tambm marcada pela dimenso de classe e raa. No mundo

    inteiro, foi sobre os ombros das mulheres que recaiu uma enorme sobrecarga de trabalho, com a

    diminuio das polticas sociais. Faz parte desse processo o que muitas estudiosas chamam de glo-

    balizao dos servios de cuidados, que se refere ao grande contingente de mulheres que migramdos pases do Sul para o Norte para trabalhar como empregadas domsticas e cuidadoras em geral.

    Outro lado da mercantilizao a imposio de um padro de beleza como norma a ser

    cumprida obrigatoriamente e que, supostamente, pode ser comprada no mercado. So vendidos

    centenas de produtos e tecnologias que prometem a eterna juventude e o corpo perfeito, ou seja,

    magro. Essa perspectiva de beleza est vinculada ao que pode ser consumido. Ao lado da indstria

    de cosmticos e da beleza, outro setor que aufere grandes lucros com o mal estar das mulheres a

    indstria de medicamentos. Esta tambm vende iluses de bem-estar e felicidade enquanto invade

    o corpo das mulheres e nega sua autonomia.

    Essa exigncia, assim como vrias outras mudanas sob o neoliberalismo, se ancorou na

    modernizao tecnolgica e na profunda mercantilizao dos processos da vida. O discurso que

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    as mulheres podem comprar esse padro de feminilidade usando toda uma parafernlia, que vai

    de cosmticos e ginstica a tratamentos estticos, botox, cirurgias plsticas. Tudo isso, recente-

    mente, prometido com mais ecincia com a utilizao da nanotecnologia.

    Com essa intensicao da mercantilizao, houve um forte incremento do trco de mu-

    lheres e da prostituio, como parte da indstria do lazer e entretenimento. Nesse debate, mui-

    tas vezes a busca por liberdade e autonomia das mulheres utilizada como justicativa. Assim,

    retiram de cena a ma que movimenta bilhes de dlares custa da explorao forada das

    mulheres. Na atualidade, tem sido mais exposta a tenso que as mulheres vivem com a presena

    simultnea nas esferas da produo e reproduo. A migrao das mulheres dos pases do Sul para

    o Norte tem um componente de soluo para essa tenso, uma vez que boa parte das migrantes

    vai trabalhar na casa de executivas europeias ou norte-americanas, realizando parte do trabalho

    domstico e de cuidados.

    A outra ponta da estratgia do mercado tem a ver com a tentativa das empresas transna-

    cionais de controlar a terra, o territrio e a biodiversidade. Esta estratgia se encontra, mais uma

    vez, com as mulheres, que historicamente tm um papel ativo na agricultura, na seleo e preser-

    vao das sementes, no conhecimento das plantas medicinais, na defesa da biodiversidade. Mas

    inegvel que profundas transformaes ocorreram no s com as mulheres escolarizadas, mas

    tambm com as mulheres das camadas mais pobres. Essas mudanas esto vinculadas s suas

    prticas concretas, embora estejam marcadas por uma extrema complexidade. So exemplos a

    desresponsabilizao dos homens pela paternidade e o aumento das mulheres que arcam sozinhas

    com o sustento dos lhos, a gravidez na adolescncia, a violncia urbana e envolvimento dos lhos

    com o trco.

    O feminismo teve um papel fundamental para questionar as relaes de opresso e anunciar

    novas possibilidades para as mulheres. Ou seja, uma radicalizao da proposta de autonomia,

    liberdade, auto-determinao, emancipao humana. Ao longo do sculo XX as mulheres con-

    quistaram vrios direitos como fruto de sua luta organizada em vrias partes do mundo, embora

    isso tenha se dado de forma extremamente desigual.

    Por parte de setores dominantes, em nossa sociedade gestou-se um discurso de que o femi-

    nismo no tem mais sentido. Junto com isso surgiu tambm uma revalorizao da feminilidade

    com o argumento de que as mulheres j no precisavam mais ser feministas. No movimento femi-nista houve, nos anos 1990, um forte processo de institucionalizao em nossa regio e, em alguns

    pases e setores do feminismo, houve o reforo de uma posio ps-moderna que contribuiu para

    um questionamento da ideia de que necessrio um movimento articulado em torno da luta pela

    igualdade das mulheres. Isso se deu a partir de um debate em torno da diversidade e de mltiplas

    identidades, junto com um questionamento da viso poltica que se orienta para a construo de

    sujeitos coletivos.

    Na Amrica Latina e Caribe, foi no bojo da resistncia contra o neoliberalismo que retoma-

    mos um discurso de crtica global ao capitalismo e ao patriarcado e tambm forma como estes se

    reforam e se retroalimentam. Nesse processo, discutimos o signicado da economia capitalista e

    da relao de dominao imperialista que suas transnacionais estabelecem conosco. Mas debate-

    mos tambm a mercantilizao do corpo das mulheres, o incremento do turismo sexual e o lugar

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    de nossos pases em uma diviso sexual e internacional do trabalho que tem reservado a muitas

    de nossas mulheres o trabalho nas maquillas e na prostituio controlada por mas e conglome-

    rados de empresas de turismo.

    Questionamos os motivos que fazem com que, ao lado de uma aparente permissividade

    no campo da sexualidade, com o incremento do mercado da prostituio e da pornograa, esteja

    o aumento do conservadorismo e o ataque ao direito das mulheres de controlarem seus corpos.

    Falamos sobre as novas formas de controle sobre o corpo das mulheres com a imposio de pa-

    dres de beleza estritos. Em nossa regio, isto tem signicado uma verdadeira febre das cirurgias

    plsticas, do silicone e do incremento no uso de hormnios sintticos. Estes hormnios so pro-

    duzidos pelas mesmas indstrias da vida que produzem agrotxicos e sementes transgnicas.

    Esse debate se deu ancorado em uma forte organizao das mulheres do campo e da cidade

    que constituiu a recomposio de um campo de esquerda no movimento e atualizou uma aoanticapitalista e antipatriarcal em nossa regio.

    A luta feminista e seus desafios

    Em todas as experincias de lutas e resistncia dos povos oprimidos, encontramos a presen-

    a das mulheres, embora, na maior parte da histria, as representaes predominantes apresentem

    as mulheres dentro de casa e sem nenhuma participao pblica. No caso da Amrica Latina, aqui

    e acol, aparece a gura de mulheres excepcionais. E quase sempre o relato que participaram

    das lutas a partir da relao com um marido ou amante. Na verdade, com frequencia se oculta ofato de que, desde as lutas abolicionistas e anti-coloniais, as mulheres indgenas e negras lutaram

    ombro a ombro com os homens.

    A organizao de um movimento de mulheres e do feminismo como corrente terica e pr-

    tica marcou uma mudana nesse processo. Alm de armar as mulheres como sujeitos polticos

    permitiu recuperar partes da histria sistematicamente ocultadas para inivisibilizar a presena e

    contribuio das mulheres. Tambm foi fundamental para mostrar que o debate sobre a igualdade

    entre os sexos muito mais antigo que se imaginava. Como arma Alicia Puleo (2004), o estudo

    do discurso losco nos mostra que muitas vezes ou quase sempre -, quando h um discur-

    so profundamente misgino porque paralelamente existe um discurso feminista, nessa mesmapoca.

    A situao atual mostra que as vitrias no sero consolidadas enquanto no se mudar

    estruturalmente o modelo. As atuais resistncias organizadas pelas mulheres e o dinamismo de

    um setor do movimento de mulheres cada vez mais conectam essas vrias dimenses. Ou seja, a

    luta das mulheres no apenas uma agenda especca a ser agregada a uma agenda macro. uma

    luta de transformao integral da sociedade e se entende por isso que no se mudar a vida das

    mulheres enquanto a vida de todas no for transformada. A utopia que dene nosso projeto a su-

    perao da sociedade capitalista e machista e a construo de uma sociedade socialista que rompa

    com todas as formas de explorao, opresso e discriminao em todos nossos povos.

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    Do ponto de vista dos desaos atuais, continua a necessidade de uma politizao que arma

    que o centro do movimento de mulheres a luta contra a opresso feminina e armao do femi-

    nismo socialista como a possibilidade de transformar a vida das mulheres. Isso passa por enfrentar

    a banalizao paulatina do conceito de gnero e a reduo desta agenda ao tema dos direitos dasmulheres como direitos humanos. Ou seja, necessrio atuar para a transformao do conjunto

    das atuais relaes sociais, incluindo as relaes sociais de sexo. Portanto, so necessrias mudan-

    as no modelo como um todo.

    A tarefa que se coloca a construo de uma viso crtica em toda a sociedade sobre a

    opresso das mulheres. Hoje esta parece uma tarefa difcil, pois predomina a idia de que no h

    mais opresso. Existe um discurso modernizante de que a vida das mulheres mudou muito e que,

    em parte, foram assimilados aspectos do discurso feminista. H um discurso de positivao do

    feminino, que estrutura o retrocesso no padro de feminilidade, o qual dene que tudo o que as

    mulheres so no mundo tem a ver com a maternidade. O que ocorre que h um reforo contnuoda ideologia de que todas as mulheres devem ser mes e que essa experincia que dene seu lugar

    no mundo, inclusive como prossional ou poltica. Na verdade, este discurso arma que as mu-

    lheres se inserem no mundo a partir das qualidades, virtudes e capacidades denidas como parte

    de sua natureza porque so mes.

    recorrente a diculdade de perceber que h uma base material da desigualdade expressa

    na diviso sexual do trabalho. Dessa forma, h uma tendncia de trat-la apenas como um proble-

    ma de uma cultura patriarcal arraigada ou como uma questo ideolgica. Um ponto fundamental

    de nossa compreenso de que no haver igualdade se pensarmos mudanas apenas na chamada

    esfera pblica e do trabalho produtivo. Ou seja, se as mulheres continuarem arcando sozinhas como trabalho domstico, de cuidados e com os afetos, se a casa continuar sendo considerada natural-

    mente o espao de supremacia masculina.

    Essa questo, por sua vez, est vinculada ruptura com uma diviso sexual do trabalho e

    do poder nos espaos pblicos. No basta apenas o avano da participao das mulheres nesses

    espaos como se a cada vez que ocupamos um espao masculino tenhamos avanado. Isto porque,

    a cada avano das mulheres, vivenciamos uma forte reao machista e conservadora.

    Portanto, esto colocados desaos tericos, polticos e organizativos, que exigem posicionar

    o debate a partir da compreenso de que h uma opresso das mulheres. Neste sentido, conti-nuamos fortalecendo a armao poltica de um projeto feminista e socialista que questiona as

    bases da sociedade capitalista e patriarcal. Isso exige um movimento enraizado, com capacidade

    de grandes mobilizaes, campanhas prprias e que tambm seja parte da construo de uma luta

    articulada na Amrica Latina.

    Um avano no feminismo a separao cada vez menor entre o que reivindicao das

    mulheres e as chamadas lutas gerais, dando lugar compreenso de que, para mudar a vida das

    mulheres temos que mudar o mundo e, portanto, todas as lutas por mudanas so das mulheres.

    Mas o principal ganho que, nesse processo, se arma cada vez mais o direito de autonomia e

    soberania para as mulheres, e que a igualdade tem que ser parte constitutiva de todos os processos

    de transformao.

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    Um feminismo militante e anticapitalista

    Nossa atuao tem buscado ampliar temas e contribuies feministas na perspectiva de

    construo de novas relaes sociais e de um modelo de desenvolvimento em que se supere adiviso sexual do trabalho e se estabelea um novo modelo de produo e consumo, em um novo

    paradigma de sustentabilidade da vida humana.

    A partir de um trabalho de formao, elaborao e articulao poltica, temos buscado

    contribuir para o fortalecimento da autonomia das mulheres e de sua presena como um sujeito

    poltico organizado em um processo mais amplo de lutas e resistncias, orientadas para a constru-

    o de uma nova dinmica de relaes sociais e pela projeo de um novo modelo de sociedade.

    Marcha Mundial das Mulheresum movimento incontornvel

    A Marcha Mundial das Mulheres representa um marco na recomposio do campo antica-

    pitalista do feminismo, como parte da superao dos retrocessos do movimento, em particular nos

    anos 1990. Nesse perodo, prevaleceu a hegemonia de uma profunda institucionalizao e uma

    agenda centrada nos aspectos normativos. Assim, frente globalizao neoliberal, no houve uma

    viso crtica global que integrasse as dimenses econmica, poltica e social.

    A origem da MMM est vinculada necessidade de construir um amplo processo de luta

    a partir dos setores populares em resposta ofensiva capitalista a partir da globalizao neolibe-ral e do reforo do machismo. parte de uma alternativa globalizao e institucionalizao do

    movimento feminista vinculado agenda das Naes Unidas e criou a proposta de construo de

    uma transnacionalizao das lutas ancorada no trabalho de base em conexo com aes nacionais

    e internacionais.

    Do ponto de vista da anlise poltica, a MMM iniciou questionando globalmente o modelo

    vigente, retomou a relao com o debate de classe e consolidou, mais que uma crtica globaliza-

    o neoliberal, uma crtica anticapitalista, ao mesmo tempo em que faz a anlise da imbricao

    entre capitalismo e patriarcado.

    Outro elemento fundamental foi ter recolocado o conceito de patriarcado em um contexto

    em que o movimento estava sob a hegemonia da banalizao do conceito de gnero, em meio a um

    processo de institucionalizao e de perda de radicalidade. Isso contribuiu para colocar nfase na

    dimenso da opresso das mulheres. No houve uma retomada do antigo debate entre marxismo e

    feminismo capitalismo e patriarcado como um ou dois sistemas, mas se enfatizou a inter-relao

    entre eles. Ambos esto construdos com base na desigualdade e se reforam mutuamente. H o

    reconhecimento de que o capitalismo incorporou a dominao patriarcal como estruturante de

    seu modelo econmico e de suas prticas, a partir da transversalidade da desigualdade de gnero

    com base na diviso sexual do trabalho, no controle sobre o corpo das mulheres, na imposio da

    famlia patriarcal e da heteronormatividade da sexualidade como modelos.

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    Baseada nessa viso, a MMM coloca como central a necessidade de mudanas globais no

    modelo que se expressa no lema: mudar o mundo para mudar a vida das mulheres para mudar o

    mundo, na compreenso de que a igualdade ou ser para todas as mulheres ou no ser. Ou seja,

    a viso de que nos marcos do capitalismo at pode haver avanos em alguns direitos e alterar aposio de algumas poucas mulheres, mas no para todas. exemplar a anlise de Danile Ker-

    goat sobre a dualidade entre as mulheres sob o neoliberalismo. Ela analisa que, pela primeira vez

    na histria, algumas mulheres tm acesso ao capital por si mesmas e no por sua relao familiar,

    tendo como consequncia possveis conitos de interesses entre mulheres como gnero.

    Na Marcha, o reconhecimento da diversidade e diferenas entre ns busca evitar que as

    lutas das mulheres e a desigualdade de gnero sejam tratadas apenas como uma questo de identi-

    dade. Reconhecemos a diversidade das mulheres e buscamos construir aes comuns que possam

    combater globalmente a ordem atual de dominao e opresso, em um claro projeto poltico de

    mudana. Aprendemos, a partir da experincia cotidiana, a envolver um grande nmero de mu-lheres que chegam com suas histrias de vida e militncia, demos conta de promover uma intera-

    o e aprendizagem mtua e, a partir disso, construir novas snteses e novos pontos de partida na

    busca de uma utopia conjunta, no que queremos vir a ser.

    Nossa ao se baseia na crena na capacidade das mulheres como sujeitos polticos. a par-

    tir de um forte movimento de base popular do campo e da cidade que poderemos construir uma

    prtica feminista que contamine e impulsione alianas com outros setores envolvidos na luta por

    mudanas. a partir de aes coletivas que ns mulheres teremos vigor para revolucionar a socie-

    dade e construir novas relaes sociais e a superao de todos os mecanismos de manuteno da

    opresso. Para a MMM, a construo de uma fora prpria das mulheres fundamental inclusivepara a articulao das alianas necessrias com outros movimentos e organizaes.

    A utopia do feminismo anticapitalista aponta para um questionamento global do modelo

    atual e para a construo de novas relaes e novas subjetividades. Nossos acmulos na prtica

    cotidiana das mulheres apontam vrios elementos desse novo vir-a-ser: reconhecimento e valo-

    rizao das relaes afetivas, o bem-estar, o cuidado, a transcendncia. Isso fruto de uma pr-

    tica concreta que busca superar as dicotomias binrias, como a oposio entre razo e emoo,

    objetivo-subjetivo, pblico-privado. Um aporte fundamental do feminismo a exigncia de uma

    prtica fundada na coerncia entre vida privada e pblica. No se pode aceitar de maneira acrtica

    a existncia de contradies entre o que defendemos na esfera pblica e nossa vida pessoal, nossocotidiano.

    Nesse sentido, faz parte da estratgia da Marcha aes com muita criatividade que partem

    da experincia concreta e do conhecimento das mulheres. fundamental a utilizao de outras

    formas de expresso, para alm da linguagem verbal. A combinao das prticas de educao

    popular e as dos grupos de reexo feminista so a base para o trabalho da MMM, que parte

    da constribuio do feminismo construo de prticas emancipatrias, conscientizao da

    opresso e de como esta se concretiza no corpo, na identidade, na autopercepo. Assim como

    atuamos para o reconhecimento do valor de cada uma, inclusive como base para o amor prprio

    e a autonomia pessoal.

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    Entre os elementos de acmulo em relao construo de paradigmas emancipatrios

    podemos destacar que nos ltimos 10 anos avanamos em relao ao desao de reconstruo do

    pensamento crtico e de prticas centradas na construo de alternativas. Na MMM foi estratgico

    construir aes e um discurso crtico mercantilizao e profunda extenso da sociedade demercado na globalizao. Isso contribuiu para armar uma viso crtica e desconstruir ambigi-

    dades anteriores no que se refere a uma aparente democratizao e avano na normalizao direi-

    tos. Em vrios setores do movimento de Mulheres, foi tratado como um paradoxo que, enquanto

    se avanava na formalizao de direitos, tenha havido retrocesso nas condies econmicas e ou-

    tras conquistas anteriores, como polticas sociais.

    Nossa interveno trouxe a reexo sobre como o mercado havia organizado a vida das

    mulheres. Essa crtica mercantilizao dos corpos e da vida das mulheres possibilitou a reexo

    sobre as conexes entre globalizao, empresas transnacionais e o controle sobre o trabalho, os

    corpos e os territrios. Por exemplo, pudemos ver que as mesmas transnacionais que atuam nastecnologias baseadas no controle do corpo e da reproduo tambm atuam na produo de se-

    mentes transgnicas. Da mesma forma, h a conexo entre incremento da militarizao e controle

    dos territrios e bens naturais e a violncia contra as mulheres e sua utilizao como despojos de

    guerra.

    Nessa trajetria, a solidariedade como valor e como prtica central. Os mecanismos de

    opresso seguem vigentes em todas as sociedades, mesmo que haja diferenas culturais, econmi-

    cas e sociais, e alguns direitos conquistados, em alguns pases mais que em outros. Mas os meca-

    nismos de desigualdade e hierarquizao continuam sendo a base constitutiva da sociedade. Por

    isso, no s a globalizao de nossas lutas, mas tambm a construo de uma fora mundial, comaes enraizadas em cada local, podero ser capazes de garantir um processo emancipatrio irre-

    versvel. Isso se traduz em cada grupo da Marcha, que se tornam mais fortes ao saber que mulheres

    esto na mesma luta em muitos pases.

    Na Marcha, temos dois princpios em relao a nossa organizao: nossa auto-organizao

    em um movimento autnomo de mulheres que fazem parte de coletivos de mulheres e movimen-

    tos mistos; e a construo de alianas com outros movimentos sociais. Queremos construir um

    projeto comum em que ns aprendamos com outras lutas e ampliemos nossa agenda, mas que

    tambm imprima a marca feminista para que a luta antipatriarcal seja de todas e todos.

    Referncias bibliogrficas

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    O mundo no uma mercadoria!

    As mulheres tambm no!Este texto foi publicado no material da Marcha Mundial das Mulheres na Cpula dos Povos

    por justia social e ambiental: contra a mercantilizao da vida, em defesa dos bens comuns, rea-

    lizada no Rio de Janeiro, em junho de 2012.

    A Cpula dos Povos acontece de forma simultnea Conferencia das Naes Unidas sobre

    Desenvolvimento Sustentvel, chamada de Rio+20 por acontecer 20 anos aps a Eco 92. O que

    est em disputa a sada para a crise ambiental, que tambm a crise do capital. Na conferencia

    ocial, est em pauta a chamada economia verde e uma nova institucionalidade para organizar as

    aes da ONU sobre meio ambiente. Neste processo, h uma captura corporativa, ou seja: as em-

    presas transnacionais e instituies nanceiras atuam para ter peso, como setor privado, em todas

    as propostas da economia verde.

    A Cpula dos Povos denuncia as falsas solues e a mercantilizao da vida, apre-senta as

    solues e novos paradigmas construdos pelos povos e articula agendas de luta anticapitalistas

    que vo alm deste evento.

    Mudar o mundo e mudar a vida das mulheres

    em um s movimento!A sociedade capitalista e patriarcal se estrutura em uma diviso sexual do trabalho que se-

    para o trabalho dos homens e o das mulheres e dene que o trabalho dos homens vale mais que o

    das mulheres. O trabalho dos homens associado ao produtivo (o que se vende no mercado) e o

    trabalho das mulheres ao reprodutivo (a produo dos seres humanos e suas relaes).

    As representaes do que masculino e feminino so duais e hierrquicas, assim como

    a associao entre homens e cultura, e mulheres e natureza. Na Marcha Mundial das Mulheres

    lutamos para superar a diviso sexual do trabalho e, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento de

    que o trabalho reprodutivo est na base da sustentabilidade da vida humana e das relaes entreas pessoas na famlia e na sociedade.

    Pro feminismo, o capitalismo no tem eco!

    Na Eco-92, no mundo inteiro aumentava a conscincia sobre a importncia de preservar e

    proteger a natureza. Mas os governos daquele momento, hegemonizados pelo pensamento neo-

    liberal, utilizaram a questo da sustentabilidade para legitimar a continuidade de uma economia

    baseada no livre mercado e no poder das grandes transnacionais, inclusive aumentando seu poder

    sobre os Estados nacionais.

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    Hoje, 20 anos depois, frente a crise econmica que afetou mais os pases industrializados,

    h uma nova investida do capital, ampliando suas fronteiras e aprofundando a lgica do mercado

    de lucro e concentrao da riqueza. As dimenses alimentar, energtica e climtica so expresses

    da mesma crise sistmica que se manifesta na economia.

    Mas esta crise tambm uma crise dos cuidados, dimenso invisvel nos debates pblicos

    sobre o tema. Nos pases que foram alvos das polticas de ajuste estrutural e do neoliberalismo

    nos anos 1980 e 1990, a sobrecarga de trabalho no remunerado das mulheres garantiu a sus-

    tentabilidade da vida sem que o Estado nem os homens assumissem sua responsabilidade com a

    reproduo social. Cada vez mais, nos pases industrializados, o envelhecimento da populao e o

    desmantelamento dos Estados de Bem Estar gera uma grande demanda pelo trabalho de cuidados

    que suprida em parte pelo trabalho precrio de mulheres imigrantes. Ns, mulheres, no paga-

    remos por essa crise!

    No mercantilizao da vida e da natureza!

    As desigualdades histricas entre os pases do norte e do sul esto em jogo neste processo.

    As grandes orestas esto no sul do planeta, bem como outros bens comuns e grande parte da

    biodiversidade. O capital nacional e transnacional tenta se apropriar delas de todas as maneiras,

    expulsando populaes originrias inclusive.

    Resistimos hoje ocupao das terras aonde vivemos e produzimos ou que esto na mira

    de grandes empresas mineiras, grandes construtoras ou do agronegcio por meio da expanso dos

    monocultivos de soja, eucalipto ou cana. Nos expulsam pela violncia direta dos pistoleiros ou da

    polcia, muitas vezes com violncia sexual, ou pela impossibilidade de viver a pela contaminao

    do solo, da gua ou por nos negar o acesso a sade ou educao. Em todo mundo ocorre esta apro-

    priao dos territrios ao mesmo tempo em que as grandes empresas tentam se apropriar de nossa

    vida, de nosso cdigo gentico, nossas culturas e nosso conhecimento.

    A biodiversidade se torna propriedade de grandes empresas a partir das biopirataria, da

    propriedade intelectual e das patentes. A gua mercantilizada na venda em garrafas, na priva-

    tizao dos servios de distribuio e saneamento ou no uso intensivo por algumas indstrias e

    cultivos. Os grandes lucros da especulao imobiliria passam por cima do direito habitao e

    se torna pior em megaeventos como as Olimpadas e a Copa do Mundo. E o corpo das mulheres

    cada vez mais mercadoria na indstria do lazer e da prostituio, que cresce junto com a expanso

    deste modelo de desenvolvimento.

    As respostas da economia verde: falsas solues

    A Rio +20 outra vez vem colocar para os povos o debate sobre a relao com a natureza,

    com o discurso de buscar solues para a crise climtica. E para isso dizem , de novo, ter uma

    soluo mgica chamada economia verde. Em que consiste?

    1- A economia verde segue a lgica da mercantilizao, em uma viso capitalista de que

    para a economia s tem valor o que pode ser comprado e vendido no mercado e, por isso, tem

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    um preo. Ela baseada em mecanismos de mercado que giram em torno desta ideia de que as

    empresas tem um papel importante na gesto da preservao ambiental. Assim, colocar preo na

    natureza uma forma de colocar a natureza no circuito empresarial, que sob a ideia enganosa de

    responsabilidade social e ambiental, tem mais legitimidade para seguir destruindo o planeta e asrelaes humanas.

    Atravs de uma proposta chamada TEEB (A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversi-

    dade), apresentam frmulas para colocar preo na gua, na paisagem, na biodiversidade. Colocar

    preo na natureza permitir sua venda e privatizao, em um processo que tira o direito dos povos

    sobre os territrios.

    So propostas que permitem que quem sempre se desenvolveu poluindo possa continuar

    poluindo se pagar por algum tipo de preservao em outra parte do mundo. Essa a lgica do

    mercado de crditos de carbono e da nanceirizao da biodiversidade, que transformada emativos ambientais, negociados em bolsas de valores, como a Bolsa Verde do Rio.

    2- A economia verde mantm a explorao do trabalho das mulheres como um recurso

    inesgotvel, justamente porque no considera as atividades das mulheres no cuidado das pessoas

    e da natureza como trabalho. Associa este cuidado ao papel de mes, como se este fosse o destino

    de todas as mulheres. No documento ocial da ONU, existe uma armao de que as mulheres

    desempenham um papel fundamental para o desenvolvimento sustentvel. Mas isso tem como

    consequncia a utilizao do trabalho das mulheres na implementao das polticas da economia

    verde. Isso no um avano, e sim a refuncionalizao do papel das mulheres como cuidadoras.

    So falsas solues para o planeta, e falsas solues para o machismo, porque mantm as mulheresem uma relao de desigualdade e com a sobrecarga de trabalho com a sustentabilidade da vida.

    3- A economia verde no questiona a lgica do crescimento ilimitado, perseguido pelo atual

    modelo de desenvolvimento. Apresenta propostas de ecincia energtica e o desenvolvimento de

    novas tecnologias que permitiriam continuar a lgica capitalista de crescimento ilimitado. Energia

    nuclear, transgnicos, nanotecnologia e geoengenharia so apresentadas como solues tecnolgi-

    cas para os chamados limites da natureza. Mas o limite est colocado pelo modelo capitalista. As-

    sim, mais uma vez, o mercado apresenta falsas solues, como as novas tecnologias programadas

    e controladas pelas empresas, avanando o controle sobre o conhecimento e a vida.

    O mesmo acontece com os agrocombustveis e propostas de alternativas para a energia fs-

    sil, uma das grandes responsveis pelo aquecimento global. So apresentadas como energia limpa,

    por serem feitos a partir da produo agrcola. Mas preciso questionar que a produo de agro-

    combustveis compete com a produo de alimentos da agricultura camponesa. Alm disso, essas

    so alternativas que continuam baseadas num modelo de consumo insustentvel. Questionamos,

    portanto, quem controla e para qual modelo est direcionada esta energia alternativa produzida.

    Feministas contra o capitalismo verde!

    Nossa viso sobre a questo ecolgica considera que a destruio da natureza parte da

    forma como o capitalismo se organiza na busca incessante de lucros. Por isso, a soluo no passa

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    por uma boa gesto de recursos, mas sim pela construo de um outro modelo em que a relao

    humanidade e natureza tenha um sentido de unidade e continuidade. Formamos um todo e s

    em harmonia poderemos seguir mantendo as bases da vida para a humanidade e para a natureza.

    A luta para mudar o mundo e mudar a vida das mulheres se d como parte de um s movi-

    mento. No basta identicar que os impactos deste sistema so piores para as mulheres. Partimos

    de uma anlise de que o capitalismo faz uso de estruturas patriarcais no seu atual processo de

    acumulao. Por isso, no acreditamos em uma atuao que busca diminuir impactos negativos,

    mas sim organizamos uma luta para transformar as estruturas que organizam as relaes de desi-

    gualdade e poder, combinando a desigualdade de classe, raa e gnero.

    1- Resistir a mercantilizao da natureza e dos bens comuns: a economia verde no

    compensa!

    Resistimos utilizao da natureza como um recurso a servio do lucro de empresas, vistocomo inesgotvel ou como mercadorias mais caras medida que se esgotam, pela m utilizao.

    A experincia que as mulheres vivenciam de invisibilidade e desvalorizao de seu trabalho de

    cuidados das pessoas muito similar invisibilidade e desvalorizao da natureza. O tempo e a

    energia das mulheres em cuidar das pessoas, preparar a comida, os cuidados e a disponibilidade

    para a escuta no so visveis e so elsticos. As mulheres so as primeiras a se levantar e as ltimas

    a dormir na maioria das famlias.

    O tempo e a energia dos processos de regenerao da natureza so ocultados e tratados

    como impedimentos a serem superados para que a mquina do consumo funcione a todo vapor.

    As mulheres seguem sendo pressionadas para ajustar lgicas e tempos opostos o da vida e o dolucro- assumindo as tenses geradas. Seu trabalho instrumentalizado para amenizar ou ocultar

    as injustias promovidas por instituies multilaterais, governos e empresas.

    Dizemos No! s falsas solues propostas pelo mercado e seus agentes, como os crditos de

    carbono, os agrocombustveis, os mecanismos de REDD e a Geoengenharia. No aceitamos so-

    lues que s geram mais negcios e no mudam o modelo de produo, consumo e reproduo

    social.

    Somos mulheres e no mercadorias!

    A violncia em geral, e contra as mulheres, em particular, parte da estratgia deste modelo.

    Quanto mais a sociedade regida pelos interesses do mercado, mais as mulheres so transforma-

    das em mercadorias. Um exemplo disso a situao da Costa Rica, que usada como exemplo

    a ser seguido pelos negcios verdes. L, diversas orestas foram convertidas em reas de preser-

    vao e o deslocamento das comunidades empurrou as mulheres para a prostituio e o turismo

    sexual, que agrega valor ao turismo ecolgico.

    Da mesma forma, vemos no territrio brasileiro um grande aumento da prostituio nos

    territrios de minerao, da construo de usinas hidroeltricas ou nas obras da Copa do Mun-

    do. Em uma lgica desenvolvimentista que reduz o desenvolvimento ao crescimento ilimitado,o corpo das mulheres amortece os impactos da superexplorao do trabalho e da destruio do

    territrio.

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    Por soberania sobre nossos corpos e sexualidade

    Repudiamos o controle do corpo e da sexualidade das mulheres que impede nossa auto-

    nomia e autodeterminao. Esse controle faz parte da combinao capitalismo, patriarcado e ra-cismo, que se estende para o controle dos territrios. A prostituio utilizada para compensar

    o desajuste do trabalho nmade dos homens que so transferidos em milhares para os canteiros

    de grandes obras e nos megaeventos. Somos solidrias s mulheres que so vtimas dessa forma

    de explorao da sociedade patriarcal, mas preciso perceber que a prostituio s existe em um

    sistema que se articula em torno da subordinao das mulheres. No produz nada relacionado

    liberdade e autonomia, ao contrrio, e na grande maioria dos casos, a mulher se encontra escravi-

    zada por uma rede mercantilizada.

    Se ancora em um modelo de sexualidade ancorado na virilidade masculina e na subordi-

    nao feminina, associada a fragilidade e disponibilidade permanente. Ao mesmo tempo, reforaa diviso sexual do trabalho e o impedimento das mulheres terem autonomia econmica. Por isso

    armamos o direito autonomia sobre nossos corpos, sexualidade e de separar sexualidade de

    maternidade. Por isso lutamos pela descriminalizao e legalizao do aborto. Rearmamos nossa

    viso de que a sexualidade construda socialmente e somos sujeitos ativos para recusar a hete-

    ronormatividade e defender o livre exerccio da sexualidade, sem coero, esteretipos e relaes

    de poder.

    Em luta por outro modelo de produo,

    reproduo e consumo!A partir da economia feminista, defendemos a necessidade de se estabelecer um novo para-

    digma de sustentabilidade da vida humana entendida como relao dinmica e harmnica entre

    humanidade e natureza e entre humanos e humanas e pela valorizao dos bens comuns. So

    necessrias mudanas reais no modo de produo e nos padres de consumo do capitalismo, que

    ressigniquem e ampliem o conceito de trabalho. Isso passa pelo reconhecimento do trabalho das

    mulheres e da importncia de um equilbrio entre produo e reproduo, que esta no continue

    sendo tarefa apenas das mulheres, mas tambm dos homens e do Estado.

    As mulheres constroem em seu cotidiano alternativas concretas economia dominante,articulando transformaes na produo, na reproduo e no consumo. Um grande nmero das

    experincias de agroecologia e economia solidria levada a frente pelas mulheres. Com nosso

    trabalho e conhecimento histrico no campo armamos que a soberania alimentar estratgica

    para a transformao social, pois arma uma outra organizao da produo, distribuio e con-

    sumo de alimentos, articulada com um combate lgica capitalista do agronegcio.

    As alternativas construdas e propostas pelos povos devem integrar uma dimenso geradora

    de igualdade, contemplando a igualdade entre mulheres e homens, o direito das mulheres a uma

    vida sem violncia e a diviso do trabalho domstico e de cuidados entre homens e mulheres.

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    Ampliao e fortalecimento do pblico:a partir do Estado e da sociedade

    Lutamos por uma profunda democratizao do Estado que rompa com os privilgios da

    classe dominante e branca, e que despatriarcalize o poder. Mais do que prover servios e politicas

    sociais, preciso garantir o sentido pblico do Estado, aes de redistribuio da riqueza, socia-

    lizao do trabalho domstico e de cuidados, e polticas emancipatrias construdas com base na

    soberania e participao popular.

    Isso implica, tambm, um papel ativo no mbito internacional que promova a integrao

    dos povos e que as polticas entre os pases sejam baseadas nos princpios da solidariedade, da

    reciprocidade e da redistribuio.

    Nossa luta pela desmilitarizao articula essas dimenses e questiona o papel do poder eco-

    nmico em intervenes militares feitas pelos Estados que servem ao controle de territrios ricos

    em recursos naturais. Combatemos tambm a concentrao dos meios de comunicao nas mos

    de poucos grupos econmicos, e armamos a urgncia de uma ampla democratizao da comu-

    nicao, que passa por garantir a neutralidade e liberdade dos uxos de informao na infraestru-

    tura das comunicaes e da internet, portanto, pelo combate lgica capitalista da propriedade

    intelectual.

    Como mulheres, demandamos nosso reconhecimento como sujeitos ativos nos debates e

    decises sobre o conjunto das politicas e processos vinculados a construo de outro modelo. Aminerao, as grandes obras de infraestrutura, as formas de desenvolvimento do nosso continente

    no podem ser objeto de ao apenas dos homens no poder, dos governos e das empresas. Nossa

    luta feminista por outro modelo capaz de gerar igualdade e justia social, incentivar a solida-

    riedade entre as pessoas, que seja sustentvel e que no esteja calcado no trabalho gratuito das

    mulheres nem na excluso das mesmas nos processos decisrios

    Por isso entendemos que as alianas das mulheres com outros movimentos sociais so es-

    senciais para resistir mercantilizao dos territrios e a nanceirizao da natureza, para socia-

    lizar alternativas de resistncia e fortalecer a defesa dos bens comuns.

    No queremos mais a mercantilizao dos nossos corpos, das nossas vidas! Queremos a

    sustentabilidade da vida, a centralidade da produo do bem viver, acabar com a diviso sexual do

    trabalho, erradicar a desigualdade e superar o capitalismo!

    Seguiremos em marcha at que todas sejamos livres!

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    Carta Mundial das Mulheres

    para a HumanidadeContexto1A Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade faz parte das aes internacionais que

    a Marcha Mundial das Mulheres realiza em 2005. Aps ser debatida e modicada pelos grupos

    de mulheres que participam da Marcha e pelas coordenaes nacionais a Carta foi adotada no

    V Encontro Internacional da MMM que aconteceu em Kigali, Rwanda, em dezembro de 2004.

    Iniciamos este Encontro com um ato em memria das milhes de vtimas do genocdio que

    aconteceu naquele pas em dezembro de 1994. Denunciamos a omisso das Naes Unidas e seus

    pases membros e a interferncia direta de tracantes de armas e homens de negcio dos paseschamados de primeiro mundo. Denunciamos o racismo e a intolerncia fomentados pelos coloni-

    zadores, mas perpetrado por tantas pessoas, policiais e civis.

    Mas, celebramos a capacidade das mulheres dos pases e diferentes etnias envolvidas no

    conito de construrem um espao de dilogo, respeito e conana mtua que tem sido a base para

    agirem em conjunto. Tanto havia para separ-las, mas elas souberam construir pontes e refazer

    laos.

    A sombra do conito armado permanece na regio dos Grandes Lagos Africanos e a sen-

    timos pesar sobre nosso Encontro. Esta no foi a nica vez. Estvamos juntas em Montreal em2001 quando os Estados Unidos invadiu o Afeganisto. Estvamos juntas em Nova Dlhi em 2003

    quando os Estados Unidos invadiu o Iraque. Em todos estes momentos interrompemos nossos

    Encontros internacionais para ir s ruas e protestar contra a guerra imperialista.

    Esta tem sido nossa histria: a unidade na ao, no enfrentamento, na resistncia e a capaci-

    dade de nos manter em dilogo aproximando nossas anlises fruto de experincias to diversas. O

    capitalismo patriarcal fomenta a disputa e a concorrncia entre povos, naes e entre ns mulhe-

    res. Nosso desao superar fragmentaes, isolamentos para construir alianas igualitrias entre

    sujeitos com suas trajetrias de luta e projetos.

    Esta Carta representa um acordo construdo entre as coordenaes nacionais de 50 pases,

    dentre os quais 35 presentes em Rwanda. Coordenaes nacionais, regionais, continentais a forta-

    lecero com armaes e demandas que correspondem sua realidade e momento organizativo.

    Esta Carta ganha vida em sua viagem ao redor do mundo. Ela se realiza na ao. E a prpria

    ao muda nossa forma de ver o mundo e de como transform-lo.

    1 Este contexto foi redigido pela representante brasileira no Encontro Internacional da Marcha Mundialdas Mulheres.

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    Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade

    Prembulo

    Ns, as mulheres, h muito tempo marchamos para denunciar e exigir o m da opressoque vivemos por sermos mulheres e, para armar que a dominao, a explorao, o egosmo e

    a busca desenfreada do lucro, que produzem injustias, guerras, ocupaes e violncias devem

    acabar.

    Das nossas lutas feministas e das lutas de nossas antepassadas de todos os continentes, nas-

    ceram novos espaos de liberdade para ns, para nossas lhas e lhos para todas as crianas que,

    depois de ns, caminharo sobre a terra.

    Construmos um mundo no qual a diversidade uma virtude; tanto a individualidade como

    a coletividade so fontes de crescimento; onde as relaes uem sem barreiras; onde a palavra, ocanto e os sonhos orescem. Esse mundo considera a pessoa humana como uma das riquezas mais

    preciosas. Um mundo no qual reinam a igualdade, a liberdade, a solidariedade, a justia e a paz.

    Este mundo ns somos capazes de criar.

    Ns constitumos mais da metade da humanidade. Damos a vida, trabalhamos, amamos,

    criamos, militamos, nos divertimos. Garantimos atualmente a maior parte das tarefas essenciais

    para a vida e a continuidade da humanidade. No entanto, nossa posio na sociedade permanece

    subestimada. A Marcha Mundial das Mulheres, da qual fazemos parte, identica o patriarcado

    como sistema de opresso das mulheres e o capitalismo como sistema de explorao de uma imen-

    sa maioria de mulheres e homens por parte de uma minoria.

    Esses sistemas se reforam mutuamente. Eles se enrazam e se conjugam com o racismo, o

    sexismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia, o colonialismo, o imperialismo, o escravismo e o

    trabalho forado. Constituem a base dos fundamentalismos e integrismos que impedem s mu-

    lheres e aos homens serem livres. Geram pobreza, excluso, violam os direitos dos seres humanos,

    particularmente os das mulheres, e pem a humanidade e o planeta em perigo.

    Ns rejeitamos esse mundo!

    Propomos construir outro mundo, onde a explorao, a opresso, a intolerncia e as exclu-

    ses no existam mais; onde a integridade, a diversidade, os direitos e liberdades de todas e todos

    so respeitados.

    Esta Carta se baseia nos valores de igualdade, liberdade, solidariedade, justia e paz.

    Igualdade1. Todos os seres humanos e todos os povos so iguais, em todos os domnios e em todas as

    sociedades. Eles tm igual acesso s riquezas, terra, a um emprego digno, aos meios de produo,

    a uma moradia adequada, educao de qualidade, formao prossional, justia, a uma ali-

    mentao saudvel, nutritiva e suciente, a servios de sade fsica e mental, segurana durantea velhice, a um meio ambiente saudvel, propriedade, a funes de representao poltica e de

    tomada de decises, energia, gua potvel, ao ar puro, aos meios de transporte, s tcnicas,

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    informao, aos meios de comunicao, ao lazer, cultura, ao descanso, tecnologia e s inova-

    es cientcas.

    2. Nenhuma condio humana ou condio de vida justica a discriminao.

    3. Nenhum costume, tradio, religio, ideologia, nenhum sistema econmico ou polticojusticam que uma pessoa seja posta em situao de inferioridade, nem permitir atos que ponham

    em perigo sua dignidade e integridade fsica e psicolgica.

    4. As mulheres so cidads de pleno direito, antes de serem cnjuges, companheiras, espo-

    sas, mes, trabalhadoras.

    5. As tarefas no remuneradas, ditas femininas, que garantem a vida e a continuidade da

    sociedade (trabalhos domsticos, educao, cuidado das crianas e dos familiares) so atividades

    econmicas que criam riqueza e que devem ser valorizadas e partilhadas.

    6. Os intercmbios comerciais entre pases so eqitativos e no so prejudiciais ao desen-

    volvimento dos povos.

    7. Cada pessoa tem acesso a um trabalho remunerado justamente, efetuado em condiesseguras e salubres que a permitam viver dignamente.

    Liberdade1. Todo ser humano vive livre de todo tipo de violncia. Nenhum ser humano pertence a

    outro. Nenhuma pessoa pode ser objeto de escravido, ser forado ao casamento, ser submetida a

    trabalhos forados, ser objeto de trco e de explorao sexual.

    2. Cada pessoa goza de liberdades coletivas e individuais que garantem sua dignidade, em

    especial: liberdade de pensamento, de conscincia, de crena, de religio; de expresso, de opinio;

    de viver livremente e de maneira responsvel sua sexualidade, de escolher a pessoa com quem

    partilhar sua vida; de votar, de ser eleita, de participar na vida poltica; de se associar, se reunir, sesindicalizar, se manifestar; de escolher seu domiclio, sua nacionalidade, de escolher seu estado

    civil; de seguir os estudos de sua escolha, de escolher sua prosso e exerc-la; de se mudar, de

    dispor de sua pessoa e de seus bens; de escolher seu idioma de comunicao respeitando as lnguas

    prioritrias e decises coletivas quanto lngua de uso e de trabalho; de se informar, de aprender

    coisas novas, trocar idias e ter acesso s tecnologias de informao.

    3. As liberdades se exercem na tolerncia e no respeito opinio de cada pessoa, e dentro

    de parmetros democrticos e participativos. As liberdades acarretam responsabilidades e deveres

    para com a comunidade.

    4. As mulheres tomam livremente as decises no que se refere ao seu corpo, sua sexualidade

    e sua fecundidade. Elas decidem por si mesmas ter ou no lhos.5. A democracia se exerce se h liberdade e igualdade.

    Solidariedade1. A solidariedade internacional promovida entre as pessoas e os povos sem nenhum tipo

    de manipulao ou inuncia.

    2. Todos os seres humanos so interdependentes. Partilham o dever e a vontade de viver

    juntos, de construir uma sociedade generosa, justa e igualitria, baseada no exerccio dos direitos

    humanos, isenta de opresso, de excluses, de discriminaes, de intolerncia e de violncias.

    3. Os recursos naturais, os bens e os servios necessrios para a vida de todas e de todos so

    bens e servios pblicos de qualidade aos quais cada pessoa tem acesso de maneira igualitria e

    eqitativa.

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    4. Os recursos naturais so administrados pelos povos que vivem nos territrios onde eles

    se encontram, de respeitando o meio ambiente e atuando para sua preservao e sustentabilidade.

    5. A economia de uma sociedade est a servio daquelas e daqueles que a compem. Ela

    dirigida produo e intercmbio das riquezas socialmente teis, que so distribudas entretodas e todos, que garantem principalmente a satisfao das necessidades coletivas, eliminam a

    pobreza e asseguram um equilbrio entre o interesse geral e os interesses individuais. Ela garante a

    soberania alimentar. Ela se ope busca exclusiva do lucro e acumulao privada dos meios de

    produo, das riquezas, do capital, das terras, das tomadas de deciso nas mos de alguns grupos

    ou de algumas pessoas.

    6. A contribuio de cada uma e de cada um para a sociedade reconhecida e independente

    da funo que ocuparem todas as pessoas gozam de direitos sociais.

    7. As manipulaes genticas so controladas. No existe direito de propriedade sobre o ser

    vivo nem sobre o genoma humano. A clonagem humana proibida.

    Justia1. Todos os seres humanos, independente de seu pas de origem, de sua nacionalidade e de

    seu lugar de residncia, so considerados cidads e cidados com plenos direitos humanos (di-

    reitos sociais, econmicos, polticos, civis, culturais, sexuais, reprodutivos, ambientais) de forma

    realmente democrtica igualitria e eqitativa.

    2. A justia social se baseia em uma redistribuio eqitativa das riquezas, que elimina a

    pobreza, limita a riqueza e garante a satisfao das necessidades essenciais da vida, e que visa

    melhoria do bem-estar de todas e todos.

    3. A integridade fsica e moral de todas e todos garantida. A tortura, os tratamentos humi-

    lhantes e degradantes so proibidos. As agresses sexuais, o estupro, as mutilaes genitais femi-ninas, as violncias especcas contra as mulheres e o trco sexual e o trco de seres humanos

    so considerados crimes contra a pessoa e contra a humanidade.

    4. Um sistema judicirio acessvel, igualitrio, ecaz e independente instaurado.

    5: Cada pessoa goza da proteo social necessria para garantir seu acesso alimentao, ao

    cuidado, ateno sade, habitao adequada, educao, informao, e segurana durante

    a velhice. Ela tem acesso renda suciente para viver dignamente.

    6. Os servios de sade e sociais so pblicos, acessveis, de qualidade, gratuitos para todos

    os tratamentos, todas as pandemias, particularmente para HIV.

    Paz1. Todos os seres humanos vivem em um mundo de paz. A paz resulta em particular da:

    igualdade entre os sexos, da igualdade social, econmica, poltica, jurdica e cultural, do respeito

    aos direitos, da erradicao da pobreza que assegure a todas e todos uma vida digna, isenta de

    violncia, onde cada pessoa tem um trabalho e recursos sucientes para se alimentar, ter moradia,

    se vestir, se instruir, estar protegido na velhice, ter acesso aos cuidados necessrios.

    2. A tolerncia, o dilogo, o respeito da diversidade so garantias da paz.

    3. Todas as formas de dominao, de explorao e de excluso de parte de uma pessoa sobre

    outra, de um grupo sobre outro, de uma minoria sobre uma maioria, de uma maioria sobre uma

    minoria, de uma nao sobre outra so excludas.

    4. Todos os seres humanos tm o direito de viver em um mundo sem guerra e sem conito

    armado, sem ocupao estrangeira nem base militar. Ningum tem direito sobre a vida ou morte

    das pessoas ou dos povos.

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    5. Nenhum costume, tradio, ideologia, religio, sistema econmico nem poltico justi-

    cam violncias.

    6. Os conitos armados ou no entre os pases, comunidades ou povos so resolvidos pela

    negociao que permite encontrar solues paccas, justas e eqitativas em nvel nacional, regio-nal e internacional.

    Chamado

    Esta Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade2 faz um chamado a todas as mulhe-

    res e homens e a todos os grupos oprimidos do planeta a proclamarem individual e coletivamente

    seu poder para transformar o mundo e modicar radicalmente as relaes existentes e transfom-

    -las em relaes baseadas na igualdade, na paz, na liberdade, na solidariedade e na justia.

    Ela chama todos os movimentos sociais e a todas as foras sociais a agir para que os valores

    que defendemos nesta Carta sejam verdadeiramente postos em prtica, e para que as instncias

    de poder poltico tomem todas as medidas necessrias para sua aplicao. Ela faz um chamado

    ao para mudar o mundo. H urgncia!

    O que a Marcha Mundial das Mulheres

    A Marcha Mundial das Mulheres um movimento composto por grupos de mulheres de

    diferentes origens tnicas, culturas, religies, polticas, classes, idades e orientaes sexuais. Em

    vez de nos separar, essa diversidade nos une em uma solidariedade mais global.

    Em 2000 ns, como Marcha Mundial das Mulheres, redigimos uma plataforma poltica que

    contem 17 reivindicaes concretas com a nalidade de eliminar a pobreza no mundo, distribuir

    as riquezas, erradicar a violncia contra as mulheres e conquistar o respeito a sua integridade fsica

    e moral. Transmitimos essas reivindicaes aos responsveis do Fundo Monetrio Internacional,

    do Banco Mundial, s Naes Unidas. No recebemos nenhuma resposta concreta. Transmitimos

    tambm nossas reivindicaes aos dirigentes polticos de nossos pases.

    Desde ento continuamos, sem descanso, a defender nossas reivindicaes. Propomos al-

    ternativas para construir um outro mundo. Trabalhamos ativamente nos movimentos sociais do

    mundo e em nossas sociedades. Continuamos aprofundando a reexo sobre o lugar que as mu-

    lheres ocupam e que devem ocupar no mundo.

    Com esta Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, e as aes que estamos reali-

    zando rearmamos que um outro mundo possvel, um mundo cheio de esperana, de vida, um

    mundo no qual seja bom viver e ns declaramos nosso amor a este novo mundo, a sua diversidade

    e beleza.

    Adotada no 5 Encontro internacional da Marcha Mundial das Mulheres em Rwanda, 10 de

    dezembro de 2005.

    2 Nenhum elemento desta Carta pode ser interpretado ou utilizado para emitir opinies ou realizar ativi-dades contrrias ao esprito da mesma. Os valores aqui defendidos formam um conjunto e so iguais emimportncia, interdependentes e indivisveis; podendo apenas intercambiar o lugar que ocupam na Carta.

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    Plataforma brasileira da ao 2010Seguiremos em marcha at que todas sejamos livres!

    Esta Marcha de 2010 arma mais uma vez nossa luta, nossa resistncia e a convico de

    que com a nossa auto-organizao, somos sujeitos ativos pela transformao de nossas vidas e da

    sociedade: Queremos mudar o mundo para mudar a vida das mulheres para mudar o mundo.

    H 100 anos, mulheres socialistas propuseram um Dia Internacional da Mulher. Isso se

    deu em momento de forte organizao do movimento de mulheres, inclusive entre as operrias.

    Essa reivindicao expressava a certeza da necessidade de mudanas profundas na estruturao

    da sociedade, para garantir a igualdade para as mulheres. Isso s poderia ocorrer com a participa-

    o das mulheres, e a luta pelo direito ao voto era parte da plataforma do conjunto das mulheres

    organizadas.

    Nesses 100 anos lutamos para mudar nossas vidas, atuamos para recuperar a memria de

    luta das mulheres e para, cotidianamente, armar para toda a sociedade que nosso trabalho, nossa

    experincia, nossos conhecimentos contribuem para o bem estar de todas e todos.

    Em seus dez anos de existncia, a Marcha Mundial das Mulheres parte da histria do fe-

    minismo no mundo. Somos um movimento permanente e construmos momentos marcantes em

    nossas aes internacionais, que realizamos em 2000, 2005 e agora em 2010. Nessa terceira ao

    internacional, nossa chamada : Seguiremos em marcha at que todas sejamos livres.

    No Brasil, queremos expressar nossas denncias e nossas reivindicaes, armar nossas

    idias e celebrar nossos xitos. Marcharemos com mulheres de todos os estados, de 8 a 18 de mar-

    o, e queremos convencer a sociedade e os governos das mudanas necessrias para que tenhamos

    um mundo com liberdade, igualdade, justia, paz e solidariedade.

    Ao longo de nossa trajetria, acumulamos experincia e propostas concretas para essas mu-

    danas. Queremos muitas transformaes em nosso pas e sabemos que elas s sero reais se es-

    tiverem sustentadas por uma forte organizao popular. Acalentamos um sonho e uma esperana

    de que a Amrica Latina vive hoje processos avanados em muitos pases e esperamos que o Brasiltenha um papel efetivo nessa jornada.

    Contra a tirania do patriarcado e do livre mercado

    Somos mulheres e no mercadoria nossa palavra de ordem, que expressa a essncia de

    nossa luta contra o patriarcado, o capitalismo, o racismo e a homofobia.

    A tirania do mercado se ancora na explorao do tempo e trabalho das mulheres como

    recursos inesgotveis. Tenta nos transformar em objetos apropriados e controlados, como um

    produto que se adapta s exigncias do mercado. Esse o sentido da imposio de um padro debeleza inatingvel e da busca da eterna juventude como sinnimo de felicidade. A priso a esse ide-

    al inexistente nos impe a ansiedade do consumismo e molda nossa socializao como mulheres.

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    Marchamos para denunciar as relaes de opresso machistas e patriarcais sobre as

    mulheres, que so estruturantes do capitalismo que tambm racista, lesbofbico e depredador

    da natureza.

    Marchamos para que o direito autonomia, auto-determinao, igualdade e liberda-de sejam os princpios organizadores do mundo que queremos construir, baseado na solidarieda-

    de e no na competio e individualismo.

    Por nossa autonomia e direito auto-determinao

    A construo do que ser mulher ainda est marcada com a imposio da maternidade

    e, dessa forma, continua negando s mulheres o direito de decidir se querem ou no ser mes.

    Nossas vidas ainda esto marcadas pelo trabalho interminvel, pela imposio da maternidade e

    pela obrigao de agradar ao outro em um modelo de heterossexualidade obrigatria, que nega o

    lesbianismo. Lutamos pelo direito das mulheres autonomia e autodeterminao em relao ao

    trabalho, sexualidade, maternidade e participao poltica.

    Marchamos para construir um mundo onde nenhuma mulher seja tratada como objeto e

    mercadoria na indstria da pornograa, da prostituio, do trco, ou na publicidade e nos meios

    de comunicao. Rechaamos o uso do corpo das mulheres como um produto para a explorao

    sexual e prostituio.

    Marchamos pela descriminalizao e legalizao do aborto, pelo direito da mulher em

    decidir sobre os rumos de sua vida e sua sexualidade e lutamos contra a banalizao e a mercanti-

    lizao da sexualidade.

    Pela autonomia econmica das mulheres

    Marchamos pelo reconhecimento do trabalho das mulheres e questionamos a diviso se-

    xual do trabalho. Esses temas esto no centro do debate sobre autonomia econmica feminina.

    O desao necessrio construir novas relaes sociais e um novo modelo econmico. O modelo

    dominante s considera como econmicas as atividades realizadas na esfera mercantil, desco-

    nhecendo uma imensa quantidade de trabalho domstico, de cuidados, e para o auto-consumo,

    em sua maioria realizados por mulheres. Alm disso, desvaloriza o trabalho assalariado realizado

    pelas mulheres.

    No Brasil, as mulheres so as mais pobres, em particular as negras e rurais. Em 2007,

    enquanto o rendimento mdio dos homens brancos por hora trabalhada era de 8,05 reais, o das

    mulheres negras era de 3,92 (PNAD, 2007). Mesmo que as diferenas de rendimento mdio entre

    homens e mulheres no campo venham diminuindo, em 2006 as mulheres recebiam o equivalente

    a 68% do rendimento dos homens.

    Por isso marchamos para:

    Ter um salrio mnimo digno: os dados comprovam que a valorizao do salrio mnimo

    impacta positivamente a vida de milhes de mulheres. Pelo m das diversas formas de explorao da fora de trabalho das mulheres, que so

    submetidas a situaes degradantes e a vrias formas de assdio.

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    Pela reduo da jornada de trabalho sem reduo de salrios, visando ampliao

    depostos de trabalho.

    Pela adoo e execuo de medidas concretas pelos governos, para eliminar a diferena de

    rendimentos mdios entre homens e mulheres e entre mulheres brancas, negras e indgenas. Pela garantia de polticas anti-racistas como passo para a igualdade tambm para as mu-

    lheres negras e de todas as etnias discriminadas. Para isso, necessria a realizao de um conjun-

    to de polticas que levem em considerao a excluso de mulheres negras em relao previdn-

    cia, emprego e renda, creche e educao, sade e moradia.

    Por igualdade no acesso ao trabalho e seguridade social universal para homens e mulhe-

    res. urgente um modelo de previdncia que garanta condies dignas de vida e envelhecimento

    para todas as pessoas.

    Pela garantia de todos os direitos trabalhistas para as trabalhadoras domsticas: 40 horas

    de jornada semanal e a obrigatoriedade do FGTS.

    Por uma reorganizao do trabalho em que haja uma diviso igualitria das responsabi-lidades pelo cuidado com as crianas, idosos e doentes e, sobretudo das tarefas domsticas entre

    homens e mulheres.

    Que os governos criem condies para a socializao do trabalho domstico garantindo a

    melhoria do acesso aos servios pblicos e a criao de novos equipamentos sociais como lavan-

    derias e restaurantes pblicos.

    Exigimos a ampliao do acesso a creches pblicas, de qualidade, em perodo integral,

    para todas as crianas, para superar o dcit no acesso, que deixa 80% das crianas de 0 a 3 anos

    sem atendimento.

    Por um mundo sem violncia contra as mulheres

    A violncia como parte do cotidiano da maioria de mulheres uma realidade presente em

    todos os pases e precisa acabar. Queremos explicitar como e porque ocorre essa violncia. Sua

    raiz est no machismo que tenta nos reduzir a objetos e perpassa de diversas formas a sociedade

    capitalista. A maioria dos casos de violncia sexista vividos pelas mulheres cometida por homens

    de sua relao, como companheiros, padrastos ou chefes, no caso do assdio sexual. Outra forma

    de manifestao desta violncia o tratamento das mulheres como mercadorias, seja na indstria

    da prostituio e pornograa, ou na forma como somos representadas pela publicidade.

    A violncia sexista se combina com o racismo e a violncia urbana, fazendo das jovens

    negras as maiores vtimas do trco, alm do sofrimento das mes negras, que em vrias regies

    convivem com um verdadeiro genocdio dos jovens negros.

    As mulheres seguem cuidando de seus lhos ou companheiros na priso e se submetem

    revistas vexatrias a cada visita, sendo que as mulheres presas no recebem a mesma ateno de

    seus antigos companheiros.

    preciso dar visibilidade s lutas das mulheres contra a violncia sexista, a partir da sensibi-

    lizao da sociedade e da elaborao de demandas aos Estados, alm da realizao de campanhasde educao popular que apontem para a conscientizao feminista.

  • 7/30/2019 cadernomarchamulheres_versoweb

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    Que o Estado brasileiro trate de forma integral a questo da violncia, vinculando seu com-

    bate s mudanas estruturais e das relaes sociais. Tal poltica deve se parte de um projeto global

    de transformao da vida das mulheres e da sociedade brasileira.

    Marchamos pelo m de toda forma de violncia contra as mulheres. Denunciaremos a

    violncia sexista, a prostituio, o trco de mulheres e outras formas de mercantilizao do corpo

    das mulheres, alm da explorao que os meios de comunicao comerciais fazem da imagem das

    mulheres.

    Marchamos pelo m da violncia urbana, que tem no corpo das mulheres uma de suas

    expresses.

    Denunciamos o descaso das autoridades governos, polcia, judicirio com a palavra

    das mulheres, agravando, e mesmo deixando impune, a violncia contra as mulheres.

    Exigimos que os governos e o judicirio atuem de forma decidida para prevenir e punir a

    violncia contra as mulheres.

    Contra a privatizao da natureza e dos servios pblicos

    A natureza, educao, sade, conhecimento so bens comuns e no simples mercadorias.

    A resistncia e as alternativas construdas pelas mulheres apontam para a efetivao da soberania

    alimentar e energtica, a partir de iniciativas que articulam outras formas de produo, consumo,

    uso da energia, da gua e do solo. A agricultura camponesa e familiar fundamental para assegu-

    rar a alimentao a todos, mesmo sob a ameaa da ocupao e contaminao dos territrios pelas

    monoculturas, o uso intensivo de agroqumicos e sementes transgnicas, operados pelo agrone-

    gcio controlado por empresas transnacionais. As grandes empresas que dominam a agricultura

    e a produo industrial impulsionam um processo de dominao sobre nossos corpos. a lgica

    da dominao do mercado para garantir os lucros, em detrimento da sustentabilidade da vida

    humana.

    O acesso universal gua potvel e ao saneamento bsico, assim como aos servios pblicos

    de qualidade (sade, educao, transporte pblico etc.), devem ser assegurados pelo Estado, que

    deve atuar como garantidor dos direitos e necessidades bsicas.

    Por isso m