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Editor responsável: Yuri Disaró Amado

Revisora técnica: Tania Nöthen Mascarello

Comissão editorial: Clara A. Fonseca Carvalho

Djulia Justen

Tahiana Pereira Brittes

Tania Nöthen Mascarello

Yuri Disaró Amado

Março de 2013

Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica

Rua Felipe Schmidt, 321 – sala 902/903 – Centro – Florianópolis, SC

www.maieutica.com.br

Email: [email protected]

Fone: +55 48 3225-4678 – das 14h30 às 19h30

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Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................... 1

Conferência

O AUTORIZAR-SE ANALISTA NÃO É CLANDESTINO

Inezinha Brandão Lied ..................................................................................................... 3

Trabalhos

SABER FAZER: INSTITUIÇÃO DO ANALISTA

Carlos Augusto M. Remor .............................................................................................. 33

ALGUNS CAMINHOS DA FORMAÇÃO

Elisa Lempek Koetz ........................................................................................................ 37

O ATO DE INVENTAR-SE UM ANALISTA: DESTINO DE UMA ANÁLISE

Valéria da Silva Faria .................................................................................................... 41

A ANÁLISE DE CONTROLE E O CONTROLE DA ANÁLISE

Maurício Eugênio Maliska ............................................................................................. 45

ESCUTAR-, SE

Tahiana Pereira Brittes .................................................................................................. 52

SOBRE A ANÁLISE DE CONTROLE: QUESTÕES EM ATO

Aline Veiga ..................................................................................................................... 58

O EX-TUDO DA PSICANÁLISE

Claudemir P. Flores ...................................................................................................... 64

O ENSINO TEÓRICO ENQUANTO DISCURSO PSICANALÍTICO

Lígia Maria Borba Pereira............................................................................................. 70

O LUGAR DA TEORIA NA PRÁTICA PSICANALÍTICA

Clara A. Fonseca Carvalho ............................................................................................ 74

Painéis

UM AuTOrizar-se VACILANTE

Tania Nöthen Mascarello ............................................................................................... 80

PSICANALISTA: AUTOR?

André Moraes Souza ....................................................................................................... 84

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O RESGATE DA BABAQUICE

Jeanine A. Fialho ............................................................................................................ 88

HÁ MESMO UM TRIPÉ NA FORMAÇÃO DO ANALISTA?

Yuri Disaró Amado ......................................................................................................... 92

POR ONDE PASSA AUTORIZAR-SE PSICANALISTA?

Terezinha T. M. Dutra .................................................................................................... 96

Encerramento

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTILO

Cléia Regina Canatto ................................................................................................... 100

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

1

APRESENTAÇÃO

AuTOrizar-se analista

O conjunto de textos que compõem esta publicação on-line foram apresentados

nas Jornadas Anuais de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica, que teve

como título AuTOrizar-se Analista

O tema das Jornadas é derivado do V Congresso Internacional de Convergência

– o ato psicanalítico, suas incidências clínicas, políticas e sociais; questões que têm

recebido atenção em atividades da Maiêutica e nessas Jornadas de 2012 decidiu por dar

uma volta a mais nesta temática, trabalhando o ato de autorizar-se analista.

Lacan introduz a noção do Autorizar-se analista , quando da fundação da Escola

Freudiana de Paris, em 1964. Mais tarde, na Proposição de 9 de Outubro de 1967,

declara: “o analista não se autoriza senão por si mesmo”. Já no Seminário 21, de 1974,

ele irá acrescentar: “o analista não se autoriza senão por si mesmo e por alguns outros”.

Roberto Harari no livro: “O Psicanalista – o que é isso?” está centrado na

questão: como se chega a ser psicanalista? Interrogação familiar a todo àquele que não

desconhece que a autorização está para além de um saber denominado por Lacan como

universitário e já anunciado por Freud de “pouco efeito”. Em “A Questão da Análise

Leiga” (1926), Freud afirma: “quando ministramos a nossos alunos um ensino teórico,

podemos observar que isso lhes surte, inicialmente, pouco efeito. Eles acolhem as

doutrinas psicanalíticas com a mesma frieza que acolhem as outras abstrações com as

quais foram nutridos. Alguns gostariam talvez de estar convencidos, mas nada indica

que o estejam”.

A autorização de um analista é um ato ao mesmo tempo inaugural e concludente,

pois, como ato, é uma transformação subjetiva daquele que lhe dá causa. Um sujeito

decidir-se a ocupar o lugar e exercer a função de analista inaugura novamente a

psicanálise, inventa uma clínica singular – a daquele analista – e revigora o discurso

criado por Freud. Para que isso seja possível, o sujeito – nessa passagem – terá que

pagar com sua pessoa, para poder ser suporte da transferência e sustentar um lugar de

escuta. Autorizar-se analista, nesse sentido, tem a conotação de tornar-se um autor,

promover a própria impessoalidade para dar causa ao surgimento do sujeito do

inconsciente. Dada a singularidade de cada estrutura e de cada análise, não é possível

estabelecer um prazo, um modelo e uma garantia de percurso. Diante disso, podemos

nos questionar sobre as condições necessárias para a formação de um analista: o lugar

da instituição, a importância do ensino e do estudo, o papel da análise de controle e

finalmente a função da análise pessoal.

Que atos estariam circulando nessa trama?

Os textos que Maiêutica lhes oferece para compartilhar, buscam, cada um ao seu

modo, encontrar respostas, sempre plurais, para esta pergunta crucial de todo analista.

Florianópolis, Março de 2013

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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O AUTORIZAR-SE ANALISTA NÃO É CLANDESTINO1

Inezinha Brandão Lied2

Apresentação

TÂNIA MASCARELLO:

Primeiro, foram nossas Jornadas de Convergencia em 2011 com o título

Gozo e ato. Trabalhamos naquele momento de que maneira o gozo pode trazer o

sofrimento para o neurótico e de que maneira o ato analítico pode fazer corte a este

gozo, dando lugar ao desejo. No segundo evento, o Congresso Internacional de

Convergencia, que aconteceu em junho de 2012, em Porto Alegre, trabalhamos as

incidências do ato analítico na clínica, na política e social e neste social se abriu um

leque, foi um evento muito rico justamente nessas muitas facetas na qual o ato analítico

pode acontecer. E hoje, neste terceiro evento, no qual a Maiêutica participa como

organizadora e convocante, vamos trabalhar a autorização do analista, autorizar-se

analista e os atos que acompanham esta autorização como seu efeito, como seu produto.

E me perguntava por que passamos mais de um ano, um ano e meio, detidos neste tema

e as Jornadas de hoje me trouxeram pelo menos uma das respostas, certamente são

várias, mas esta me parece muito importante. Que sempre que se trabalham as questões

relativas ao ato analítico, estamos, na verdade, nos perguntando como que o sujeito que

se propõe a ser analista se autoriza, porque o que se diz é que o analista não sabe do seu

fazer, do seu dizer. Pois bem, há algo que é possível transmitir sobre este fazer e é o que

vamos trabalhar hoje aqui. Então, essa foi uma das respostas de porque nos detemos

tanto tempo neste tema. E não foi tanto tempo assim porque muito falta ainda para

processar, mas certamente já avançamos muitas coisas com relação ao ato analítico.

Eu convido a nossa querida colega Inezinha Brandão Lied, que está na

Maiêutica há muitos anos, ela nos tem oferecido sua participação em todos os destinos

da Maiêutica nos últimos anos, aproximadamente vinte e três anos, nos destinos da

1 Conferência apresentada na abertura das Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.

“AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012.

2 Psicanalista, Membro do Conselho da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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Maiêutica, nas atividades da Maiêutica internamente e externamente. Ela tem nos

representado em Convergencia desde que Convergencia foi fundada, em 1998. Ela tem

levado sempre o discurso da Maiêutica diante dos colegas das outras instituições de

Convergencia sobre os temas que o Movimento Convergencia tem debatido. E essa

representação tem sido muito importante para nós porque ela, na verdade, tem feito

laços sociais, muitos laços sociais, a partir desse discurso que a Inezinha sempre foi a

nossa portadora. Ela é psicanalista também todo este tempo, vocês sabem disso, e na

Maiêutica ela já ocupou o cargo de presidência, de secretária. No momento, ela é a

secretária da instituição e seu trabalho é valioso porque ela nos lembra, nos convoca,

nos assinala sempre um viés singular muito próprio dela, tem ajudado a definir uma

porção de políticas e de destinos da instituição. Então, é muito agradável chamá-la neste

momento para que ela profira a sua conferência. E eu comentava com ela que tinha

achado muito interessante, muito instigante a maneira como ela tinha intitulado o seu

dizer de hoje à noite: O autorizar-se analista não é clandestino. Passo a palavra a ela.

INEZINHA:

Boa noite a todos. Para mim, é uma satisfação estar aqui e quero começar

agradecendo as palavras da Tania e se é verdade isto que ela disse, isso só pode ser

sustentado realmente com alguns outros psicanalistas, colegas da Instituição, grande

parte do que vou falar hoje se articula com isto, e se eu pude representar é porque

exatamente não estava sozinha. Eu queria agradecer o convite também para esta

conferência, que me foi feito pela Comissão Organizadora, coordenada por Cléia

Canatto e fico realmente muito agradecida e honrada pela responsabilidade de tratar

desse tema hoje nestas Jornadas. É um tema com o qual tenho me ocupado há vários

anos no qual tenho me metido muitas vezes. Na verdade, sempre estamos metidos neste

tema enquanto analistas, mas realmente quando falo assim é pelo fato de estar ocupada

com e em formalizar, em debater, em procurar discutir as questões tão cruciais ao nosso

fazer. Então, diante desse percurso, não só com o tema como a Tania assinalava na

apresentação e especialmente com este tema agora do autorizar-se analista, sem dúvida

há muito para dizer, inclusive a Maiêutica Florianópolis tem publicado alguns textos

com relação a este tema. Para esta ocasião selecionei, elegi algumas, dentre muitas

coisas que poderiam ser ditas e vamos colocar isto em debate, hoje compartilhando com

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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vocês algumas dessas questões que já tem me ocupado e nos ocupado aqui na

instituição.

Bom, para lembrar um pouco a convocatória das Jornadas, acho que todos

que leram a convocatória devem estar lembrados, esta convocatória traz e adianta com

muita precisão uma série de questões que envolvem do que se trata nesse autorizar-se, o

que é este ser analista, neste estar analista. E, como muitas dessas questões serão

desenvolvidas amanhã, no segundo dia de nossas Jornadas, cada mesa vai tratar de um

aspecto específico, hoje, como eu disse escolhi, algumas pontuações que espero nos

levem a seguir debatendo, espero que sim, amanhã.

Falar sobre a autorização do analista, reenvia de maneira quase que imediata

, para mim é assim, à formação do analista. É uma questão que nos toca e de maneira

alguma é um tema menor que podemos deixar de lado. Não, de maneira nenhuma.

Então, essa questão da autorização vai implicar diretamente tudo o que diz

respeito à formação do analista. E é bastante conhecido, vocês devem conhecer este que

é falado e tomado como clássico, o tripé da formação do analista. Pois bem, este tripé

consiste em três elementos fundamentais: a análise pessoal ou análise didática, o estudo

teórico e a análise de controle. Bom, isto é o clássico. Acontece que este tripé não dá

conta do que é a formação do analista. Então, é necessário e esta é uma pontuação que

nos trouxe Roberto Harari, é necessário adicionar mais um a esses três tão conhecidos.

E este mais um é a instituição psicanalítica, 3+1. Então, já vemos aqui, não só algo que

se complexiza, mas que dá um outro lugar, digamos, uma outra sustentação ao clássico

tripé. Ou seja, temos quatro elementos então, 3+1.

Sobre o título que propus, queria de maneira inicial abrir para comentar um

pouco com vocês. Pensei na questão do clandestino, porque, se de um lado é também

bastante falado, conhecido, repetido, muitas coisas são repetidas e eu comentava

previamente com os colegas, sobre a dificuldade de falarmos de algo que é tão

conhecido. Então, é necessário sair da repetição ecolálica, propondo dar uma volta a

mais, para poder falar do mesmo, mas com diferença. Que não só seja falado mesmo,

mas que seja falado e tenha um efeito sobre a nossa própria formação permanente.

Então, retomando essa questão do clandestino, conhecemos uma frase que

diz “a psicanálise é marginal” e penso que a maioria aqui concorda, ou seja, a

psicanálise subverte, a psicanálise é marginal e concordo, acho que todos nós

concordamos que efetivamente a psicanálise é marginal porque fica à margem de um

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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discurso comum, fica à margem do que se espera normalmente dos laços discursivos

habituais e cotidianos. Freud inaugurou essa forma tão especial de laço, que é o laço

discursivo entre analisante e analista, uma pessoa que fala a uma outra dessa maneira

tão especial. Podendo inclusive, como diz Lacan, falar babaquices, ou seja, a situação

analítica é o lugar onde o sujeito é convidado a falar livremente babaquices. Então,

concordamos que a psicanálise é marginal, porque fica à margem nesse sentido e

também porque se ocupa das coisas que são pensadas e ditas como marginais, ou seja,

restos, resíduos, que em geral não interessam a outras disciplinas. Para a psicanálise, é

exatamente isso que interessa. Então, aí está a marginalidade da psicanálise. Mas isto

não quer dizer de maneira nenhuma que o psicanalista seja marginal no sentido de

clandestino. Aqui estou me referindo ao sentido mais corriqueiro da palavra marginal, e

especialmente marginal como aquele que fica na clandestinidade. O que localizamos

nesta condição de marginal clandestino, senão algo que deve ficar oculto, que não pode

ser mostrado e que podemos pensar como uma ilegalidade.

Mas afinal, o que é clandestino? A definição de clandestino, de acordo com

o dicionário é a seguinte: “o termo clandestinidade designa a situação em que uma

pessoa vive quando se encontra fora da legalidade.” Essa é uma definição. Uma outra:

“Diz-se que o que é clandestino normalmente se faz às escondidas, evitando cair no

conhecimento público.”3 Retenham isso porque é de fundamental importância para o

que se trata no autorizar-se e também para o que diz respeito ao 3+1 que eu colocava

ainda há pouco, porque aqui é exatamente o contrário de qualquer clandestinidade.

Então, não há nada de clandestino neste ato de autorizar-se, por mais que seja tentador

que cada um se autorize no seu próprio consultório com os seus analisantes, como

psicanalistas também temos que vencer essas tentações “facilitadoras” e “libertárias”.

Porque isso implica uma ética que devemos tomar em conta, porque as tentações podem

nos afastar da psicanálise.

Estava falando então que o autorizar-se não é clandestino e que é um ato,

vamos entrar nesse ponto logo a seguir.

Ao iniciar esta Conferência disse a vocês que a autorização do analista está

diretamente ligada com a formação do analista e portanto com o conhecido tripé ao qual

nós colocamos +1, que é a instituição. No entanto, nosso tema também chama uma

outra questão importante, ligada com o que eu colocava da clandestinidade ou do

3 FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo, 2004. 3ª ed. revista

e atualizada.

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clandestino, trata-se da continuidade entre psicanálise em intensão e psicanálise em

extensão, conforme colocado por Lacan. Muitos de vocês acho que conhecem o que diz

Lacan a respeito disso, mas vamos rever brevemente. A psicanálise em intenção é a

psicanálise didática, a psicanálise propriamente dita, podemos dizer também que é o que

se passa entre as paredes de nossos consultórios. Uma análise no consultório do

psicanalista, ai temos a psicanálise em intensão. De outro lado, a psicanálise em

extensão é o que da psicanálise pode ser levado para outro âmbito, um âmbito público e

porque então não dizer inclusive, a psicanálise que nós, enquanto psicanalistas,

podemos colocar na polis, colocar no mundo. Para dizer de outra maneira, isto que da

psicanálise vai para o mundo e que então tem a ver com o público. E o que diz Lacan a

respeito desse ponto é que há uma continuidade entre intenção e extensão e dessa forma

nos remete a uma figura topológica conhecida como cinta de Möebius que tem uma

continuidade, mas especificamente quando Lacan fala sobre isso, na Proposição de 9 de

outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola4, coloca que a extensão é necessária em

função da hiância que surge da psicanálise em intenção. Quer dizer que em razão da

hiância surgida da psicanálise em intensão, a psicanálise em extensão é necessária

porque alguma coisa não dá conta, se enquanto analistas ficamos na solidão própria do

nosso trabalho, no esplêndido isolamento, neste espaço tão privado que em algum

momento já não se sabe mais o que se está fazendo. De tal forma, o analista é chamado

a se ocupar da extensão, chamado a colocar-se discursivamente no âmbito público,

compartilhado com outros institucionais.

Estou de certa maneira adiantando com isto um aforismo lacaniano que é

muito conhecido, Lacan o formula também na Proposição 9 de outubro de 1967..., ali

ele diz que o analista só se autoriza por si mesmo. Lacan coloca a questão nestes termos

porque nesta ocasião, em 1967, estava procurando falar da formação dos analistas e da

proposta para sua Escola – Escola Freudiana de Paris. Então, quando elabora a proposta

para sua Escola, é nesse momento preciso, que Lacan faz essa colocação. Mas de lá para

cá, podemos pensar e o próprio Lacan, em certo momento percebe que essa formula – o

analista não se autoriza senão por si mesmo - gerou muitas incompreensões. E gerou

muitos problemas também. Por quê? Porque de alguma maneira a "culpa" é do Lacan à

medida que, com tal formulação, abre a possibilidade de que cada um interprete a sua

própria maneira, na sua solidão e se apegue a esta fórmula para ficar fechado no seu

4 LACAN J. Proposição 9 de Outubro de 1967, sobre o psicanalista da Escola. In: Outros Escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar. 2003.

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próprio narcisismo e fechado no seu consultório com os seus analisantes. Sou analista.

Bom, quem garante que é analista? Quem garante mesmo que quando dizemos “sou

lacaniano” que eu sou lacaniano? O fato de dizer isto não quer dizer nada. Mas, de fato

ocorreram, como eu dizia, muitas incompreensões porque muitos se agarraram nessa

fórmula, se agarraram exatamente para não sair do privado e não correr riscos. Porque

quando saímos do âmbito privado para o público, isto também Lacan chegou a formular

em determinado momento, nesta passagem do privado ao público, o analista arrisca

mais, porque aí já não está o fato de dizer “eu sou”, senão o seu posicionamento

discursivo, a sua posição discursiva é que vai dizer por ele o que é, se ele é lacaniano, se

é analista, se não é. Ou seja, isso vai ser reconhecido numa instituição, com outros

analistas. Mas, reconhecido não quer dizer tampouco legalidade em contraposição a

ilegalidade no sentido do clandestino. Não é um reconhecimento com um título, com

uma menção, com algum documento formal como estamos habituados nos diferentes

âmbitos da nossa vida que são necessários, alguns imprescindíveis, inclusive. O fato é

que com o fazer do analista, o nosso trabalho, a nossa práxis implica outra coisa.

Implica isto que não se conclui, não finaliza e, portanto implica um necessário

compartilhar de fato com outros.

Então, a partir desse mal entendido, em que os analistas autônomos se

identificaram com essa fórmula e a desvirtuaram, Lacan, alguns anos mais tarde, faz um

acréscimo à formulação inicial, faz uma precisão a esta primeira acrescentando “e por

alguns outros”5. Temos então: o analista não se autoriza senão por si mesmo e por

alguns outros. Por ou com, aí se encontra esta variação, digamos, nas traduções. Então,

esses alguns outros, como coloquei inicialmente, está em clara e nítida oposição a um

lugar que procura a clandestinidade.

Sem dúvida já temos aqui uma série de nuances, alguns desdobramentos.

Dizia então que esses alguns outros, esses outros são os outros institucionais. Sublinho

outros institucionais, porque se não se trata de estar com amigos e colegas psicanalistas

com os quais se tenha afinidades e, de vez em quando, conversar, trocar ideias,

perguntar ou até comentar sobre algum caso, tudo isso pode ser, mas não é o que estou

falando. Estou falando exatamente nestes outros institucionais com os quais vamos

compartilhar nosso percurso, nosso discurso, nossa práxis, e que não são só os

escolhidos ou os mais amigos, porque, sem dúvida há aqueles com os quais nos

5 LACAN, J. Seminário 21. Les non-dupes errent. 1973-74. Classe de 09/04/74. Inédito.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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identificamos mais, com uma maneira pensar, de colocar as coisas. Mas há também

nesses outros institucionais alguns que discordam, que tem outra maneira de pensar e

que devemos poder suportar essas diferenças para trabalhar em uma instituição, para

estarmos em uma instituição. Então, esse não é um ponto que seja simples nem fácil.

Acho que todos que estão em uma instituição sabem disso. Então, a questão é como

podemos fazer para dar o efetivo lugar a instituição na formação do analista, isto que é

com alguns outros, a autorização.

Então, se voltamos à fórmula de Lacan, temos um autorizar-se por si

mesmo, mas também autorizar-se com alguns outros. E, chama atenção a referência que

faz Lacan ao se, autorizar-se, nesta fórmula então que é uma fórmula pronominal, que

reenvia a um circuito pulsional, é isto que se coloca em jogo em uma análise, ou em

uma cura, termo que também é utilizado por Lacan. Circuito pulsional no qual o sujeito

se faz. E no tema que nos toca, o sujeito se faz responsável, ele se autoriza e se faz

responsável pela psicanálise. Podemos ver que essa é outra posição, completamente

distinta de uma pretendida autonomia. Dessa forma, esse se faz é responsabilidade

daquele que se autoriza, se responsabilizando pela psicanálise, se responsabilizando em

transmitir a psicanálise, também sustentando essa psicanálise no mundo, obviamente,

responsável pelos seus atos. Isso vai operar uma inversão muito grande na posição de

quem se autoriza.

Então, esse compartilhamento que eu falava no início, temos que pensar que

é exatamente aí o lugar da instituição como +1, porque é necessário um lugar para que,

o analista em seu autorizar-se testemunhe, possa dar testemunho dessa experiência do

inconsciente. E esse testemunho, esse testemunhar, é o que a Maiêutica propõe que seja

feito na instituição, com outros. Mas, novamente temos uma questão que não é simples

porque uma interrogação logo se apresenta a nossa frente - testemunhar como? Como se

testemunha uma coisa que é única, que é de cada um, que é de um âmbito privado e

como trazer isto para um âmbito público? De que forma? Como isto se dá? Aliás, sobre

isso há um texto bastante interessante e que recomendo, de autoria do nosso colega

Carlos Augusto Remor6, foi por ele apresentado em Paris no 3º Congresso Internacional

de Convergência e trata, exatamente desta questão. Então, também para dizer que essa

questão do testemunho vem nos ocupando há algum tempo, esse congresso aconteceu

em 2007, e o tema vai circulando, surgindo a cada vez com maior peso e interesse entre

6 REMOR, C. A. “O saber-fazer e a instituição”. In: Formação do analista em debate. Caderno nº5.

Publicação de Maiêutica Florianópolis-InsituiçãoPsicanalítica. Abril 2001.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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instituições de Convergência, e cada uma, em seu modo próprio e singular de

funcionamento encara a temática com diferenças. E se de um lado, podemos pensar que

é difícil, por que não há um modelo pronto, temos que inventar artifícios que promovam

a abertura ao singular testemunho da experiência do inconsciente. De outro lado, é

interessante pensarmos o quanto é benéfico que assim seja, porque este movimento

inventivo pode efetivamente garantir que a psicanálise siga existindo e que estamos

sustentando o desejo de que ela siga existindo. Porque senão poderíamos nos refugiar

nas regras, enfim, em tudo aquilo que já está estabelecido e sem perguntas, crendo que

temos as respostas, cumprimos o que está determinado, o que já está feito e

regulamentado por alguma instituição e nos detemos aí. Mas, não é isso que queremos,

não é isso que propomos como psicanalistas lacanianos.

Então, este testemunhar, e eu fazia referência ao artigo do Carlos Augusto,

pode ser feito de muitas maneiras, de várias maneiras, e é claro, cada instituição procura

inventar algum artifício válido para atender tal finalidade. Neste momento, na Maiêutica

Florianópolis temos a Fábrica do Caso, é uma das possibilidade para falar da clínica

que funciona da seguinte forma: um analista apresenta um caso e outro escuta, podendo

o segundo formular alguma pergunta. Finalizada a apresentação, o analista apresentador

não pode mais falar. Após a apresentação do caso seguem as colocações a partir das

escutas dos participantes que integram o publico para fabricar o caso com o material

clínico oferecido pelo analista apresentador. Aqueles entre vocês que são da Maiêutica,

tiveram a oportunidade de participar e sabem a riqueza desta experiência. Esta é uma

das atividades, é uma das propostas de testemunhar sobre essa experiência do

inconsciente. Outro artifício que dá lugar ao testemunho é o Comentário do Caso, uma

atividade na qual participam somente Membros da Instituição, consiste no seguinte:

aqui também um analista apresenta um caso e outros dois analistas escutam. Estes dois

que escutam se reúnem brevemente para discutir entre si e armar os elementos para o

comentário do caso, a seguir apresentam seus comentários, fazendo cada um suas

articulações e no momento seguinte todos os membros presentes são convidados a

participar da discussão.

Assim muito brevemente, não vou me deter nisso agora, mas somente para

registrar que existem muitas maneiras de trabalhar sobre essa experiência, sobre o

testemunho da experiência do inconsciente. Por quê? Porque dessa maneira se marca

que não se trata somente de uma teoria. É a teoria, mas é a teoria que está sendo passada

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por uma experiência, que é a experiência da escuta desse analista, desses analistas que

estarão escutando determinado caso. Então essa é a questão diferencial, porque temos

que situar em outro lugar o que acontece com um desenvolvimento teórico para um

trabalho escrito, o que também fazemos, que é inclusive necessário para apresentar nos

Congressos e Jornadas, mas o âmbito do testemunho efetivamente é outro, dessa

experiência do inconsciente, o que dessa experiência é transmissível no âmbito de uma

instituição.

A experiência, e toda a experiência da análise nos coloca também em dois

lugares, em duas posições: a de analisante e a de analista. Estamos nas duas, ou se não

estamos já estivemos, ou seja, temos que nos arranjar com as duas por um bom tempo.

Esta passagem, isso que se diz, que se pensa, que se pergunta sobre uma passagem de

analisante a analista, poderia ser formulada assim: o que se dá nessa passagem, como é

que isso ocorre? Quem recebeu uma prévia da divulgação das Jornadas vai encontrar ali

várias dessas questões que estão exatamente situadas nesta passagem: quem autoriza

quem? O ato é do analista ou é do analisante? Existe fim de análise? Só se pode ser

analista quando se chega ao fim de análise? O desejo do analista, o lugar da

instituição..., poderíamos dizer que, senão todas, quase todas essas questões que foram

lançadas como perguntas, poderíamos situá-las neste caminho, neste percurso de

analisante a analista.

Lacan diz na Proposição 9 de outubro... - ainda que seja este um momento

inicial das suas propostas -, na “Proposição...”, ele diz que essa passagem fica envolta

numa bruma obscura, ou seja, pesada. E então ele faz sua proposta para as instituições,

que caberia à Escola abrir, dissipar um pouco essas nuvens espessas que aparecem nesse

caminho. Tomo essa referência de Lacan, não para lançar nuvens negras sobre nosso

percurso de psicanalista, mas para que se tenha presente que neste caminho, nesta

passagem, que não é “A” passagem, porque não ocorre de um golpe só, de uma única

vez, mas que neste percurso ocorrem muitas coisas, muitas idas e voltas. Vamos

encontrar um caminho repleto de ambiguidades, toda a ambiguidade que diz respeito à

formação do analista e que diz respeito a questão discursiva, palavreira, - envolve isso

que é pela própria natureza ambígua, e também apresenta paradoxos neste caminho.

Então a consequência é que podemos dizer que este caminho não tem nada de linear e é

impossível que ele seja percorrido sem equívocos, sem tropeços, sem vacilações. E

porque não é linear? Porque tem um trajeto de ida e volta, penso assim, e tomo uma das

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questões que Carlos Augusto apresentava no seu texto para marcar que quanto mais

analisante se é tanto mais analista se poderá ser, no sentido de uma escuta. Vemos,

então, que este caminho não pode ser linear, visto que este caminho é ambíguo e

paradoxal.

Analisante Analista

Neste trajeto ele pode ser enviado para o lugar de analisante, no momento

em que para ser analista ele precisa estar nesta condição de ter sido analisante ou

mesmo estar analisante para poder ocupar o lugar de analista.

Por isso também, neste entremeio, vamos dizer assim, onde se colocam as

ambiguidades e os paradoxos não poderíamos jamais pensar que seria somente em linha

direta de analisante a analista, ou seja, dirigindo-se sempre para o tornar-se analista.

Analisante Analista

Não podemos acreditar também, que a partir de um caminho direto que

estamos dizendo ser impossível, obteríamos ao final, um analista. Inclusive, porque de

nem toda análise sairá um analista. Voltarei a isso logo a seguir.

Esse analisante, então, tem que percorrer todo um caminho que implica idas

e voltas para poder chegar a este lugar de analista. É neste caminho que vou recolocar

algumas das questões que coloquei ao início.

Neste momento retomo a afirmação que não necessariamente no final do

caminho teremos um analista, e agora especifico, um analista como profissão, como

trabalho. Lacan em a Nota Italiana7, diz que não todo sujeito pode advir analista ou seja

que são necessárias também algumas condições para isso. Mas temos que ter presente

que uma das colocações que também faz Lacan é que toda análise é didática, ou seja,

que toda análise vai produzir um analista. Mas como isso só se sabe depois, num

momento posterior, isto não pode ser preconcebido neste momento inicial, mas ao

contrário, somente no final. Mas o fato é que há demandas de análise diretamente em

função da procura de ser analista, - sabemos que muitas demandas não são em função

disso, mas poderá dai advir um analista.

7 LACAN, J. “Nota Italiana”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003.

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Da análise que é didática, Lacan diz que de toda análise advirá um analista.

Mas não um analista de ofício, mas sim como efeito de uma nova posição subjetiva que

possibilita estar advertido de suas formações, mais precisamente das formações do

inconsciente; advertido inclusive de sua posição de alma bela e que não é mais possível

voltar ela. Esse é o ponto para o qual Lacan chama a atenção: estar advertido, ou seja,

que a partir de uma análise, se houve uma análise, não há outra possibilidade que essa

de um sujeito advertido . Essa posição de um analista enquanto advertido gera, dá

condições de uma posição subjetiva modificada, de uma outra posição diante da vida. O

fato de estar advertido da posição de alma bela e desse posicionamento ingênuo com

relação à vida e aos fatos discursivos que nos circundam e com os quais nos enlaçamos,

inclusive advertido também de que já não é mais possível recusar o saber insabido. Essa

experiência da análise vai modificar a posição do sujeito. É nesse sentido que Lacan vai

dizer que toda análise é didática e vai produzir ali um analista.

Este é um ponto, mas lembremos de nosso tema que é autorizar-se analista.

Então, o primeiro ponto, se acompanhamos Lacan é: toda análise é didática e vai

produzir ali um analista. Muito bem, mas a análise imprescindível, necessária, é

suficiente para que alguém ofereça sua escuta a outro como analista? Este é um segundo

ponto que temos que encarar, que para um analista enquanto ofício, enquanto fazer, a

análise é condição sine qua non, mas é igualmente necessário dar um passo mais, para

que o sujeito se proponha a ocupar o lugar de analista e oferecer sua escuta a outro.

Estar advertido, sim, mas um analista enquanto aquele que assume e sustenta uma

práxis psicanalítica, se distingue de um sujeito, que como fruto da análise, advém

“analista” por sua condição de advertido na vida e alcança assim “viver melhor”. Então,

para pensar o autorizar-se analista temos que fazer essa diferenciação e não tomar de

maneira geral, imprecisa o que diz Lacan quando coloca que toda análise produz um

analista. Não seria necessário nada mais. Concordamos que toda análise produz um

analista, enquanto sujeito advertido, mas um analista enquanto oficio tem que

prosseguir com outros analistas. A análise, podemos dizer, é a análise para um e para

outro, a “mesma” análise, se é que me entendem, mas a consequência na vida de cada

um não é.

Temos então duas posições que nos permitem um posicionamento subjetivo

distinto, e nós analistas somos tomados pelos dois lugares - analisante e analista.

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Essa passagem, então, só pode se dar como um ato. Não há outra

possibilidade. Este ato que é um ato inaugural e um ato que vai marcar um

acontecimento, vai marcar algo novo para esse sujeito, que é exatamente essa

possibilidade de se colocar também para escutar outro.

Quando iniciei minha formação e ouvi pela primeira vez sobre o desejo do

analista isso me fez pensar, porque soa um pouco estranho quando se escuta sobre esse

desejo que é o de ocupar esse lugar em que se tem que sustentar a transferência para

trabalhar no sentido de desfazer a transferência e se tornar prescindível para o

analisante, se tornar na verdade um resto. E não parece estranho que mesmo assim

desejamos ocupar esse lugar? Trabalhamos, estudamos, fazemos análise e tudo mais,

para ocupar este lugar que não é nada simples. Mas é em razão disso que a psicanálise

se mantem viva. É isso que se transmite, o desejo de psicanálise.

Mas falávamos do ato que como todo ato vai determinar um começo, um

acontecimento, algo que até então não havia acontecido. Pode ser este um momento em

que alguém, um analista, se autoriza a aceitar uma demanda de análise a ele dirigida;

poder escutar e aceitar a demanda é efeito de um ato, ato de autorizar-se analista.

Vocês poderão reconhecer algo que é bastante frequente quando alguém

sabe que o sujeito estuda, que está fazendo formação em psicanálise, que inclusive tem

seu consultório ou mesmo que ainda não tenha, isso não importa, alguém então faz uma

demanda para ser escutado por esse analista e, em muitas ocasiões o que ocorre? Ocorre

que esse analista não escuta e encaminha para outro ou diz que ainda não tem onde

atender por exemplo. Não escuta que a demanda é para ele, e faz uma derivação. Tal

analista ainda não pode dar este passo, não pode como impossibilidade determinada

pela resistência, não pode cometer este ato de autorizar-se a ocupar este lugar.

Veremos agora as implicações desse começo, um começo que inaugura, que

determina um antes e um depois, ou seja, o momento que o sujeito pode, mesmo que

com vacilação, ocupar o lugar de analista, marca que o sujeito já se “desvirginou”,

vamos dizer assim, de ocupar somente o lugar de analisante.

O próprio do ato analítico que vai possibilitar essa autorização é que alguém

possa fundar uma experiência. Essa experiência é a experiência do inconsciente. Na

convocatória das Jornadas está muito bem colocada a advertência que fazia Freud8 sobre

os jovens que queriam estudar com ele para se tornar analistas, dizia: eles podem

8 FREUD, S. “Análise Leiga”. In: ESB. OC. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

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estudar muito a teoria, mas isso tem pouco impacto, não gera coisa alguma sobre eles,

mas a análise sim. Inclusive ele vai colocar que é somente através da experiência da

análise didática de cada um, essa experiência em que a sua própria pessoa é afetada por

esses acontecimentos, por essa ação da presença do inconsciente, somente ai e a partir

dai é que o sujeito poderá então tornar-se analista. Isso já estava em Freud e Lacan se

ocupou mais detidamente com o que Freud já havia nos ensinado.

Essa experiência que é fundamental, que não é como uma experiência no

sentido de acumular o saber, de acumular alguma coisa, mas de poder passar a teoria

pela própria vida, pela sua experiência, é isto que quer dizer ser afetado por. Trago outra

referência sobre o que vamos encontrar na teoria, de que aquilo que se aprende em

transferência não se esquece, isto é Freud; certamente vocês vão lembrar algumas

situações e uma que me recordo até hoje foi quando cometi um dos primeiros atos

falhos em minha análise. Aquilo que estudamos e parece uma abstração, que o sujeito

quando comete um ato falho tem a sensação de que o chão desaparece, perde-se todas as

referências, que não se sabe onde vai se meter, é algo que realmente se pode ler quando

estudamos, mas quando se vive a experiência é outra coisa.

Isso não quer dizer que precisamos viver todas as coisas para ser

psicanalista, mas sim que esta possibilidade que se abre com a experiência do

inconsciente é o que realmente pode transformar e gerar uma outra posição subjetiva,

uma outra posição que seria então a de analista, que pode sustentar este ato que implica

ocupar um determinado lugar, uma determinada posição – a de analista.

Há uma outra relação que quero fazer que é da singularidade da experiência.

Toda a experiência, em princípio é singular, mas a experiência do inconsciente, mais

ainda. Tomando a singularidade quero mencionar um autor, um pedagogo chamado

Larrosa Bondía, trata-se de um texto bastante interessante sobre o saber e sobre a

experiência9. Ele vai distinguir uma questão que toca bem diretamente no que nos

interessa que é de um saber de experiência, e não de um saber da experiência, sobre o

qual é possível teorizar também. Mas um saber de experiência, é um saber que deixa

marcas, que atravessa o sujeito. Poderíamos dizer a partir dai que os conceitos são

trabalhados, processados, costurados, por cada analista na sua própria análise a partir da

sua própria experiência. Poderíamos perguntar: mas como isso vai ser feito se não se

fala diretamente de teoria no divã? Sem dúvida, o divã não é um lugar para teorizar, mas

9 BONDÌA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação.

Jan-abr. 2002, nº 19. P.20-28.

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o que está em questão é como cada um pode ser atravessado em sua experiência pessoal

pela teoria, sem falar da teoria. Então, é essa experiência em que a própria pessoa é

afetada como ensina Freud e que só ai vai produzir um analista.

Lacan, por sua vez, no Seminário 24, L’insu ...10

faz uma relação

interessante, esta é minha leitura, ao colocar a experiência como passagem, que não é

uma coisa que acontece de maneira automática, mas indica que há um percurso a se

fazer e que implica diretamente o sujeito, no qual este tem que estar dentro, "metido" e

"bem metido", senão não é possível, ou seja, um pouco dentro e um pouco fora não dá,

essa é a questão.

Podemos também nos referir a essa experiência como algo muito próximo

de uma aventura, na medida em que não sabemos no que ela vai derivar, ou seja, não é

previsível, não se pode nem prever nem definir. Neste sentido podemos dizer que é uma

aventura psicanalítica porque temos que andar sem saber onde poderemos chegar.

Ainda sobre esta questão da experiência como algo que não é previsível, que

é indefinido onde podemos chegar, mais do que isso, indeterminado, me permito

retomar algumas ideias trabalhadas em um texto11

de minha autoria, que escrevi

também para o 3º Congresso de Convergencia, e que considero bastante atual e

pertinente. Menciono apenas um pequeno trecho no qual trabalho sobre esta questão da

experiência, e que diz respeito a experiência pathemática, que é um aprender através de,

e após, um sofrimento, porque enquanto analisantes sabemos que sofremos, não temos a

questão da previsão, não temos a possibilidade de prever coisa alguma. Então, a

experiência tem uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida e por isso é uma

abertura para o imprevisto e o não antecipável. Vejam que aqui está quase dada a

definição de algo que tem na experiência, o valor de ato. É disso que estamos falando,

deste ato que a partir da experiência pode ter este valor porque marca exatamente um

antes e um depois, ou seja, que depois de ser atravessado por isso, mesmo que se queira,

não é mais possível voltar para um estado anterior.

Então esta experiência que é pathemática, e que de alguma maneira temos

que passar também pelo sofrimento para que se possa inventar, eu não diria nem extrair

nem surgir ou qualquer outra palavra, mas sim se inventar um analista. Um analista, a

partir dessa experiência, se inventa. Se autoriza e se inventa.

10

LACAN, J. Seminário 24: L’insu ..... Classe de 14.12.76. Inédita. 11

LIED, I. “Saber-fazer do psicanalista e a transmissão”. In: Formação do analista em debate. Caderno

nº 5. Publicação de Maiêutica Florianópolis-Instituição Psicanalítica. Abril 2001.

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É bastante conhecido também que toda esta questão do ato analítico está

essencialmente ligada a tudo que diz respeito à transferência. A transferência, por sua

vez, está articulada com o que conhecemos como Sujeito-suposto-ao-Saber. Quando

Lacan coloca isso, inclusive no Seminário 15, O Ato Analítico, ele pergunta o que quer

dizer a análise da transferência, pergunta e responde na sequência colocando que a

análise da transferência não pode ser senão a eliminação desse sujeito suposto ao saber

que é ocupado aqui pelo analista. Lacan usa o termo “eliminação”, para referir-se ao que

ocorre com o sujeito suposto ao saber ao final de uma análise. No entanto, há também

um outro termo proposto por Roberto Harari - “evacuação” - porque parece dizer mais

sobre o que ocorre efetivamente com o sujeito suposto ao saber no transcurso de uma

análise. É um lugar que realmente tem que se esvaziar. Este termo “evacuação” marca

que não se trata de um mero deslocamento, ou seja, que este sujeito suposto ao saber

encarnado no analista, não vai se deslocar para outro qualquer, que como um grande

Outro ocuparia esse lugar de sujeito suposto ao saber evacuado pelo analista. Porque ao

fim de uma análise, quem sabe é o analisante. É ele quem sabe desde o início, mas ao

fim de uma análise, ele pode tomar isso que é dele, se apropriar desse saber. Então o

termo evacuação vai nos dirigir nesse sentido de que não é um deslocamento porque

tem a ver com a inconsistência do Outro. E quando isso ocorre em uma análise, também

favorece, possibilita que esse que ocupa o lugar de analisante possa chegar a ocupar o

lugar de analista. Ou seja, que o analista deixou de sustentar já o sujeito suposto ao

saber. Deixou de sustentar porque trabalhou para isso. Isso não acontece assim

magicamente, nem tampouco rapidamente, mas especialmente por uma posição que

admite a inconsistência do grande Outro. Este é um ponto importante, porque enquanto

o grande Outro for consistente como é para o neurótico, ou pelo menos não oscilar em

sua consistência, sem dúvida serão maiores as dificuldades para ocupar esse lugar de

analista, quando persiste a crença em um grande Outro sem falhas, que pode tudo. Esta

é uma questão crucial que estamos hoje encarando por algumas bordas. Trata-se desse

lugar que ocupamos como analistas, encarnando o sujeito suposto ao saber, para então

poder trabalhar para que tal lugar de sujeito suposto ao saber caia, se evacue de fato

para que o saber que está no analisante possa ter lugar. Dizendo de outra maneira, o

analista deve poder trabalhar para sair do lugar que ocupa para o analisante,

possibilitando uma efetiva e fecunda troca e não deslocamento, dos lugares de saber e

de saber no que se refere ao desejo.

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Lacan também coloca no Seminário 15, O Ato analítico: como alguém

deseja então, mediante é claro o desejo do analista, ocupar esse lugar para depois ser

evacuado dessa maneira porque tem que trabalhar para isso. Isto implica inicialmente

aceitar o lugar e trabalhar para destituir-se desse lugar de sujeito suposto ao saber.

Parece estranho, mas aqui nos encontramos com esta inversão dos lugares. Porque

quando é possível essa inversão, esta passagem neste ato que eu marcava, ao ocupar o

lugar de analista, o sujeito sabe que não é ele que sabe. Esta é a diferença. Ele sabe que

não é aquele que sabe. Ele encarna, ocupa, faz semblante desse lugar, mas ele sabe que

não é. Mas ele tem que sustentar isso para que a análise tenha lugar, esta é uma

condição que implica a atribuição do sujeito suposto saber, senão a análise não terá

lugar. Aqui temos pontos fundamentais, mas muito sutis, e por isso falamos dessas

dificuldades do caminho que há que percorrer para chegar a ocupar esse lugar de

analista. Ou seja, na medida em que há esse ato e um analista se autoriza, é porque o seu

analista vai caindo desse lugar de sujeito suposto ao saber, e este analisante que “passa”

a analista o recoloca, porque agora é ele que passa a encarnar esse lugar. Tem que

sustentar esse lugar. E isso, só é possível a partir dessa posição, dessa mudança como

sujeito advertido. Sem dúvida, como diria Lacan, o caminho é longo, e não é necessário

um final de análise para que esses atos, que essa passagem se desmembre em muitas

passagens, e que um analista possa se sustentar como analista ainda que sustente seu

lugar como analisante. Podemos ser analistas na medida em que somos mais

analisantes.

Temos aqui a importância do liame entre transferência, desejo do analista, e

sujeito suposto ao saber. É um lugar onde situamos o ato, porque a partir daí ele pode

ocorrer. Esse ato que implica a autorização de um analista. O desejo do analista é o que

vai sustentar esse lugar, e como dizíamos, esse desejo vai surgir na análise de cada um.

É a análise, análise didática, que dará lugar ao surgimento desse desejo, e mais ainda,

esse desejo que no início fica colocado no analista.

No momento em que, a partir desses desdobramentos, dessa própria

experiência, podemos nos apropriar de algum saber, inclusive dar lugar a que esse

desejo surja, aí então vai surgir um analista. Assim como Lacan falava que a análise da

transferência deveria servir para promover essa evacuação do sujeito suposto ao saber,

liquidar isso, ele vai se referir também à análise propriamente dita, como alguma coisa

que deve ser levada até o ponto que é o surgimento deste desejo do analista. Diz Lacan

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que “a análise didática não pode servir a outra coisa que não seja levar a este ponto em

que em minha álgebra eu designo como desejo do analista”. Assim ele vai falar no

Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Então, mais uma vez, é

a partir do desejo do analista que o analista poderá se autorizar em ato, esse ato que

como falamos ao início, trata-se de um ato que o autoriza a um saber fazer.

Vejam que não é só o que falamos de um saber de experiência, pois agora

falamos de um saber fazer. Esse saber está ligado com esta experiência que permite

então que este sujeito, este novo analista, vamos dizer assim, invente o enlace singular

entre o fazer e o saber. Não se trata somente de um saber porque não é um saber

referencial, mas é um saber textual, agora em liame com um fazer. Esse saber é, no caso

do analista, a sua práxis poiética. Nesta autorização é o desejo do analista que permite

saber fazer aí com a transferência, pois falamos há pouco dessa ligação que têm a

transferência, o sujeito suposto ao saber e o desejo do analista, e também que é

necessário que a análise da transferência leve a essa evacuação do sujeito suposto ao

saber. Neste liame, se o analista se autoriza a um saber fazer com a transferência, que

nada mais é que se arranjar com esse lugar, com este sujeito suposto ao saber, ter que

sustentar e também trabalhar para suportar o luto que corresponde a caída deste lugar.

Como podemos ver, também não é um lugar fácil, mas é necessária e imprescindível

essa evacuação. Então, o analista não se autoriza senão por si mesmo, voltando ao

aforismo lacaniano, isso quer dizer que ali, nessa autorização é que nasce este desejo,

nisto que ele aprendeu na experiência de sua própria análise.

Mais uma vez a questão do desejo do analista que implica muitas coisas a

respeito dele, mas especialmente o que eu gostaria de assinalar hoje é o desejo do

analista como uma função, que como nos ensina Lacan, é uma função objetivável. E

como função, a partir do que se define como função, a função do analista teria a ver

com três pontos. Um deles seria cumprir com um dever. Outro seria pagando um

tributo, e o terceiro ponto, executando algo. Ou seja, esse dever devemos entender não

como uma obrigação, mas como um dever ético que implica em ter que pagar com a sua

própria pessoa, com seu ser, com suas palavras, mas também com seu próprio ser. Por

essa razão podemos tomar essa referência da função do analista como pagando alguma

coisa e executando algo também. Executar algo no sentido de poder conduzir

responsavelmente, dirigir essa análise, lembrando que existe um texto de Lacan que

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exatamente fala da direção da cura, Direção da cura e os princípios de seu poder12

. O

que vai ser executado, se podemos dizer assim, nesses termos em que se definiria uma

função. Esse desejo, não é demasiado reinterar, não é um desejo de ser psicanalista, não

é um desejo de exercer determinada profissão, mas é esse desejo de efetivamente poder

colocar-se como escuta para um outro, e de poder intervir nos momentos em que seja

necessário, fazer as intervenções.

Falei ao início de uma questão que quero agora retomar para não gerar

confusões: sobre a análise didática, e que de nem toda análise sai um analista, embora

tomemos que toda análise é didática e que advirá um analista enquanto sujeito

advertido. Quando digo um analista, estou me referindo a um lugar e uma função que

somente será encarnada por alguém a partir do ato de autorizar-se, mas nem sempre

poderá haver este ato de autorizar-se. A esse respeito quero compartilhar com vocês

uma colocação feita por Roberto Harari em um dos seus últimos livros13

, que em minha

leitura lança alguma luz sobre este ponto. Lacan nunca fez, e não estamos fazendo, uma

distinção, uma diferença na análise de analistas e de não analistas. É a análise, tanto

para um como para outro. Mas acho importante para pensarmos que se não há essa

diferença para dizer que a análise de um não analista é uma outra análise, há alguma

diferença no sentido das consequências que virão daí. Então o que diz Harari é o

seguinte: que não tomar alguma diferença em jogo na análise de analistas, didática, e

uma outra análise, implica em que não estaríamos reconhecendo um real de forte

incidência. E porque isso? Porque Harari sustenta essa posição, colocando que não é

exatamente a mesma coisa que alguém possa se dedicar, se colocar aí em ato numa

práxis poética e dedicar-se por toda uma vida a receber e manobrar resolutivamente

transferências. Isso é uma coisa, e a outra que já é valiosa também e tem grande alcance,

é alguém que pode viver estando advertido acerca do repúdio do saber insabido e da sua

condição de falante e de poder gozar então com e do seu sinthome. Então temos uma

distinção sumamente importante quanto as consequências, e é algo para pensarmos, A

análise não é diferente, mas o desdobramento na vida do sujeito é que poderá ser.

Poderá em muitas análises não haver o ato de autorizar-se, mas a análise é a mesma,

12

LACAN, J. “A direção da cura e os princípios de seu poder”. In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1998. 13

HARARI, R. “Nota sobre la designación de psicoanalistas”. In: Palabra, violência y segregación y

otros impromptus psicanoanaliticos. Buenos Aires: Catalogos, 2007. p.296.

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isso quero deixar claro, que não estou fazendo uma diferença do trabalho analítico e

nem tampouco é essa minha leitura sobre esta afinada pontuação que tomei de Harari.

E para ir concluindo, esta última pontuação remete a duas formulações de

Lacan, vamos a elas.

Uma diz o seguinte: Uma análise não tem de ser levada longe demais.

Quando o analisante já pensa que é feliz por viver, é suficiente. Lacan diz isso em uma

de suas Conferências nos Estados Unidos em 1975. Então, ele mudou, disse outras

coisas? Sim, ele disse outras coisas. Mas será que por isso o dito anterior já não vale

mais? De maneira alguma, nossa experiência clínica confirma que isso segue sendo

válido.

Mas Lacan faz também uma outra formulação que eu gostaria de colocar em

relação com a anterior, quando ele diz que toda analise é didática e que de toda análise

advirá um analista. Penso que não há uma oposição entre essas afirmações, mas que são

duas maneiras de pensar a análise, e que essa maneira com a qual Harari sustentou a

diferença da incidência de um real, lança uma luz que permite pensarmos essas duas

posições.

Agradeço a atenção de vocês e gostaria de trocar algumas ideias a respeito

do que pude colocar e trazer para vocês hoje.

Tânia: Obrigada Inezinha. Gosto muito das tuas pontuações, muito limpas.

Todas estas peculiaridades da formação do analista e sobre o percurso de autorizar-se

analista. Tenho certeza de que todas estas coisas que nos trouxeste vão provocar muitas

questões. Então, eu passo a palavra para vocês.

C. A.: Inezinha, eu achei interessante todas as colocações, mas vou me

limitar a uma, é claro. Como disse a Tânia, trazes muitas questões, duas certamente me

chamaram a atenção: uma do testemunhar – as duas na mesma direção. Sobre o

testemunhar, tivemos o Congresso de Convergência que era sobre o tema... E eu sempre

tive certo desconforto com a palavra “testemunhar” exatamente pelo fato de que ela traz

além de uma visão religiosa, uma ideia de testemunho, também jurídica no sentido de

que “alguém sabe mais”, não sei... fica alguma coisa aí que não me parece muito

psicanalítico. Mas, no mais, é aquela ideia que inclusive é diferente do Lacan, com

relação aos lacanoamericanos e os não-americanos, os que o ouviam e os que não

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estavam lá. Quer dizer que os que estavam lá poderiam testemunhar – esta é a minha

preocupação com a palavra “testemunhar”. Embora, está bem, eu concordo que tenha

alguma coisa da palavra também. Mas a outra que mais me chama a atenção é o

“pathemático”, que também me desacomodou muito quando eu li a primeira vez o teu

trabalho sobre o tema. Mas hoje, me deu a ideia, que penso que entendi, esta é a

pergunta: de que não é que o sujeito tenha que sofrer para aprender, se não pareceria (e

este é o meu desconforto) uma ideia, ou religiosa, ou masoquista, de que tivesse valor

no próprio sofrimento. Mas não se trata disso, é que se o sujeito não pagar com seu

próprio ser, não vai mudar. Porque essa mudança, essa autorização, é um ato. E um ato

muda. Então tem um luto como tu disseste. Foi isso que me chamou atenção. Obrigado.

Queria saber se concordas.

INEZINHA: Concordo, concordo plenamente. Agradeço o comentário. E te

escuto também com uma questão que não é a primeira vez que trazes, de que muitas

questões que às vezes podemos falar fica associada com o sofrimento: ou seja, pela

palavra que nós escolhemos, a questão do sofrimento, ou da dor, ou do padecimento,

não que isto tudo não esteja, mas realmente não é essa a questão – não é este o ponto a

acentuar, e sim o pagamento com o próprio ser. Então, muito obrigada.

A.: Inicialmente gostaria de parabenizar você pelo seu trabalho, Inezinha.

Gostei bastante. Você falou muitas coisas que eu não conhecia, que são novas para mim

e me fizeram pensar muito. Especificamente ali no início da sua conferência, quando

você falou da clandestinidade. Isso em particular me trouxe algumas ideias que eu

gostaria de compartilhar aqui porque me lembrei inicialmente daquele clichê de alguém

clandestino, alguém fugindo, buscando uma nova identidade e a esconder uma velha

identidade dos outros. E que aparece nos filmes e livros. Lembrei também do final da

história do Édipo, porque de alguma maneira ele acaba seguindo para a clandestinidade,

depois de furar os olhos. Estou falando isso porque pensei nessa palavra, enquanto

significante, “clandestino”, poderia ser entendido como aquilo que não pode alcançar o

seu próprio destino e por alguma razão é obrigado a se esconder. Dessa maneira, o

psicanalista não trabalha na clandestinidade, ele trabalha com a clandestinidade de tudo

aquilo que está recalcado, rejeitado, foracluído, renegado, reprimido. E nesse sentido é

que quem busca por uma análise, imagino que busca por um outro que o auxilie a sair

desta clandestinidade das palavras que não conseguem ser ditas e dos desejos que não

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conseguem ser reconhecidos. E indo ainda mais adiante, clandestino seria aquilo que

não poderia circular diretamente na cadeia de significante... Não sei se você pensou

nesse aspecto. Gostaria de saber sua opinião.

INEZINHA: Eu exatamente escolhi para trabalhar mais a questão destes

“alguns outros”. Você já está puxando uma questão também, interessante para pensar,

do lado do analisante, de poder tirá-lo de alguma coisa que não circula, que fica fora do

comércio associativo, que não circula na cadeia significante, enfim, na sua própria vida,

de coisas que ficariam fora. Mas a minha ideia era trazer no sentido de antepor, de

contrapor na verdade esta questão do clandestino com o que se trata na formação do

analista – de estar não clandestino, mas com outros. Por quê? Porque o clandestino,

como falei no início, o clandestino daquela definição está ligado a algo que não fica

legal, que fica fora da legalidade. Inclusive, quando eu estava vendo isso, me remeteu à

situação da psicanálise na Itália, que está gravíssima atualmente, porque exatamente

está tocando neste ponto: que os analistas são obrigados a ter esta legalidade. Esta

legalidade formal, acadêmica, universitária... enfim, do Estado. E quem não está aí é

preso, não pode exercer a profissão. Então, aí está um nível bastante exagerado de como

é levado ao pé da letra isso. E é claro, a psicanálise e os psicanalistas, pelo fato de que a

psicanálise inclusive é marginal, isto não quer dizer que não se possa dar alguma

garantia da psicanálise através do trabalho ético, comprometido, da formação dos

analistas que passa pelas instituições. Isso que de alguma maneira, Lacan fala na

Proposição quando diz “a escola pode e deve garantir a formação do analista”. Então,

isto não tem nada a ver com clandestino. É exatamente por meio das instituições que

esta psicanálise no mundo se mostra, mas se mostra de uma maneira singular, ou seja,

não vai entrar neste senso comum, nesta legalidade com todos os títulos...

C.: Quero te cumprimentar Inezinha pela possibilidade de te ouvir mais uma

vez e quando sublinho o mais uma vez é porque de fato já foram algumas que te ouvi. E

sempre descortina coisas para mim muito importantes. Eu me interesso muito por este

tema. Quero pegar carona na fala do André porque foi exatamente ali que me enganchei,

também: no título que achei muito interessante e principalmente a relação que tu fazes

da psicanálise marginal. Então, eu queria ver o que tu pensas em relação à Instituição no

que diz respeito ao ingresso, à passagem e à permanência do analista – que eu vejo

como coisas bem distintas. E, com o tempo que tenho de Instituição, agora poder olhar

para isso. E tu, que estás há muito mais tempo que eu poder ver esse processo de

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ingresso, de como algumas pessoas efetivamente ingressam, algumas ingressam e

passam – e esta passagem, é claro que é no tempo de cada um - e algumas, na realidade,

é chegado o momento que permanecem ou que saem da instituição. Pensar isto na ótica

do analista é algo que se faz, penso que com mais frequência, porque esbarra

evidentemente nas questões da castração, no quão difícil é estar em uma Instituição. E

neste sentido, me lembro de quando nós fazíamos o vídeo dos 25 anos da Maiêutica, de

uma fala do Yuri que foi o que eu ouvi até hoje de mais emblemático, quando ele dizia

ali no vídeo que “era simplesmente insuportável, ou horrível”, alguma coisa assim. Foi

uma fala que para mim, pessoalmente, destoou muito das outras à medida que se busca

na Instituição o amparo, se busca na Instituição uma referência, se busca tudo aquilo

que dê uma certa sustentação para que o sujeito siga. Pois bem: então, esta questão com

relação às dificuldades do analista já se sabe que passa por aí, pela escuta que ele faz

frente à castração, e que isso na Instituição fica efetivamente muito presente. Mas eu

gostaria de te ouvir em relação à Instituição. O que no teu ponto de vista pode se

constituir como “facilitadores” ou “dificultadores” para que o sujeito permaneça na

Instituição, para que se engaje, enfim, que esteja dentro, como tu dizias em um dado

momento da tua fala.

INEZINHA: Bom... muitas coisas! Poderia começar com algo, que não

deixa de ser simples, porque tudo aí é bastante complexo, não é mesmo?! Primeiro, da

formação permanente – isso que a Instituição propõe. E, eu dizia “algo simples”, porque

trata-se do seguinte: entra quem quer. Permanece quem pode. Então, por que isso?

Parece brutal? Simples e brutal também ao mesmo tempo. Mas não deixa de ser assim,

porque há que suportar, como eu dizia, esta permanência, entre os mais amigos, os

menos amigos, ou seja, entre aqueles que o analista se põe à prova, se prova na

Instituição.... Então, é um lugar que não é fácil nem para a própria Instituição, e nem

para os analistas. Mas é um lugar necessário. E eu diria que mesmo, não é que tenha que

ser com dor – como dizia o Carlos Augusto, que tudo tem que ser tão difícil e com dor,

também não é assim. Mas tem sua dificuldade. E temos que estar atentos a elas. Então

eu te diria a princípio isso: que entra quem quer e permanece quem pode. O pode está

ligado à questão do desejo. Então, a instituição psicanalítica, sem dúvida tem uma

responsabilidade de poder escutar, tem uma função analista dentro da instituição

também, obviamente, todos os analistas que têm posições na instituição, tem uma

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escuta, uma função analista. E esta escuta eu diria que é essencialmente poder escutar o

desejo daqueles que estão e de poder viabilizar, além de contemplar, de poder abrir os

caminhos para que este desejo se coloque e que cada um possa ir se metendo mais, à

medida que efetivamente suporte – para permanecer. Porque mais do que isso, às vezes

surgem demandas “ah, porque tem que ter uma atividade tal, por isso não sei se fico”,

ou “eu gostaria de tal coisa”. Há uma demanda disso, uma demanda que como toda

demanda, é de outra coisa. Então, a instituição iria atrás de instituir este espaço, esta

atividade e o sujeito não fica, porque não é isso. Então, a instituição tem que estar aberta

sim, para poder escutar e viabilizar esses diferentes espaços, este trânsito, inclusive

entre as diferentes categorias que nós temos hoje, que é de participante, adjunto e

membro e ir instituindo, ir abrindo, ir gerando esta possibilidade, mas, para aqueles que

têm o desejo e as condições para permanecer, se não, realmente vão embora e terão que

ir. Um dia, ou outro, vão. Acho que é isso. Me ocorre esta questão fundamentalmente.

Poder estar aí possibilitando o trabalho, acompanhando o trabalho, e gerando estes

espaços com respeito e ética, obviamente, acho que isso é uma posição institucional

fundamental, se não, não há como o analista permanecer. E, especialmente, ainda

acompanhando o que eu estava dizendo, acompanhando a singularidade do percurso de

cada um, do tempo de cada um, e inclusive do tempo real como por exemplo ocorre

com a categoria de participante, neste período de três anos. Bom, aí tem um término,

mas falar isto é dizer do tempo de cada um, de desejo de permanecer, e de passar a

adjunto, e ainda de permanecer o tempo que seja como adjunto... A instituição tem que

permitir estas diferenças, tem que trabalhar com estas diferenças e com esta posição

singular com que cada um pode se articular ao seu desejo de psicanálise, e de

psicanalista, articulando aí seu trabalho à instituição.

C.: Inezinha, obrigado pela tua fala. Acho que inicias muito bem as Jornadas

porque abordou vários aspectos, tu passas por quase todos os temas que vamos nos

ocupar. Os colegas estão trabalhando muito convocados pelo título da tua Conferência,

eu vou avançar para o final, para falar das consequências que agora volta na tua resposta

para Cleia: “Há que ter além do desejo algumas condições, enfim também para o

analisante chegar a analista. E nem sempre isto é dado, enfim.” Então eu lembrei neste

ponto, e queria ver, porque dá sequencia à tua fala ao que a gente vem debatendo nas

questões da clínica, das condições do sujeito entrar em análise. Levantando quais as

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condições então de um sujeito analisante de tornar-se, de cometer este ato de autorizar-

se. Lembrei de um filme que assistimos como uma atividade do cartel, o título do cartel

é justamente “a formação do analista”. Vimos esse filme que passou há pouco também

no cinema aqui na cidade, que é “Um método perigoso”- chamando assim a psicanálise.

E tem aquele momento inicial da psicanálise e aquela relação conturbada do Freud e do

Jung, claro com um terceiro fator, a amante do Jung, enfim... mas o filme foi muito feliz

numa série de coisas que retratou, achei bem pertinente, bem biográfico. Freud está

muito bem. E tem uma carta, que se não me engano, estou me lembrando da carta pelo

filme, então a referência da carta é a que o filme trouxe, que eu acho que é até a última

que o Freud encaminha, que inclusive encerra com “daqui para frente é o silêncio”, bem

emblemática também a carta. E nesta carta Freud diz que, respondendo a algumas

acusações do Jung, há que se ser um pouco neurótico para poder trabalhar como

analista. Ele ainda diz que o Jung fica se colocando numa posição divinamente, de

endeusamento, batendo no peito e se declarando normal. Enfim, ele descreve um pouco

disso do Jung. E lembrei agora disso então, de que parece que tem uma quantidade,

enfim, ou uma certa predominância da neurose como condição para vir ocupar este

lugar. Se isto tem a ver com a possibilidade de fazer transferência para ocupar o lugar

de analista.

INEZINHA: Bom, sem dúvida a condição prévia é esta porque é uma

estrutura, ou seja, a condição neurótica que possibilita a atribuição do sujeito suposto ao

saber. Só que no que toca a posição do analista, aquele que encarna este lugar, digamos

que ainda é uma outra volta, porque senão poderíamos pensar, nessa linha que estás

dizendo, que acreditaríamos que deixaríamos de ser neuróticos. Bom, e que estrutura

seria então se não somos neuróticos? Continuamos sendo neuróticos! Acontece que,

vamos dizer, um neurótico, para sustentar esse lugar de sujeito suposto ao saber, teve

que fazer uma volta, ou seja, transformar aquilo que era sintoma em sinthome também.

Ou seja, aí podemos ir num largo espectro, numa volta grande, que não seria o

momento, mas vou apenas anunciar: a questão do analista sintoma para o analista

sinthome. Se ficarmos só pensando nessa condição neurótica, o analista colocaria seus

sintomas sobre o analisante. E aí, vejam a condição absurda que seria esta. Então, sem

dúvida, como estrutura, seria a neurose sim, mas retrabalhada, ou seja, já tendo feito

este corte e uma nova amarração. É uma outra amarração que possibilita a este

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neurótico ser menos neurótico, se é que podemos dizer assim. E, poder trabalhar com

mais leveza, poder trabalhar efetivamente, sustentando as transferências. É o que me

ocorre neste momento a respeito dessa questão, especialmente porque vai entrar em

cena aí o sinthome - e este vai ser o tema do meu próximo seminário, para o qual já os

convido.

M.: Inezinha, como todos, sou obrigado também a te parabenizar pela fala.

E começo pelo momento onde minha atenção se prendeu muito na tua fala, quando

falavas justamente da não clandestinidade do ato. Porque sempre para mim, quando se

fala da psicanálise marginal, tinha essa coisa do silêncio. Do marginal como aquilo que

fica oculto de alguma maneira, como o Carlos Augusto bem no início da nossa

formação disse: “a psicanálise é o black”. O que fica ali: marginal mesmo. Aí, tu trazes

a ideia contrária, trazendo pela noção do clandestino aquilo que é evitar o conhecimento

público, e aí, relacionas o ato analítico como uma coisa que não é isso. Então, logo

encaixas a questão do testemunho, que, diferentemente do que o Tuto trazia, me engato

nessa palavra de uma outra maneira, porque entendo o testemunho justamente como a

fala que acontece depois que alguma coisa grande, brutal, violenta acontece. E

independente do que seja ou do que está sendo testemunhado, o conteúdo básico é

sempre o mesmo: não se pode ser mais o mesmo. Isso que é o conteúdo do testemunho.

E aí, tu acrescentaste a essa minha noção, que já me ajudou bastante a te acompanhar, a

questão do “pathemático”, que, realmente, inclui esta questão do padecer: da paixão

como padecimento. Isso que também consegue abarcar o “além do sofrimento”. Então,

gostei muito de ver como acionaste estes vetores em direções contrárias e fazendo com

que a questão explodisse, aumentasse. E isso enriqueceu bastante o meu entendimento

sobre isso. Agora, quanto à questão mesmo que queria tratar do testemunho, então o que

quero perguntar é assim: o autorizar-se não é clandestino porque é o ato que dá

testemunho da experiência da psicanálise?! É isso que trazes, pelo que entendi. E é isso

que quero te perguntar aqui justamente. E também quero só mencionar para que possas

usar também: se a confusão, ou pelo menos o que atrapalha na ideia do passe seria

justamente essa noção que está abarcada naquela questão do testemunho que te

mencionei da fala, que quando se menciona o passe deve haver uma fala que dê conta

dessa mudança subjetiva. Mas o que entendi pela tua fala é que o ato, mesmo sem

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palavras, num pronunciamento assim organizado, como num passe, dá conta desse

testemunho.

INEZINHA: Acho que nesse momento vou poder te dizer poucas coisas.

Sobre o testemunhar, acho que é necessário, como tu conseguiste trazer também, este

outro âmbito do testemunhar – que não é o âmbito legal, jurídico, que tem uma

testemunha, inclusive, geralmente treinada pelo advogado para dizer aquilo que tem que

dizer, enfim... ou que ela estava presente, ou que estava no momento... Isso que não tem

nada a ver com o testemunho do qual estamos falando aqui, dessa experiência na qual

nós somos, fomos afetados diretamente nas nossas análises. Então, esta é uma questão

que limpa um pouco a área para podermos trabalhar com o que é testemunhar. E

testemunhar isso na própria instituição, ou num outro âmbito, inclusive fora, mas vamos

nos ater à instituição, às questões da clínica, ou seja, de como cada analista pode operar

com o seu desejo, como ele processa esta teoria na sua própria clínica. Ou seja, como

ele discursivamente dá conta disso, o que é que ele traz. Neste sentido, nós passamos

muitas vezes, se passa muitas vezes. Não é “um passe”, neste sentido, são vários

“passar”. Inclusive, se pensamos na formação permanente, inclusive as propostas, de

designação de analistas, por exemplo, que poderia vir no lugar disso que foi colocado

por Lacan como passe e que fracassou. Fracassou porque ele pretendia uma questão de

investigação, tinha esse objetivo de investigar exatamente o que se passava nesta

passagem e isto não produziu o que ele esperava. E quanto aos analistas que fizeram o

passe, aí não sei te dizer muito, mas não é essa a proposta. O fato é que o passe

fracassou e não é a nossa proposta trabalhar com o passe, mas sim com isso que nesses

vários “passar”, vai se passando, vai dando, digamos, esta sustentação da formação

permanente porque isto, mesmo que a instituição garanta a formação dos analistas que

ali fazem a sua formação, isto não quer dizer uma garantia eterna, permanente. Porque

esses lugares é o próprio analista, o próprio sujeito que vai fazendo e vai transitando e

não são lugares eternos... portanto com as designações temos uma outra proposta

distinta o passe para dizer que ali há um analista reconhecido pela instituição como tal,

não posso entrar agora nisso. Obrigada pela questão.

T.: Agora sim vocês vão achar que é trapaça, porque eu vou falar justamente

do que ele disse: sobre a questão do testemunho exatamente. E eu me lembrei (e

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certamente, tu conheces isso - porque te ocorreu trazer a questão do testemunho); eu me

lembrei de como o Harari coloca isso: ele coloca a derivação da palavra testemunho em

testes, testículos. Então, esta coisa, do testemunho, como ele dizia, realmente tem que

ter colhões. Isso é primeira leitura. Segunda leitura: tem que ver sim, porque é de uma

coisa terrível que aconteceu e que tem que passar na palavra e isso o cara faz com

esforço. Passa a viver com. Esta é a primeira leitura: então, tem que ter colhões! Mas

principalmente, que tem que ver com os fundamentos do sujeito. Esta é a leitura

principal, que eu acho, que faz Harari: tem que ver com os fundamentos do sujeito.

Porque o sujeito tem que se fundar autre, tem que se fundar outro a partir da

experiência, do testemunho da experiência. Então, me lembrei disso e achei importante

trazer porque a gente fica se debatendo e acho que o Harari consegue ter sempre esta

precisão quando ele trata um termo como um tema. E a coisa do “sofrer, padecer, com

paixão, principalmente”, é, como nós falamos na vida cotidiana, do gozo. Então, não

pode ser mais psicanalítico que isso.

A.: Inezinha, das várias coisas que você colocou, uma coisa que me

convocou, exatamente a palavra, gostaria de falar sobre essa parte final em que você

tenta pegar a partir de um texto do Harari essa ideia de que um analista, ou alguém em

formação, numa análise, se teria alguma coisa diferente. Eu não conheço o texto, então

gostaria de ver essa questão, porque Lacan faz uma crítica à IPA que propõe uma

análise terapêutica didática e que ele vai colocar que na verdade toda a análise tem

como efeito, independente do destino clínico, produzir um analista. Inclusive você falou

isso quando você disse que a análise é uma experiência imprevisível, você disse que a

análise de transferência é trabalhar para evacuar o sujeito suposto ao saber, o

atravessamento do fantasma, toda a ideia de pensar que esse gozo, esse ter, ou que a

crença que está ligada a um sujeito suposto ao saber, ou seja, de que há relação sexual -

isso incidiria para todos que fazem uma análise. Neste sentido, ela seria uma só. E aí

você fala de um efeito, e eu não entendi... e pensei o seguinte: que depois como efeito

disso aí, se poderia pensar que aquela análise chegou a produzir algo diferente. Fiquei

pensando nisso, porque a rigor se ela é imprevisível, se a rigor você não sabe onde ela

vai dar, a rigor você pensa um analista, em formação, às vezes numa análise depois

desiste de se tornar analista; mas uma outra que nem estava pensando nisso, em algum

momento, esse desejo nasce. Enfim, esse final me fez pensar nisso e me aguçou a

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vontade de ler este texto para saber como é que ele pensa isso. Já que você falou, me

parece como um efeito que retornaria para pensar algum tipo de diferença que ocorreu.

Não sei se foi isso que você quis colocar.

INEZINHA: Bom, na verdade, é um texto em que ele trabalha exatamente a

questão das designações do analista. Está no livro Palabra, violência y segregação y

otros impromptus psicoanalíticos. Acontece que esta questão do efeito e mais ainda de

um imprevisível nos desacomoda um pouco e por isso é necessário falar mais disso: do

que efetivamente pode sair de uma análise. Esta é toda a questão. Inclusive, fiz menção

a duas formulações do Lacan: uma quando ele diz que uma análise não deve ser levada

longe demais – quando o analisante sente que é um pouco feliz, está bom, já é

suficiente. Então, o que eu procurava, tomando esse texto do Harari era trazer, que isto

para um analista não basta. Sem dúvida, estamos de acordo que não podemos saber de

antemão se aí vai estar um analista, ou não. Mas, se tem demanda de análise, o sujeito

arruma um pouco a vida, se sente feliz, enfim, tudo isso que tu falaste, sem dúvida, é

para todos que se analisam. Por isso eu disse: a análise é uma só. Podemos dizer que o

que vai efetivamente traçar alguma diferenciação, é um real que tem uma incidência

forte. E é diferente, na medida inclusive que, tomando mais uma vez o que o Carlos

Augusto trouxe, de que mais analista se pode ser, quanto mais analisante também se é.

E, tem análises que não precisam chegar tão longe. Então, concordo plenamente

contigo: às vezes surge esse desejo do analista em uma análise e isso jamais se

imaginou, como também, alguém que vem pensando que quer ser analista e isso cai por

terra, exatamente como fruto dessa análise. Realmente é imprevisível, mas eu tomei isso

porque me faz pensar nessa colocação que o Lacan diz que tem análises que talvez não

precisem ser levadas tão longe. E aí, tem uma série de questões da própria clínica em

que cada um tem sua experiência. Bem, fundamentalmente é isso: para talvez

diferenciar que quando ele diz que sai um analista, sai um analista como sujeito

advertido, mas é isto! E que para o analista, efetivamente analista, que vai se propor a

ouvir outros, tem todo esse outro passo, mais exigido, vamos dizer assim. Inclusive está

também a questão das designações. Isto não está para o outro analisante que pode sentir-

se feliz e seguir sua vida. Acho que é num momento posterior talvez que podemos essa

diferença em Lacan.

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A.: ... isso que você disse que o Lacan disse que não basta só estar bem, ou

só a felicidade. Quem quer ser analista precisa ir, tem que ir mais além. Acho que aí se

articula a questão (Inezinha: exatamente!). Acho que agora ficou claro para mim, antes

não estava: isso de que quando tudo está bem, o sujeito quer ser analista e ele tem que

dar um passo a mais, neste ponto.

C. A.: Rapidamente, duas coisas que ficaram articuladas com esta questão

que traz o Alberto, sobre o testemunho de novo, mas é que me pareceu interessante: é

que o testemunho em psicanálise, na experiência do inconsciente, tem que sair fora da

intencionalidade de testemunhar, porque é exatamente o que ele traz, o Alberto, e que tu

concordas pelo que me parece: que se for para dar o testemunho, aí não vai, não tem

testemunho possível. O testemunho tem que sair do lugar, fora extraterritorial, como

sintoma. Não pode ser assim: “vem e me dá um testemunho que aconteceu na tua

análise” - que era a proposta do passe e que fracassou. Acho que tem a ver com a

questão anterior, na mesma estrutura, porque o que aparece aí a respeito da análise, é

que a diferença também está na intencionalidade. E é a intencionalidade que acaba

gerando também um outro ponto que me parece fundamental que é a articulação que dá

lugar à figura escolhida para a Jornada: aí tem quatro, enquanto na análise somente tem

um. Claro, porque além da análise pessoal, o sujeito leva aquilo para um controle, que o

estimula de outro modo, ele ouve pacientes, ele estuda... então ele é, no mínimo

bombardeado por outros lugares também.

INEZINHA: Isso. Exatamente.

TANIA: Obrigada pela participação de todos. Obrigada também à Inezinha,

mais uma vez e à Comissão Organizadora, que possibilitou estarmos aqui reunidos. Mas

o agradecimento formal à Comissão Organizadora será amanhã. Mas, sem dúvida,

temos muito a agradecer à comissão, porque está impecável a organização. Mas

amanhã, falaremos novamente. Agradeço mais uma vez à Inezinha e a participação

porque realmente a riqueza de tudo que ela trouxe possibilitou esse debate tão

interessante. Convido vocês agora a passarem ao salão ao lado onde teremos um

coquetel.

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SABER FAZER: INSTITUIÇÃO DO ANALISTA14

Carlos Augusto M. Remor15

O homem contemporâneo se tornou pouco hábil para abordar os grandes

temas. Prefere resolver as coisas em termos de conduta, adaptação moral de

grupo e otras bobaginhas. Daí a gravidade do problema que se coloca na

formação humana do analista. - Lacan [Sem.1]

É útil ocupar-se da paranoia. Por ingrato e árido que seja, concerne a

purificação, elaboração e exercício das noções freudianas, e por isso mesmo

concerne a nossa formação para a análise. Lacan [Sem.1]

A relação do analista com seu estatuto está ligada ao que concerne ao sujeito

enquanto interessado na formação do Eu Ideal encarnado em alguma identificação.

Temos aí o mais imaginário da formação de um analista interessado em seu ser.

Noutra vertente, implica em um saber-fazer que se mostra através do que é

colocado em ato pelo fazer do analista. Isso aparece, em geral, pelo que o analista fala,

pois não há outra mostração possível, já que a visualização é de outra episteme, que não

a psicanalítica. Numa análise todo o fazer do analista pretende alcançar a eficácia do

ato.

O tema que trata da questão de ser ou não ser analista, de quem pode dizer-

se analista, ou dizer que alguém é analista não tem outro lugar que a Instituição

Psicanalítica.

No cotidiano isso aparece na chamada indicação que inicia mais comumente

na Instituição, mas sabemos que uma indicação não legitima nem garante um analista,

ela mais depende da transferência, que podemos referia aqui, como em extensão.

Contudo a chamada formação é marca da psicanálise em intensão, ou seja, se produz no

divã.

Se o analista se faz no divã, isso se dá no âmbito privado. Assim, como

saber do que acontece na sua prática?

Importa-nos agora, a questão de como o analista pode

comunicar/transmitir(?) sobre o que acontece na sua prática. Podemos pensar esta, como

14

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. “AuTOrizar-

se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012.

15 Psicanalista, membro do Conselho Diretor da Maiêutica Florianópolis-Instituição Psicanalítica.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

34

uma das funções da Instituição, como diz Harari, “lugar para sustentar liames

heterogêneos múltiplos e lugares diferenciais”16

– de psicanálise em extensão. Extensão

do que era da ordem de um privado, agora dirigido para um determinado público,

conforme os limites da Instituição.

Para um analista, falar de psicanálise é dar conta de sua clínica, é uma

alternância entre a psicanálise em extensão e em intensão.

A Instituição encontra uma de suas razões de ser na psicanálise em extensão,

que permite a interlocução e a transferência de trabalho. Freud criticou, com seu

clássico aforismo sobre o “esplêndido isolamento”,17

o modo exclusivo de obter

reconhecimento através dos analisantes – posição com a qual se histeriza e desacredita

seus pares.

É comum a expressão de que se houve análise, ela foi didática, ou seja,

provocou uma mudança de posicionamento subjetivo, de analisante para analista. Temos

aí um paradoxo, pois quanto mais se entra em análise mais se pode chegar a ser analista.

Assim, há uma aproximação entre a condição de analisante e de analista, um continuum

entre os lugares e não somente uma dicotomia de incompatibilidade, expressa na

condição de terminar a análise para, só a partir daí, poder ser analista.

A chamada “formação” do analista é que pode, segundo Lacan, dar “provas

de suficientes garantias18

” para dizer que alguém é analista, lembrando, claro, que

formação não é adestramento. Estas preocupações certamente habitaram os

pensamentos de Freud por ocasião da fundação da IPA. A pertinência à Instituição

poderia legitimar, assim, o fato de ser psicanalista. Embora saibamos que se possa ser

membro de Instituição sem ser analista.

O termo ‘garantia’ é usado aqui, com a conotação de remissão, dado que

refere o outro, como quem afiança uma condição, responsabilidade, autenticidade,

através da remissão, na medida em que o outro pode co-responder.

O próprio sujeito não pode dar garantias por si mesmo nem de si mesmo –

16

HARARI, R. Formações do Inconsciente, formações do Analista. Florianópolis: Maiêutica

Florianópolis–Instituição Psicanalítica. Caderno nº 3, dez. 1999. p. 14.

17 FREUD, S. “Observações e exemplos da prática analítica” [1913]. In: ESB. OC. Vol.XIII. Rio de

Janeiro: Imago, 1976. p. 230.

18 LACAN, J. “Aula 17 de 23 abr. 1969: Pensamento censura” In: Seminário 16: De um Outro ao outro.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 258.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

35

auto-referenciais – para isso precisa de uma terceira instância – a Instituição. Um

significante não se define por si só, a remissão presentifica a insuficiência e a

dependência, a questão relacional mostra a castração – há aí uma falta. Assim, a

Instituição é também a instituição da castração e, com ela, a relação aos quais e para

quem há possibilidades de trocas e de críticas sustentáveis pelas transferências de

trabalho.

Contudo, mesmo numa Instituição, o eu é sempre auto-complacente,

permite o chamado efeito de massa, de endogamia e de rejeição às diferenças, motivos

pelo quais, Convergência propõe interpor algo entre as Instituições, para que não façam,

no âmbito interno, o que seria equivalente ao “esplêndido isolamento” no plano

individual.

Evitando o isolamento, interessa como se dá a passagem para a instituição,

de elementos que são privados e singulares. Essa passagem dá lugar para ensinar,

transmitir a experiência, obter ou dar garantias/indicações de que alguém seja, portanto,

um analista.

A mesma questão deriva para o ‘como’ os psicanalistas falam da sua clínica,

entre eles, na Instituição. Por exemplo, através de trabalhos escritos, processamento da

teoria, ou procurando aproximar-se da clínica em intensão?

Um escrito tem mais o valor racional de erudição, que tem seu lugar, mas

não leva em conta o ensino analítico das dúvidas, atos-falhos, incertezas, além de

excluir a transferência, o corpo, as vozes.

Alguns parâmetros da psicanálise em intensão podem encontrar lugar em

favor das atividades institucionais. Pode-se falar sem preparação prévia sobre um

analisante, sem que seja uma associação livre, como é proposta na análise. A ordem

cronológica do discurso fica perdida, diferentemente de um escrito em que isso está

previamente dado e organiza o texto. São aspectos que procuram minimizar o que é

recalcante da presença do analista e da possibilidade de laços baseados na transferência

de trabalho.

Estas atividades institucionais se sustentam em algumas categorias próprias

da análise, mas não em todas, há também diferenças. Não é o que se passa na clínica.

Nelas, se direciona o discurso para o caso em questão, não se pode demandar

interpretações, não se fala da sua própria neurose, não se faz relato de seus fantasmas

pessoais. Temos então, um percurso por onde há um dentro-fora, uma banda de

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

36

Möebius, cujos lados estão entre o trabalho próprio da análise em intensão e o trabalho

puramente intelectual. É falar num trabalho intelectual de algo que é da ordem do saber

insabido, ou, falar de como falamos, psicanalisar como psicanalisamos? – coisa comum

no trabalho do psicanalista. Dessa forma, mostramos o trabalho do lugar de acadêmicos

ou de analistas? – Do que se pode perguntar: o que é ser psicanalista numa Instituição?,

ou, como podemos ser psicanalistas na Instituição Psicanalítica? Perguntas que indicam

o quanto da psicanálise possa estar na Instituição, já que de outro modo poderíamos

estar incrementando, na Instituição, o recalque da psicanálise, transformando-a numa

disciplina universitária, reduzindo a clínica a apenas um ensino teórico e ao escrito

“inteligente” – o que se vê hoje ser feito com a psicanálise, nas universidades.

Na Maiêutica Florianópolis–Instituição Psicanalítica, procuramos fazer

atividades nesta direção. Uma delas é “apresentação clínica”, outra a “fábrica do caso”,

nas quais a apresentação de um caso clínico, sem apoio escrito, é dirigida a um

psicanalista da Instituição e, frente a um determinado público que, ao final, realiza um

debate, sem a fala de quem apresentou o caso.

Nesta Jornada, falamos de como falamos da clínica. Esta diferença

caracteriza o lugar de fala, lugar de um saber ou lugar do saber inconsciente, pois a

experiência do inconsciente só pode ser do saber insabido, que nos remete à Lacan, com

o seu ensino sobre o savoir-y-faire inventivo.

Por fim, pela remissão, tanto ao outro analista quanto à outra instituição,

podemos pensar a questão em termos de uma certa impossibilidade da transmissão.

Lacan abordou esta questão do transmissível pela via do paradoxo, do

“terminável e interminável” da análise, freudiano; da não identidade como afirmação

narcísica do eu que crê no um unificante da totalidade20

; da não relação sexual; do fato

de que uma transmissão, a rigor, daria lugar à reprodução do mesmo, sem possibilidade

de um significante novo, um savoir-y-faire inventivo. Assim, afirma que “a psicanálise é

intransmissível, que deve ser inventada a cada analisante21

”.

20

LACAN, J. Seminário 9: A Identificação [1961-62]. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife,

2003. Publicação para circulação interna, p.170.

21 LACAN, J. Congresso de ... Lettres de l’École, 1979, nº 25, vol II, pp. 219 e 220.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

37

ALGUNS CAMINHOS DA FORMAÇÃO22

Elisa Lempek Koetz23

22

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 23

Psicanalista, Adjunta de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

38

Quando fui convidada para compor esta mesa e escrever um trabalho que falasse

sobre a análise e a Instituição pensei logo na bibliografia que poderia utilizar. Mas logo

me deparei com a ideia de que a teoria já faz parte do nosso processo de formação,

assim como a análise pessoal e a análise de controle, formando o tripé necessário para

nossa autorização enquanto psicanalistas. Tripé este acompanhado de um mais-um, ou

seja, a Instituição, sendo esta a ideia de Lacan quando diz que o sujeito se autoriza por

si mesmo e com alguns outros24

.

Dito isto, me senti confortável com a ideia de escrever não algo que fosse

completamente teórico, mas também um pouco da minha vivência nesse processo de

autorizar-se analista, sobretudo, sabendo que muitos também estão nesta caminhada,

cada um com sua história. Isso que a primeira vista parece um depoimento, que parece

da ordem prática já é uma teorização, pois se trata de um percurso de psicanálise, do

meu percurso de formação. Não há diferença entre uma coisa e outra. A prática

psicanalítica, quando é falada passa pela ordem da simbolização, o que a faz ter um

caráter teórico. A experiência da psicanálise deixada em mim já é uma teorização. O

lugar de onde falo é o lugar de uma psicanálise possível em mim. Minha psicanálise é

teórica por si só, são os reflexos da minha experiência.

Sendo assim, começo contando para vocês que iniciei minha análise antes

mesmo de ser participante da Maiêutica. Era meio de ano, e como teria que esperar até o

início do ano seguinte para iniciar minha formação, dei início à minha análise pessoal e

passei a frequentar as atividades abertas propostas pela Instituição. Durante as

entrevistas que antecederam o início da análise me sentia numa situação de terapia, algo

que já era conhecido por mim. Foi relativamente fácil passar por isso. Mentira! Não tem

nada de fácil em ter que falar de si mesmo e, ao mesmo tempo, enfrentar o olhar

daquele que está a nossa frente: o analista. Mesmo que seja um olhar absolutamente

neutro. Nessas horas a fantasia de que em algum momento ele me daria qualquer sinal

de reprovação ao que eu falasse, povoavam minha cabeça.

E o divã? Eu olhava para aquele divã como que a um desconhecido, tentando

decifrar qual o poder que ali se instalava. Quais seriam os efeitos daquele belo móvel na

vida de uma pessoa. Ainda não imaginava que o poder não estava no divã, mas nos

efeitos da análise. Trazer para a consciência aquilo que está inconsciente e fazer do

24

LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 para o analista da escola” In: Revista Scilicet,, nº1,

Seuil, Paris, 1968.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

39

sintoma não mais um gozo podre, mas algo de produtivo, pois é no divã que a coisa se

dá dando condições para que se dê fora também.

Pois bem, depois de algumas entrevistas, cheguei ao consultório do analista e

antes mesmo de sentar fui orientada a deitar no tal do divã. Mas eu não estava preparada

para isso! Bom, mas pelo menos tive uma certeza: de que não sou psicótica!

Diferentemente de Freud que, dentre outras razões, passou a fazer uso do divã

por não suportar o olhar do outro, eu me perguntava onde estava aquele sujeito que me

olhava enquanto eu falava. Eu não o via mais, apenas ouvia sua voz e a única coisa que

tinha ao alcance dos meus olhos era uma parede branca. Quando eu tinha os seus olhos

de frente para os meus pelo menos eu podia tentar “adivinhar” o que ele estaria

pensando a respeito das coisas que eu dizia. Confesso que por vezes deixei de falar algo

temendo qualquer movimento em seu rosto!

Mas agora que eu estava lá, deitada, entregue aos meus pensamentos, só me

restava uma coisa: falar! Falar livremente. “Dizer o que vem à cabeça”, como diria

Freud. A tal da associação livre que é condição indispensável para as formações do

inconsciente, pois, uma vez que pensar é uma operação do eu, por conseguinte, é

incompatível com o sujeito do inconsciente. Fernando Pessoa resume isso em poucas

palavras: "Eu vejo-me e estou sem mim, conheço-me e não sou eu (...). Começo a

conhecer-me. Não existo25

”. Eu me perguntava mentalmente se conseguiria fazer isso. E

se eu encontrar em mim algo que não quero? E se eu descobrir em mim sofrimentos que

não quero? A única coisa que eu sabia é que não seria tarefa fácil fazer análise!

Foi um período difícil até me acostumar com esse formato horizontal de

tratamento. Meu discurso era pré-elaborado, pois não entendia bem como era falar

livremente. E meu temor por qualquer movimento no rosto do analista perante as

minhas falas se mantinha, só que dessa vez era pior, pois eu não podia mais vê-lo. Por

vezes tive vontade de erguer meu tronco e me virar a ponto de poder enxergá-lo e

procurar algum sinal de alteração facial. Mas a boa etiqueta diz que não se faz isso em

análise.

Aos poucos, o processo de análise foi se tornando mais compreensível, mas não

menos angustiante, pois lá é o lugar onde eu levo minhas tristezas, minhas dificuldades,

minhas angústias, meus medos, meus “pecados”, é onde levo minha parte mais frágil.

Mas também é lá que levo minhas alegrias, minhas conquistas, meus amores. É no divã

25

MOISÉS, L. P. Fernando Pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1982. p. 79.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

40

que posso elaborar uma compreensão de mim mesma. É onde caio em lágrimas, dou

risadas ou, até mesmo, me silencio diante dos meus pensamentos.

Conforme Harari, “um analista não se produz senão deitado no divã do seu

analista26

”. Lacan diz que o sujeito passa de uma posição subjetiva de analisante a

analista, advertido dos efeitos da linguagem. E com isso afirma que o sujeito se autoriza

por si mesmo, tendo em vista as formações do inconsciente resultantes do processo de

análise. No entanto, reformula sua afirmação dizendo que o analista se autoriza por si

mesmo e por alguns outros, dando assim um lugar de importância à Instituição, onde o

analista terá a oportunidade de estar em relação permanente com outros analistas.

Inicio no ano seguinte meu curso de formação, cercada por uma grande

quantidade de informações das quais nunca tinha ouvido falar. Não sabia se eu daria

conta disso, mas o tempo iria me dizer...

Pensando em me envolver mais com a Psicanálise, resolvi fazer parte de um

grupo de estudos que justo naquele ano estudaria o Seminário 16 de Lacan. Participei de

alguns encontros, mas acabei desistindo, pois tudo ainda era muito difícil. E assim se

passou meu primeiro ano de formação: aulas, alguns seminários e minha análise

pessoal, cheia de falas toscas, profundas, alegres, tristes. Nesse momento já não pensava

na existência de alguma alteração facial do analista, mas no que ele poderia estar

fazendo enquanto eu falava. Mas considerando que a atenção do analista deve ser

flutuante, ele certamente estaria atento ao que eu dizia.

Lacan em sua frase “penso onde não sou, logo, sou onde não penso27

” descreve,

no meu entender, o que é ser analista. É nesse lugar do “não penso” que perdura a

atenção flutuante, a comunicação entre inconscientes, onde se dá a transmissão da

Psicanálise. É o lugar onde o “Isso fala”. O sujeito que se mantém em uma posição de

saber, dificilmente conseguirá manter-se analista. Quanto mais o analisante falar sem

pensar e quanto mais associar, mais o sujeito do inconsciente poderá aparecer. E o

mesmo é o que se espera do analista, que seja convocado a não pensar, a não querer

saber e entender tudo, mas sim, concentrar-se na escuta, permitindo que a atenção

flutue. Só há analista onde há o inconsciente.

26

HARARI, R. “Formações do inconsciente, formações do analista” In: Psicanalista, o que é isso? Rio

de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p.128.

27 LACAN, J. A instância da letra no inconsciente. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.521.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

41

A resistência em relação à análise era um meio de postergar o encontro que eu

teria comigo mesma, que viria mais cedo ou mais tarde. E, por algum tempo passei a

fazer análise de forma mais espaçada, pensando que, dessa maneira eu estaria protegida.

Mas isso era o que eu achava...

Mais uma vez me enganei, pois mesmo não mantendo a frequência semanal da

análise, meu inconsciente conseguiu encontrar um caminho e se manifestar através de

significantes e, assim, foi tomando forma na minha vida. E como a vida não é feita de

flores, como qualquer outra pessoa, tive momentos difíceis. O efeito disso foi que

retomei minha frequência semanal ao consultório do analista.

Paralelamente, na Instituição, movimentos interessantes também começavam a

acontecer. Já na metade do segundo ano de formação, me senti convocada, pelo meu

desejo e transferência com a Psicanálise, a repensar meu lugar enquanto participante na

Maiêutica. Passei a me dedicar aos estudos, às leituras e a frequentar mais as atividades

propostas. Solicitei minha passagem de participante à adjunta da Instituição e meu

envolvimento com a Psicanálise só aumentou.

Nesse mesmo momento de passagem à adjunta, recebo minha primeira

analisante. Uma experiência enriquecedora, cercada de acertos, de erros, de dúvidas,

mas, sobretudo, de muito desejo. Ao mesmo tempo, outras pessoas passaram pelo

consultório, mas não permaneceram. E sei que contribui para isso graças ao medo de um

possível fracasso, de um possível erro. Contribuí pela minha dificuldade em não sair do

lugar de sujeito. Mas estas experiências certamente acrescentaram muito na minha

caminhada em direção à autorização, fazendo com que eu ficasse mais advertida. Uma

caminhada cheia de tropeços, repleta de angustia e insegurança. Porém, tudo muito

válido. Essenciais para o meu aprendizado. Essenciais para autorizar-me analista.

Autorização esta, presente e amarrada nesse tripé + 1 fundamentais na formação

permanente de um analista. Todos somados têm significativa importância no processo

de autorização que deu nome a essa jornada.

O ATO DE INVENTAR-SE UM ANALISTA: DESTINO DE UMA

ANÁLISE28

28

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. “AuTOrizar-

se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

42

Valéria da Silva Faria29

O campo psicanalítico situa o inconsciente como pedra angular, apontando a

formação do analista como processo permanente a partir de um tripé contemplado pela

análise pessoal, estudo teórico, análise de controle, e a interlocução com pares nas

instituições. Pelo aspecto de constância e por ser impossível de alcançar seu fim, a

formação do analista está ligada a dimensão de um real da psicanálise30

.

No texto a História do Movimento Psicanalítico Freud31

já se referia à

necessidade de se levar a efeito uma análise de formação colocando o imperativo de que

seja feita por outra pessoa, posição esta contrária ao mal entendido inicial, a saber, o da

auto-análise. Desse modo, a análise requer imprescindivelmente a presença do outro a

quem se atribui um saber por meio da transferência.

A importância da função da análise na formação do analista é salientada por

Ferenczi, psicanalista contemporâneo de Freud, que chegou a nomeá-la “segunda regra

fundamental da psicanálise32

”. Ou seja, aquele que quer ocupar o lugar de analista deve,

em primeiro lugar, ser ele próprio analisado. Ferenczi assinala que o exercício da prática

clínica não requer o aprofundamento do tratamento até seu término. Assim, a análise

pessoal para efeitos de formação surge como uma exigência ética necessária à utilização

da técnica analítica. Segundo suas palavras: “uma base confiável para uma boa técnica

analítica é a análise terminada do analista33

”. Nesse sentido, podemos concluir que

quanto mais analisante for o sujeito, mais analista poderá tornar-se. Apesar disso, é

importante esclarecer nossa discordância com a ideia do autor em relação a uma

“análise terminada do analista”.

No tocante à transmissão da psicanálise, é no transcorrer da análise pessoal

que se estabelece. Nesse sentido, toda análise diz-se didática. Este caminho permite ao

sujeito o contato com o inconsciente, possibilitando-lhe traçar um percurso singular e

distante de quaisquer formações acadêmicas. De acordo com Lacan “as instituições

29

Psicanalista, Participante da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. 30

LACAN, J. Proposição 9 de outubro de 1967. Buenos Aires: Manantial, 1987, p. 9.

31 FREUD, S. “História do movimento psicanalítico” [1914]. In: ESB. OC. Vol. XIV. Rio de Janeiro:

Imago, 1976

32 FERENCZI, S. “Elasticidade da técnica psicanalítica” [1928]. In: Obras Completas. Vol. IV. São

Paulo: Martins Fontes, 1992.

33 Idem, ibidem.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

43

psicanalíticas se fazem responsáveis pela formação de analistas ao sustentar a presença

do inconsciente no campo da extensão34

”. No entanto, isso somente é possível a partir

da psicanálise em intensão, ou seja, do trabalho clínico entre analisante e analista. É,

portanto, no cruzamento de ambas que se dá a formação.

Entretanto, é importante salientar, que existe um caráter intransmissível na

formação analítica que está ligada ao estudo teórico, pois no tocante à relação com o

saber não se trata de ter um domínio deste como algo que é constituído. E essa

impossibilidade de que o saber seja passado de uma pessoa para outra é que exige um

reinventar-se a cada vez a partir de um período como analisante. É por meio do saber

inconsciente adquirido no divã durante um processo de análise que cada analista é

atravessado, de alguma maneira, por pontas da teoria. Ou seja, é somente na medida em

que a análise avança é que é possível uma maior compreensão da mesma.

Parece-nos que uma das questões que atravessa a reflexão em torno da

importância da análise pessoal enquanto pilar da formação analítica se refere ao porquê

de um sujeito buscar análise. E ele o faz, não por exigências profissionais, mas para

aliviar seu sofrimento. Nesse sentido, é no divã, na posição de analisante, que advém

um analista. Em prosseguindo, é nesse percurso que poderá alterar sua posição

subjetiva, tornando-se advertido dos efeitos que a linguagem provoca em cada um de

nós. Se depois, vai exercer ou não essa atividade profissional é outra história. O pilar da

formação, objeto deste trabalho, é sem dúvida condição indispensável para o analista

ocupar este novo lugar na posição analítica.

“Autorizar-se por si mesmo (na sua análise) e por alguns outros

(psicanalistas da instituição)35

”, é um ato de mostração da função de analista articulados

a sua pratica clínica e formação. Inventar-se analista é desvendar a análise por conta

própria, enfrentando as dificuldades e os obstáculos que são diversos e imprevisíveis.

Não há garantias, não há regras, causando uma dimensão de mal estar inerente ao

tornar-se analistas.

Mas, o que está em questão no ato de inventar-se um analista como destino

de uma análise? Neste ponto voltamo-nos para a questão do desejo, que se trata de um

conceito que delimita a função do analista dentro da teoria de Lacan, a saber, o de fazer

semblante de objeto causa de desejo do analisante. O que deverá ser sustentado desse

34

LACAN, J. Proposição 9 de outubro de 1967. Buenos Aires: Manantial, 1987. p. 6.

35 Idem, ibidem. p. 5.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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lugar é um vazio, que somente é possível sem o desejo do sujeito. Só havendo esse

vazio o desejo do analisante – que é o desejo do Outro – pode aparecer e se instalar.

Aqui a equação pessoal do analista está abreviada e parte-se de um lugar

neutro, fugidio e transitório que Lacan convoca os analistas a sustentarem. Convoca a

partir de Freud36

, que já recomendava este lugar, no texto “Observações sobre o amor

transferencial”, quando falava da abstinência do analista. Nesse sentido, o desejo de ser

psicanalista, inviabiliza de certa forma o desejo do analista, na medida em que esse

último não é da ordem do fazer. Mas ao contrário, para ocupar esse lugar neutro, “isento

de paixões”, “livre de fascinação”, essa posição que em nada alimenta o seu narcisismo,

o analista deverá suportar suspender toda a sua demanda própria e ser capaz de acolher

qualquer transferência para que possa a partir daí ser capaz de produzir discurso.

A propósito, Lacan diz em “A direção do tratamento e os princípios de seu

poder”, nos Escritos, que “o analista faria melhor situando-se em sua falta-em-ser do

que em seu ser37

”. E retifica com outras palavras: “O analista é tão menos seguro de sua

ação quanto mais está interessado em seu ser38

.” Só não envolvido com seu ser o

analista terá alguma liberdade nas suas interpretações e intervenções.

Freud sustentou que se o sujeito quiser estar em posição de utilizar seu

inconsciente como instrumento da análise, ele próprio deve submeter-se a uma

purificação psicanalítica, dizendo:

Ele não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua

consciência o que foi percebido pelo inconsciente; doutra maneira,

introduziria na análise nova espécie de seleção e deformação que seria muito

mais prejudicial que a resultante da concentração da atenção consciente. Não

basta para isto que ele próprio seja uma pessoa aproximadamente normal.

Deve-se insistir, antes, que tenha passado por uma purificação psicanalítica e

ficado ciente daqueles complexos seus que poderiam interferir na

compreensão do que o paciente lhe diz. Não pode haver dúvida sobre o efeito

desqualificante de tais defeitos do analista; toda repressão não solucionada

nele constitui o que foi apropriadamente descrito por Stekel como um “ponto

cego” em sua percepção analítica39

.

36

FREUD, S. “Observações sobre o amor transferencial” [1914]. In: ESB. OC. Vol. XII. Rio de Janeiro:

Imago, 1976. p. 215.

37 LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” In: Escritos. Rio de Janeiro: J.

Zahar, 1998. p. 592

38 Idem. Ibidem. p. 596.

39 FREUD, S. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”. In: ESB. OC. Vol. XII. Rio de

Janeiro: Imago, 1976. p. 154-155.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

45

Autorizar-se proporciona ao analista transitar pelas operações de alienação e

separação fazendo com que o sujeito entre na cena de sua própria análise permitindo-se

analisar outras pessoas. Este ato de passagem demonstra a diferença entre o antes e o

depois em que o sujeito renuncia alguma coisa para obter outra.

Nesse sentido, enquanto o analista dirige a análise o analisante por este ato,

em certo sentido, dirige a sua própria vida, inclusive a vida profissional, pois a partir daí

pode passar a ser analista. O analisante deve deixar de questionar a um Outro sobre

quem ele é, ou sobre o que ele deve fazer, passando a ser autor do seu próprio destino.

Para que isso aconteça, o sujeito deverá se identificar, não com o analista, mas com o

seu trabalho de investigação, no que diz respeito a suportar escutar outros e saber o que

fazer com isso.

A ANÁLISE DE CONTROLE E O CONTROLE DA ANÁLISE40

Maurício Eugênio Maliska41

40 Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. “AuTOrizar-

se Analista”; Mesa: Análise de controle e Instituição. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 41

Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

46

“[...] a análise, é o que se espera de um psicanalista”42

Para Lacan43

a formação psicanalítica se dá num tripé alicerçado no ensino,

na análise pessoal e na análise de controle. Harari44

, frente a esse tripé, acrescenta a

instituição psicanalítica como um quarto elo de articulação dos três precedentes. A

instituição psicanalítica, neste sentido, tem a função de zelar pela psicanálise em

primeiro lugar, nessa “[...] tradição da qual somos guardiões”45

e, em segundo lugar,

fomentar a formação do analista. À instituição cabe a importante função de

proporcionar o espaço para que cada analista dê testemunhos de sua prática e possa se

autorizar por si mesmo e por alguns outros na instituição.

Esta mesa tenta interrogar um dos pilares da formação psicanalítica. O termo

controle, à primeira escuta, parece realmente um pouco estranho, afinal, ele pode

remeter a ideia de um controle de variáveis, de um controle programático/sistemático,

de um domínio sobre algo; o que estaria longe de representar aquilo que se passa numa

análise, além de não dar conta da desmedida da pulsão e da intempestividade do

inconsciente em jogo numa análise.

Da famigerada distinção entre análise de controle e supervisão, gostaria tão

somente de abordar uma historieta relatada por Isidoro Vegh46

:

Diz-se da tradição Zen que havia dois mestres, cada um dirigia um santuário.

Costumavam ensinar a seus alunos a arte da resposta. Um dia se encontram o

aluno de um mestre com o aluno do outro. Um pergunta ao outro que estava

indo à fruteira: “Aonde vais?” Aquele lhe responde: “Aonde me levam meus

pés”, lhe diz. O primeiro volta ao mestre e lhe conta o que o outro lhe

respondera. O mestre sugere: da próxima vez, quando ele lhe disser “Aonde

levam meus pés” lhe digas: “E aonde irias se não tivesses pés?” verás como

quem ficará constrangido será ele. Voltam a se encontrar, pergunta-lhe de

novo: “Aonde vais?” O outro lhe responde: “Aonde o vento me leva” Volta a

ficar deslocado, retorna ao seu mestre e lhe conta. O mestre insiste: “Na

próxima vez quando te disser “aonde me leva o vento”, responde-lhe: E

aonde irias se não houvesse vento que o levasse?” Voltam a se encontrar:

“Aonde vais?”, reitera-lhe. O outro responde: “À fruteira.”

Essa pequena anedota me fez lembrar uma aluna que no âmbito de um

atendimento na Clínica da Universidade diz ao paciente, diante de uma demanda desse,

42

LACAN, J. Le Séminaire, livre XVII: l’envers de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1991. p. 59. 43

LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 44

HARARI, R. O Psicanalista, o que é isso? Carlos A. Remor, Inezinha Brandão Lied, Tânia V. Nöthen

Mascarello (Orgs). Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008. 45

LACAN, J. Intervenção sobre a transferência. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 215. 46

VEGH, I. A análise de controle. In: Análise de Controle. Porto Alegre: CMC, 2008. p. 49.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

47

que iria consultar o professor supervisor e depois lhe dava a resposta. A partir da

historieta e do acontecimento na Universidade, para mim, fica clara a diferença entre

uma supervisão e uma análise de controle. O ponto central é que se pautamos nossa

prática por essa via do monge Zen ─ que me parece ser a de uma orientação ou

supervisão, prática inclusive comum a qualquer outra profissão ─ estaremos fadados, tal

como o aprendiz Zen, a um fracasso. Neste sentido, a análise de controle não ensina

como fazer, mas pode proporcionar que o analista se depare com o seu fazer e com uma

escuta sobre esse fazer. Não se deve orientar previamente e nem supervisionar

posteriormente, mas escutar o que se passa em cada ato, afinal o analista se autoriza em

cada ato, em cada escuta, a cada vez, com cada analisante.

Se a análise é uma experiência tão singular e própria do analista que a está

conduzindo, o que faz este analista numa análise de controle? O analista não faz um

relato do caso, tampouco tenta recuperar as palavras e enunciados proferidos por seu

analisante, o que não o impede de também o fazer, mas fundamentalmente, o analista

traz o testemunho de uma prática, que já não é mais a prática, mas o seu testemunho.

Pura Cancina47

propõe uma distinção entre a prática, a clínica e a teoria. Para a autora, a

prática é aquilo que se passa no seio da análise, que envolve analista e analisante. Essa

prática toca em algo de um real indizível, que bordeia o simbólico, mas que se trata de

uma experiência inconsciente. Do que é possível falar dessa experiência, o analista leva

para o controle certo testemunho daquilo que se pode dizer do que se passou no seu

divã, estamos aí na dimensão da clínica, ou seja, a clínica é o lugar de falar aquilo que

se passou na prática, e, por fim, num terceiro tempo, se teoriza sobre essa experiência e

aí estamos no espaço da teoria. Na análise de controle não se trata do caso, o caso é

aquilo que caí, é a causa acidental que argumentava Aristóteles, esse acidente que tem a

ver com a Tiquê, o real do caso, o real do acidente, desse objeto que caí. Isso é da

prática, é da experiência inconsciente, isso que se passa entre analista e analisante. O

caso se perde na análise de controle para dar lugar a escuta do analista. O que é

trabalhado no controle ─ ainda que se faça referência ao analisante e seus fantasmas,

angústias, inibições, sintomas etc ─ é a escuta do analista, pois é a partir dessa, naquilo

que há de lembranças, esquecimentos, lapsos que se pode trabalhar num controle, ou

seja, é a escuta do analista que é o material de trabalho numa análise de controle,

enquanto que na análise pessoal o material de trabalho é a fala do ou o próprio sujeito

47

Informação verbal.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

48

do inconsciente. Apesar de audaciosa, talvez polêmica, a proposta de Pura Cancina nos

parece interessante pela diferenciação entre aquilo que se passa na análise e o que se

fala do que se passou na análise. Desse modo, análise de controle é fundamentalmente

um espaço para o analista falar de sua prática, para sair de um “splendid isolation

[esplêndido isolamento]”48

e se defrontar com os ecos de seu ato, advertido de sua

condição precária e transitória do lugar de analista que tenta sustentar.

Neste sentido, pode-se pensar que a Análise de Controle é o controle da

análise, o controle do desejo do analista, para que ele possa desde sua condição de

analista não cair em constelações narcísicas, não tentar incorporar o saber que não está

em si e não ser impelido a agir de acordo com o seu desejo de sujeito. Então, o controle

se faz necessário para que o analista não responda as demandas de amor, para que o

gozo não lhe tampone a escuta e, principalmente, o que é controlado é o desejo do

analista, não o desejo de ser analista, mas o desejo de ocupar o lugar de morto. É o

controle para ocupar um lugar de resto, pois o analista empresta seu ser na análise. O

desejo do analista, não é o desejo de um analista, em particular, como seria o desejo de

um sujeito, tão pouco se trata do desejo de ser analista, como profissão, mas trata-se do

desejo de ocupar um lugar em que ele deve se esvaziar como sujeito para poder escutar

o sujeito em análise. Ademais, o controle não é um exercício de poder, tal como aquele

que Lacan49

criticava na IPA, comparando-a a uma “[...] auto-escola que, não satisfeita

em aspirar ao privilégio singular de entregar a carteira de habilitação, se imagina em

condições de controlar a construção automobilística.” Desse modo, o controle não

habilita nenhum condutor a dirigir nada, nem tão pouco controla a produção

“automobilística” de analistas, mas se o psicanalista dirige a análise para uma cura, se

faz necessário algum controle, não habilitador, mas que reconheça os limites da escuta

analítica e a importância do Outro, que tira o analista do isolamento supostamente

onipotente, para mostrar as suas resistências enquanto analista. É um controle sobre a

resistência, naquilo que ela é do analista. Não é um controle sobre a associação livre ou

sobre a vida do analisante, mas um controle sobre as resistências do analista.

Certa ocasião, durante uma aula aqui na Maiêutica, eu falava sobre o des-ser

do analista, em que ele faz a tentativa de descer e des-ser, e uma aluna me questionou se

48 FREUD, S. História do movimento psicanalítico (1914). ESB. OC. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,

1996, p. 31. 49

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. In: ________. Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 241.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

49

isso era possível. Questionamento importante, pois sem uma formação permanente

sólida não há mínimas condições para que isso ocorra. O movimento de des-ser é

corroborado em grande medida pela análise de controle. Freud já havia dito que a

Psicanálise era uma profissão impossível, pois ocupar o lugar de morto, sustentar esse

desejo exige que o analista suporte sua própria castração na análise, castração essa do

esvaziamento enquanto sujeito. Aí está um impossível que, obviamente, não é de todo,

ou seja, o analista, às vezes, está nesse impossível, e é somente quando está aí que

efetivamente é analista. Por isso mesmo, psicanalista não é um título universitário, não é

um lugar de garantias, ele não tem como estar num dispositivo do tipo acadêmico que

lhe outorgue e lhe certifique saberes. O movimento do analista o coloca numa posição

de suportar o não todo da relação sexual, sem um modelo ideal, sem um roteiro

programático, entregue ao non sense da experiência inconsciente e das vicissitudes

pulsionais.

Para Lacan50

, o ser do analista deve ser esvaziado, pois ele “[...] faria melhor

situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser.” Ou seja, o que a psicanálise propõe

no cerne da cura analítica e por extensão em toda a psicanálise é um movimento que é

contrário a nossa própria condição narcísica. O que a psicanálise propõe é um mal-estar

por não dar nenhuma garantia e por conceber algo que é contrário a uma

institucionalização do saber. Neste sentido, Harari51

argumenta que “[...] um analista

não se produz seguindo e aprovando seus cursos na universidade, senão deitado no divã

de seu analista.”

Lacan52

mostra no texto A direção do tratamento [cura] e os princípios do

seu poder que o analista “[...] paga com sua pessoa, na medida em que, [...] ele a

empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na

transferência.” O analista está disposto a pagar com sua pessoa? Isso não parece ser uma

coisa fácil! Aliás, nesse mesmo texto, Lacan53

aponta que o analista, além de pagar com

sua pessoa, paga em palavras pelo efeito dessas na interpretação e também paga por ir

ao cerne do ser, num movimento de des-ser. Diante de tantos pagamentos, a análise de

50

LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”. In: ________. Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 596. 51

HARARI, R. O Psicanalista, o que é isso? Carlos A. Remor, Inezinha Brandão Lied, Tânia V. Nöthen

Mascarello (Orgs). Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2008, p. 128. 52

LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios do seu poder”. In: ________. Escritos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 593. 53

Idem, ibidem.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

50

controle se faz condição necessária, porém não suficiente, na formação do analista para

sustentar esses pagamentos.

Sustentar uma análise não parece ser muito fácil, isso não implica somente

suportar a transferência, como foi dito, implica conduzir a análise, fazendo cortes,

pontuações, dizendo aquilo que o sujeito não quer ouvir, trazendo a inquietante

estranheza do sexo e da morte para a cena analítica. E como fazer tudo isso, sendo que

pela nossa condição de sujeito somos tentados a fazer o contrário; a saber, a não fazer

cortes, a ter atitudes complacentes e se colocar como modelo ideal de um eu forte e

consistente. Nesse momento, parece entrar em cena o conceito de desejo do analista que

está acima do sujeito analista e de seu próprio desejo enquanto sujeito, pois movido por

esse lugar de morto, este terceiro que entra no jogo para reanimá-lo, o analista pode

fazer semblante de objeto a, pode se colocar numa posição contrária a sua condição

narcísica e por aí operar algo do discurso analítico, movendo e conduzindo uma análise.

Lacan54

dizia que o analista deve ocupar o lugar do douto ignorante, douto

por estudar e conhecer a teoria e ignorante por se colocar numa posição de quem não

sabe e por isso escuta o sujeito, para desde essa posição poder vir a movimentar esse

saber de modo que o próprio sujeito encontre esse saber que está nele e que ele próprio

desconhece. Como é possível o analista ocupar, por exemplo, um lugar de ignorante

quando a cultura, de modo geral, lhe impele a ocupar um lugar de saber? Isso tudo para,

ao final da análise, o analista ser descartado como um objeto, na condição de semblante

de a, que pode ser dispensado pelo sujeito. Estamos em condições de ocupar esse lugar

de um ignorante que ao final da análise caí de um suposto saber? Sustentar o lugar de

morto e sustentar o desejo de analista exige um controle, por mais esquisito que este

termo possa soar para muitos ouvidos, trata-se sim de um controle, pois sem esse

controle o analista se perde na sua empreitada de se sustentar no discurso do analista.

Por ser um discurso, ele desliza, escorrega, vai, vem, há, como em todo discurso, uma

fluidez que se não controlado, escorrega para os recôncavos do gozo, para as entranhas

da resistência ou para as lacunas da subjetividade do analista. Trata-se, sim, de um

controle, caso contrário estaríamos dizendo que não há controle, que somos livres, que

podemos proceder em nossos consultórios da maneira que nos convém e assim por

diante.

54

Idem, ibidem.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

51

Quando Lacan apresenta definições circulares como a da epigrafe: “[...] a

análise, é o que se espera de um psicanalista”55

ou “o analista pode fazer o que quiser

desde que o faça como analista” não é a proposição de uma anarquia, nem mesmo de

um laissez-faire, mas trata-se de fazer na condição de analista e que desse analista se

espera, uma análise; logo, essas definições circulares recaem sobre a questão: O que é

um psicanalista? Essa pergunta conduz a todas essas inquietações que estávamos

colocando, pois toca num ponto da ética. A pergunta “O que é um analista?” responde

de igual forma a questão sobre o que deve ser uma análise de controle, pois o objetivo

dessa é a formação do analista.

55

LACAN, J. Le Séminaire, livre XVII: l’envers de la Psychanalyse. Paris: Seuil, 1991. p. 59.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

52

ESCUTAR-, SE56

Tahiana Pereira Brittes57

Do lugar do divã, para a poltrona; do lugar da perda do olhar, para se posicionar

frente a frente. De analisante a analista, de análise pessoal a análise de controle.

Mudanças para além dos lugares, mudanças subjetivas – de sujeito da psicanálise.

E parece que o tempo em que isto se dá segue a mesma linha que o tempo tem

em todo processo analítico, de uma forma que não dá para determinar ou mensurar,

numa logicidade peculiar a cada sujeito.

Assim, a questão sobre esta passagem do lugar de analisante para analista só ser

possível ao final de análise perde a evidência, à medida que não há um tempo pré-

determinado. Dolto, em entrevista a Jacques Hassoun e Monique Tricot, fala que “a

questão não é quando se sai da análise, mas quanto mais se entra nela58

”. Harari, em “O

Psicanalista, o que é isso?59

” fala deste tempo como um curso progressivo.

“O analista não se autoriza se não por si mesmo e por alguns outros60

”, vamos

ouvir muitas vezes nesta jornada.

Quer dizer então que aos poucos é possível responsabilizar-se por seus atos,

passar do tempo da alienação para o tempo da separação, ter uma escuta advertida e

mudar de lugar... ?

Harari61

situa este lugar de um modo contínuo, refere-se à possibilidade de

circular a partir do que se vai fazendo. E deste lugar, aos poucos se deixa de estar na

posição de analisante para deixar esta posição para aquele que lhe deposita sua

transferência...

56 Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. Mesa – Análise de

Controle e Instituição 57

Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. 58

DOLTO, F. “Entrevistas sobre el control” In: VORONOVSKY, D. El Control cuestion para

psicoanalistas (comp.) Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1991. 59

HARARI, R. O Psicanalista, o que é isso? Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008. 60

LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 para o analista da escola” In: Scilicet, 1968. 61

Idem 4, Ibidem 4

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

53

Nesta passagem, o trabalho experimentado no divã enquanto sujeito desejante,

dá espaço para o desejo de analista – este que nada deseja. Passagem que também não

se dá de uma forma pronta e acabada. E então, nos momentos da análise que conduz, o

analista pode se haver com questões de seu próprio eu, como $, com suas resistências

para ocupar o lugar de objeto a.

Por um lado, quando estas questões aparecem claramente, junto com elas vem a

dúvida sobre a possibilidade de se ocupar o lugar de analista, vêm as questões sobre a

autorização de si mesmo. E, por outro lado, se estas questões não aparecem, então, não

há lugar para a busca pela análise de controle.

Lacan, no Seminário 23, “Le Sinthome62

”, fala em dois tempos da análise de

controle: um primeiro, em que se busca uma aprovação do outro por ser necessária a

confirmação de um bom proceder quanto à ética em jogo; e, um segundo, em que se

trabalha com o equívoco do analista que controla.

Falando deste primeiro momento, podemos pensar que o analista jovem precisa

de um lugar de apoio, de autorização - que vai encontrar na Instituição, mas que

também vai buscar na análise de controle. Esta busca que vai fazer a partir da

transferência, a um analista mais experiente – não necessariamente seu analista pessoal.

Isso que Freud nos diz em 191863

, sobre a prática da análise ser adquirida pra

além da análise pessoal, mas mediante tratamentos realizados sob controle e orientação

de psicanalistas mais reconhecidos.

Mas a análise de controle não se restringe a apoio, autorização. Ela é uma escuta

daquilo que o analista não escutou, de seu analisante e de si mesmo. Aquilo que Lacan

fala sobre o analista escutar até certo ponto, e depois não escutar mais, ou, escutar

apenas na linha do que quer escutar.

É necessário um espaço para que o analista fale da transferência de seu

analisante e possa se escutar para pensar na forma como responde a ela. É preciso que

escute a história de seu analisante para se reconhecer e se separar dela. E nos efeitos

daquilo que consegue falar e escutar pode reconhecer faltas – suas e do analisante, de

escuta e de interpretação.

62

LACAN, J. Seminário 23: O Sinthoma [1975-76]. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2005.

63 FREUD, S. “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades” [1918]. In: ESB. OC. Vol. XVII. Rio de

Janeiro: Imago Editora, 2006.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

54

Aquilo que também o analisante não consegue dizer pode aparecer na análise de

controle através de lapsos do analista, de silêncios, equívocos, que não têm um lugar

qualquer - são essenciais para que o analista escute sobre o impossível de dizer no

discurso do analisante, para que escute sobre sua resistência como implicação e possa

pensar a direção do tratamento.

Não porque estas escutas possibilitadas na análise de controle promoverão o

reconhecimento de um “erro ou de um acerto”, mas porque proporcionarão uma nova

escuta. A relação com o que há de falha não é a mesma tendo havido uma análise de

controle, ainda que essa falha nunca desapareça.

Este movimento necessário ao analista em análise de controle não é fácil à

medida que exige a exposição de sua prática, uma quebra no narcisismo.

Harari falava em “O psicanalista o que é isso?64

” sobre a importância de se

questionar se se está analisando ou não, como algo constitutivo do analista, bem como

um reconhecimento sobre a culpa e o mal-estar frente às resistências em ouvir. Ele

descreve este lugar como contendo além destas questões, também o prazer de entender

efetivamente e interpretar, mas de nenhum modo, com a certeza onipotente que credita

um certo título habilitante para isso.

É preciso colocar em flexibilidade suas certezas, e perceber suas resistências –

sobre um caso que não traz, uma informação da qual esquece… e tantas outras. Para

além disso, há questões do próprio analista que precisam ser trabalhadas para não serem

resolvidas em sua própria prática. Isto que exige que se pergunte sobre seu gozo no

lugar que ocupa e sobre o que pode fazer com ele. Deste lugar, a questão passa sempre

por seu desejo de analista.

Freud65

propõe neste sentido, o que chamou de análise da contratransferência

para garantir a neutralidade do analista, a não interferência de seu desejo ou seu gozo

nas análises que tem a seu encargo.

Este trabalho que é feito na análise de controle, não é feito da mesma forma que

na análise pessoal. Ainda que enquanto análise, se sustente na transferência, depare-se

com resistências, e ainda que o analista que realiza o controle esteja no lugar de suposto

saber, ele não encarna nesta transferência o objeto do fantasma do analista em controle.

64

Idem 4, Ibidem 4.

65 FREUD, S. “Observações sobre o amor transferencial (novas recomendações sobre a técnica da

psicanálise III)” [1915]. In: ESB. OC. Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

55

Ele não faz interpretações, ainda que ao ler a letra e intervir, provoque efeitos. O

controle proporciona que algo se ressignifique a posteriori, isso que Freud chamou de

uma possibilidade transformadora.

Dolto66

fala da necessidade de se trabalhar neste tempo posterior, o que não

havia saído em sua análise e foi despertado pelas pulsões do outro, e pode ser escutado

na análise de controle.

Os obstáculos que se enfrenta na análise de controle, então, não são resolvidos

neste dispositivo, mas em contato com eles, pode-se desenvolvê-los em análise. Além

disso, na análise de controle, é como colocar o discurso à prova e possibilitar introduzir

uma nova coerência ao discurso – a do discurso analítico.

A análise de controle acaba por fazer cortes, perfurar sentidos, deixar um lugar

vazio, promover um espaço para que entre (em partes) a teoria, o desejo de analista e o

que este pode fazer com isso.

A busca pela análise de controle não é somente teoricamente adequada, ou, uma

regra a ser seguida. Pelo contrário, não há quem verifique sua ocorrência. Porém, dela

depende o enlace do psicanalista com seu lugar. É por um lado, um suporte para se

suportar este lugar de analista, por outro, e no mesmo sentido, um investimento um

tanto dispendioso.

Daí, proponho podermos pensar em alguns pontos que poderiam auxiliar o

analista a se haver com este lugar. Enquanto corte, a análise de controle há que ter limite

de tempo e por que não, uma periodicidade no agendamento dos horários – assim,

queira o analista falar, ou não, está comprometido consigo mesmo, com sua prática e

nesta condição, há de falar livremente sobre seu analisante e sobre o que escuta ou não.

Ainda que não esteja, na análise de controle, submetido à interpretação do

analista, ao deixar vir sua fala solta de registros ou planejamentos meticulosos, poderá

escutar deste saber não sabido, dele e de seu analisante. Esta atenção flutuante exige que

se supere os limites do narcisismo.

Isso não no sentido de burocratizar a análise de controle, mas criar condições

para maior enlaçamento do analista com este lugar. E também não quer dizer que não se

pode prescindir da análise de controle, mas fazê-lo quando isso for um efeito de ter se

servido dela.

Lacan, no seminário 1567

, fala na análise de controle como algo que se imporia

66

Idem 3, Ibidem 3.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

56

ao sujeito por efeitos de sua própria análise. Não seria uma alienação às normas

estabelecidas, mas uma imposição a si mesmo de responsabilidade ao assumir sua

prática.

Este novo lugar, a partir do trabalho que realizou em análise e o tornou um

sujeito advertido, possibilitou uma nova escuta, com diferentes possibilidades de

intervenção a partir do que extraiu de seu lugar de analisante e é, portanto, um ato

analítico.

Lacan relaciona o Ato Psicanalítico como a determinação de um começo, e

muito especialmente, ali onde há a necessidade de fazer um, precisamente porque não

existe. Além de ser pura evidência (com sua ponta significante), o ato institui um

começo lógico, uma renovação, uma criação.

Se o ato analítico tem um correlato significante que efetua um corte estruturante,

transformando o sujeito, de modo que após o ato, se encontra diferente do que era antes,

podemos relacioná-lo como presente na passagem à análise de controle e efeito da

análise de controle em curso.

E para que haja ato analítico tem de ter havido um psicanalista. Ou muitos

psicanalistas – se pensarmos nesta passagem também relacionada ao lugar da

Instituição. Esta que está para que cada sujeito possa dar conta de sua prática e

interrogá-la, olhar para os lugares que ocupa e trabalhar para sustentá-los ou modificá-

los.

67

LACAN, J. Seminário 15: O ato psicanalítico. [1967-68]. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2005.

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57

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

58

SOBRE A ANÁLISE DE CONTROLE: QUESTÕES EM ATO68

Aline Veiga69

“Vou te fazer um convite que é uma bomba!” As palavras da colega

Jeanine, foram bem apropriadas como introdução ao convite à apresentação deste

escrito. Entre outros significados, bomba é um projétil carregado de matérias explosivas

ou incendiárias. À parte o projétil, devo reconhecer que a aproximação relativamente a

algumas matérias psicanalíticas de certa forma me provoca essa sensação, que se

potencializa frente à responsabilidade e o desafio de comunicar aos colegas algo de

minhas leituras e questões.

Continuando com o significante, guardadas as proporções, o tema da

formação do analista – e a análise de controle é parte dele – é, se não explosivo, bem

polêmico. Embora repouse, segundo a concepção freudiana, no tríptico análise pessoal,

estudo teórico e análise de controle, provoca discussões acirradas, aliciando grupos em

fundamentações por vezes antagônicas. E é parte dessas discordâncias, a terminologia

que designa esse importante pilar da formação: a análise de controle. Ou seria

supervisão? Análise assistida? Análise referida? Análise quarta? Experiência inter-

analítica? Escuta da escuta? Porque, afinal, os analistas se debatem relativamente a essa

terminologia?

Por um lado, esse fato me causa certo tédio. Jamais compreendi tanta libido

investida e tempo dispendido na defesa de um ou outro termo. Mesmo considerando a

incontestável relevância do significante (sempre), devo reconhecer que nunca me

importou o nome por meio do qual me refiro a esse tão peculiar e por vezes difícil

encontro. No entanto, parto dessa questão, não para me posicionar sobre a contenda,

mas, primeiramente, compreender em que bases ela se estabelece, o que poderá torna-la

menos tediosa para mim e, segundo, porque intuo que esse caminho me permitirá a

aproximação de que necessito para estabelecer algumas formulações.

Deparei-me, como já sinalizado, com uma verdadeira miscelânea no tocante

ao uso das terminologias, prevalecendo supervisão e análise de controle. Alguns

68

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 69

Apresentação do autor. Psicanalista, Participante da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

59

analistas defendem incisivamente um desses termos, enquanto outros utilizam num

mesmo texto ou contexto, ora um, ora outro. Paola sintetiza a questão no seu artigo

intitulado Análise de Controle: “Para qualquer referência a este tema vale a

consideração da dificuldade que se apresenta ao tentar diferenciá-lo do que se designa

supervisão70

”. A partir daí, o argumento do autor é no já conhecido sentido de que a

designação supervisão ressoa como uma posição super, ocupada por um psicanalista.

Lugar próximo ao do todo poderoso super-homem, com seu “super olhar” e “super

escuta”. No sentido contrário, “[...] o discurso analítico lacaniano invalida, com a

função do desejo, toda a relação super ou supra com o seu axioma não há

metalinguagem71

”. À parte esse efeito de escanção, mais uma contradição destacada por

Paola: “[...] a letra não é referencia única ao pulsional escópico como espécie de objeto,

já que, caso se trate da letra, as outras espécies de objeto, anal, oral e voz, não podem

simplesmente se suprimir72

”.

Sem desestimar esses argumentos, há que se considerar, e o próprio autor

assim o faz, que “[...] alguém que se encontre em uma posição precária a respeito da

análise, seja por tempo ou por falta, solicite supervisionar73

.” E seria inepto da parte do

analista se negar a fazê-lo, como inepto seria deixar de atender um paciente por não crê-

lo um analisante. Assim, o que algumas poucas leituras pressupõem é que, “[...] dizer

análise de controle, diferencia o momento analítico de outro que não o é em

supervisão74

”. Conforme esse entendimento, a análise de controle é pedida por aquele

analista que sabe de alguma forma que a dificuldade que encontra na sua clínica não é

devida a uma falta de saber circunstancial relativamente a um paciente, mas se

estabelece com todos os seus analisantes, havendo, de sua parte, portanto, uma “[...]

posição investida pelo real da falta de objeto75

”. Podemos pensar, com Paola, que um

pedido de análise de controle implica que o sujeito se “considere” por algum motivo

analista. De qualquer modo, esse lugar não é estanque. Especialmente, mas não só, entre

os analistas iniciantes76

. O mesmo sujeito que se “considera” por algum motivo analista,

também, em alguns momentos, se “desconsidera” um analista. E, nesse sentido, é

70

PAOLA, D. Análise de Controle. Porto Alegre: CMC. 2008. p. 69.

71 Idem, ibidem, p. 70

72 Idem, ibidem, p. 69

73 Idem, ibidem, p. 71

74 Idem, ibidem.

75 Idem, ibidem.

76 Idem, ibidem.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

60

legítimo que peça, em sua análise de controle, uma “super escuta”, uma supervisão.

Talvez a diferença, aqui, possa ser assinalada pelo manejo do analista de controle que

poderá marcar algum limite no sentido da falta real do objeto e da castração a que todos

estamos submetidos e que, nesse caso, toma o semblante de um saber sempre parcial,

insabido, faltante.

No tocante a designação análise de controle, vale salientar que também

apresenta restrições, visto não designar, nem de longe, o que se passa nesse peculiar

encontro entre analistas, onde, num sentido contrário, tende-se à flexibilização do que se

supõe controlar como dizer77

. Além disso, a palavra controle, nesse contexto, sugere

regras de conduta a serem seguidas, sob o olhar ou a escuta atenta do controlador, o que

implicaria na inibição mesma do ato analítico, tão visado pelos psicanalistas. Como

sugere Freud78

, a psicanálise é uma arte. E a arte é sem procedimentos únicos,

invariáveis, controlados. É sem técnica. É arte o que supera a técnica79

.

Como já sinalizado, na prática, a distinção entre as terminologias, não me

produz efeitos, fundamentalmente porque qualquer delas é controversa. No entanto,

considerarei a concepção desenvolvida até aqui, que me permite articular ato analítico e

análise de controle. Sim, análise de controle, já que na supervisão o ato (analítico)

parece não circular pelo fato de requer alguma autorização do sujeito enquanto analista,

no sentido mesmo de suportar os seus efeitos. Autorização que o lugar do

supervisionado ou supervisionando parece obscurecer.

Autorizar-se um analista. Como sugere a convocatória deste encontro, tem a

conotação de tornar-se um autor. O caminho do autorizar-se é retomado por Lacan no

“Seminário 15, O Ato Analítico”, onde ensina que a passagem à condição de analista é

efeito da análise. Nesse sentido, “tendo sido psicanalisante” o sujeito se torna advertido

de que não pode se considerar como causador de sua própria ação80

. Ou seja, a causa,

consoante estabelecido no Seminário 10 A Angústia, está no resto que resiste à

assimilação significante. Em a, portanto81

.

Todavia, o sujeito advertido não é, necessariamente, o sujeito autorizado

como analista, por si mesmo e por alguns outros, como sugere Lacan no “Seminário 21:

77

Idem, ibidem. 78

FREUD, S. “Dois verbetes de enciclopédia” [1922]. In: ESB. OC. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,

1976. 79

LEITE, Marcio Peter de Souza. Psicanálise lacaniana: a clínica. 2008 (Cap. 5). Disponível em:

<http://www.marciopeter.com.br/links2/psilacan/psilacaclinica.html>. Acesso em: 20 set, 2012. 80

LACAN, J. Seminário15: O Ato Psicanalítico [1967-68]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. 81

LACAN, J. Seminário10: A Angústia [1962-63]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

61

Os Nomes do Pai82

”. A questão nos remete ao desejo do analista, conceito que delimita

a função do analista dentro da teoria lacaniana sobre o objeto causa de desejo. A função

em tela é a de fazer semblante de objeto causa de desejo do analisante. Em outras

palavras, suportar o a do analisante, a partir da demanda que lhe é por este dirigida, seja

ela qual for. Logo, um passo além da advertência, no sentido da autorização em ocupar

um lugar muito distinto. Segundo a letra lacaniana: vazio, resto. Lugar do morto. É por

esse viés que um analista provocará a constante reinvenção da psicanálise, devendo dar

conta da própria descoberta, como sugere Lacan no “Seminário 19: Ou pior...83

”.

Feita essa digressão, retomo a questão da análise de controle, que parece

requer alguma autorização do analista enquanto tal. Penso que a análise de controle é,

por si mesma, ato analítico na medida em que o sujeito que a solicita submete a prova o

seu desejo. Desejo do analista. Restaurando o Sujeito suposto ao Saber, no caso de um

final de análise, ou, novamente, submetendo-se ao Sujeito suposto ao Saber, no caso de

estar em processo de análise.

Ainda sobre o ato analítico, entre tantas outras possibilidades de articulação

com a análise de controle, é importante lembrar que não se trata de uma intervenção

subjetiva, ao contrário, o ato é uma estrutura em que ativo é o objeto a e o sujeito é

subvertido84

. Portanto, o ato é sem pensamento e consequentemente sem saber,

requerendo do analista, a cada vez, um autorizar-se por si mesmo. No entanto, o ato não

é sem qualquer saber, mas requer a elaboração suscitada por cada caso. Elaboração

fundamental para a direção do tratamento. Nessa linha, penso a análise de controle

como possibilidade de sustentação do ato analítico, já que este conta, de alguma

maneira, com esse saber construído ou elaborado que ocupa o lugar da verdade (do

analisante). Essa formulação pode ser representada pelo matema do discurso do analista

(a/S2 → $/S1) onde a produção da verdade de cada sujeito (S1) aparece como finalidade

da análise.

Para além das articulações estabelecidas – análise de controle enquanto ato

analítico ou como possibilidade de sustentação do ato analítico – penso que, assim

como na análise pessoal, a análise de controle é permeada por atos analíticos,

82

LACAN, J. Seminário 21: Os nomes do pai [1973-74]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.

83 LACAN, J. Seminário 19: ...Ou Pior [1971-72]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 1988.

84 VICENTE, S. O ato analítico. Cogito, Salvador, 2004. Disponível em

<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-

94792004000100010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 07 set. 2012.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

62

especialmente porque há um sujeito suposto ao saber e, consequentemente, uma

transferência estabelecida.

Compartilho, por fim, certa surpresa no percurso deste escrito em constatar

que, diferentemente do que passa nesta Instituição, a análise de controle é, por

psicanalistas, relegada. O fato é comprovado pela escassez de material produzido sobre

o tema e evidenciado nas palavras de Fleig que no prefácio à obra intitulada Análise de

Controle esclarece que uma das propostas daquela discussão é “[...] resgatar a dignidade

e a eficácia da prática da análise de controle, esquecida por alguns praticantes [...]85

”.

Nessa trilha, compartilho uma questão: Porque esse pilar da formação é desestimado por

analistas? Sem responder, Vegh nos ajuda a pensar, pontuando alguns obstáculos

resistenciais na análise de controle: o primeiro remete à diferença primordial entre a

psicanálise e as terapias: a escuta do sentido86

. A tentação dessa escuta, que coincide

com a escuta na vida cotidiana provoca resistência; o segundo, a recusa à convocação

feita ao controlante no sentido de exercitar-se na flexibilidade da sua certeza sobre o seu

paciente. E o terceiro obstáculo: a dificuldade de o controlante ver-se frente ao seu gozo

parasitário. Gozo que o analista de controle, sem denunciar, mostra pelo cotejo do gozo

(do controlante) com a letra do paciente.

Concluindo, acrescento às pontuações de Vegh, algumas ideias que me

foram suscitas pela reflexão: a primeira, que pode se referir mais aos analistas

iniciantes, aponta para um temor subliminar do analista controlante quanto ao

julgamento de seu trabalho clínico sob o crivo da adequação ou não ao que seria uma

“autêntica” psicanálise. Assim, o interesse pelo questionamento do ato clínico em si

mesmo restaria atravessado por esse temor. Outro ponto que considero é a renúncia

desse pilar da formação, talvez pela ilusão de que a análise pessoal possa dar condições

de o analista atrair e sustentar com a sua presença o questionamento do gozo de um

sujeito. A propósito, Kovalovsky oportunamente lembra que a dupla vertente da

formação – análise do analista e análise de controle – está presente na frase de Lacan

sobre a autorização do analista onde o “si mesmo” não é sem o “alguns outros87

”.

85

FLEIG, M. Análise de Controle. Porto Alegre: CMC, 2008. p. 13. 86

VEGH, I. Análise de Controle. Porto Alegre: CMC, 2008. 87

KOVALOVSKY Análise de Controle. Porto Alegre: CMC, 2008.

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64

O EX-TUDO DA PSICANÁLISE 88

Claudemir P. Flores 89

Só um homem que realmente sabe é modesto, pois ele sabe quão insuficiente

é o seu conhecimento. 90

Só posso ser ensinado à medida de meu saber. 91

Difícil tarefa a de abordar um dos fundamentos da formação, o estudo

teórico. Inicio com um testemunho da minha vida de estudante de psicanálise. Desde

que passei a praticar a psicanálise, adoto um seminário de Lacan para ler durante o ano.

Não é meu livro de cabeceira, uma vez que não gostaria de sonhar com Lacan, mas é

meu “livro de escrivaninha”. Fica lá, sobre a mesa do consultório, para ser desfolhado

pouco a pouco, em intervalos.

Freud, em 1926, interroga “como e onde se pode aprender o que é

necessário para praticar-se a análise”.92

Então, para iniciar, precisamos nos deter na

diferenciação entre a psicanálise e uma análise. Estudar psicanálise presta-se para vários

fins, afinal ela está incorporada ao arcabouço teórico contemporâneo e é valorizada em

circuitos intelectuais, acadêmicos e artísticos. E seu ensino não está restrito às

instituições psicanalíticas. Numa instituição psicanalítica lacaniana, o ensino é o lugar

chamado de psicanálise em extensão. Mas, até onde é possível estender a psicanálise

sem distorcê-la em seus fundamentos?

Para aprender a praticar a análise, entre outras coisas, é preciso estudar

psicanálise. Mas, o que é necessário estudar para se autorizar analista? Freud, em 1919,

quando escreve “sobre o ensino da psicanálise nas universidades”,93

procura estabelecer

critérios necessários para a formação de analistas tanto no aspecto teórico quanto no

88 Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

jornadas: “AuTOrizar-se Analista”, Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 89

Psicanalista, Membro de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. 90

FREUD, S. “A questão da análise leiga” [1927]. In: ESB. OC. Vol. VI. - Rio de Janeiro: Imago, 1996. 91

LACAN, J. “Alocução sobre o ensino” [1970]. In: Outros escritos. - Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2003.

p.304. 92

FREUD, S. “A questão da análise leiga” [1927]. In: ESB. OC. Vol. VI. - Rio de Janeiro: Imago, 1996. 93

FREUD, S. “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades” [1919] In: ESB. OC. Vol. XVII. - Rio de

Janeiro: Imago, 1996.

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65

prático. Ele nos diz que, em matéria de teoria, o candidato pode obter o que necessita na

literatura especializada, nos encontros científicos, bem como no contato pessoal com os

membros mais experimentados das instituições. Freud acrescenta que, “[...] no que diz

respeito à experiência prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal,

pode consegui-la ao levar a cabo as análises, uma vez que consiga supervisão e

orientação de psicanalistas reconhecidos”.94

E aponta as sociedades psicanalíticas como

o local onde podem ser obtidas a teoria e a prática.

Em seu texto célebre sobre o final de análise,95

Freud afirmou que analisar,

educar e governar são profissões impossíveis, na medida em que o sujeito não pode ser

dado como concluído. Não sendo educativo, o lugar do ensino em uma instituição

psicanalítica por certo está dentro de uma política, mas que não se trata de governar o

sujeito. Partindo dessa baliza, podemos perguntar como é possível ensinar psicanálise

para aqueles que não a praticam? Quanto ao ensino, Freud afirmou que:

Quando ministramos aos nossos alunos um ensino teórico, podemos observar

que isso lhes surte, inicialmente, pouco efeito. Eles acolhem as doutrinas

psicanalíticas com a mesma frieza que acolhem as outras abstrações com as

quais foram nutridos. Alguns gostariam talvez de estar convencidos, mas

nada indica que o estejam96

.

Escuto várias advertências importantes nessas frases. Primeiro, considero

que o ensino inicialmente surte pouco efeito naqueles que não estão em análise. Por

isso, prefiro chamar de leigos aqueles que não fizeram ou que não estão fazendo sua

análise. De certa forma, sempre serão leigos, na medida em que a análise pessoal é o

lugar no qual é possível a passagem para analista.

Não é possível a separação, mesmo sob o pretexto de uma didática, entre

teoria e prática em psicanálise para aqueles que se autorizam analistas. Na dimensão da

transmissão, Lacan advertiu de que toda a análise é didática quanto à formação de

analistas. É na própria análise que o candidato irá experimentar a existência do

inconsciente. Ou seja, a transmissão da psicanálise nunca será possível apenas pelo

lugar do ensino e o candidato à analista não deve resumir sua formação ao estudo

teórico.

94 FREUD, S. “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades” [1919] In: ESB. OC. Vol. XVII. - Rio de

Janeiro: Imago, 1996. p. 187. 95

FREUD, S. “Análise Terminável e Interminável” [1937] In: ESB. OC. Vol. XXIII. – Rio de Janeiro:

Imago, 1996. 96

FREUD, S. “A questão da análise leiga” [1927]. In: ESB. OC. Vol. VI. - Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

66

Mas, qual a didática possível ao ensino da psicanálise? Ensino e

aprendizagem é um par de palavras caro à pedagogia, que procura reduzir os

acontecimentos de uma situação onde se pressupõe a transmissão de um saber. Para a

pedagogia, práxis é o processo pelo qual uma teoria, lição ou habilidade é executada ou

praticada, se convertendo em parte da experiência vivida. No caso da psicanálise,

podemos indagar se a clínica consite numa práxis ou se é outra coisa, na medida em que

não é apenas a aplicação prática de conceitos teóricos.

Outro ponto a ressaltar é que, segundo Freud, “[...] alguns gostariam talvez

de estar convencidos [...]”. Convencidos, o que quer dizer isso? Freud certamente se

refere ao convencimento quanto à existência do inconsciente. Mas a palavra convencido

tem também a conotação de enfatuado, no sentido narcísico. Aqueles alunos que

“acolhem as doutrinas psicanalíticas com a mesma frieza que acolhem as outras

abstrações” podem exibir narcisicamente seus conhecimentos da teoria psicanalítica.

Mas certamente só poderão praticar a psicanálise ao estarem convencidos da existência

do inconsciente por sua experiência pessoal. Além disso, sendo leigos, no sentido de

não estarem em análise, os estudantes acolhem com frieza a doutrina psicanalítica, pois

resistem aos significantes que os conceitos podem lhes evocar, mesmo a partir da

simples leitura dos textos.

A psicanálise está largamente difundida, ao contrário do que dizem seus

detratores. Talvez sua assimilação na cultura e sua distorção conceitual sejam ameaças

maiores do que a oposição explícita que sofre. Complexo, repressão, recalque,

transferência, dentre outras, são palavras correntes, que partem do repertório analítico,

mas que deixam de ser conceitos ao deixarem de operar na clínica. Aquela que ficou

conhecida como a primeira analisante, Anna O., dizia que se curava ao falar, pois fazia

a “limpeza da chaminé”.97

Talvez sejam os candidatos à analista que devam desentupir

sua chaminé, pois seus ouvidos podem estar cheio do sentido vulgar com o qual a

cultura resiste aos conceitos da psicanálise.

Um ofício se aprende praticando, continuamente, sob a orientação de um

mestre. A partir da revolução industrial, houve uma cisão entre o saber e o fazer, sendo

a universidade consagrada a produzir uma teoria, por si só, pouco operacional e à

97

GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. Tradução Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das

Letras, 1989.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

67

indústria passou a depender de administradores científicos. Ou seja, os que são

reconhecidos como sabedores, dizem aos fazedores como devem corretamente fazer. A

psicanálise, nesse sentido, não é contemporânea, pois não se acomoda nessa frincha. Se

há uma fenda pertinente à psicanálise é a que inaugura o sujeito, pela incisão

significante.

Não é controversa a diferença entre uma palavra e um conceito, mas

diferenciar ambas do significante é algo que não depende apenas de leituras, aulas,

seminários e outros meios do estudo teórico. Claro, podemos definir do que se trata o

significante para Lacan, e precisamos fazê-lo com a maior precisão. Mas, como

aprender a escutar os significantes implicados – e fixados – na posição subjetiva

daquele que vem demandar a cura ao analista? Somente aprendendo a escutá-los em

nossa análise e no controle com outro analista.

Lacan disse que a análise, “[...] essa produção, a mais louca por não ser

ensinável, como muito bem experimentamos, nem por isso nos liberta da hipoteca do

saber”.98

Ou seja, a análise é uma experiência não ensinável, na qual o saber está

hipotecado. Hipotecado é o que se diz daquilo que é garantia de um credor sem deixar

de ser posse de outro, que é proprietário. Lacan nos diz que o saber é uma garantia para

o sujeito na medida em que é sempre propriedade de um Outro, no qual o saber é

suposto.

No trabalho que apresentei nas jornadas da Maiêutica de outubro de 2008,

perguntei “[...] qual o saber que a instituição psicanalítica nos proporciona”. 99

A

resposta que consegui formular na época ainda é válida para mim. No escrito “Variantes

da cura-tipo”, Lacan pergunta o que o psicanalista deve saber, para logo responder que

ele deve saber ignorar o que ele sabe.100

E chamou de “douta ignorância” esse saber

sobre o inconsciente, enquanto lugar do não sabido. Isso porque o saber mantém

censurada a verdade do sujeito. Segundo Lacan:

O analista, com efeito, só pode enveredar por ela ao reconhecer em seu saber

o sintoma de sua ignorância, e isso no sentido propriamente analítico de que

o sintoma é o retorno do recalcado no compromisso, e de que o recalcado,

aqui como alhures, é a censura da verdade. A ignorância, de fato, não deve

98 LACAN, J. “Alocução sobre o ensino” [1970]. In: Outros escritos. - Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2003.

p.308. 99

FLORES, C. P. “Há cura?” [2008]. Inédito. Jornadas da Maiêutica Florianópolis - Instituição

Psicanalítica. Título das jornadas: “A cura é do sintoma?”. – Florianópolis, 2008. 100

LACAN, J. “Variantes da cura-tipo” In: Escritos. – Rio de Janeiro: J. Zahar Ed. 1998. p.351.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

68

ser entendida aqui como ausência de saber, mas, tal como o amor e o ódio,

como uma paixão do ser; porque ela pode ser, à semelhança deles, uma via

em que o ser se forma. 101

Ao retornarmos aos textos de Freud sobre o ensino da psicanálise,

encontramos bem situada a resistência dos alunos diante do estudo teórico, numa

posição fria. Agora, podemos nos perguntar, a partir de Lacan, qual a posição do

professor de psicanálise. No momento de concluir sua fala a respeito do ensino da

psicanálise, ao encerrar o congresso da Escola Freudiana de Paris em 1970, Lacan

afirma que “[...] o que realmente me cabe acentuar é que, ao se oferecer ao ensino, o

discurso psicanalítico leva o analista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir

nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma”. 102

A angústia do estudante de psicanálise ou a do psicanalista no lugar de

ensino, diante da dificuldade em se apropriar da teoria, talvez denuncie uma gana de

dominar os conceitos, para com eles exercer um poder, denunciando, com isso, seu

sintoma. Por essa razão, o estudo teórico deve estar acompanhado da análise pessoal,

sobretudo para aquele que deseja autorizar-se analista. Sobre esse ponto, Freud insiste

que “[...] uma formação desse gênero é mais bem executada se a própria pessoa se

submete a uma análise e a experimenta em si mesma; a instrução teórica na análise

fracassa em penetrar bastante fundo e não traz convicção”.103

101

Idem, ibidem, p. 360. 102

LACAN, J. “Alocução sobre o ensino” [1970]. In: Outros escritos. - Rio de Janeiro: J. Zahar Ed.,

2003. p.310. 103

FREUD, S. “Prefácio à Juventude Desorientada, de Aichhorn” [1925]. In: ESB. OC. Vol. XIX. - Rio

de Janeiro: Imago, 1996. p.307 e 308.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

70

O ENSINO TEÓRICO ENQUANTO DISCURSO

PSICANALÍTICO104

Lígia Maria Borba Pereira105

Isso não autoriza o psicanalista, de modo algum, a se dar por satisfeito com

saber que nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem de saber106

.

“Quem é o analista? Aquele que interpreta, tirando proveito da

transferência? Aquele que a analisa como resistência? Ou aquele que impõe sua ideia de

realidade?107

” Interrogações feitas por Lacan e constantemente refeitas ao longo de seu

Ensino, as quais inquietam os analistas durante o percurso de formação. Tais

questionamentos mostram sua pertinência diante da particularidade do saber

psicanalítico. Diferentemente de outras disciplinas, a psicanálise marca algo muito

singular que é o fato de o analista advir como efeito de uma análise. A partir de uma

mudança subjetiva proveniente do ato psicanalítico, é possível uma transformação na

economia do desejo do sujeito, sendo essa condição para que este possa operar a partir

do lugar do desejo do analista. Se é a partir da análise pessoal que é possível um sujeito

advertido e ocasionalmente um analista, torna-se evidente que o saber de que a

psicanálise trata é um saber do inconsciente.

Ao procurar um analista, o sujeito supõe que este saiba algo a respeito de

seu sofrimento e por isso o procura, nesse momento inicia-se o estabelecimento da

transferência que ocorre por parte do analisante108

. O analista por sua vez, através de sua

presença, encarna o sujeito suposto ao saber, que é “o eixo a partir do qual se articula

tudo o que acontece com a transferência109

”. A relação que o analista estabelece com

esse saber suposto é de grande importância para a psicanálise. O lugar de analista, da

104

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 105

Psicanalista, Participante da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. 106

LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro” [1967]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.

2003, p. 254.

107 LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” [1958]. In: Escritos Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1998, p. 598.

108 Como afirma Lacan: “No começo da psicanálise está a transferência. Ela está ali graças àquele que

chamaremos, no desapontar desta formulação, o psicanalisante.” LACAN, J. “Proposição de 9 de

outubro” [1967]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2003, p. 252.

109 Idem, ibidem, p. 253.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

71

douta ignorância, é devido a ele nada saber desse saber suposto, uma vez que nada sabe

sobre a singularidade de cada analisante.

Ao tratar do pivô da transferência, Lacan afirma que “Isso não autoriza o

psicanalista, de modo algum, a se dar por satisfeito com saber que nada sabe, pois o que

se trata é do que ele tem de saber110

”. Tal afirmação é categórica com relação à

autorização do analista, pois trás como fundamental a transmissão de um saber no

processo de formação. Ou seja, há algo a se transmitir e o ensino ocupa um lugar de

grande importância. O que é transmitido durante o percurso de formação, está apoiado

tanto na psicanálise em intensão quanto na psicanálise em extensão, sendo que o ensino

teórico deve levar em consideração a presença do inconsciente.

Uma grande diferença em relação a outros campos de teoria e prática é que

o ensino da psicanálise não promove uma aprendizagem teórica que leve a aplicação da

teoria a uma práxis. O que está em questão no ensino é justamente a forma que ele

ocorre, pois se dá através do discurso psicanalítico. Segundo Lacan, “ao se oferecer ao

ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a

não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de

sintoma111

”.

Tomando tal afirmação, fica evidente que o ensino da psicanálise deve

veicular o discurso psicanalítico. É na instituição, enquanto lugar privilegiado de

ensino, que esse discurso pode ser veiculado. Assim, não é possível em uma instituição

de psicanálise haver professores ou alunos, nem um que saiba e um que não saiba, pois

diferentemente de uma universidade, a instituição busca sustentar um discurso que não é

o do mestre nem do universitário. Tal posição de analisante que Lacan aponta que o

psicanalista ocupa ao ensinar psicanálise e afirma ocupar ao proferir seus seminários,

talvez possa ser a diferença mais relevante para que o ensino leve a um efeito de

formação, pois dessa forma busca deixar o lugar de mestre.

Segundo Harari, tal posição de analisante é o lugar de alguém que diz algo,

que demanda uma interpretação, demanda que durante a formação os analistas procurem

fazê-lo dizer mais do que foi proferido. Essa é a característica do discurso

psicanalítico112

. Lacan marca seu ensino com frases enigmáticas, com aforismos, que

110 Idem, ibidem, p. 254. 111

LACAN, J. “Alocução sobre o Ensino” [1970]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.

2003, p. 310. 112

HARARI, R. O que acontece no Ato Psicanalítico? [2001]. Rio de Janeiro. Ed. Companhia de Freud,

p. 28.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

72

possuem tal densidade teórica que necessitam ser desdobrados. Desse modo, procura

manter em seu discurso a possibilidade de se dizer um algo a mais e “cabe a nós

conseguir fazê-lo dizer aquilo que, sem tê-lo dito, se encontra presente em suas

formulações113

”.

O aforismo “o analista só se autoriza de si mesmo114

”, complementado

posteriormente por Lacan com “e por alguns outros”, é um desses ditos lacanianos que

faz necessário sua abertura. Trás questões sobre a formação do analista, sua autorização

e o lugar da instituição. Tomando-o como exemplo do ensino de Lacan fica claro que é

preciso fazê-lo dizer algo além do que está dito e que o ensino da psicanálise deve

procurar evitar o que “Lacan chama da mais corrupta das acomodações: a acomodação

intelectual115

”.

Desse modo, tenta impedir o que pôde perceber que acontecia com a

transmissão da psicanálise nas instituições ipeístas em que a padronização da formação

através de uma predeterminação da quantidade de sessões de uma análise didática e da

quantidade de anos em análise, procurava dar garantias a essa formação, levando a uma

normatização que acabava por degradar a psicanálise a uma educação com metas claras

a serem cumpridas.

Tal burocratização aniquilava com os próprios fundamentos da psicanálise.

Lacan criticava severamente os critérios da formação ipeísta, o conteúdo do ensino e

acusava a sociedade psicanalítica de funcionar como uma sociedade de senhores

servidos por escravos116

. Seus comentários em relação ao tecnicismo da IPA geraram

conflitos com outros analistas que discordavam de sua doutrina, principalmente no que

se referia às sessões de duração variável. Diante de impasses institucionais, Lacan é

excomungado da Sociedade Francesa de Psicanálise117

e é levado a fundar a Escola

Francesa de Psicanálise.

Ele, então, propõe novos dispositivos para a formação que passam a ter

como fundamento a autorização do analista. Dessa maneira, realiza um importante

avanço para a psicanálise, pois a partir de sua leitura dos textos freudianos, mostra um

113

Idem, ibidem, p.33. 114

LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro” [1967]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.

2003, p. 248. 115

HARARI, R. O que acontece no Ato Psicanalítico? [2001]. Rio de Janeiro. Ed. Companhia de Freud,

p. 33. 116

ROUDINESCO, E. Jacques Lacan: Esboço de uma vida: História de um sistema de pensamento.

[1994]. São Paulo: Companhia das Letras, p. 341. 117

Idem, p. 351.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

73

interminável na formação. Não há um momento final, não há uma linha de chegada para

quem quer ser analista, não há um analista analisado. Harari em “O que acontece no ato

analítico118

” nos esclarece que o sujeito advertido não é um sujeito analisado, mas um

sujeito que foi analisante, “é um sujeito tendo sido psicanalisando119

”. Tal tempo verbal

indica uma ação inacabada, demonstrando que não há um analista pronto.

Nesse mesmo livro, ressalta o aspecto paradoxal do final de análise, “que

deve terminar por ter algo de interminável120

”, característica também presente no ensino

da psicanálise. O ensino não tem término, o que pode ser reconhecido pelo analisante

em sua análise pessoal e a partir disso, torna-se possível a esse sujeito assumir um lugar

de ensino que “não tem outro caminho senão o de persistir em uma aprendizagem

interminável121

”. Desse modo, a formação do analista é permanente e é através da

instituição que a formação pode continuar, pois juntamente com os pares o analista deve

dar provas permanentes de sua formação.

Lacan afirma que o ensino “só pode transmitir-se de um sujeito para

outro pelas vias de uma transferência de trabalho122

” e é a essa transferência que a

instituição deve dar suporte. Ressalta a existência de um “antagonismo entre saber e

ensino e que o discurso psicanalítico não se sustentaria se o saber exigisse a

intermediação do ensino123

”. Afirmação que salta aos olhos pelo caráter de

impossibilidade que é revelado. Podemos conceber que esse é um dos impossíveis com

o qual se faz necessário o convívio, uma face do Real na formação do analista. Diante

disso, Lacan diz que “a salvação do ensino é o ato124

”, pois o analista em sua prática não

é determinado pelo que sabe da psicanálise enquanto saber intelectual. Assevera assim,

a complexidade do ensino da psicanálise apontando que o psicanalista “não é

determinado pela sua forma mental, mas em sua posição de sujeito tal como inscrita no

real: tal inscrição é o que define propriamente o ato125

”.

118

HARARI, R. O que acontece no Ato Psicanalítico? [2001]. Rio de Janeiro. Ed. Companhia de Freud 119

Idem, ibidem, p. 278. 120

Idem, ibidem, p. 30. 121

Idem, ibidem, p. 31. 122

LACAN, J. “Ato de fundação” [1971]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2003. p.

242. 123

LACAN, J. “Alocução sobre o Ensino” [1970]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.

2003. p. 308. 124

Idem, ibidem, p. 309. 125

LACAN, J. “O engano do sujeito suposto saber” [1967]. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, Ed. 2003. p. 339.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

74

O LUGAR DA TEORIA NA PRÁTICA PSICANALÍTICA126

Clara A. Fonseca Carvalho127

Ao retomar a obra de Freud, Lacan propõe o questionamento acerca dos

fundamentos da psicanálise, um questionamento indispensável, considerando que o

estudo da teoria psicanalítica é imprescindível à formação do analista. Os desvios da

teoria e o desconhecimento de suas noções fundamentais trazem distorções também às

intervenções do analista e seus resultados na prática clínica, já que a teoria e a prática

psicanalíticas são indissociáveis. Lacan critica, então, as concepções que, eclipsando os

termos mais vívidos da psicanálise, o inconsciente e a sexualidade, enfatizam a relação

do sujeito com seu meio social. Lacan indica que

A ênfase posta no ambiente constitui uma redução do que é proporcionado

por toda a experiência analítica. É um retorno à posição simplesmente

objetivante que coloca em primeiro plano a existência de um certo indivíduo

em sua relação mais ou menos adequada, mais ou menos adaptada, ao seu

meio.128

Nesta perspectiva, a relação entre sujeito e objeto passa a ser o elemento

central na teoria, e a noção de Eu adquire primeira importância em relação às outras

instâncias psíquicas propostas por Freud. A partir disso, instaura-se uma tipologia na

qual haveria os pré-genitais, que teriam uma estrutura do Eu frágil, e os genitais, que

teriam um Eu forte, bem como a noção de um objeto plenamente satisfatório,

harmonioso, o objeto genital. Nesta concepção, a experiência analítica teria como alvo

este objeto ideal, marcando a maturação e a normalização do sujeito, e a relação entre

analista e analisante é considerada em termos de uma relação dual.

Centrando-se na dimensão imaginária, fica excluído, nesta concepção, o

terceiro elemento que intervém como ponto central na relação entre analista e

analisante: a palavra. Desta forma, o analista passa a analisar o comportamento do

sujeito, buscando para-além da fala uma realidade que preencha o vazio daquilo que o

sujeito não diz. Lacan vem lembrar, então, que “a psicanálise dispõe de apenas um

126

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. “AuTOrizar-

se Analista” Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 127

Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. 128

LACAN, J. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 17.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

75

meio: a fala do paciente”129

. Ressalta que a relação imaginária não pode ser eliminada

do manejo da análise, mas pode ser útil, desde que não seja desvinculada da relação

simbólica, para possibilitar ao analista detectar aquilo que deve ser ouvido no discurso

do analisante, de maneira que o que concerne ao sujeito do enunciado possa ser

reassumido como enunciação.

Ao tratar dos desvios encontrados na teoria, que se tornam destrutivos para a

técnica psicanalítica, Lacan ressalta:

a técnica não pode ser compreendida nem corretamente aplicada, portanto,

quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será

demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem

num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala.130

Na análise, busca-se instaurar um discurso, através da regra na qual o sujeito

deve deixar de sustentar o que enuncia. “O que justifica essa regra é que, precisamente,

a verdade não é dita por um sujeito, mas suportada”131

. Trata-se, então, de escutar a

verdade do sujeito, através de um discurso ao qual o analisante se submete para que este

tenha conseqüências. Neste sentido, o trabalho do analista não consiste em adotar um

lugar de saber, pois não há um conhecimento teórico a ser aplicado na prática clínica. O

lugar de onde o analista opera implica intervir a partir do que a transferência lhe imputa

a ser, consistindo sua ação na direção do tratamento partindo da fala do analisante,

tomado em sua singularidade.

Freud132

ressalta que a fala do analisante, a princípio, significa tão pouco

para o analista quanto para o próprio sujeito, se apresentando como distorções do que se

procura, e que cabe ao analista escutar o saber inconsciente de cada analisante. Além

disso, ressalta que o analista deve ter prudência quanto ao momento de intervir, sob

pena de, ao comunicar suas interpretações ao analisante, obter expressões de resistência,

rejeição e indignação, não atingindo-se os efeitos esperados de uma análise, isto é, a

possibilidade de restituição da história do sujeito, como indica Lacan133

.

Para que seja possível conduzir uma análise, Freud indica que o estudo da

literatura analítica, ou seja, o aprendizado da teoria, é insuficiente. Lacan aponta:

129

LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” In: Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1998. p. 248. 130

Idem, ibidem, p. 247. 131

LACAN, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 67. 132

FREUD, S. “A questão da análise leiga” In: ESB. OC. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 173-

248. 133

LACAN, J. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

76

Que há uma teoria da prática psicanalítica, isso é certo. Do inconsciente, não,

a menos que queiramos reverter o que acontece com essa teoria da prática

psicanalítica, que nos dá do inconsciente o que dele pode ser apreendido no

campo dessa prática, e nada mais.134

Uma teoria do inconsciente consistiria em um extravasamento das bordas da

via analítica, levando à perspectiva desviante de psicanálise aplicada. Coloca-se,

portanto, uma relação singular com o saber, na medida em que o estudo da teoria é

fundamental à formação do analista, mas é somente a experiência do saber inconsciente

que torna possível ao sujeito se sustentar no lugar de analista.

Harari135

destaca que o ensino e a transmissão da psicanálise são coisas

distintas. O ensino refere-se à teoria psicanalítica, um saber sobre suas noções

fundamentais, enquanto que na transmissão trata-se do saber sobre algo da prática da

psicanálise. A transmissão da psicanálise, então, ocorre pela via da transferência, ou

seja, na análise pessoal, sendo esta transmissão da ordem do não-sabido.

Freud salienta que aqueles que pretendam colocar-se no lugar de analista

“devem aprender a análise da única maneira possível – submetendo-se eles próprios a

uma análise.”136

. Assim sendo, como aponta Lacan, toda análise é didática, provocando

uma mudança que possibilita a passagem do lugar de analisante ao lugar de analista.

Esta mudança significa que, como efeito da análise, gera-se um sujeito advertido dos

efeitos da linguagem, isto é, do inconsciente como efeito da linguagem no sujeito. Isso

só é possível pela transferência. Ou seja, o sujeito deve colocar seu analista no lugar de

Sujeito suposto ao Saber, “o eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a

transferência”137

. Deve, inicialmente, supor que o analista é portador de um saber sobre

seu sofrimento. Mas esta relação transferencial também deve se modificar, à medida que

o sujeito se implica em seu processo de análise, havendo a destituição do analista do

lugar de quem detém de um saber sobre o sujeito para o lugar de quem sabe conduzir

uma análise.

134

LACAN, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 64. 135

HARARI, R. Formações do inconsciente, formações do analista. Maiêutica Florianópolis – Instituição

Psicanalítica. Caderno nº 3, dez. 1999. 136

FREUD, S. “A questão da análise leiga” In: ESB. OC. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 238. 137

LACAN, J. “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista na escola” In: Outros escritos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 253.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

77

Lacan diz que “a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do

sujeito, até que se consumem suas últimas miragens”138

. Submeter-se a uma análise

implica, portanto, uma mudança de posição subjetiva, caracterizada pelo deslocamento

de uma posição narcísica para suportar as incertezas, suportar a castração. Trata-se da

função de corte no discurso, ou seja, do corte na cadeia significante para romper com o

sentido e com a alienação imaginária onde o sujeito se vê capturado. Mas é importante

que, em uma análise, não se opere apenas no registro do Simbólico, pois como ressalta

Harari139

, o efeito produzido, de um simbólico generalizado, levaria à noção de que tudo

é interpretável, de que é possível dar sentido a tudo. Uma análise implica também,

então, o encontro com o sem sentido, com o Real, com a falta que consiste no núcleo do

ser.

Lacan refere que “se ao analista se impõe a condição ideal de que as

miragens do narcisismo tenham-se lhe tornado transparentes, é para que ele seja

permeável à fala autêntica do outro, de quem se trata agora de compreender como ele

pode reconhecê-la através de seu discurso”140

. Trata-se, portanto, de ignorar o seu saber

para poder escutar o sujeito em sua singularidade, de forma a reinventar a análise a cada

analisante. Assim, “a análise só pode encontrar sua medida nas vias de uma douta

ignorância”141

.

Lacan coloca que “A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem

fala”142

. Isso quer dizer que sua essência é a função do discurso, pois não é possível

falar sobre o que se passa em uma análise. A fala somente tem lugar na experiência

analítica, enquanto fala sob a regra da associação livre, possibilitando que algo do

inconsciente apareça. Determina-se, então, uma “impossibilidade teórica”, pois não

existe universo do discurso, isto é, fundamentado na articulação significante, o discurso

é impossível de totalizar.

O saber que é possível ser ensinado é um saber não-todo, marcado pela

castração. Há algo que não é simbolizável, pois a prática clínica não é possível de ser

abarcada pela teoria. Com isso, coloca-se um Real da formação do analista, o que

138

LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” In: Escritos. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1998. p. 253. 139

HARARI, R. Formações do inconsciente, formações do analista. Maiêutica Florianópolis – Instituição

Psicanalítica. Caderno nº 3, dez. 1999. 140

LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 354. 141

Idem, ibidem, p. 364. 142

LACAN, J. O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 14.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

78

significa que sua formação é permanente. Torna-se necessário, então, o trabalho com

outros analistas na instituição, onde o analista deve dar provas permanentes de sua

formação. Assim, o ensino da teoria psicanalítica não constitui garantia quanto à

possibilidade do sujeito se sustentar no lugar de analista, pois o saber de que se trata em

psicanálise é o saber inconsciente. Harari ressalta: “as formações do inconsciente do

analista, pelas quais ele vai se analisar – ele não vai se analisar por um motivo

‘profissional’, senão pela sua neurose – darão pé à possibilidade de ele se formar como

analista” 143

.

143

HARARI, R. Formações do inconsciente, formações do analista. Maiêutica Florianópolis –

Instituição Psicanalítica. Caderno nº 3, dez. 1999, p. 14.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

80

UM AUTORIZAR-SE VACILANTE144

Tania Nöthen Mascarello145

Sobre o adjetivo Vacilante que escolhi para acompanhar o título de nosso

Painel encontrei no verbete do dicionário os seguintes significados: “Pouco firme,

malseguro”; “Hesitante, perplexo”; “Trêmulo, oscilante”; “Que está prestes a cair”.

Pareceram todos muito apropriados ao que quero falar. Esta breve intervenção propõe

articular algumas idéias sobre o caráter vacilante do autorizar-se analista, mediante

discorrer sobre o horror que acompanha muitas vezes, em maior ou menor intensidade,

o ato analítico. O roteiro para esta estas idéias me foi dado por Roberto Harari, em seu

livro “O que acontece no ato analítico?146

As modalidades do horror ao ato analítico estão ligadas ao horror do que se

joga na transferência. O horror vem por constatar que o que é vivido na transferência

não se trata de uma sombra do passado, do que foi vivido com o pai ou com a mãe, mas

sim como o que é vivido na análise com o analista.

Invadido por este horror, o analista, tanto se demite da posição de semblante

de a que sustenta a análise de seu analisante, como se esquiva de verificar a potência de

seu ato. Ele evita tornar pleno o seu dizer, calibrando a potência de seu ato linguageiro

em relação aos seus efeitos e às consequências, geradas por sua práxis. O analista,

invadido pela angústia, é vítima da própria inibição. A palavra feita ato não se

desprende, porque o que está operando é a cena do fantasma do analista e não o desejo

do analista.

O Horror ao ato, como vimos, trata da situação na qual um ato se apresenta

ao analista como possibilidade, do qual ele se esquiva. A imprevisibilidade dos efeitos

do seu ato, ou seja, a posição de sempre em falta diante do saber, o mal estar que este

lugar e esta função implicam como lhe sendo inerentes, faz com que o analista deslize

de seu lugar e vacile diante de sua função.

O Horror do ato, por sua vez, noção que é pouco teorizada, trata da situação

144 Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. “AuTOrizar-

se Analista” Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 145

Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis - Instituição Psicanalítica. 146

HARARI, R. O que acontece no ato analítico? A experiência da psicanálise. Rio de Janeiro:

Companhia de Freud, 2001. p. 243-51.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

81

na qual o ato já aconteceu e, só então, o analista se pergunta sobre o que fez ou o que

isso pode causar. É um dizer do analista que o interpela, não sem angústia, que o

descentra, quase sempre com um sentimento de vergonha que tanto dá lugar à inibição

significante como também a uma interpretação, ou seja, ou o analista não sabe de onde

lhe veio o que acabou de dizer ou busca compulsivamente uma interpretação para o que

disse. Aparece aí novamente a figura cunhada por Lacan quando dissolve sua Escola

Freudiana de Paris: “O analista tem horror de seu ato”. Paradoxalmente, tem horror de

comprovar que seu ato é eficiente.

Diante disso podemos sublinhar a importância e o lugar da análise de

controle na formação do analista, como um dos quatro pilares de sua formação e sua

consequente autorização: análise pessoal, análise de controle, processamento não

ecolálico da teoria e a instituição psicanalítica a qual pertence o analista.

Retomando a Análise de Controle é desde esta instância da formação que é

possível fazer o controle do desejo do analista, vacilante por sua própria condição de

sujeito e porque sempre resta um não analisado na análise da cada um. O horror ao ato e

o horror do ato manifestam-se de diversas maneiras neste contexto. Faremos referência

a algumas:

– Por vezes, o analista controlante afirma que uma das análises a seu encargo

está estagnada, que não “anda”, que esta análise não funciona e demanda por uma

supervisão. Não aceder a essa demanda implica muitas vezes na mostração de que

apesar das firmes crenças em contrário, nessa análise acontecem efeitos analíticos,

mesmo que não reconhecidos como tais. Se seguirmos esta lógica poderemos dizer que

o analista efetivou o seu ato;

– Noutros momentos, a afirmação do analista controlante é a de que não sabe

mais nada, que parece que esqueceu de tudo, que deve começar a ler Freud de novo, que

precisa estudar os seminários de Lacan, fazer parte de algum grupo de estudos e coisas

similares. Para este analista, o remédio para o horror à eficácia de seu ato, supostamente

pode ser encontrado no acúmulo de saber referencial. Fica assim desestimado o saber

depositado pela experiência do analista e sai de cena que o analista é um precipitado

dessa experiência, justamente se ele tolera e combate o horror resistencial ao seu ato;

– A terceira e última possibilidade que queremos mencionar é quando o analista

se demite da posição de semblante de a – objeto causa de desejo – que sustenta a análise

de seu analisante, para ocupar verdadeiramente o brasão de dejeto, literalmente o lugar

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

82

de merda. Demanda por esse lugar e o alcança, pois segue o destino do objeto anal, ou

seja, ser dispensado, ser rechaçado, marginalizado.

Para concluir, quero fazer uma última pontuação sobre o caráter vacilante da

Autorização do analista. De que se trata? Da vacilação calculada, formulação lacaniana

que podemos situar como absolutamente distinta da vacilação do analista por horror à

eficácia de seu ato. Em seu escrito “Subversão do sujeito...147

”, Lacan deu a entender

que só se preserva o lugar do analista “saindo-se” do lugar do analista. A essa condição

paradoxal a nomina “Vacilação calculada da neutralidade do analista”. Nesta proposição

lacaniana é a neutralidade que alude a não tomada de partido por parte do analista, que é

transitoriamente revogada. E mais, é uma vacilação calculada, pois não se trata de um

cálculo de precisão, mas sim que sempre fica da intervenção realizada, um resto de Real

incalculável. Esta vacilação não é acidental nem inesperada, nem sobrevém ao analista,

mas tem, ainda assim, o caráter de um ato. Esta operação anti-neutra, vacilação

calculada, abre para um maior alcance do que um sem fim de interpretações. Esta

proposta de Lacan, mais diretamente para a análise da histeria, indica que quando uma

análise não anda, quando está obstaculizada, não resta outra alternativa ao analista que

busca não sair de seu lugar, senão a de sair pela mudança calculada sem horror ao, e do

ato.

Encerro esta breve exposição esperando ter deixado em evidencia que a

análise de controle do desejo do analista se desdobra em muitas questões, sempre em

debate.

147

LACAN, J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. In: Escritos. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 839.

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83

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84

PSICANALISTA: AUTOR? 148

André Moraes Souza149

Ao aceitar o convite para participar desse painel algumas questões me vieram

em mente. Com o tempo, após refletir sobre elas, encontrei um denominador comum.

Comecei a pensar sobre a diversidade de autores que influenciaram Freud, Lacan,

Harari. Pois são estes últimos os grandes autores que nos influenciam hoje.

Particularmente, pensei nos autores que influenciaram Freud. Boa parte deles

eram escritores. Pensei nos escritores que me influenciam hoje, e num deles encontrei

algumas questões que, transpostas do horizonte da literatura para o horizonte da

psicanálise, se revelaram muito férteis. Trata-se do livro O espírito da prosa – Uma

autobiografia literária, de Cristovão Tezza150

. Esse autor, escritor de longa trajetória,

reflete sobre o que leva alguém a escrever a ponto de tornar-se um escritor. Fazendo

uma transposição de suas questões para o universo da psicanálise, podemos colocar em

questão o que leva alguém a se tornar um psicanalista, o momento no qual alguém que

até então não fora ainda um psicanalista, torna-se psicanalista, e até mesmo a

possibilidade de ser verdadeira para o psicanalista a frase de Roland Barthes151

sobre o

escritor – aquela que dizia que num determinado momento da vida de um escritor

“escrever” torna-se num verbo intransitivo – tornando-se o “escutar”, para o analista,

não simplesmente a escuta de algo, mas apenas, “escutar”. Porém, o que me parece ser

mais importante em suas reflexões é a aposta no desejo de inadequação como uma

característica fundamental do escritor. Vale a pena desenvolvê-la, portanto, e pensá-la

dentro do tema do autorizar-se psicanalista.

Desejo de inadequação: não se adequar nem se integrar inteiramente ao

politicamente correto, à hipocrisia social, aos tabus impostos pela nossa cultura, nem às

certezas impostas pela força do hábito ou pelo crivo do senso comum. O analista é um

148

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “Autorizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 149

Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica.

150 TEZZA, C. O espírito da prosa: uma autobiografia literária. Rio de Janeiro: Record, 2012.

151 BARTHES, R. “Escrever, verbo intransitivo?” In.: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes,

2004.

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sujeito fora do lugar esperado pelos outros: não é o médico nem o padre; nem tampouco

juiz, gênio ou louco. Esta “inadequação” permite-lhe criar algo novo, ou salientar o

novo, através de uma escuta. Pois o novo é uma característica fundamental do

significante: foi o que levou Lacan a desvendar a maneira pela qual o Inconsciente

descoberto por Freud se estruturava: como linguagem.

Isso tudo nos leva à seguinte questão: é o psicanalista também um autor?

Entendo por autor alguém que, ao fazer uso próprio da linguagem, distancia-se

de si mesmo. Ao abrir a boca para falar ou ao movimentar a mão para escrever, abre um

espaço no qual uma nova realidade, construído por ele, tem lugar. Uma nova realidade

por ele narrada, descrita, pontuada, silenciada. Ao sofrer os efeitos da intervenção de

seu autor, provoca nele transformações. Deixa-lhe marcas.

O autor não é a pessoa que está ali falando, escutando ou escrevendo. É um

“outro” que tem seu próprio lugar no espaço intangível da linguagem. Se o autor for

psicanalista, seu espaço intangível receberá outro nome: Inconsciente.

Num certo momento de sua trajetória, Freud afirma ter aprendido a psicanálise

com os grandes escritores. Podemos entender essa declaração como uma maneira de

encontrar um lugar para o psicanalista. Não estando na série dos grandes médicos nem

dos pastores seculares de almas, é na série dos grandes escritores – sejam eles artistas

criadores, tais como Shakespeare, Goethe, Schinitzler, Cervantes, Dostoiévski, etc,

sejam eles cientistas exploradores, tais como Herbart, Fechner, Exner, Charcot,

Einstein, etc– que ele estará. Romancista ou dramaturgo, cientista ou poeta, o escritor é

alguém que através do uso de um estilo próprio de linguagem é capaz de superar aquilo

que já foi estabelecido, apontando para o novo.

Entendendo ser este o lugar no qual Freud situa o psicanalista, caberá a nós

refletir sobre a seguinte questão: é o psicanalista um autor?

Essa questão aparece como fundamental no texto de Harari (2001)152

. Ao afirmar

que há uma mudança de posição subjetiva no homem Freud no momento em que ele se

despe dos restos de seu nome de batismo para assinar seus primeiros trabalhos, entendo

estar ele apontando para o nascimento do autor Freud. Nascimento que é fruto de um

novo batizado – uma autorização – que se dá através da assinatura de um novo nome e

152 HARARI, R. O que acontece no ato analítico? A experiência da psicanálise. Rio de Janeiro:

Companhia de Freud, 2001.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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da escrita de um novo texto. O nome é Sigmund, e o texto, que continua a ser escrito até

hoje, é a psicanálise.

A questão do “autor” psicanalista parece tomar uma forma mais nítida quando

Harari menciona o célebre poema de Fernando Pessoa. Especialmente no que se refere à

frase “chega a fingir que é dor a dor que deveras [grifo meu] sente153

”.

O poeta é um autor de versos. Se ele é um fingidor que finge sentir a dor que

realmente sente, é porque a dor sentida não poder ser perfeitamente traduzida em

palavras; a dor cantada em versos é outra dor. Diferente da dor original, real e

impronunciável, a dor cantada em versos a semblanteia, através desse fingimento

verdadeiro.

Feitas essas considerações, voltamos novamente à questão: “é o psicanalista

também um autor?”.

153

Idem 5, ibidem 5, p.93.

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88

O RESGATE DA BABAQUICE154

Jeanine A. Fialho155

Neste breve trabalho buscarei apresentar um recorte da obra de Roberto Harari:

“O que acontece no ato analítico?156

” articulado ao que poderia parecer na clínica como

desdenhável e irrelevante.

Nos capítulos VIII e IX do livro “Psicopatologia da vida cotidiana”, intitulados

respectivamente “Equívocos na ação” e “Atos sintomáticos e casuais”, Freud narra os

fatos ocorridos com alguns conhecidos, com seus pacientes e com ele mesmo, marcando

o que há de mais banal, mas que traz para o sujeito algo que nem ele mesmo suspeita.

São ressaltados nestes textos acontecimentos que parecem insignificantes e que

normalmente são tratados como irrelevantes. O psicanalista interroga um a um: por que

peguei um diapasão ao invés de um martelo? Por que quebrei a tampa do meu tinteiro?

Por que minha paciente me conta que feriu o dedo ao retirar sua cutícula? Analisa a

frequente perda de anéis, o brincar com a bengala, o retorcer a barba, entre tantos outros

acontecimentos e circunstâncias da vida cotidiana. Para ele tais atos não podem ser

reduzidos a movimentos desajeitados aparentemente acidentais ou simples

características do indivíduo, pois “mostram-se regidos por uma intenção e alcançam seu

objetivo com uma segurança que em geral não podem vangloriar-se nossos movimentos

voluntários conscientes.”157

Em 1902, Freud já advertia o leitor sobre o “propósito

inconsciente por trás da realização desses atos.”158

Harari, por sua vez, adverte que este texto de Freud aparentemente simples pode

ser um obstáculo, justamente porque pode se perder aí “a sua notável riqueza

conceitual159

” e por conseguinte, uma das possibilidades de pensar o que acontece no

ato analítico. O que está em jogo para nós desde já? Aquilo que pode ser descartado,

não ser sublinhado ou pontuado porque aparenta não ter importância. Nos casos

154

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 155

Psicanalista, Membro da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. 156

HARARI, R. O que acontece no ato analítico? A experiência da psicanálise. Tradução de André Luis

de Oliveira Lopes. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001. 157

FREUD, S. “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana” [1901]. In: ESB. OC. Vol.VI. Rio de Janeiro:

Imago, 1976, p.152. 158

Idem, ibidem, p. 154. 159

Idem 3, ibidem 3, p.109.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

89

apontados por Freud o executante dos inúmeros exemplos que ele traz não estão cientes

da sua implicação no ocorrido.

Lacan ao propor o elogio da babaquice – analogia que faz com a obra de

Erasmo, “Elogio da Loucura” – possibilita pensar o que opera no analista fazendo-o

sustentar a fala do analisante e o autorize, a se por a prova dos efeitos de linguagem, dos

efeitos de sua própria divisão, por fim, de sua própria falta. Este é outro viés da

autorização do analista. Para Lacan 160

“é indispensável apreender a verdadeira

dimensão da babaquice como sendo isso que há de comum com o ato psicanalítico” e,

portanto, com a autorização do analista. A esse mesmo respeito Harari escreve que:

A matéria-prima do analista, psicopatologia da vida cotidiana, é a idiotice, a

babaquice. Traduzamo-lo como proposta: ‘Diga babaquices, que chegaremos

ao núcleo de seu ser e assim se abrirão as comportas para que você se

autorize novos gozos, não parasitários nem sujos’. Em resumo: a babaquice e

a idiotice são as vias idôneas a fim de que o ato psicanalítico possa ser

processado.161

No seminário 15162

Lacan nos lembra que só se falam coisas tão babacas a quem

se supõe um saber e que só há ato analítico junto do manejo da transferência. Esta

referência é fundamental. O analista ao ser convocado a escutar algo dessa ordem pode

se perguntar: “Por que me conta isso? Tendo tantas coisas importantes a serem

trabalhadas, onde quer chegar com esse blá, blá, blá?”. O assombro e a admiração do

analista, junto ao desdém do analisante diante de seu próprio relato, relato que para ele

não deveria convocar o analista a qualquer tipo de intervenção, dizem algo,

“demonstram a existência de um lugar que discorre, alheio ao eu, e que irrompe de

modo inesperado nos ditos do sujeito. A experiência óbvia é o lapso, formação que não

nos deixa em boa posição, na pomposidade de nosso prestígio egóico”163

. Desde o início

deste trabalho queremos marcar que no lapso “há um chamado à interpretação, mas não

se trata de algo que marque uma correlatividade com um certo significado inconsciente

hipotético, mas acusa uma hiância na cadeia discursiva.”164

Ao querer se esquivar da acusação de “ativismo”, termo apontado por Harari165

,

ou de ser aquele que tudo interpreta, o analista rejeita a velha fórmula freudiana: “fale o

160

LACAN, J. Seminário 15: O ato analítico. Aula de 22/11/1967. Inédito. 161

Idem 3, ibidem 3, p. 255. 162

Idem 7, ibidem 7. 163

HARARI, R. O Seminário “angústia” de Lacan: uma introdução. Tradução de Francisco Settineri.

Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1992, p.24. 164

Idem, ibidem. 165

Idem, ibidem, p.116.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

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que vier a sua cabeça”. Ao estilo de Lacan166

: “Vamos lá, diga tudo o que lhe passar

pela cabeça, por mais dividido que seja, por mais que isso manifestamente demonstre

que ou bem você não pensa, ou bem não é absolutamente nada, isso pode funcionar, o

que você produzir será sempre válido.” Por este viés, algo que não se prevê nem se

anuncia é que pode interpor-se ao sujeito provocando uma abertura, algo da ordem de

um ato. Para Harari:

O ato consiste em uma experiência de mutação em sua posição subjetiva,

como costuma acontecer em momentos de estancamento onde ‘não passa

nada’. Em algum nível, efetivamente, não ‘passa’ o que logo depois –

eventualmente – pode passar. Já assinalamos que uma análise não dá

testemunho de um progresso contínuo, mas que abarca movimentos de ida e

volta, completamente inevitáveis.167

Sabemos que é na análise, é neste lugar que se pede a alguém que fale bobagens.

Harari168

pontua que “este é o único lugar onde se pede a alguém que seja capaz de

suportar-se dizendo bobagens” ao contrário daquilo que é apregoado a psicanálise, do

sério, profundo que virá a tona mediante o acúmulo do saber referencial de um analista.

Lacan sustenta que, na realidade, na psicanálise se trata de uma prática de

bavardage,ou seja, da tagarelice, da bêtise, da bobagem [...]. Quando Lacan

retoma o inconsciente freudiano, insiste muito nessa dimensão do tropeço, da

falha, da fenda que se manifesta no discurso homogêneo manifesto por esta

irrupção boba do inconsciente169

.

O ato diz sobre o sujeito, diz para o sujeito que crê saber o que lhe passa, que

sempre há falha, fratura, uma fenda e que ele é consequência da perda, portanto que

sempre algo irá lhe faltar. Seguimos com Lacan acreditando que “as coisas existem e

têm efeitos” e que “é preciso que haja pessoas que tratem de levar em conta esses

efeitos e operar em seu campo170

”, pessoas que se autorizem a escutar. Pois bem, aqui

estamos mais uma vez renovando esta aposta.

166

LACAN, J. Seminário 17: o avesso da psicanálise [1967-1970]. Versão brasileira de Ari Roitman. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1992, p. 100. 167

HARARI, R. Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan. Tradução de Marta M.

Okamoto e Luiz Gonzaga B. Filho. Campinas: Papirus, 1990. p.85. 168

Idem, ibidem, p. 37. 169

Idem, ibidem, p. 37-38. 170

Idem 13, ibidem 13.

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92

HÁ MESMO UM TRIPÉ NA FORMAÇÃO DO ANALISTA? 171

Yuri Disaró Amado172

Em nossa jornada de Cartéis, há um consenso em entender a formação do

analista como algo que se baseia em “três mais um” apoios. Três mais um porque, sobre

o famoso tripé que teria sido proposto por Freud, contemplando a análise própria, a

análise de controle e a teoria como os três aspectos fundamentais da formação do

analista, Lacan teria acrescentado uma quarta base, oferecida pela instituição da qual o

analista faça parte.

O reconhecimento do tripé é ponto pacífico para psicanalistas de variadas

formações que pilares básicos da formação psicanalítica sejam a supervisão, a análise

didática e os seminários e estudos teóricos, tal como pode-se encontrar nos trabalhos de

Padilha173

, Rocha174

, ou Zaslavsky175

. Gonçalves176

descreve esse famoso tripé como:

ser analisado e estar disponível para voltar a ser analisado; ter estado e estar

disponível para inúmeras situações de supervisão, tanto individualmente

como em grupo e participar de seminários clínicos; dedicar-se a conhecer a

obra de Freud, reconhecendo-a como o ponto de partida de inúmeros outros

pensadores e teóricos da Psicanálise.

Mas, a bem da verdade, é importante notar que a famosa analogia com o

tripé foi um trabalho a cargo dos analistas que puderam ouvir e interpretar as obras de

Freud e Lacan. Freud nunca chegou a mencionar tal analogia, e o texto no qual ela é

sempre apontada, “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades177

”, parece ter sido

uma produção de menor interesse para seu autor. Segundo as notas do editor inglês178

,

171

Trabalho apresentado como painel de questões nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição

Psicanalítica “AuTOrizar-se Analista”, em Florianópolis, nos dias 21 e 22 de setembro de 2012. 172

Psicanalista, membro da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica, e mestre em Psicologia pela

UFSC. 173

PADILHA, M. T. de M. “Supervisão: o ato da palavra”. In: Estudos de Psicanálise, (28), 2005. p.103-

110. 174

ROCHA, F. J. B. “Emancipação versus adaptação: perspectivas na formação psicanalítica”. In: Jornal

de Psicanálise, 38(69), 2005. p. 131-149. 175

ZASLAVSKY, J., NUNES, M. L. T., & EIZIRIK, C. L. “A supervisão psicanalítica: revisão e uma

proposta de sistematização”. In: Revista de Psiquiatria do RS, 25(2), p. 297-309. 2003. 176

GONÇALVES, C. S. “Tornar-se analista – variâncias e invariâncias”. In: Jornal de

Psicanálise, 38(69), p. 339-348. 2005. 177

FREUD, S. “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades” [1919]. In: ESB. OC. Vol. XVII. Rio de

Janeiro: Imago, 1976. 178

Idem, ibidem.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

93

James Strachey, Freud provavelmente o teria escrito no outono de 1918, e o texto nunca

foi encontrado senão em uma tradução húngara feira provavelmente por Ferenczi. Nele,

encontramos a passagem a seguir:

o que ele necessita [o analista em formação], em matéria de teoria, pode ser

obtido na literatura especializada e, avançando ainda mais, nos encontros

científicos das sociedades psicanalíticas, bem como no contato pessoal com

os membros mais experimentados dessas sociedades. No que diz respeito à

experiência prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal,

pode consegui-la ao levar a cabo os tratamentos, uma vez que consiga

supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos179

. (grifos nossos)

Uma questão a se fazer é se a analogia do tripé realmente é valida quando

traz consigo a alusão de que estes três princípios necessários à formação do analista

sejam mutuamente complementares. Um tripé do qual se retira uma de suas pernas,

perde a sustentação, e cada um dos três pés só se mantém porque os outros dois o

apoiam. Insinua-se com a metáfora, que a mesma interdependência entre esses apoios

também exista entre análise pessoal, análise de controle, e estudo da teoria. Mas

aparentemente, não podemos sustentar a afirmação de que estes três elementos

dependam um do outro.

Sobretudo os psicanalistas que trabalham em meio acadêmico,

frequentemente se deparam com um problema em suas esperanças de poderem oferecer

uma análise didática aos alunos dos cursos de psicologia. Quando estes buscam uma

supervisão para o trabalho que desenvolvem com pacientes em clínicas-escola antes de

haverem passado por uma análise pessoal, há frequentemente um pedido de supervisão

que não ultrapassa a limitação presente na etimologia da palavra supervisão. Busca-se

um profissional mais experiente, que tenha uma visão superior para coordenar o que o

analista deva fazer na próxima sessão. Não há muito espaço para o questionamento da

subjetividade no analista tal como se esperaria poder se produzir em uma análise de

controle.

Também há um problema de mesma natureza quando um estudo da teoria

psicanalítica é realizado por parte de alguém que não tenha passado pela experiência de

análise. Esta pessoa sempre irá incidir no mesmo problema já descrito por Freud:

Quando ministramos aos nossos alunos instrução teórica em psicanálise,

podemos ver quão pouca impressão lhes estamos causando, para começar.

Eles absorvem as teorias da análise tão friamente quanto outras abstrações

179

Idem, ibidem.

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CADERNO DAS JORNADAS DA MAIÊUTICA: AUTORIZAR-SE ANALISTA

94

com as quais são alimentados. Poucos deles talvez desejem ficar

convencidos, mas não há qualquer vestígio de que estejam180

.

Se, no entanto, tentarmos inverter essa questão para encontrar a maneira

pela qual o processo de análise dependeria de um conhecimento teórico prévio para seu

bom andamento, não encontraremos nada. O mesmo vale para a tentativa de mostrar a

relevância de uma experiência de supervisão na viabilização da análise pessoal.

Uma notável diferença em caráter e importância se evidencia a respeito da

análise pessoal em relação a suas duas contrapartes, a supervisão e o estudo da teoria. A

relação estabelecida entre estes termos seria antes aquela mantida entre um poste com

estais (geralmente cabos de aço) que ajudam em sua sustentação, do que a relação de

interdependência encontrada entre os apoios de um tripé. O poste tem o papel

preponderante em seu conjunto, sendo que é ele que dá sentido à presença dos estais, e

nunca o contrário, da mesma maneira que a análise pessoal é um elemento de

importância preponderante porque permite que uma supervisão venha a ser, apenas

graças a ela, uma análise de controle, e que o estudo da teoria seja, também graças a ela,

parte da práxis do analista.

180

FREUD, S. “A questão da análise leiga” [1926]. In: ESB. OC. Vol. XX. p.218 Rio de Janeiro: Imago,

1976.

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96

POR ONDE PASSA AUTORIZAR-SE PSICANALISTA?181

Terezinha T. M. Dutra182

“(...) textos freudianos, enquanto dariam testemunho da castração como uma condição a ser evitada. Entretanto, uma leitura minimamente avisada conclui que a castração é

normalizante, e que será o complexo correspondente - e sua angustia concomitante -

que permitirá ‘superar’- dissolver- o Édipo. (...) Isso é o que permite o acesso a

cultura. (...) Como se pode notar, desde o próprio Freud a castração não constitui de modo algum um dado terrível, e pronto a ser esquivado. Apesar de contar algo em

essência persecutório, doloroso e ingrato, traz consigo o viés contrário. Da perspectiva

da passagem a cultura traz um efeito normalizante. Dessa maneira, não é viável negar

o efeito salutar, benéfico, dessa modalidade da falta (...). Entretanto, em certos casos, a patologia dá conta do recusar da castração; isso é indiscutível.”183

Não pretendo responder esta pergunta que faço inicialmente. Pensando na

minha formação na Pedagogia e sobre a minha prática clínica como psicopedagoga, há

mais de 10 anos, pretendo discutir alguns pontos sobre a minha formação na psicanálise.

Partindo da experiência clínica como psicopedagoga, penso nas dificuldades de sair do

lugar das certezas, que estão fundamentadas a partir do ensino na academia e as

formações mesmo fora dela com grupos de estudos e etc. Diante disso, uma questão se

coloca: quais são os impasses e atravessamentos possíveis que se tornam

imprescindíveis para fazermos outra escuta? Por este discorrer, em lugar de um saber

inabalável, que seja da certeza, para se transformar em outro saber e com ele a própria

formação do analista, que está assegurada por e pelos efeitos da análise pessoal, da

análise de controle, da teoria e pela Instituição. Lugar em que o psicanalista poderá dar

testemunho de sua castração e suportando os efeitos da análise. Ao mesmo tempo,

dando provas da sua transmissão em psicanálise. Transmissão esta que, conforme

Lacan, o “Ensino da Psicanálise não pode transmitir-se de um sujeito a outro, senão

pelas vias de uma transferência de trabalho”184

. Esta possibilidade vai além do saber

teórico, é um possibilitador para suportar os efeitos escutados.

Partindo da prática clínica como psicopedagoga, penso na dificuldade de

sair do lugar das certezas, suportar o vazio, que não é vazio em si mesmo. No percurso

de minha formação como psicanalista atribuo questões pertinentes como a própria

181

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. “Autorizar-

se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 182

Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. 183

HARARI, R. O Seminário “a angústia” de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes e Ofícios,

1997. p. 62. 184

LACAN, J. “Ata da fundação” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 242.

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resistência no processamento da teoria e a transmissão que é um lugar que configura um

estatuto singular e uma das primeiras posições que o analista deverá estar implicado:

reconstruir entre a teoria e o escutado, O NOVO. Não é um novo qualquer, mas a partir

da teoria fundamentada por Freud e Lacan.

No texto: “A Questão da Análise Leiga”, Freud apresenta situações da

clínica psicanalítica e recomenda que devemos sair desse lugar confortável que é o de

corresponder ao que buscam os neuróticos como uma razão para não sair de seus

sintomas. Mônica Macedo faz um comentário sobre estas questões que julgamos

pertinentes. Ela afirma:

Na análise há um inter-jogo de possibilidades e limites da escuta, porque a

importância da escuta na psicanálise vai se evidenciando na medida em que

percorremos os textos freudianos. As recomendações da técnica, assim como

os desenvolvimentos teóricos, apontam para a preocupação de Freud de que a

psicanálise não perca o que a diferencia das demais possibilidades

terapêuticas: o valor dado ao autoconhecimento e à liberdade pessoal. O que

visa ser escutado na psicanálise resulta em uma psicanálise da escuta. Os

lapsos, os sonhos, as repetições, os sintomas; enfim, as formas de

subjetividade – livres de uma classificação ou de rótulos – abrem espaços de

singularidade. 185

Sem atribuir juízo de valor na clínica psicopedagógica, os “sujeitos”

(entendidos como indivíduos) vêm com suas queixas sobre o que não podem dar conta,

ou seja, vem com suas realidades psíquicas atravessadas pelas questões pedagógicas,

trazendo seus sintomas e suas fantasias de que são vítimas das Instituições de Ensino,

buscando respostas imediatas para seus conflitos. Outra questão importante para os

menos avisados, é que podemos cair na armadilha, já que a Pedagogia é uma ciência

que pretende responder a esses conflitos, e sem dúvida sai da subjetividade de cada

sujeito. Freud já alertava “O ideal educativo irá esbarrar sempre em algo da pulsão que é

indomável, ineducável, fazendo da educação uma tarefa impossível, tanto quanto

governar e psicanalisar”186

.

Sabemos que as resistências com a Psicanálise, e na própria Clínica, já vêm

de tempos remotos. Freud traz estas questões: “Seria mágica se surtisse efeito um pouco

mais rapidamente. Um atributo essencial de um mágico é a rapidez – poder-se-ia dizer a

185

MACEDO, M.; FALCÃO, C. A escuta na psicanálise e a psicanálise na escuta. Disponível em:

<pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1415-11382005000100006...> Acesso em: 13 set. 2012. 186

ALMEIDA, S. “Transmissão da psicanálise a educadores: do ideal pedagógico ao real da (trans)missão

educativa.” Disponível em:

<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000032006000100008&script=sci_arttext>.

Acesso em 11 set. 2012.

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subtaneidade – do sucesso. Mas os tratamentos analíticos levam meses e mesmo anos:

mágica tão lenta perde seu caráter miraculoso”187

. Ao contrário do sucesso dessas

respostas certeiras e rápidas, numa analise é a Castração que permeia todo processo,

isto é o que propõe a própria Psicanálise, sair da completude. Por isso, Lacan afirma:

“Não há Relação Sexual”, conforme é trabalhado por Harari em seu livro, cada sujeito

vai ter que lidar com sua castração e o próprio psicanalista que poderá - autorizar-se por

si mesmo, “não exclui”, diz Lacan, “que um analista surge de sua formação. Fica

estabelecido, pois, que a escola pode garantir a relação do analista com a formação que

a instituição dispensa. Pode e enfim deve”188

. “É no âmbito da instituição que o

analisante advém analista, o que duplica com a passagem para o público, o privado de

uma análise.”189

Neste percurso de autorizar-se “poderíamos dizer que um analista é

analista porque tem analisantes. Este é um complemento necessário da função do

analista. Mas temos que sublinhar que para um analista sustentar-se neste lugar, é

necessário trabalhar com outros analistas, para não cair no defeito profissional de nossa

práxis – a solidão. Assim, o fantasma de auto-geração é varrido, dando lugar à

instituição, lugar onde o analista deve dar provas permanentes de sua formação”190

. Um

lugar que permite a falta, daquele que se permite dar provas do que é possível e do que

não é, Lacan responde esta questão quando coloca que não há formação do psicanalista,

mas formações do inconsciente.

Freud deixa uma marca imprescindível para os futuros analistas: que deixem

morrer as certezas. A partir do que me propus a escrever sobre Por Onde Passa

Autorizar-se Psicanalista, retorno a Freud quando fundamenta a psicanálise na prática e

na teoria trazendo questões no texto sobre Analise Leiga:

O trabalho é árduo, grande é a responsabilidade. Mas qualquer um que tenha

sido analisado, que tenha dominado o que pode ser ensinado em nossos dias

sobre a psicologia do inconsciente, que esteja familiarizado com a ciência da

vida sexual, que tenha aprendido a delicada técnica da psicanálise, a arte da

interpretação, de combater resistências e de lidar com a transferência –

qualquer um que tenha realizado tudo isso não é mais um leigo no campo da

psicanálise. 191

187

FREUD, S. “A questão da analise leiga”. In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1976, vol. XX,

p. 183. 188

LACAN, J. apud MASCARELLO, T. “Há analista sem instituição?” In: Formação do analista em

debate. Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Caderno nº 5, mar. 2011, p. 27. 189

MASCARELLO, T. “Há analista sem instituição?” In: Formação do analista em debate. Maiêutica

Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Caderno nº 5, mar. 2011, p. 27. 190

Idem, ibidem, p. 26 e 27. 191

FREUD, S. “A questão da analise leiga”. In: ESB. OC. Vol. XX. Rio de Janeiro, Imago, 1976. p. 220.

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100

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTILO192

Cléia Regina Canatto193

A noção de estilo, cada vez mais prestigiada na cultura, ganha realce em sentido

amplo, nos mais distintos campos. Podendo ser considerado tanto como aquilo de

comum que caracteriza uma determinada obra, produto, serviço – assumindo assim uma

conotação generalizante, imprescindível para se reconhecer ali um determinado estilo –

ou aquilo que se distingue pela sua singularidade, traduzida por traços, características,

forma genuína do sujeito ser e estar no mundo.

O nosso propósito nesse espaço é abordar a noção de estilo, no que diz respeito à

singularidade, buscando pensar a relação entre estilo e sintoma. Para tanto, pretendemos

articular o conceito lacaniano de estilo a fragmentos de um caso clínico que vem nos

provocando atualmente nessa direção e a partir daí, lançar uma interrogação no que diz

respeito ao estilo do analista.

Em 1753, na Academia Francesa, o consagrado escritor francês, Buffon194

,

declara em seu discurso: “O estilo é do próprio homem”. Essa definição traduz a

concepção de que o sujeito é dotado de uma essência, materializada num determinado

estilo, sendo este intrínseco ao próprio homem.

Lacan, na abertura dos Escritos, toma a definição de Buffon: “O estilo é o

próprio homem”195

e adverte: “(...) repete-se sem nisso ver malícia, e sem tampouco

preocupar-se com o fato de o homem não ser mais uma referência tão segura (...)”196

. A

advertência de Lacan, reporta-nos a frase clássica de Freud, “O eu, não é mais senhor

em sua própria casa”197

. Nessa direção, a psicanalista Tania Rivera198

, comenta:

“Talvez ele - o eu - nem tenha mais casa, uma vez que o inconsciente o

desaloja, faz de seu mais íntimo o que Lacan denomina êxtimo, cunhando um

neologismo para denominar o que é mais íntimo, e no entanto vem de fora

(...) contra qualquer psicologia a fazer arauto da 'interioridade' do eu e

192

Trabalho apresentado nas Jornadas da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. Título das

Jornadas: “AuTOrizar-se Analista”. Florianópolis, 21 e 22 de setembro de 2012. 193

Psicanalista, Adjunto da Maiêutica Florianópolis – Instituição Psicanalítica. 194

BUFFON, G. L. Discurso sobre o estilo. 1753. Disponível em: http://www.lusofia.net

195 LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998. p. 9.

196 Idem 4, ibidem 4, p. 9

197 FREUD, S. “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” [1917]. In: ESB. OC. Vol. XI. Rio de

Janeiro: Imago, 1976, p. 295. 198

RIVERA, T. O Retorno do Sujeito. In: Ensaio sobre a performance e o corpo na arte contemporânea.

Disponível em: <www.polemica.uerj.br/pol>. Acesso em 12 out.2012.

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defender sua 'exteriorização', em uma ideologia expressionista, a psicanálise

é a reflexão que surge na aurora do século XX, para literalmente 'pôr o sujeito

fora de si'”.

Definitivamente, a psicanálise não compartilha do entendimento de Buffon sobre

essa gênese do estilo. Ainda nos Escritos, mais adiante, Lacan observa: “vamos aderir a

essa fórmula somente ao estendê-la”199

(...) e assim o faz: “O estilo é o homem a quem

nos endereçamos”200

. Este ‘estender’ a que se refere, de fato, estende, amplia a questão,

nos possibilitando interrogar: enquanto para Buffon o que está no centro do estilo é o

próprio homem, quem ocupa esse lugar para a psicanálise? Lacan num primeiro

momento responde ser o Outro, outro do inconsciente, uma vez o que o inconsciente é o

discurso do grande Outro. Afirmando: (...) não há forma de estilo, por mais elaborado

que seja, em que o inconsciente não abunde”201

.

Enquanto para Buffon o estilo está no próprio homem, para Lacan, está no

grande Outro do inconsciente. No entanto, se partirmos da noção de inconsistência do

Outro, àquilo possível de se alcançar ao final da Análise, de que Outro se estaria

falando? Lacan responde a essa indagação, concluindo mais à frente não se tratar do

grande Outro e sim do objeto a. Vejamos:

"É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de

saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de

queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do

desejo, em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e

saber"202

A verdade e o saber dão existência à psicanálise, no que se refere diretamente ao

sintoma, testemunhadas pelo analista a partir da escuta do sintoma. A verdade é o saber,

o saber do inconsciente que se desdobra no dizer e no inter-dizer, tendo como pano de

fundo o não-saber. Daí a ética da psicanálise ser considerada a ética do bem-dizer. A

partir dessa ética, é sabida a possibilidade do sujeito se reconciliar com o sintoma rumo

a um saber fazer. Haveria uma relação possível então entre o saber fazer com o sintoma

e o estilo? Que mostras sobre essa interrogação a clínica nos dá?

Adentra ao nosso consultório Tom, adolescente de 15 anos, que chega através

dos pais com a queixa marcada especialmente por mentiras, rebeldia, não submeter-se a

regras. Os pais enfatizam ainda a baixa estatura do filho, ressaltando acharem ter sido

199

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998, p. 11. 200

Idem 8, ibidem 8, p.11. 201

Idem 8, ibidem 8, p. 469. 202

Idem 8, ibidem 8, p. 11.

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um problema que Tom nunca superou, o que era suposto pelos pais a partir das

constantes queixas do filho ainda quando pequeno, quanto a não ser visto, não ser

escutado, não ser considerado pelas pessoas.

Tom, de chegada, anuncia gostar muito ‘de se aparecer’ e o repete diversas vezes

– dizendo não saber bem o porquê disso. Passadas algumas entrevistas preliminares,

Tom reafirma, semanalmente, ter, gostar e valorizar um estilo diferente, orgulhando-se

por ser um adolescente diferente e revelando se interessar somente por pessoas também

diferentes. Tom parece ter como alvo “ser diferente” e “se aparecer”! Parece que ainda

não aparece, ou, ainda não se reconhece aparecendo...

Não sabemos, até então, se Tom está na busca propriamente de um determinado

estilo para ser visto, reconhecido e valorizado, ou insiste numa determinada rebeldia

para por essa via conseguir se desprender dos pais. Mas o fato é que Tom continua

demonstrando uma significativa necessidade de aparecer e ser reconhecido como

diferente. Isso transparece desde as roupas com as quais se apresenta (peças cortadas,

meias decoradas coloridas e compridas...) até a escolha por coisas que deseja fazer -

toca um instrumento incomum para adolescentes, desenha retratos de pessoas que lhe

chamam atenção na rua, assume projetos que envolvem liderança e poder decisório

(práticas escolares de mini-empresas) e por aí adiante...

Até então, os movimentos de Tom poderiam ser considerados como

relativamente comuns, de certa forma próprios a esse momento da adolescência,

caminhando na direção de um afastamento das figuras paternas, mas é possível que

estejam para além disso. Parece, de fato, que Tom busca ter alguma visibilidade, ser

reconhecido por um certo estilo que lhe confira distinção e respeito. Tudo àquilo que em

momentos importantes da sua história parece não lhe ter sido possível. No entanto,

chama a atenção o quanto o faz expondo a si e aos familiares (uso e abuso do chamado

senso de humor, episódios com drogas, falsificação da assinatura dos pais, provocação

aos professores...) pagando um preço alto, o que vem se refletindo nele e na família em

mal estar e culpa.

O que em Tom poderia ser considerado um saber fazer com o sintoma e um

estilo? Parece-nos que Tom ainda não descobriu um saber fazer com o sintoma, o objeto

a que dele se desprende, assim como a forma com a qual se apresenta no mundo é ainda

marcada, predominantemente, por comportamentos rebeldes que o expõe seguidamente.

Muito embora tenha um estilo que poderia distingui-lo positivamente, deixando marcas

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qualificadoras por onde passa, reconhecidas pela sua irreverência, criatividade, bom

gosto... Não tem sido esse o seu caminho...

Sendo o estilo reconhecido como uma maneira de ser e viver, acreditamos que a

partir da análise algo se produza na maneira que até então Tom vem sendo e vivendo e a

partir daí então um saber fazer com o sintoma se apresente de fato como possível na sua

experiência.

Ao finalizar, gostaríamos de brevemente transpor a questão do sintoma e estilo

para pensar o estilo do analista. A psicanálise nos ensina que o saber lidar com o

sintoma, equivale ao saber lidar com a castração, um saber inconsciente que parece

atingir o seu ápice na passagem de analisante à analista, se produzindo ali um estilo

próprio, sustentado pelo desejo do analista.

Durante os dias em que produzíamos esse texto, tivemos o privilégio de assistir

ao show de um artista que combinava primorosamente, canto, teatro e dança. O seu

repertório era bastante conhecido, as performances, nada inéditas, com a dança, o

movimento, combinava a voz e a dramatização resultando num estilo pessoalíssimo,

àquilo que o fazia inteiramente genuíno, lhe conferindo uma singularidade tal, que não

havia como assisti-lo e não deparar-se com o paradoxo de um conhecido-desconhecido-

surpreendente, que para muito além do que cantava, encantava. Ficamos pensando, a

partir daquela experiência, até que ponto não seria possível uma analogia entre o artista

e o analista? Poderíamos fazê-lo se tomássemos o repertório, como a teoria; as

performances como a técnica e a dança, o movimento, como o psicanalisar?

Consideramos que essa possibilidade nos ajudou a compreender melhor a polêmica

frase de Lacan: “Façam como eu, não me imitem...”