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1. Introdução I – Na sua vertente normativa, o gover- no (ou governação) das sociedades assenta em fontes de diversa natureza. De um lado, repousa em leis em sentido formal e em regulamentos, atinentes às matérias de direito societário e de direito dos valores mobiliários. Mas de outro lado releva igualmente da soft law, ao envolver normas sociais desti- tuídas de sanção jurídica – normas deonto- lógicas, recomendações e regras de boa conduta 1 . É neste âmbito que encontramos os códigos de governo das sociedades (cor- porate governance codes, corporate governan- ce Kodex), que podem definir-se, em senti- do amplo, como os conjuntos sistematiza- dos de normas de natureza recomendatória respeitantes ao bom governo das socieda- des 2 . O ordenamento jurídico português serve de primeira ilustração ao exposto: ao lado de normas constantes das leis societárias e mobiliárias sobre administração de socie- dades, direitos dos accionistas, deveres de informação e transacções sobre o controlo, encontra-se um conjunto de recomenda- ções respeitantes ao governo das socieda- des, aprovadas pela autoridade de supervi- são 3 . II – À partida, porém, o lugar normati- vo destes códigos de bom governo deve ser devidamente contextualizado. Com efeito, não se pode pretender que a regulação do governo das sociedades se circunscreva ao que é tratado em códigos de boas práticas, sobretudo perante normas jurídicas de di- reito das sociedades e de direito dos valores mobiliários que se lhes sobrepõem na pirâ- mide das fontes. ___________________________________________ * Em homenagem amiga à memória e ao exemplo de Mafalda Gouveia Marques. ** Director do Departamento de Supervisão de Informação Financeira e de Operações da CMVM e Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa. As opiniões aqui expressas são-no a título exclusivamente pessoal. 1 MARCUS LUTTER, Vergleichende Corporate Governance – Die deutsche Sicht, ZGR 2001, 225. 2 É próximo o conceito de código de governo que consta de um estudo encomendado pela Comissão Europeia so- bre a matéria: a non-binding set of principles, standards and best practices, issued by a collective body and relating to the internal governance of corporations (WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Member States, (2002), 1, 11). A diferença reside em que esta formulação peca por ex- cluir os códigos aprovados pela própria sociedade destinatária, confessadamente apenas por tal sobrecarregar em excesso o âmbito daquele estudo. 3 Cfr. infra, § 3.º, 5. CÓDIGOS DE GOVERNO DAS SOCIEDADES* PAULO CÂMARA** § 1.º CONTEXTO

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1. Introdução

I – Na sua vertente normativa, o gover-no (ou governação) das sociedades assentaem fontes de diversa natureza.

De um lado, repousa em leis em sentidoformal e em regulamentos, atinentes àsmatérias de direito societário e de direitodos valores mobiliários.

Mas de outro lado releva igualmente dasoft law, ao envolver normas sociais desti-tuídas de sanção jurídica – normas deonto-lógicas, recomendações e regras de boaconduta1. É neste âmbito que encontramosos códigos de governo das sociedades (cor-porate governance codes, corporate governan-ce Kodex), que podem definir-se, em senti-do amplo, como os conjuntos sistematiza-dos de normas de natureza recomendatóriarespeitantes ao bom governo das socieda-des2.

O ordenamento jurídico português servede primeira ilustração ao exposto: ao ladode normas constantes das leis societárias emobiliárias sobre administração de socie-dades, direitos dos accionistas, deveres deinformação e transacções sobre o controlo,encontra-se um conjunto de recomenda-ções respeitantes ao governo das socieda-des, aprovadas pela autoridade de supervi-são3.

II – À partida, porém, o lugar normati-vo destes códigos de bom governo deve serdevidamente contextualizado. Com efeito,não se pode pretender que a regulação dogoverno das sociedades se circunscreva aoque é tratado em códigos de boas práticas,sobretudo perante normas jurídicas de di-reito das sociedades e de direito dos valoresmobiliários que se lhes sobrepõem na pirâ-mide das fontes.

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* Em homenagem amiga à memória e ao exemplo de Mafalda Gouveia Marques. ** Director do Departamento de Supervisão de Informação Financeira e de Operações da CMVM e Assistente daFaculdade de Direito de Lisboa. As opiniões aqui expressas são-no a título exclusivamente pessoal.1 MARCUS LUTTER, Vergleichende Corporate Governance – Die deutsche Sicht, ZGR 2001, 225.2 É próximo o conceito de código de governo que consta de um estudo encomendado pela Comissão Europeia so-bre a matéria: a non-binding set of principles, standards and best practices, issued by a collective body and relating to theinternal governance of corporations (WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant tothe European Union and Its Member States, (2002), 1, 11). A diferença reside em que esta formulação peca por ex-cluir os códigos aprovados pela própria sociedade destinatária, confessadamente apenas por tal sobrecarregar emexcesso o âmbito daquele estudo.3 Cfr. infra, § 3.º, 5.

CÓDIGOS DE GOVERNO DAS SOCIEDADES*

PAULO CÂMARA**

§ 1.º CONTEXTO

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Mas não deixa de ser importante e mere-cedor de consideração atentar neste fenó-meno relativamente recente.

Apesar de se tratarem de normas sociaisnão jurídicas, as normas constantes de có-digos de governo desempenham um papelinfluente na condução dos destinos dassociedades abertas e na motivação pessoaldos titulares de órgãos sociais e de accionis-tas na tomada de decisões ligadas à condu-ção da actividade societária4.

III – Antes de prosseguir, refira-se preli-minarmente que a palavra código não éaplicada aqui no sentido que, em termostécnicos, lhe é usualmente associado.

Materialmente, como se sabe, os códigossão diplomas legais que, por recurso a cri-térios científicos, ordenam de modo siste-mático, sintético e unitário fontes respei-tantes a certa área do Direito.

Ora, em contraste com o que ficou dito,os códigos de governo societário não sãoleis; limitam-se a enunciar um catálogo decomportamentos desejáveis, sem exprimi-rem comandos imperativos para os seusdestinatários nem sendo forçosamenteaprovados por autoridade pública – são,por isso, desprovidos de coercibilidade.

Ademais, nem todos os códigos de go-vernação contam com contributos acadé-micos na sua elaboração. Mesmo quando a

intervenção académica ocorre (como suce-deu nomeadamente com a preparação docódigo espanhol de 1997 e com a prepara-ção dos códigos alemães)5, o seu cunhocientífico é variável.

Outro traço distintivo baseia-se em que,do ponto de vista histórico-cultural, os có-digos legislativos são o fruto de uma evolu-ção plurisecular de raiz europeia – enquan-to a recente origem dos códigos de governosocietário é anglo-saxónica, como adiantese comprovará6.

Os códigos de bom governo não têm,tão-pouco, pretensões de unitariedade. Osprincípios que os enformam não se locali-zam nos próprios códigos de governo, masem fontes legislativas em sentido formal, aque aqueles estão subordinados e com osquais não procuram interferir. Daqui re-sulta um traço central destas fontes: a suacomplementariedade.

Por fim, os códigos legislativos almejama uma certa estabilidade na sua vigência, aopasso que os códigos de bom governo, naactualidade, são alterados com grande fre-quência, alguns deles até periodicamente7.

Estas considerações não são suficientes,porém, para afastar a terminologia utiliza-da, dada a sua intensa divulgação na litera-tura8. Acrescente-se que no nosso sistemajurídico o termo “código” já aparece asso-ciado a códigos não legislativos, como suce-

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4 Para MELVIN EISENBERG, as normas sociais são as normas relativas à conduta humana que não têm natureza ju-rídica nem organizacional (reputando como organizacionais as normas adoptadas por organizações privadas). Oautor inclui aqui não apenas normas de cumprimento inconsciente ou relativamente às quais não existe sentimen-to de obrigatoriedade, como também as normas a que os destinatários aderem de modo consciente, vergados porum sentimento de obrigatoriedade (denominadas pelo autor obligational norms) (Corporate Law and Social Norms,Columbia Law Review Vol. 99 (June 1999), 1255-1261).5 Cfr. infra § 2.º, 3. Salvo indicação em contrário, os códigos de governo societário referidos no presente texto estãodisponíveis em < http://www.ecgi.org/codes/all_codes.htm >.6 Cfr. infra, § 2.º, 2 e 3.7 É, a título de exemplo, o que se passa no Reino Unido e em Portugal: cfr. infra, § 2.º, 2 e 4. O Código alemão de2002 (código Cromme) também auto-propõe a sua revisão anual.8 Outras designações são utilizadas, embora com menor intensidade, designadamente princípios, orientações e re-comendações. O termo relatório também ganha alguma adesão na prática, embora se reporte por vezes a estudosque não resultam em propostas concretas dirigidas às sociedades e titulares dos seus órgãos sociais.

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de relativamente aos códigos de conduta.Estes, refira-se de passagem, distinguem-sedos códigos de governo pelo facto de seremaprovados por associações profissionais oupor autoridades de supervisão, postulandosanções (ainda que disciplinares) para o seuincumprimento.

2. Percurso histórico: a gestação norte-ame-ricana

I – Uma adequada compreensão dos có-digos de governo societários é auxiliadacom algumas indicações, ainda que sintéti-cas, sobre a origem histórica da figura.

Neste contexto, deve começar-se poracentuar o papel pioneiro dos contributosnorte-americanos. Uma vez que nos Esta-dos Unidos a competência para a aprovaçãode legislação societária pertence aos Esta-dos federados, o impulso decisivo no apare-cimento de códigos relativos ao governodas sociedades deu-se em resultado decompilações com vocação harmonizadora,aprovadas sob a égide da American Bar As-sociation e do American Law Institute.

Anote-se, assim, que o Committee onCorporate Laws da American Bar Associationfez divulgar em 1954 o primeiro Model Bu-siness Corporation Act, para os Estados fede-rados utilizarem como referência no mo-mento de actualização das respectivas leissocietárias. Este documento viria a conhe-cer alterações na década de oitenta do sécu-lo passado9, tendo adiantado propostas ino-

vatórias em matéria de conflito de interes-ses dos administradores e da acção de res-ponsabilidade proposta por sócios10.

II – Mais comedidos no seu âmbito masmais significativos na perspectiva da gover-nação, viriam a revelar-se os Principles ofCorporate Governance elaborados sob osauspícios do American Law Institute11.

Tal como o Model Business CorporationAct, estes Principles não constituem uma lei.Trata-se antes de um documento que é mo-vido por uma dupla ambição. De um lado,na esteira das compilações norte-america-nas, por tradição com influente poder uni-ficador, afiguram-se como um ensaio desistematização de alguns aspectos do direi-to das sociedades, procurando clarificaruma parcela da legislação existente nos vá-rios Estados federados. A sua opção pornão cobrir todo o direito das sociedades,mas apenas os pontos relacionados com ogoverno societário, é bastante clara12.

De outro lado, os Principles of CorporateGovernance procuram introduzir aperfei-çoamentos no Direito em vigor, sendo en-formados por preocupações de eficiência ede gestão equilibrada de situações de con-flito de interesses intra-societários. Para oefeito, as suas propostas de regulação não sedirigem apenas aos Estados federados mastambém às sociedades, sobretudo as que te-nham o capital disperso pelo público. Emresultado desta dupla faceta, este trabalho,dirigido na sua fase final pelo ProfessorMelvin Eisenberg, deixa como legado final

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9 Estas modificações deram corpo ao Revised Model Business Corporation Act.10 LEWIS D. SOLOMON/DONALD E. SHWARTZ/JEFFREY D. BAUMAN/ELLIOT J. WEISS, Corporations. Law and Policy.Materials and Problems, St. Paul, (1998), 185-186.11 Os Princípios conhecem uma versão simples e em versão anotada, perfazendo esta cerca de oitocentas páginas:AMERICAN LAW INSTITUTE, Principles of Corporate Governance: Analysis and Recommendations, St. Paul, Minn.,(1994). Entre nós, a versão simples deste documento pode ser igualmente consultada em apêndice ao trabalho de PEDRO CAETANO NUNES, Responsabilidade Civil dos Administradores Perante os Accionistas, Coimbra, (2001),113-173.12 MELVIN EISENBERG, An Overview of the Principles of Corporate Governance, Business Lawyer 48 (1993), 1271-1272.

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uma combinação de regras relativamentefechadas, decantadas por um processo deconsolidação (restatement rules), com outrasde cariz recomendatório cujo enunciado seapresenta substancialmente mais flexível13.

Os Princípios desdobram-se em sete par-tes substantivas – não considerando o cor-respondente glossário normativo – dedica-das sucessivamente ao objectivo e condutada sociedade, à estrutura da sociedade, àsrecomendações de práticas societárias res-peitantes à administração e aos comités quefuncionam no seu seio, aos deveres de cui-dado e à business judgement rule, aos deve-res de fair dealing, ao papel dos administra-dores e accionistas em operações de tran-sacção de controlo e OPAs e a meios pro-cessuais adjacentes.

Neste documento destacam-se, na suavertente recomendatória, as orientaçõesdeixadas quanto à organização interna daadministração e aos comités. Aí já se apon-ta a recomendação, que viria a receber am-plo acolhimento no mundo anglo-saxónico,de criação de três comités especializadosdentro do órgão de administração – comitéde selecção de administradores, comité deremunerações e comité de auditoria –apontando-se este último como meio de co-

municação e de fiscalização entre a admi-nistração e o auditor externo, de uma ban-da, e os auditores internos, de outra ban-da14.

Acrescente-se que o processo de prepa-ração destes Princípios ocupou quase duasdécadas, com sucessivas versões provisóriasa serem publicadas e discutidas, tendo aversão final sido aprovada em 199415. A suainfluência na jurisprudência norte-ameri-cana, todavia, não esperou a conclusão dostrabalhos para ser sentida16. Assim, mercêda intensa discussão envolvida17 e do crédi-to científico conquistado, os Princípiosatraíram a atenção definitiva para os pro-blemas de governação.

III – Após a aprovação dos Princípios doAmerican Law Institute, diversas empresascotadas norte-americanas tomaram a ini-ciativa de publicar códigos dirigidos aosseus próprios administradores. Um exem-plo célebre é o da General Motors, que em1995 tornou públicas as suas “Directrizessobre Questões Significativas do Governodas Sociedades”18. Seja por mimetismo oupor convicção, várias sociedades norte-americanas seguiriam semelhante aborda-gem19.

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13 MELVIN EISENBERG, An Overview of the Principles of Corporate Governance, cit., 1272, 1295-1296; ANDRÉ TUNC,Principles of Corporate Governance, in RDAI n.º 8, (1995), 957-ss. 14 §§ 3.05 e 3A.03.15 Sobre os trabalhos preparatórios deste documento, pode consultar-se, entre muitos, MELVIN EISENBERG, An Over-view of the Principles of Corporate Governance, cit., 1271-1296; Id., Obblighi e responsabilità degli amministratori e dei fun-zionari delle società nel diritto americano, in Giurisprudenza commerciale (1992), 617-ss; SOMMER JR., A Guide to the Ame-rican Law Institute Corporate Governance Project by Charles Hansen, in Business Lawyer vol. 51 (1996), 1331-ss.16 LEWIS D. SOLOMON/DONALD E. SHWARTZ/JEFFREY D. BAUMAN/ELLIOT J. WEISS, Corporations. Law and Policy.Materials and Problems, cit., 186.17 O documento contou igualmente com adversários: WILLIAM CARNEY, por exemplo, designou-o “o evento maiscontroverso na história do direito societário norte-americano”: The ALI’s Corporate Governance Project: The Death ofProperty Rights?, George Washington Law Review 61 (1993), 898-953 (898).18 GENERAL MOTORS, Guidelines on Significant Corporate Governance Issues, Washington (1995), disponível emKLAUS HOPT/EDDY WYMEERSCH (ed.), Comparative Corporate Governance. Essays and Materials, Berlin/ New York,(1997), M-49-M-55.19 Tenha-se em vista designadamente o caso da Atlantica Richfield Company (ARCO), cujos Corporate Governan-ce Principles (1995) também se encontram em KLAUS HOPT/EDDY WYMEERSCH (ed.), Comparative Corporate Go-vernance. Essays and Materials, cit., M-57-M-61.

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Além disso, o papel dos grandes investi-dores institucionais também se reveloumarcante. Com efeito, alguns investidoresinstitucionais (sobretudo fundos de pen-sões) adoptaram práticas próximas, elabo-rando e fazendo divulgar textos que con-densavam o que consideravam ser boaspráticas nas empresas dando um sinal queprivilegiariam o investimento nas socieda-des alinhadas por tais padrões20. O fenóme-no descrito determinou, por seu turno, umaumento exponencial do número de códi-gos de governação aprovados por socieda-des cotadas em bolsa.

3. A internacionalização dos códigos de go-verno

I – Os problemas de corporate governanceforam importados, nesse formato, para aEuropa por via do Reino Unido. O senti-mento de cepticismo perante a confiabili-dade nos documentos financeiros das socie-dades cotadas na praça londrina, que se li-gava à falência de alguma delas, levou aLondon Stock Exchange, o Financial Repor-ting Council (entidade privada responsávelpelos padrões de contabilidade) e o sectordos profissionais de contabilidade a promo-ver, em inícios dos anos noventa, a consti-

tuição de uma comissão, liderada por SIR

ADRIAN CADBURY, sobre aspectos financei-ros do governo das sociedades21. Pedia-se aesta comissão que reunisse propostas deboas práticas em matéria de governação,dirigidas a resgatar a confiança na infor-mação financeira das sociedades e, comisso, a preservar a reputação do mercado fi-nanceiro britânico.

O produto final desta análise resultantede iniciativa privada foi publicado em De-zembro de 1992 – isto é, ainda antes da con-clusão dos Princípios do American Law Ins-titute – e popularizado como “RelatórioCadbury”22.

Este documento incluía um sintético Có-digo de Boa Conduta (Code of Best Practice)destinado às sociedades cotadas no ReinoUnido, que condensava o fundamental dasboas práticas segundo o comité Cadbury. OCódigo de Boa Conduta dividia-se em qua-tro secções: deveres da administração; de-veres dos administradores não-executivos;administradores executivos e sua remune-ração; prestação de informação financeira erespectivo controlo.

Enquanto lista de exigências básicas decómoda utilização e redigida em lingua-gem acessível, este Código mereceu amplaaceitação23, mesmo fora do seu perímetrodirecto de aplicação, ao que não será estra-

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20 Os textos aprovados pelo CalPERS e pelo Teachers Insurance and Annuity Association-College RetirementEquities Fund, nas suas versões originárias, podem consultar-se em Id., ibidem, M-63-M-79.21 O próprio Relatório Cadbury espelha estas preocupações, no ponto 2.1. A propósito, confronte-se igualmente J.H. FARRAR/B.M. HANNIGAN, Farrar’s Company Law4, London, (1998), 332-334; NEIL HARVEY, Corporate Gover-nance: The British Experience, in RDAI n.º 8 (1995), 947-ss; HELEN SHORT, Corporate Governance: Cadbury, Green-bury and Hampel – A Review, Journal of Financial Regulation and Compliance, Vol. 7 n.º 1 (1999), 57-58.22 Report of the Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, London, (1992).23 O grau de observância era todavia menor em sociedades cotadas de pequena dimensão (26% de pequenas em-presas plenamente cumpridoras contra 90% das 100 maiores empresas – fazendo fé, claro está, na declaração sobrecumprimento), como se comprova pelo relatório feito pelo próprio comité Cadbury: Report of the Committee on theFinancial Aspects of Corporate Governance. Compliance with the Code of Best Practice, London (1995), passim. Um co-mentário às observações que o Relatório suscitou encontra-se em ADRIAN CADBURY, The Responses to the Report ofthe Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, em FIONA MACMILLAN PATFIELD (ed.), Perspectiveson Company Law: 1, London et al., (1995), 23-33.

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nho o impacto mediático dos episódiosBCCI e Robert Maxwell/ Mirror Group,entretanto verificados24.

II – O Relatório Cadbury baseava-se naideia de reforço da sindicabilidade da ad-ministração e na defesa da essencialidadedo rigor da informação financeira.

Na primeira vertente, o documento pro-pôs uma clarificação das responsabilidadesdos titulares de órgãos sociais dentro dasociedade, apelando a uma separação dasfunções de presidente do conselho de admi-nistração (chairman) e de presidente da co-missão executiva (chief executive officer).Além disso, recomendou a inclusão de ummínimo de três administradores não-exe-cutivos (na sua maioria independentes),com responsabilidades na determinação daestratégia empresarial e no acompanha-mento da actuação dos administradoresexecutivos. E sugeriu a prestação de infor-mação sobre a remuneração do presidentedo conselho de administração e do admi-nistrador melhor pago25.

A confiabilidade da informação finan-ceira, por seu turno, foi sobretudo acautela-da através da atenção conferida à indepen-dência dos auditores, ao controlo internonas sociedades26 e à recomendação respei-tante aos comités de auditoria27.

Neste quadro, é importante sublinharque o “Relatório Cadbury” e o seu Code ofBest Practice não são vinculativos. Porém, oRelatório recomendava que, no relatórioanual, as sociedades cotadas indicassemnuma declaração expressa (compliance sta-tement) quais as áreas em que seguem o Re-latório e quais aquelas em que dele se afas-tam – devendo, neste último caso, funda-mentar os motivos de não obediência às di-rectrizes28. O mercado encarregar-se-ia deformular um juízo sobre a política de go-verno empresarial seguida.

Mais tarde, o dever de publicação da de-claração sobre observância do Código viriaa ser imposta como regra de admissão naBolsa de Londres29.

III – O próprio Relatório Cadbury já pre-via a sua revisão30 e tal veio efectivamente asuceder. Devem considerar-se três peças naevolução subsequente: o Relatório Green-bury, o Relatório Hampel e o CombinedCode.

Volvido pouco tempo após a aprovaçãodo Relatório Cadbury, no Reino Unido cons-tituir-se-ia o Greenbury Commitee (assim de-signado em homenagem a Sir RICHARD

GREENBURY, seu Presidente) por iniciativada Confederação Britânica de Indústria,centrado nas questões de remuneração dos

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24 Cfr. a propósito deste último DEPARTMENT OF TRADE AND INDUSTRY, Mirror Group Newspapers plc. Investigationsunder Sections 432(2) and 442 of the Companies Act 1985. Report by The Honourable Sir Roger John Laugharne Tho-mas and Raymond Thomas Turner FCA, (2001), 2 Vols.25 Report of the Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, cit., 4.9, 4.12 e 4.40, respectivamente. So-bre o legado dos códigos britânicos na estruturação da administração de sociedades cotadas, vide PAUL DAVIES,Struktur der Unternehmensführung in Großbritannien und Deutschland: Konvergenz oder fortbestehende Divergenz?,ZGR (2001), 270-282; BRIAN CHEFFINS, Company Law – Theory, Structure and Operation, Oxford, (1997), 602-652.26 Da mesma data, aliás, é o relatório do CHARTERED INSTITUTE OF MANAGEMENT ACCOUNTANTS, A Framework onInternal Control (1992).27 Report of the Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, cit., 5.7-5.11, 4.31.-4.32 e 4.33-4.35. Veja--se ainda JOHN E. PARKINSON, Corporate Power and Responsibility. Issues in the Theory of Company Law, Oxford,(1993), 193-195.28 Report of the Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, cit., 3.7.29 Listing Rules da London Stock Exchange, 12.43 (j).30 Report of the Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance, cit., na Introdução feita pelo Presiden-te e no ponto 3.12.

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administradores. O código Greenbury deboas práticas sobre remuneração foi publica-do em 1995. Aí se determinou, nomeada-mente, a recomendação de constituição deum comité de remunerações composto pormembros não-executivos da administraçãoque prestassem contas anualmente ao colé-gio de sócios, com uma descrição extensivada remuneração fixada.

No mesmo ano, foi criada uma comissãopresidida por RONNIE HAMPEL destinada aavaliar a observância do Código Cadbury ea sugerir eventuais alterações, incorporan-do aí os contributos provindos do RelatórioGreenbury em matéria de remuneração.Em seu resultado, o Relatório Hampel foidivulgado em Janeiro de 199831.

O seu conteúdo revela algumas singula-ridades em relação aos Códigos anteriores.Com efeito, este documento apresenta umatónica mais positiva e flexível e menospreocupada com aspectos patológicos, aoacentuar que o objectivo da sociedade é acriação de riqueza, relegando para segundoplano a motivação de prevenção de abusos.Além disso, embora usualmente seja referi-do como código de governo, o RelatórioHampel afastava-se do modelo de código deconduta, preferindo assentar em princípiosgerais32 e em apreciações e desenvolvimen-tos aos dados constantes dos Relatórios Cad-bury e Greenbury. A sua facilidade de utili-zação pelo público era, neste sentido, maisreduzida. Tal conduz a encará-lo como umtexto de transição.

Com esta sucessão de relatórios e de có-

digos de governo, deu-se, como seria de es-perar, a necessidade de consolidar os con-tributos provenientes dos Relatórios. Essafunção foi desempenhada pelo CombinedCode. Produzido pelo Comité Hampel, este“código combinado” cumpriu dois funda-mentais objectivos: de um lado, sistemati-zou o legado dos três relatórios anteriores;de outro lado, integrou, de modo mais har-monioso, os códigos de governo com as re-gras de admissão bolsista, em ordem a asse-gurar-lhes eficácia. Note-se que, quanto aeste último aspecto, este código foi concebi-do para ser um apêndice às Listing Rules,embora não fazendo parte destas.

A missão unificadora do Combined Codenão interferiu com a existência de outroscódigos de governo britânicos, além dos aícompulsados. Trata-se, aliás, de um patri-mónio rico: um levantamento recente davaconta de serem mais de uma dezena33.

IV – Na sequência da experiência britâ-nica, que acabámos de descrever, os códigosforam colocados no centro das soluções res-peitantes ao governo societário34.

Com efeito, na década de noventa, os có-digos de governo tiveram uma afirmaçãopujante na Europa, registando-se nomea-damente a aprovação de textos desta natu-reza em França (Relatórios Viénot I (1995) eII (1999) e Relatório Bouton (2002)), na Ho-landa (1997), na Bélgica (código unificadorde 1998), em Espanha (1998), em Itália(1999)35 e na Grécia (1999 e 2001). Fora doVelho Continente, mencione-se a aprova-

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31 COMMITTEE ON CORPORATE GOVERNANCE, Final Report, GEE, London, (Janeiro 1998). O impulso e patrocínio des-ta iniciativa pertenceu de novo ao sector privado. Por detrás desta comissão estiveram não apenas os que estiveram naorigem do Relatório Cadbury, mas também a Confederation of British Industry, que apoiara o Relatório Greenbury.32 COMMITTEE ON CORPORATE GOVERNANCE, Final Report, cit., 1.11. Confronte-se ainda, sobre este ponto, J. H.FARRAR/B.M. HANNIGAN, Farrar’s Company Law4, London, (1998), 466; HELEN SHORT, Corporate Governance:Cadbury, Greenbury and Hampel – A Review, cit., 63.33 WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Mem-ber States, cit., 14 (ainda não considerando o Relatório Higgs).34 Reenvia-se de novo para < http://www.ecgi.org/codes/all_codes.htm >.35 COMITATO PER LA CORPORATE GOVERNANCE DELLE SOCIETÀ QUOTATE, Codice di Autodisciplina, (1999, revistoem 2002) (usualmente designado por Código Preda).

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ção de códigos importantes no Canadá e naAustrália.

Esta ampliação internacional do debatefoi, em larga medida, causada pelos Princí-pios da OCDE sobre Corporate Governance36.Aprovados em 1999, em pleno rescaldo dacrise asiática de 1997 – que provara que asimperfeições do governo das sociedades po-dem ter um impacto negativo sobre a eco-nomia mundial –, estes Princípios assumi-ram uma vocação mundial. Apesar de nãoserem vinculativos para os respectivos Es-tados aderentes, os Princípios contêm,numa formulação flexível, indicações diri-gidas aos Estados no sentido de introduzirajustamentos legislativos no tocante aosmecanismos de tutela dos accionistas e dosdemais sujeitos envolvidos nas empresascotadas. Além disso, este código da OCDEdestina-se também a ser aproveitado pelosector privado, ao que não será estranho ofacto de muitas associações da indústria edo sector laboral terem colaborado na ela-boração do clausulado final37.

Os Princípios da OCDE concentram-seem cinco pontos essenciais: os direitos dosaccionistas; a igualdade de tratamento des-tes; o papel dos diferentes intervenientes naempresa, incluindo os investidores estran-geiros, os investidores institucionais e ostrabalhadores; os deveres de informação; e

o papel dos administradores. Tais Princí-pios exerceram alguma influência em Esta-dos-membros38 e tiveram uma importanterepercussão em Estados-não membros (ca-sos dos códigos da Índia, Indonésia, Áfricado Sul, Roménia, entre outros). Tal in-fluência tende a aumentar graças à realiza-ção de conferências regionais periódicas(Regional Roundtables) promovidas pelaOCDE e pelo Banco Mundial em váriospontos do globo onde se reúnem especialis-tas locais e estrangeiros e das quais resulta aelaboração de relatórios regionais (WhitePapers) sobre a adopção dos Princípios39. Omesmo efeito ocorre em virtude de váriasorganizações internacionais influentes (v.g.Financial Stability Forum, Banco Mundial eIOSCO) indicarem os Princípios de Corpo-rate Governance da OCDE como modelo aseguir nos mercados emergentes.

V – Consideração especial merece a evo-lução dos códigos de governo na Alema-nha, em virtude de se tratar de um ordena-mento jurídico dotado de um modelo sin-gular de governo societário, designada-mente em função da contraposição aí exis-tente entre o Vorstand (órgão equivalente àdirecção no direito português) e o Aufsich-rat (conselho geral) e das suas regras sobreco-gestão (Mitbestimmung). Soma-se o facto

72 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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36 Algumas indicações sobre a preparação dos Princípios podem colher-se em JOANNA R. SHELTON (que presidiuaos trabalhos), Introduction, in OCDE, Corporate Governance in Asia – A Comparative Perspective, Paris (2001), 11-15; ULRICH SEIBERT, OECD Principles of Corporate Governance – Grundsätze der Unternehmensführung und -kon-trolle für die Welt, AG 8/99 (1999), 337-339. Uma versão dos Princípios em português encontra-se nos CadernosMVM n.º 5, 285-316.37 Em leitura de pormenor, pode detectar-se uma subtil mas significativa diferença entre, de um lado, o Preâmbu-lo dos Princípios, que trata os contributos público e privado em pé de igualdade (“(the Principles) can be used by po-licy makers (...) and by market participants as they develop their own practices”), e, de outro lado, o Prefácio da ediçãopromovida pela OCDE do mesmo texto, assinado pelo Secretário Geral da OCDE e pela Presidente do Grupo emque se assinala a responsabilidade de desenvolvimento do sistema de governação sobretudo ao sector privado (“themain responsability lies with the private sector”). A prevalência hermenêutica do Preâmbulo não oferece dúvida, por-quanto este prefácio não faz sequer parte do texto oficial aprovado pelos Estados-membros.38 É designadamente visível a sua influência no Código alemão de 2000 (“Código de Frankfurt”) e no código daEuropean Association of Securities Dealers.39 Há actualmente conferências regionais no Sudeste Europeu, na Ásia, na Eurásia (Ucrânia e Estados vizinhos),na Rússia e na América Latina.

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de o sistema jurídico germânico ter exerci-do, salvo neste último ponto, influências ní-tidas no Código das Sociedades Comerciaisportuguês.

Previna-se que, no sistema germânico, aatenção para os problemas de governaçãosurge enquadrada por iniciativas legislati-vas, de que se destacam a “Lei do controloe transparência no âmbito empresarial” de1998 (Gesetz zur Kontrolle und Transparenzim Unternehmensbereich, ou KonTraG) e a“Lei da transparência e da publicidade” de2002 (Transparenz- und Publizitätgesetzes,ou TransPuG). Estas leis surgem motivadaspelo objectivo de conferir maior atractivi-dade internacional ao mercado de capitaisalemão e às sociedades cotadas germânicas,e são precedidas e acompanhadas de inten-sas discussões doutrinárias sobre o âmbitode flexibilidade e de autonomia estatutáriaque reconhecer-se às sociedades anónimase sobre o aperfeiçoamento do funciona-mento do Aufsichrat40.

Na sequência destes diplomas, na Ale-manha verificou-se a publicação de dois có-digos de iniciativa privada, que disputa-vam entre si os favores do tecido empresa-rial e do mercado: um documento sobreboas práticas societárias que, em função doseu local de publicação, ficou conhecidocomo o “Código de Frankfurt”41 e outro

que se intitulou “Código do Círculo de ini-ciativa de Berlim”42.

Em função da fragmentação do mercadoque este dualismo de códigos originava, eem resposta também a alguns escândalossocietários, em Maio de 2000 o Governo fe-deral alemão formou uma comissão paraaperfeiçoar a competitividade das socieda-des alemãs e o seu sistema de governação,presidida por um destacado académico, oProfessor THEODOR BAUMS. O Relatórioda Comissão Baums foi apresentado em Ju-lho de 2001, dele decorrendo quase umacentena e meia de propostas de alteração aoregime societário. Além disso, o Relatóriosugeriu a criação de uma comissão perma-nente que fosse encarregada da elaboraçãode um código de governo dirigido a socie-dades cotadas em bolsa. Apesar do carácternão injuntivo deste projectado código, eradesde logo recomendado que o Vorstand e oAufsichrat emitissem uma declaração, noseu relatório anual, sobre a observância ouinobservância do código. A declaração so-bre o cumprimento deveria igualmente in-dicar razões sobre eventuais desvios ao có-digo43.

Por isso foi criada uma comissão encar-regue de redigir um código, desta feita sobpresidência de GERHARDT CROMME. Onovo código, datado de 2002 e designado

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40 KARSTEN SCHMIDT, Gesellschaftsrecht4, Köln et al., (2002), 766-768; KLAUS HOPT, Unternehmensführung, Unter-nehmenskontrolle, Modernisierung des Aktienrechts – Zum Bericht der Regierungskommission Corporate Governance, inHOMMELHOFF/LUTTER/SCHMIDT/SCHÖN/ULMER (organiz.), Corporate Governance. Gemeinschaftssymposion derZeitschriften, ZHR/ZGR (2002), 27-67; MARCUS LUTTER/GERD KRIEGER, Rechte und Pflichten des Aufsichtsrats4,(2002), 17-20; MAXIMILIAN SCHIESSL, Deutsche Corporate Governance post Enron, AG 11/2002, 593-594.41 GRUNDSATZKOMMISSION CORPORATE GOVERNANCE, Corporate Governance-Grundsätze für borsennotierte Gesells-chaften, (2000). Cfr. UWE SCHNEIDER/CHRISTIAN STRENGER, Die “Corporate Governance-Grundsätze” der Grund-satzkommission Corporate Governance (German Panel on Corporate Governance), AG (2000) 106-87.42 BERLINER INITIATIVKREISES, German Code of Corporate Governance, (2000). Sobre este, cfr. MARTIN PELTZER//AXEL VON WERDER, Der “German Code of Corporate Governance (GCCG)” des Berliner Initiativkreises, AG (2001), 1-6.43 Cfr. Bericht der Regierungskommission Corporate Governance, (2001); e sobre este: THEODOR BAUMS, Aktienrechtfür globalisierte Kapitalmärkte – Generalbericht, in HOMMELHOFF/LUTTER/SCHMIDT/SCHÖN/ULMER (organiz.),Corporate Governance. Gemeinschaftssymposion der Zeitschriften, ZHR/ZGR (2002), 17-25 (18-19, 22-23); KLAUS

HOPT, Unternehmensführung, Unternehmenskontrolle, Modernisierung des Aktienrechts – Zum Bericht der Regierungs-kommission Corporate Governance, cit., 46-58.

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por Código Cromme, em homenagem aoPresidente da comissão governamental44,conseguiu cumprir o seu desiderato conci-liador, combinando a descrição sintética dealgumas regras legais com algumas indica-ções recomendatórias, e não procurandodesta feita formular propostas de interven-ção legislativa45. Além disso, denotou apreocupação de envolver os grupos desociedades na temática da governação e,como novidade relevante, fez intervir umauditor na verificação da declaração deconformidade com o código46.

Como se vê, a reflexão alemã apresenta-se muito dinâmica no debate sobre os códi-gos de governo, numa demonstração im-portante de que o fenómeno não se centrano mundo jurídico anglo-americano, antessignifica actualmente um ponto de aproxi-mação entre os quadros normativos conti-nentais e anglo-saxónicos.

4. A situação em Portugal

I – Em Portugal, a única iniciativa deelaboração de um código de governo per-tenceu à CMVM. Com efeito, após umperíodo de consulta pública, em 1999 a au-toridade de supervisão aprovou um con-

junto sistematizado de 17 recomendações,intituladas Recomendações da CMVM sobreo Governo das Sociedades Cotadas47.

O documento começa por confessar asua complementariedade, lembrando in-trodutoriamente que muitos dos problemasassociados ao governo das sociedades têmsoluções legislativas no sistema jurídiconacional – sobretudo no Código das Socie-dades Comerciais e no Código dos ValoresMobiliários. As Recomendações assumi-ram igualmente uma abordagem gradua-lista, dada a componente cultural do tema,indicando que estariam sujeitas a revisões eaditamentos.

II – As Recomendações constantes docorpo do código encontravam-se repartidaspor cinco capítulos, estruturados do se-guinte modo:

• Capítulo I – Divulgação de Informa-ção;

• Capítulo II – Exercício do Direito deVoto48 e Representação de Accionistas;

• Capítulo III – Investidores Institucio-nais;

• Capítulo IV – Regras Societárias;• Capítulo V – Estrutura e Funciona-

mento do Órgão de Administração.Além disso, este código nacional de go-

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44 Deutscher Corporate Governance Kodex (DCGK), (2002).45 Sobre o Código, reenvia-se designadamente para OLAF ERHARD, Die Duchsetzung von Corporate-Governance-Re-geln, AG n.º 2/2002, 336-345; HANS FRIEDERICH GELHAUSEN/HENNIG HÖNSCH, Deutscher Corporate GovernanceKodex und Abschlussprüfung, AG 10/2002 (2002), 529-535.46 Cfr. DCGK 7.2.3. (2.ºparágrafo), em articulação com a alteração ao § 161 AktG introduzida pela TransPuG.47 Cfr. sobre estas PAULO CÂMARA, O Governo das Sociedades em Portugal: Uma Introdução, Cadernos MVM, n.º 12(Dezembro de 2001), 45-55 (= El Gobierno de Sociedades en Portugal: una introduccíon, in Revista del Instituto Ibe-roamericano de Mercado de Valores, n.º 2 (2001), 42-50). As Recomendações foram ainda precedidas da realização deum inquérito sobre a prática de administração de sociedades cotadas, que pode encontrar-se nos Cadernos MVM,n.º 5, 319-342. Refira-se ainda um estudo económico realizado sobre a relação entre o grau de adopção do código eo desempenho das sociedades: CARLOS ALVES/VITOR MENDES, Corporate Governance Policy and Company Perfor-mance: The Portuguese Case, Trabalhos em curso (Working Papers) n.º 112, Faculdade de Economia da Universida-de do Porto (2001) também publicado sob o título As Recomendações da CMVM Relativas ao Corporate Governance ea Performance das Sociedades, Cadernos MVM, n.º 12 (Dezembro de 2001), 57-88.48 Quanto a este tema, o código foi complementado com uma nova série de Recomendações sobre o exercício dovoto por correspondência em sociedades abertas, datado de 2001.

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verno societário caracterizava-se por reco-mendar que as sociedades cotadas prestas-sem informação acerca do respectivo cum-primento. Esta abordagem “suave” – pos-tulando uma recomendação para divulgarinformação sobre o acatamento de um có-digo já de si recomendatório – era, contu-do, complementada por um levantamentoanual sobre o cumprimento da recomenda-ção de divulgação do grau de observânciado código por parte de sociedades. Por ou-tro lado, a CMVM institui a prática da di-vulgação pública, no seu sítio da Internet,de uma lista discriminando as sociedadescumpridoras e as sociedades não-cumpri-doras. Tal conduziu a uma pressão socialpara o aumento do cumprimento da reco-mendação. O reflexo desta divulgação foinítido, tendo a adesão subido de cerca de 33% de sociedades em 2000 para cerca de 70% em 2001.

III – O código recomendatório sofreuuma importante evolução em 2001. Tal de-veu-se, em primeiro lugar, ao facto de o Re-gulamento da CMVM n.º 7/2001 ter impos-to, de modo injuntivo, a divulgação públicae anual do grau de cumprimento das Reco-mendações. Para o efeito, foi fornecido ummodelo de Relatório anual sobre o governoda sociedade, que deve ser preenchido emanexo aos relatório anual de gestão ou emcapítulo separado deste49.

Através desse modelo, o mesmo regula-mento elevou a deveres de informação al-gumas normas que anteriormente reves-tiam a forma de recomendações – a saber asrelativas ao processo de decisão empresa-rial, aos cargos exercidos pelos administra-dores em outras sociedades, à descrição da

evolução de cotações e à indicação da polí-tica de dividendos50. O anexo assume, as-sim, uma natureza mista, não só obrigandoa divulgar alguns aspectos ligados à gover-nação que não têm reflexo directo nas Re-comendações, mas também forçando àprestação de esclarecimentos sobre o graude cumprimento das normas recomendató-rias.

Por outro lado, o próprio Código dosValores Mobiliários, no seu art. 19.º, tornouredundante a recomendação sobre divulga-ção de acordos parassociais51.

Procedeu-se, por conseguinte, a uma re-formulação da estrutura das Recomenda-ções, passando o capítulo dedicado aos in-vestidores institucionais (anterior III) parao final, e apresentando-se o texto do se-guinte modo:

• Capítulo I – Divulgação de Informa-ção;

• Capítulo II – Exercício do Direito deVoto e Representação de Accionistas;

• Capítulo III – Regras Societárias;• Capítulo IV – Estrutura e Funciona-

mento do Órgão de Administração;• Capítulo V – Investidores Institucio-

nais.Frise-se ainda que houve novos temas a

merecer menções recomendatórias, como écaso da criação de sistema interno de con-trolo de riscos, da remuneração dos admi-nistradores e da legitimação da aprovaçãode planos de atribuição de acções ou de op-ção de aquisição de acções52.

O mais importante nesta versão de 2001é, todavia, a modificação do modelo de fis-calização de práticas do governo societáriodas sociedades cotadas, já não apoiado ex-clusivamente em recomendações, mas as-

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49 O Regulamento da CMVM n.º 7/2001 e o novo texto das Recomendações podem consultar-se em < www.cmvm.pt >.50 Recomendações n.ºs 1 a 4 na versão de 1999.51 Recomendação n.º 5 na versão de 1999.52 Recomendações n.ºs 6, 12 e 13 (versão de 2001).

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sente (igualmente) na estatuição de umconjunto significativo de deveres de infor-mação, por forma a que os investidores

possam avaliar adequadamente as opçõestomadas por cada sociedade cotada em re-lação ao seu governo.

76 : CADERNOS DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS

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53 Já o Código de Berlim optava por técnica diversa, dedicando uma secção particular às sociedades fechadas ao in-vestimento do público (secção VII). Confira-se neste contexto a panorâmica comparativa de WEIL, GOTSHAL &MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Member States, cit., 24-26.54 KLAUS HOPT pronuncia-se em sentido próximo: Unternehmensführung, Unternehmenskontrolle, Modernisierungdes Aktienrechts – Zum Bericht der Regierungskommission Corporate Governance, cit., 49-51.

§ 2.º CONTEÚDO E FUNÇÕES

5. Os códigos como instrumento do gover-no das sociedades

I – Os códigos de governo constituemactualmente um importante instrumentonormativo do governo das sociedades. Ditode outro modo, não se consegue compreen-der correctamente a constelação de proble-mas ligados ao governo das sociedades senão atendermos aos códigos de governação.

Como resulta do desenvolvimento ante-rior, estes códigos dirigem-se de ordinário asociedades cotadas em bolsa, embora mui-tos facultem ou recomendem a sua obser-vância por sociedades fechadas ao investi-mento do público. Assim acontece, respec-tivamente, no código nacional e no actualcódigo alemão53.

Quanto ao seu conteúdo, estes códigoscaracterizam-se por fornecerem modelosrecomendatórios de comportamento paratodos os actores ligados ao governo dassociedades – titulares de órgãos sociais, au-ditores e sócios. Não obstante, pode dizer-se que a maioria das indicações são dirigi-das aos titulares do órgão de administração.

Atento o largo perímetro de destinatá-rios típicos dos códigos de governo, podeadmitir-se que a maior parte das pessoas vi-sadas não tem formação jurídica. A impor-

tância da compreensibilidade directa doseu enunciado por não-juristas reforça, porseu turno, a necessidade que estes códigossejam redigidos em termos sintéticos, aces-síveis e – como em qualquer texto normati-vo – claros54.

II – Se as proposições anteriores retra-tam os códigos de governo nas suas caracte-rísticas comuns, deve também anotar-seque, no que toca à iniciativa da sua aprova-ção e ao seu âmbito de aplicação, os códigosde governo assumem natureza claramenteheterogénea.

Como se viu, contrapõem-se códigos deâmbito nacional e códigos de vocação inter-nacional – constituindo exemplos destes osPrincípios da OCDE de Corporate Gover-nance, as orientações do International Cor-porate Governance Network ou ainda osPrincípios da European Association of Securi-ties Dealers (EASD)). A distinção principalé a que separa os códigos de iniciativa pú-blica, em manifestação de uma hetero-re-gulação (designadamente, os códigos vi-gentes em Portugal e na Alemanha) dos có-digos de iniciativa privada (por exemplo, osprincipais códigos britânicos), que concreti-zam uma forma de auto-regulação. Aindaligados a estes, devem considerar-se igual-

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mente os códigos aplicáveis apenas à socie-dade que os aprova (casos dos códigos daGeneral Motors ou do Deutsche Bank).

Assim, numa tentativa de sistematiza-ção, dir-se-ia que os códigos de governo re-lativos a sociedades abertas podem funda-mentalmente reconduzir-se a seis modali-dades principais em função da respectivainiciativa e do seu âmbito de aplicação:

A. Códigos de iniciativa pública:A.1. Internacionais;A.2. Nacionais.

B. Códigos de iniciativa privada:B.1 Internacionais;B.2. Nacionais;B.3. Sectoriais;B.4 Societários.

III – O grau recomendatório dos códigosde governo pode igualmente variar. Exis-tem códigos que fixam normas recomenda-tórias directas e outros que se limitam a fi-xar metas desejáveis em termos mais difu-sos.

A título de exemplo, o código alemão de2002 combina as duas técnicas. O docu-mento contrapõe as recomendações das su-gestões: as recomendações distinguem-sepela fórmula verbal “soll” (equivalente à lo-cução “deve”), ao passo que as sugestões secaracterizam pelo uso de “kann” ou “sollte”(equivalente a “pode” ou “deveria”). Nestassugestões, segundo o texto germânico, nãoé necessário dar conhecimento público so-bre os desvios ao Código55.

Embora em moldes diversos, panoramasemelhante ocorre relativamente ao códigoportuguês, que se socorre de fórmulas ver-

bais que induzem um grau recomendatóriovariável. A par de recomendações em sen-tido corrente, caracterizadas pela fórmula“deve”56 ou “recomenda-se”57, sobram ou-tras que se socorrem de expressões maismatizadas, tais como “encoraja-se” ou“deve, na medida do possível”.

6. Funções dos códigos

I – Os códigos de governo filiam-se nastendências gerais de governação, muitopreocupadas com a eficiência organizativadas sociedades e com a optimização dosseus resultados. Nesta ordem de ideias, en-tende-se que o contributo para melhorar aspráticas das sociedades e das pessoas quenelas intervêm não implica apenas umaperfeiçoamento das leis vigentes.

Assim, dado o seu cariz recomendatório,pode dizer-se que na base dos códigos degoverno está a assunção de que nem toda aactividade das sociedades deve ser reguladapor lei. Neste sentido, poderia encarar-se oscódigos como uma via de desregulamenta-ção. O termo aqui aplicado, porém, é clara-mente equívoco, porquanto os códigos degoverno significam sobretudo um alarga-mento das opções de regulação58, em bene-fício de uma visão plural das fontes.

Em si, este alargamento de ferramentasnormativas apresenta notória importância.Aliás, já o Relatório apresentado pelo Gru-po de Peritos de Alto Nível sobre Direitodas Sociedades nomeado pela ComissãoEuropeia (Relatório Winter II) reconheciaum significativo movimento para meios le-gislativos alternativos para a regulação so-

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55 Deutscher Corporate Governance Kodex, no seu preâmbulo, 1-2.56 Recomendações n.ºs 2, 3, 4, 7, 8, 14 e 15 (versão de 2001).57 Recomendações n.ºs 5, 6, 12 e 13 (versão de 2001).58 PETER HOMMELHOFF, Die OECD-Principles of Corporate Governance – ihre Chancen und Risiken aus dem Blick-winkel der deutschen corporate governance-Bewegung, ZGR (2001), 244-247.

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cietária, oferecendo como exemplo os pa-drões fixados pelos participantes do merca-do ou em colaboração com estes59.

II – Enquanto criações sociais, nem todosos códigos gozam da mesma aptidão fun-cional. Detectam-se três principais factores,de efeito conjugado, a condicionar o seu re-levo funcional. Em primeiro lugar, conta-sea penetração social dos códigos, dado o seucarácter recomendatório. Tal depende darepresentatividade ou da influência da enti-dade que aprova o código e do processo se-guido para assegurar uma ampla aceitaçãopelos destinatários: para esse efeito, o recur-so a processos de consulta pública antes daaprovação dos códigos e a prestação de in-formação sobre o grau de cumprimentoconstituem factores decisivos. Além disso,releva a adequação do conteúdo material doscódigos perante as exigências do tráfego.Por fim, importa atender à estabilidade tem-poral das soluções consagradas. Várias nor-mas são consagradas a título experimental,não sendo suficientemente cristalizadas – ealgumas acabam por ser substituídas ao fimde algum tempo.

Se estes três factores não estão reunidosou deixam de estar reunidos, não se verifi-ca ou deixa de se verificar a sanção socialpara o não cumprimento e deixam de seratendidas, por desuso, as normas constan-tes dos códigos de governo60.

III – Feita esta importante ressalva, cui-daremos de seguida das funções que os có-digos de governo, no seu grau máximo depenetração social, adequação material e es-

tabilidade temporal, logram desempenhar.Distinguem-se as funções gerais das fun-ções que, em especial, apenas estão assina-ladas a certos códigos.

a) Em primeiro lugar, os códigos de go-verno apresentam-se como instrumentosque, de facto, conduzem a um reforço infor-mativo em áreas não cobertas por deveresde informação de fonte legal ou regula-mentar.

Tal sucede desde logo em códigos acom-panhados do dever de prestar informaçãosobre o seu cumprimento, adiante exami-nado61. Nestes casos, o efeito informativoadvém de uma norma jurídica por referên-cia ao código de governo, iluminando di-versos aspectos sobre o modo de direcçãoda sociedade ou do exercício do controlosobre a sociedade.

O reforço da informação prestada tam-bém se atinge, de resto, em códigos de puraauto-regulação, aprovados pelas sociedadesa quem se dirigem. Uma das aplicaçõesmais relevantes a este propósito prende-secom a informação respeitante à responsabi-lidade social das empresas ou à sua respon-sabilidade ambiental. Esta é usualmentedefinida como a integração de preocupa-ções sociais e ambientais no negócio dasempresas e nas suas relações com os sujeitosrelevantes nas empresas em base voluntária– e tem vindo a merecer significativo de-senvolvimento em códigos societários62.

b) Os códigos constituem forma de di-vulgar boas práticas e de, aproveitando apressão social e do mercado, fazer germi-nar condutas “óptimas” ligadas ao governodas sociedades. Com isto, os cumprem

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59 HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS, Report on a Modern Regulatory Framework for Company Lawin Europe, (2002) 3160 Sobre esta possibilidade, embora com formulação diversa: MELVIN EISENBERG, Corporate Law and Social Norms,cit., 1291-1292.61 Cfr. infra § 3.º.62 COMISSÃO EUROPEIA, Green Paper. Promoting a European framework for Corporate Social Responsibility, COM(2001) 366 final, (18.07.2001), 6.

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igualmente uma finalidade preventiva de ir-regularidades e ilícitos na direcção e no con-trolo de sociedades, ao apresentar padrõesclaros de governação que os sujeitos compoder de decisão nas sociedades procurarãorespeitar.

c) Além disso, deve considerar-se a fun-ção desempenhada pelos códigos na disse-minação de uma cultura de mercado.

Em geral, os códigos estimulam a discus-são de assuntos ligados à governação. Nomais, não se esqueça que são os participan-tes do mercado que ajuízam a bondade dasopções assumidas pelos destinatários doscódigos de bom governo. Por esse motivo,estes textos conduzem a uma tomada deconsciência e a uma preocupação das em-presas, sedimentando uma cultura empre-sarial moderna imbuída de uma lógica ac-tiva e eticamente informada sobre o papelde cada agente no mercado63.

Tome-se o caso central da independênciados administradores para ilustrar este pon-to. A opção tomada em Portugal a propósi-to deste tema foi a de confiar às sociedadesa tarefa de indicar um conceito de indepen-dência dos administradores perfilhado noseu relatório sobre o governo societário64.Tal obriga a uma tomada de reflexão porcada sociedade sobre este ponto, ainda an-tes do estabelecimento de um conceito legalou regulamentar de administrador inde-pendente para efeitos da governação.

d) Os códigos em apreço desempenhamtambém uma função não negligenciável deteste de possíveis futuras normas injuntivas.

Como se sabe, o governo das sociedades,mercê da sua expansividade, vai conquis-

tando novas áreas de regulação, em que assoluções não estão suficientemente cristali-zadas. Os códigos de governação servemneste sentido de laboratórios de futuras so-luções normativas, testando opções de re-gulação.

A experiência portuguesa permite docu-mentar este ponto, porque como mencio-nado algumas normas recomendatórias emmatéria informativa foram posteriormentetransformadas em normas regulamenta-res65.

e) Os códigos de governo podem igual-mente servir de elemento de interpretação deleis, densificando conceitos indeterminadosou normas legais, designadamente sobre aconduta dos actores societários.

Entre nós, a questão mostra particularacuidade em relação ao dever dos adminis-tradores de actuação de acordo com umgestor criterioso e ordenado, nos termos doart. 64.º CSC.

f) Cabe ainda tomar posição sobre a sus-ceptibilidade de os códigos funcionaremcomo instrumentos de integração de lacu-nas66.

Uma vez que não reputamos tecnica-mente admissível a transposição analógicaa partir de normas não jurídicas, no direitoportuguês a questão limita-se à possibilida-de de utilizar as normas constantes de códi-gos de governo para, na falta de caso análo-go, representarem a norma que o intérpre-te criaria se houvesse que legislar dentro doespírito do sistema, para efeitos do art. 10.º,n.º 3 do Código Civil. Impõe-se responderafirmativamente. A natureza complemen-tar e nessa medida tendencialmente con-

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63 MAXIMILIAN SCHIESSL, Deutsche Corporate Governance post Enron, cit., 594; WEIL, GOTSHAL & MANGES, Com-parative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Member States, cit., 68.64 Capítulo IV, n.º 1 II do Anexo ao Regulamento da CMVM n.º 7/2001.65 Cfr. supra, § 1.º, 4.66 Pronunciando-se afirmativamente perante o direito alemão: MARCUS LUTTER, Vergleichende Corporate Gover-nance – Die deutsche Sicht, cit., 227; Id., Corporate Governance in Germania, in Governo dell’Impresa e Mercato delleRegole – Scritti Giuridici per Guido Rossi, Milano (2002) I, 113.

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forme ao sistema dos códigos de governoassinalam-lhe precisamente uma vocaçãode apoio importante para a busca sistemáti-ca desta norma criada ad hoc para a inte-gração de lacunas. A título de exemplo, aescassa atenção que por regra o ordena-mento jurídico português dedica à densifi-cação dos deveres dos administradores abreespaço para que os códigos de governaçãopossam suprir nesse campo as relevantesomissões legislativas.

Esta conclusão extrai-se, claro está, noduplo pressuposto de que o art. 10.º CC ser-ve de arrimo normativo, directo ou subsi-diário, em matéria de integração de lacunasem todo o direito privado, incluindo o di-reito societário, e por conseguinte que o re-curso à criação de norma segundo espíritodo sistema, não é impedida pelo facto de oart. 2.º CSC não lhe fazer directa alusão.

g) Outro efeito dos códigos é o de servi-rem de fonte de usos se, dotados de razoávelpenetração social, gerarem uma aplicaçãopersistente e contínua. Tais usos manifes-tam-se nomeadamente na criações de pa-drões – usualmente de âmbito internacio-nal – ligados à organização do órgão de ad-ministração, em aspectos tais como a sepa-ração entre presidente do conselho de ad-ministração e o presidente da comissão exe-cutiva e a criação de comités, entre outros.A inter-relação destas práticas com os co-mandos legais sobre o tema é, aliás, inevitá-vel67. Não serão todavia fonte de direito,porquanto tal qualificação depende semprede remissão feita pela lei (art. 3.º, n.º 1 CC).

IV – Além das descritas funções gerais,detectam-se ainda funções especiais dos có-

digos de bom governo, em atenção à suanatureza de fonte de auto-regulação ou dehetero-regulação.

i) Os códigos elaborados por autoridadepública podem ser utilizados como instru-mento de uma intervenção normativa gra-dual. Com efeito, em áreas onde se preten-da uma introdução gradual de soluçõesnormativas, primeiro por via recomendató-ria, depois por via injuntiva, os códigos he-tero-reguladores funcionam como alterna-tiva vantajosa a um prazo de vacatio legismuito dilatado.

ii) Os códigos de governo hetero-regula-dores servem ainda de elemento referencia-dor para códigos internos. De facto, é fre-quente que os códigos aprovados por socie-dades busquem inspiração em códigos deâmbito nacional.

Há, pois, um duplo movimento de in-fluência a partir dos códigos de governo: deum lado, inspirando o legislador em inter-venções normativas futuras; de outro lado,servindo de referência para códigos empre-sariais.

iii) Os códigos internos podem tambémservir para adaptar as directrizes gerais degovernação às especificidades de cadasociedade e do sector em que se insere. Ca-ber-lhe-á, neste sentido, a incumbência dedensificação de normas éticas ou de criaçãode padrões de comportamento mais exi-gentes que os decorrentes de fontes jurídi-cas imperativas. O código do DeutscheBank fornece um exemplo importante aeste propósito, ao conter indicações quantoao seu governo adaptadas à sua área de ac-tividade (bancária) e à estrutura do gruposocietário em que se insere68.

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67 KLAUS HOPT, Unternehmensführung, Unternehmenskontrolle, Modernisierung des Aktienrechts – Zum Bericht derRegierungskommission Corporate Governance, cit., 52; MARCUS LUTTER, Corporate Governance in Germania, cit., 113.68 DEUTSCHE BANK, Corporate Governance Grundsätze, (2002), acessível em < http://ircontent.db.com/ir/data/de_corpgov_112002.pdf >.

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7. O dever de prestar informação sobre ograu de observância do código (comply orexplain)

I – Na esteira da influência britânica, di-versos códigos de governo são complemen-tados por normas injuntivas que obrigam àprestação de informação sobre o seu cum-primento. Assim aconteceu, como vimos,na versão de 2001 do código português e nocódigo alemão de 200269.

O dever de informação assim configura-do desdobra-se por duas vertentes: de umlado, obriga a dar notícia sobre o grau decumprimento das normas recomendatóriasconstantes do código; além disso, em rela-ção às normas que não são observadas, pos-tula um dever de apresentação do funda-mento dessa preterição da indicação reco-mendatória.

Percebe-se, assim, que a designação cor-rente de comply or explain70, que se reportaa este duplo dever informativo, correspon-da a uma simplificação. Com efeito, a pres-tação de informação não corresponde a umaalternativa ao cumprimento do código; mes-mo as sociedades que cumprem as regrasdo código devem informar que o fazem.Por isso, numa formulação mais extensa,deveria dizer-se: disclose if you comply withthe code or explain why you don’t.

À margem desta caracterização sobre aessência do sistema, refira-se a existência desingularidades em alguns Estados. Usual-mente, a declaração anual sobre o cumpri-mento é única e reporta-se exclusivamenteao momento temporal em que é produzida.Porém, na Alemanha obriga-se ainda auma declaração sobre o cumprimento docódigo no futuro; e aí produzem-se anual-

mente duas declarações sobre o cumpri-mento, e não uma, em virtude de haver in-dicações dirigidas não apenas ao órgão exe-cutivo (Vorstand) mas também ao órgão defiscalização (Aufsichrat).

II – Esta prestação de informação apre-senta-se como uma forma de combinar umcódigo voluntário com normas injuntivassobre o respectivo cumprimento.

Frise-se, neste contexto, que a técnica decomply or explain dispensa uma aprovaçãodo código por via legal ou regulamentar. Ocódigo, nesta formulação, configura-se an-tes como um quadro de referência relativa-mente ao qual os destinatários estão por leiou regulamento obrigadas a informar se eem que grau procedem ao seu cumprimen-to.

O certo é que a informação sobre o cum-primento torna visíveis as opções tomadaspor cada sociedade quanto à sua governa-ção. Por sua banda, tal permite que se ma-nifeste o efeito disciplinador do mercado decapitais: os investidores ficarão desencora-jados de adquirir acções de sociedades compadrões pobres de governação – e conse-quentemente as cotações destes valores mo-biliários tenderão a diminuir. Assim, estainformação pressiona as decisões dos agen-tes societários e, com isso, redobra a eficáciano tocante ao acatamento na prática das re-comendações contidas nos códigos.

Daqui resulta confirmado o papel decisi-vo que a informação pode desempenharcomo instrumento de regulação. O Relató-rio Winter II justificava esta função peloincentivo criado às boas práticas em termosmais eficientes, flexíveis e fáceis de fiscali-zar71. De resto, este ponto não representa

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69 Cfr. supra, § 1.º, 3 e 4. 70 Um slogan, chamou-lhe LUTTER (Corporate Governance in Germania, cit., 116).71 HIGH LEVEL GROUP OF COMPANY LAW EXPERTS, Report on a Modern Regulatory Framework for Company Lawin Europe, cit., 33-34.

§ 3.º CUMPRIMENTO

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em rigor qualquer novidade quando con-frontado com a estrutura da regulação mo-biliária, que como se sabe assenta principal-mente em prescrições informativas72.

A informação prestada sobre o governosocietário é, por outro lado, uma informa-ção tornada pública através dos mecanis-mos típicos da área mobiliária – isto é, atra-vés de publicação. Tal é determinante paraoperar a pressão social do mercado tenden-te ao afinamento dos comportamentos se-guidos. Neste sentido, em suma pode di-zer-se que os códigos partem do reconheci-mento implícito ou explícito das imperfeiçõesdo mercado e dos seus agentes – assimetria deinformação, conflito de interesses, entreoutros – mas servem-se do mercado para me-lhorar as práticas das sociedades cotadas embolsa e dos titulares dos seus órgãos.

IV – A declaração de cumprimento deverespeitar os princípios gerais em matériainformativa: deve designadamente sercompleta, verdadeira e objectiva, comoprescrito em geral pelo art. 7.º do Códigodos Valores Mobiliários.

Se desrespeitar alguma destas exigên-cias, tal declaração é ilícita, sendo conse-quentemente geradora de responsabilidadepara quem a produziu.

As consequências potenciais são de du-pla natureza: de um lado contra-ordenacio-nal, podendo resultar na aplicação de umacoima; e de outro lado de natureza civil, norespeitante à reparação dos danos causadospela declaração de cumprimento.

Quanto a este último aspecto, cumprerelembrar que as actuais propostas no to-cante ao conteúdo do prospecto apresenta-das em desenvolvimento à nova Propostade Directiva comunitária sobre Prospectos

apontam no sentido de forçar a inclusão dadeclaração de cumprimento no prospectode oferta pública e no prospecto de admis-são73. Assim, é de frisar que, se inserida emprospecto, a declaração viciada provoca aaplicação das regras sobre responsabilidadecivil pelo prospecto, constantes dos arts.149.º e seguintes do Código dos ValoresMobiliários, que representam uma formade tutela indemnizatória mais intensa dosinvestidores lesados, designadamente porassentarem numa presunção de culpa do le-sante (art. 149.º, n.º 1).

V – É neste quadro que ganha significa-do o problema de política legislativa respei-tante à pessoa competente para a fiscaliza-ção da declaração de cumprimento.

Numa abordagem preliminar, três prin-cipais caminhos podem ser equacionadosneste contexto.

Uma abordagem envolveria a constitui-ção de um comité de ética dentro da socie-dade. Todavia, a composição destes comitésde ética corresponde sempre a uma incóg-nita, designadamente quanto à indepen-dência dos seus membros, razão pela qualesta via é encarada com reservas.

Uma solução próxima aponta para os au-ditores internos a responsabilidade de pro-ceder a tal vigilância sobre o cumprimentodas indicações sobre governação e sobre adeclaração emitida a esse respeito. Segundoa International Institute of Internal Auditors,referir-se-á que as Normas para a práticada auditoria interna confiam essa incum-bência aos auditores internos74.

O terceiro é a de delegar tal missão nosauditores externos. Neste sentido, o Combi-ned Code obriga a que os auditores se pro-nunciem sobre a informação prestada sobre

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72 PAULO CÂMARA, Deveres de informação e formação de preços no direito dos valores mobiliários, Cadernos MVM n.º2, (1998), 79-94.73 Anexo respeitante aos valores representativos do capital social, V.C.4.74 Norma 2130. Cfr. JOSÉ NUNES PEREIRA, Introdução, Cadernos de Auditoria Interna ano 4 n.º 1(Nov. – 2001), 8-9.

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o cumprimento do código de governo75.Identicamente, o Código alemão de bomgoverno confia ao auditor a tarefa de veri-ficar a veracidade das declarações do Auf-sichrat e do Vorstand sobre o cumprimentodo Código (7.2.3.).

À partida, afigura-se que os auditoresexternos são os sujeitos mais vocacionadospara confirmar informação prestada aomercado. Mas este modelo não é isento deinconvenientes. Advirta-se a propósito que,em virtude dos custos envolvidos numa au-ditoria completa sobre a veracidade e com-pletude da informação prestada, na Alema-nha basta uma verificação da emissão dadeclaração sobre o cumprimento. Daí oapontar-se o risco de a intervenção de audi-tor representar um exercício formal, decumprimento mecânico76. Aliás, deve ad-mitir-se que o modelo da auditoria externae o da auditoria interna não são modelosantagónicos, que melhor funcionariam in-terligados. Percebe-se, pois, que este pro-blema deve considerar-se em aberto, nãoconcitando ainda soluções definitivas.

8. Facultatividade do cumprimento

I – Como vimos, os códigos de governonão contêm normas injuntivas nem supleti-vas, assumindo natureza recomendatória.Nesta medida, o que leva as sociedadesabertas a cumprir os códigos de governonão é, por definição, o risco de sanção.

A contribuir para este fenómeno de ade-são voluntária aos códigos de governaçãopode apontar-se, em primeiro lugar, o risco

reputacional das sociedades, cuja cotação éafectada negativamente por notícias ligadasao deficiente governo. Além disso, joga nomesmo sentido o risco reputacional dosprofissionais que dirigem as sociedades,cuja valorização no mercado profissionaldesce abruptamente se associados a práticasirregulares ou menos sãs. Tal é potenciadopor efeito da comunicação social, designa-da mas não exclusivamente da imprensa fi-nanceira, em virtude da exposição mediáti-ca a que se sujeitam as suspeitas de com-portamentos ilícitos e a sua confirmação77.

Acrescem factores de competição em-presarial, que vêm nas boas práticas de go-vernação formas de distinção em relação aconcorrentes. A pressão dos investidoresinstitucionais mais interventivos igualmen-te contribui para uma adopção das boaspráticas pelas sociedades cotadas em bolsa.

Concorre também para uma adesão aoscódigos uma maior consciência geral do re-levo da ética dos negócios e dos comporta-mentos que a comunidade espera comomais correctos. No fundo, muitas normasde códigos de governo espelham padrõesde cidadania económica.

A somar-se a estes factores, a moral sua-sion induzida por autoridades de supervi-são ou por bolsas pode aumentar a sua efi-cácia78.

II – Tenha-se todavia presente que osfactores descritos, mesmo nos sistemas jurí-dicos com maior tradição na análise dosproblemas da governação, não logram umaadesão total dos códigos.

Por isso, levantam-se regularmente vo-

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75 Listing Rules, 12.43 A.76 KLAUS HOPT, Unternehmensführung, Unternehmenskontrolle, Modernisierung des Aktienrechts – Zum Bericht derRegierungskommission Corporate Governance, cit., 54-55.77 O ponto, já aflorado por MELVIN EISENBERG (Corporate Law and Social Norms, cit., 1268) pode ser documentadocom o recente impacto mediático em torno da detenção de presumíveis responsáveis por escândalos societários nosEstados Unidos.78 PAOLO MONTALENTI, Corporate governance: spunti per una riflessione, in Le Nuove Funzioni degli Organi Societa-ri: verso la Corporate Governance?, Milano, (2002), 204.

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zes críticas à influência e utilidade dos có-digos de governo em virtude de não estarassociado qualquer tipo de sanção jurídicaà não adesão das condutas por eles reco-mendadas79.

Deste ponto de vista, considera-se umafraqueza dos Princípios da OCDE o teremdesconsiderado a componente de fiscaliza-ção. De igual modo, na Alemanha, um sec-tor da doutrina criticou precisamente aabordagem do Código de governo propos-to pelo Código Cromme (2002), por negli-genciar a vertente do enforcement80. Em Es-panha ocorreu discussão semelhante na se-quência da aprovação do Código Olivencia– tendo grande parte da literatura tomadoposição em sentido contrário a uma inter-venção não-legislativa81.

III – A estas objecções, juntam-se outrosreparos críticos à utilização dos códigos degovernação em virtude do seu carácter re-comendatório.

Com efeito, a proliferação de Códigos degoverno, por outro lado, em alguns domí-nios tem sofrido críticas por não criar umnível de expectativas simétrico para todosos investidores82.

Observa-se também que o código de go-verno pode ser objecto de um cumprimentoformal, de natureza meramente mecânica,havendo nessa medida o perigo de aprovei-tamento dos códigos como mero instrumen-to de marketing, sem correspondência comrealidade subjacente (box-ticking exercise).

E há, finalmente, quem lembre que assoluções legais tradicionais encerram maiorcerteza jurídica83.

IV – Estas apreciações devem ser devi-damente enquadradas no tocante às fun-ções dos códigos. De facto, estes códigos degoverno procuram um equilíbrio entre adefesa da eficiência do mercado e da flexi-bilidade a este associada e a protecção dosinvestidores – e quando esta última estádesguarnecida os códigos de governo sãoinsuficientes.

No entanto, não há como não confessaras limitações deste instrumento de regula-ção – o que não anula a sua importância.

Nomeadamente, não pode esquecer-se ocarácter complementar dos códigos de go-verno; não se pode pretender, por isso, queos códigos resolvam todas as matérias care-cidas de regulação.

A célebre Enron Corporation, por exem-plo, tinha um exigente código de condutaversando sobre o comité de auditoria, direi-tos humanos, responsabilidade social daempresa e empenho em causas públicas84 –mas acabou revelar claras falhas de gover-nação, mercê de repetidas suspensões de vi-gência do seu código societário decididaspela administração.

Importa igualmente confessar que hááreas jurídicas ligadas à governação que re-clamam normas injuntivas. A título de bre-ve ilustração, mencione-se que na Alema-nha o Código voluntário das OPAs de 1995

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79 Confronte-se a propósito, em leitura muito negativa, GUIDO ROSSI, Il mito della corporate governance, in Le Nuo-ve Funzioni degli Organi Societari: verso la Corporate Governance?, cit., 16-18; e numa perspectiva optimista sobre oassunto, PAOLO MONTALENTI, Corporate governance: spunti per una riflessione, igualmente na última na obra citada,203-204.80 OLAG ERHARDT/ERIC NOWAK, Die Durchsetzung von Corporate-Governance Regeln, cit., 336-345 (342-345).81 ALBERTO ALONSO UREBA, El Gobierno de las Grandes Empresas (Reforma legal versus Códigos de Conducta), inGAUDENCIO ESTEBAN VELASCO (coord.), El Gobierno de las Sociedades Cotizadas, Madrid (1999), 95-133; LUIS FER-NÁNDEZ DE LA GÁNDARA, El Debate Actual sobre el Gobierno Corporativo: Aspectos Metodológicos y de Contenido, inob. ult. cit., 71-75, 78-82. 82 DEBORAH DOANE, Mandatory Reporting, Governance, n.104 (June 2002), 12-13.83 EILÍS FERRAN, Corporate Law, Codes and Social Norms – Finding the Right Regulatory Combination and Institutio-nal Structure, cit., 400.

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foi recentemente substituído por legislaçãoestadual imperativa (Wertpapiererwerbs-und Übernahmegesetz, abreviadamente de-signada por WpÜG). No Reino Unido ostrabalhos ligados à revisão de fundo do di-reito das sociedades concluíram pela pro-posta de codificação dos deveres associadosà prestação de informação financeira noCompanies Act85. E nos Estados Unidos aLei usualmente designada como Sarbanes-Oxley de 200286 também aponta no mesmosentido, ao prever um amplo número denormas injuntivas sobre sociedades cotadasem bolsa – apesar de, em diferente posicio-namento, obrigar paralelamente as socieda-des cotadas a divulgar informação sobre a

existência (ou não existência, e sua justifica-ção) de um código de ética aplicável aos di-rigentes financeiros87.

Colocamo-nos aqui perante o problemacentral da escolha do nível de regulaçãoadequado em termos de política legislativa.A este propósito, não há fórmulas rígidasquanto à combinação certa entre fontesnormativas clássicas e códigos de governo:é necessário efectuar uma ponderação cui-dada entre os objectivos propostos e os re-sultados que um código de governaçãopode trazer, para decidir da sua suficiência.Um acompanhamento periódico do graude cumprimento dos códigos revela-se, poresse motivo, de extrema importância.

CÓDIGOS DE GOVERNO DAS SOCIEDADES : 85

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84 LEO STRINE Jr, Derivative Impact? Some Early Reflections on the Corporation Law Implications of the Enron Deba-cle, Business Lawyer vol. 57 n. 4, 1386-1393.85 Modernizing Company Law, (2001) (conhecido como White Paper), nas propostas de secções 71-126. 86 Em rigor, a lei em apreço intitula-se “Public Company Accounting Reform and Investor Protection Act of 2002”.Pub. L. 107-204, 116 Stat. 745 (2002).87 Cfr. Section 406 do Sarbanes-Oxley Act de 2002, que aponta como destinatários deste código os quadros supe-riores da área financeira e contabilística (ou de controlo).88 DAVIS GLOBAL ADVISORS, Leading Corporate Governance Indicators – 2002, Newton (Nov. 2002), 20.89 JOHN C. COFFEE jr, The Rise of Dispersed Ownership: the Role of Law and the State in the Separation of Ownershipand Control, Yale Law Journal vol. 111 (Oct. 2001), 1-82.90 Também designada tese de selecção natural (MELVIN EISENBERG, Perspectivas de convergência global dos sistemasde direcção e controlo das sociedades, Cadernos MVM n.º 5 (Agosto 1999), 109-111).91 Sustentando neste contexto a inevitabilidade de um modelo de governação orientado para a maximização da po-sição accionista, atingindo-se o fim da história do direito das sociedades (convergence in most aspects of the law and

§ 4.º CONVERGÊNCIA INTERNACIONAL?

8. Uma caracterização tridimensional doproblema

I – A disseminação internacional dos có-digos de governo atinge actualmente pro-porções muito sérias. Um levantamento re-cente dava conta da existência de 103 códi-gos em 49 ordenamentos jurídicos88. É nes-te contexto que se situa o problema da con-vergência de códigos de governo, no âmbi-to do qual se defrontam duas tendênciasopostas89.

Há quem, de um lado, reconheça que asforças de mercado e a concorrência entreempresas favorecem uma convergência depadrões de conduta, sustentando que a glo-balização conduz a uma inevitável articula-ção e a uma aproximação de códigos de go-verno. Os pensadores que se revêem nestatese da convergência forte (Strong Conver-gence Thesis)90 estimam que, numa sorte dedarwinismo normativo, as normas constan-tes dos códigos mais eficientes desalojarãoas menos eficientes91. Chega-se mesmo a

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temer pela subsistência da soberania dosEstados92.

De outro lado, a corrente oposta defendeque a dependência de estruturas culturaispreexistentes (path dependence) a cada orde-namento jurídico funciona como entrave aalterações dos padrões de governação. Talassenta no pressuposto socio-político de quea protecção conferida a um grupo relevantede pessoas na constelação de sujeitos cominteresses relativos à sociedade (administra-dores, sócios minoritários, trabalhadores)dificilmente é alterada, na medida em quetal provocaria a oposição destes. O governodas sociedades estaria assim irremediavel-mente condenado a um cenário de diver-gência internacional, com a subsistência dealgumas soluções normativas ineficientes.Esta tese é usualmente denominada de teseda dependência relativamente a estruturaspreexistentes (Path Dependency Thesis)93.

II – O problema da convergência ou di-vergência internacional, que aqui não seráanalisado senão de modo sintético e quantoàs repercussões directamente relacionadascom os códigos de governo, presta-se fre-quentemente a equívocos desde logo na co-locação das questões aqui envolvidas. Háque situar correctamente o problema, dis-tinguindo aqui três vertentes diversas:

– apurar se no passado houve indícios deconvergência;

– tomar posição sobre se é desejável quevenha a existir (mais) convergência no fu-turo;

– perscrutar indícios de que se venha a ve-rificar uma maior convergência no futuro.

É de acordo com esta destrinça que seensaiará aqui a análise do tema94.

III – Antes de prosseguir, devemos escla-recer um ponto suplementar. É que é usualassimilar, explicita ou implicitamente, oproblema da convergência à questão daaculturação aos padrões anglo-saxónicos,designadamente por parte dos ordenamen-tos europeus continentais.

Essa perspectiva deve ser afastada, por sermuito redutora. Com efeito, o problema tam-bém se pode colocar exclusivamente no âm-bito europeu, porquanto actualmente, dada aexistência de vários países Europeus commais de um código, contam-se mais de 40 có-digos de governo societário na Europa95.

10. O ciclo de renovação de níveis de regu-lação

I – A ideia de uma convergência nos có-digos de governo societário existentes colhehoje indesmentíveis sinais positivos.

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practice of corporate governance is sure to follow), veja-se HENRY HANSMANN/REINIER KRAAKMAN, The End of His-tory for Corporate Law, Discussion Paper n. 280, 3/2000, Harvard Law School, (2000), disponível em www.law.har-vard.edu/programs/olin_center.92 KLAUS HOPT, Common Principles of Corporate Governance in Europe?, in JOSEPH McCAHERY/PIET MOERLAND//THEO RAAIJMAKERS/LUC RENNEBOOG, Corporate Governance Regimes – Convergence and Diversity, Oxford (2002),193-194.93 É a posição nomeadamente sufragada por LUCIEN ARYE BEBCHUK/MARK ROE, A Theory of Path-Dependence inCorporate Governance and Ownership, Stanford Law Review vol. 52 (1999) 127-170.94 Não se entra, pois, na questão da convergência entre o que consta do código e o que é observado na prática – isto é,quanto à possível “divergência” entre o grau de exigência das indicações provenientes de códigos de governo e os com-portamentos concretos efectivamente realizados na prática. Tão-pouco interessará curar aqui da questão – abundan-temente tratada neste contexto – de saber se existe uma tendência de convergência de estruturas de propriedade ac-cionista (ou da sua relação com as estruturas normativas: cfr. a propósito LA PORTA/LOPEZ DE SILANES//SCHLEIFER/VISHNY, Investor Protection and Corporate Governance, Journal of Financial Economics n.º 58 ( 2000), 3-27).95 WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Mem-ber States, cit., passim.

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O contexto Europeu é particularmentepropício para este exercício. As compara-ções entre os vários códigos detectam inva-riavelmente temas comuns e soluções pró-ximas em alguns pontos centrais ligados àorganização do órgão de administração: aíencontram-se as propostas sobre a criaçãode comités, sobre administradores inde-pendentes e sobre a transparência na remu-neração dos administradores. Tal deve-seem grande medida à influência do Relató-rio Cadbury, que constituiu objecto de ins-piração para fora das fronteiras britâni-cas96. Como vimos, em alguns dos temasmencionados o Relatório Cadbury nem foiinteiramente inovador, tendo antes apro-veitado alguma da reflexão norte-america-na97: mas o tratamento pela comissão Cad-bury, num útil formato de código de gover-no, conferiu-lhes uma irrecusável notorie-dade, sobretudo (mas não exclusivamente)na Europa. Além disso, o modelo britânicodo comply or explain, como se mencionou98,independentemente de estar ou não ligadoaos requisitos de negociação em bolsa,constitui uma perfeita ilustração de umaconvergência na função que os códigos de-sempenham.

Por isso, é de reconhecer, como o fez umestudo encomendado pela Comissão Euro-peia, que a proliferação de códigos de go-verno teve um papel significativo no ali-nhamento dos padrões de governação99.

Como fundamentação suplementar, faz-se notar que a concorrência entre empresas,e a busca de padrões internacionais sãos,nomeadamente por parte de sociedadespluricotadas internacionalmente, constituium factor para um nivelamento de algu-mas regras. Do mesmo modo, os grandesinvestidores institucionais internacionais,cada vez mais activos, pressionam parauma convergência.

II – Todavia, a análise não é inteiramen-te conclusiva a favor das teses relativas àconvergência, visto poderem detectar-seidenticamente sinais de divergência.

Os factores de divergência visíveis são deplúrima natureza. À cabeça, não pode es-quecer-se, como já mencionado, que os có-digos de governação não esgotam as fontesrespeitantes ao governo das sociedades100.Nesta conformidade, mesmo havendo se-melhança entre códigos elaborados em di-ferentes Estados, tal não equivale a uma to-tal aproximação do regime ligado ao gover-no, visto sobrarem diferenças no regime so-cietário e na cultura de mercado de cadapaís101. De entre factores de divergência,sublinham-se os seguintes: a diversidade deestrutura da propriedade accionista, mes-mo dentro da Europa, contando com umaelevada dispersão média das sociedades co-tadas no Reino Unido e uma tendencialmaior concentração de blocos accionistas

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96 BRIAN R. CHEFFINS, Corporate Governance Reform: Britain as an Exporter, (December 1999), in Corporate Gover-nance and the Reform of Company Law, Hume Papers on Public Policy: Vol. 8 n.º 1, Edinburgh University Press(2000), disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/delivery.cfm/000307304.pdf?abstractid=215950; EDDY WYME-ERSCH, Convergence or Divergence in Corporate Governance Patterns in Europe?, in JOSEPH MCCAHERY/PIET MOER-LAND/THEO RAAIJMAKERS/LUC RENNEBOOG, Corporate Governance Regimes – Convergence and Diversity, cit., 238--241.97 Cfr. supra, § 1.º 2.98 Cfr. supra, § 3.º.99 WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Mem-ber States, cit., 6.100 Cfr. supra, §1.° II.101 WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Mem-ber States, cit., 3, 6, 29-33, 74-75.

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na Europa continental102; a diversidade deformas de estruturação do órgão de admi-nistração; e as diferentes concepções sobre oobjectivo das sociedades e sobre o papel dosoutros sujeitos com interesses relevantes naempresa (stakeholders).

Perante estes indícios de divergência,uma explicação para o sucesso dos Princí-pios da OCDE sobre governo das socieda-des reside em terem empregue uma abor-dagem marcadamente pluralista, ao reco-nhecerem directamente não existir um mo-delo único de um são governo societário103.

Não se esqueça, aliás, que a harmoniza-ção europeia nesta área apenas deu passospreparatórios. O debate sobre soluções in-ternacionais de governação é ainda lideradopela OCDE e pelos seus Princípios. Até àdata, como contributo comunitário relevan-te apenas se pode apontar o Segundo Rela-tório apresentado pelo Grupo de Peritos deAlto Nível nomeado pela Comissão Euro-peia (Relatório Winter II), aguardando-secom expectativa o acolhimento efectivo queas suas propostas virão a merecer104.

III – A existência cumulativa de sinaisde divergência e de convergência não deveestranhar. A evolução do tratamento cientí-

fico sobre este tema permitiu entrever di-versas opiniões que não se reconduzem auma alternativa bipolar rígida entre con-vergência e divergência de normas e depráticas de governação105.

O próprio glossário utilizado na literatu-ra vai sendo cada vez mais aperfeiçoado.Considere-se, como exemplo, a importantedistinção entre a convergência formal e aconvergência funcional, traçada designada-mente por JOHN COFFEE. A primeira estáligada à aproximação directa do conteúdode regras legais, ao passo que a convergên-cia funcional prende-se com a existência desucedâneos funcionais que conduzem aosmesmos resultados práticos106.

IV – Questão diferente é a da desejabili-dade de maior convergência futura. O tópi-co é agora abordado com maior insistênciano contexto da discussão sobre a necessidadede um código de governo para a Europa.

Retenham-se, a este propósito, as conclu-sões do segundo Relatório apresentado peloGrupo de Peritos de Alto Nível nomeadopela Comissão Europeia (Relatório WinterII). Na consulta pública que o Grupo dePeritos de Alto Nível elaborou sobre otema107, foi revelada uma rejeição de um

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102 Entre muitos: FABRIZIO BARCA/MARCO BECHT, The Control of Corporate Europe, Oxford University Press,(2001), passim, e nomeadamente na útil tabela apresentada na pg. 318; EDDY WYMEERSCH, A Status Report on Cor-porate Governance in Some Continental European States, in HOPT/HANDA/ROE/WYMEERSCH/PRIGGE, ComparativeCorporate Governance – The State of the Art and the Emerging Research, Oxford (1998), 1153-1175; JONATHAN CHAR-KHAM, Le gouvernement d’entreprise au Royaume Uni, Revue d’Économie Financière, n.º 31 (hiver 1994), 197-203;CHRISTOPH VAN DER ELST, The Equity Markets, Ownership Structures and Control: Towards an International Har-monization?, Financial Law Institute, Working Paper n.º 2000-04, Gent (September 2000).103 There is no single model of good corporate governance: OECD, Principles of Corporate Governance, no sétimo pará-grafo do preâmbulo.104 Sobre o atraso da resposta comunitária aos problemas de governação, merece consultar KLAUS HOPT, CommonPrinciples of Corporate Governance in Europe?, cit., 189-193.105 É nomeadamente o caso de MELVIN EISENBERG, Perspectivas de convergência global dos sistemas de direcção e con-trolo das sociedades, cit., 107-129, que embora detecte tendências de convergência, não deixa de considerar signifi-cativos os vectores de estabilidade de estruturas de governação.106 JOHN COFFEE Jr., Convergence and Its Critics: What are the Preconditions to the Separation of Ownership and Con-trol?, in JOSEPH McCAHERY/PIET MOERLAND/THEO RAAIJMAKERS/LUC RENNEBOOG, Corporate Governance Regi-mes – Convergence and Diversity, cit., 83-84.107 A Modern Regulatory Framework for Company Law in Europe: A Consultative Document of the High Level Groupof Company Law Experts, 16-17 (2002).

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código europeu de governo societário, as-serção que aliás mereceu a concordância doGrupo de Peritos. Assim, as razões de uni-formização que levaram à aprovação deum código único na Bélgica ou na Alema-nha108 não valem para o contexto Europeu.Todavia, o documento do Grupo Winterrecomendou a criação de uma estrutura decoordenação dos Estados membros, parafacilitar convergência – não só em termosde conteúdo mas também quanto à fiscali-zação do cumprimento dos códigos. A ade-são a tal estrutura seria voluntária e os re-sultados de coordenação seriam não vincu-lativos.

A primeira nota respeitante a estas apre-ciações é de concordância. Não pode per-der-se de vista que uma harmonização decódigos de governo, atento o carácter com-plementar destes, não lograria uma conver-gência efectiva de normas relativas à gover-nação – podendo em alguns casos unifor-mizar aspectos de pormenor, deixando delado o essencial, isto é, o que concerne às es-truturas de direito das sociedades no tocan-te à direcção e ao controlo de sociedadesabertas, o que permanece por harmonizar.

Um recente estudo comparativo enco-mendado pela Comissão Europeia, a quenos temos reportado, demonstrou que nãoé a existência de diferenças nos códigos degoverno Europeus, atenta a sua escassa ex-pressividade, que determina entraves à in-tegração do mercado interno Europeu109.A imposição de um código de governaçãoEuropeu, nos tempos actuais, poderia atéser objectável do ponto de vista do princí-pio comunitário da subsidariedade, que re-duz a intervenção da Comunidade aos ca-sos em que os objectivos propostos não se-

riam melhor atingidos com actuações dosEstados-membros110.

Não se esqueça, aliás, que em áreas pou-co estabilizadas quanto às soluções norma-tivas, a concorrência de códigos gera resul-tados positivos.

Em suma, a multiplicidade de códigoseuropeus é preferível a um sincretismo ju-ridico-cultural. Demais, esta variedade decódigos pode constituir um aspecto positivocomo manifestação de autonomia empresa-rial. A título de exemplo, sabe-se que o di-reito português permite a escolha do siste-ma de administração e de fiscalização (art.278.º CSC), o que constitui uma vantagemno plano da autonomia estatutária, em fun-ção do aumento do leque de escolhas de or-ganização governativa.

V – Há ainda quem procure reconhecerna análise desta temática possíveis indíciosde uma tendência de maior convergênciano futuro.

De uma banda, os recentes escândalosnorte-americanos, tendo exposto algumasfragilidades do sistema de governação nor-te-americano, fornecem razões para crerque há margem para diversidade, e quenão estamos apenas em contagem decres-cente para um sistema único de raiz anglo-saxónica. Mas, de outra banda, a respostalegislativa norte-americana, através da leiSarbanes-Oxley – que se aplica a todas associedades com acções ou certificados dedepósito cotados nos Estados Unidos, ain-da que sujeitas a lei pessoal estrangeira –,pode reverter este argumento, caso condu-za a uma espiral de intervenções normati-vas europeias sobre o governo das socieda-des.

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108 Cfr. supra, § 2.º 5. V.109 WEIL, GOTSHAL & MANGES, Comparative Study of Corporate Codes Relevant to the European Union and Its Mem-ber States, cit., 6.110 Deparam-se considerações paralelas, no contexto da discussão sobre harmonização do direito civil europeu, emDÁRIO MOURA VICENTE, Um Código Civil para a Europa?, em Direito Internacional Privado. Ensaios, Vol. I, (2002),13-18.

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Cumpre, aliás, lembrar que as normasconstantes de códigos de governo podemcessar a sua vigência enquanto tal por subs-tituição através de normas jurídicas injun-tivas111. Nestes termos, pode questionar-sese a lei Sarbanes-Oxley determina uma cri-se de auto-regulação no plano do governosocietário, ao favorecer genericamente so-luções de fonte legislativa para matérias atéagora tratadas em códigos de governo (pen-sa-se, designadamente, nos comités de au-ditoria e nas exigências a esse respeito con-sagradas no tocante à inclusão de adminis-tradores independentes)112.

Afigura-se, todavia, que esse rumo não éinevitável. Mais expectável que uma ten-dência imediata de convergência é o dese-nho de um ciclo de renovação de níveis deregulação no tocante ao governo societário.Ainda a verificar-se um alargamento domaterial relacionado com a governação co-berto por fontes legislativas, sobram, de um

lado, matérias que podem receber trata-mento legislativo e, de outro lado, apresen-tam-se outras que serão certamente absor-vidas pela auto-regulação, tais como as li-gadas à utilização da Internet, ao sistemade controlo de riscos ou à responsabilidadesocial das empresas. Cumprir-se-á entãoum ciclo de redefinição de níveis de regula-ção, em três fases: em primeiro lugar, im-plicando uma substituição de normas decódigos por normas injuntivas; depois,através do abandono de soluções recomen-datórias não acolhidas socialmente; porfim, com o acolhimento de novos temas ede novas soluções a servir de normas de có-digos de governo. Mais se estima que esteciclo, pela sua adaptabilidade, possa repe-tir-se. A ser correcta esta leitura, a rearru-mação cíclica de níveis de regulação da go-vernação societária não deixará de confir-mar, de modo renovado, o papel dos códi-gos de governo.

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111 Cfr. supra, § 2.º, 6. III d).112 Cfr. em particular as Sections 205, 301 e 407 do Sarbanes-Oxley Act de 2002, respectivamente sobre o conceito deaudit committee, a necessária independência dos seus membros e a inclusão de perito financeiro na sua composição.