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Ano 2 - N. 3 Plantas medicinais nativas do Município de Matozinhos: uso atual e necessidade de proteção As portas abertas da serra do Cipó Política e planejamento: abordagem profunda Estratégias para a recuperação socioambiental do córrego do Pastinho (Morro das Pedras, BH/MG) Mobilização Social e Comunicação Cidadania e participação social na gestão de unidades de conservação A Fortaleza de São José e a Estrada Real Junho 2007

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Ano 2 - N. 3

Plantas medicinais nativasdo Município de Matozinhos:

uso atual e necessidade deproteção

As portas abertas da serrado Cipó

Política e planejamento:abordagem profunda

Estratégias para a recuperação socioambiental

do córrego do Pastinho(Morro das Pedras, BH/MG)

Mobilização Social eComunicação

Cidadania e participaçãosocial na gestão de unidades

de conservação

A Fortaleza de São José e aEstrada Real

Junho2007

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Cadernos Manuelzão. / Projeto Manuelzão. - - v. 2, n. 3 (2006)- -- Belo Horizonte : o Projeto, 2006 -

v. ; 21cm

Semestral Descrição baseada em: v.1 , n.1 (jun. 2006)

1. Meio ambiente - Periódicos. 2. Educação ambiental. 3. Projetos de desenvolvimento social. 4. Movimentos sociais. 5. Cidadania. 6. Velhas, Rio das (MG). I. Projeto Manuelzão. II. Universidade Federal de Minas Gerais. III. Instituto Guaicuy. IV. SOS Rio das Velhas. V. Título.

CDD: 577Ficha: Lucélia Martins da Silva - Bibliotecária

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Belo HorizonteJunho 2007

Instituto Guaicuy - SOS Rio das Velhas

e Projeto Manuelzão - UFMG

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Sumário

Editorial

Plantas medicinais nativas do Município deMatozinhos: uso atual e necessidade deproteção

Cleiber Augusto PereiraMaria das Graças Lins Brandão

As portas abertas da serra do CipóBernardo Machado Gontijo

Política e planejamento: abordagem pro-funda

Diego Contaldo de Lara

Estratégias para a recuperação socioam-biental do córrego do Pastinho(Aglomerado Morro das Pedras, BH/MG)

Margarete Leta

Mobilização Social e ComunicaçãoRennan Mafra

Cidadania e participação social na gestãode unidades de conservação

Ronald de Carvalho GuerraMárcio Carneiro dos Reis

A Fortaleza de São José e a Estrada RealEugênio Marcos Andrade GoulartFriedrich Ewald Renger

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Editorial

O Projeto Manuelzão completa, neste ano de 2007, umadécada de existência. Um indicador da vitalidade do Projeto éa seqüência das suas publicações. O Jornal Manuelzão, agoraem formato de revista, em breve atingirá a marca de quarentaedições. Livros, cartilhas e ma nuais, além de inúmeros vídeos,relatórios e manifestos são elaborados sistematicamente.

Os Cadernos Manuelzão, revista técnico-científica, en contra-se agora em seu terceiro número, seguindo ri go rosamente aperiodicidade semestral planejada. Em uma avaliação qualitati-va, mantém a proposta de sua criação, qual seja, a de abrirespaço para as várias áreas da ciência se manifestarem sobre atemática socioambiental. Pro cura-se sempre expor idéias efatos de forma clara e objetiva, para torná-los acessíveis aosnão-especialistas. Neste número 3, é mantida a diversidade dosnúmeros anterio res. Contou-se com a colaboração de ambien-talistas, bió logos, geógrafos, geólogos, comunicadores, arquite-tos, médicos e advogados.

O primeiro artigo trata da importância de resgatar o sabersobre as plantas medicinais de uma região do rio das Velhas,uma parte da nossa cultura que tende a desaparecer caso nãosejam adotados os devidos cuidados.

Na seqüência, são abordados os riscos que corre nossoinestimável tesouro ecológico, a serra do Cipó, ameaçada cadavez mais por uma expansão urbana voraz e por um turismo àsvezes predatório e desrespeitoso.

O terceiro artigo faz uma aprofundada reflexão sobre aspolíticas públicas, nas suas nuances positivas e negativas, e oplanejamento governamental - suas inadequações ou mesmo afalta de planejamento - de nossos dias.

O texto seguinte, sobre as ações iniciadas em defesa docórrego do Pastinho, em Belo Horizonte, ilustra os passos pre-liminares e necessários para que das boas intenções surtamefeitos práticos e que novos rumos sejam dados para a efeti-vação da cidadania. Tem-se, aqui, um belo exemplo de inte-gração entre universidade e comunidade.

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O quinto artigo traz apontamentos sobre a complexidadedo processo de mobilização social e sua relação com as açõesde comunicação empreendidas pelos vários setores dasociedade.

Em seguida, apresenta-se um texto que aborda questõesrelativas às unidades de conservação, fundamentais para apreservação da biodiversidade, mas que em sua implantação emanejo geram inevitáveis conflitos de interesses, que precisamser adequadamente resolvidos.

Por último, mais um desdobramento da "ExpediçãoManuelzão Desce o Rio das Velhas", realizada em 2003, quan-do membros do Projeto desceram de caiaque os oitocentosquilômetros do rio, da nascente à foz. Foram muitas asdescobertas, e até hoje a famosa expedição - famosa porque foirecebida por cerca de setenta mil pessoas ao longo dos seustrinta dias de duração e também porque teve ampla coberturada mídia - tem gerado muitos filhotes. Os achados históricos,arqueológicos e relacionados à biodiversidade da região estãovindo à tona. O artigo que fecha esta edição aborda fatosinéditos que talvez possam, em um breve futuro, revelar ruínasque seriam o primeiro registro cartográfico da Estrada Real emMinas Gerais.

Que nossos leitores façam um bom proveito!

Os Editores

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Plantas medicinais nativasdo Município de Matozinhos:

uso atual e necessidade deproteção

IntroduçãoO uso de plantas medicinais e a fitoterapia encontram-se

em expansão em todo o mundo. No Brasil, essa prática é vastaentre a população e representa uma alternativa ao alto custodos medicamentos industrializados. Muitos estudos vêm sen -do realizados no país visando a verificar a extensão do uso dasplan tas medicinais, além de identificar as espécies mais usadas.Os estudos demonstram, no entanto, que a maior parte dasplan tas usadas hoje consiste em espécies exóticas, ou seja, nati-vas de outros continentes e introduzidas no Brasil desde otempo da colonização.

Não obstante o crescente uso de plantas medicinais verifi-cado na atualidade, é oportuno lembrar que, a partir da metadedo século passado, a introdução maciça dos medicamentosindustrializados contribuiu para que as plantas medicinaisdeixassem de ser usadas pela população. Tal quadro pode tersido, também, uma conseqüência do intenso processo deerosão genética sofrido pela vegetação nativa do Brasil, desdeo descobrimento. Por isso, recuperar informações sobre asplan tas nativas do Brasil usadas na medicina tradicional nopas sado torna-se muito importante, e é o objetivo de umamplo projeto coordenado pela UFMG1.

A recuperação de informações sobre plantas nativas doBrasil deve levar em consideração importantes descriçõesfeitas pelos naturalistas europeus R. Burton e G. Langsdorffenquanto percorriam a bacia do rio das Velhas no século XIX.

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Cleiber Augusto Pereira(*)Maria das Graças Lins Brandão(**)

1 Projeto Plantas Medicinais da Estrada Real, coordenado pela Faculdade de Farmácia e peloMuseu de História Natural da UFMG, com a colaboração da UFJF, UFV, UFSJ e UFVJM.Financiado pela FAPEMIG e pelo CNPq.

(*) Químico.Monografia apre-

sentada para aobtenção de diplo-ma de Licenciatura

em Química,UFMG, 2006.

(**) Professorada Faculdade de

Farmácia da UFMGe responsável pelo

Setor de PlantasMedicinais e

Aromáticas doMuseu de HistóriaNatural e Jardim

Botânico da UFMG.Colaboradora do

Projeto Manuelzão.E-mail: mbrandao

@farmacia.ufmg.br.

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O uso de espécies nativas era intenso na época, em razão dainexistência de médicos e do contato que ainda havia entre apopulação rural e os indígenas. A partir de uma revisão inicialnas obras dos naturalistas, foi possível recuperar os nomes devinte e seis plantas conhecidas e usadas pela população daregião na referida época. O uso atual dessas plantas na regiãode Matozinhos foi avaliado por meio de uma pesquisa decampo. Ênfase foi dada ao estudo de espécies conhecidascomo quinas2, que já tiveram grande importância medicinal nopassado.

A pesquisa e seus resultadosA pesquisa de campo foi feita a partir de visitas a nove

moradores do Município de Matozinhos, considerados "infor-mantes-chave". Trata-se de raizeiros, benzedeiras ou outraspessoas reconhecidas pela comunidade como conhecedoras daflora medicinal nativa local. Os informantes foram argüidos seconheciam ou usavam cada uma das vinte e seis espéciescitadas pelos naturalistas e selecionadas para este estudo.

O estudo confirmou uma tendência observada em trabalhosemelhante, desenvolvido por nosso grupo ao longo daEstrada Real: as pessoas que demonstram maior conhecimen-to sobre plantas nativas do Brasil encontram-se em faixa etáriamuito elevada. Na região de Matozinhos, todos os infor-mantes-chave possuem acima de 55 anos de idade, estando45% deles na faixa etária entre 71 e 75 anos (Figura 1). Essasituação é agravada pelo desinteresse das novas gerações emreceber conhecimentos sobre plantas medicinais de seus pa -ren tes mais idosos. O resultado verificado revela a importânciade que sejam implementadas estratégias de valorização dessaspes soas e do conhecimento sobre as plantas medicinais porelas guardado.

Na Tabela 1 é apresentada a relação das plantas medicinaispesquisadas, organizadas em ordem decrescente do número de

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2 "Quina" é o nome originalmente utilizado para algumas espécies de plantas do gênero Cinchona,nativas do Peru. Essas plantas são muito importantes porque suas cascas produzem o quinino, umasubstância utilizada no combate a malária. A descoberta do quinino nas cascas da planta foi feitapelos espanhóis a partir de observação feita pelos índios na época da colonização. Desde o sécu-lo XVI, as cascas da planta são exploradas para a obtenção dessa substância e, atualmente, ela écultivada na Ilha de Java, na Indonésia.

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informantes-chave que as conhecem e usam. Angico, barba-timão, jatobá e cagaiteira são conhecidos e usados por todos osentrevistados. Já o cipó-mil-homens, fedegoso, pau-d'arco-de-flor-roxa, pau-d'óleo e pau pereira são conhecidos por todosos entrevistados, mas usados por apenas 87,5% deles. Espéciescomo o cravinho-do-campo, a macela-do-campo, a sambaíba eo guaraná são conhecidas e usadas somente pela metade dosen trevistados. Apesar de terem sido amplamente citadas nasobras dos naturalistas, poucos informantes conhecem o chá-de-pedestre e nenhum deles conhece a almecegueira.

Setenta e cinco por cento dos entrevistados conhecem eusam as plantas denominadas quina, conforme demonstradona Tabela 1. Amostras dessas plantas foram coletadas com oauxílio dos informantes, para identificação botânica e farma-coquímica. Imagens de duas amostras coletadas são apresen-tadas na Figura 2. O aspecto das folhas demonstra que consis-tem em duas espécies diferentes, conhecidas pelo mesmonome popular.

Cascas das quinas usadas na região para a preparação dosremédios foram coletadas e analisadas em laboratório, a fim deque fossem caracterizados seus princípios ativos. As cascasforam moídas e extraídas com solução hidroalcoólica a 70%.

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Figura 1. Faixa etária dos informantes-chave de Matozinhos.

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Tabela 1. Porcentagem de pessoas que conhecem e usam cada uma das plantaspesquisadas no Município de Mato zinhos e sua classificação.

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Após a extração, os líquidos foram eliminados e o extrato secoanalisado por cromatografia em camada delgada. A análiseconfirmou que as duas amostras de quinas usadas na regiãosão de espécies distintas e, por isso, devem apresentar pro-priedades farmacológicas diferentes.

As espécies de quinas citadas pelos naturalistas e mais co -nhe cidas atualmente em Minas Gerais são a Remijia ferruginea(Família Rubiaceae) e a Strychnos pseudoquina (FamíliaLoganiaceae). A análise botânica e farmacoquímica confirmouque a segunda amostra consiste na S. Pseudoquina, mas não foipos sível identificar a outra amostra. Situações como essa, emque se identificam plantas que não possuem qualquer referên-cia no passado, vêm sendo bastante verificadas no Brasil. Essequadro contribui para que muitas plantas sejam usadas deforma indevida e revela a fragilidade em que se encontra oconhecimento tradicional sobre as plantas medicinaisbrasileiras.

Conclusão Apesar de a pesquisa ter sido realizada em uma área restri-

ta, os resultados indicam que o conhecimento tradicional so -

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Figura 1. Amostras de diferentes quinas usadas na região deMatozinhos

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bre as plantas medicinais nativas encontra-se ameaçado. Al -gumas espécies usadas no passado, na região da bacia do riodas Velhas, não são mais conhecidas em Matozinhos, nemmesmo pela população que mais entende de plantas medici-nais. É necessária, pois, a adoção de medidas de valorizaçãodos atores que conhecem as espécies mencionadas, pois sãoverdadeiros "arquivos-vivos" do conhecimento tradicional dasplantas.

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Bibliografia complementarBRANDÃO, M.G.L., DINIZ, B.C., MONTE-MOR, R.L.M. Plantasmedicinais: um saber ameaçado. Ciência Hoje. v. 35, n. 206,2004.

BRANDÃO, M.G.L., MOREIRA, R.A., ACÚRCIO, F.A. Nossosfitoterápicos de cada dia. Ciência Hoje. v. 30, n. 175, 2001.

BURTON, R. Viagem de canoa de Sabará ao Oceano Atlântico.São Paulo: Itatiaia, 1977.

SILVA, D.B. Diários de Langsdorff. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,1997.

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As portas abertas da serra do Cipó

Na publicação "Navegando o Rio das Velhas das Minas aosGerais", tive a oportunidade de discorrer sobre os "novosrumos" para o Turismo na bacia. Ao apontar para o quechamei de quarto caminho - "A bacia do Rio Cipó como des-tinação turística e repositório da biodiversidade da bacia doVelhas"- afirmava que o conjunto da serra do Cipó cor -responde à jóia da coroa ecoturística regional.

Enquanto tal, essa jóia viria sendo "cobiçada em nome deum ecoturismo apropriado inadvertidamente por praticantes epro motores da ação turística", fazendo com que "o patrimônioambiental da Serra do Cipó viesse sendo sistematicamenteassediado e ameaçado, o que suscitaria preocupação e a partici -pa ção efetiva dos atores envolvidos e comprometidos com apre servação da qualidade ambiental da região". A situaçãocon tinua a mesma e este artigo vem alertar para a gravidade doproblema.

Um fenômeno que salta aos olhos quando se faz uma leitu-ra global do que vem acontecendo em termos de pressão turís-tica na serra do Cipó é o padrão e ritmo de transformaçãoespacial observado nos diversos lugares e comunidades daregião. Pode-se afirmar que esse padrão vem sendo ditado peloque primariamente se observou no distrito de Cardeal Mota,pertencente a Santana do Riacho, uma vez que foi a partir daíque as demais portas da serra foram e permanecerão sendoabertas. Cardeal Mota hoje recebe o nome de distrito de Serrado Cipó justamente por vir se constituindo na porta de entra-da do conjunto serrano. Muitos turistas, ao se referirem à serrado Cipó, estão considerando a área de abrangência de CardealMota, que inclui diversas cachoeiras, a sede do ParqueNacional da Serra do Cipó (PARNASC), o Morro da Pedreira,que dá nome à Área de Proteção Ambiental (APA) que abarca

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Bernardo Machado Gontijo(*)

(*) Professor doDepartamento de

Geografia doInstituto de

Geociências daUniversidade

Federal de MinasGerais. E-mail:

[email protected].

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Santana do Pirapama

Itabira

Congonhas do Norte

NovaUnião

Baldim

Taquaraçu de Minas

Bom Jesus do Amparo

BH

Melo

Joana

Engenho

Lapinha

Pacífico

Tabuleiro

Capão Grosso

Galho

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S. José da Serra

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Morro do Pilar

Santana do Riacho

Itambé do Mato Dentro

Conceição do Mato Dentro

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0 5 102,5 Km

Base: Projeto GeoMinas adaptado, 1997; IGA, 2001; Magalhães, 2004

Projeção: UTM / SAD69 fuso 23Elaboração: Sônia de Souza Ferreira

Belo Horizonte, Maio/2007

Drenagem Principal

APA Morro da Pedreira

Parque Nacional Serra do Cipó

Limite municipal

Estradas pavimentadas

Estradas não pavimentadas

Sede Municipal

Sede distrital

Localidade

APA Morro da Pedreira e Parque Nacional da Serra do Cipó

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o PARNASC e a maior rede de meios de hospedagem daregião.

A serra do Cipó, no entanto, vai muito além de CardealMota - ela se constitui de toda a ponta Sul da porção meridio -nal da cadeia do Espinhaço (que vai de Minas Gerais à Bahia),tanto na sua vertente Oeste (onde se localizam os Municípiosde Santana do Pirapama, Santana do Riacho, Jaboticatubas,Taquaraçu de Minas e Nova União), como da vertente Leste(que inclui os Municípios de Itabira, Itambé do Mato Dentro,Morro do Pilar, Conceição do Mato Dentro e Congonhas doNorte). Hoje, muitos turistas acessam a serra via Itabira,procurando pelo que está sendo considerado esse "outro ladoda serra do Cipó". Se a região de Itabira começa a sofrer osefeitos de uma expansão do turismo ainda incipiente, se com-parada a Cardeal Mota, podemos vislumbrar um terceiro por-tal para a serra a partir de Conceição do Mato Dentro, em vir-tude da facilitação de seu acesso pelo asfaltamento da MG-10.Analisemos, então, estas três portas de entrada turística daserra do Cipó, que refletem, temporalmente, momentos detransformação espacial distintos, mas cujo padrão tem-semostrado constante.

Cardeal Mota: Porta de EntradaCardeal Mota passou a ser tão relacionado à serra do Cipó,

que acabou herdando seu nome. O distrito, pertencente aSantana do Riacho, passou a sofrer um assédio turístico maiora partir do asfaltamento, nos anos 80, da MG-10 até o pé daserra, na região conhecida como Vacaria, que abriga a ca -choeira do Véu da Noiva. São exatos 99 km desde a capital doEstado, o que resultou em uma movimentação turística demas sa, fruto de uma mistura explosiva: Beleza cênica + merca-do emissor + acesso rápido. Simultaneamente à facilitação doacesso, o PARNASC foi implantando e teve sua visitação re -gularizada, o que só fez aumentar o magnetismo da região. Abem da verdade, muito da visitação de massa que aí se veri ficaocorre nas vizinhanças do PARNASC, uma vez que o IBAMAvem tentando controlar o acesso ao interior da unidade deconservação. O que se observa é um movimento elevado de

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turistas - nem sempre bem informados sobre a região - queprocuram se estabelecer em qualquer área onde julgam possí -vel levantar um acampamento ou que se satisfazem passandoo dia numa cachoeira qualquer, pouco se importando com oambiente em seu entorno. Sofrendo um assédio pouco dese-jável no que diz respeito à geração de riqueza e de valorizaçãoda identidade e cultura locais, a comunidade de Cardeal Motavê seu patrimônio natural deteriorar-se e, diante disso, tenta semobilizar para conter esse processo ou, pelo menos, atenuarseus impactos negativos.

Distante de Cardeal Mota, mas no mesmo Município deSantana do Riacho, Lapinha vem começando a sofrer em seuespaço as mesmas mazelas de um turismo desordenado.Lapinha é um povoado cujo acesso se dá por 12 km de umasofrível estrada de terra que o liga à sede municipal. A própriasede de Santana do Riacho, por sua vez, dista 30 km de CardealMota, também por uma estrada de terra, mas seu asfaltamen-to está previsto no programa PROACESSO, do governo es -tadual. Se nada for feito quanto à regulamentação de uso eocu pação do espaço de Lapinha, as conseqüências poderão serirreversíveis, dada a fragilidade do ambiente local (muito maiorse comparada a Cardeal Mota) e, ainda, a possibilidade de me -lho ria do acesso. Trata-se de mais um desafio a ser incorpora-do nas discussões que têm sido levadas a cabo para chegar aoPlano Diretor municipal. Ao Sul de Cardeal Mota, a 12 km daMG-10 e já no Município de Jaboticatubas, São José da Serraé outra vila que também sente os efeitos da pressão turística,sendo que a campanha de preservação das nascentes do rioJaboticatubas é reveladora do grau de susceptibilidade ambien-tal a que aquele povoado está exposto.

Itabira: A Porta dos FundosO mercado emissor de turistas de Itabira não se compara

ao da Região Metropolitana de Belo Horizonte. No entanto, aserra do Cipó está presente em dois de seus distritos - Ipoemae Senhora do Carmo -, e o município tem discutido comseriedade seus rearranjos espaciais levando em conta, agora, ofenômeno turístico como uma alternativa econômica de peso

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contra o esgotamento iminente de suas jazidas de minério deferro. Ipoema e Senhora do Carmo possuem parte de seus ter-ritórios abrangidos pela Área de Proteção Ambiental doMorro da Pedreira (APAMP) que, por sua vez, circunda todoo PARNASC à maneira de uma zona de amortecimento. Osdois distritos vêm sofrendo uma movimentação turística cres-cente pelo fato de fazerem parte de um trecho da Estrada Real.Essa movimentação é, em grande parte, induzida pelos proje-tos desenvolvidos pelo Instituto Estrada Real, que acabam porrefletir em todo o eixo Sudeste da serra do Cipó. Trata-se deum eixo que parte de Bom Jesus do Amparo, localizado próxi -mo à rodovia BR-262, segue contornando a encosta Sudesteda serra e passa por Ipoema, Senhora do Carmo, Itambé doMato Dentro e Morro do Pilar. Senhora do Carmo abriga opo voado de Serra dos Alves e Ipoema, por sua vez, tenta res-gatar a cultura tropeira, sendo ambos, aliados às potenciali-dades cênicas emanadas da vertente Leste da serra do Cipó, ocarro chefe para a atração de turistas para a região. Estamospróximos ao povoado de Cabeça de Boi que pertence a Itambédo Mato Dentro, do qual dista 12 km. Também localizado naAPAMP, Cabeça de Boi vem passando por uma transformaçãoespacial recente, fruto da pressão turística, e que já suscita pre-ocupação em termos ambientais. O parcelamento do solo, aes peculação imobiliária e a sobrecarga impactante dos turistasjá se fazem sentir, e a tendência é que se acelere com o passardos anos. O acesso a Cabeça de Boi ainda é feito por umaestrada sinuosa e ondulada, o que tem dificultado seu acesso,mas Ipoema e Senhora do Carmo já são ligados por vias asfal-tadas diretamente com a sede municipal de Itabira. Induzidosou não pela aura da Estrada Real, a pressão turística neste"outro lado da serra do Cipó" aponta, agora, para a regiãopolarizada por Conceição do Mato Dentro.

Conceição do Mato Dentro: A Porta do FuturoTradicional rota de peregrinações, apenas recentemente o

Município de Conceição do Mato Dentro teve seu acesso pavi-mentado o que, por si só, é um forte indutor de transfor-mações espaciais. Não bastasse esse fato, Conceição traz con-

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sigo sua bagagem e importância histórica, e está situada numponto estratégico no que diz respeito a convergências turísti-co-espaciais: tem grande extensão territorial; está a meio ca -minho do trecho da Estrada Real, entre Ouro Preto eDiamantina; é atalho para quem chega de Belo Horizonte equer conhecer o outro lado da serra do Cipó; possui uma sériede potencialidades turístico-paisagísticas capitaneadas pelamaior cachoeira de Minas, qual seja, a do Tabuleiro. Tal poten-cial paisagístico já implicou a instalação da infra-estrutura deapoio ao visitante quando da criação do Parque Municipal deRibeirão do Campo (Tabuleiro). A gestão do Parque do Ta -buleiro (como é mais conhecido) passou da esfera municipal àestadual, resultado da recém-criação do Parque Estadual daSerra do Intendente, que ampliou a área original, abrangendopartes dos distritos de Tabuleiro e Itacolomi, chegando até olimite com o Município de Congonhas do Norte. Conceiçãosurge, então, como a grande porta do futuro de penetração doturista na região - o turista que antes se contentava em chegaraté Cardeal Mota, hoje pode andar mais 60 km para conhecer,além das belezas naturais da paisagem do alto da serra do Ci -pó, Conceição e seus diversos distritos. Como se não bastasseo asfaltamento da MG-10, o governo do Estado, também atra -vés do PROACESSO, sinaliza para o asfaltamento da ligaçãoentre Conceição e Congonhas do Norte. Quando (ou se) issoacontecer, estará praticamene fechado o círculo de acesso àcombalida serra do Cipó.

Asfalto e Unidades de Conservação: uma con-vivência possível?

À facilitação do acesso, inclusive turístico, à serra do Cipócontrapõe-se o fortalecimento de seu mosaico de unidades deconservação (UC's). O PARNASC, que já conta com aAPAMP como zona de amortecimento, deverá ter sua áreaampliada com a incorporação da serra da Lagoa Dourada, comas nascentes do rio Jaboticatubas e com uma área próxima aIpoema e Serra dos Alves. Em sendo unidade de conservaçãode proteção integral, espera-se a salvaguarda de importantesmananciais, tanto para a bacia do rio das Velhas como para a

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bacia do rio Doce, devendo-se lembrar que esta bacia tambémganhou proteção extra com a criação do PE da Serra doIntendente. A APAMP, unidade de conservação de uso susten-tável, consiste não apenas em um elo entre dois parques cita-dos; também comporta outras unidades de conservação deme nor porte, notadamente reservas particulares do patrimônionatural (RPPNs), que acabam por fortalecer a proteção ambi-ental na região. Todo esse mosaico de UC's da serra do Cipócon siste, por sua vez, em parte do mosaico maior de UC's, queresultou na homologação da Reserva da Biosfera da Serra doEspinhaço. Trata-se de um título mais honorífico do que práti-co, mas que revela e eleva a importância ambiental da região ea coloca em um patamar de excelência cuja relevância não po -de ser menosprezada ou negligenciada por qualquer políticapública que venha afetá-la. É justamente isso que deve ser leva -do em consideração quando se planeja uma série de ligaçõesasfálticas no âmbito da política estadual do PROACESSO. Pra -ticamente todos os municípios que abarcam a serra do Cipó te -rão, mais cedo ou mais tarde, suas ligações pavimentadas. Apró pria pavimentação do trecho entre Conceição do MatoDen tro e Serro poderá trazer um fluxo de tráfego impensávelpara a região. Trata-se de um paradoxo ambiental cuja resul-tante espacial pode ser vislumbrada pelo que já aconteceu emCardeal Mota, vem acontecendo em Lapinha, São José daSerra e Cabeça de Boi, e poderá vir a acontecer na vertenteNordeste, desde Tabuleiro até Congonhas do Norte. A "últi-ma fronteira" da serra do Cipó estaria, assim, exposta a umaameaça de degradação ambiental que não é inevitável. Cabe,portanto, a nós, reverter essa tendência.

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Política e planejamento:abordagem profunda

"Quem não sabe pensar, acredita no que pensa. Quem sabepensar, questiona o que pensa."

Pedro Demo

Nosso processo político-eleitoral funciona sob uma lógicade renovação com periodicidade pré-determinada. De quatroem quatro anos, parte da estrutura da Administração Pública,de secretarias, repartições, dentre outras, é reorganizada. Aindaque essa reorganização fosse implantada sob gestões antagôni-cas em sua concepção ideológica, já que eleições podem sereven tualmente vencidas por partidos divergentes, isso não re -pre sentaria, necessariamente, benefício para a sociedade. Istoporque a configuração atual da gestão pública, ao valer-se deprocessos questionáveis de coligação partidária, funciona naverdade sob a égide da razão econômica. O partidarismo se or -ganiza para sempre manter-se no poder decisório, pelo do -mínio e acesso aos meios de produção e por uma supostacoopta ção dos meios de comunicação de massa. Os partidos,mes mo com discursos ideológicos diferentes (se é que os têm),promovem ações e práticas eleitorais equivalentes. Os discur-sos são divergentes, mas o fim é o mesmo, como comprovaSAVIANI (2003:83):

"[...] em política, seria ingenuidade acreditar que o adver-sário está na posição oposta porque está equivocado; por -que não compreendeu o seu erro e a validade da propostacon trária, compreensão essa que, uma vez atingida, o levaráa aderir à proposta que atualmente combate. Por isso emge ral o fato do partido perder uma batalha (eleições, pro-postas etc.) não o demove de sua posição; ao contrário, elepas sa para a oposição e continua fustigando o partido con-trário buscando alterar a correlação de forças para, naoportunidade seguinte, reverter a situação. [...] Por isso em

Diego Contaldo de Lara(*)

(*) Geógrafo emembro do Grupo

de EducaçãoAmbiental e

Mobilização Social- GEM, do Projeto

Manuelzão.

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política o objetivo é vencer e não convencer." Óbvio que política, especialmente no contexto atual, não se

concretiza a partir de sua epistemologia.1 A prática atual é apoliticagem, fruto do desgaste do conceito de política. Aindaassim, eleições são realizadas e vencidas sem sequer haverdebate sobre a dimensão ética dos procedimentos eleitorais,tampouco sobre a efetivação da democracia - aqui consideradaa democracia representativa. E a cada eleição ocorrida, os par-tidos, por sua estrutura e mecanismos, criam sua gestão, quepode ramificar-se em subgestões que, por sua vez, planejamsua administração e intervenções públicas nas diversas áreasdelimitadas, como educação, saúde, serviço social, meio ambi-ente etc. Fragmentam-se em várias repartições, em grupos detécnicos e especialistas, dissociando áreas inter-relacionadas eplanejando ações que por vezes não são complementares.Planejam, com horizonte de quatro anos. Buscam o mérito deuma suposta eficiência, especialmente a partir da realização deobras de grande porte. Essas obras milionárias são realizadasco mo soluções emergenciais para problemas, não raro, com-plexos, que têm raízes seculares. Compreende-se, portanto,que o que os partidos entendem por planejamento está se de -teriorando nas falácias e nos discursos comprometidos comin teresses que não se coadunam com o bem comum.

"A palavra [...] se desgasta, talvez pelo uso indiscriminadoe, seguramente, pelas concepções equivocadas que contri -buíram para a construção de inúmeros fracassos de natu -reza diversa. O conceito ainda se deteriora. Até os anos se -tenta do século XX, são intensificadas as práticas do plane-jamento, originárias do pós-guerra. Todas são identificadascom a intenção de modernização das instituições e da vidasocial. A idéia de modernizar está associada, frequentemen -

1 Referimo-nos a epistemologia enquanto estudo conceitual e crítico de certas ciências, de conhe -cimentos válidos. A epistemologia relaciona-se a uma necessidade séria de entendimento profun-do sobre termos importantes, como política, mas que sofrem desgastes e são mal utilizados. Políticanão é um termo de nosso tempo. Vem do grego: polis (=cidade). Platão e Aristóteles, filósofos gre-gos, dão origem a esse termo, que consiste na arte ou ciência da cidade. Marx, pensador alemãoque sempre criticou o modernismo, bem como o modelo capitalista de produção, é fiel ao termopolítica com bases aristotélicas. Outros pensadores ao longo dos anos trouxeram outras con-tribuições sobre o termo. Ressalta-se, ainda, que a política é um traço atribuído a cada pessoa queestá envolvida na dinâmica de uma sociedade. Cf. RUSS, Jaqueline. Dicionário de Filosofia. São Paulo:Scipione, 1994.

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te, à perspectiva de progresso. Portanto, independentemen -te da situação, das ‘realidades’, assim como das temáticas,pla neja-se para modernizar: para crescer, para desenvolver,para que tais objetivos possam ser alcançados mais rapida-mente." (HISSA, 2006:230)Dessa forma, uma significativa parcela dos gestores plane-

ja para se reeleger. O que norteia o planejamento urbano, soba perspectiva desse grupo de agentes públicos, não é o bem-estar das pessoas, o bem-estar da cidade, as realidades locaisdas comunidades, mas apenas a vitória da próxima eleição. E,nesses termos, são executadas obras de saneamento, dehabitação, de rodovias e tantas outras. Dificilmente são com-preendidos o histórico, as reais causas dos problemas urbanos.Prevalece a opção por medidas mitigadoras ou corretivas.Raramente se desenvolvem planejamentos com propósitospreventivos. Não se apreendeu ainda o erro do planejamentotradicional, feito à distância e de cima para baixo. Quem tempoder e acesso às técnicas da contemporaneidade guarda a pre-tensão de que conhece a realidade "melhor" do que quem avive. Por vezes, o observador/planejador se coloca em seugabinete e planeja a solução do problema que se lhe apresentasem um debate com os atores envolvidos na intervenção pro-posta. Entende que sua visão é amparada e fundamentada peloacesso que tem à teoria e à técnica, posicionando-se à distân-cia do problema. São atos pelos quais "planejam à revelia doobjeto." (HISSA, 2006:232)

Mesmo que a participação social esteja em processo deampliação partir de idéias de gestão compartilhada, não se dis-cute em que termos e de que formas essa participação social éexercida ou pode ser exercida de forma qualificada. Esquece-se, frequentemente, de que a própria gestão do governo já seria(ou deveria ser) de fato a gestão do povo, com fundamentonuma democracia de fato. O governo se coloca como alteri-dade ao povo. Nota-se a clara distinção que se faz entre gover -no e sociedade civil, principalmente em criações de conselhosou comitês populares. O governo não deveria representar asociedade? Pois não é a sociedade civil quem elegeu o governocomo seu representante? Como dentro de um espaço de dis-

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cussões fragmenta-se a sociedade civil do governo? Diante dacrise conceitual e epistemológica originária da modernidade,em que o governo se fragmenta de seu próprio povo e de si,separando as secretarias em temas relacionados como educa -ção, desenvolvimento urbano, saúde etc., ainda permanece aidéia do planejador, a ferramenta da gestão, como alguém semideologia, como alguém isento de compromissos ou acordospo líticos, neutro. Como se o planejador não tivesse uma po -sição política ou não possuísse o dever inescusável de atenderao interesse público. A reprodução desse modelo, que se es -tende ao longo dos anos, implica resoluções, como afirmado,apenas paliativas, mitigadoras ou corretivas de problemas quepo deriam ser resolvidos de maneiras diferentes, e que semprevoltam à tona.

Partindo da idéia de que, nos moldes acima expostos,"planejar pode significar a criação de normas, de estilos e decomportamentos padronizados e indesejáveis" e de que"planejar pode implicar a produção de limites à criatividade"(HISSA, 2006: 231) é necessário ultrapassar as fronteiras epis-temológicas tradicionais e recriar. É necessário, também,superar o paradigma da visão ocidental, racionalista, positivistae fragmentada. Dever-se-á partir ao pensamento complexoque implica o estudo, a reflexão, a compreensão das conexõesdiversas entre todo e qualquer tipo de processo da natureza.CAPRA (2002:23) afirma que "não existe nenhum organismoindividual que viva em isolamento". Portanto, tudo estáconecta do e relacionado. Daí a natureza coletiva e, natural -men te, transdisciplinar da política e do planejamento.

"Como crítica às posturas clássicas da modernidade - refe -ren tes à produção do conhecimento e à definição de políti-cas -, adquire amplitude a seguinte observação: os planosdeveriam ser feitos com e não para os indivíduos e a so -ciedade. Os planos deveriam estimular a democracia, desdea sua concepção, considerando toda a complexidade incor-porada à alternativa política de gestão. Não se está refe -rindo à gestão democrática fundamentada apenas na repre-sentação. Os planos deveriam investir na participação livredos indivíduos, por mais que a atitude possa 'demandar

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tem po'. Os planos, para que sobrevivam, enquanto concei -to e prática devem solicitar das sociedades o tempo e a his -tória que lhes diz respeito." (HISSA, 2006:233)Tomemos por hipótese um processo de duplicação de uma

rodovia que liga uma cidade a outra vizinha. Essa obra pro -vavelmente compreenderá um processo de reassentamento,relo cação e indenização de famílias localizadas em moradiasirregulares, moradias estas que podem até mesmo oferecer ris -cos às vidas de tais famílias, por se encontrarem às margens darodovia. Acrescente-se ao suposto contexto a falta de sanea-mento básico, coleta de lixo, acesso a escolas e postos desaúde. O quadro geral configura uma paisagem que prejudica,além do plano físico, a subjetividade, como a estima, o amorfamiliar, questões para além da compreensão objetiva da reali-dade.

Numa concepção ampla de planejamento urbano, a obradeveria ter o objetivo primordial de reintegrar essas pessoas àsociedade, como cidadãos dignos e beneficiários dos direitosque lhes são garantidos na Constituição, já que estão àmargem2 da sociedade. Não deveria ser a obra da rodovia oobjetivo principal de uma política, ou um planejamento, antesdo cuidado com os cidadãos. Continuemos a trabalhar ahipótese formulada. O governo irá indenizar as pessoas e asau xiliará na compra de novas casas, ou construirá um conjun-to habitacional para recebê-las. Com fundamento em experiên-cias já verificadas, pode-se prosseguir com a hipótese admitin-do a possibilidade de que o conjunto habitacional destinado àsreferidas famílias seja construído em um local distante de ondeas pessoas construíram suas histórias de vida e seus laços afeti -vos. Pode-se ainda aventar a possibilidade de que tal conjuntose encontre em ponto distante dos locais de trabalho das pes-soas reassentadas e não conte com infra-estrutura adequada,escolas próximas, tampouco um posto de saúde. De que formaes sas famílias conseguirão sobreviver se, além do mais, a maio-

2 O termo marginal é frequentemente utilizado com sentido pejorativo, referindo-se a bandidos, apessoas de má índole etc. No texto, o termo "à margem" refere-se aos milhões de pessoas que nãoparticipam das decisões, não têm emprego, não têm qualquer reconhecimento, servindo comomercado de reserva no contexto do sistema econômico capitalista

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ria é desempregada ou possui subempregos? Se já vêm de umahistória complexa de luta para sobreviver? Essa questão não éincomum e reflete a falta de planejamento de fato.

Ao estudarmos o histórico de vilas e favelas, descobrimosque muitas delas têm sua raiz na criação de um conjunto ha -bitacional "planejado". Por isso, quando não são levados emcon ta os diversos e múltiplos fatores de uma dada realidade,não se consegue planejar de forma eficaz.

Dessa forma, a superação do quadro apresentado funda-se na mudança de compreensão das premissas de planeja-mento. É preciso ir além, transcender e romper limites quedividem pensamentos, opiniões, disciplinas e técnicas. Aorganização social, apartidária e cooperativa aponta um cami -nho. Quando essa organização social participa das decisões,refletindo sobre seu local à luz do macro-espaço, as medidastomadas são mais eficazes, perdurando por mais tempo semapresentar problemas. Imaginemos ainda, com base nahipótese acima formulada, se a comunidade que foi retiradadas margens da rodovia pu desse opinar sobre seu futuro.Imaginemos também se o con junto habitacional construídofosse planejado de forma que as casas tivessem certa distân-cia umas das outras, reservatórios de captação de água dachuva, fossas biodigestoras, arborização, pisos com boa per-meabilidade em vez de asfalto, escolas que pudessem sercons truídas e geridas pelos próprios moradores (com a devi-da capacitação), postos de saúde bem equipados, geridostambém com a participação da comuni dade, formas alterna-tivas de geração de renda que fossem "sustentáveis", manten-do as pessoas mais próximas de casa, dos filhos, evitando odeslocamento urbano e o conseqüente trá fego. São exemplospoucos dentro da complexidade da ques tão e de propostasalternativas. Mas são exemplos que se fun damentam nasidéias de muitos pensadores como Paulo FREIRE (2000),que ressalta a necessidade da utopia e do so nho que movemas ações humanas.

É possível resolver os problemas sociais, pois "o serhumano é, ao mesmo tempo, o animal mais predador exitente,e o mais generoso" (WILSON, 2002), "dependendo de sua

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qualidade política." (DEMO, 2003:33)3 Precisamos aguçar olado político humano generoso, aquele que deveria pensar nascrianças que estão por vir. Nas vidas que estão por vir. Agestão pública deve de fato transformar seu paradigma domi-nante de administração, se almejar resultados que gerem maisjustiça para a sociedade. É preciso mais amor e desprendimen-to de fetiches materiais. Urge a vontade para tal empreitada.Es sa empreitada contribuiria diretamente para a preservaçãode nosso planeta, nosso ambiente comum. Nem a política,nem o planejamento podem ser tão mal utilizados como acon-tece na atualidade.

3 WILSON, E. O. The future of life. New York: Alfred A. Knopf, 2002, apud DEMO, Pedro. Pobrezada pobreza. Petrópolis: Vozes, 2003.

Referências BibliográficasCAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sus-tentável. São Paulo: Cultrix, 2006.

DEMO, Pedro. Pobreza da pobreza. Petrópolis: Vozes, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários àprática educativa. 15. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

HISSA, Cássio Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras:inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte:UFMG, 2006.

RUSS, Jacqueline. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Scipione,1994.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: polêmicas do nossotempo. 36. ed. Campinas: Autores Associados, 2003.

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Estratégias para a recupe -ração socioambiental docórrego do Pastinho(Morro das Pedras, BH/MG)

AntecedentesA experiência que aqui se relata está em curso no Aglome -

rado Morro das Pedras, na Região Oeste de Belo Hori zonte, einiciou-se a partir da contratação, por parte da Secre taria deDe fesa Social do Estado, do Escritório de Integração (EI) doDe partamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Minaspara o desenvolvimento do projeto "Espaços UrbanosSeguros", visando à aplicação da metodologia denominadaCPTED/Banco Mundial (Crime Prevention Through EnviromentalDesign)1 em áreas de atuação do "Programa Fica Vivo!".2

No entanto, a aplicação da metodologia CPTED à reali-dade urbana brasileira e, sobretudo, a áreas que apresentamaltos índices de violência e criminalidade, exigiu sua revisão eadequação às condições peculiares que as caracterizam: áreasambientalmente frágeis, freqüentemente ocupadas por popula -ções de baixa renda que, compelidas a resolver suas urgentesques tões habitacionais, aí se instalam, construindo-as segundosuas necessidades e recursos próprios. Como resultado, sãoáreas de assentamentos humanos precários, com sérias defi-ciências quanto às condições sanitárias, de abastecimento,equi pamentos e serviços, com altos índices de desemprego, al -ta densidade populacional e, não raro, com suas populaçõesate morizadas pelas disputas promovidas pelo tráfico de drogase de armas.

Margarete Leta (*)(*)

Coordenadora daequipe técnica

executora do pro-jeto "Espaços

Urbanos Seguros",constituída pelos

agentes comu-nitários do

Aglomerado Morrodas Pedras, Ciro,

Eliom, Leandro(Nê go Lê), Luiz,

Rose, Sheila eVanderley; os

arquitetos do Escri -tório de Inte gra ção

DAU PUC-Minas(EI): Danilo, Júnia,Marcela, Patrícia ePaula Lott; os esta -giários de arquite-

tura André,Eduardo Fantini eEduardo Lara; os

monitores do cursode inclusão digital,Anderson , Israel e

Eugênio (coorde-nados

Profa.CarolinaSaliba) e pela

arquiteta LucianaMiglio, da ONG

parceira ArquitetosSem Fronteiras

(ASF).

1 A metodologia para a "Prevenção do Crime Através do Desenho Ambiental" foi desenvolvidapela arquiteta chilena Macarena Raú.2 O "Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo!" é coordenado pela Superintendência dePrevenção à Criminalidade e atua em áreas com altos índices de violência e criminalidade urbanas;tem como objetivo reduzir o número de homicídios, favorecendo a organização comunitária e dosjovens. (www.seds.mg.gov.br/eixos_ficavivo.asp , acesso em 25/03/2007).

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Assim, a 1ª etapa dos trabalhos, coordenada pelo EI, de -sen volveu-se no período de março de 2006 a janeiro de 2007,compreendendo as etapas necessárias à adequação da meto -dologia e de seus conceitos à nossa realidade: constituição e ca -pacitação da equipe técnica, levantamento e diagnóstico so -cioambiental de áreas potenciais para intervenção e, finalmen -te, definição da área para desenvolvimento do projeto-piloto.

Paralelamente, desenvolveram-se as atividades de divulga -ção, estabelecimento de parcerias e captação de recursos paraa viabilização da 2ª etapa do processo, relativa à intervenção fí -sica na área selecionada: a microbacia do córrego do Pastinho.Essa etapa será gerenciada pelas duas associações de mo -radores atuantes nos limites da microbacia3, em sistema auto-gestionário, com início previsto para abril de 2007.

Ação a partir das pequenas cabeceiras dedrenagem dos córregos urbanos

Nas metrópoles e grandes cidades brasileiras, os efeitos deum processo de urbanização impositivo sobre o sítio naturalsão bastante perceptíveis sob várias formas como, por exem -plo, mudanças climáticas decorrentes da supressão vegetal e daim permeabilização do solo ou a poluição de cursos d'água e ocomprometimento de mananciais de abastecimento, mas é,sobretudo, sob a forma de tragédias urbanas, freqüentes nastemporadas de chuvas, que os desequilíbrios socioambientaisdecorrentes desse processo escancaram-se, evidenciando aurgência de revisão dos princípios que norteiam as interven -ções físicas em áreas urbanas.

Evidentemente, são as populações mais pobres as vítimasmais freqüentes desses eventos. Para essas, são evidentes osris cos ambientais, já que estão instaladas em áreas propensas àero são ou sujeitas a inundações, áreas de preservação de ma -nanciais ou áreas residuais urbanas como os baixios de viadu-tos, encostas íngremes ou áreas alagáveis. Também evidente éa ineficácia de nossa legislação ambiental ou das leis de uso eocupação do solo que impõem restrições à ocupação dessas

3 Associação dos Moradores da Vila Pantanal (ASMOVIP) e a Associação Comunitária do BairroAlpes e Adjacências (ASCOBA).

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áreas, restringem a ação reguladora do Estado, mas não con-seguem coibir as ocupações, oferecendo o território à infor-malidade com a conseqüente potencialização dos riscos e dospro cessos de degradação ambiental.

Menos evidente, porém, é a extensão do risco ambiental esocial a toda a sociedade, seja sob a forma de poluição daságuas e do solo, do assoreamento dos fundos de vale e inun-dações em áreas de ocupação formal, ou sob a forma crescentee flagrante de desigualdade econômica e de acesso a bens eserviços e sua conseqüência mais imediata e indesejável: a alar-mante elevação da violência e da criminalidade urbana, nascidades brasileiras, expressão objetiva da insustentabilidade denosso modelo socioambiental. No entanto, como defendeMar celo Lopes de SOUZA (2000), por corporificar as váriascri ses "reais ou supostas de que se ouve diariamente falar -eco lógica, do capitalismo, de valores, do Estado e várias ou -tras", as metrópoles são, como o lugar da crise, também a suapos sibi lidade de superação.

Imaginemos, pois, os efeitos benéficos - extensíveis a todaa sociedade - que poderiam advir da eleição das áreas de ocu-pações precárias como prioritárias nos investimentos públicose programas de recuperação socioambiental das cidades. Noca so de Belo Horizonte, as maiores e as mais antigas favelas eaglomerados localizam-se em áreas privilegiadas da cidade, aolongo da serra do Curral na porção Sudeste do município, eocupando áreas nas cabeceiras de importantes córregosurbanos, por vezes estendendo-se por vários quilômetros aolongo de seus leitos. Também na porção Norte da cidade, ascabeceiras de vários cursos d'água da bacia do Onça abrigampopulações de baixa renda, em processos mais recentes deocupação, mas igualmente devastadores.

O somatório dessas pequenas bacias de drenagem consti-tui, no entanto, uma parcela significativa de nossa área urbanaque abriga, também, um contingente considerável de nossapopulação, situando-as em posição estratégica para a formu-lação de programas estruturais de médio e longo prazo quevisem à recuperação socioambiental de nossa cidade. Há, noentanto, um aspecto determinante a se destacar: se adotadas

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co mo micro-unidades de planejamento e intervenção, per-mitem, em ações de curtíssimo prazo e forte impacto na edu-cação ambiental, o resgate da convivência com a água limpa noin terior das cidades, permitindo retomar a identidade do ci -dadão com os vales e cursos d'água, aspecto indispensável paraa formação e disseminação de uma outra consciência ambien-tal, como propõe MORETTI (2001):

"Será difícil uma efetiva recuperação da qualidade das águasse não se conseguir retomar a identidade do cidadão comos vales e cursos d'água. A valorização paisagística desteses paços urbanos passa a ser, assim, parte de um processode retomada do respeito que se perdeu ao longo do tempo.Constitui verdadeiro desafio para os próximos anos que secon siga retomar a alegria de conviver com nossos cursosd'água. À meta de resgatar-lhes a vida soma-se a de integrá-los novamente às cidades. Será necessário que se consigaen xergar o curso d'água e o fundo de vale como patrimôniopaisagístico e ambiental - um lugar bom para se ver, bompara se estar. Será necessário que estes terrenos deixem deser vistos como fonte de problemas para o cidadão - o pa -pel dos técnicos é relevante neste processo".

O córrego do PastinhoAfluente da margem direita do córrego Piteiras (bacia do

ribeirão Arrudas), a microbacia do córrego do Pastinho estátotalmente inserida no Aglomerado Morro das Pedras, abri -gando aproximadamente 200 famílias nas vertentes direita -Vila Leonina -, e esquerda - Vila Pantanal. Em sua porçãosuperior está implantada a Avenida Raja Gabaglia e, na foz, aAvenida Barão Homem de Melo, tendo aproximadamente 400metros de seu córrego em leito natural, razão pela qual integrao Programa DRENURBS4.

Ao longo do desenvolvimento da 1ª fase do projeto, foramlevantadas, mapeadas e analisadas 32 áreas públicas, chegando-se, por fim, à indicação da microbacia do córrego do Pastinho

4 Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte, da Prefeitura de Belo Horizonte, queobjetiva promover a melhoria da qualidade de vida de sua população por meio da valorização domeio ambiente urbano, preservando os córregos que se encontram em leito natural, tratando asfontes poluidoras e reduzindo os riscos de inundação.

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como área para intervenção-piloto. Esta área, além de repre-sentativa da precariedade e deficiências urbanas característicasdas demais áreas levantadas, tem como destaque a presença docór rego em leito natural que, não obstante o aporte cotidianode lixo e esgoto, confere-lhe um caráter singular: a possibili-dade de investigação de um novo padrão de urbanização, ba -seado na relação harmoniosa entre gente e água, entre a cidadee seus atributos naturais, valorizando-os e incorporando-os aoco tidiano urbano.

A experiência do Programa Guarapiranga (2000) para a re -cu peração deste importante manancial de abastecimento deSão Paulo é elucidativa dessa possibilidade. Frente à evidenteim possibilidade de remoção das milhares de famílias que ocu-pam o entorno da represa, admitiu-se como princípio que "acapacidade de poluição não é necessariamente proporcional àbaixa renda, mas sim à falta de investimentos no setor de infra-estrutura básica a que estes setores foram submetidos". Essa

Figura 1. Vista aérea da microbacia do córrego do Pastinho, destacando-se a área de con-tribuição direta para o trecho do córrego em leito natural.

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tese conduziu a uma proposta de recuperação urbana e ambi-ental fundada na construção de alianças entre os agentes polui -dores e o poder público, estabelecendo pactos capazes detrans formar cada beneficiário em novo parceiro do Estado, nabus ca conjunta da qualidade ambiental necessária à manu -tenção do manancial. Inverte-se, assim, a equação: os agentespo luidores compulsórios passam à posição de guardiões dopatrimônio paisagístico e natural.

Esse novo padrão possível deve ser, no entanto, tambémresultante de processos diferenciados de intervenções emespaços urbanos, participativos e autogestionários desde asfases de concepção, passando, necessariamente, pela gestãocomunitária dos recursos disponíveis para o empreendimento.Isso pressupõe investimentos no desenvolvimento de meto -dologias que assegurem a participação efetiva dos usuários,mediante a investigação e disponibilização de instrumentosefetivos de planejamento e projeto, tais como os exemplosapresentados na Figura 2.

Estratégias para intervenção no córrego doPastinho

Adotando-se a microbacia do Pastinho como unidade bási-ca de planejamento e de intervenção, as ações empreendidasde verão contemplar a recuperação e consolidação das áreas demon tante para jusante, obedecendo aos princípios reguladoresdos processos naturais, cerzindo o tecido urbano esgarçado,re compondo-o e fortalecendo-o mediante a compreensão desua natureza, propriedades e capacidade de suporte a ativida -des humanas. Essa compreensão respeitosa da natureza e dosbenefícios que podem advir das relações nela fundadas é im -prescindível à produção de novas categorias e estratégias con-ceituais e de novas práticas, que precisam ser construídas cole-tivamente.

Como bem sabemos, as construções coletivas têm seuritmo próprio. Consoante as especificidades locais, refletem ouni verso sociocultural, político e econômico dos agentes nelasenvolvidos e que determinarão o alcance das ações empreen-didas, obviamente também condicionado ao volume, quali-

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dade e capacidade de gestão dos recursos globais disponíveis -econômicos, energéticos, tecnológicos...

Estabeleceu-se, assim, como princípios norteadores da ação:• resolução local e progressiva, proporcional à capacidade de

ação construída coletivamente e à disponibilidade de recursos;• ação imediata para a limpeza da área, com a retirada do

lixo e resolução dos efeitos colaterais (ratos e outras pragasurbanas), revegetação das cabeceiras e margens;

• mapeamento e quantificação das fontes poluidoras e

Figura 2. Recursos metodológicos para o desenvolvimento da visão espacial de um terri-tório, leitura cartográfica, percepção de condicionantes físicos e socioambientais, evolução urbana etc. À esquerda: maquete da sub-bacia do córrego Piteiras, com emprego de levantamento planialtimétrico de 19535, anterior à implanta-ção das avenidas Raja Gablagia, Barão Homem de Melo e Silva Lobo, mas comsignificativa ocupação do anfiteatro do córrego do Marinho e das encostas navertente direita do Piteiras. Acima: planta de maquete modular da microbacia,em elaboração na escala 1:200, para instrumentação do processo de projeto. Abaixo: exemplo de maquete com objetivos educacionais6.

5 Maquete produzida por alunos de Planejamento Ambiental (DAU PUC-Minas, 2º sem./2006).6 Maquete modular produzida por Maquete Aristides Lourenço Ltda; imagem cedida por ThiagoCastelo Branco que passou a integrar a equipe EUS para coordenação do processo de produçãoda maquete modular da microbacia do Pastinho.

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situações de risco para o planejamento e projeto participativosdas intervenções;

• experimentação, aprimoramento e difusão dos processosde planejamento e decisão, de gestão, gerenciamento e manu -tenção das intervenções mediante a formação e capacitaçãoprofissional dos agentes envolvidos;

• descentralização dos processos de coleta, disposição etratamento de resíduos, mediante a investigação e adoção deso luções tecnológicas favoráveis à acomodação dos impactosne gativos da urbanização na própria área em que são gerados:lixo, esgoto, águas pluviais...

• investigação e adoção de soluções tecnológicas de baixoimpacto ambiental para edificação, sistemas de abastecimentoe energéticos, estabilização de encostas, acessos e pavimen-tação;

Simultaneamente a esse processo e em caráter permanente,prosseguem as ações para a captação de recursos e o estabele -ci mento de parcerias institucionais, públicas e privadas.

Figuras 3 e 4: Vista panorâmica do leito do córrego do Pastinho e detalhe de ponte precá -

ria utilizada pelos moradores para sua transposição; as letras das músicas apre-sentadas fazem parte dos trabalhos de divulgação do projeto EUS, veiculadas atra- vés do vídeo-documentário "Terra da Exclusão" e também por meio das apresen-tações do grupo de rap RDF - Realidade Da Favela, do qual fazem parte dois

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Da mesma forma, o Escritório de Integração continuainvestindo no desenvolvimento e aprimoramento demetodologias de planejamento e projetos que possam assegu-rar a condução do processo de recuperação socioambiental docórrego do Pastinho pelos moradores e agentes presentes naárea de contribuição da microbacia, em sistema de autogestão.Comungando com as convicções de Boaventura Sousa SAN-TOS e C. RODRÍGUEZ (2002), trata-se de estender o campode ação da democracia do campo político ao econômico e eli -minar a separação artificialmente estabelecida entre eles peloca pitalismo e a economia liberal, admitindo-se que democraciapar ticipativa e democracia econômica são duas faces de umamesma moeda e é em direção a esta unidade que devem secon centrar os esforços de transformação social e ambiental denossas cidades.

Referências BibliográficasALEXANDRE, A. F. A perda da radicalidade do movimento ambi-entalista brasileiro: uma contribuição à crítica do movimento.Blumenau/Florianópolis: Edifurb/Editora da UFSC, 2000.

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Mobilização Social eComunicação

A mobilização social parece mesmo ter vindo para fazerparte do nosso cotidiano. Refiro-me aqui a mobilização socialcomo um processo social amplo, em que movimentos sociais,organizações não-governamentais (ONG's), projetos do Es -tado ou mesmo programas de voluntariado de empresas bus-cam convocar as pessoas para a participação nas mais diversascausas, de interesse público. Assim, quando somos convoca-dos a participar de algum projeto, a atuar como voluntários emal guma ação, a realizar algum trabalho social, somos chamadosa nos envolver num processo de mobilização social, quealguém iniciou. O leitor talvez deva se perguntar: "mas, fazalgum sentido mobilizar as pessoas?" É claro que faz! Afinal decontas, vivemos sob as bases de um modelo democrático deso ciedade, que precisa da participação das pessoas na vida pú -blica. Isso significa dizer que nossa sociedade - aquela, sonha-da por todos, em que possamos decidir publicamente aquiloque melhor nos organiza - busca regulamentar as coisas coleti -vas a partir de nossa participação.

Pode-se afirmar que existem várias coisas coletivas.Falando de maneira simplificada, uma coisa coletiva seria aque-la a que várias pessoas se referem, ou se ligam, de algum modo.A saúde pode ser uma coisa coletiva, a educação, a segurança,o meio ambiente... E, nesse meio, vinculam-se outros elemen-tos, não tão objetivos, mas que também são coisas coletivas,porque se relacionam ao comportamento público das pessoasna sociedade: a opção sexual de cada um, a cor, a cultura, o gê -nero etc. E qual seria a relação entre as coisas coletivas e a mo -bilização social? A mobilização surge como uma maneira dechamar as pessoas para, em coletividade, discutir, refletir, pen-sar, participar de ações que se voltem às definições ou mu -danças dessas coisas coletivas!

Rennan Mafra (*)

(*) RelaçõesPúblicas e profes-

sor doDepartamento de

ComunicaçãoSocial da UFMG

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Um exemplo: percebo que um rio está muito poluído equero buscar sua despoluição (entendo esse rio como uma coi -sa coletiva). Assim, começo a imaginar o que pode causar a po -luição desse rio e chego, por exemplo, a questões operacionaiscomo determinantes de tal poluição (por exemplo, o esgoto daci dade jogado no rio, o desmatamento das encostas, o assore-amento etc.), mas percebo também que outras questões, maisamplas, podem ser causa desse cenário: o sentido desse rio navi da das pessoas (será que é só paisagem, algo externo à vidasocial?) ou a falta de uma percepção da necessidade de suapreservação... Já que o rio é uma coisa coletiva, eu, sozinho,con seguirei despoluí-lo? É óbvio que não! Por isso, em segui-da, eu busco chamar outras pessoas a se envolverem nessa cau -sa para tentarmos despoluir o rio. Esse processo de chamar ede convocar outras pessoas a se envolverem numa causa coleti -va é denominado mobilização social. Mostrei aqui o exemplode um rio, mas isso serve para qualquer coisa coletiva. O pro -cesso de mobilização social nem sempre é harmônico. Ele écon flituoso, difuso, complexo... Isso porque existem as dife -renças de opinião, de lugar, de cultura, de posicionamento... Amobilização social é também um processo de embate coletivode opiniões e diferenças. E é a partir dessas diferenças quenos sa sociedade - nós, o Estado, enquanto instância normati-va, as organizações de maneira geral - deve se referenciar aode finir aquilo que publicamente vai ser acordado.

Por isso, hoje, somos chamados a participar de inúmerospro cessos de mobilização: é a luta para acabar com a dengue,pa ra prevenir o câncer de mama, para revitalizar a bacia do riodas Velhas... Diante disso, gostaria de refletir sobre a participa -ção da comunicação num processo de mobilização social...Gos taria também de mostrar o quanto o processo de mobiliza-ção social está relacionado à comunicação. Mas, o que estouchamando de comunicação?

Muitos acreditam que comunicação é o mesmo que passarinformações... Então quer dizer que quando estou em casa eme comunico com meus familiares, meu objetivo seria so men -te passar informações sobre o meu dia para eles? Quando con-verso com qualquer pessoa, meu único objetivo é o de trans-

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mitir informações e receber informações? Quer dizer que soucomo uma máquina, que ora recebe e ora emite informações?Errado! Realmente passamos e recebemos informações, mascomunicar não se resume a divulgar: é um processo muitomais amplo, e que faz parte da nossa vida.

Podemos entender comunicação como relação; comunicaré o mesmo que gerar relações. Que relações? Ora, qualquer re -lação! Para que duas pessoas se unam, não é fundamental a co -municação entre elas? Para que uma pessoa crie uma relação decom pra numa loja, não é fundamental que entre ela e a lojaexista comunicação? Para fazer parte de qualquer grupo de pa -rentes ou amigos, não é fundamental que eu me comuniquecom eles? É assim que a comunicação, nesse sentido, pode serentendida como qualquer possibilidade de conversa, esta queseja capaz de gerar vínculos entre as pessoas (sendo estes vín-culos de vários formatos, desde os mais espontâneos, até osmais rígidos). E por que a informação não é o mesmo que co -municação? Porque para gerar relações com as pessoas e comas instituições, nós utilizamos outros elementos, que são tãoim portantes quanto a informação: a confiança, as expectativas,as regras (pois toda relação tem regras!), o tempo em que nosrelacionamos, a situação momentânea, o contexto e a cultura.Vejam como isso tudo influencia uma relação: pode ser com-pletamente diferente o fato de eu passar uma informação parauma pessoa que acabei de conhecer hoje, cujo contexto e cul-tura não domino totalmente, ou cuja situação não possibilitaainda uma confiança suficiente na informação passada, e pas-sar a mesma informação para uma pessoa que já conheço hátempos, com a qual convivo e que já possui opinião e expecta-tivas mais consolidadas a meu respeito... Não faz dife rença?

Assim, muitos acreditam que comunicar limita-se a passarinformação e acabam, por vezes, não comunicando bem e nemgerando boas relações... Isso deixa claro que o foco de qual-quer comunicação não seria a mensagem a ser transmitida oua informação a ser elaborada, mas a pessoa com a qual vamosnos relacionar... Sei que, muitas vezes, intuitivamente, já faze-mos isso. Pensamos como falar uma coisa para uma pessoa, ecomo falar a mesma coisa para outra pessoa. Entretanto, quan-

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do falamos abertamente de comunicação, às vezes confundi-mos comunicar com informar. Não que eu esteja aqui dimi -nuin do o valor da informação; a questão é que ela tem que serpen sada num contexto mais amplo em que a pessoa com quemvamos conversar possa entendê-la e utilizá-la. Isso nos trazoutra questão fundamental, ligada a qualquer comunicação:pa ra gerarmos boas relações, é muito importante que nos colo-quemos no lugar do outro. Quantos mal-entendidos poderiamser solucionados se demonstrássemos abertura para escutar oque o outro entendeu? E também quantos mal-entendidos po -deriam ser evitados caso pudéssemos pensar na pessoa com aqual nos relacionamos, antes de passarmos a ela qualquerinformação?

O tema comunicação rende muitos e muitos exemplos.Afinal, comunicar faz parte da vida de todos nós e de todas asrelações que geramos com pessoas e instituições com as quaisnos vinculamos. Mas, como temos um propósito bem claroneste artigo, levanto a questão: como pensar a ligação entrecomunicação e mobilização social? Perguntando com outraspalavras, por que comunicar é tão importante para um projetoque quer mobilizar pessoas e convocá-las para se engajaremnum processo de mudança coletiva? Ora, como vimos, quan-do alguém percebe algum problema coletivo, automaticamenteprocura chamar outros envolvidos, convocar suas vontadespara também participarem da busca por uma solução (obvia-mente, como o problema é coletivo, haveria outra forma maislegítima de resolvê-lo do que convocando a sociedade parapar ticipar desse processo?) Tal convocação não é um processoco municativo? É claro que é! A mobilização social, portanto, éum processo que busca gerar relações com as pessoas, chamá-las, envolvê-las na busca por soluções das questões que afetama todos.

E, nesse processo, muitos confundem "gerar relações" com"informar". Isso significa que não basta apenas que eu busqueme canismos de informar as pessoas, porque a informação, porsi, não garante a mobilização. Quando busco mobilizar pesoas,preciso criar efetivos mecanismos para conversar com elas,falar - mas também para ouvir - , gerar expectativas e confian -

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ça, buscar informá-las, procurando identificá-las com a infor-mação que eu desejo compartilhar. Muitos, quando se envol -vem em um processo de mobilização, ignoram essas questõese já partem logo para a divulgação: procuram o jornal, arevista, o rádio, a televisão ou a Internet (que são meios decomunicação que geram relações com muitas pessoas) equerem que todos, apenas a partir do conhecimento de umacausa, passem a se envolver na mobilização. Muito antes disso,é preciso que eu busque, estrategicamente, responder a outrasquestões: quem eu quero mobilizar? Onde estão essas pessoas?Quais são seus valores e sua cultura? Como devo preparar ainformação para ter significado relevante para elas? E, sóassim, devo fazer, posteriormente, outras perguntas: qual meiode comunicação é mais utilizado por essas pessoas para que eudisponibilize as informações e busque convocá-las? Às vezes,muitos projetos tentam, de qualquer maneira, colocar suasinformações na televisão, sendo que seu público mesmo, maisimportante, não assiste TV e, talvez, uma palestra ou um bate-papo (planejado antes, obviamente) poderia ser muito maisefetivo...

Neste artigo, convido o leitor a refletir sobre o quanto acomunicação é fundamental para a mobilização social. É claroque este tema é vastíssimo e não se esgota aqui. Há muito a serdis cutido sobre a comunicação. Resumo as discussões aqui le -van tadas em três principais pontos:

1) Comunicar não é transmitir, e sim relacionar;2) Comunicar não é meio de comunicação, mas é uma pos -

si bilidade (ou não) de uso de meios de comunicação para apro moção de relações;

3) A comunicação é a própria mobilização social; ou seja, amobilização de pessoas em causas coletivas é um processo degerar relações, e, com isso, de comunicação.

Para finalizar, caso queiram se engajar numa causa coletiva,ou mesmo propor um processo de mobilização social, é fun-damental observar, antes de tudo, algumas questões essenciais:

a) A causa pela qual desejam lutar é mesmo uma coisa cole-tiva?

b) Quem são as pessoas que estão, de alguma maneira, vin-

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culadas a essa causa?c) De acordo com a realidade dessas pessoas, qual seria a

melhor maneira de gerar relações com elas (qual o melhormeio ou instrumento de comunicação a ser utilizado?)

Destaca-se um ponto fundamental: escutar o outro, enten-der seus valores e suas referências é questão primordial para amo bilização social... Afinal, uma causa que é coletiva não é denin guém (muito menos nossa!), mas de todos os que nela seenvolvem, de alguma maneira, e a ela estejam vinculados...

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Cidadania e participaçãosocial na gestão de

unidades de conservação

A política nacional de áreas protegidas foi elaborada recen-temente, consolidada com a instituição do Sistema Nacional deUnidades de Conservação - SNUC, previsto na Lei Federal nº9.985, de 18 de julho de 2000. Entretanto, fazendo uma retros -pectiva, não podemos negar as primeiras manifestações doperíodo colonial, com as criações dos Jardins Botânicos deBelém, de Vila Rica e do Rio de Janeiro, bem como osinúmeros relatos deta lhados das expedições dos viajantes dealém-mar. Estes relatos dos naturalistas formam um acervo degrande contribuição para a descrição da diversidade da flora,fauna e das ricas paisagens do Brasil Imperial. Ao mesmotempo, relatam a fragilidade desses ambientes e os impactos doextrativismo vegetal e mineral, bem como da expansão agro -pecuária. A Carta de Pero Vaz de Caminha, nos tempos dodes cobrimento, descrevia toda a diversidade e riqueza naturaldestas "Terras das Índias", anunciando a expansão mercan-tilista e a apropriação deste patrimônio.

Estendeu-se, assim, para as áreas coloniais, os processosprevalecentes de degradação da natureza e de sujeição do ho -mem a uma lógica concernente à acumulação de capital. Oantropólogo Karl POLANYI (2000) referiu-se a essa dinâmi-ca como a que promove a mercantilização da terra (e dosrecursos naturais de uma forma geral), a mercantilização dotrabalho e a generalização do uso do dinheiro, ainda em curso.Aquele autor afirma que a propensão à troca, à barganha e àpermuta passou a ser estimulada pelo pensamento liberal, quese tornou predominante após a primeira Revolução Industrial.

POLANYI, contudo, sustenta que embora perceptíveis nahistória da Humanidade, esses princípios de comportamentonunca estiveram na base da organização dos conflitos em tor -

(*) Diretor deMeio Ambiente da

PrefeituraMunicipal de OuroPreto e Gerente da

Área de ProteçãoAmbiental Estadual

da Cachoeira dasAndorinhas.

(**) Doutor emCiências:

Desenvolvimento eAgricultura

(CPDA/UFRRJ); pro-fessor da FEAD-

MINAS e daUniversidade de

Itaúna-MG.

Ronald de Carvalho Guerra(*)Márcio Carneiro dos Reis (**)

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no da produção, distribuição e consumo da riqueza social,além do descarte dos recursos naturais. Esses conflitos, his-toricamente, sempre foram mediados/regulados por princí-pios de comportamento relacionados à redistribuição, àdomesticidade e à reciprocidade, mas o obscurecimento aoqual foram levados, em função da prevalência do pensamentoeconômico liberal, acabou por retirar grande parte da capaci-dade de resposta das sociedades à degradação ambiental e àdesigualdade social.

Posto isto, os objetivos do trabalho são descrever aevolução do marco institucional-legal que rege a gestão deunidades de conservação e comentar tal marco à luz daproposição de que as transformações recentes colocaram emevidência, além de uma maior incerteza com relação à sobre-vivência dos grupos humanos, devido ao acirramento da com-petição inter-capitalista, as questões ambientais para a Huma -nidade. Essas questões acabam, então, por exigir a reemersãodaqueles princípios não centrados no mercado, de acordo comPOLANYI, de modo a dar sustentação ao incremento dospro cessos de participação social e à melhoria da qualidade dasrelações entre os próprios homens e entre o homem e o meioem que ele vive. Pressupõe-se, assim um processo social emcurso, cuja compreensão não deve ficar limitada à dicotomiaho mem versus natureza, buscando compatibilizar o objetivo daconservação com a sustentabilidade dos processos de desen-volvimento.

No período republicano, no Brasil, principalmente na déca-da de 1930, com a criação do Parque Nacional de Itatiaia(marco divisor da proteção de áreas, a comemorar seus 70anos), consolidam-se os primeiros instrumentos legais de áreasprotegidas. O período da ditadura militar, conturbados anosdo crescimento brasileiro, tendo progresso e desenvolvimentocomo estandartes, cedeu à consolidação de novas áreas prote-gidas e a revisões sistemáticas de mecanismos legais. Nessecon texto, a criação de áreas protegidas passou a responder àsde mandas do Estado, relacionadas às estratégias geopolíticasde integração nacional e expansão territorial.

Após esse período, os movimentos de preservação e con-

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servação ambiental no Brasil se fortaleceram, questionandomodelos de uso e ocupação do território nacional, de suasfontes de energia, padrões de consumo e da ordem institu-cional existente. Esses movimentos foram ganhando espaço eressonância, com as percepções mundiais do fraturado pro-gresso e dos danos ambientais e sociais causados. Amplia-seassim a demanda por garantir a proteção a determinadas pai -sagens e ambientes pouco alterados, com características espe-ciais e de grande fragilidade à ocupação humana, bem comore gular os processos de uso e ocupação dos recursos naturais.Dessa maneira, as formas prevalecentes de utilização dos re -cursos, a escassez de alguns e a compreensão dos limites dosseus diversos usos vão cedendo à necessidade de regular a suaapropriação, mitigação dos danos, recuperação e preservaçãodas áreas ainda não ou pouco impactadas, garantindo o direitode uso para as próximas gerações.

A partir do processo de abertura política e com a emer-gente demanda ambiental, ocorreram a concepção e a implan-tação de arranjos institucionais, baseados em modelos maiscoerentes, com uma maior harmonia entre os processos an -trópicos e o meio natural. A necessidade de garantir a preser-vação do patrimônio genético, das espécies e dos ecossistemasfoi então incorporada nessa mudança de mentalidade, pro-movendo o desenvolvimento de metodologias e modelos le -gais que visassem a garantir a sobrevivência das espécies e seushabitats, em contraposição ao processo contínuo de seu exter-mínio. Por extensão, a criação e gestão de áreas protegidas noBrasil passaram a contribuir para assegurar a proteção nosprincipais biomas brasileiros.

Nesse sentido, o SNUC conceitua "conservação da natu -reza" como

"o manejo do uso humano da natureza, compreendendo apre servação, a manutenção, a utilização sustentável, a res -tauração e a recuperação do ambiente natural, para quepossa produzir o maior benefício, em bases sustentáveis, àsatuais ge rações, mantendo o seu potencial de satisfazer asnecessidades e as aspirações das gerações futuras, e garan-tindo a sobrevivência dos seres vivos em geral."

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O SNUC define como unidade de conservação"o espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindoas áreas jurisdicionais, com características naturais relevan -tes, legalmente instituído pelo Poder Público, com obje-tivos de conservação e limites definidos, sob regime espe-cial de administração, ao qual se aplicam garantias adequa -das de proteção.".As unidades de conservação podem ser de diversas catego-

rias e tipos de uso, de acordo com as necessidades de proteção,suas potencialidades e especificidades bióticas e abióticas. Es -tão situadas em dois grupos distintos, os de proteção integrale os de uso sustentável. As Unidades de Proteção Integral têmcomo prioridade a preservação e o uso indireto de seus recur-sos naturais, enquanto que as Unidades de Uso Sustentávelbuscam compatibilizar a conservação com o uso de seus recur-sos naturais de forma sustentável.

O marco legal acima descrito garante assim a instituiçãodas referidas Unidades de Proteção Integral e de UsoSustentável, apontando inclusive para os mecanismos de suasgestões e para a necessidade de realização dessas gestões, se -guindo os princípios da sustentabilidade ambiental e da partici -pação social. Contudo, tal marco legal não garante a susten -tabilidade política e econômica, fundamentais para a efetivida -de da gestão das unidades. Para que isso ocorra, é preciso ummaior compartilhamento do conhecimento, dos recursos e dospro cessos decisórios, com uma visão mais solidária do papeldos atores na preservação dos ecossistemas/áreas a serem pro-tegidas, conciliando desenvolvimento local com conservação.

Em outras palavras, disseminar novos modelos de geraçãode renda, de fortalecimento da economia doméstica, de segu-rança alimentar e nutricional, promover a educação, promovera saúde ambiental, envolvendo as populações residentes e doentorno, ampliando a possibilidade de melhor qualidade devida, com a criação de unidades demonstrativas e a replicaçãodas experiências positivas faz diferença na gestão. Para tanto, énecessária a busca de um pleno envolvimento dos diversosatores nos processos de elaboração e implementação dosrespectivos planos de manejo e, sobretudo, na gestão das uni -

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dades de conservação - UCs, de modo a promover a co-res -ponsabilidade e seu compartilhamento.

Os componentes ambientais e sociais da crise recente abri-ram espaço para a manifestação de outras formas de organiza-ção da produção, da distribuição e do consumo da riqueza so -cial, além do descarte dos recursos naturais, baseados em prin -cípios de comportamento e padrões institucionais que não sãocen trados no mercado (REIS, 2006). É a sociedade dando res -postas aos problemas a ela colocados mas que, para a sua efe-tivação, do ponto de vista da sustentabilidade ambiental e dodesenvolvimento local, exigem do Estado e dos gestores públi-cos, bem como dos demais atores, mais do que a concordân-cia em torno da institucionalização de um marco legal.

Visando à consolidação do SNUC e de suas unidades deconservação, estas precisam ser gerenciadas e planejadas,fomentadas pelo exercício da cidadania e realmente assumidaspor seus responsáveis, com os devidos apoios institucionais erecursos, seja unidade de domínio público ou privado. Sóassim podem e devem cumprir seus objetivos de criação.

As unidades de conservação e seus conselhos consultivosdevem ser regidos pelos seguintes princípios:

• Princípio da intersetorialidade: que envolve tanto ain tegração dos setores de governo e do Estado nos seus trêsní veis, como a integração entre Estado, Sociedade Civil e SetorPrivado;

• Princípio da participação social: que implica a pro-moção da cidadania;

• Princípio da sustentabilidade ambiental, econômicae cultural: que estimula no imaginário coletivo a promoção demelhor qualidade de vida;

• Princípio da territorialidade: que envolve a idéia deper tencimento da UC a um determinado território, a cons -trução cultural inerente a esse território e a construção de umarelação humana mais harmônica com os meios físico e biótico;

• Princípio da efetividade: que determina que os planosde manejo das unidades de conservação deverão responderquestões e propor medidas que possam contribuir para odesenvolvimento e implantação de um sistema de gestão ambi-

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ental que seja eficiente e eficaz, sustentável e participativo.No que respeita especificamente ao manejo, este possibili-

ta a conservação da diversidade biológica e dos ecossistemas eum planejamento metodológico e a sua execução apoiada empro cessos participativos, garantindo a efetividade da gestão.Os planos de manejo de unidades de conservação devemapon tar mecanismos de integração dos diversos atores envol -vi dos, de ampliação da percepção da territorialidade e de inte -ra ção do seu papel e contexto regional. Deve também definirmedidas efetivas de gestão e a construção de políticas de con-servação comuns, potencializando suas ações administrativas,fortalecendo o envolvimento da sociedade para a pre servaçãoda biodiversidade e a sustentabilidade regional. O con selhocon sultivo da unidade de conservação passa a ser a principalferramenta de integração para gestão, com a plena convivênciadas diferenças e focado no propósito de sua criação.

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A Fortaleza de São José ea Estrada Real

A “Expedição Manuelzão Desce o Rio dasVelhas” investigou fatos misteriosos da História

de Minas Gerais

Será que existem mesmo ruínas de uma antiga fortaleza, es -condida em algum meandro do rio das Velhas na região do ou -trora famoso Vínculo da Jaguara, Município de Matozinhos,que foi um importante posto de controle do contrabando deou ro e diamante, e que é a primeira referência documental car-tográfica à Estrada Real no Brasil Colônia?

Com certeza existem, só que seus vestígios ainda não fo -ram encontrados. Já foram procurados algumas vezes no den -so matagal beira rio, mas sem sucesso. No entanto, uma deta -lha da planta do forte, datada de 1730, ficou preservada atravésdos tempos (Figura 1). Nela se vê uma estrutura triangular,com reforço nos vértices, e com uma legenda de 13 itens, ondepo de ser conferido o local em que ficava a plataforma das pe -ças da artilharia, a casa de munições e de petrechos, a praçacen tral e a casa de mantimentos. Bem identificado está o riodas Velhas e em paralelo está assinalada Estrada Real do Su -midouro.

Tinha o nome de Fortaleza de São José e foi construída porum engenheiro militar, o Tenente-General João Ferreira Ta -vares de Gouveia, a mando do então Governador da Capitaniadas Minas Geraes, D. Lourenço de Almaida, para controlar otráfego de escravos, gado e também para evitar o contrabandode ouro e pedras preciosas para a Bahia. Documentos antigosainda informam que tanto o antecessor, Conde de Assumar,como o governador seguinte, Conde de Galveas, criticaram acons trução e duvidaram da eficiência do empreendimento.

Na região estava o movimentado Caminho dos Curraisque, margeando o rio das Velhas e em seguida o rio SãoFrancisco, chegava ao Porto de Salvador. Essa era uma

Eugênio Marcos Andrade Goulart(*)Friedrich Ewald Renger(**)

(*) Professor daFaculdade de Medi -cina da Universi da -

de Federal deMinas Gerais.

Coordenador dePublicações Cientí -ficas e Literárias doProjeto Manuelzão

da UniversidadeFederal de Minas

Gerais e editor dolivro Navegando oRio das Velhas dasMinas aos Gerais.

(**) Professordo Instituto de

Geociências daUniversidade

Federal de MinasGerais.

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Figura 1: Planta da Fortaleza de São José, datada de 1730, com destaque para EstradaReal do Sumidouro (M) e para o rio das Velhas (N).

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maneira mais longa, porém mais segura de se viajar, já que ou -tra rota para o mar era pelo Sul de Minas Gerais, trilha queatra vessava a serra da Mantiqueira em direção a São Paulo e aoPorto de Santos.

Por que Estrada Real do Sumidouro? Algumas décadas an -tes, desde o ano de 1676, Fernão Dias, conhecido como o Ca -çador das Esmeraldas, comandando a primeira bandeira orga-nizada para explorar a região, fundou a Quinta do Sumidouro,na margem esquerda do rio das Velhas, em uma região que fu -turamente ficaria próxima ao centro geográfico do Estado deMinas Gerais. O arraial ficava em uma planície fértil, vizinho aum lago sem vertedouro visível, ou seja, cujo escoadouro ésubterrâneo, porque se situa sobre uma plataforma de calcárioe um túnel drena a bacia hidrográfica local. O povoado que sefor mou no Sumidouro, assim chamado devido a esse raro fe -nômeno geológico, pode ser considerado a primeira ba se deapoio mais consolidada para a conquista do interior do No voMundo português.

Fernão não se apercebeu das abundantes pepitas de ouroda região, sobre as quais certamente pisou, pois não as estavapro curando. Acontece que elas não eram brilhantes como oou ro purificado, pois estavam recobertas por tênue camada es -cura (por isto foi chamado de ouro preto). Sua obstinação erapor esmeraldas, e quando descobriu turmalinas no Norte deMi nas, pedras preciosas de menor valor, deu-se por satisfeito,falecendo sem tomar conhecimento de seu equívoco. Duasdécadas após sua passagem, a região se tornaria temporaria-mente a mais rica do mundo, devido ao ouro, e mais rica aindapela descoberta de grandes quantidades de diamante, poucosanos após.

O rio das Velhas era então o centro de tudo. Desde suasnascentes perto de Vila Rica, como era chamada então a cidadede Ouro Preto, até sua foz no rio São Francisco, em Barra doGuaicuy, era a estrada natural dos primeiros colonizadores, queseguiam rio abaixo e rio acima, pela água ou por caminhos nasmargens. No médio rio das Velhas ficava o entroncamento dasvárias estradas do período colonial. Para o Sul, Ouro Preto; pa -ra o Norte, Diamantina; para o Oeste, Paracatu; para o Leste...

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não, para o Leste não, porque era a região do Mato Dentro, do -minada pelos ferozes botocudos, com fama de antropófagos.

E foi próximo à Quinta do Sumidouro que os portuguesesergueram a Fortaleza de São José. O local exato não ficou re -gis trado, mas muitos autores dessa época fazem referência aes se quartel. Por volta de 1730 a edificação já existia, pois foiquando a Coroa portuguesa esteve arduamente empenhada emcoibir as artimanhas de muitos mineiros, que não aceitavam ade cisão real de se apoderar de todas as riquezas e burlavamcons tantemente a vigilância, contrabandeando ouro e diaman -tes.

Figuras 2: Mapa do médio rio das Velhas, região do Sumidouro

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Pois eis que, perpetuada pela tradição oral, uma das curvas do rio das Velhas emseu curso médio, próximo à Fazenda da Ja guara, no Município de Matozinhos, éconhecida até hoje pe los barqueiros e moradores da região como a Curva do Ca -nhão. (Figura 2) Seria mera coincidência, ou estaria aí a pis ta para se encontrar asalmejadas ruínas?

Como esses fatos vieram à tona? A partir da “Expedição Manuelzão desce o Riodas Velhas”, promovida pelo Projeto Manuelzão da Universidade Federal de MinasGerais, que percorreu de caiaque durante trinta dias, em setembro e outubro de2003, cerca de 800 km em todo o trajeto do rio. A Expedição in teragiu com todasas comunidades ribeirinhas e pôde coletar inúmeras histórias, lendas e "causos" deuma região que guarda preciosas e abundantes memórias, muitas relatadas no livro“Navegando o Rio das Velhas das Minas aos Gerais”.

A Expedição passou, mas ficaram vários desdobramentos. Um deles é aprofun-dar na análise dos fatos relatados pelos mo radores e pesquisar algumas das intrig-antes informações. Em breve o Projeto Manuelzão promoverá, além de outras ex -pedições aquáticas, a busca das ruínas da Fortaleza de São José. Esta seria uma dasformas de reencontrar e valorizar nosso or gulhoso sentimento de "mineiridade".Ele também pode estar muito bem escondido nas barrancas do rio das Velhas,desde sem pre a coluna vertebral de Minas Gerais.

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CUIDAR BEM DO MEIO AMBIENTE É MOTIVO DE ORGULHO PARA OS MINEIROS.

LEVANTAR O TROFÉU, TAMBÉM.

MINAS GERA IS . VENCEDORA DO I PRÊMIO BRAS I L D E ME IO AMB I ENTE .O Governo de Minas, por intermédio da COPASA, vem cuidando muito bem do meio ambiente em Minas Gerais.

São inúmeras ações realizadas no Estado, sendo que o trabalho para a recuperação do Rio das Velhas, um dos principais

afluentes do Rio São Francisco, já rendeu o I Prêmio Brasil de Meio Ambiente. A COPASA, empresa de saneamento do

Estado, tem hoje 16 Estações de Tratamento de Esgoto em operação nas cidades que fazem parte da bacia do Rio das Velhas,

o que vem contribuindo muito para a sua despoluição. O objetivo é cumprir a Meta 2010, idealizada pelo Projeto

Manuelzão e abraçada pelo Governo de Minas, que prevê a navegação, a pesca e a natação no Rio das Velhas a partir de 2010.

Um sonho que, com a dedicação da COPASA e a ajuda integrada dos municípios envolvidos, tem tudo para se tornar realidade.

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