“cabeça, tronco e membros”: sobre desfazer uma coluna · com meio centímetro de espessura, a...

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X “cabeça, tronco e membros” : sobre desfazer uma coluna Aline Dias 1 Resumo : A comunicação aborda o trabalho de arte contemporânea de Armanda Duarte a partir do pensamento de Judith Butler, através das noções de performatividade e de interpelação na escrita de si. O trabalho “cabeça, tronco e membros”, 2010-12, constitui-se na/pela tarefa de desfazer gradativamente uma finíssima coluna vertical, cuja altura corresponde a do corpo da artista. O gesto de lixar a coluna, operação de atrito entre superfícies, é realizado pela artista diariamente nas horas que antecedem a abertura do espaço expositivo ao público. Interditado à visibilidade do espectador, seu gesto produz laboriosamente a diminuição da escultura, potencializando uma reflexão sobre a alteridade (no endereçamento da artista a um observador que percebe o trabalho por seus indícios), a (in)definição dos contornos da obra de arte e as formas de medir, ou nos termos de Butler, de relatar a si mesma. A partir da noção de vulnerabilidade dos corpos à linguagem, precariedade, repetição e ressignificação que a autora desenvolve, a proposta investiga a assimilação e reenquadramento de matérias e ações provenientes do espaço doméstico. Palavras-chave : arte contemporânea, performatividade, espaço expositivo. O relato que dou de mim mesma se desintegra (Butler) Uma finíssima coluna é instalada pela artista portuguesa Armanda Duarte no espaço expositivo, integrando a mostra coletiva “Logradouro”, realizada em Lisboa no início de 2012 2 . Intitulado “cabeça, tronco e membros”, o trabalho foi cuidadosamente fixado nas madeiras do assoalho, na sala de exposição. A descrição da artista aponta: Uma pessoa e a sua altura em uma linha de madeira. Além da materialidade que compõe a linha, indica o tempo empregado para sua realização: uma hora durante 17 dias, antecedendo a abertura do espaço ao público e, por último, acrescenta: um trabalho (Duarte, 2014). 1 Aline Dias é artista, pesquisadora e professora adjunta no Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil. 2 A exposição contou com trabalhos dos artistas Armanda Duarte, Catarina Mil-Homens, Igor Jesus, José Loureiro, Nuno Sousa Vieira, entre jan.-fev. 2012.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN

2179-510X

“cabeça, tronco e membros”: sobre desfazer uma coluna

Aline Dias1

Resumo: A comunicação aborda o trabalho de arte contemporânea de Armanda Duarte a partir do pensamento de Judith Butler, através das noções de

performatividade e de interpelação na escrita de si. O trabalho “cabeça, tronco e membros”, 2010-12, constitui-se na/pela tarefa de desfazer gradativamente uma finíssima coluna vertical, cuja altura corresponde a do corpo da artista. O gesto de

lixar a coluna, operação de atrito entre superfícies, é realizado pela artista diariamente nas horas que antecedem a abertura do espaço expositivo ao público. Interditado à

visibilidade do espectador, seu gesto produz laboriosamente a diminuição da escultura, potencializando uma reflexão sobre a alteridade (no endereçamento da artista a um observador que percebe o trabalho por seus indícios), a (in)definição dos

contornos da obra de arte e as formas de medir, ou nos termos de Butler, de relatar a si mesma. A partir da noção de vulnerabilidade dos corpos à linguagem, precariedade,

repetição e ressignificação que a autora desenvolve, a proposta investiga a assimilação e reenquadramento de matérias e ações provenientes do espaço doméstico.

Palavras-chave: arte contemporânea, performatividade, espaço expositivo.

O relato que dou de mim mesma se desintegra (Butler)

Uma finíssima coluna é instalada pela artista portuguesa Armanda Duarte no

espaço expositivo, integrando a mostra coletiva “Logradouro”, realizada em Lisboa

no início de 2012 2 . Intitulado “cabeça, tronco e membros”, o trabalho foi

cuidadosamente fixado nas madeiras do assoalho, na sala de exposição. A descrição

da artista aponta: Uma pessoa e a sua altura em uma linha de madeira. Além da

materialidade que compõe a linha, indica o tempo empregado para sua realização:

uma hora durante 17 dias, antecedendo a abertura do espaço ao público e, por último,

acrescenta: um trabalho (Duarte, 2014).

1

Aline Dias é artista, pesquisadora e professora adjunta no Departamento de Artes Visuais da

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil. 2 A exposição contou com trabalhos dos artistas Armanda Duarte, Catarina Mil-Homens, Igor Jesus,

José Loureiro, Nuno Sousa Vieira, entre jan.-fev. 2012.

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Com meio centímetro de espessura, a linha é de madeira-balsa, material leve e

resistente, recorrentemente usado na construção de maquetes e aeromodelos. A altura

desta linha é de 172cm, equivalente à altura do corpo da artista – o que sinaliza, em

certa medida, o ponto de partida do trabalho. Muito fina, a coluna fica de pé em uma

sala ´vazia’, afirmando sutilmente sua visibilidade no espaço de exposição.

Com discrição, a linha ocupa o espaço e vai descendo, consonante à atividade

protagonizada pela artista de lixar, com calculada minúcia, a parte superior da

madeira. Esta espécie singular de contato e atrito entre superfícies tem como meta a

diminuição gradual da peça, cuja desaparição completa coincide com o término da

mostra.

A dedicação empreendida na ação indica que, irredutível à sua constituição

física, o trabalho artístico compreende não apenas a materialidade, o processo de

construção prévia da peça e sua instalação, mas a tarefa (e a duração) de (des)fazê-la

gradativamente. “Cabeça, tronco e membros” está inserido no contexto de arte

contemporânea e corrobora na problematização da primazia visual com que

convencionalmente o objeto artístico é definido. A dimensão material da peça não é

ignorada tampouco desprovida de importância, mas reverbera seus sentidos na

articulação com um gesto realizado no espaço-tempo da exposição.

A heterogeneidade de meios, materiais, formas, suportes e procedimentos

recorrentemente enumerada para caracterizar a arte contemporânea (Archer, 2001)

vem acrescentando às linguagens tradicionais, novas mídias, materiais ordinários e

atividades diversas, numa operação de expansão e deslocamento de limites sociais ou

disciplinares (Fervenza, 2005). Este intrincado extravasamento das possibilidades

materiais/processuais está relacionado a um igualmente intrincado questionamento e

reflexão sobre a própria definição da arte (Duve, 2010).

Território de negociação que recusa uma definição una, estanque ou pré-

definida, a produção artística contemporânea requer uma diligente interpretação e

desnaturalização das condições de constituição e recepção da obra. Pensar a inscrição

artística como problema, retirando do termo sua valência negativa como sinaliza

Butler (2015, p.7) e, sobretudo, como performativa, demanda compreender as

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experiências artísticas dentro de relações sociais estabelecidas, reiteráveis, que

condicionam esquemas de inteligibilidade, sujeitos à ruptura ou revisão, consolidando

suas normas ou contestando sua hegemonia (Butler, 2015, p.167).

A vocação problematizadora que a prática artística assume no quadro

contemporâneo nos coloca em relação ao pensamento de Judith Butler, e sua reiterada

negação de categorias estáveis, tomando as noções de sujeito, identidade e gênero

como construtos performativos (Salih, 2015, p.65).

O conceito de performatividade, contribuição central de Butler na discussão de

gênero, tendo como base teórica a noção de performativo (Austin, 1990),

desestabiliza a suposta transparência nominativa da linguagem e encontra especial

relevância nos estudos artísticos contemporâneos. Austin elabora sua teoria dos atos

de fala a partir dos enunciados performativos, frases que não descrevem a realidade,

exemplificado por “Aceito, esta mulher como minha legítima esposa”, mas nela

atuam, suspendendo a distinção entre falar e fazer. Dizer “Aceito”, diante de um juiz,

não corresponde a relatar um casamento ou nomear um fato extrínseco à linguagem,

mas corresponde a uma ação em si: a de casar (Austin, 1990, p.24-5).

Com isto, o autor contribui para desvincular a linguagem de derivação

instrumentalizada do real. Mesmo os enunciados constatativos (descrições que podem

ser mensuradas aos fatos e tomadas como asserções verdadeiras ou falsas, como p.ex.:

a lua apareceu), têm uma estrutura performativa implícita (eu digo que a lua

apareceu), permitindo argumentar que a linguagem em si é performativa, pois

constitui e atua sobre o real.

A performatividade para Butler compreende um conjunto de atos dentro dos

limites de um quadro regulatório. Diferenciada da performance enquanto encenação

de matriz teatral, nos termos da autora, a performance preexiste ao performer. A

distinção entre os termos é importante, pois a performance está centrada nos atos de

um sujeito, enquanto a performatividade contesta a própria noção de sujeito,

destacando-o como efeito do discurso, e não sua causa (Salih, 2015, p.90, 92). Butler

atribui uma dimensão não pessoal (ao ato de fala, à identidade de gênero), defendendo

que os elementos da fala (e o conjunto de performances) precedem e excedem aquele

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que fala, assim como a estrutura de interpelação em que a fala se dá. A noção de

despossessão e opacidade são importantes para a constituição do sujeito-em-processo

no pensamento de Butler, reiterando que não existe um ´eu´ fundador ou separável

das condições sociais de seu surgimento, mas todo sujeito está implicado em um

conjunto de normas sociais condicionadoras (Butler, 2017: 18).

Recusando o espaço de arte como cenário passivo ou neutro a ser ocupado por

objetos dados (e refutando um caráter intrinsecamente artístico), a contribuição do

modelo performativo na arte ressalta os atos normativos de inscrição e definição, pois

é dentro dos limites constitutivos de um campo discursivo que aquilo que é inteligível

como arte se constrói (não apenas como quadro de interpretação posterior ao objeto

artístico, mas as condições de produção de objetos e experiências entendidas como

artísticas). Menos abordar os atos artísticos como performance (expressões derivadas

de um ´eu´ ou enquadradas em uma categoria disciplinar), trata-se de reforçar que a

obra de arte não pode ser desvinculada de códigos de significação. Os sistemas de

reconhecimento parecem naturais e imutáveis mas, para Butler, são efeitos de

performances repetidas que naturalizam construções sociais e discursos históricos.

Um diálogo com as formulações de Butler (2017) acerca da performatividade,

da alteridade constitutiva do sujeito e da estrutura de interpelação na narrativa de si

corroboram para desmontar noções de autonomia, livre expressão e universalidade na

produção de arte contemporânea, tomada como descentrada, opaca e vulnerável e,

ainda, para contestar os pressupostos ideológicos patentes na aparência de natural,

propondo ações divergentes ou subversivas (Salih, 2015, p.83).

Hantelmann (2010) aborda a performatividade no contexto da arte, reforçando

a diferenciação da imprecisa acepção corrente que atribui uma função adjetiva de

performance (em inglês, performance-like). Para a autora, a relevância do conceito

está pautada no modo como a produção da realidade não se restringe à intenção ou ao

conteúdo articulado na obra (deslocando para a produção artística o que Austin

postulou em relação às palavras e Butler à construção de gênero), mas integrada a

modos, convenções que repetem, reiteram, atualizam, diferenciam ou subvertem a

linguagem artística.

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Sem enquadrar-se na categoria da performance, sem um confronto com o

público, “cabeça, tronco e membros” se insere em um contexto expositivo que o

acolhe e ao qual se endereça. Ao interditar o comparecimento dos espectadores diante

do gesto de lixar a peça, interessa à artista o caráter performativo, mostrando a ação

sem que seu corpo esteja diretamente presente para as pessoas (Duarte, 2014b). A

ação se afirma por seus resultados e indícios, notadamente na alteração da escala da

coluna. Se observamos a espessura e fragilidade do material, o gesto é preciso e

persistente, uma vez que é realizado repetidas vezes. A cada dia de trabalho/exposição

alguns centímetros são perdidos, articulando altura e duração, em uma equação difícil

de precisar numericamente, que divide os centímetros de desbaste pelo número de

dias em que a atividade é realizada.

A inscrição de “cabeça, tronco e membros” enquanto gesto artístico

potencializa a abordagem de questões como a relação entre o cuidado e a repetição

dos trabalhos realizados no âmbito doméstico, recorrente em outras obras de Duarte.

Uma mulher (a artista) entra na exposição, antes de sua abertura (portanto, numa

esfera não-pública) e, de modo diligente e invisível como uma diarista (ou mulher-a-

dias, termo corrente em Portugal), desfaz uma escultura.

Os deslocamentos de materiais e práticas do espaço da casa para o contexto

institucional, assim como de procedimentos de preparação para o de exposição e de

persistência de um gesto do qual só vemos suas sobras, assinalam a distribuição dos

papéis sociais (vide os trabalhos invisíveis confinados tradicionalmente ao âmbito

feminino) e reenquadramentos de ações ´insignificantes´ ou contra-produtivas (vide o

trabalho de desfazer).

Uma série de dobras no ideário da forma ´pura´ modernista foram articuladas

por artistas mulheres na história da arte recente, como Eva Hesse, subvertendo o

minimalismo norte-americano com materiais moles e fatura manual; Lygia Clark, no

embate da experiência relacional do corpo com estruturas geométricas; Rivane

Neuenschwander, investigando processos de degradação de materiais como poeira

(in)conformados em estruturas lineares.

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Armanda Duarte vai ao espaço de exposição e não erige um monumento, mas

o desfaz. Trabalha todos os dias um pouco mais para desfazê- lo. É uma ação, embora

paradoxalmente, de efeito subtrativo. Convocando o corpo (da artista, que executa, e

do espectador, que percebe a peça no espaço de exposição), confronta a vocação

geométrica e impessoal da escultura moderna.

Além de refutar uma suposta coesão da obra, Armanda Duarte parece aderir a

um projeto de horizontalizar o mundo (Bataille Apud Krauss, 1996), sabotando a

verticalidade da escultura, característica do espaço monumental. O ato de lixar insere

literalmente atrito nesta relação e retira a peça de uma condição estável e afirmativa.

A rotação e rebaixamento do objeto de arte subverte a separação entre o campo

representacional e o mundano. Através da noção de baixo materialismo e das

implicações repressivas da verticalidade, a horizontalidade contesta e duvida da

aspiração de retidão, do estar ereto como distinção biológica e ética entre homem/

animal, insistindo na presença e potência do inferior (Apud Kraus, 1996)3.

A articulação entre a linha vertical, medida de sua altura e o trabalho de seu

corpo de desfazê- la, a vulnerabilidade da peça e a interpelação com o espectador,

especificamente nesta obra, atentam para a condição de mútua implicação e a

responsabilidade que sustenta a relação. O gesto de Duarte sinaliza uma radical

alteridade, repercutindo na reflexão acerca da susceptibilidade primária e irreversível

na constituição do si mesmo (Butler, 2017: 117). Ainda que não visto, o ato de lixar

intencionalmente desgasta a coluna, endereçando ao espectador, potencialmente

recorrente e atento, o processo de diminuição da escultura durante a mostra. Diminuir,

sem entretanto derrubá- la: lenta e persistentemente a artista propicia o desbaste de sua

altura.

A artista dedica sua ação a alguém que a observa indiretamente, apreendendo

seu trabalho apenas por sobras, inversamente proporcionais à diminuição da escultura:

pequenos retângulos de lixas brancas usadas, o crescente pó da madeira e as marcas

deixadas pela presença da artista. Armanda vai gerando resíduos de pó, desenhando o

3 O tema foi desenvolvido em Dias (2016), reflet indo sobre o chão como espaço de montagem em um

conjunto de cinco instalações de Armanda Duarte.

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contorno impreciso de um corpo que ocupa o espaço e se ausenta, indicado pelo vazio

deixado pelos pés e joelhos (quando a coluna é reduzida e se agacha para lixar).

Esta alteridade incontornável que pauta e sustenta o trabalho de Armanda

Duarte, repercute na reflexão de Butler (2017) acerca do relato, envolvendo a relação

com o outro, inventado ou existente, para quem falo. A autora contesta a acepção de

um sujeito transparente e fundador, chamando atenção para a sua descentralização,

afetado pela alteridade que não só o cerca, mas o constitui. Defendendo a primazia do

outro na constituição do sujeito, a partir de Laplanche e Levinas, compreende a

relação interpelada e interpelante com o outro como inauguradora, anterior ao

estabelecimento do eu. Normas prévias, repetidas, sustentam os modos de contar (a

despossessão linguagem) e tornam o ´eu´ inteligível. Sinalizando ainda as dimensões

não-narráveis do inconsciente, Butler reafirma a opacidade e os limites do

conhecimento de si, insistindo que o ´eu´ não é uma entidade ou uma substância, mas

um conjunto de relações e processos.

Neste sentido, a constituição de si mesmo estrutura-se como uma poiesis, e,

ainda, parte de uma operação de crítica (Butler, 2017, p.28-29), tendo Nietzsche

como referência. O relato sobre si mesmo, ou cuidado de si nos termos de Foucault, é

um processo que se realiza lidando com os limites normativos que antecedem e

excedem o ´eu´, expondo-os, criticando-os, num prática autotransformadora. Esta

reflexividade aproxima-se ao papel de um artesão, um artista que, de tempos em

tempos, para de trabalhar, examina o que faz, lembra-se das regras da arte e as

compara com o que realizou até ali (Foucault Apud Butler, 2017, p.163). Nesta

dimensão relacional, expor-se ao outro está ligado a uma reivindicação ética.

Na reduzida duração de 17 dias, em Lisboa, “cabeça, tronco e membros”

assume a condição lacunar dos relatos, um conjunto de imagens fotográficas, textuais

e orais da artista, incluindo a escrita deste texto, esforço narrativo afetado pelo

trabalho. Com o relato, a artista propicia uma reflexão sobre a definição dos contornos

do trabalho e as possibilidades de interpelação, evidenciando, no conjunto de imagens

e seus intervalos, a frágil redução da coluna e as marcas deixadas.

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Armanda Duarte, “cabeça, tronco e membros”, 2010-12. Vistas da exposição, processo (Duarte, 2014).

Duarte estabelece torções entre a duração de preparação (a fatura da escultura)

e de execução de seu gesto (lixar a escultura) coincidente com a duração da

exposição. Enquanto a dissolução progressiva da peça rompe a constância material

´normal´ das obras durante uma exibição ao público, os relatos textuais e fotográficos

apontam a sobrevivência lacunar do acontecimento.

Como o espaço de exposição não é neutro ou passivo, também sua

temporalidade envolve paradigmas inscritos nos espaços/discursos. “Cabeça, tronco e

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membros” frustra uma implícita expectativa de estabilidade da obra, alterando o

tempo supostamente “homogêneo” entre a abertura e o encerramento da mostra. Ao

insistentemente trabalhar na desintegração da peça, o trabalho ocupa e lida com o

tempo de exposição, tomando-o como parte da obra.

A singularidade da experiência de encontro com a peça (que a cada dia

apresenta uma diferente medida), o inacabamento e ´improdutividade´, sinalizam

modos dissonantes de lidar com a circunscrição temporal da exposição. Ao convocar

uma ação diária, a responsabilidade é acionada, revisitando algumas das concepções

que balizam e consolidam modelos de experiência artística.

Durante a exposição, inesperada e acidentalmente, uma janela abriu-se,

dispersando o pó da madeira lixada acumulado no chão e apagando as marcas

deixadas nos dias anteriores 4 . Na relacionalidade inevitável que estrutura a

interpelação, além do endereçamento, há também uma invasão, ou um risco, do outro.

Como o ar entra no espaço e dispersa as marcas do trabalho de Armanda Duarte, o

relato, invariavelmente interlocutório, precário e incompleto, tem o potencial de se

desintegrar e ser destruído de diversas maneiras (Butler, 2017, p.54).

Defendendo certa medida de fracasso ou tropeço, Butler adverte a potência de

não se conformar à resposta satisfatória, sinalizando que ao deixar que a pergunta

permaneça aberta e perdure, deixamos o outro viver, pois a vida pode se entendida

exatamente como aquilo que excede qualquer relato que dela possamos fazer (Butler,

2017, p.61). Fora do narcisismo, Butler afirma o relato como tentativa de

compreender a formação do sujeito, como responsabilidade e compromisso, refletindo

sobre a importância ética de lidar com a interpelação do outro, do desconhecimento e

da divergência, afirmando que

sermos desfeitos pelos outros é uma necessidade primária,

uma angústia, sem dúvida, mas também uma oportunidade de sermos interpelados, reivindicados, vinculados ao que não somos, mas também de sermos movidos, impelidos a agir,

interpelarmos a nós mesmos em outro lugares, assim, abandonarmos o ´eu´ autossuficiente como um tipo de posse.

Se falamos e tentamos fazer um relato de nós mesmos a partir

4 O acidente aconteceu quando a coluna estava com 97cm, e o trabalho continuou a partir de então, até

o fim da mostra (Duarte, 2014).

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desse lugar não seremos irresponsáveis, ou, se o formos, certamente seremos perdoados (BUTLER, 2017, p.171).

Referências:

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea. Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

AUSTIN, John Langshaw. Quando Dizer é Fazer: Palavras e Ações. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte:

Autêntica, 2017.

DIAS, Aline. “Transporte aos quadradinhos”: O chão como espaço de montagem nos

trabalhos de Armanda Duarte. Palíndromo, v.8, n.16, p.04-24, jul/dez 2016.

DUARTE, Armanda. “Logradouro”; Arquivo da artista. Enviado em mensagem de email a autora, 27 abr. 2014.

DUARTE, Armanda. Entrevista a autora. Lisboa, 13 jun. 2014.

DUVE, Thiery de “O que fazer da vanguarda? Ou o que resta do século 19 na arte do

século 20?” Arte & Ensaios n.20 (2010) 181-193.

FERVENZA, Hélio. “Considerações da arte que não se parece com arte” Revista Porto Arte: Porto Alegre, v.13 n.23 (nov. 2005) 74-5.

HANTELMANN, Dorothea von. How to do things with art. What performativity means in art. Zurich: JRP / Ringier; Dijon: Les Presses du réel, 2010.

KRAUSS, Rosalind; BOIS, Yve-Alain. L'informe, mode d'emploi. Paris: Centre Pompidou, 1996.

SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Head, trunk, and limbs: about undoing a column

Abstract: This oral communication approaches contemporary artwork of Armanda

Duarte by the thought of Judith Butler, through her notions o f performativity and interpellation in the account of oneself. The artwork "head, trunk and limbs", 2010-12, is based on the task of gradually undoing a very thin vertical column, whose

height matches the artist's body. The gesture of sanding the column, understood as friction between surfaces, is performed by the artist daily before the opening of the

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exhibition space to the public. Restricted to the spectator´s visibility, her gesture laboriously produces the reduction of the sculpture, potentializing a reflection on the

otherness (in the addressing of the artist to an observer who perceives the work by her cues), on the contours of the work of art and on the ways to measure, or in Butler's terms, giving an account of oneself. From the notion of the body´s vulnerability to the

language, precariousness, repetition and resignification that the author develops, the text investigates the assimilation and reframing of matters and actions from the

domestic space. Duarte's art works involves repeated gestures and the use of organic elements in tension with geometric / mathematical rigor. These choices destabilize the modernist legacy, highlighting, as Hantelmann (2010) proposes following Butler, that

art is performative because not only responds or inserts itself in a context, but also participates and provokes effects.

Keywords: Contemporary art, performativity, exhibition space.