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CREDIBILIDADE INTERNACIONAL E FATORES DOMÉSTICOS NA ESTABILIZAÇÃO ...

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CREDIBILIDADE INTERNACIONALE FATORES DOMÉSTICOS NA

ESTABILIZAÇÃO POLÍTICA BRASILEIRA

dustrial e de aumento das exportações estancou, o fluxode investimentos internacionais se inverteu em detrimen-to da região, que se tornou exportadora líquida de capi-tais, e a combinação de alto endividamento interno e ex-terno com altas taxas de inflação provocou taxas negativasde crescimento.

Uma das conseqüências dessa década perdida, proje-tada na atual década de 90, seria a previsão de uma ex-clusão do subcontinente dos principais fluxos de investi-mento e comércio internacionais. As causas apontadasdiziam respeito particularmente à estrutura das economiasda região, baseadas em um modelo de economia protegi-da e em um crescimento do comércio exportador apoiadoessencialmente no custo da mão-de-obra ou de matérias-primas. A isto acrescentava-se como agravante a instabi-lidade monetária e, especialmente no caso do Brasil, aimprevisibilidade das regras do jogo.

Nesse particular, o Brasil se tornara, no final dadécada passada e início da atual, o homem doente daAmérica Latina. Enquanto as principais economias em-preendiam ajustes bem sucedidos, reduziam a inflação,voltavam a crescer e começavam a atrair novos investi-mentos, o Brasil se destacava negativamente, transferin-do para a região uma parte significativa das avaliaçõesde risco que sobre ela pesavam na comunidade financei-ra internacional. Em suma, tal como uma bomba de efei-to retardado, a década perdida dos anos 80 eclodiria nosanos 90 riscando a América Latina e, com muito maisrazão o Brasil, do mapa mundial do comércio, dos negó-cios, da prosperidade.

Uma boa maneira de caracterizar a década de 80 é apon-tar a conjunção de três crises, cuja resolução, hoje, per-mite prever uma reinserção internacional em condiçõesmuito mais favoráveis do que as que foram observadasnas décadas anteriores. A primeira é a crise da dívidaexterna, crise de credibilidade diante dos foros interna-cionais e, particularmente, perante os investidores, res-ponsável pelo estancamento do fluxo de capitais em dire-ção à América Latina durante toda a década.

Hoje é difícil, sem um esforço retrospectivo, levar emconta nas análises de conjuntura o que isso significou. Emque pesem as justificativas estruturais para explicar o ta-manho, o formato e as estratégias de credores e devedo-res responsáveis pela formação da dívida, ela se transfor-mou num imenso óbice de caráter moral para a sua própriasolução. Independentemente do jogo de interesses queprevaleceu entre os credores e representantes das buro-cracias internacionais, é certo que a opinião pública in-ternacional não se comoveu com os argumentos dos paí-ses devedores, por mais que sua pobreza merecessesimpatia. Uma vez equacionada a repactuação da dívidadas maiores economias latino-americanas com os princi-pais credores internacionais, ao contrário, uma nova in-flexão do fluxo de capitais voltou a beneficiar a AméricaLatina. Primeiro, com os chamados capitais voláteis, emseguida com investimentos produtivos.1

A segunda é a crise da superinflação, crise de instabi-lidade. Mais do que a permanência da inflação, entretan-to, julgava-se que a volatilidade das macropolíticas cons-tituía o fator crítico. No caso do Brasil, por exemplo,sucessivos governos, e mesmo sucessivos ministros daeconomia e presidentes do Banco Central num mesmo go-verno, ensaiavam sucessivas experiências de choques anti-

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE

Professor do Departamento de Ciência Política e do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP

reqüentemente os anos 80 são mencionados comoa década perdida da América Latina. Foi um pe-ríodo em que o surto anterior de crescimento in-F

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inflação, tudo resultando numa ausência crescente de pre-visibilidade. A política monetária sofria constantes ajus-tes, o mesmo se aplicando à política cambial e às práticascomerciais. Importadores, exportadores e investidoresqueixavam-se da ausência de regras claras e, sobretudo,constantes.

A terceira crise é a que podemos chamar crise delegitimidade. Ela resulta da nova vulnerabilidade dosEstados a movimentos cada vez mais imprevisíveis de sen-timentos, inclinações, estados d’alma gerados e trans-mitidos extraterritorialmente, decorrentes da transna-cionalização.

Muitos tendem a restringir a transnacionalização à glo-balização dos processos produtivos e dos fluxos de comér-cio e investimentos. A globalização, entendida nesse sen-tido estritamente econômico, é apenas uma das dimensõesde um processo mais amplo de mudança das relações in-ternacionais, resultante, como as demais, de um aumentocrescente da velocidade das comunicações e de uma di-minuição proporcionalmente inversa dos seus custos.

A existência de mecanismos transnacionais é um fe-nômeno anterior à formação do Estado nacional. Consis-te em provocar efeitos econômicos, sociais, culturais emgeral, de caráter não limitadamente territorial, que por-tanto podem propagar-se por entre as fronteiras dos Esta-dos, sem que essas possam exercer sobre eles um poderdireto.

A Igreja Católica é um dos exemplos mais antigos deorganização transnacional, na medida em que cedo se tor-nou capaz de difundir idéias e arregimentar lealdades nassociedades de diferentes Estados, sem necessariamentepassar por seu controle direto. Na formação do Estado mo-derno, a Igreja Católica constituiu um dos obstáculos maispoderosos e, no caso particular da região sob sua diretainfluência, a península itálica, retardou durante séculos asua constituição.

Com o aumento vertiginoso da velocidade, extensão equalidade da comunicação de idéias, pessoas e bens, e adiminuição diretamente proporcional de seus custos, atransnacionalização alcançou inúmeras dimensões, alémda cívico-religiosa, alterando significativamente o mono-pólio das relações internacionais antes atribuído aos Es-tados nacionais.

Uma das mais importantes dimensões da transnacio-nalização é, sem dúvida, a transnacionalização da opiniãointernacional. A criação de organizações transnacionaiscapazes, como a Igreja, de difundir idéias e criar lealdadeextraterritoriais, que muitas vezes se sobrepõem à pró-pria lealdade nacional, tornou os Estados vulneráveis àopinião pública transnacional.

Assim como não podem controlar fluxos de poluentese de transmissão de doenças originados fora de seu terri-

tório, os Estados também não conseguem controlar mo-vimentos de opinião gerados fora de suas fronteiras. Como agravante de que, no caso da opinião internacional, osEstados não podem contar com a aquiescência de seusinterlocutores tradicionais, os demais Estados. Muitasvezes não há simplesmente interlocutores.

Inúmeros temas, novos e velhos, comoveram a opiniãointernacional a partir de meados da década passada. Comrelação a todos eles, sejam as desigualdades sociais e eco-nômicas, sejam os direitos humanos, sejam os direitos daspopulações autóctones, seja a proteção ambiental, seja ademocracia, os governos da América Latina sempre semostraram em débito.

Cada uma dessas crises – de credibilidade, de instabi-lidade, de legitimidade – se aplicou tanto a países especí-ficos como ao conjunto da região. Muitas avaliações dosucesso do Mercosul, por exemplo, apontavam no Brasilo principal obstáculo à integração regional num contextode globalização, dada a dificuldade do país de acompa-nhar o ritmo de abertura econômica e de estabilizaçãomonetária da região e, além disso, o fato de sofrer umaespécie de moratória de investimentos externos em de-corrência de sua falta de credibilidade.

O principal fator apontado como obstáculo à inserçãointernacional do Brasil, e que repercutia na credibilidadedo Mercosul, era a falta de estabilidade de macropolíti-cas. Este era, sem dúvida, o fator determinante dentro deum feixe de obstáculos apontados como condicionantesda falta de credibilidade internacional do país. Falta decredibilidade que, por sua vez, restringia o alcance de suaatuação política externa, afugentava investidores e difi-cultava as negociações com credores, isto sem falar navulnerabilidade com relação a eventuais acusações depráticas comerciais não ortodoxas.

Dívida externa inadministrável e dependente de nego-ciações intermináveis, superinflação, instabilidade polí-tica e mau desempenho no que diz respeito aos direitoshumanos formavam esse feixe de vulnerabilidades à opi-nião internacional, todas estreitamente correlacionadas àinstabilidade monetária.

Esse quadro mudou drasticamente com a adoção bemsucedida do Plano Real de estabilização monetária e coma continuidade da política de abertura comercial desen-cadeada no início dos anos 90. Seis anos de continuidadeda política de abertura econômica, que se traduz numaabertura comercial gradual mas constante, numa políticacambial sem sobressaltos, embora sujeita a críticas, e fi-nalmente dois anos de estabilidade monetária e inflaçãodeclinante formam esse novo quadro.

O quadro de expectativa internacional se inverteu coma ascensão do atual presidente Fernando Henrique Car-doso ao Ministério da Fazenda em 1993. Antes mesmo

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do anúncio e da adoção formal do Plano Real, as conse-qüências dessa inversão se fizeram sentir, seja na atitudemais “compreensiva” dos negociadores da dívida e dasburocracias internacionais, seja na atitude dos investido-res, principalmente alemães e americanos.

Embora o “risco Brasil” e a posição do país nosrankings de avaliação de competitividade não se tenhamalterado substancialmente, a inversão de fluxos financei-ros internacionais em favor do Brasil não esperou com-pletarem-se dois anos de estabilidade monetária e seis deabertura comercial consistente para se fazer sentir. Essanova credibilidade ou, mais precisamente, expectativa decredibilidade, permitiu que se enfrentasse com sucesso oproblema crucial dos créditos externos e se garantisse con-dições favoráveis para a renegociação da dívida externae para o progresso nos foros multi e minilaterais, como aatual OMC, o Mercosul e as conversações no âmbito docontinente.2

Todos esses compromissos internacionais passaram aatuar como fatores de contenção de eventuais pressõescontrárias às políticas de abertura econômica, financeirae comercial. Tais fatores atuaram e continuam atuandodomesticamente como fortes argumentos diante de resis-tências do Legislativo às reformas econômicas, particu-larmente no que diz respeito à quebra ou flexibilizaçãodos monopólios estatais e à política de privatizações.

Esse uso dos compromissos internacionais como es-cudo contra pressões domésticas e, especificamente, contraas reações provocadas por programas de reforma econô-mica, tem sido freqüente. Essa foi uma das principaismotivações do Canadá para propor uma Zona de LivreComércio com os Estados Unidos. Tal foi também o casodo México, ao propor acordo análogo aos Estados Uni-dos, que depois resultou no Nafta. Ambos os paísespassavam por profundo programa de ajuste de uma eco-nomia estreitamente regulamentada e protegida da com-petição externa.3 Não devemos esquecer que a criação doprimeiro organismo comunitário que deu origem à atualUnião Européia, a Alta Autoridade do Carvão e do Aço,também se destinava a retirar da agenda doméstica de seusEstados-membros o debate sobre a reconversão daquelasindústrias.

As conseqüências do novo ganho de credibilidade nãose restringiram ao campo externo. A repercussão dessasmudanças decorrentes do Plano Real, particularmente apercepção da estabilidade como valor social a ser preser-vado, foi muito grande no processo político doméstico.Ela garantiu a eleição de Fernando Henrique à Presidên-cia num quadro de maioria popular e parlamentar comonão se via no país desde meados do século.

Com isto fechou-se um ciclo no Mercosul. O país demaiores dimensões e com mercado mais atraente era o

que apresentava maior vulnerabilidade tanto à crise decredibilidade como à de instabilidade e legitimidade. Coma recuperação da estabilidade monetária e a esperada con-solidação da estabilidade política, esse mesmo país pas-sou a figurar como verdadeiro símbolo da maturidadeinternacional da região.

O ciclo de arranjos regionais começara sob a égide dadefesa da democracia, principal motivação para os acor-dos bilaterais de cooperação técnica e econômica entreBrasil e Argentina, celebrados durante os governos Sarneye Alfonsín.4 Recém-saídos de longos períodos de autori-tarismo, ambos os governos – especialmente o argentino,alvo de sucessivos pronunciamentos militares – sentiam-se vulneráveis a pressões desestabilizadoras e às supos-tas raízes socioeconômicas daquelas pressões. Os doispresidentes esperavam efeitos benéficos do aumento dainterdependência entre os dois países.5

Entretanto, as virtudes da cooperação, particularmenteno que concerne à liberalização comercial bilateral,fizeram-se sentir muito além dos objetivos políticosinicialmente assumidos pelos dois governos. A inter-dependência comercial empurrou ambos os países – eatraiu seus parceiros do Cone Sul – para uma integraçãocrescente, que passou a intensificar a demanda deconvergência macroeconômica. As pressões em favor deum esforço crescente para a estabilização do Brasiltenderam a aumentar.

O ciclo se fecha quando os frutos da estabilização po-lítica no Brasil passam a garantir um pacto em favor docontrole inflacionário e da estabilização política, o que,por sua vez, repercute na credibilidade internacional doMercosul e de toda a região. Um arranjo regional de mo-tivação essencialmente política deságua em mecanismosde integração econômica que, reforçando a interdepen-dência entre as economias, criam pressões em favor deuma convergência de macropolíticas. Estas reforçam asmotivações em favor da estabilidade política que, por suavez, passa a funcionar como mecanismo de atração deinvestimentos e negócios.

Entretanto, essa reversão do quadro de instabilidadepolítica e econômica se deveu exclusivamente ao desem-penho político dos atores, lideranças e partidos e não amudanças na estrutura institucional. Vejamos o caso doBrasil.

O sistema eleitoral brasileiro sobre-representa os pe-quenos partidos e estados com menor população e maisbaixo desempenho econômico e penaliza os partidos ecandidatos programáticos em favor de siglas de aluguel ecandidatos populistas. As principais características do sis-tema proporcional de lista aberta, que preside, no Brasil,a escolha de toda a representação legislativa, do municí-pio à União, são as seguintes: favorece a multiplicidade

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partidária e a representação fragmentada, uma vez quenenhum partido necessita ter candidatos competitivos namaioria das localidades e, a rigor, sequer necessita termaioria em qualquer localidade. Favorece as siglas compouca consistência ideológica e programática, uma vezque a racionalidade aconselha os candidatos a procura-rem siglas onde não encontrem rivais com idéias, progra-mas e eleitorados semelhantes aos seus. Favorece a pul-verização de candidaturas heteróclitas, em detrimento delistas homogêneas e consistentes, uma vez que as chan-ces dos candidatos competitivos aumentam proporcional-mente ao número de candidatos não-competitivos de suasigla, que ficam muito aquém do quórum necessário parase elegerem, mas carreiam sobras eleitorais para a listado partido. Favorece a irresponsabilidade do eleito paracom seus eleitores e seu partido, uma vez que, em pri-meiro lugar, o candidato concorre em uma circunscriçãoeleitoral correspondente ao estado inteiro podendo, por-tanto, mudar facilmente de base territorial ad infinitumquando não satisfaz às expectativas do eleitorado; emsegundo lugar, porque afora os poucos candidatos que al-cançam o quórum eleitoral com seus próprios votos, to-dos os demais retiram em média 75% de seu quórum dassobras eleitorais anônimas, provenientes de candidatosdesconhecidos que infestam sua sigla e, por conseguinte,três em cada quatro votos que o elegeram foram dados aoutros candidatos, não conformando qualquer relação deobrigação entre ele e o eleitor; e, em terceiro lugar, por-que ao contrário de uma eleição majoritária em circuns-crições restritas, o sistema inviabiliza qualquer compro-vação da origem dos votos, seja com relação aos eleitores,seja com relação à identificação partidária do eleitor: éimpossível saber que eleitor, de qual partido, carreou votospara eleger um candidato.

A conjunção entre tal sistema eleitoral e um Executi-vo de natureza presidencialista eleito por maioria popu-lar redunda, além disso, em duas maiorias eleitas inde-pendentemente uma da outra e de acordo com métodosopostos de representação. Enquanto o candidato ao Exe-cutivo compete por grandes coalizões de modo a diluir asoposições mais gritantes e assegurar o consenso das mai-orias, o candidato mediano ao voto proporcional precisaencontrar nichos diferenciadores e terá tanto mais chan-ces quanto melhor souber segmentar o eleitorado.

Uma vez eleito, sem laços indissolúveis com um terri-tório, nem lealdades ideológicas ou programáticas comum partido, não existem mecanismos que impeçam ou im-ponham um custo substancial à adesão de um represen-tante proporcional ao Executivo que ele combateu duranteo pleito, nem à ruptura de solidariedade com o candidatomajoritário que o elegeu, quando o custo de mantê-la fora impopularidade.

O sistema eleitoral e o sistema presidencial acabam,portanto, produzindo um quadro sem solidariedade parti-dária e sem laços de responsabilidade entre eleitores eeleitos, entre parlamentares e partidos, entre partidos egoverno. A isso vêm-se agregar as dificuldades inerentesao presidencialismo, isto é, ao chefe de Executivo eleitopor voto popular direto, modelo que foi sacramentado –sabe Deus por quanto tempo – no plebiscito de 1993.

Essa conjunção de um Executivo eleito por voto po-pular majoritário direto, com um Legislativo eleito porvoto proporcional de lista aberta – única no mundo – con-figura o que podemos chamar, sem medo de exagero, desistema institucional vicioso. Tal quadro não oferece ga-rantias institucionais de formação de maiorias governa-mentais, nem garante a consolidação dessas maiorias, umavez formadas.

A ele tem correspondido um processo político igual-mente vicioso, em que convivem agendas díspares, inte-resses particulares e imediatos, e em que faltam ações con-certadas de atores individuais ou coletivos visando aformação de um consenso em torno da estabilidade polí-tica e da prevalência das instituições, o qual, quando ocor-re, resulta freqüentemente da combinação casual de fato-res não conscientemente buscados. Desde que ArturBernardes se elegeu em 1922 e governou o país sob esta-do de sítio durante todo o seu mandato, apenas Juscelinofoi eleito regularmente pelo voto popular, recebeu o po-der de um presidente também eleito regularmente pelovoto popular, e deu posse a outro presidente, eleito emcondições análogas.6

O círculo vicioso em que voga o processo político con-siste em eleger, simultaneamente, um presidente com ummandato popular de reforma7 e um Congresso povoadode agendas múltiplas e diferenciadas, quando não de agen-das vazias, tendo em comum um mandato para manter, aqualquer custo, as prerrogativas particularistas existen-tes. Quando tenta avançar sua agenda, o presidente en-contra a resistência de sólidas coalizões, formadas emtorno do déficit orçamentário, da manutenção e extensãode subsídios, da manutenção de prerrogativas particula-ristas, regionais e corporativas, da distribuição de diver-sas formas de patrocínio, da desvinculação entre receitae despesa. Cada uma delas pode, eventualmente, reuniruma bancada de veto suficientemente numerosa para frag-mentar a maioria governamental.8

O presidente tem a alternativa entre renunciar ao cum-primento do mandato de reforma ou mobilizar a socieda-de contra a resistência do Congresso. No primeiro caso, onão cumprimento das expectativas de mudança acabaráminando o apoio popular, tornando-o um alvo ainda maisfácil de pressões clientelísticas e criando um processo deretroalimentação explosivo. A satisfação das pressões

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clientelísticas contribui para o desgoverno, que alimentaa insatisfação popular. O crescimento da insatisfação po-pular, por sua vez, ao enfraquecer o Executivo, atiça asambições clientelísticas que, uma vez satisfeitas, realimen-tam todo o processo.

Em seu devido curso, tal processo leva a um Executi-vo cada vez mais fraco e a um Congresso cada vez maisimpopular. O desenlace mais benigno, mais provável,quando o processo se acelera próximo ao fim do mandatopresidencial, é uma sucessão polarizada, conduzindo a umnovo mandato presidencial de caráter plebiscitário.9 Masa conjunção de um Executivo fraco e inoperante com umCongresso impopular atrai, com maior freqüência, pro-nunciamentos de atores fora do sistema político, sobretu-do, mas não somente, quando o processo se acelera semque se tenha à vista a próxima sucessão. Nessa hipótese,pode-se esperar um desenlace mais dramático, como foio caso de Getúlio, em 1954 e Collor em 1992.10

No segundo caso, variam, evidentemente, as formasde mobilizar a sociedade contra o Congresso. É possívelapelar diretamente para as ruas, como Collor, depois quesuas tentativas de solução internas ao sistema político semostraram insuficientes. Pode-se apelar veladamente paraos militares, como Jânio.11 Pode-se apelar para setoressociais organizados, como Jango, que também tentou, emdiferentes ocasiões, mobilizar diretamente a população,convocando um plebiscito para revogar o regime parla-mentar então em vigor, conspirou com militares e, final-mente, permitiu a mobilização de grupos clandestinos. Oque não varia, em todos esses casos, é o desfecho, queredunda ou na queda do presidente ou no fechamento doCongresso.

Caíram Jânio e Jango. Collor, que poderia ter-se man-tido prisioneiro da ameaça de impeachment, apesar daimpopularidade, caiu quando apelou diretamente para asruas. Durante o getulismo o Congresso foi fechado maisde uma vez, e por longo períodos. No regime militar pós-64 também chegou a ser fechado, embora por períodosmais curtos. A tradição latino-americana em geral é bemmais abundante.12

O presidencialismo moderno encontrou uma soluçãopara a existência de eleitorados e mandatos independen-tes entre o Executivo e o Legislativo, e para a incongruên-cia entre as respectivas agendas. É o que a literatura ame-ricana chama de partido do presidente. (A expressão maisadequada para o Brasil seria bancada presidencial). Par-tindo-se do pressuposto de que o presidente é uma auto-ridade cujo poder repousa em sua capacidade de conven-cimento – para obter apoio das lideranças parlamentares,da burocracia civil e militar, das elites e da opinião públi-ca em geral – seu principal instrumento de governo seriaa formação de um núcleo de fiéis, cuja principal lealda-

de, em termos de idéias e de programas, seria a pessoa dopresidente. É através dessa coterie que o presidente diri-ge o Executivo, constrói e lidera uma bancada governa-mental, forma a opinião pró-governamental e se comuni-ca com a elite.

Com maior freqüência do que se poderia imagi-nar, mesmo num presidencialismo estável como o dosEstados Unidos, a bancada presidencial não equivale àmaioria parlamentar, nem corresponde às linhas de cliva-gem partidária no Congresso. Assim sendo, a bancadagovernamental é o instrumento da liderança presidencial13

para a formação de uma ou de várias e sucessivas coali-zões governamentais em torno da agenda presidencial ou,quando necessário, em torno de pontos específicos dessaagenda.14

O presidencialismo brasileiro tem uma contribuiçãooriginal nesse particular, oriunda do período autoritário,que temos chamado de consórcio.15 Quem primeiro deuao consórcio seus contornos, por assim dizer clássicos,foi Paulo Maluf, quando conquistou o governo de São Pau-lo mediante o consorciamento de uma bancada majoritá-ria de delegados à convenção da Arena.16

O consórcio não possui a solidez ontológica das alian-ças de classes, nem a coerência programática dos anéisburocráticos.17 Trata-se um sistema de trocas generaliza-do, no sentido antropológico estrito, que se sustenta en-quanto existe o que trocar. Seu princípio é: “cada um dáo que tem e recebe o que faz por merecer”. Seu funciona-mento é rigorosamente análogo ao dos consórcios: a quotade cada consorciado corresponde àquilo com que cada umpode contribuir, sendo proporcional ao benefício espera-do, e este é distribuído de acordo com formas estabeleci-das de sorteio, de oferta de “lances”, ou simplesmente deacordo com a vez de cada um.18 O que os distingue é queno consorciamento político, diferentemente do consórciode bens de consumo duráveis, o principal benefício é umbem público – ou dele decorre.

Cada um dá o que tem: o cabo eleitoral dá votos, olegislador empresta seu próprio voto, o Executivo prestafavores, o capitalista dá dinheiro, o jornalista dá matéri-as, de preferência positivas, o intelectual dá argumentosa favor. O consorciador, que precisa ter autoridade diretaou indireta sobre o bem público, distribui benesses: di-nheiro, poder ou prestígio para seus consorciados, cadaum de acordo com seu nível de contribuição. O valor e anatureza das benesses podem variar até quase o infinito,pois assim também variam a capacidade de contribuiçãoe as expectativas de benefício dos consorciados: da dis-tribuição de leite à informação privilegiada sobre um con-fisco de ativos.

O que torna possível o consórcio – e que o torna ne-cessário como alternativa à coalizão propriamente políti-

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ca19 – é o fato de que o consorciador, para concentrar re-cursos de poder vinculados ao emprego do bem público,precisa mobilizar recursos de origem tanto pública quan-to privada, que se encontram difusos na sociedade e nosistema político. O que o torna atraente para o consor-ciando é a possibilidade de investir os recursos de podera seu alcance para obter em troca, não apenas o equiva-lente – como num sistema simples de trocas – mas a ex-pectativa de tudo o que o poder concentrado no consór-cio pode proporcionar, afastando, ao mesmo tempo, otemor de tudo o que num jogo de soma zero fica fora doalcance dos não-consorciados.20

O que motiva o consorciador é a necessidade de con-servar os recursos de poder concentrados sob sua autori-dade direta ou obteníveis por conta da influência e doprestígio a ela associados. Mais do que isso, é a necessi-dade de ampliar esses recursos mediante a postulação deuma posição superior de autoridade,21 o que freqüente-mente aparece, quando mais não seja, como condição paraa própria conservação em posição de poder.

O consorciado também encara a ampliação do consór-cio como condição de sobrevivência. A taxa de inadim-plência dos consorciados já contemplados – em bom por-tuguês, a margem de traição – é sempre uma incógnita. Apressão de novos consorciandos pode diminuir os bene-fícios e aumentar a quota de participação, de modo que,quanto mais bem-sucedido seja o consórcio, maior é opotencial de insatisfação com a simples manutenção dostatus quo e, por corolário, maior a pressão pela mudan-ça de patamar.

Os processos sucessórios são cruciais na dinâmica deum consórcio. Se não fossem eles, um consórcio políticosempre teria que se dissolver a prazo fixo, na medida emque está balizado por mandatos a termo previamente de-terminado.

O consórcio fica sujeito, no quadro sucessório, a umdilaceramento de pressões divergentes. As mais conheci-das são as defecções provocadas pela incerteza quanto àconservação dos recursos de poder à disposição do con-sórcio. Igualmente ou ainda mais numerosas, entretanto,são as adesões de última hora. Elas não são necessaria-mente motivadas pela certeza de continuidade, mas antesde obter benefícios imediatos sem longos investimentosprévios, qualquer que seja o desenlace. Trata-se de umperíodo em que os consórcios estão ávidos de sangue novo,tanto para compensar as eventuais defecções, quanto paratemperar a morosidade generalizada dos fins de manda-to. Todos tendem a deixar o cafezinho esfriar antes de serservido. As pressões adesistas encontram consorciadoresinclinados à generosidade,22 quando mais não seja, por-que se nada der certo, não estarão lá no dia seguinte parapagar a conta.

O aliciamento pelo outro lado, em troca de insideinformation ou, pelo menos, de neutralidade, é outra fon-te de pressão permanente, nunca prometendo menos be-nefícios do que os atualmente garantidos. Pressão análo-ga, mas contrária, virá daqueles, previdentes, ocupadosem distribuir os ovos em todos os cestos disponíveis.

As razões de custo-benefício se alteram e os cálculosse tornam complexos. Desse emaranhado, entretanto, aresultante é que o custo de engajar-se no processo suces-sório, permanecendo no consórcio, é sempre percebidocomo maior do que o de não fazê-lo. É muito difícil con-tabilizar o aumento do custo de cada consorciado para ga-rantir a continuidade do consórcio na sucessão, devido àsdefecções, à diminuição dos benefícios devido às novasadesões, ao custo das retaliações se o outro lado vencer, àexpectativa de ganhos provenientes de eventuais ofertasdo outro lado. Então, apenas a expectativa de uma am-pliação do consórcio parece superar os custos de engaja-mento no processo sucessório, tanto para permanecer noconsórcio como para filiar-se a outro.

Daí decorre uma regra de ouro do consorciamento: elesó funciona na expectativa de lucros crescentes. Comouma bicicleta, o consórcio precisa manter-se em movi-mento para não vir abaixo. A mensagem básica do con-sorciador pode ser traduzida no seguinte: “Eu tenho mui-to poder e quem veio comigo já teve a sua parte. Agora,vou ter mais poder ainda, quem vier comigo terá uma parteainda maior, quem não vier não terá nada”.

O erro fatal de Orestes Quércia – que obteve no con-sorciamento do PMDB paulista sucesso mais duradourodo que o de Maluf em sua sucessão de siglas – foi o depensar que uma estratégia que deu certo para levá-lo aoSenado, do Senado à vice-governadoria, desta ao gover-no do estado, daria certo em todas as novas circunstân-cias. Não percebeu que a primeira frase da mensagem (“te-nho muito poder”) serve apenas para dar credibilidade àexpectativa anunciada com a segunda (“vou ter mais po-der ainda”). Quando Quércia, tendo o governo do estadomais poderoso numa mão e o controle do maior partidona outra, admitiu, na campanha presidencial de 1989, que“a vez” era de Ulysses,23 nunca mais conseguiu recuperaro vento a favor.24

Por conseguinte, como afirmamos em outro lugar,“o consórcio é um sistema político aberto, no sentido deque não é dotado de fatores endógenos de sustentação,porque repousa sobre compromissos imediatos de troca,que se esgotam na materialidade dos recursos consorcia-dos. Ele não cria, nem muito menos transfere lealdadespermanentes. Assim, só se sustenta mediante o consor-ciamento sucessivo de novos objetos de condomínio, eenquanto se justifique a expectativa (realística) de repro-dução ampliada do consórcio. Particularmente, a susten-

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tação do consórcio depende de uma carreira cumulativa eascensional no poder público, e especificamente no Exe-cutivo” (Guilhon de Albuquerque, 1989:191).

A outra regra de ouro do consórcio é que ele não fun-ciona como empreendimento de risco. A certeza do be-nefício é indispensável ao recrutamento de consorcian-dos. Por isso, o consorciamento deveria ser uma estratégiarestrita aos colégios decisórios fechados, com número nãosomente finito, mas conhecido de consorciáveis.

Vale a pena reproduzir a análise que fizemos anterior-mente sobre a sarneyização do primeiro governo da tran-sição: “Fenômeno essencialmente autoritário (...) o con-sórcio precisa, para sobreviver e desenvolver-se, do caldode cultura da transição por via autoritária (...) É um siste-ma que repousa sobre a preeminência do Executivo so-bre o Legislativo em todos os níveis, e exige uma limita-ção estrita do voto popular, confinando a representação acolégios restritos. Ele necessita, como do próprio ar, daobstrução da iniciativa parlamentar e de freios à fiscali-zação pelo Legislativo e, de modo geral, pela sociedade”(Guilhon de Albuquerque, 1989:191).

O erro fatal de Maluf foi acreditar que, assim comogarantira o governo do estado ao vencer a convenção daArena, teria garantido a Presidência da República ao ven-cer a do PDS. No primeiro caso, entretanto, a convençãoda Arena era o colegiado pertinente para eleger os gover-nadores, uma vez que o Colégio Eleitoral fora constituí-do de modo a garantir aritmeticamente a eleição do can-didato registrado pela Arena.25 O membro do Colégioeleitoral não tinha alternativas legais ao voto no candida-to registrado por seu próprio partido.

Ao criar um constrangimento legal que garantiria aeleição automática do candidato de seu partido, o gover-no militar não se preocupou em criar mecanismos análo-gos para controlar a Arena. Seu controle sobre o partidoera político e, portanto, podia ser desafiado politicamen-te por alguém com a audácia e o espírito empreendedorde um Paulo Maluf.

No segundo caso ocorrera uma mudança política im-portante que lideranças consorciadoras como Maluf eQuércia não tinham condições de entender. Em conseqüên-cia da reforma que levantou os obstáculos mais rígidos àorganização de novos partidos, para permitir a divisão doMDB em várias siglas, o Colégio Eleitoral deixou de sercontrolado exclusivamente por um mecanismo legal.

Uma inversão interessante teve lugar: ao criar o Colé-gio Eleitoral para a escolha de governadores, o governomilitar esquecera de estabelecer controles legais sobre avida partidária, capazes de garantir de antemão o auto-matismo obtido por meio do Colégio Eleitoral. Isto esva-ziava o Colégio como cenário de disputa política, mas areintroduzia no âmbito das convenções partidárias – o que

aliás já vinha ocorrendo na competição entre sublegen-das. Tendo obtido o consorciamento dos delegados à con-venção, isto é, o colegiado pertinente para garantir suaeleição ao governo do Estado, Maluf podia despreocupar-se do segundo colegiado, o Colégio Eleitoral, cujo resul-tado estava garantido por determinação legal.

Na disputa pela Presidência, Maluf esqueceu de con-sorciar o Colégio Eleitoral que, com a reintrodução dadisputa política interpartidária, tornara-se o colegiadopertinente para eleger o presidente. O controle da con-venção partidária ainda proporcionava o voto legalmentecompulsório dos membros do partido. Mas como já nãohavia obstáculos intransponíveis à organização de novospartidos, o controle do governo sobre o Colégio Eleitoralpassara também a ser político e, portanto, sujeito a serdesafiado politicamente. E o foi, bastando para isso a cau-tela e o espírito conciliador de um Tancredo Neves.

O consorciamento não é, portanto, uma estratégia uni-versal. Padece, ao contrário, de limitações substanciais.Em primeiro lugar, é uma estratégia restrita aos colegia-dos fechados e sua dificuldade aumenta com a complexi-dade das instâncias decisórias. É possível consorciar osdelegados à convenção de um partido, mas não é possí-vel consorciar todo o eleitorado. Uma coisa é consorciarmembros individuais de um colegiado como a conven-ção partidária, que se reúne a prazo fixo com funçõesdelimitadas; outra coisa é consorciar os membros de umcorpo legislativo, que envolve bancadas partidárias, fac-ções, anéis de interesses com a sociedade civil.

Em segundo lugar, o consorciamento supõe uma taxamuito baixa de risco, o que o torna incompatível com umadisputa política aberta. Na ausência de regras autoritáriasque proscrevam a disputa política e definam antecipada-mente os vencedores, a incerteza própria das disputas de-mocráticas torna inviável o consorciamento como processopermanente de mobilização e distribuição de recursospolíticos. Os consórcios tendem a se formar e se desfazera cada rodada distributiva. É o toma-lá-dá-cá dos siste-mas simples de trocas, não é um consórcio.

O consórcio não é um sistema de trocas simples, dotipo toma-lá-dá-cá, porque pressupõe um jogo de somamaior do que zero. Por definição, um consórcio políticonão se limita a redistribuir os recursos já apropriados porseus participantes, mas envolve a distribuição de umbem público, cujos custos são assumidos por uma co-letividade mais ampla. A vantagem do consórcio – e oque o torna perverso – é que se pode passar a conta paraa sociedade.

Em terceiro lugar, o consórcio exige também a expec-tativa de ascensão constante do consorciador e, portanto,tende a restringir-se a situações que envolvam o processosucessório a curto prazo. Na impossibilidade de reelei-

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ção, a eleição de um sucessor deve ser encarada como umaetapa necessária e imediata da ascensão do consorciador,senão ele perde a titularidade do consórcio. Um proble-ma óbvio, portanto, coloca-se quando o titular do con-sórcio é a Presidência da República.

Se isto for entendido, é fácil compreender por que aspráticas de consorciamento de apoio parlamentar, comoresposta a um sistema institucional vicioso, dentro de umprocesso político de natureza plebiscitária, levaram aofracasso do governo de José Sarney e precipitaram a que-da do governo Collor. Em primeiro lugar, o país não éum colegiado fechado, não comporta um sistema decisó-rio único, não se pode consorciar todo o sistema políticocomo se consorcia um punhado de delegados que, a exem-plo da célebre convenção da Arena em São Paulo, pôdeser alojada num mesmo hotel.

Em segundo lugar, pode-se consorciar o Congresso,mas somente por prazo determinado, para obter decisõespreviamente estabelecidas. Ainda assim, o consorciamentoteria um alto grau de imprevisibilidade, já que o Parla-mento é parte de um sistema político extremamente com-plexo e a natureza das pressões a que está sujeito cadaparlamentar não permite uma contabilidade simples. Commuito mais razão, obter o consorciamento permanente doCongresso suporia um grau de engajamento dos consor-ciados de tal natureza, envolvendo tal complexidade decontribuições e retribuições, incluindo os interesses doparlamentar, de seu partido, de seu estado, de grupos deinteresse e, por conseguinte, tal grau de deliberação polí-tica de cada um, que mudaria de natureza. Estaríamos tra-tando de coalizão política, e não de consórcio.

Em terceiro lugar, o Congresso só pode funcionar comoum jogo de soma maior do que zero quando é possívelpassar a conta adiante. Isto só ocorre na defesa de inte-resses puramente corporativos dos congressistas. Em to-dos os outros casos, trata-se de um jogo de soma zero emque, portanto, diferentes grupos de congressistas farãoparte de algum setor da sociedade para o qual a conta serámais alta do que para os demais. Assim sendo, a Presi-dência pode consorciar o Congresso toda vez que se tra-tar de obter benefícios mútuos para a classe política, jo-gando, de comum acordo, a conta para a sociedade. Foiassim que Sarney obteve, primeiro, a manutenção do sis-tema presidencial, depois o ano suplementar de seu man-dato. Entretanto, todas as vezes em que o custo a ser pagopela sociedade é pago também, e diferenciadamente, pordiferentes setores do Congresso, isto é, em todas as de-mais, e na falta de uma coalizão política duradoura, é pre-ciso montar uma bancada governamental ad hoc. A ten-tativa de consorciar o Congresso como forma de manteruma maioria governativa redunda, portanto, em recome-çar a cada vez, e sempre a custos crescentes.

Finalmente, na ausência de reeleição, a menos que pre-tenda candidatar-se a vice-rei do Prata, um presidente nãotem como satisfazer uma das exigências estritas de umtitular de consórcio, a garantia de uma posição de maiorpoder. O consórcio teria que ser mobilizado em nomealheio, com todas as incertezas que isso implica.

Na hipótese de ser permitida a reeleição, o consorcia-mento do Legislativo teria um obstáculo a menos em to-dos os níveis de governo. No caso da Presidência, esseobstáculo ao menos tornaria a estratégia do consórcio maisatraente. Teríamos uma situação a prazo fixo e objetivosdeterminados, uma perspectiva de ampliação dos recur-sos consorciados, uma vez que a expectativa de que umgoverno realize mais em seu segundo mandato é genera-lizada.

Entretanto, ainda que o Congresso fosse o colegiadopertinente para garantir a legenda ou a coligação de le-gendas com posição majoritária para apoiar uma candi-datura à reeleição, e nem sempre o é, o colegiado perti-nente para garantir a eleição propriamente dita é outro.E não se pode consorciar o eleitorado nacional.

Não obstante, as práticas de consorciamento parlamen-tar permearam toda a fase sarneyísta do governo do pri-meiro governo da transição, apressaram a derrocada dogoverno Collor e mantiveram-se no governo Itamar. Elastendem a minar a base de apoio parlamentar do governoFernando Henrique, apesar deste ter sido eleito com umamaioria de mais de 60% na Câmara e 75% no Senado.

Entretanto, não foi o consorciamento do Congresso queelegeu Fernando Henrique, mas um pacto político que,primeiro, tornou viável a adoção e o sucesso do Plano Reale, em seguida, permitiu formar uma coalizão capaz de unir,em torno de sua candidatura, forças políticas se estendendodesde o centro-esquerda até a direita. Isto se deu em con-seqüência de um processo político virtuoso, isto é, em queas forças políticas que nele se envolveram colocaram mo-mentaneamente seus interesses imediatos de lado e puse-ram a estabilidade política acima de tudo. A atual fase deestabilidade política corresponde, portanto, à conjunçãoentre um processo político virtuoso e um processo insti-tucional que permanece vicioso.

O que devemos a isso, além, evidentemente, da ado-ção e sucesso do plano de estabilização monetária?

As reformas econômicas, bem sucedidas no plano dasemendas constitucionais, não avançaram no mesmo rit-mo no plano da legislação ordinária. A reforma adminis-trativa e previdenciária estancou. E as reformas de natu-reza política sequer entraram em pauta, com exceção daproposta de reeleição presidencial, que navega por entreos escolhos de uma pletora de interesses pontuais.

Pode-se dizer que a conjunção de um processopolítico vicioso com um quadro institucional vicioso ce-

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CREDIBILIDADE INTERNACIONAL E FATORES DOMÉSTICOS NA ESTABILIZAÇÃO ...

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deu lugar a um processo político virtuoso, que permi-tiu articular uma maioria eleitoral, política e socialpoucas vezes vista em nossa história. Entretanto, esseprocesso político virtuoso continua a evoluir dentro deum quadro institucional vicioso, encontrando rapidamenteseus limites.

A credibilidade externa também contribui para essequadro, embora de forma limitada. É verdade que o Mer-cosul criou incentivos para a estabilização monetária epara a consolidação de uma democracia estável. O Bra-sil, principal obstáculo à estabilidade econômica no ConeSul, cedeu e passou a ser um motor da integração. Mas osincentivos externos, isto é, as pressões estabilizadoras doMercosul, também esgotaram seus efeitos domésticos. Apartir de agora, o Mercosul passará a depender, ele tam-bém, de impulsos de origem doméstica, sob a forma deavanços na modernização das economias dos estados-membros e de suas instituições políticas domésticas.

É do sistema político doméstico que devemos esperaralgum impulso suplementar. A grande interrogação é sa-ber se ainda restará fôlego ao processo político para im-por virtude a um quadro institucional em tudo idênticoàquele em que foi possível escrever uma Constituiçãocomo a de 1988, inevitável eleger Collor, e necessárioderrubá-lo.

NOTAS

1. A entrada de investimentos produtivos na América Latina subiu de 3 bilhõesem 1991 para uma estimativa de 8 bilhões no ano de 1996 (The Economist, nov.1996).

2. O Brasil encontra-se hoje engajado em um número significativo de negocia-ções internacionais no âmbito da integração econômica. Além do Mercosul, con-versações do Mercosul com os países da Aladi, especificamente Chile, Bolívia eVenezuela. Recentemente, o Grupo Andino reivindicou que as negociações coma Venezuela sejam feitas em seu âmbito. Junto com o Mercosul, participa dasnegociações continentais, para futura constituição de uma Área de Livre Comér-cio das Américas e do Acordo Interregional com a União Européia. Além disso,o Japão propôs, recentemente, iniciar conversações com vista à adoção de acor-dos comerciais.

3. Sobre o caso do México ver Rubio e Remes (1992); Rubio (1995) e Vega(1991). Sobre o Canadá ver Magun e Rao (1996).

4. A propósito, ver Thompson Flores Neto (1991).

5. Ver Alfonsín (1994).

6. Embora seja uma exceção honrosa a essa série de mandatos frustrados, Jusce-lino necessitou de um golpe de Estado preventivo para tomar posse e sofreu duastentativas de golpe militar.

7. Quase sempre econômica e social, mais do que política, mas, muitas vezes,também, envolvendo uma demanda de reforma dos costumes políticos

8. A solidez dessas coalizões está em sua capacidade de criar obstáculos, para oque não necessitam mobilizar apoios em torno de propostas substantivas. Capa-zes de mobilizar coalizões de veto, dissolvem-se na eventualidade de propor eadotar políticas alternativas.

9. Os casos mais óbvios são os de Sarney, no Brasil, e Alfonsín, na Argentina.

10. Caso semelhante foi o de Carlos Andrés Perez, em seu segundo mandatocomo presidente da Venezuela.

11. Ou abertamente, como Alberto Fujimori, no Peru.

12. Pode-se argumentar que, pelo menos em casos de confronto, em que pesem

as opiniões em contrário, o presidencialismo brasileiro tende a enfraquecer mui-to mais a Presidência do que o Congresso.

13. Sobre o aspecto essencialmente persuasivo do poder presidencial, ver Forrest(1994).

14. Ver, a esse respeito, os estudos de Stephen Skowronek, Samuel Kernell eMartha Joynt Kumar e Michael Baruch Grossman em Nelson (1983).

15. A noção foi por nós empregada pela primeira vez em 1982 em artigos naFolha de S.Paulo e na revista Novos Estudos (Guilhon de Albuquerque, 1982).

16. A vitória na convenção da Arena, partido de sustentação do regime mili-tar, beneficiária de uma emenda constitucional criando um Colégio Eleitoraldestinado a garantir-lhe aritmeticamente a eleição para os executivos esta-duais, era sinônimo de conquista antecipada do mandato de governador. Nocaso excepcional do Estado do Rio, a mesma regra se aplicava, não à Arena,mas ao MDB.

17. F. H. Cardoso cunhou a expressão “anéis burocráticos”, numa alusão semi-nal, cuja elaboração, entretanto, ficou por conta de seus comentadores. Escolhe-mos a expressão consórcio, para manter a mesma óbvia inspiração das expres-sões “alianças” e “anéis”: o casamento por interesse.

18. Seria oportuno empreender uma análise lingüística e institucional do concei-to de “vez” na política brasileira pós-MDB. O argumento, obviamente, destina-se a esvaziar qualquer critério de mérito ou de oportunidade política na escolhade candidatos a cargos eletivos majoritários. Referendar o candidato “da vez”,como se se tratasse de um jogo de sinuca, equivale a poupar as lideranças, asfacções e a maioria do ônus de uma decisão política. Em partidos como foi oMDB e continuaram sendo seus principais epígonos – com exceção do PT – talmecanismo pode ser útil para preservar a unidade de uma sigla cujo princípio declivagem não é ideológico nem programático e que, portanto, corre o risco defragmentação cada vez que tais clivagens são postas à mesa.

19. O pressuposto aqui é de que toda coalizão política inclui também elementosde consorciamento, mas seu fator aglutinador é ideológico ou programático.

20. O que distingue, aqui, o consorciamento político do consórcio de bens é quenaquele o todo é desproporcionalmente superior à soma das partes.

21. Em todo caso, de uma posição vista como superior, ou que dê acesso a umaposição superior de autoridade. O que, no linguajar da política politiqueira, tra-duz-se por “mudança de patamar”.

22. O que, seja dito en passant, não melhora em nada o ânimo dos consorciadosda primeira hora, muitos certamente ainda aguardando o fruto de seu laboriosoempenho.

23. A nosso ver, “o inadiável momento da verdade” do mito Quércia, “esse mo-mento do confronto do mito com os fatos da vida”... “já se manifestou em 1989quando, governador do mais poderoso Estado do país, com o partido literalmen-te na mão, e sem rivais para unir a maioria do eleitorado, do centro à direita,Quércia encontrou outro obstinado, um obstáculo inabalável na candidatura deUlysses Guimarães. Era a sua vez, e Quércia a deixou passar, por motivos quenunca ficaram muito claros” (Guilhon Albuquerque, 1994).

24. Para tanto, o consórcio precisaria ser “um jogo de somas cumulativas adinfinitum, onde o afluxo de apoios políticos que entram, e de prebendas que saemprecisa ser constante”... Só assim poderia garantir o lema do vento a favor: “quemestá dentro, apóia; quem está fora, adere; quem tem a perder, se compõe; quemestá contra, passa-se por cima” (Guilhon Albuquerque 1994).

25. Com exceção do Estado do Rio, que propiciava a mesma garantia ao candi-dato registrado pelo MDB.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMA: A REFORMA DO ESTADO NO BRASIL...

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EM BUSCA DE UM NOVO PARADIGMAa reforma do Estado no Brasil dos anos 90

o decorrer da década de 80, sob o impacto de fa-tores externos e internos, redefiniu-se a agendapública brasileira. Choques externos, como as

crises do petróleo, o colapso do sistema financeiro inter-nacional, os efeitos associados à 3a revolução industriale à globalização traduziram-se na pressão das agênciasinternacionais em prol das políticas de estabilização e ajus-te, que caracterizariam o debate público em âmbito mun-dial (Tavares, 1993:21-75).

A despeito, porém, da relevância dos fatores exóge-nos, a redefinição de prioridades em favor de uma novaagenda não pode ser explicada em função exclusivamen-te do impacto da estruturação de uma nova ordem mun-dial. É preciso também considerar os processos internosque, ao longo do tempo, contribuíram para o desgaste damatriz político-institucional que moldou a ordem estatis-ta sob cuja égide evoluiria a industrialização por substi-tuição de importações. Eis porque, em contraposição àsanálises dicotômicas, parece mais apropriada uma pers-pectiva que integre os dois planos de análise.

Entre os novos itens da agenda, o tema da reforma doEstado adquiriu centralidade crescente a partir dos últi-mos anos da década de 80. Ao lado do agravamento doprocesso inflacionário, a consciência da deterioração doantigo modelo de Estado transformou-se num dos princi-pais desafios que se impuseram progressivamente aos go-vernos da Nova República. Apesar de incorporado à agen-da de prioridades, este aspecto da pauta de reformasrevelou-se particularmente polêmico, enfrentando sériasdificuldades de implementação, o que, em alguns momen-tos, implicou a paralisação das discussões.

Como toda reforma que se inclui na categoria de bempúblico, a reestruturação do Estado gera problemas de ação

coletiva, já que uma vez realizada, seus benefícios se es-tendem automaticamente a todos os indivíduos, quer te-nham ou não colaborado para sua consecução. Assim,apesar de resultar em ganhos para todos, a cooperaçãoexige sacrifícios que, do ponto de vista da racionalidadeindividual, não se justificam. Além desta dificuldade deordem geral, alguns aspectos mais específicos geram maiorresistência por acarretarem altos custos para grupos loca-lizados, enquanto os benefícios apresentam-se difusos(Geddes, 1994b).

O fim do governo Sarney assistiu à configuração doconsenso negativo em torno da rejeição do antigo forma-to estatista-concentrador. Entretanto, persistiriam as di-vergências quanto ao tipo de Estado a ser construído. Talcontrovérsia, ainda em curso, envolve visões distintas emesmo contraditórias acerca das metas e critérios que de-vem nortear a proposta de reforma.

No esforço de contribuir para o aprimoramento dostermos em que o debate está colocado, gostaríamos de le-vantar alguns pontos, incorporando à análise dimensõesque até o momento têm sido desconsideradas. Para tanto,propomos como ponto de partida o esforço de pensar areforma do Estado em estreita conexão com o tema daconsolidação democrática.

Esta preocupação torna-se pertinente, se considerar-mos que, tratada de maneira isolada, como ocorre comfreqüência, ou exclusivamente em função de seus aspec-tos administrativos, a reforma do Estado tende a ser con-duzida de forma a acentuar as tensões com os requisitosda institucionalização da democracia. Desta forma, o ob-jetivo de reformar o Estado é parte intrínseca de um pro-cesso mais amplo de fortalecimento das condições degovernabilidade democrática.

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ELI DINIZ

Professora do Instituto de Economia da UFRJ, Pesquisadora do Iuperj

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Essa perspectiva impõe desde logo uma ruptura comdois tipos de dicotomias que turvam as análises correntes.De um lado, cabe refutar a polaridade Estado-mercadoque comporta, em seus pontos extremos, visões idealizadasacerca do reforço ou da atenuação do intervencionismoestatal.1 À concepção estatista, que vê o Estado comopromotor do bem público e representante dos interessesgerais, pairando acima dos particularismos, contrapõe-sea defesa da primazia do mercado como fator de eficiênciae racionalidade. Se a visão maximalista, ainda presa àmatriz estadocêntrica, implica o imobilismo e a pre-servação do status quo, a posição minimalista, ao reduzira reforma ao enxugamento do Estado, pode conduzir aoaumento da ineficiência pela mutilação do aparelho estatal.De outro lado, é preciso escapar da rigidez derivada dadicotomia racionalidade governativa versus imperativosdemocráticos, marcada pela oposição entre a lógicaconcentracionista e discricionária do poder estatal e adinâmica descentralizadora, plural e competitiva do jogodemocrático.

De forma similar, impõe-se a ruptura com o paradig-ma tecnocrático, responsável pelo predomínio de abor-dagens reducionistas da crise do Estado, implicando oreforço de visões unilaterais no encaminhamento das te-rapias propostas. Tal paradigma concebe eficiência go-vernamental em termos de concentração, centralização efechamento do processo decisório; eficácia de gestão, emtermos de insularidade burocrática; e, finalmente, auto-nomia do Estado, enquanto capacidade de isolar-se daspressões do mundo da política. O ideal da burocracia in-sulada do escrutínio público, ao aprisionar o Estado à metainatingível de situar-se acima dos conflitos, termina porproduzir mais irracionalidade (Bresser Pereira, Maravalle Przeworski, 1993). Ademais, é preciso lembrar que aeficácia da ação estatal não depende apenas da capacida-de de tomar decisões com presteza, mas sobretudo daadequação das políticas de implementação, o que, por suavez, requer estratégias voltadas para produzir viabilidadepolítica para as propostas e programas governamentais.Sob essa ótica, a criação de arenas de negociação e a ca-pacidade de articular alianças e coalizões aparecem comoaspectos relevantes da gestão estatal.

A CRISE DO ESTADO NO BRASIL:DIAGNÓSTICOS E TERAPIAS

Como ressaltamos, a partir dos anos 80, a crise do se-tor público foi reconhecida como um dos problemas maisprementes e mais gerais em face dos requisitos da ordeminternacional em mutação. Um dos principais fatores apon-tados foram os problemas fiscais enfrentados por quasetodos os governos dos países centrais e periféricos, que

se traduziram por déficits e dívidas em crescente ritmode expansão, criando situações de ameaça de colapso dasfinanças públicas.

Nesse contexto, a ascensão de governos conservado-res em países de posição estratégica, no jogo de podermundial, como os Estados Unidos, a Inglaterra e o Cana-dá, criou condições para o predomínio do diagnósticoneoliberal, segundo o qual o gigantismo estatal e o ex-cesso de gastos seriam o grande mal a ser debelado. Coe-rentemente com esse tipo de interpretação, a terapia pro-posta consistiu na drástica redução do tamanho do Estado,ao lado do esforço para restaurar a primazia do livre mer-cado nas decisões relativas às alocações de recursos.

Embora a ineficiência do setor público freqüentemen-te esteja associada ao excesso de funções, agências, car-gos e funcionários estatais, o problema é mais complexoe não se reduz à fórmula refluxo do Estado-restabeleci-mento do império do mercado.

Além das tendências de natureza mais geral, é precisotambém considerar as especificidades do processo de cor-rosão da antiga ordem. No caso do Brasil, a partir de umaperspectiva histórica, um fator primordial é, sem dúvida,a crise fiscal, cujo aprofundamento colocou em xeque opadrão de financiamento da matriz protecionista e autár-quica que, num prazo de 50 anos, transformou o Brasilnum país urbano-industrial (Bresser Pereira, 1992:55-70).Em segundo lugar, é preciso levar em conta o complexode fatores estruturais que conduziram à corrosão da or-dem, em seus diferentes níveis, tais como as formas pre-dominantes de articulação entre o Estado e a sociedade,as relações capital-trabalho, o padrão de administraçãodo conflito distributivo e a modalidade de relacionamen-to entre os setores público e privado.

Esse processo de desgaste tem, pois, raízes profundase causas complexas, o que torna inapropriadas aborda-gens conjunturais e reducionistas. Sob o impacto do sur-to desenvolvimentista dos anos 70, ainda sob o regimemilitar, o país experimentou mudanças profundas, evolu-indo para um sistema híbrido, caracterizado pela coexis-tência de antigas e novas configurações organizacionaise institucionais, processo que já se encontrava em estadoavançado quando eclodiram os primeiros sinais de rever-são de tendências na esfera internacional (Santos, 1985).Assim, discordando das interpretações dicotômicas, pro-pomos uma abordagem que integre os dois planos da aná-lise, associando à dimensão externa os condicionamen-tos internos relacionados à corrosão da ordem pregressa(Diniz, 1991 e 1993).

No contexto latino-americano, o caso brasileiro é ilus-trativo do processo de extenuação do Estado como fatorde contenção de uma sociedade civil que se expandiu ace-leradamente no decorrer das décadas de 70 e 80 e adqui-

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riu crescente densidade organizacional. Por esta razão, odescompasso entre Estado e sociedade deve ser situadono cerne da presente crise. O hiato entre uma institucio-nalidade estatal rígida, dotada de fraco potencial de in-corporação política, e uma estrutura social cada vez maiscomplexa e diferenciada exacerbou as tensões ligadas aoprocesso de modernização. Instaurou-se um sistema mul-tifacetado e multipolar de representação de interesses,através do qual a sociedade extravasou do arcabouço ins-titucional vigente, implodindo o antigo padrão de con-trole corporativo do Estado sobre a sociedade.

Combinando formatos corporativos, clientelistas e plu-ralistas, ou ainda estilos predatórios e universalistas deinteração entre atores, esse sistema expressaria um pro-fundo processo de reordenamento social, que ainda nãoesgotou suas potencialidades. Entretanto, algumas tendên-cias podem ser identificadas. Entre estas, sobressai o ob-soletismo da matriz estatista-concentradora, ao lado daatualidade de um padrão mais descentralizado e flexívelde ação estatal.

Um fator conjuntural viria a agravar esse quadro dedificuldades, acentuando o divórcio Estado-sociedade. Aprioridade atribuída aos programas de estabilização eco-nômica e o acirramento dos conflitos em torno da distri-buição de recursos escassos terminaram por esvaziar im-portantes itens da agenda pública, sobretudo aquelesrelacionados com as reformas sociais. Não só a definiçãode uma estratégia de crescimento econômico, como asperspectivas de atenuação das desigualdades sociais tor-naram-se metas cada vez mais distantes. A urgência atri-buída ao controle da inflação se fez acompanhar do aban-dono dos projetos igualitários, tão enfatizados pela AliançaDemocrática responsável pela instauração da Nova Re-pública. Estes seriam crescentemente avaliados sob o ân-gulo de sua extemporaneidade.

De acordo com a nova orientação, em nome de um en-foque racional e não populista acerca da pauta de priori-dades, a exigência de maior inflexibilidade na gestão dosrecursos públicos viria a desaconselhar qualquer posturafavorável ao aumento dos gastos sociais. Em conseqüên-cia, privilegiou-se uma agenda minimalista, em francodesacordo com a dinâmica democratizante, cujos efeitosseriam o alargamento da participação, a diversificaçãodas demandas e a multiplicação dos canais de vocali-zação à disposição dos diferentes segmentos da socie-dade (Diniz, 1995a).

Assim, se a abertura democrática propiciou um au-mento considerável da mobilização social e política, oêxito das políticas econômicas foi interpretado em ter-mos da necessidade de manter a efetividade dos meca-nismos de controle e disciplina, de forma a reduzir osfatores de instabilidade.

DEMOCRACIA, GOVERNABILIDADEE CRISE DO ESTADO

Segundo a perspectiva aqui adotada, portanto, a cri-se institucional deve ser definida em função do apro-fundamento da defasagem Estado-sociedade, ao ladoda ineficácia do poder público na gestão dos proble-mas mais prementes – como o desequilíbrio econômi-co, a desigualdade, a deterioração social e os altos ín-dices de exclusão e violência. Tal enfoque, ademais,impõe uma nova forma de caracterizar a crise de go-vernabilidade, outro tema de alta visibilidade no deba-te nacional. As interpretações difundidas pelos meiosde comunicação, bem como as análises acadêmicas,tenderiam a atribuir as causas dessa crise a fatores ex-ternos ao próprio Estado.

Desta forma, apontando a ingovernabilidade do paíscomo um dos principais desafios da atualidade brasileira,o diagnóstico dominante enfatizaria os efeitos perversosadvindos da democratização crescente da ordem social epolítica. Explosão de demandas, saturação da agenda, ex-cesso de pressões desencadeadas pelo aumento acelera-do da participação, expansão desordenada do quadro par-tidário, a prevalência de uma dinâmica de proliferação efragmentação das estruturas partidárias, a indisciplina doCongresso e o desequilíbrio entre a capacidade de res-posta do governo e o poder de pressão da sociedade se-riam os aspectos mais destacados pela maioria dos enfo-ques.2 Nessa linha de raciocínio, a liberação das demandasreprimidas pelos 20 anos de regime autoritário e a exa-cerbação das expectativas por políticas sociais mais efe-tivas restringiriam os graus de liberdade do governo datransição acossado pela multiplicidade de pressões con-traditórias, gerando paralisia decisória e perda de credi-bilidade (Lamounier, 1991 e 1992; Martins, 1994).

Em contraposição a esta abordagem que centra o diag-nóstico da crise de governabilidade nos fatores responsá-veis pela paralisia decisória, gostaríamos de chamar a aten-ção para um outro aspecto envolvido na produção daspolíticas públicas, qual seja, as dificuldades inerentes aoprocesso de implementação. Sob esse aspecto, parece-mepertinente deslocar o foco para o contraste entre a hipera-tividade decisória da cúpula governamental e a falênciaexecutiva do Estado. O que se observou, ao longo da úl-tima década, foi basicamente a incapacidade do governono sentido de implementar políticas e fazer valer suasdecisões. Assim, os pontos de estrangulamento estão lo-calizados sobretudo no âmbito da execução e da garantiada continuidade das políticas formuladas. O referido de-sequilíbrio tem por base a hipertrofia da capacidade le-gislativa concentrada na alta burocracia governamental,cuja produção legal, a partir do início do governo Sarney,

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foi sistematicamente superior à produção média do Con-gresso (Monteiro, 1995a e 1995b).

Ao contrário do que ocorreu em alguns países em queas políticas de ajuste dos anos 80 apoiaram-se em pactosde ampla envergadura, a opção das elites estatais brasilei-ras privilegiou vias coercitivas de implementação, o quese traduziu na preferência por instrumentos legais capa-zes de garantir a precedência do Executivo em face do po-der Legislativo. Deu-se continuidade à tendência que pre-valeceu sob o regime militar (1964-1985), de governaratravés de Decretos-Leis, substituídos, a partir da Consti-tuição de 1988, pela figura das Medidas Provisórias (MPs).Estas foram concebidas como instrumento adequado aconjunturas excepcionais e situações emergenciais. Porém,cedo passaram a ser utilizadas como meio rotineiro degoverno, tendo sido empregadas para a execução de umamplo espectro de políticas públicas, incluindo não só ospacotes voltados para a estabilização econômica e os pro-gramas de ajuste, como também políticas setoriais, tantona esfera econômica, como social e cultural.

Desta forma, no que tange à produção de políticas, oque se tem observado é a proliferação de decisões, quesão tomadas com total liberdade, sem consulta e sem trans-parência, por um pequeno círculo, que se localiza em ins-tâncias enclausuradas na alta burocracia. Tais esferas ad-ministrativas situam-se fora do controle político e doescrutínio público. Exemplificando, entre 1985 e 1988,foram promulgados 376 Decretos-Leis, enquanto após apromulgação da nova Constituição, entre fins do gover-no Sarney e os primeiros cinco meses do governoFernando Henrique Cardoso, foram editadas e reeditadasmais de nove centenas de MPs (Diniz, 1995a). Segundolevantamento mais recente, verifica-se uma tendência cres-cente à utilização desses instrumentos legais, ao longo dosquatro governos da Nova República.

A Tabela 1 é indicativa do grau em que o Executivoefetivamente usurpou a função legislativa, transforman-

do a Câmara numa instância subordinada e atrelada à ini-ciativa da burocracia governamental. A eficácia na admi-nistração da crise econômica foi uma das razões alegadaspara o reforço da autonomia estatal, já que o jogo políti-co-partidário seria percebido como séria ameaça ao bomdesempenho do governo. Nessa mesma linha, o insuces-so tenderia a ser atribuído à interferência da política. En-tretanto, entre meados da década de 80 e o início dos anos90, as equipes técnicas dos vários ministros responsá-veis pelos sucessivos programas de estabilização eco-nômica gozaram de alto grau de insularidade burocrá-tica, não se verificando, em nenhum dos casos,obstrução significativa derivada da dinâmica parlamen-tar. Desta forma, o fracasso daqueles planos não podeser explicado em função da resistência ou do poder deveto do Congresso, a despeito do grau de fragmenta-ção partidária existente em cada momento (Fiori,1993:158).

Cabe ainda ressaltar que o Executivo determina a agen-da do Legislativo e o conteúdo da produção legal. Do to-tal de leis aprovadas entre 1989 e 1993, 78% originaram-se da iniciativa do Executivo, no exercício de suasprerrogativas constitucionais (Figueiredo e Limongi,1995:34). Tais evidências sugerem que o Executivo, defato, tende a governar ad referendum do Congresso, jáque as MPs, embora dependam da aprovação do Legisla-tivo para terem validade definitiva, entram de fato emvigor imediatamente após a sua promulgação, podendoser reeditadas, caso não sejam aprovadas em prazo de 30dias, prerrogativa que o Executivo pode usar indefinida-mente. Desta forma, os congressistas, ainda que quises-sem manifestar sua discordância, ver-se-iam, na prática,impedidos de fazê-lo, dado o alto custo político de votarcontra uma dessas medidas. Sob tais condições, o argu-mento que vê o Executivo paralisado pelo poder de blo-queio de um Legislativo agressivo e indisciplinado care-ce de sustentação empírica (Diniz, 1995a; Monteiro, 1995ae 1995b; Figueiredo e Limongi, 1994).

O alto grau de discricionariedade do governo, ao sub-meter o Legislativo a uma lógica que lhe escapa do con-trole, produz incentivos ao comportamento irresponsáveldo Congresso, reforçando a tendência populista dos par-lamentares. A assimetria de poder degrada as relaçõesExecutivo-Legislativo, colocando este último a reboquedas iniciativas do primeiro. Em conseqüência, estimulam-se as trocas clientelistas, com o amesquinhamento da prá-tica parlamentar e o aprisionamento do Executivo pelalógica da reciprocidade. O uso irrestrito do poder de de-creto, além disso, ao tolher o debate público, impedir atransparência e restringir a informação disponível, reduzainda mais o já baixo grau de accountability dos atos go-vernamentais, num sistema político como o brasileiro ca-

TABELA 1

Número de Decretos-Leis eMedidas Provisórias (Edição e Reedição)

Decretos-Leis eMedidas Provisórias Sarney Collor Itamar FCH (1995) Total

Total 523 159 416 450 1.548

MPs (editadase reeditadas) 147 159 416 450 1.172

Decretos-Leis 376 - - - 376

Fonte: Santos (1996:10); Diniz (1995a:395-6).

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racterizado por um grau significativo de fragilidade ins-titucional.

Entretanto, o voluntarismo da elite estatal não afetaapenas a esfera parlamentar, senão que seus efeitos per-versos atingem o próprio governo, já que, a longo prazo,a credibilidade de seus atos tende a ser abalada. É precisoconsiderar que o excesso de poder discricionário abre ocaminho para práticas de experimentação irrestrita, dadaa inexistência de freios institucionais, favorecendo umapolítica errática, de avanços e recuos, ensaio e erro, in-troduzindo mudanças bruscas nas regras do jogo, na ten-tativa de corrigir erros de percurso ou de reduzir resis-tências, sem os percalços da negociação. Assim é que,durante os dois primeiros governos da Nova República,voluntarismo e experimentação, levados às últimas con-seqüências, combinaram-se gerando efeitos adversos, queproduziriam o agravamento da inflação, após o insucessode cada plano de estabilização.

O governo Collor representou o auge desta tendência,caracterizando-se pela tática das ações fulminantes e imo-bilizando o Congresso pela política do fato consumado(Diniz, 1990a e 1990b). Munindo-se de poderes ilimita-dos de intervenção na ordem econômica e na vida social,na guerra contra a inflação, o presidente Collor impôs aopaís, através de Medida Provisória, um pacote econômi-co que transgrediu preceitos constitucionais, violou ga-rantias e direitos básicos da cidadania, através de medi-das, como o confisco dos ativos financeiros, determinandode fato a suspensão do Estado de Direito. Em nome doEstado mínimo, ilustrando de forma paradigmática o pa-radoxo neoliberal, aprofundou a centralização e a con-centração de poderes na alta burocracia, estabelecendo umgoverno plenipotenciário. Ao afirmar o caráter inegociávele intocável do Plano, transformou o Congresso num apên-dice do Executivo. Após ser promulgada, entrando ime-diatamente em vigor, a MP do Plano Collor I produziriaefeitos avassaladores na economia e na sociedade, invia-bilizando de fato qualquer reação do Congresso, dado oalto custo político de uma ação de veto. Portanto, esseinstrumento legal acarretaria efetivamente o cerceamen-to da independência do Legislativo, subvertendo o prin-cípio da separação dos poderes.3

Cabe ainda ressaltar um outro ponto. O aumento dograu de incerteza relativo ao referencial legal-adminis-trativo estimula o comportamento oportunista dos agen-tes econômicos, acentuando os problemas de ação coleti-va necessariamente associados às políticas de estabilizaçãoe ajuste estrutural. Como é sabido, na qualidade de benspúblicos, o produto de tais políticas desencadeia táticasdefensivas e ações não cooperativas por parte dos gruposafetados.4 A insegurança provocada pela instabilidade dasregras exacerba essa tendência.

Ao contrário, portanto, da visão mais corrente, o argu-mento aqui proposto sustenta que a crise do poder públi-co não pode ser explicada sem que sejam levadas em con-sideração as especificidades do processo de constituiçãodo Estado brasileiro e as tensões internas do modelo his-toricamente consolidado que, no decorrer do tempo, pro-vocariam sua erosão. Segundo essa nova concepção, opadrão de expansão, o modo de operação, o estilo deação cristalizados no decorrer das várias fases do anti-go modelo de industrialização produziriam as irracio-nalidades e ineficiências consubstanciadas na crise doEstado.

Com o advento da Nova República, tais problemasseriam agravados pelo estilo tecnocrático de gestão, a quenos referimos que se tornou dominante. Assim, a tensãoentre as formas de alcançar os objetivos da nova agendapública – estabilização econômica-reinserção internacio-nal e institucionalização da democracia – tornou-se parteconstitutiva da crise do Estado, já que os meios postosem prática para realizar as metas econômicas dificultariamo aprimoramento das instituições democráticas. Eficáciana administração da crise e consolidação democráticaforam conduzidas como alvos contraditórios. Ademais, odiagnóstico da crise de governabilidade em termos defatores exógenos à máquina governamental – tais como,a sobrecarga de pressões e as demandas advindas do jogodemocrático – produziria um círculo vicioso. Para evitara paralisia decisória proveniente do que seria interpreta-do como os excessos da democracia participativa seriamacionadas táticas de reforço do Executivo pela via da ex-pansão de suas prerrogativas, concentração do poder de-cisório na alta cúpula governamental e enclausuramentoburocrático das elites estatais. A insularidade da burocra-cia, por sua vez, reiteraria a tendência histórica ao alija-mento da arena parlamentar-partidária.

Assim, cabe uma ruptura com a matriz restritiva e ovezo reducionista das concepções correntes acerca dasquestões relacionadas à governabilidade e à crise do Es-tado. A esta tendência gostaria de contrapor a propostade uma perspectiva integrada. Trata-se de uma aborda-gem que enfatiza o teor pluridimensional da governabili-dade, compreendendo não só os aspectos técnicos e ad-ministrativos da atividade de governar, como também adimensão política. Não basta o aperfeiçoamento das táti-cas de impor decisões pelo alto. A eficiência não se esgo-ta na agilidade da tomada de decisões, mas requer tam-bém capacidade de obter aquiescência aos comandosestatais, de garantir a observância dos preceitos legais efazer valer as decisões governamentais. No que se refereà crise do Estado, ao invés de atrelar a explicação à buscade causas externas, é preciso incorporar à análise os fato-res endógenos ligados ao funcionamento da máquina es-

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tatal e ao padrão de gestão pública dominante. Além deelevar a competência administrativa, impõe-se criar eexpandir as condições de “governance” do Estado.

OS PARADOXOS DA VISÃO TECNOCRÁTICA:UM EXEMPLO PARADIGMÁTICO

O insucesso continuado na administração da crise eco-nômica constituiria permanente ameaça à consolidação dademocracia, estando na raiz da crise de governabilidadeque afetou o governo Sarney. Ao gerar perda crescentede credibilidade das instituições políticas, o mau desem-penho na condução da política econômica teria, portanto,conseqüências políticas adversas. Uma estratégia de go-verno que não leve em conta a essencialidade desta rela-ção entre economia e política comete desde logo um errode avaliação que pode trazer resultados tão inesperadosquanto perversos.5 É ainda quanto a este ponto que a dis-tinção entre estratégias negociadas e impositivas de ges-tão da crise alcança toda a sua significação.

Um exemplo já clássico de via negociada é o da Espa-nha, pós-queda do regime franquista, através dos pactosde Moncloa levados a efeito entre 1977 e 1982.6 Sob aliderança de Adolfo Suárez, o governo procurou encon-trar uma saída para a crise econômica, estreitando simul-taneamente os vínculos com a sociedade. Neste caso, aopção por uma abordagem gradualista e de alcance geralse fez em estreita conexão com os objetivos de integrar aeconomia e a política como aspectos de uma mesma rea-lidade sobre a qual tratava-se justamente de aplicar osinstrumentos de política econômica. Evidentemente, nãocabe qualquer tipo de idealização do modelo espanhol,que teve, sem dúvida, seus acertos e erros. Importa ape-nas destacar alguns dos traços característicos da soluçãonegociada, para que fique mais claro o argumento centralaqui desenvolvido.

Segundo este enfoque, a administração da crise deveser concebida como parte de uma estratégia mais globalde reforço da institucionalidade democrática pela abertu-ra de espaços de negociação sistemática envolvendo asprincipais forças políticas e sociais. A tática de acordos epactos privilegia, pois, um procedimento eminentementepolítico como forma de viabilizar o ajustamento à crise.Mais precisamente, o que se procura é alcançar um equi-líbrio entre a viabilidade econômica do programa de ajustee sua exeqüibilidade política. Tal equilíbrio não se obtémespontaneamente, senão que resulta de uma estratégiadeliberada de busca do consentimento ativo dos grupossociais estratégicos, trabalhadores e empresários, que for-mam uma das partes do tripé constituído por governo,partidos e organizações de cúpula representantes do ca-pital e do trabalho. A criação desse espaço de negociação

se faz acompanhar da definição de um novo marco insti-tucional que torne possível a manifestação, em novas ba-ses, das relações industriais e da ação sindical. A criaçãode mecanismos capazes de induzir à co-responsabilidadena busca de soluções e saídas para os problemas maisprementes, bem como o envolvimento dos partidos deforma a suscitar o respaldo das forças políticas, constituemaspecto crucial deste modelo. Assim, a alternativa daconcertação destaca-se pelo estreitamento dos nexos en-tre o governo e a sociedade, configurando-se uma siste-mática através da qual os principais atores somam esfor-ços em prol do prevalecimento de práticas cooperativas.

Um segundo ponto relevante refere-se à flexibilizaçãoe à maleabilidade do programa elaborado para o enfren-tamento da crise, aspecto integrante da estratégica deimplementação. Assim, os chamados Pactos de Moncloaenvolveram acordos sucessivos, desdobrando-se em vá-rias etapas de negociação, entre 1977 e 1982, de modo apermitir os ajustamentos e correções de rumo inevitáveisno decorrer da execução das principais medidas. Ao acor-do inicial assinado em 1977 entre o governo espanhol, osprincipais partidos, as centrais sindicais comunista e so-cialista e lideranças empresariais seguiram-se, entre ou-tros, o acordo básico de 1979, envolvendo a recém-for-mada associação de cúpula do empresariado e a centralsindical socialista; o de 1980, resultante de negociaçõesentre as centrais sindicais em torno de alguns ajustamen-tos na política econômica; e o Acordo Nacional sobreEmprego, em 1981, entre governo, empregadores e sin-dicatos (Péres-Dias, 1987).

Em terceiro lugar, a estratégia de pacto procura alcan-çar um certo equilíbrio entre ganhos e perdas relativos aosvários grupos, bem como entre sacrifícios e benefíciospertinentes a cada segmento social. Retomando o exem-plo espanhol, a negociação desenrolou-se em torno de umpacote que envolvia um conjunto relativamente articula-do de políticas econômicas e sociais, permitindo a trocada moderação nos aumentos salariais e nas margens delucro das empresas pelo atendimento de certas demandassubstantivas e procedurais dos principais grupos, como amanutenção dos salários reais, a concessão de benefíciossociais, uma política de reconversão industrial, ou, ainda,o direito de ter voz no processo decisório (Roca, 1987).

Finalmente, a institucionalização de um espaço paraas discussões em torno de um plano global para a admi-nistração da crise cria condições favoráveis para a defi-nição de um consenso mínimo em torno de um novo pro-jeto de sociedade, conjugando modernização, recuperaçãoeconômica e fortalecimento das instituições democráticas.

No Brasil, como ressaltamos nos capítulos anteriores,inexistem as condições históricas e institucionais queviabilizem pactos de ampla envergadura. Entretanto,

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entre as várias estratégias intermediárias, optou-se pelavia oposta, qual seja, a via impositiva de implementação.Nos dois primeiros governos da Nova República, predo-minou a preferência pelo tratamento de choque e pelassoluções de teor radical, daí decorrendo a opção por pro-cedimentos em que o sigilo, o fator surpresa e a preva-lência de critérios técnicos seriam peças essenciais. OPlano Collor I é um caso paradigmático, observando-se aexacerbação dos traços voluntaristas e impositivos implí-citos no modelo. Tais características foram particularmentemarcantes no decorrer do primeiro momento de execu-ção do programa, que se estendeu aproximadamente atéas eleições de outubro de 1990. Desta forma, o privile-giamento de um estilo tecnocrático de gestão da econo-mia, na fase de concepção, teve como seu desdobramen-to natural a escolha da via coercitiva para a implementaçãodo plano governamental.

Foi num contexto de forte expectativa e de renovadaesperança que se deu a formulação do novo plano de es-tabilização econômica. Exacerbando a vocação de auto-nomia do presidente recém-eleito, a concepção do Planoprivilegiou critérios estritamente técnicos. Fiel ao estilotecnocrático, que valoriza uma abordagem neutra easséptica, a equipe pautou-se pelo rigor lógico das medi-das delineadas, pela consistência interna dos modelosformulados, enfatizando unilateralmente as metas imedia-tas a serem alcançadas. Coerente com esta orientação,aspectos cruciais foram abstraídos, tais como, a relevân-cia das variáveis institucionais, a compatibilidade da for-ma de implementação com o processo de democratizaçãoem curso, a adequação das medidas preconizadas em facedos preceitos constitucionais em vigor, as conseqüênciassociais e políticas que a execução do Plano acarretaria,ou, ainda, os aspectos éticos envolvidos. Este alto graude abstração, operando uma simplificação extrema darealidade, permitiu certamente uma proposta ciosa demanter um teor coerente em seus propósitos imediatos,sem se perder em desvios ou vias secundárias. Possi-bilitou, sobretudo, um programa exemplar em termos deousadia no manejo dos instrumentos de controle da infla-ção. Tais características refletiram-se no impacto provo-cado pelo anúncio do novo plano. Pelo grau de rupturacom a situação anterior, resultante da execução das me-didas, pelo desmantelamento drástico da ordem preceden-te, pelo caráter irreversível das mudanças postas em mar-cha, o Plano foi percebido como uma intervenção denatureza revolucionária. Falou-se em “revolução capita-lista-democrática”, “revolução social-democrata” e “re-volução neoliberal”.7

Na verdade, o Plano Collor constituiu um experimen-to paradigmático de “reforma pelo alto”, norteado para ocombate à inflação e para a destruição dos pilares do

modelo estatista de desenvolvimento. Seguiu o padrãoanterior de intervenção tecnocrática, que privilegia amudança induzida pela via administrativa, descartando avia política, esta percebida como portadora de vícios eperversões capazes de comprometer a perfeição, virtudee eficácia do enfoque técnico. Implantada por um ato deforça, por um restrito núcleo dotado de plenos poderesinserido na alta burocracia, a expectativa era a de que amudança tornar-se-ia irrefreável pelo rigor no manejo dosinstrumentos necessários para dar-lhe vida. Imposta peloalto, a grande transformação seria conduzida com baseno poder pessoal do presidente, que lhe emprestaria legi-timidade. A ênfase deslocou-se para os aspectos carismá-ticos da figura do presidente, que vinha investindo forte-mente na construção da imagem de guia providencial,agraciado pelo dom da infalibilidade e da onipotência.Retomou-se o clima da campanha eleitoral, em que a iden-tificação com a candidatura Collor não se fez pela adesãoa uma proposta ideológica claramente explicitada, masapelou-se a uma idéia-força representada pelo binômiorenovação-moralização. A mensagem de que o mundonovo seria construído pelas mãos do líder dotado de qua-lidades excepcionais e descomprometido com a antigaordem revelou-se poderosa como elemento catalisador dainsatisfação generalizada. Um aspecto adicional foi amobilização dos “descamisados” pelo reforço da imagemde guardião dos socialmente desvalidos e despossuídoscontra a arrogância dos poderosos.

A ênfase na centralidade do chefe de Estado foi facili-tada pelo regime presidencialista em vigor, dada a sua fortetradição voluntarista e imperial. Embora calcado no mo-delo norte-americano, o presidencialismo brasileiro temalgumas especificidades, entre as quais a garantia da su-premacia do Executivo pelo permanente reforço de suasprerrogativas. Este traço agrava as dificuldades inerentesa todo regime presidencialista de conviver com o princí-pio do equilíbrio dos poderes. Historicamente, o presi-dencialismo no Brasil tenderia a esvaziar o Poder Legis-lativo, chegando, em alguns momentos, a neutralizá-locompletamente. Além disso, trata-se de um presidencia-lismo avesso à decisão colegiada e ao compromisso. Oinstituto da Medida Provisória iria exacerbar essa tendên-cia. Com a posse do governo Collor agravou-se o dese-quilíbrio entre os poderes, observando-se substancial au-mento da autoridade discricionária do presidente.

Cabe ainda salientar um outro ponto. A concepção doPlano concentrou-se na definição das medidas voltadaspara a consecução de seus objetivos imediatos ligados àredução drástica da inflação, sem traçar metas de maislongo prazo. Desta perspectiva resultou a ausência depolíticas setoriais e de propostas voltadas para a recu-peração econômica do país. Faltou, portanto, um projeto

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de fundação da nova sociedade a ser construída a partirdo desmantelamento da antiga ordem. O Programa con-centrou-se na destruição do sistema anterior. O que pre-dominou foi uma concepção de governo como adminis-tração do presente, implicando uma intervenção nocurtíssimo prazo, desvinculada de um esforço de planeja-mento do futuro pelo estabelecimento de políticas de mé-dio e longo prazos. Finalmente, a ênfase no combate à in-flação a qualquer preço obscureceu a percepção dapremência da questão social. Desta forma, o governo abriumão do recurso a políticas compensatórias, o que agravouos custos sociais e políticos do Programa, a ponto de com-prometer a viabilidade de sua execução a médio prazo.

Coerente com a orientação prevalecente durante a fasede formulação, optou-se por uma via de implementaçãosegundo o estilo tecnocrático, que vê na gestão exclusi-vamente técnica a chave para a eficácia e o êxito do pro-cesso de execução. A revitalização da ideologia tecno-crática, centrada na idéia da eficiência e neutralidadegarantidas pela competência técnica, desde que protegi-da das pressões políticas, forneceria a justificativa daspráticas administrativas recriadas pelo governo Collor. Osriscos desta postura são óbvios, já que o processo de im-plementação é essencialmente político. A recusa em re-conhecer este fato criou dificuldades adicionais para aexecução do Plano, tendo em vista o processo de consoli-dação democrática em curso. Estava concluída apenas aprimeira etapa da transição, com a destruição da ordemautoritária e a promulgação da nova Constituição desti-nada a instaurar as bases do regime democrático. O afas-tamento da estratégia de negociação, considerada inviá-vel ou indesejável, levou à escolha de um estilo deimplementação calcado no reforço dos instrumentos decontrole e de coação, na suposição de que não só é possí-vel, como mais adequado, disciplinar e induzir o com-portamento dos agentes econômicos pela utilização dosinstrumentos coercitivos.8 Levado às últimas conseqüên-cias, tal procedimento acarretaria o questionamento dosimperativos da legalidade democrática, além do escamo-teamento sistemático das exigências do jogo político.Percebida como fonte de irracionalidades e distorções, ainterferência da política seria mantida a distância sempreque resultasse impossível evitá-la totalmente.

A escolha da via coercitiva para executar o conjuntodas medidas que integram o Plano instaurou, portanto, umatensão permanente entre a implementação e os imperati-vos da consolidação democrática, transformando-os empólos contraditórios e ameaçando aumentar em muito ataxa de conflito contida no processo de execução. Taistraços, continuamente reforçados, resultaram na transgres-são sistemática dos limites definidos pelo quadro legal,institucional e constitucional em vigor.

Entre as características da implementação assim con-cebida, sobressai, como vimos, a busca de coerência atra-vés do reforço dos instrumentos de controle. Desta for-ma, procedeu-se a uma ampla reforma administrativacapaz de garantir um alto grau de centralização decisó-ria. Um dos principais objetivos da reforma ministerial,que reduziu o número de ministérios e procedeu ao des-mantelamento da máquina estatal, foi o fortalecimento ea concentração de poderes no recém-criado Ministério daEconomia, que passou a acumular ampla soma de prerro-gativas antes dispersas por outros órgãos. Ao lado doBanco Central, o novo Ministério veio a ocupar o lugarde autoridade máxima na condução do programa de esta-bilização.

Paralelamente ao esforço centralizador, instaurou-seuma sistemática defensiva contra ingerências externas,restaurando-se o modelo de processo decisório fechado eavesso à consulta. O sigilo e a falta de transparência, típi-cos da fase de formulação, passaram a acompanhar todaa fase de implementação. A ausência de diálogo e de ne-gociação marcou as relações com os partidos e o Con-gresso, encarados antes como adversários políticos do quecomo poderes complementares. O desprezo pelos arran-jos institucionais da democracia representativa e por suasistemática de funcionamento levaria a que, no cálculopolítico dos governantes, a tática do confronto acabassepor prevalecer. O enclausuramento burocrático e a ina-cessibilidade do núcleo decisório central representam,aliás, o complemento necessário do privilegiamento deum estilo de implementação coercitivo, em que a execu-ção do programa se faz por intermédio do caráter com-pulsório das medidas e da ampliação da regulação eco-nômica. A rigidez e a inflexibilidade para evitar desviosde rota e a intangibilidade do conjunto das medidas inte-grantes do “pacote” agregariam uma dose adicional deatritos. Esta conseqüência não é casual, já que as tensõesnão encontram, nesse formato, canais adequados de ab-sorção, em virtude do próprio desenho institucional dosmecanismos de gestão. Tal dificuldade em lidar com oconflito é, pois, inerente à escolha da via coercitiva, queprivilegia o estilo impositivo de distribuição das perdas esacrifícios entre os vários atores, em detrimento do pactoe da negociação.

Tal procedimento levou ao divórcio entre as metaseconômicas e políticas do governo. O combate à inflaçãoe a construção da institucionalidade democrática, ao in-vés de serem tratados como aspectos estreitamente interde-pendentes dentro de uma estratégia mais global, seriamadministrados como fins conflitantes, impulsionados porlógicas contraditórias. De acordo com esta ótica, ter-se-ia a configuração de dois pólos antagônicos. De um lado,estaria o governo, conduzido por propósitos superiores

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ligados ao combate à inflação, ao saneamento da econo-mia e ao disciplinamento das forças sociais. De outro,teríamos as lideranças políticas, motivadas por conside-rações de ordem demagógica e populista, e as forças so-ciais, impulsionadas pelo egoísmo e pelo corporativismooportunista. Desta forma, governo e arena parlamentarconfrontar-se-iam como campos hostis, procurando o pri-meiro governar por Medidas Provisórias, neutralizando aação do Congresso e marginalizando os partidos, enquantoo Congresso alternaria a aceitação passiva dos atos doExecutivo com o esforço de fazer valer sua presença peloexercício do poder de veto.

Esta prática teve custos para os diversos atores. O go-verno viu-se privado de um esquema sólido de apoio par-tidário, predominando um clima de relações tensas como Congresso e um estilo de negociação caso a caso. Des-tituído de base partidária e de apoio parlamentar, o go-verno caminhou para uma situação de progressivo isola-mento político, apesar dos índices relativamente altos depopularidade de que o presidente então desfrutava. Quantoàs relações com a sociedade civil, a ausência de diálogoterminou por produzir uma verdadeira queda-de-braçoentre o governo e grupos estratégicos para o êxito do pro-grama de estabilização, como os setores empresariais pau-listas. O agravamento dos conflitos manifestou-se pelatroca de acusações entre o presidente e algumas das prin-cipais lideranças empresariais do país ao longo da primeiraquinzena de novembro. No que se refere ao Poder Legis-lativo, o custo foi o aumento do desgaste da representa-ção parlamentar, que se refletiu nas taxas elevadas de votosbrancos e nulos, bem como no alto índice de renovaçãodas lideranças parlamentares nas eleições de 1990. Quantoaos seus efeitos mais gerais, a política de implementaçãodo Plano Collor, agravando o desequilíbrio institucionaldo país, reduziu a probabilidade de êxito do programagovernamental.

Finalmente, esta forma de implementação, longe deatenuar, aumentou os riscos necessariamente contidos nastarefas de gestão. O rigor e o radicalismo das medidasestabilizadoras, provocando alta dose de contenção de li-quidez e retração da economia, levariam a que a ameaçada perda de controle dos efeitos recessivos inerentes aoPlano se transformasse num dado de sua administraçãorotineira. O bloqueio dos canais de comunicação com osatores sociais e políticos estreitou o campo visual dosdecisores, dificultando-lhes a percepção das alternativasde comportamento dos agentes econômicos e das reaçõesdos grupos interessados. Cabe ressaltar que o desrespeitoàs vontades organizadas na condução do processo de im-plementação revelou-se contraditório com as tendênciassociais do processo de transição, representadas pelo for-talecimento dos sindicatos e das organizações empresa-

riais, que, no decorrer do tempo, impuseram-se como in-terlocutores legítimos das autoridades governamentais.

Assim, por exemplo, a atitude de “guerra às elites eco-nômicas” provocaria o retraimento dos grupos econômi-cos privados, indispondo-os com os procedimentos go-vernamentais. Cabe lembrar que a preferência por políticaseconômicas coercitivas pode gerar conformidade, mas nãocria uma atmosfera de colaboração e de co-responsabili-dade. Ao contrário, estimula, uma tendência típica dacultura inflacionária há longo tempo dominante, em queos agentes econômicos, movendo-se por um cálculo pu-ramente individualista e por perspectivas de maximiza-ção de ganhos unilaterais, sentem-se irresponsáveis pe-las conseqüências de suas ações para o resultado daspolíticas de governo. Além disso, o recurso à recessãocomo condição de viabilidade do plano de estabilizaçãoestreitou substancialmente a margem de manobra do go-verno, impondo sempre mais rigidez e intransigência comofatores imprescindíveis ao êxito do Programa. A ênfaseunilateral nas políticas fortemente restritivas, acarretan-do, na esteira da recessão, conseqüências de alto custosocial, como a queda da atividade econômica e o desem-prego, sem a adoção paralela de políticas compensatórias,aumentou o sentimento de perplexidade e insegurança nasdiferentes faixas da população. O que resultou da propostagovernamental foi a imposição de sacrifícios drásticos,sem retorno previsível e sem prazo definido. Exigiu-se,da sociedade, portanto, não só capacidade de renúncia,como também confiança no desempenho de um governoque se apresentava sem um projeto definido acerca dofuturo do país.

Em contraste com este procedimento, a revalidação dehipóteses e projeções, as correções de rumos, típicas detoda fase de implementação, requerem exatamente o in-verso do que sugere a receita autoritária, isto é, o estrei-tamento dos vínculos com a sociedade e seus represen-tantes. O movimento do real comporta sempre algum graude imprevisibilidade e de contingência. O espaço do ines-perado, inerente à vida social, introduz continuamentenovos problemas, exigindo novas soluções. Desta forma,é inseparável da implementação uma certa capacidade deadaptação e de realizar ajustamentos, sem o que aumentaa probabilidade de se instaurar um divórcio entre as me-tas almejadas e as exigências do processo real.

A dissonância entre governo e sociedade gerou umasegunda ordem de dificuldades ligadas à ausência de ne-gociação em torno da distribuição das perdas entre os di-ferentes atores. Na tentativa de viabilizar os sacrifíciosexigidos da população sem o recurso aos meios de per-suasão típicos da democracia representativa, procurou-seocultar e mascarar a severidade dos meios para obter osresultados almejados. Para tanto, a recessão e o desem-

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prego foram omitidos enquanto foi possível, o mesmoocorrendo com os indícios do fracasso no combate à in-flação. O contraste, cada vez mais nítido, entre as decla-rações governamentais e a realidade difundiu a descon-fiança no Plano, minando a credibilidade do governo.Como esperar a cooperação da sociedade, se as evidênciasde que o sacrifício imposto seria inútil tornavam-se dia-a-dia mais visíveis? Eis um aspecto que não poderia serindefinidamente escamoteado.

Foi neste contexto, quando já estava evidente que ainflação escapava ao controle dos gestores do Plano, quese observou a tentativa por parte do governo de articularum pacto social. Sob a designação de entendimento na-cional, acenou-se com o diálogo com os segmentos maisorganizados da sociedade brasileira, deixando-se de forada arena de negociações não só as parcelas numericamentemais expressivas da população trabalhadora do país, comoos partidos políticos e as lideranças parlamentares. A op-ção pelo alijamento das forças políticas, inerente à táticade promover o acordo numa instância exterior ao Con-gresso, reforçaria, por sua vez, a vocação imperial doExecutivo.

REFORMA DO ESTADO:A NECESSIDADE DE UM NOVO PARADIGMA

O diagnóstico da crise do Estado extrapola, portanto,as questões ligadas ao poder decisório concentrado nasagências governamentais, envolvendo ainda, e sobretu-do, a capacidade de gerar adesão e garantir sustentabili-dade política para as decisões. Os pontos de estrangula-mento residindo, em grande parte, na falta de viabilidadeda implementação, esta dimensão assume importânciacentral (Haggard e Kaufman, 1993).

Sob esse aspecto, a pergunta fundamental é como ma-ximizar a eficácia da ação estatal. A discussão contem-porânea adota um enfoque abrangente, que focaliza nãosó os aspectos técnicos e administrativos, como tambéma dimensão política desta questão. Assim, cabe conside-rar, para além dos aspectos mais convencionais, os requi-sitos políticos que possibilitam uma ação eficiente porparte do Estado. O êxito das políticas governamentaisrequer, além dos instrumentos institucionais e dos recur-sos financeiros controlados pelo Estado, a mobilizaçãodos meios políticos de execução. A garantia da viabilida-de política, por sua vez, envolve estratégias de articula-ção de alianças e coalizões que forneçam sustentação àsdecisões, qualquer que seja o regime político em vigor(Grindle e Thomas, 1991; Silva, 1993).

Um balanço do legado político-institucional da antigaordem revela, como ressaltado em outros trabalhos (Diniz,1992; 1994b), o peso da lógica concentracionista do pro-

cesso decisório governamental associado à tradição tec-nocrática de gestão pública, o que reforçou o desequilí-brio entre os poderes e enfraqueceu os mecanismos decontroles mútuos, além de debilitar as práticas de presta-ção de contas. Em conseqüência, acumulou-se no tempoum considerável déficit de accountability e de responsa-bilidade pública. O excesso de discricionariedade dosgovernos da Nova República acentuou essa tendência,gerando burocracias insuladas do escrutínio público, cu-jas decisões passam ao largo dos mecanismos rotineirosde controle democrático (Sola, 1988). Segundo a visãotecnocrática, o confinamento seria um fator capaz de apri-morar a qualidade das decisões, maximizando seu teoruniversalista. Entretanto, o desenho institucional em quese baseia esse estilo de governo não é apropriado à con-secução de objetivos sociais, reduzindo-se os incentivospara a promoção do interesse público. Em contraposição,nos sistemas em que vigoram os mecanismos e procedi-mentos que induzem os decisores a prestar contas dosresultados de suas ações, garantindo maior transparênciae publicização das políticas, a promoção do bem-estargeral torna-se menos problemática. À luz da perspectivaprincipal-agente, Przeworski chama a atenção para ques-tões semelhantes, ressaltando a importância do fortaleci-mento dos mecanismos de controle e supervisão, de for-ma a reverter as tendências apontadas. Em suas palavras,o uso abusivo do poder de decreto em países como o Peru,a Argentina e o Brasil, na década passada, ao restringir ainformação e o debate, reduziria a efetividade dos meca-nismos de accountability (Przeworski, 1996:27).

Tendo em vista as considerações até aqui desen-volvidas, para repensar a reforma do Estado, parece per-tinente utilizar as categorias de governabilidade egovernance como conceitos auxiliares. Trata-se de aspec-tos distintos e complementares que configuram a açãoestatal. Governabilidade refere-se às condições sistêmi-cas mais gerais sob as quais se dá o exercício do podernuma dada sociedade, tais como, as características do re-gime político (se democrático ou autoritário), a forma degoverno (se parlamentarismo ou presidencialismo), asrelações entre os poderes (maior ou menor assimetria, porexemplo), os sistemas partidários (se pluripartidarismo oubipartidarismo), o sistema de intermediação de interesses(se corporativista ou pluralista), entre outras. A propósi-to, cabe lembrar que não há fórmulas mágicas para ga-rantir governabilidade, já que diferentes combinações ins-titucionais podem produzir condições favoráveis degovernabilidade.

Governance, por outro lado, diz respeito à capacidadegovernativa em sentido amplo, envolvendo a capacidadede ação estatal na implementação das políticas e na con-secução das metas coletivas. Refere-se ao conjunto dos

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mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensãoparticipativa e plural da sociedade, o que implica expan-dir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de adminis-tração do jogo de interesses. As novas condições interna-cionais e a complexidade crescente da ordem socialpressupõem um Estado dotado de maior flexibilidade,capaz de descentralizar funções, transferir responsabili-dades e alargar, ao invés de restringir, o universo dos atoresparticipantes, sem abrir mão dos instrumentos de contro-le e supervisão.9

Como ilustrado por inúmeros exemplos até aqui anali-sados, a estratégia do insulamento burocrático revela-seirrealista, se considerarmos que a meta almejada, qual seja,implementar escolhas públicas imunes às pressões dosinteresses particulares, não é factível. Tudo o que se con-segue é eliminar alguns interesses em benefício de ou-tros, em geral os que detêm maior poder de barganha(Cohen e Rogers, 1992). Por outro lado, uma incorpora-ção não predatória não se produz espontaneamente. Evi-tar a captura do poder público é uma tarefa complexa.Implica estimular ou mesmo produzir um meio associati-vo favorável ao desempenho governamental eficiente, oque exige uma estratégia deliberada de ação voltada paraencorajar a governança econômica e social, onde for apro-priado e eficaz (Cohen e Rogers, 1992:426).

Em outros termos, superar a dicotomia Estado-merca-do implica um novo estilo de gestão pública e um novopadrão de articulação Estado-sociedade, reformulando aspráticas mais convencionais de administração pública.Através da criação de oportunidades e incentivos intro-duzidos por novos arranjos institucionais é possível con-duzir a formação e o modo de atuação dos grupos na di-reção almejada. Esse resultado, vale insistir, não pode seralcançado aleatoriamente, envolvendo, ao contrário, oacionamento de instrumentos que viabilizem a inserçãodo Estado na sociedade, sem abdicar de sua autoridade(Evans, 1989). Aqui também se revela a obsolescênciados antigos desenhos institucionais e a atualidade dosmecanismos que reduzem a defasagem governantes-go-vernados.

Um dos gargalos na condução das políticas estatais estárelacionado ao fraco desempenho do governo quanto àconsecução das metas coletivas. Estas acham-se compro-metidas pela baixa capacidade de coordenação do Esta-do, o que dificulta a compatibilização dos fins definidossocialmente. Coordenação, um dos itens em que se podesubdividir governance, além das capacidades de coman-do e de implementação, significa submeter a lógica dosinteresses em jogo a um sistema integrado capaz de ajus-tar as diferentes visões. Longe de se tentar eliminar oconflito, cabe administrá-lo de forma eficiente, isto é, deforma compatível com a racionalidade governativa, que

é, por sua vez, definida em função de um projeto coletivo(Diniz, 1995a e 1995b).

O objetivo da consolidação democrática deve, portan-to, ser pensado em conexão com o tema da reforma doEstado, o que requer que a ação deste último esteja afina-da com um projeto global. Sob uma concepção estreitapredomina a tendência a se entender eficiência estatalcomo decorrência direta do grau de clareza e precisãoatravés do qual se definem as metas a serem alcançadas.Entretanto, democracia envolve justamente a problema-tização do processo de constituição dos fins, necessaria-mente múltiplos e mesmo antagônicos, sobretudo numasociedade complexa e diferenciada como a brasileira (Reis,1993, 1994 e 1995). Agregar e compatibilizar tais finsdemanda procedimentos contínuos de negociação. Sobesse aspecto, a visão aqui proposta contrapõe-se à pers-pectiva estatista e à noção de autonomia do Estado mera-mente enquanto capacidade de sobrepor-se a pressões.Esse tipo de enfoque implicaria priorizar a definição dasmetas pelas próprias elites estatais ou por um círculo deespecialistas, situados em instâncias enclausuradas, dis-sociadas da esfera em que se manifestam os interesses,sobretudo aqueles mais dispersos e menos organizados,em posição de franca desvantagem em relação aos demais.

De forma similar, o conceito de governance sugeridorequer que se recupere a noção de interesse público, quevem sendo banida do vocabulário político por sua supostaafinidade com a antiga concepção de interesses nacionais,esta, por sua vez, estigmatizada por incompatibilidade coma agenda da modernidade, marcada pelo predomínio daidéia de globalização enquanto força integradora. Em con-traposição, gostaria de ressaltar que a ação estatal, ao serdissociada de alguma noção de bem comum e da garantiada preservação de algum grau de responsabilidade públicana tomada de decisões, perde legitimidade.

Esse argumento encontra respaldo numa linha teóricaque ressalta a meta da cidadania plena envolvida na no-ção de democracia associativa (Cohen e Rogers, 1992),em contraste com a prática da democracia delegativa,padrão que, segundo O’Donnell (1991 e 1993), tornou-se dominante na América Latina pós-autoritarismo e pri-mazia da agenda neoliberal. Essa modalidade de demo-cracia caracteriza-se pela baixa densidade de suasinstituições, pela hipertrofia da autoridade pessoal do pre-sidente da República, ao lado da fragilidade dos partidose do sistema representativo, incluindo o poder Legislati-vo. O teor plebiscitário do processo eleitoral traduz-se novoluntarismo do presidente consagrado nas urnas. Estetende a interpretar a vitória eleitoral como uma delega-ção total de poder, legitimando uma ação autônoma nadefinição dos interesses nacionais.10 Na ótica da demo-cracia associativa, ao contrário, as diferentes concepções

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de bem comum constituem importante referencial do pro-cesso decisório, tendo em vista os requisitos de uma or-dem democrática. Por outro lado, para não ser uma ex-pressão vazia ou puramente retórica, o interesse públicodeve refletir a operação eficiente das instâncias de agre-gação, em que se dá a compatibilização do leque diversi-ficado e contraditório das demandas sociais. Em outrostermos, tal formulação traduz um projeto coletivo que re-presenta a capacidade do sistema político em geral e daselites governantes em particular de conviverem com odissenso e o conflito não através do esforço de anulá-los,mas da disposição para a negociação e o compromisso.Nessa perspectiva, assume o primeiro plano a necessida-de de fortalecer as instituições partidárias e parlamenta-res, bem como os demais mecanismos de participação eincorporação política.

A ineficiência estatal em termos da primazia das me-tas coletivas torna-se particularmente perversa numa socie-dade como a brasileira, marcada por graus substancialmen-te elevados de desigualdade social e caracterizada pelocontraste entre um sistema social híbrido e multifacetadoe amplos vazios institucionais, configurando-se grausextremos de destituição política, ao lado da privação so-cial. As duas modalidades de destituição reforçam-semutuamente, inviabilizando o pleno exercício da cidada-nia. O sistema político brasileiro tem, sem dúvida, as ca-racterísticas essenciais de uma poliarquia, entre as quaisa garantia de eleições livres e periódicas, baseadas nosufrágio universal e em partidos competitivos, represen-tando diferentes correntes, inclusive com um espaço de-marcado para as forças oposicionistas, além de ampla li-berdade de associação e de expressão. Em contrapartida,temos uma democracia deficitária em termos da garantiade igualdade de condições para o exercício de uma cida-dania plena. Em outros termos, a esfera poliárquica sesobrepõe a grandes espaços institucionalmente vazios,onde o que prevalece é a ausência de direitos e a margi-nalização em face da cobertura proporcionada pela ordemlegal. O direito de acesso aos bens públicos e serviçosessenciais, às instâncias políticas e à Justiça, o direito deapelar contra arbitrariedades e de exigir providências emface da omissão dos poderes públicos estão distribuídosde forma extremamente desigual (Santos, 1992). Eis por-que alguns autores consideram que temos uma democra-cia peculiar, em que o Estado revela-se incapaz de fazervaler seus ordenamentos legais sobre todo o territórionacional e através das várias categorias da estratificaçãosocial (O’Donnell, 1991, 1993 e 1996). A rarefação dopoder público e sua incapacidade de garantir direitos bá-sicos, por sua vez, produzem os sentimentos de desam-paro social e impotência política, dada a baixa credibili-dade do Estado como agente do interesse comum.

Há, portanto, um esvaziamento do poder público, umainércia na prestação de serviços básicos e uma ausênciade canais para a expressão de direitos elementares, dei-xando camadas expressivas da população à margem daárea de atuação das instituições encarregadas de resolverseus problemas primários de saneamento, saúde, seguran-ça, transporte e educação. A lacuna deixada pela omissãodo Estado no atendimento a necessidades fundamentais,bem como pela inexistência de políticas sociais efetivas,abre o espaço para a proliferação de práticas predatóriase a disseminação da insegurança generalizada. As áreassocial e territorialmente periféricas criam sistemas para-lelos de poder que tendem a alcançar níveis extremos deviolência e arbitrariedade. O fenômeno manifesta-se pe-las altas taxas de criminalidade, pela corrupção e inefi-ciência da polícia, pela impunidade do tráfico, pela jus-tiça privada, enfim, pela subversão cotidiana das normase preceitos legais, instaurando-se uma situação dehobbesianismo social (Santos, 1992).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reverter esse quadro requer mais do que a ampla li-berdade de ação para equipes de tecnocratas enclausura-das na alta burocracia. Tal mudança impõe o fortaleci-mento dos nexos com a sociedade e a política. Como foisalientado no decorrer deste trabalho, as crises de gover-nabilidade e do Estado são indissociáveis e devem ser fo-calizadas em suas múltiplas dimensões. Aspectos conjun-turais ligados aos efeitos econômicos e políticos da criseinternacional associam-se à dinâmica interna de corrosãoda ordem estatista sob a qual se deu a construção do capi-talismo industrial no país, gerando um quadro complexoe multifacetado, o que torna inapropriada a busca de ex-plicações unicausais e reducionistas.

As estratégias de enfrentamento de crises desta natu-reza, como foi ressaltado, não podem perder de vista ameta da consolidação democrática. Sob esse aspecto, éimprescindível compatibilizar eficiência do Estado e apri-moramento da democracia, reduzindo o duplo divórcioExecutivo-Legislativo e Estado-sociedade. A complexi-dade dos problemas envolvidos requer o refinamento daanálise, enfatizando-se a dimensão política, ao lado dadimensão técnica, no que se refere à caracterização dareforma do Estado.

Desta forma, a noção de eficácia do Estado implica nãoapenas questões ligadas à competência e eficiência damáquina estatal, mas também aspectos ligados à susten-tabilidade política das decisões e à legitimidade dos finsque se pretende alcançar através da ação governamental.Aumentar os graus de governabilidade de uma ordemdemocrática exige não apenas um melhor desempenho da

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máquina burocrática, elevando seu nível técnico, mas oreforço da responsabilidade do Estado em face das metascoletivas e das demandas básicas dos diferentes segmen-tos da população. O problema da governabilidade deveser examinado, cabe insistir, em seu teor pluridimensio-nal, envolvendo os instrumentos institucionais, os recur-sos financeiros e os meios políticos de execução. Por suavez, a reforma do Estado, crucial para a construção deuma nova ordem, implica maximizar as condições degovernance do sistema estatal, através da expansão dascapacidades de comando, de coordenação e de implemen-tação do Estado, ao lado do aperfeiçoamento dos meiosde intervenção na ordem associativa. Em última instân-cia, tais objetivos requerem uma estratégia política paraconduzir acordos e alianças, articulando arenas de nego-ciação às instituições estatais.

Em síntese, a sugestão de um novo paradigma parapensar a reforma do Estado impõe a ruptura com os enfo-ques tecnocrático e neoliberal. O primeiro, ao priorizar oinsulamento das elites estatais, a primazia do conhecimen-to técnico e o alijamento da política, tende a reforçar vi-sões e práticas irrealistas porque calcadas na despolitiza-ção artificial dos processos de formulação e execução depolíticas. O segundo, influenciado pela ótica minimalis-ta, enfatiza unilateralmente a redução do Estado, subesti-mando o papel do reforço e revitalização do aparelho es-tatal para o êxito de suas políticas, bem como a relevânciada intervenção governamental para preencher as lacunasexistentes e levar o mercado a funcionar de forma eficien-te, em consonância com um projeto coletivo. Finalmen-te, a proposta desse novo paradigma implica não só a re-definição do conceito dominante de autonomia estatal –entendido exclusivamente como concentração do poderdecisório na cúpula burocrática visando ao aumento desua capacidade de sobrepor-se às pressões e resistências–, como também do modelo de gestão pública associadoàquele conceito. Em contrapartida, a visão de capacidadegovernativa aqui sugerida pressupõe, por um lado, oreforço dos mecanismos e procedimentos formais deprestação de contas ao público, e, por outro, a institu-cionalização das práticas de cobrança por parte dosusuários dos serviços públicos e dos organismos desupervisão e controle.

Embora ainda incipientes, algumas experiências recen-tes apontam na direção indicada neste texto. No âmbitodo governo federal, as Câmaras Setoriais propiciaram umespaço para o desdobramento de um padrão tripartite denegociação, envolvendo os atores interessados e autori-dades governamentais na busca de acordos para imple-mentar políticas liberalizantes. Na esfera local, os Con-selhos Municipais nas áreas de desenvolvimento urbano,transporte, habitação, saneamento e meio ambiente, bem

como os exemplos de orçamento participativo, ilustramexperiências de local governance, cada vez mais difun-didas (Diniz, 1994; Coelho e Diniz, 1995). Evidentemente,é ainda prematuro avaliar se tais experimentos serão ounão encorajados e que efeitos terão sobre os estilos degestão pública.

NOTAS

Retornamos aqui idéias desenvolvidas em artigos e conferências sobre o temada reforma do Estado (Diniz, 1995a, 1995b, 1995c e 1996). Este texto faz partedo livro Crise, Reforma do Estado e Governabilidade: Brasil 1985/1995. Rio deJaneiro, no prelo.

1. Em outro trabalho (Diniz, 1995c), desenvolvemos esse argumento, tambémenfatizado por outros autores como Bresser Pereira (1991 e 1993).

2. Desenvolvemos esse ponto de forma mais aprofundada em Diniz (1995a).

3.Eis como Werneck Vianna (1991:14) refere-se a essa questão: “[...] o novogoverno começa a governar a partir dos fatos consumados, aproveitando-se dasmedidas provisórias que, por peripécias do destino, ideadas para servir ao parla-mentarismo, concederam poder de império ao Executivo, já por origem de exer-cício forte segundo as constituições brasileiras. O chamado Plano Collor I igno-ra o Congresso e a correlação de forças nele existente, e, sob o pretexto de inter-vir sobre a situação de emergência da hiperinflação, apresenta, embutido em seuprojeto de saneamento econômico-financeiro, um conjunto de medidas e de in-tenções com que se prepara para impor à sociedade suas reformas neoliberais.Desnecessário lembrar que, naquelas circunstâncias, recusar o plano do governosignificava jogar o país na anarquia econômica, e daí para o caos político sequerse precisaria de mais um passo. Congresso e sociedade tornam-se, então, prisio-neiros da iniciativa do governo.”

4. Referimo-nos aqui aos problemas ligados ao comportamento “free-rider” e àssituações do tipo “dilemas do prisioneiro” (Olson, 1965; Tsebelis, 1990). Parauma análise desse tipo de comportamento nas experiências latino-americanas deestabilização e ajuste ver, entre outros, Smith (1993).

5. Guillermo O’Donnell salienta que a consolidação da democracia na AméricaLatina é fortemente influenciada pela capacidade revelada pelos governos na buscade soluções para as questões urgentes geradas pela crise que assola a região(O’Donnell, 1988:85).

6. Uma interessante análise comparando Brasil e Espanha durante a transição einstauração do primeiro governo civil encontra-se em Lessa (1989).

7. Ver, por exemplo, Jornal do Brasil, 20/3/1990.

8. Em outros países, essa foi também a tática posta em prática pelas elites gover-namentais (Conaghan e Malloy, 1994).

9. A partir do início dos anos 90, inúmeros documentos do Banco Mundial res-saltariam a importância do conceito de “governance” para expandir a eficácia daação estatal. Ver, por exemplo, World Bank (1992).

10. De forma similar, Conaghan e Malloy (1994), analisando a implementaçãoda agenda neoliberal nos países dos Andes Centrais na última década, ressaltama especificidade do sistema político em questão, caracterizando-os como regi-mes políticos híbridos e situações de despotismo democrático pela combinaçãopeculiar de democracia eleitoral com o estilo tecnocrático-autoritário de forma-ção de políticas. Este consagraria a prática da imposição de políticas pelo alto,eliminando a consulta e a negociação, além de marginalizar o Congresso.

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REFORMAS DEMOCRÁTICAS ECONTRA-REFORMAS NEOLIBERAIS

efinido o fim do monopólio estatal das teleco-municações e do petróleo, a aprovação da emendaconstitucional permitindo a reeleição presiden-

cial tornou-se o ponto central da agenda do bloco no po-der.1 Não é fortuito que esta seja a iniciativa que definehoje a feição das reformas governamentais. A reeleiçãosintetiza a meta da classe dominante no atual período.Como destacou Francisco de Oliveira (1996), a ambiçãode Fernando Henrique Cardoso a um “‘reino’ de 20 anos”é a dimensão mais visível da vontade da coalizão PSDB-PFL-PTB de estabelecer um controle duradouro da polí-tica brasileira, “normalizando” a sociedade e a políticadepois das transformações democratizadoras dos anos 80.

Qualquer reflexão que pretenda dar conta desta reali-dade tem de integrar as propostas de “engenharia institu-cional” em marcos analíticos mais abrangentes, que per-mitam visualizar os deslocamentos nas relações de poderna sociedade e no Estado e os interesses subjacentes àsdisputas em curso. Deve tomar como fio condutor os pro-cessos que maior impacto tiveram sobre a reestruturaçãoda sociedade brasileira nos últimos anos – a mundializa-ção e a adesão da burguesia ao neoliberalismo – e verifi-car suas conseqüências sobre a democratização da vidapolítica nacional.

MUNDIALIZAÇÃO, AJUSTE NEOLIBERALE MUDANÇAS POLÍTICAS

A abertura acelerada da economia brasileira e a apli-cação no país do projeto neoliberal incidiram sobre umaprolongada disputa política interna, iniciada com a crisedo regime militar, tornando-se a chave para o seu desen-lace. Isso se deu em um quadro de crise de projeto e de

direção da burguesia e de ação independente dos setorespopulares – particularmente intenso no período que vaido governo Figueiredo ao governo Itamar. O pano de fun-do é a transição para uma nova era histórica mundial,passagem cujos movimentos engolfam o Brasil, redefi-nindo seu lugar em uma nova constelação de poder inter-nacional.

O Relatório de Desenvolvimento Humano – 1996, doPrograma das Nações Unidas para o Desenvolvimento,traça um raio-X do mundo criado pelas mutações em cur-so. Ele afirma que as políticas de ajuste estrutural impos-tas aos países da periferia nos últimos 15 anos “dualizaramo planeta”: 15 países cresceram rapidamente neste perío-do, enquanto “86 países estão mais pobres do que em1980”. Em 30 anos, a participação dos 20% mais pobresna renda mundial diminuiu de 2,3% para 1,4%, enquantoa dos 20% mais ricos passou de 70% para 85% da rendamundial. E um dado exemplar, que fala por si: “a riquezade 358 pessoas é igual à soma dos 45% mais pobres dapopulação mundial, equivalente a 2,3 bilhões de pessoas!”

Embora as desigualdades entre países, regiões, clas-ses sociais e indivíduos tenha sido um dado sempre pre-sente na história humana, elas conheceram uma escaladaa partir do final dos anos 70 e, desde então, não pararamde crescer.

Isto ocorreu após um período que Joan Robinson cha-mou de “idade de ouro” (denominação que Eric Hobsbawnretomou em sua análise do “breve século XX”), uma erade prosperidade e conquistas democráticas, que foram asdécadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. A eco-nomia mundial organizava-se, então, com base em Esta-dos e economias nacionais relativamente autônomos e in-ternamente articulados, coexistindo num mesmo sistema

D

JOSÉ CORRÊA LEITE

Editor do jornal Em Tempo

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(hierarquizado) de relações internacionais. Elas podiam,através de políticas econômicas de inspiração keynesiana,construir políticas nacionais capazes de viabilizar altastaxas de crescimento econômico e de responder às aspi-rações melhoria das condições de vida de boa parte desuas populações.

Era o caso do welfare state nos países centrais, do Es-tado desenvolvimentista em países da periferia e das eco-nomias de planejamento burocrático dos regimes de tiposoviético. No centro do sistema, mas também em menorgrau na periferia, a alocação de ganhos de produtividadepara os salários diretos – que sustentavam a demanda debens de consumo – garantia o dinamismo da acumulação.O crescimento do salário indireto também favorecia a ele-vação do nível de vida. Nos três subsistemas da “econo-mia-mundo”, altas taxas de crescimento permitiam umacerta mobilidade social. Estes foram, entre nós, os anosdo nacional-desenvolvimentismo, que perduraram da eraVargas até os anos 70.

A recessão internacional de 1974-5 sinalizou o esgo-tamento do boom capitalista do pós-guerra e do padrãode acumulação fordista/keynesiano. A queda da taxa delucro nos países centrais teve como resposta a rápidamundialização do capital, cuja face mais visível foi a for-mação de um sistema financeiro internacional, a partir domercado de eurodólares, fora do controle de qualquerbanco central (ao qual o Brasil recorreu ainda nos anos70). A constituição de um mercado mundial de capital-dinheiro foi acompanhada da manutenção de altas taxasde juros reais, inéditas na história do capitalismo (que noinício dos anos 80 provocaram a “crise da dívida” naAmérica Latina).

As economias de nosso continente tiveram de se rees-truturar para continuar pagando os juros da dívida (o que,no caso brasileiro, deu uma sobrevida às políticas de subs-tituição de importações), crescentemente pressionadaspelas propostas de “ajustes” do FMI/BM.

Nos países centrais, as posições conquistadas pelomovimento sindical no período anterior foram rapidamen-te questionadas pelo crescimento do desemprego estrutu-ral, pela desregulamentação, pela reestruturação dos pro-cessos de trabalho e da organização empresarial e pelosataques ao sistema de seguridade social, configurando umaumento importante da taxa de exploração. As forças domovimento trabalhista foram incapazes de enfrentar estaofensiva. A resposta da direita à crise ganhou consistên-cia quando as políticas neoliberais tornaram-se hegemô-nicas nos principais países centrais (à exceção do Japão),expressando uma nova percepção dos objetivos a seremperseguidos para ação dos Estados e estabelecendo umanova estrutura de poder mundial, consolidada com o co-lapso da URSS. Mesmo a social-democracia no governo

de países europeus terminou aceitando o horizonte neoli-beral e aplicando sua política. E embora as taxas de cres-cimento permanecessem muito inferiores às do períodoanterior, as taxas de lucro voltaram a crescer.

Mas como é possível ao capitalismo contemporâneo,o capitalismo da globalização neoliberal, que vem sendocaracterizado como modelo de “acumulação flexível” ou“produção enxuta” (lean production), reproduzir-se, en-quanto o salário real dos assalariados, cuja expansão sus-tentou o dinamismo do período keynesiano/fordista, nãocresce?

Michel Husson (1995) formulou uma explicação abran-gente para a dinâmica de reprodução do capitalismo con-temporâneo. Ela parte da idéia de que a regra básica dosistema atual é a não-distribuição aos assalariados dosganhos de produtividade. Segundo Husson, “para asse-gurar a realização da produção, uma parte da mais-valiadeve ser redistribuída para camadas sociais cujo consu-mo fornecerá os mercados necessários para o crescimen-to da produção. A variável de ajuste é, então, a taxa mé-dia da renda financeira, cujo papel é assegurar a adequaçãoentre o consumo saído deste tipo de rendas e a oferta demercadorias... (Isso) permite voltar a vincular o processode financeirização a uma base material e evitar tratar aeconomia como se ela tivesse se tornado virtual... (e) com-preender como o capitalismo pode conduzir uma políticade austeridade salarial sem cair em uma crise crônica demercados. Desta forma, o crescimento das taxas de jurosreais... (torna-se) uma chave para a partilha da mais-va-lia, permitindo redistribuí-la entre os detentores de ren-dimentos suscetíveis de a consumir, pois as oportunida-des de investimentos produtivos rentáveis não crescemna mesma rapidez que a realização da mais-valia”.

O ajuste promovido pela taxa de juros tem duas dimen-sões. A primeira é geográfica e se caracteriza, por um lado,pelo fluxo de capitais, principalmente alemães e japone-ses, para os EUA, e, por outro lado, pela enorme drena-gem de recursos dos países endividados do Terceiro Mun-do para os países centrais, a partir dos anos 80. A segundaé social: os beneficiados por esse processo são detentoresde títulos financeiros em detrimento da massa de assala-riados.

A globalização em curso é fundamentalmente umamundialização dos capitais. Entre 1973 e 1995, os inves-timentos estrangeiros diretos no mundo se multiplicaram12 vezes, enquanto o volume de exportações aumentouoito vezes. A centralização e a concentração dos capitaisnos países do Norte constituem oligopólios que dominamum mercado mundial realmente unificado, embora asempresas internacionais não tenham, via de regra, se trans-formado em transnacionais, isto é, não tenham se desco-lado de seus países de origem.

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Este processo, afirma Michel Husson, é “a forma queadquire a reestruturação do capital em face da crise. Nes-te sentido, ela não pode ser separada do giro geral para oneoliberalismo, nem das mutações tecnológicas e orga-nizacionais”. A orientação neoliberal impulsiona a mun-dialização, com a abertura comercial, as privatizações,a desregulamentação financeira, contribuindo para eli-minar os obstáculos à circulação do capital-dinheiro, numprocesso em que financeirização e mundialização se re-forçam mutuamente.

A economia nacional constituída pela articulação en-tre Estado e capital nacionais perde seu vínculo orgânicocom as mercadorias na maioria dos países, ganhando umcaráter extraterritorial, e parte importante do comérciomundial passa a se constituir de trocas intrafirmas. Asnecessidades das empresas não têm por que coincidir comas de um país. O fluxo de capitais de curto prazo limita oalcance da política econômica e os governos acabam fa-zendo dos salários a variável de ajuste para atrair capi-tais. Estados da periferia e mesmo muitos do centro têmcada vez menos condições de influir sobre este movimentode capitais, que produz enorme instabilidade financeira.Nesse quadro, assiste-se, de um lado, à organização deblocos regionais ao redor dos três pólos da Tríade – osEUA, o Japão e, na CEE, a Alemanha e, de outro, ao for-talecimento de uma série de organismos internacionais,do FMI ao G-7, do BM à OMC.

Elaborados para viabilizar o pagamento dos juros dadívida externa pelos países da periferia, os programas deajuste estrutural foram sendo apresentados como um novomodelo de crescimento nas condições de uma economiamundial aberta. Mas, normalmente, com as aberturas, asimportações crescem mais que as exportações e provo-cam uma drenagem de recursos dos países de menor pro-dutividade para os de maior produtividade. E colocandoos países do Sul em concorrência generalizada entre eles,o modelo neoliberal estabelece uma pressão permanenteno sentido da redução dos salários, o que impede o cres-cimento extensivo do mercado interno.

Como conclui Michel Husson, “o modelo de reprodu-ção esboçado para os países do Centro é generalizável parao conjunto da economia-mundo: uma massa salarial ten-dencialmente bloqueada, uma taxa de acumulação muitoflutuante e diferenciada, mas que não mostra nenhumatendência de alta a médio e longo prazo e, para fechar ocírculo, uma parte crescente das rendas recicladas parauma terceira demanda, onde se encontram as classes do-minantes e os rentistas do Norte e do Sul – que estabele-cem relações ambivalentes, de rivalidade na apropriaçãodo excedente, e de conivência em nível global... Encon-tramos, portanto, nos países do Sul, de maneira ainda maismarcada que nos do Norte, uma polarização social mons-

truosa, que constitui a contrapartida de um modelo glo-bal cuja regra fundamental consiste em não beneficiar ossalários com os ganhos de produtividade... Não se deveexcluir a emergência de zonas de forte crescimento, mas,por sua natureza social, este crescimento não fundamen-ta um desenvolvimento, na medida em que se baseia emuma redistribuição excludente e que implica um modo derepartição regressivo das rendas”.

Este modo de reprodução do capitalismo enfraquece oEstado nacional e a coesão da nação. Um crescente desem-prego estrutural e o subemprego, a desregulamentação,os cortes dos gastos públicos na área social e o retrocessodos sistemas de seguridade social solapam os fundamen-tos da cidadania. O modelo atual se opõe a objetivos comocrescimento econômico duradouro, justiça social, distri-buição mais igualitária da riqueza, solidariedade entrediferentes setores da sociedade, controle dos governan-tes, democracia participativa e desenvolvimento da cida-dania. O mercado apenas respeita a lei do mais forte.2

Os Estados, cada vez mais, vêem reduzidas as condi-ções de elaborar políticas nacionais. No governo, parti-dos das mais distintas orientações têm sido constrangi-dos a aplicar as mesmas políticas, aceitando as pressõesdo capital internacional e apresentando a política comotécnica, a ser manipulada com competência. O megaes-peculador George Soros – citado por Ramonet (1995) –revela plena consciência disso quando afirma: “os mer-cados votam todos os dias, eles forçam os governos aadotar medidas que são certamente impopulares, mas in-dispensáveis. São os mercados que têm o sentido doEstado.”

Com o aumento das desigualdades há uma perda dehomogeneidade e de “integração” social no interior decada país e o crescimento da criminalidade e da violên-cia. Esgarça-se o sentimento de solidariedade social e na-cional. As classes dominantes, particularmente na perife-ria, distanciam-se cada vez mais da maioria da população,rompendo seus vínculos com a nação, e assumem padrõesde consumo e valores que compartilham com os privile-giados de todo o mundo; a “apartação” social se genera-liza no ex-Terceiro Mundo. E Christopher Lasch (1995),referindo-se aos Estados Unidos, fala de uma rebeliãodas elites, que não querem mais carregar o “fardo” deter de promover um desenvolvimento inclusivo.

O crescimento econômico para regiões de países, ra-mos da economia e setores sociais, já não se irradia paraa maioria da sociedade e não se transforma em desenvol-vimento social e nacional. Com o fim do desenvolvimen-to, a própria democracia republicana é solapada. As ins-tituições políticas não podem ser diretamente privatizadas,mas elas são, além de esvaziadas pelo mercado, oligar-quizadas através da redução das possibilidades de parti-

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cipação da população. A mídia eletrônica, concentrada nasmãos de grandes grupos empresariais, transforma-se emum poder político-ideológico decisivo, privado, utiliza-do em benefício de cada oligarquia local. Processos elei-torais transformam-se, em todo o mundo, em campanhasde marketing entre partidos com programas semelhantes.

Não por acaso Bill Clinton foi reeleito presidente dosEstados Unidos com o apoio de menos de 25% dos norte-americanos em condições de votar. A apatia e a absten-ção eleitoriais têm se mostrado crescentes nestas demo-cracias liberais que funcionam cada vez mais comoespetáculo midiático, parecendo confirmar a tese conser-vadora, explicitada por Samuel Huntington, de que “aoperação eficaz de um sistema democrático requer emgeral um nível de apatia e de não participação da parte decertos indivíduos e grupos” (Huntington: Crozier eWatanuki, 1975).

Estes processos, em sua maioria, não surgiram com aglobalização e o giro neoliberal do capitalismo, mas aerosão do tecido social e da cidadania por eles produzidacria condições para sua escalada.

REFORMAS E CONTRA-REFORMA NO BRASIL

As mudanças internacionais não determinavam umcaminho único a ser trilhado pelo país. Se o neoliberalis-mo se impôs, foi como resultado da disputa pela resolu-ção de uma verdadeira crise nacional – que somava umacrise do regime político (regime militar), uma crise dopadrão de acumulação (industrialização por substituiçãode importações) e uma crise das relações de classe quesustentavam o Estado nacional (desenvolvimentista).

A existência de uma esquerda não integrada e cada vezmais forte foi um fator central para isso, colocando umaalternativa distinta da opção entre neodesenvolvimentismoe neoliberalismo, com que a burguesia se debateu nos anos80. Esta presença da esquerda, articulando uma propostademocrática e popular, transformou este momento da his-tória brasileira em uma encruzilhada, uma disputa entreforças políticas com vocação protagonista, dotadas deprojetos de sociedade distintos e antagônicos. Em quasetodo o restante da América Latina, o “ajuste estrutural”foi implantado com menos resistências. Aqui, porém, aredefinição de uma configuração mais estável para a eco-nomia, as relações de classe e o Estado foi mais prolon-gada e difícil e, sob alguns aspectos, ainda não está total-mente resolvida.

A crise dos anos 80 no Brasil foi muito complexa, in-tegrando determinações diversas. Determinações internase externas, capazes de alterar rapidamente ritmos e pra-zos. Ou advindas da profundidade e da diversidade dosinteresses estabelecidos e dos recursos de que estes dis-

punham para se defender. Ou determinações resultantes,de um lado, da ação e do confronto de agentes sociais epolíticos e mesmo de sujeitos portadores de projetos glo-bais e, de outro, dos balizamentos e limites à sua ativi-dade oferecidos por instituições que expressavam crista-lizações de disputas passadas. Ou ainda estabelecidas pelasconfigurações simbólicas que organizavam o imagináriosocial, como, por exemplo, as idéias de desenvolvimentoou de país viável. Neste quadro, a dessincronia tornou-segeneralizada; o nacional e o internacional, a economia ea política, os conflitos sociais e as imagens de mundocondicionavam-se mutuamente mas não seguiam a mes-ma temporalidade.3

Intensas disputas propiciaram, nos anos 80, um amploprocesso de reformas democráticas, que ultrapassaram asalterações institucionais de inspiração liberal. Alteraçõesimportantes das relações de poder entre as classes permi-tiram a expressão de setores historicamente excluídos, aconquista de espaços e de direitos democráticos e a cons-trução de uma esfera pública não-burguesa no Brasil. Estaenorme extensão da parcela da população que participada política foi, sem dúvida, uma das raízes daquilo queanalistas conservadores consideraram muitas vezes de “in-governabilidade” do país após o fim do regime militar.

O ascenso de lutas democráticas e sociais, iniciado ain-da sob o governo Geisel, provocou uma mutação e, emseguida, um enorme crescimento da esquerda. O encon-tro entre o movimento sindical combativo de 1978-80 e aesquerda socialista e cristã deu origem a uma dinâmicade autonomia política de importantes setores populares;o fortalecimento desta autonomia política e o desenvol-vimento das lutas de massa se reforçaram mutuamente.

Esta expansão de uma esquerda democrática e popu-lar, que expressava o processo de auto-organização desetores excluídos da cidadania e da política, continuoupor toda a década. Os principais episódios são bem co-nhecidos: a formação do PT unificando boa parte da es-querda do país; a formação da CUT como central do sin-dicalismo independente do Estado; as mobilizações pelaeleição direta para presidente em 1984 e o deslocamentode forças políticas que propiciou a transição para um re-gime democrático liberal; a disputa pelo novo ordenamen-to político-jurídico do país na Constituinte de 1986-8; asdisputas de governos de cidades e de estados importan-tes; e, finalmente, em 1989, a disputa pelo governo cen-tral, na primeira eleição direta para presidente desde 1960.Neste período, o nível de atividade dos movimentos so-ciais atingiu patamares importantes, então os mais eleva-dos do mundo, irradiando um influxo democrático por todaa sociedade.

Da conquista do direito de greve e da liberdade de or-ganização partidária à eleição direta para presidente, da

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luta pelos direitos humanos à afirmação dos direitos so-ciais e políticos de cada setor marginalizado, a questãodemocrática esteve sempre no centro das disputas, aindaque tivesse conteúdos diferentes para distintos atores, queas conquistas freqüentemente estivessem ameaçadas deretroceder e que a sociedade brasileira permanecesse pro-fundamente desigual e injusta.4

O processo constituinte foi um momento decisivodeste movimento de reformas democráticas: estava emjogo a consolidação de uma democracia não apenas nareorganização institucional de um regime liberal, mas tam-bém a manutenção da mobilização e organização inde-pendentes, a ampliação e conquista de direitos trabalhis-tas, sociais e políticos e a extensão das formas dedemocracia.

No final dos anos 80, o debate sobre a democracia foise mesclando com o debate sobre o modelo de desenvol-vimento. Crescia a crise do padrão de acumulação e apressão internacional pela adoção de medidas de inspira-ção neoliberal.5 A consciência do impasse e da profundi-dade da crise do desenvolvimentismo tornou-se aguda paraas diversas forças políticas. Os representantes da classedominante trouxeram à tona, na Constituinte, a discussãosobre as alternativas colocadas para o capitalismo brasi-leiro, sem que uma unidade satisfatória fosse alcançada –a inércia do desenvolvimentismo em crise ainda pesavamuito, a burguesia demonstrava uma grande incapacida-de em renová-lo e a correlação de forças ainda não pen-dera a favor do neoliberalismo.

De outro lado, o PT formulou, entre 1985 e 1987, umavisão estratégica de rumo para a sociedade brasileira, quebatizou de “alternativa democrática e popular”: a disputapelo governo central era articulada com um programa demedidas antimonopolistas, antilatifundiárias e anti-impe-rialistas e um horizonte socialista (no cenário internacio-nal, ainda estavam presentes os desdobramentos da revo-lução centro-americana e as iniciativas de Gorbatchev deauto-reforma do regime soviético).

O auge da vaga democratizadora se deu na campanhapresidencial de 1989, com o impulso ganho pela candi-datura Lula, que propunha aprofundar e radicalizar asreformas democráticas. Mas seu desenlace, a eleição deFernando Collor, já apontava para um possível refluxodo processo.

A opção da burguesia por Collor, no segundo turno daeleição de 1989, foi em grande medida uma opção contraLula e aquilo que sua candidatura representava. Mas mar-cou também o início de sua gradual recomposição políti-co-ideológica em torno do projeto neoliberal, que se for-talecia como a alternativa para enfrentar as classespopulares e recompor uma perspectiva para o capitalis-mo no Brasil.

A força do neoliberalismo, ao qual a equipe Collor seagarrou rapidamente, advém de sua posição hegemônicano terreno internacional. A recomposição das relações deforças e a reacomodação de interesses no seio da classedominante passou a se dar em sintonia cada vez maiorcom as determinações externas, a partir da aceitação deuma margem de manobra muito menor em face do capi-tal internacional.

O agente político mais consciente na promoção destedeslocamento não foi o governo Collor, que desenca-deou o processo com a abertura da economia, as primei-ras privatizações e o desmonte do fisco. Foi, sim, o PSDB,o partido mais internacionalizado das elites, cujos qua-dros estavam muito afinados com a ideologia que se im-pôs nos organismos econômicos internacionais nos anos80. Ativamente construída como doutrina, projeto políti-co e alianças a partir do “susto” de 1989, a recomposiçãosó se completou com a coalizão PSDB-PFL e a eleição deFernando Henrique presidente, em 1994, cacifado pelaestabilização monetária promovida pelo Plano Real. Ape-nas então pode-se afirmar que a saída neoliberal se con-solidou, impondo-se tanto sobre as propostas neodesen-volvimentista, como sobre a perspectiva democrática epopular.

O fortalecimento do neoliberalismo era, por vezes,obscurecido pela conturbada dinâmica política do perío-do, marcado por episódios como o impeachment de Collore a posse de Itamar, o plebiscito sobre sistema de gover-no, a CPI do orçamento, a frustrada tentativa de revisãoconstitucional e a preparação do Plano Real. Mas a aber-tura da economia realizada a curto prazo, sem uma políti-ca industrial compensatória e sem mecanismos de prote-ção alternativos às tarifas alfandegárias, precipitou a rápidareestruturação da economia.

O fracasso da política de Collor de estabilização mo-netária e a deflagração de uma recessão provocaram aescalada do desemprego e da informalização das relaçõesde trabalho, que já vinham crescendo, e mergulharam opaís numa grave crise social. Entre 1989 e 1992, a rendaper capita caiu 9%. Esta crise representou o auge dosimpasses vividos pela sociedade brasileira nas últimas duasdécadas.6 O movimento democrático e popular encontra-va-se, assim, em uma situação estruturalmente defensi-va, com as lutas sociais fragilizadas pelo crescimento dodesemprego, da precarização e da miséria – embora eleainda tivesse força para participar ativamente da quedade Collor e para influenciar o Congresso na CPI do orça-mento e na revisão constitucional de 1993-4. E o projetopolítico do PT sofria, além disso, as conseqüências do im-pacto do colapso da URSS e da crise do movimento soci-alista internacional, bem como da perda de unidade polí-tica interna e de coerência discursiva.

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Retrospectivamente, pode-se considerar o governoCollor como a expressão primeira, mais visível e certa-mente mais impopular da contra-reforma neoliberal, masde forma nenhuma a mais decisiva. Sua dimensão essen-cial é a que se expressa no terreno social, onde as conse-qüências da reestruturação e da nova inserção internacio-nal da economia continuaram se manifestando de formacumulativa. Foram as mudanças aí ocorridas, mais do quequaisquer outras, que solaparam as relações de forças quetinham sustentado os avanços da organização popular, daparticipação da cidadania e da democratização da socie-dade desde o final dos anos 70.

A bandeira da modernização como liberdade de mer-cado, inicialmente nas mãos de Collor, tornou-se patri-mônio da mídia, de quase todos os setores empresariais edos partidos que assumiram o horizonte neoliberal.Um discurso agressivo transforma a luta por direitos e aforça adquirida na organização popular em corporativis-mo, as conquistas sociais em privilégios e obstáculos àprodutividade e a defesa da economia nacional em cultoda ineficiência. Há uma intensa “luta discursiva”, em quea direita, agora reivindicando-se moderna, avança nadesconstituição das referências e valores que sustentarama construção da identidade do sujeito político e socialdemocrático e popular.7

Mas o neoliberalismo não é apenas uma ideologia –são interesses econômicos e políticos poderosos, que in-cidem, do exterior e no interior do país, sobre a luta pelopoder na sociedade brasileira. O projeto neoliberal reor-ganizou, em poucos anos, a agenda política dominanteem nível mundial porque expressa mudanças profundasnas relações de poder entre as forças sociais e políticasfundamentais, que repercutem de maneira diferenciada emtodos os países.

A ESQUERDA E AS REFORMASDEMOCRÁTICAS

As condições institucionais e a correlação de forças hojeno Brasil são favoráveis ao neoliberalismo. O bloco nopoder conta com um Executivo empenhado em realizaras mudanças que integrem o país na lógica da mundiali-zação do capital e dispõe de uma maioria no Legislativo,de um Judiciário dócil e de amplo apoio da mídia.

A situação econômica é grave, confirmando a descri-ção do modo de reprodução do capitalismo mundializadoque esboçamos.8 Todavia, o governo parece trabalhar coma idéia de que a venda das estatais poderá atrair o fluxode capitais necessário para dar uma sobrevida de algunsanos ao modelo atual (a meta anunciada são mais 22 bi-lhões de dólares até o final de 1998), antes de chegar auma situação sem saída, “à mexicana”. Assim, o governo

FHC tem, neste terreno, uma margem de manobra decres-cente, mas ainda importante.

A oposição democrática e popular, embora minoritá-ria, mantém parte da força acumulada pela esquerda epelos movimentos sociais. As disputas municipais de 1996mostram que, mesmo depois da derrota de 1994, ela temum espaço social e político. O potencial de uma oposiçãodemocrática e popular no Brasil é grande. Além disso, aunidade das forças políticas da classe dominante tem deser permanentemente reconquistada e as fraturas que aíocorrem podem ampliar o espaço de oposição. Sua mar-gem de ação é, naturalmente, distinta conforme o terrenode atuação: maior nos movimentos sociais, bem menorno Parlamento, flutuante nos processos eleitorais. O es-paço de uma alternativa ao neoliberalismo não pode ser,em muitos casos, estabelecido previamente, antes dasdisputas serem travadas.

O projeto da classe dominante não é fechado, compre-endendo um conjunto de orientações e objetivos cujosresultados vão sendo estabelecidos pela luta política e pelascondições econômicas, sociais e culturais. Mas o capita-lismo atual tem uma coerência interna que viabiliza suareprodução e que tende a se impor, com seus diversoscomponentes se reforçando mutuamente – uma lógica queé excludente.

Fernando Henrique Cardoso, em resposta às críticasdirigidas a seu governo, caracterizando-o como neolibe-ral, afirma que está encaminhando a única opção possí-vel e que a mundialização não permite outra alternativa,por mais problemas que o modelo atual apresente.9

Contestar isso é a base de qualquer alternativa políticano mundo de hoje. Para quem tem uma posição crítica, ahistória não está fechada e a globalização neoliberal nãoé o destino inexorável do Brasil e da humanidade. Mas asdificuldades existem e são grandes.

Problemas de Tática e Estratégia

As dificuldades se situam, inicialmente, no terreno dascondições de atuação política na atual conjuntura. Algunssetores da esquerda têm defendido que seria possível dis-tinguir entre a globalização, que teria um caráter moder-nizador, e o neoliberalismo, que seria excludente e regres-sivo. Consideram que está posta na agenda política umasérie de reformas modernizadoras que a esquerda deveriadisputar com o neoliberalismo. Uma pauta comum pode-ria ser construída entre a esquerda e o centro, representa-do fundamentalmente pelo PSDB.

Plinio de Arruda Sampaio (1995) tem sustentado uma duracrítica a esta visão. Questiona a existência de uma pautacomum e também as condições táticas da esquerda de tra-var esse tipo de disputa; o controle do bloco no poder sobre

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as instituições e a mídia é tal que esse tipo de iniciativaconjunta com setores do governo tende a ser por eles apro-priado e utilizado para legitimar seu projeto global.

As duas questões são pertinentes. Não há uma pautacomum entre setores populares e setores do governo quepossa ser separada da agenda global da coalizão no go-verno. E a disputa pelo sentido de qualquer encaminha-mento conjunto se dá, nesta correlação de forças, de for-ma muito desfavorável aos setores populares. Trata-se deum enfoque geral da tática da esquerda para a conjunturacoerente, em que as propostas neoliberais são caracteri-zadas como uma contra-reforma e em que as iniciativasde auto-organização e construção da cidadania na luta porseus direitos são valorizadas.

O debate sobre tática remete aos problemas mais ge-rais de orientação da esquerda. Os esforços de alguns dosseus melhores quadros que vêm se dedicando à elabora-ção de uma alternativa global – é o caso, por exemplo, deCésar Benjamin, cuja contribuição vertebrou a elabora-ção do programa de governo da campanha de Lula em1994 – têm resultado em propostas cujo eixo e pressu-posto são a recuperação da autonomia e da capacidade deação política do Estado nacional e o deslocamento docentro de gravidade da acumulação para a formação deum mercado interno de massa.

Esta proposta, porém, não responde a dois problemas.O primeiro é o da correlação de forças vinculada à mun-dialização, simultaneamente externa e interna. Como con-quistar as condições para deslanchar esta alternativa noplano apenas nacional? O segundo é o da constituição dosujeito deste processo. Como formá-lo no terreno adver-so criado pela implantação do neoliberalismo, com o avan-ço da fragmentação, das desigualdades e das injustiças,com o esgarçamento da integração social e nacional? Ascondições de atuação de um sujeito político e social decaráter democrático e popular são hoje bem diferentesdaquelas dos anos 80.

Integração Regional e Atuação Internacional

Uma parte das respostas a estes problemas parece serque as forças democráticas e populares devem acumularforças para disputar os espaços em que os processos derecomposição em curso estão se dando, isto é, no terrenonacional e internacional. No plano nacional, parece nãoexistir alternativa viável a um processo que é, antes detudo, internacional.

No terreno do programa, um dado fundamental é ocolocado pelo Mercosul, que vem se consolidando comouma integração de mercados, sem nenhum controle de-mocrático ou participação das sociedades civis. Ele apontapara uma instituição tecnocrática supranacional que ten-

de a se apropriar de atribuições econômicas hoje nas mãosdos Estados. De qualquer forma, os pactos que o estrutu-ram já estabelecem uma série de condicionantes à açãodos países que o compõem.

Mas a integração da economia sul-americana, que agoraganha velocidade, traz um potencial de grande crescimentopara os países da região, principalmente o Brasil, que tendea ser o seu pólo, particularmente se a zona de livre-co-mércio não for estendida aos pólos da Tríade (no caso, apressão maior para a incorporação vem dos Estados Uni-dos). Um processo de integração regional, todavia, temde estar ancorado em força política e instituições respal-dadas pelas populações, para fazer frente às pressões de-sagregadoras. Assim, o terreno da integração regional podeconstituir um espaço de disputa e de acumulação de for-ças para uma proposta que conceba a integração comoum processo igualmente político e cultural.

A constituição de sujeitos políticos neste plano é deci-siva. Uma integração de nações e não apenas de merca-dos só pode ser empreendida com o concurso de forçaspolíticas portadoras de projetos democráticos e popula-res. A esquerda latino-americana conhece, porém, umagrave crise de perspectivas. O Fórum de São Paulo, queagrupa os principais partidos populares do continente (PT,PRD mexicano, PC cubano e FSLN nicaragüense), for-mou-se como um marco de relações diplomáticas entreforças políticas que se pretendiam com vocação governa-mental. Uma série de derrotas eleitorais provocou seuretrocesso, evidenciando os limites de sua proposta, ba-sicamente institucional. De outro lado, o zapatismo lan-çou recentemente uma alternativa com seu chamado àconstituição de uma “Internacional da Esperança”, masnem suas bases políticas (por exemplo, a relação com aluta pelo poder ou a participação eleitoral) nem seu po-der convocatório estão claros. Ainda estamos numa situ-ação de transição entre os projetos herdados que se esgo-tam e a formação de uma articulação política capaz delidar com a América Latina “globalizada”.

O movimento sindical já deu passos neste sentido, de-batendo uma proposta de direitos sociais e trabalhistascomum aos países do Mercosul, de modo a evitar que elessejam nivelados por baixo (isto é, pelo padrão brasilei-ro). Recentemente, formulou a proposta de uma grevegeral regional. Mas trata-se ainda de iniciativas embrio-nárias e pontuais.

Estão em curso também outras iniciativas de integra-ção “por baixo”, como a articulação entre as grandes ci-dades do Mercosul, que está se estabelecendo no eixoPorto Alegre-Buenos Aires-Montevidéu, embora aindanão tenha repercutido no Brasil fora do sul.

Mas a integração regional não é o único terreno para aesquerda atuar em face da mundialização do capital. Esta

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coloca em pauta o uso das cláusulas sociais nas normasde comércio internacional. Esta proposta é rechaçada pelogoverno e pelo empresariado brasileiros, mas é sustenta-da pelo sindicalismo dos países centrais, temerosos coma “exportação de empregos” para a periferia, e por orga-nizações de defesa dos direitos humanos. A ela se soma apressão dos grupos ecologistas por “cláusulas ambientais”.As questões que são tema destas cláusulas são graves:desrespeito de direitos trabalhistas mínimos, uso de tra-balho infantil e até de trabalho escravo, devastação am-biental. É correto que elas sejam objeto de campanhasinternacionais e que todos os instrumentos de pressãosejam acionados para combatê-las. Além disso, elas po-dem permitir uma articulação entre os movimentos so-ciais dos países da periferia e dos países centrais, criandocondições muito melhores para pressionar os governos dospaíses do Sul.

Estas cláusulas, argumentam seus opositores, podemser utilizadas como pretexto para legitimar o protecionis-mo dos países centrais. Mas este ocorre porque os gover-nos destes países têm consciência dos seus objetivos na-cionais, o que em geral não ocorre na periferia. O livrecomércio mundial, sem barreiras nem condições, nosmarcos do capitalismo atual, é uma utopia reacionária,que apenas provoca a desagregação das economias compatamares de produtividade mais baixos. Outra objeção éque se trata de uma ingerência na soberania das naçõesque são objeto de pressão. Mas a requalificação da sobe-rania é um dado da mundialização. Não podemos permi-tir que ela deixe de existir apenas quando se trata de be-neficiar o capital. No caso brasileiro, dada a inexistênciade qualquer ação do governo central e mesmo, no casodas questões ambientais, do conluio de certos governosestaduais com interesses predadores, a pressão das ONGs,de entidades sindicais, ecológicas e de defesa dos direi-tos humanos dos países centrais pode contribuir positiva-mente para alterações na sociedade brasileira, forçando,por exemplo, o governo a coibir a ação das madeireirasna Amazônia (cada vez mais empresas asiáticas que agemcom a conivência dos governos federal e estadual) ou aencontrar formas mais efetivas de combater o trabalhoinfantil (o Brasil é o 6o país do mundo neste triste ranking,com 16% das crianças trabalhando).

As cláusulas sociais e ambientais não são uma varinhamágica, mas ilustram um dos tipos de ação no terrenointernacional indispensável para que a esquerda brasilei-ra volte a conquistar correlações de forças mais favorá-veis. Outras ações têm se delineado, como a articulaçãode ONGs e de sindicatos, campanhas internacionais dedenúncia e solidariedade, disputa da opinião pública dediferentes países, etc. No mundo atual, uma esquerda iso-lada no terreno nacional, e/ou ineficaz em sua ação inter-

nacional, está condenada de antemão a fracassar na dis-puta de hegemonia em seu próprio país.

DEMOCRACIA DIRETA E PARTICIPATIVA

A constituição do sujeito social e político capaz devoltar a impulsionar uma ampla democratização da so-ciedade brasileira tem de se dar em um terreno perma-nentemente redesenhado pelas políticas neoliberais.

As experiências mais bem-sucedidas da nossa esquer-da no último período foram as que firmaram referênciaspráticas de auto-organização e de democracia direta nosmovimentos sociais que sobreviveram e os processos dedemocratização do poder local através de formas de de-mocracia participativa. São processos que constroem umareferência política muito distinta da dominante, de forteimpacto sobre o cotidiano de setores populares.

Processos tão diferentes entre si como o Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o orçamento parti-cipativo na prefeitura de Porto Alegre têm em comumpráticas de democracia participativa e direta que rompemcom a política como mera escolha de representantes so-bre os quais não se tem nenhum controle. São processosem que todos que querem podem participar e interferirnas definições, sentindo-se solidários com o encaminha-mento das decisões tomadas. Os representantes e líderesnão estão distantes, podendo ser cotidianamente cobra-dos e fiscalizados. O contraste com a burocratização domovimento sindical, hoje em crise, é marcante.

As questões relativas à democratização do poder localmerecem destaque por sua importância estrutural. Com amundialização, uma série de cidades passam a desempe-nhar papel estratégico na reorganização do espaço social,econômico e político, tornando-se atores políticos deci-sivos, como destacam Castells e Borja (1996). A concen-tração urbana cresceu muito no Brasil: 40% da popula-ção do país vive em apenas nove regiões metropolitanase 20% em São Paulo e no Rio de Janeiro. A atual distri-buição dos recursos públicos fortaleceu os municípios emdetrimento dos estados (que estão falidos ou muito endi-vidados). O governo municipal surge para os moradoresdas cidades – com as exceções das megacidades de SãoPaulo e Rio de Janeiro – como mais próximos deles, de-senvolvendo atividades sob as quais se sentem em condi-ções de opinar mais do que os estados ou a União. E tratade questões que dizem respeito a todos, independentemen-te de categorias profissionais ou de estarem empregadosou desempregados, ou ainda de serem assalariados ouautônomos, etc.

Este é um importante espaço de construção da cidada-nia, de aprofundamento das experiências democráticas ede reapropriação da política pela população, independen-

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temente destas iniciativas se darem como o apoio dosgovernos locais ou na luta contra eles e por mais diferen-tes que sejam as formas organizativas que assumam. Odecisivo é a prática de formas participativas de democra-cia e o estabelecimento de relações solidárias que pos-sam servir de antídoto à fragmentação e à atomização, àcompetição de todos contra todos. Um choque de demo-cracia é a única maneira eficaz de responder a um choquede mercado.

O destaque que demos à necessidade da esquerda deacumular forças no terreno internacional e da construçãode formas de democracia direta e participativa na base dasociedade (ou muito próxima a ela) advém de se tratar depontos débeis que têm de ser superados. Afinal, o acú-mulo de seu know-how prático se deu, nestes anos, prin-cipalmente na ação política, entendida no sentido maisusual, institucional ou não – ação parlamentar, ação tra-dicional à frente de governos municipais e estaduais, dis-putas eleitorais, mobilizações de massas por reivindica-ções econômicas, luta pela orientação das políticaspúblicas, posicionamento sobre grandes questões de so-ciedade. Mas esta ação política, se não for empreendidacom uma forte marca diferencial – dada por práticas deradicalização da democracia, por uma perspectiva univer-salista e pelo seu direcionamento no sentido da constitui-ção de sujeitos coletivos –, perde transparência e dissol-ve-se na vala comum dos projetos pessoais e do “é dandoque se recebe”, práticas estigmatizadas de forma justifi-cada por grande parte da população.

A reeleição e as propostas de reforma que vêm sendodebatidas pelo bloco governamental no Congresso sãoparte de um movimento mais amplo de contra-reformapolítica e social. A agenda das forças democráticas e po-pulares não apenas é diferente destas propostas como sedesdobra a partir de um terreno distinto, envolvendo umcálculo político e apostas igualmente distintas. A refor-ma democrática decisiva para a sociedade brasileira é via-bilizar a participação constante de milhões de pessoas navida política da nação, não na condição de eleitores even-tuais, mas de cidadãos informados e conscientes, de agen-tes na constituição de sujeitos coletivos e na construçãode novas relações de poder. Só assim será possível reto-marmos o processo democratizador dos anos 80, restabe-lecermos um horizonte utópico e avançarmos na constru-ção de uma sociedade democrática nas condições de ummundo cada vez mais integrado.

NOTAS

1. Há também, na pauta do Congresso, as propostas habituais de reformas polí-ticas, que a cada ano retornam ao debate, como do voto distrital misto, do votofacultativo, da barreira de 5% para os partidos elegerem parlamentares e até mesmo

a de transformação dos ex-presidentes em senadores vitalícios! Como a da ree-leição, estas propostas não são uma iniciativa de democratização do sistema po-lítico, mas surgem como medidas casuísticas, discutidas e aprovadas em funçãodos interesses em jogo, apontando para uma maior oligarquização da vida polí-tica do país, segundo avaliação de Renato Lessa (1996).Enquanto isso, as regras eleitorais, como as condições de utilização do horárioeleitoral gratuito no rádio e na televisão, a divulgação de pesquisas e as contri-buições de campanha, continuam sendo definidas a cada eleição. A agenda de“reformas políticas” dos partidos no poder continua ignorando as gritantes dis-torções no sistema de representação, que dão aos eleitores dos pequenos estadosum peso político muito maior que o dos eleitores dos estados mais populosos,inflando artificialmente as bancadas de partidos conservadores. Ou a duplicaçãode atribuições da Câmara pelo Senado que ao invés de zelar pelo equilíbrio daFederação, funciona como instância revisora da Câmara Federal, novamente embenefício de setores oligárquicos. Ou ainda a necessidade de redesenhar a distri-buição de competências e recursos entre municípios, estados e União.De fato, nestas como em outras questões, o Legislativo federal tem muito poucainiciativa. Hoje, 90% da pauta do Congresso é composta por iniciativas do Exe-cutivo. Entre edições e reedições, as medidas provisórias já somam, no atualgoverno, segundo a deputada Maria da Conceição Tavares, mais de 1.600, o dobroda soma dos dois governos anteriores.

2. As regras que o capitalismo contemporâneo pretende eliminar, segundo ClaudeJulien (1994), “respondem a abusos intoleráveis, sendo uma grande conquista ea mais pura expressão da democracia, destinada a proteger os mais fracos, a ga-rantir as liberdades individuais, tão levianamente esmagadas pela máquina eco-nômica, quando esta é deixada por sua própria conta. Possibilitadas pelo sufrá-gio universal, estas regras impõem procedimentos, fixam limites, interdições,condições: na vida das empresas, nas operações bancárias, nos locais de traba-lho, nos contratos... Elas são a própria democracia”.

3. Não há uma história dotada de ritmo homogêneo, organizada pela “corres-pondência entre níveis”, na qual poderiam existir “atrasos” e “processos prema-turos”. A disputa entre diferentes sujeitos estabelece um jogo entre o real e opossível, no qual uma possibilidade pode ou não tornar-se efetiva; o tempo dapolítica é sempre o presente. Pode-se, assim, romper com uma visão teleológica,que permite pressupor-se normativamente uma “ordem moderna” a ser alcança-da.

4. Guillermo O’Donnell (1996:28-29) aponta com clareza as limitações desteprocesso. Falando sobre as conseqüências da transição em um grupo de paísesda América Latina, incluído o Brasil, ele afirma que aí as liberdades mais políti-cas, democráticas são efetivas. “Isso diz respeito à ausência de coerção sobre ovoto e às liberdades de opinião, de movimento, de associação (...). Mas paravastos segmentos da população, são negadas ou espezinhadas as liberdades libe-rais fundamentais. Os direitos das mulheres espancadas de processar seus mari-dos, de camponeses de conseguir um julgamento justo contra os seus patrõesproprietários de terras, a inviolabilidade de domicílio em bairros pobres e, deforma geral, o direito do pobre e de várias minorias a um tratamento decente e aum acesso equitativo a agências públicas e aos tribunais são freqüentementeviolados. A efetividade do conjunto todo de direitos, democráticos e liberais,contribui para uma cidadania civil e política plena. Em muitas das novas poliar-quias, os indivíduos somente são cidadãos em relação à única instituição – aseleições – que funciona de acordo com que suas normas formais prescrevem.Em tudo o mais, somente os membros de uma minoria privilegiada são plena-mente cidadãos”.

5. Entre 1980 e 1992, o Brasil pagou 182,5 bilhões de dólares de juros da dívidaexterna, enquanto gastou em educação, saúde e saneamento apenas 54,2 bilhõesde dólares.

6. Em 1992, a produção da indústria de transformação era 6,6% inferior à de1980 e o número absoluto de postos de trabalho na indústria havia caído ao nívelde 1971. Segundo os dados da Cepal, a percentagem de pobres na sociedadebrasileira, que havia recuado de 41,4% em 1960 para 24,4% em 1980, atingiu45% em 1992, o que corresponde a mais de 65 milhões de pessoas.

7. O discurso neoliberal promove uma inversão dos termos do debate sobre osinteresses em disputa na sociedade. Apoiando-se no fato de que os setores so-ciais e as correntes políticas que antes promoveram as reformas democráticasestão na defensiva e têm de tentar manter posições já conquistadas, o “pensa-mento único” apresenta-se à sociedade como dinâmico e modernizador (isto é,mudancista), em oposição a uma esquerda apresentada como conservadora. “Oconservadorismo tornado radical enfrenta o socialismo tornado conservador”,afirma Anthony Giddens (1996). Mas a inversão é apenas aparente. O que o dis-curso da direita pode fazer é apropriar-se de uma concepção providencial da his-tória, cujos ventos soprariam a favor do progresso e do enriquecimento huma-nos, ilusão que antes era reivindicada pela esquerda com grandes prejuízos parasua capacidade crítica. Reacionários, conservadores e modernos não são movi-mentos de sentido distinto sobre a flecha da história, a volta ao passado, a manu-tenção do status quo ou o deslocamento rumo a um futuro presumido como me-lhor. Conservadora é, desde o século XVIII, a defesa dos privilégios em face dasdemandas de democracia e de defesa dos velhos direitos e de conquista de no-vos. A contra-reforma em curso é, além de conservadora, regressiva: quer nãosó manter exclusões e defender os interesses dos setores sociais dominantes mastambém, na medida do possível, reforçar e ampliar seus privilégios.

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8. O déficit comercial revela a forma irresponsável como a abertura da econo-mia foi empreendida e já se anuncia mais um “desaquecimento” do mercado in-terno. A âncora cambial está sendo mantida como base da estabilização monetá-ria, ainda que com um câmbio sobrevalorizado e conseqüências danosas para asfinanças públicas – o Tesouro tem de esterilizar a emissão monetária equivalen-te em cruzeiros dos dólares que entram, vendendo títulos e realimentando a ci-randa financeira. O déficit em conta corrente foi de 18 bilhões de dólares em1995, de cerca de 22 bilhões em 1996 e projeta-se um déficit de 25 bilhões paraeste ano, o que implica um crescimento do passivo externo de 65 bilhões de dólaresem apenas três anos.

9. Fernando Henrique reconheceu recentemente, falando do Brasil, que o mode-lo atual não pode incluir a todos. “Não nego que, provavelmente, na dinâmicaatual, não há força para incorporar todo mundo. Teremos que aumentar a dinâ-mica para incorporar o máximo”. (Entrevista a Vinícius Torres Freire, Folha deS.Paulo, Caderno Mais, 13 de outubro de 1996).

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AS REFORMAS (DES)NECESSÁRIAS

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AS REFORMAS (DES)NECESSÁRIAS

esde o início do processo de redemocratização,a reforma da legislação eleitoral e partidária vemsendo defendida por amplo espectro de analistas

e políticos. Para muitos, sem essa reforma não haveriaavanço possível no sentido da consolidação da nossa re-cém-inaugurada democracia. Um tanto esquecidas ao lon-go do primeiro ano do governo Fernando Henrique, aspropostas de reforma política retornaram ao debate pú-blico a partir das dificuldades enfrentadas pelo governona aprovação da reforma da previdência e, sobretudo, emvirtude da discussão da emenda favorável à reeleiçãopresidencial.

A necessidade de promover reformas político-institu-cionais é sustentada por um diagnóstico amplo e abran-gente em que são alegadas inúmeras falhas e carênciasdo sistema político brasileiro, a maior delas a conhecidafragilidade de nossas instituições representativas. Esta de-bilidade afetaria negativamente as chances da consolida-ção da democracia por estas plagas, uma vez que, comose sabe, democracias modernas tendem a apresentar sis-temas partidários fortes, enraizados na sociedade. NoBrasil, os partidos não seriam capazes de se constituir noscanais através dos quais as demandas sociais ganhariamexpressão política e, desta forma, falhariam em desem-penhar sua função, ou seja, prover as bases necessáriaspara a sustentação de políticas governamentais. A causada fragilidade de nossas instituições representativas, ain-da segundo este argumento, seria a legislação eleitoral epartidária equivocada aqui adotada.

Vale notar ainda que, de acordo com esta visão, a in-capacidade do sistema partidário de estruturar e dar va-zão às demandas sociais acabaria por gerar uma agendapolítica sobrecarregada. As reformas visariam, portanto,

segundo seus defensores, ordenar as demandas sociais quechegam ao sistema político por meio de sua estruturaçãoe contenção. Em uma palavra, conferir inteligibilidade aum sistema que carece de estrutura.

Neste artigo, procurou-se, em primeiro lugar, recons-truir os supostos centrais da argumentação dos defenso-res das reformas político-institucionais e mostrar que vá-rias das predições da teoria que informa suas análises nãosão observadas. Na realidade, as evidências empíricas emfavor do diagnóstico que embasa as propostas reformis-tas são frágeis. Boa parte do juízo corrente sobre a evolu-ção do sistema partidário brasileiro radica-se em expec-tativas irrealistas, construídas a partir do modelo dedemocracia partidária que, eventualmente, teve lugar naEuropa do pós-guerra.1 Assim, em lugar de explicar aevolução do sistema partidário no período recente e o fun-cionamento do sistema decisório nacional, os desvios decurso que nos afastam do modelo, as discrepâncias entreo observado e o idealizado são tomados como evidênciacomprobatória do subdesenvolvimento institucional. Aconvicção de nosso “atraso” é tão forte e arraigada quechega a cegar os analistas quanto a algumas evidênciaspor eles mesmos levantadas.

Feita esta reconstituição, são apresentadas evidênciasque permitem questionar as inferências derivadas da legis-lação eleitoral e partidária. Em lugar de um plenário mar-cado pelo individualismo e pela inconstância, encontra-se um processo decisório previsível porque estruturadoem torno de partidos disciplinados. Ou seja, as reformassão desnecessárias porque o que as justificariam já é ob-tido por outros meios. Esta é a tarefa a que se dedica aoutra parte deste artigo, ou seja, a de oferecer uma expli-cação para o padrão de comportamento partidário encon-

D

FERNANDO LIMONGI

Professor do Departamento de Ciência Política da USP, Pesquisador do Cebrap

ARGELINA FIGUEIREDO

Professora do Departamento de Ciências Políticas da Unicamp, Pesquisadora do Cebrap

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trado. A última parte do texto discute a evolução recentedo quadro partidário, argumentando que esta deve ser en-tendida como integrante de um processo de transição dosistema partidário brasileiro do bi ao pluripartidarismo.

O fraco desempenho de nossas instituições represen-tativas, dizem seus críticos, decorreria, entre outros tan-tos motivos, da fragilidade dos vínculos a unir represen-tantes e representados. Esta falha corroeria as bases dosistema representativo, uma vez que, em função destasdebilidades, políticos não teriam por que pautar sua açãoem acordo com os interesses daqueles que lhe conferi-ram o mandato. Nestes termos, um dos propósitos da re-forma seria adensar estes vínculos, tornando-os efetivos,com o que seria viável que o eleitor viesse a controlar opolítico a quem confere mandato.

O sistema beiraria o caos, porque seria destituído dequalquer elemento ordenador que não os interesses indi-viduais dos próprios políticos. Não limitado pelo eleitor,o político brasileiro teria campo livre para usar o manda-to em proveito próprio, buscando, por meio da atividadepolítica miúda, obter o máximo de vantagens para si e omínimo para seus eleitores. Para estes últimos, bastariaoferecer o estritamente necessário para garantir sua ree-leição, o que implica uma atuação voltada para as ques-tões locais e de cunho manifestamente clientelista. Osinteresses nacionais e gerais não encontrariam veículo parasua expressão via partidos políticos. Em suma, os princí-pios que informariam a ação dos políticos brasileiros es-tariam nas antípodas da motivação ideológica e/ou dointeresse geral. Quando confrontados com decisões rele-vantes, políticos olhariam, antes de mais nada, para seuspróprios interesses e, no máximo, para o de suas cliente-las. Deste modo, dada a variedade destes interesses, asdecisões coletivas careceriam de qualquer princípio queas estruturasse ou lhes conferisse previsibilidade. O par-tido a que um político está filiado não forneceria qual-quer pista sobre seu comportamento.

As conseqüências deletérias da fluidez dos vínculos queunem representantes e representados, segundo o diagnós-tico que sustenta a proposta reformista, seriam agravadaspela ausência de mecanismos institucionais capazes degerar disciplina partidária. A teoria neo-institucionalistaem voga afirma que a disciplina é uma função da legisla-ção eleitoral, pois esta última regula o acesso aos recur-sos que afetam as chances de eleição e reeleição dos po-líticos. No Brasil, os candidatos administram as finançasde suas campanhas e vigora a eleição proporcional porlista aberta, isto é, a eleição e reeleição seriam, essencial-mente, uma empreitada individual, a ser levada a cabopelo político com um mínimo de interferência e controledo partido. Em suma, o partido não disporia dos meca-nismos clássicos para punir deputados indisciplinados. Se

a legislação fosse outra, os deputados indisciplinados se-riam colocados nas últimas posições da lista partidária e/ou não teriam acesso aos fundos eleitorais controlados pelopartido. Antecipando e temendo estas sanções, os depu-tados seguiriam a linha do partido.

Sendo assim, segue o argumento, a legislação eleito-ral brasileira não propiciaria o surgimento de partidosfortes, posto que incentivaria e premiaria a ação indivi-dualista dos políticos. Estes nada deveriam e nada teriama temer do partido, com o que atuariam no parlamentoseguindo única e exclusivamente o seu próprio interesse.Cada um cuidaria da sua reeleição. Não haveria lugar paraestratégias políticas de longo prazo calcadas em projetospolíticos ancorados nos partidos. Prevaleceria a ação pau-tada por uma estratégia eleitoral de curto prazo, persona-lista e irresponsável. Por tudo isto, o sistema partidáriobrasileiro não daria mostras de evoluir no sentido de suamaior institucionalização. Os partidos continuariam aapresentar vida efêmera, aparecendo e desaparecendo aosabor das conveniências dos políticos e suas estratégiaseleitorais de momento, denotando, acima de tudo, a faltade qualquer enraizamento dos partidos na sociedade.

Somente a partir deste quadro seria possível entendero incrível número de siglas existentes. Se partidos sãocanais de comunicação entre a sociedade e o Estado, de-veriam expressar interesses ou correntes de opinião pre-existentes ou latentes na sociedade. Ora, se assim for, noBrasil haveria partidos em excesso, já que não existiria anecessária correspondência entre os partidos e a socieda-de. Afirmar o contrário seria supor que, no Brasil de hoje,existiriam cerca de duas dezenas de clivagens sociais oucorrentes de opinião reivindicando sua expressão políti-ca. Na ausência desta correspondência, o único interesseou opinião que estes partidos poderiam expressar é o dospróprios políticos. De outra forma, como entender quepolíticos criem tantos novos partidos ao longo das legis-laturas em desrespeito evidente à opinião dos eleitores?

Deste quadro sombrio decorreria a incapacidade dogoverno de construir coalizões estáveis. Para obter apoioàs suas iniciativas, o Executivo não poderia contar comapelos derivados da vontade do eleitor e/ou de princípiosideológicos. Os políticos brasileiros seriam surdos a es-tes reclamos. Ademais, o governo e os líderes dos parti-dos que lhe emprestam apoio não contariam com qual-quer instrumento institucional que lhes permitisse impordisciplina. Dessa forma, o governo teria que se valer decoalizões formadas caso a caso, situação na qual seria presada chantagem individual dos políticos que venderiam caroseu apoio às iniciativas do Executivo. Maiorias seriam for-madas a um custo excessivamente alto, uma vez que te-riam como base a propensão dos políticos brasileiros aoclientelismo e ao benefício próprio.

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Para muitos, o acerto deste diagnóstico está a salvo dedisputas a ponto de, por paradoxal que possa parecer, dis-pensar a apresentação de evidências empíricas sistemáti-cas que o corroborem. Em geral, a empiria oferece as ilus-trações exemplares que comprovariam o que todos têmpor verdade estabelecida. Cita-se o exemplo do deputadoque comparou o mandato parlamentar ao passe do joga-dor de futebol ou o daquele que se filiou a nada menosque sete siglas ao longo de uma legislatura para mostrarquão frágeis são os vínculos partidários no Brasil. Tiran-te os exemplos deste teor, tudo o mais que temos são in-ferências. O caso mais significativo é o da alegadaindisciplina dos parlamentares brasileiros, tida como lí-quida e certa a partir de inferências calcadas no alegadoincentivo ao individualismo contido na legislação eleito-ral. Não ocorreu a ninguém testá-la.

Evidências empíricas sistemáticas invalidam o diag-nóstico apresentado anteriormente. Mais do que isto, apon-tam para um cenário em que muito do que se pretendeobter por força da inovação institucional já é realidade.O plenário da Câmara dos Deputados caracteriza-se an-tes pela disciplina que pela indisciplina. O Gráfico 1 traza distribuição dos votos disciplinados para todas as vota-ções nominais que tiveram lugar na Câmara entre 1989 e1995.2 O voto do deputado é definido como disciplinadoquando ele acompanha o voto encaminhado pelo líder deseu partido para aquela votação e indisciplinado quandoele vota contra seu líder.3

Os dados são cristalinos. Contrariamente ao que pro-pala como líquido e certo, a norma é o voto disciplinado.

Em uma votação qualquer, espera-se encontrar 86,9% dosdeputados votando de acordo com a orientação do líderde seu partido. Em mais da metade das 315 votações aquiconsideradas, a porcentagem de votos disciplinados foisuperior a 89,3% do total. Em apenas 5% dos casos, adisciplina foi inferior a 70%.

A priori, não há como classificar graus de disciplinapartidária. Esta será alta ou baixa conforme o critério quese utilize, sendo que o mais razoável parece ser o da pre-visibilidade. A disciplina existente deve ser tomada comoalta desde que permita prever os resultados das decisões.Como demonstramos em outra oportunidade, a discipli-na encontrada torna as decisões do plenário previsíveis.Se um observador qualquer entra em plenário em meio auma votação nominal em tempo de ouvir somente os vo-tos encaminhados pelos líderes dos partidos,4 ele serácapaz de prever o resultado desta votação com 90% dechance de acerto.5

Os votos das bancadas não se distribuem de maneiraaleatória, obedecendo antes a um padrão constituído apartir da proximidade ideológica dos partidos. A Tabela1 demonstra que é possível reduzir o comportamento dospartidos à ordenação ideológica clássica. Quanto maispróximos ideologicamente forem os partidos, tanto maissemelhante será o comportamento de suas bancadas.6

À medida que os partidos se afastam, seja à direita ou àesquerda, o índice de semelhança tende a cair. Tome-se oPMDB como exemplo: em média, 81% da bancada doPMDB e do PTB votaram de maneira similar, enquanto asemelhança média entre os votos dos membros do PMDB

GRÁFICO 1

Porcentagem de Votos Disciplinados nas Votações NominaisBrasil – 1989-1995

TABELA 1

Índices Médios (1) de Semelhança em Todas as Votações1989-95

Partidos PDS PDIR PFL PTB PMDB PSDB PDT PESQ PT(2) (3)

PDS 88 88 86 78 65 35 32 21

PDIR 88 90 90 81 70 38 35 24

PFL 88 90 89 81 69 34 32 21

PTB 86 90 89 81 71 40 37 25

PMDB 78 81 81 81 77 49 46 35

PSDB 65 70 69 71 77 56 58 48

PDT 35 38 34 40 49 56 85 78

PESQ 32 35 32 37 46 58 85 84

PT 21 24 21 25 35 48 78 84

Fonte: Diário do Congresso Nacional; Banco de Dados Legislativos; Cebrap.(1) Para o cálculo dos índices, tomou-se o total de votações nominais analisadas no perío-do (315).(2) PDIR: Pequenos partidos de direita.(3) PESQ: Pequenos partidos de esquerda.Fonte: Diário do Congresso Nacional; Banco de Dados Legislativos; Cebrap.

0 5 1 0 1 5 2 0 2 5

4 3

4 6

4 9

5 2

5 5

5 8

6 1

6 4

6 7

7 0

7 3

7 6

7 9

8 2

8 5

8 8

9 1

9 4

9 7

1 00

100Porcentagem de votos disciplinados

No de casos

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e do PSDB é de 77%, caindo para 49% quando se passapara a semelhança com o PDT, 46% com os pequenos par-tidos de esquerda e 35% com o PT.

As decisões na Câmara dos Deputados são baseadasem uma estrutura partidária unidimensional passível deser traduzida em termos ideológicos. Os partidos se dis-põem neste contínuo justamente onde nossa intuição ten-deria a colocá-los. Os dados permitem concluir que exis-tem uma direita, um centro e uma esquerda que atuam demaneira razoavelmente coordenada. Em realidade, a di-reita e a esquerda tendem a constituir dois blocos solida-mente unidos, enquanto o centro tendeu a pender maispara a direita que para a esquerda. Ao longo do tempo,esta coalizão centro-direita foi se tornando mais forte e,como se sabe, acabou por se impor na arena eleitoral e,hoje, constitui a base de sustentação política do governoFernando Henrique Cardoso. Por último, cabe notar queestes dados permitem concluir que a fragmentação nomi-nal não acarreta problemas para o processo decisório.Pequenos partidos de direita votam com a direita e os deesquerda com a esquerda. A alta fragmentação nominalesconde uma baixa fragmentação real.7

A literatura brasileira, principalmente aquela que de-fende de maneira mais aguerrida a necessidade das refor-mas político-institucionais, prevê resultados completa-mente diversos. Se fosse verdadeiro o diagnósticodominante, deveríamos observar um plenário desestrutu-rado e totalmente carente de disciplina. Os resultados apre-sentados atacam o coração do diagnóstico reformista, in-validando um de seus principais supostos.

Por que encontramos um plenário tão previsível e es-truturado quando a teoria centrada na legislação eleitorale partidária nos levava a esperar o contrário? Na nossaopinião, três fatores explicam o padrão de comportamen-to parlamentar encontrado. O primeiro é a coesão parti-dária, ou seja, a existência de proximidade entre as prefe-rências dos parlamentares filiados a um mesmo partido.O segundo decorre da distribuição de direitos legislati-vos consagrados pela Constituição de 1988 e pelos Regi-mentos Internos das casas legislativas que conferem aoExecutivo e aos líderes partidários considerável poder deagenda. Finalmente, há que se considerar que o Executi-vo detém recursos e mecanismos capazes de, em aliançacom as lideranças partidárias, assegurar o comportamen-to disciplinado das bancadas.

Os dados contidos na Tabela 1 mostram que há distin-ções claras no comportamento dos partidos, mesmo paraaqueles dentro de um mesmo bloco ideológico, indican-do que os deputados filiados a um mesmo partido têmpreferências similares, isto é, que há coesão partidária eque esta mesma coesão distingue os partidos entre si.Coesão diz respeito à distribuição das preferências dos

parlamentares. O partido será tanto mais coeso quanto maispróximas forem as preferências de seus membros. Logo,quanto maior a coesão, menor o recurso a sanções disci-plinares. No entanto, cabe notar que a coesão antecedelogicamente a disciplina, justificando o uso desta comomeio de coordenar as ações dos membros do grupo, evi-tando o comportamento oportunístico individual.

Outros autores levantaram evidências que apontam namesma direção. Por exemplo, Kinzo (1993) mostrou queas preferências dos deputados estaduais brasileiros sobrequestões políticas permitem construir um contínuo ideoló-gico similar ao apresentado na Tabela 1.8 Bolivar Lamouniere Amaury de Souza, comentando os resultados da pes-quisa Idesp/Fiesp junto a deputados federais, chegaram aconclusões idênticas (Gazeta Mercantil, 7/11/96:A-8). Àmaneira de Limongi e Figueiredo (1995), os autores mos-tram que deputados agrupam-se em três grandes blocosideológicos – liberais, centristas e intervencionistas – so-brepostos a uma estrutura partidária que obedece a umcritério ideológico.9

A convicção do diagnóstico segundo o qual o siste-ma partidário brasileiro é atacado de debilidade congêni-ta cega os analistas no que refere à força destas e outrasevidências. A coesão notada é tida por insuficiente paraafetar e estruturar o comportamento dos parlamentares.Em editorial, o jornal o Estado de S.Paulo noticiou osresultados da pesquisa Idesp/Fiesp e concluiu que “quan-do a base governista vota as reformas econômicas e ad-ministrativas, não demonstra idêntica coerência ideoló-gica e partidária. O governo tem de conceder, negociar ebarganhar muito. O mesmo se prevê na votação da ree-leição. Na prática os congressistas só se aproximammesmo do consenso em temas que se referem direta-mente ao legislativo. Muitos deixam as demais questõespara a negociação, mesmo que tenham posição definidaa respeito” (Estado de S.Paulo, 8/11/96:A-3, grifos nos-sos).

O editorialista conclui que as preferências dos parla-mentares são irrelevantes na prática. Para tanto é forçadoa sugerir que votam contrariamente às próprias posiçõesque têm a respeito. Eventualmente, não é necessário irtão longe. A coesão não elimina as divergências e, sobre-tudo, não impede que cálculos baseados nos imperativoseleitorais de curto prazo prevaleçam em decisões concre-tas. Um deputado pode estar filiado a um partido de di-reita, ser favorável a uma menor presença do estado naeconomia e ao corte de gastos públicos e, mesmo assim,votar contra o aumento do tempo de serviço necessáriopara a aposentadoria de determinada categoria profissio-nal. Basta, para tanto, que o deputado dependa desta ca-tegoria para se eleger. Em outras palavras, a coesão podenão resistir aos incentivos advindos do comportamento

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oportunístico. A existência de preferências comuns nãoimplica, necessariamente, a cooperação.

O poder de agenda, o segundo fator mencionado ante-riormente para explicar o padrão decisório estruturado emtorno de linhas partidárias, responde a esta objeção, umavez que por meio deste se neutraliza o comportamentoindividualista, restringindo as oportunidades para suaocorrência. Isto é, ainda que parlamentares sejam indivi-dualistas e tenham interesses imediatistas, a esfera paraexpressão destes interesses é reduzida. Como demonstra-mos em outra oportunidade (Figueiredo e Limongi, 1995),deputados têm pequena influência na determinação daagenda dos trabalhos. A pauta dos trabalhos legislativosé controlada, basicamente, pelo Executivo e pelas instân-cias centralizadas de direção dos trabalhos legislativos(Colégio de Líderes e Presidência da Mesa). Isto signifi-ca que o leque de opções sobre os quais os deputados sãochamados a opinar é limitado. Os projetos votados, emgeral, são apresentados pelo Executivo e tramitam sobregime de urgência. Dito de outra maneira, o padrão cen-tralizado de funcionamento do Poder Legislativo brasi-leiro neutraliza o deputado individual e seus interesseseleitorais de curto prazo. Estes interesses, simplesmente,têm poucas chances de expressão dada a forma vigentede definir a pauta dos trabalhos legislativos.

A imagem do Congresso como o reino do parlamen-tar individual desconhece o seu funcionamento efeti-vo, como se fosse possível derivar de supostos interesseseleitorais tudo o mais, passando ao largo da organizaçãodos trabalhos legislativos e da forma assimétrica com quesão distribuídos direitos parlamentares.10 O fato é que,individualmente, parlamentares têm poucas possibili-dades de influir na marcha dos trabalhos. Apresentarprojetos e, mesmo, emendas não garante que eles sejamapreciados.

O terceiro fator a explicar o padrão decisório observa-do, acreditamos, é o fato de o governo e os líderes dospartidos que o apóiam controlarem o acesso a recursosque lhes permitem punir parlamentares indisciplina-dos. A imagem corrente sobre as negociações governo-parlamentares assume um Executivo frágil e débil, presada chantagem dos congressistas que lhe emprestariamapoio no varejo em troca de favores no atacado. Isto é, acada votação, para obter apoio, o Executivo seria força-do a atender aos interesses miúdos e sempre elásticos dosparlamentares. Este argumento implica o reconhecimen-to de que o governo controla recursos que parlamentaresdesejam. Apenas, por alguma razão obscura, deixa de usá-lo para impor disciplina. Ora, simplesmente não faz sen-tido supor que o Executivo seja a parte fraca nesta barga-nha, que seja chantageado por pequenos grupos deparlamentares.

O Executivo encontra-se em posição vantajosa parabarganhar com os parlamentares. Não será demaislembrar o óbvio: quem detém a caneta que nomeia tam-bém detém a que demite. Respeitadas as restrições dita-das pelas preferências, parlamentares preferem ser gover-no a ser oposição, isto é, o que não deixa de ser o óbvio,querem participar do governo. Líderes partidários inter-mediam as relações entre o Executivo e as bancadas, con-trolando e cobrando dos parlamentares a sua contrapar-tida em votos à sua participação no governo. Por meiodesta intermediação, líderes podem impor disciplina àssuas bancadas. Os recursos para tanto, ao menos, estãodisponíveis.

Um exemplo pode ilustrar o argumento. Imaginemosque um deputado qualquer obteve a nomeação de um cor-religionário para uma determinada posição. O Executivopode condicionar a manutenção desta posição ao com-portamento futuro do deputado. Temendo as punições doExecutivo, o deputado vota de acordo com os interessesdo governo. A explicação corrente assume que o deputa-do obtém uma nomeação ou concessão por votação, as-sumindo que o Executivo dispõe e faz uso de recursosinfinitos. Recursos, no entanto, são escassos e nem todasas demandas individuais dos parlamentares podem seratendidas. Logo, o parlamentar não obtém a nomeaçãoou o favor individualmente, mas depende da intermedia-ção do líder do partido. Cabe a este coordenar os varia-dos pedidos dos membros de sua bancada, levá-los aoExecutivo, vê-los atendidos e, em contrapartida, garantiros votos em plenário dos beneficiados. Isto é, a força dosparlamentares depende, o que novamente é afirmar o ób-vio, de seu número.

Muitos não serão convencidos por este argumento.Afinal, a imprensa diária é pródiga em exemplos de par-lamentares ou grupos de parlamentares (como o da ban-cada mineira ligada à construtora Mendes Junior, dos ru-ralistas, etc.) a ameaçar o governo, condicionando seuapoio em uma votação qualquer ao atendimento deste oudaquele pleito. Estas evidências, no entanto, estão longede ser sistemáticas ou conclusivas. Em realidade, a pre-sença da ameaça tende a ser tomada como suficiente parademonstrar seu sucesso, isto é, que o Executivo, para obtermaioria, foi forçado a ceder aos reclamos clientelísticosdestes grupos. No entanto, cabe notar que os custos defazer uma ameaça são relativamente baixos, bem inferio-res, em geral, ao custo de levá-las a efeito.

Em suma, o grau de identidade das preferências deparlamentares de um mesmo partido aliado ao poder deagenda do Executivo e do Colégio de Líderes e/ou Presi-dente da Mesa explicam parte do comportamento das ban-cadas mostrado anteriormente. Ao contrário do que se ar-gumenta, a questão não pode ser reduzida à diversidade

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TABELA 2

Número de Mudanças de Deputados para Outro Partido(49ª e 50ª Legislaturas)

Brasil – 1987-1994

1987-1990 1991-1994 Total

Mudanças

No Abs. % No Abs. % No Abs. %

Total 553 100,0 620 100,0 1.173 100,0

0 356 64,4 422 68,1 778 66,3

1 140 25,3 154 24,8 294 25,1

2 38 6,9 35 5,6 73 6,2

3 ou Mais 19 3,4 9 1,5 28 2,4

Fonte: Mesa da Câmara dos Deputados; Banco de Dados Legislativos; Cebrap.

TABELA 3

Número de Partidos com Representação na Câmara dos DeputadosBrasil – 1979-96

Anos Nominais Efetivos

1979 2 1,98

1980 5 2,90

1981 6 2,75

1982 5 2,25

1983 5 2,81

1984 5 2,39

1985 6 3,19

1986 9 3,29

1987 12 2,94

1988 12 2,94

1989 17 4,35

1990 22 6,67

1991 20 9,09

1992 20 10,00

1993 20 10,00

1994 19 7,69

1995 19 8,25

1996 16 7,05

Fonte: Diário do Congresso Nacional; Banco de Dados Legislativos; Cebrap.

das preferências oriundas do imperativo eleitoral. Estesinteresses têm pequenas possibilidades de se expressar.

Nesta explicação, líderes partidários assumem posiçãocentral. Por um lado, são capazes de impor agendas res-tritivas a suas bancadas. Por outro lado, atuam de manei-ra coordenada com o Executivo dando preferência à agen-da ditada por este poder. Por que as bancadas não serevoltam contra seus líderes? Por que os líderes dos maio-res partidos entram em acordos com o chefe do Executi-vo? Líderes partidários intermediam as relações entre oExecutivo e as bancadas, controlando a distribuição derecursos à disposição do Executivo. Nessa intermediaçãoencontram-se as bases da disciplina partidária.

Isto significa que, ao contrário do que normalmente seargumenta, as negociações do Executivo com o Legis-lativo não são levadas a cabo de maneira totalmentedescentralizada, com o Executivo buscando o apoio indi-vidual de cada parlamentar a cada votação. Como demons-trado em artigo recente (Limongi e Figueiredo, 1996),tendo o apoio do partido, o presidente pode contar com ovoto disciplinado da bancada.

Resta comentar a evolução recente do sistema parti-dário brasileiro, marcada pela multiplicação de siglas epelo incessante movimento de trocas de parlamentaresentre siglas. A imagem que apresentamos parece entrarem contradição com o que esta evolução indicaria. Comoconciliar a imagem de partidos coesos e disciplinados, coma fluidez do quadro partidário mais amplo? Se os parti-dos são coesos e disciplinados, como entender que sejamtantos e, sobretudo, como entender que deputados troquemde partidos ao longo da legislatura com tamanha facilida-de?

Uma vez mais, parte do problema deve-se à falta deanálise sistemática das evidências. Para iniciar, vejamosos dados relativos às mudanças de partido ao longo dasduas últimas legislaturas. Como se vê na Tabela 2, a maio-ria dos parlamentares não trocou uma vez sequer de par-tido nestas duas últimas legislaturas. Somente 8,6% dosparlamentares trocou de partido mais de uma vez em umamesma legislatura.

As mudanças, está claro, apontam para a falta de es-tabilidade do quadro partidário. No entanto, cabe perguntarse as coisas poderiam se dar de outra forma. Não serádemais lembrar o óbvio: as origens do atual sistema par-tidário brasileiro. Trata-se de um sistema que, progressi-vamente, passou de bi a pluripartidário. O bipartidarismo,como se sabe, foi imposto pelo regime militar e não seriade esperar que sobrevivesse à eliminação das barreirasque impediam o surgimento de outros partidos. Tambémnão é razoável supor que a passagem para o pluripartida-rismo se desse de maneira imediata e ordenada, sem alte-rações bruscas de rotas ou turbulências. A Tabela 3 traz

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AS REFORMAS (DES)NECESSÁRIAS

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os dados básicos relativos à evolução do número de par-tidos com representação na Câmara dos Deputados, dareforma de 1979 no período 1979-96, distinguindo o nú-mero de partidos nominais e o efetivo.

A explosão do número de partidos não é concomitanteà reforma da legislação eleitoral e só veio a ocorrer a par-tir de 1988, passadas duas eleições e completado o perío-do de transição para a democracia. Não é de se estranhar,portanto, que a explosão do número de siglas se dê àmedida que se aproximam as primeiras eleições presiden-ciais. Estas, vale lembrar, foram solteiras, isto é, ocorre-ram isoladamente, permitindo que várias forças testassemsua viabilidade eleitoral. Até então, o calendário eleitorale o confronto com o regime autoritário haviam detido esteprocesso. Nestes termos, pode-se entender as mudançasocorridas entre 1988 e 1989 como uma rápida e apressa-da adaptação aos novos tempos. Hoje, o sistema partidá-rio brasileiro ainda passa por este processo de transição.A tendência recente, no entanto, é diversa da anterior.Deputados têm procurado se abrigar em partidos grandescom viabilidade eleitoral comprovada, com o que o nú-mero de partidos apresenta tendência à queda.

Dessa forma, é possível relacionar o aparecimento denovas siglas com a transição para a democracia e repre-sentando uma acomodação e adaptação do sistema par-tidário herdado do período militar aos novos tempos.Em realidade, nesse processo, os partidos que herdaramsua estrutura organizacional e quadros do período militarcontaram e, de certo modo ainda contam, com vantagenseleitorais. Não é por acaso que o PMDB, o PFL, o PSDBe o PPB são hoje os maiores partidos. Se barreiras à en-trada de novos partidos tivessem sido erigidas, teriam,tão somente, reforçado as vantagens que esses partidosjá desfrutavam e teriam, portanto, obstado a adaptaçãodo sistema ao pluripartidarismo. Não há crescimento li-near e contínuo do número de partidos. Portanto, a ex-plosão ocorrida em 1988-89 pode ser interpretada semrecorrer às alegadas facilidades de entrada no mercadoeleitoral. Pode-se esperar que o número de partidos con-tinue a cair no futuro próximo e que o sistema venha a seestabilizar.

Para além dos efeitos da transição para o pluripartida-rismo, o número de siglas a obter representação deve seranalisado tendo por referência, no Brasil como no restodo mundo, a magnitude dos distritos eleitorais. A especi-ficidade do Brasil, neste aspecto, reside no fato de con-tarmos com 27 diferentes distritos eleitorais com magni-tudes que variam de oito a 70. Assim, o número esperadode partidos a obter representação varia por estado da fe-deração e o sistema partidário nacional é a resultante daarticulação, necessariamente complexa, do que se passanos diferentes distritos. Por isto, não é de se esperar que a

fragmentação partidária nominal afete o processo deci-sório. Suas causas são outras.

As reformas propostas têm por base previsões e expec-tativas derivadas da teoria neo-institucionalista em voga.As evidências sistemáticas que apresentamos falsificamas expectativas da teoria e, portanto, questionam sua ca-pacidade de servir de guia para inovações institucionais.Não há garantias de que as reformas propostas gerarão oque delas se espera. Em realidade, os dados apresentadosquestionam sua própria necessidade, uma vez que algunsde seus objetivos já são alcançados por outros meios.

NOTAS

1. Isto é, supõe a existência de partidos que possuam ao menos uma das seguintescaracterísticas: raízes sólidas na estrutura social como as identificadas por Lispet eRokkan; estruturas burocráticas complexas como aquelas encontradas por Duvergere, finalmente, a disciplina partidária do modelo majoritário descrito por Lijphart.

2. São desconsideradas as votações que não obtiveram quórum regimental e, nocaso das emendas constitucionais, a votação em segundo turno. Foram desconsi-deradas ainda as votações unânimes. Ver Limongi e Figueiredo (1995) paramaiores detalhes e esclarecimentos metodológicos. Os dados da Tabela 1 expan-dem a base de dados utilizada anteriormente, incluindo as votações nominaisocorridas no ano de 1995, que correspondem a cerca de 40% do total analisadono referido artigo.

3. A proporção de votos disciplinados refere-se ao total possível de votos disci-plinados, descartando-se os votos para os quais não há indicação de voto do lí-der. Abstenções e faltas também são desconsideradas.

4. Isto é, se este observador sabe apenas se o PPB vota sim ou não, se o PFL votasim ou não, etc. Ele não precisa saber o teor da matéria, nem os argumentosapresentados pelos líderes para justificar seu voto.

5. Este resultado vale para o período 1989-94, quando havia um “método de pre-visão” ainda mais econômico baseado no voto dos líderes do PMDB e PFL. Paramaiores detalhes, ver Limongi e Figueiredo (1995).

6. O índice de semelhança varia entre 0 e 100 e é calculado pela seguinte fórmu-la 100-|%Spi-%Spj|, onde %Spi é a porcentagem de votos sim para o partido i,enquanto %Spj diz respeito ao partido j. O sinal | indica que o que se quer en-contrar é o valor absoluto desta subtração. É fácil perceber que o resultado seriao mesmo se usássemos a porcentagem de votos não em lugar de sim. O índiceatinge seu valor máximo quando os dois partidos apresentam comportamentosimilar. O valor mínimo corresponde a casos de perfeita disciplina e oposiçãoentre os dois partidos.

7. Para uma análise mais detalhada, consultar Limongi e Figueiredo (1995).

8. Os dados colhidos permitiram localizar no contínuo até mesmo os pequenospartidos.

9. Almeida e Moya (1996) demonstram que pesquisas anteriores dos mesmosautores permitiam conclusões similares.

10. A desconsideração das regras institucionais que regulam as decisões no inte-rior do legislativo configura o que chamamos em outra oportunidade de recaídapluralista em um argumento que do ponto de vista das reformas que propugna éneo-institucionalista. Ver Figueiredo e Limongi 1996 para detalhes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIREDO, A. e LIMONGI, F. “Mudança constitucional, desempenho doLegislativo e consolidação institucional”. Revista Brasileira de CiênciasSociais, n.29, 1995.

__________ . Congresso Nacional: organização, processo legislativo e produçãolegal. São Paulo, Cebrap, Editora Entrelinhas, 1996 (Cadernos de Pesquisa).

KINZO, M.D.G. Radiografia do quadro partidário brasileiro. Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, Pesquisa n.1, 1993.

LIMONGI, F. e FIGUEIREDO, A. “Os partidos na Câmara dos Deputados”.Revista Dados, v.38, n.3, dezembro 1995.

__________ .“Apoio partidário no presidencialismo”. Monitor Público. Rio deJaneiro, n.8, janeiro/março 1996.

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EXCERTOS SOBRE A REFORMA POLÍTICA

política brasileira, indubitavelmente, está subme-tida ao império do economicismo. Por um lado,grande parte da intelectualidade é herdeira da

velha máxima marxista de que a estrutura das relaçõeseconômicas determina a superestrutura política, jurídicae ideológica. Por outro lado, do ponto de vista das políti-cas de Estado, os economistas vêm pontificando há anose se erigiram numa espécie de sumos sacerdotes do que écerto ou errado em relação às diretrizes governamentais.As crises políticas são estudadas como meras conseqüên-cias de relações socioeconômicas. As saídas e soluçõespolíticas ficam presas no brete do discurso economicista.A discussão sobre o caráter do arcabouço institucional dopaís ocupa sempre um espaço secundário na ordem dasprioridades. Assim, os problemas sociais e econômicosentram num círculo vicioso sem fim porque dependemsempre de determinadas “lógicas de desenvolvimento”,de determinadas “condições técnicas”, sem as quais qual-quer solução parece impossível. O aparato governamen-tal trabalha muito mais em busca da realização de “deter-minadas condições” mirabolantes para a realização do“progresso material e do bem-estar social” do que, pro-priamente, para a efetiva realização de ambos.

O tecnicismo econômico substituiu a política comofórum de representação de interesses, como campo deexplicitação de conflitos e de negociação de soluções. Asdecisões e atos de governo não fluem como conseqüên-cia de imperativos políticos, pois o sistema decisório estágangrenado por interesses e privilégios prefigurados quefogem à competição política em condições de igualdade.Esses interesses e privilégios fizeram do Estado, atravésde sua ineficiência, do seu particularismo, do corporati-vismo, do fisiologismo, etc., a ponta-de-lança da luta pela

sua manutenção. Foi conferido, assim, um caráter pú-blico à manutenção de privilégios particularistas. É pre-ciso, pois, desobstruir os canais da política democrática,dos processos decisórios democráticos e da livre compe-tição democrática para que a democracia possa efetiva-mente funcionar e produzir o bem-estar coletivo. A pro-longada crise que o Brasil viveu e que culminou com oimpeachment de Collor e com a CPI do Orçamento foi,acima de tudo, uma crise política. Se o Plano Real conse-guiu dar uma aparência de estabilidade à política via es-tabilidade econômica restam ainda muitos problemas deordem estrutural e institucional a serem equacionados.Apesar de pequenas melhorias, o país enfrenta ainda gra-ves problemas de distribuição de renda. Problemas quenenhum plano econômico, por si só, poderá solucionar.Qualquer saída depende da competição, das negociaçõese das soluções políticas que deveriam ser buscadas para oconflito social brasileiro.

Sem cair no voluntarismo político, é preciso pregaruma reação da política contra esta ordem enfadonha dotecnicismo economicista. Desde os primórdios da po-lítica, em Atenas, na Grécia antiga, foi a partir da re-forma institucional que se buscou solucionar proble-mas de natureza social. As reformas institucionais deSólon e Clístenes tiveram exatamente este sentido. Pro-curaram redirecionar o sentido da sociedade a partir doseu centro nervoso, que é o seu sistema normativo einstitucional. É este sistema que confere sentido e ori-enta as sociedades para determinados fins. Afinal decontas, os humanos, apesar de dependentes em algumgrau, não são prisioneiros da ordem natural e tambémnão são idiotas da objetividade. A teoria econômica,as técnicas administrativas e gerenciais têm um lugar,

A

JOSÉ GENOINO

Deputado Federal pelo PT-SP

ALDO FORNAZIERI

Professor da Escola de Sociologia e Política

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EXCERTOS SOBRE A REFORMA POLÍTICA

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mas devem ser colocadas nesse devido lugar: são servi-doras do Estado e, portanto, da política.

Feita esta exaltação inicial em favor da política, que-remos manifestar a convicção de que o atual processo dereformas constitucionais por que passa o Brasil começoupelo lado errado. Partiu da reforma da Ordem Econômi-ca, está atolado nas reformas da Previdência, Adminis-trativa e Tributária e, somente agora, e de forma casuísti-ca, fala-se em reforma política. Na verdade, o nóinstitucional e socioeconômico do país deveria ser desa-tado, primeiro, pelo lado político-institucional. Ou seja,naquilo que é básico e preliminar no regime democráti-co: a definição das regras da competição política entre osatores. Claro que o grosso dessas regras, como sufrágio,liberdades políticas, etc. está definido. Mas é preciso queessas regras sejam submetidas a uma sintonia fina paraque haja uma adequada representação político-institucio-nal dos atores sociais e para que os conflitos sociais pos-sam encontrar canais institucionais pertinentes de emba-tes, negociações e soluções. Sem isso, o particularismo,o corporativismo e o uso privado do Estado continuarãoa ser a marca que já tinha o seu registro na RepúblicaVelha e que continuou, a partir de 1930, com novas for-mas e novos atores. Sem a reforma política, os impassessociais e os problemas de desenvolvimento econômicopermanecerão num eterno vaivém, com os economistasacusando os políticos pela manipulação política da eco-nomia e os políticos acusando os economistas pelos fra-cassos dos planos econômicos. Este tipo de debate esca-moteia o principal impasse sociopolítico da vida do país,que é o problema da integração socioeconômica dos se-tores excluídos pela via de adequados mecanismos de par-ticipação política e de representação. Somente a soluçãodesse impasse será capaz de constituir uma cidadania efe-tiva, com a democratização das esferas social, econômi-ca e política e com a fundação das verdadeiras condiçõesdo progresso econômico e do bem-estar.

Wanderley Guilherme dos Santos, em Razões da De-sordem, delineou bem os problemas que geram inadequa-ções na participação e na integração de vastas camadassociais na ordem institucional e, por decorrência, geramuma inconsistente dinâmica competitiva entre os atores(Santos, 1992). Ou seja, no século passado o modelo dedesenvolvimento e de segmentação da economia já ma-nifestava tendências particularistas e elitistas que não fa-voreciam a participação política e a integração econômi-ca dos segmentos sociais emergentes (trabalhadores eoutros estratos sociais). Na Inglaterra, no primeiro cicloda revolução industrial, ocorria o contrário: desenvolvi-mento econômico e estabilidade política andaram juntos,com a classe trabalhadora lutando pela apropriação derecursos políticos para melhorar suas condições materiais.

A diminuição das barreiras à participação no jogo políti-co, a fixação de regras de competição, a relativização domercado como teatro único do jogo econômico e a acei-tação da ordem institucional como sistema de mediaçãolegítimo dos conflitos socioeconômicos foram os fatoresque estruturaram, segundo Wanderley Guilherme dosSantos, as condições para a construção do Estado do bem-estar.

Mesmo com a instauração da República, o Brasil per-maneceu encalacrado no jogo político oligárquico intra-elites e a ausência de um mercado nacional não favore-ceu o surgimento de partidos políticos que pudessem seros escoadouros da competição de interesses dos atores so-ciais. A Revolução de 1930, consciente ou inconsciente-mente de seu viés bismarkiano, introduziu o estatismocomo sujeito ordenador da competição econômica e comoestruturador das categorias profissionais, da estratifica-ção e da cidadania. Prioriza-se a política social definidapelo Estado em detrimento da competição entre agentessociais e partidos políticos representativos, gerando umaaliança entre corporativismo e burocracia. O populismoposterior é herdeiro desse arranjo institucional. O queWanderley Guilherme dos Santos indica é que, no Brasil,em certa medida, a Revolução de 30 abriu as comportasda participação sem que houvesse uma liberalização ade-quada, garantidora de regras de competição política, le-gitimadora dos resultados da competição e instituidora dosdireitos de liberdade como o direito de organização, dedisputa, etc. O autor registra que os países que seguiramprimeiro a liberalização e depois a participação são maisestáveis que aqueles que primeiro alargaram a participa-ção e depois institucionalizaram a competição política.No Brasil e na América Latina teria havido a “incorpora-ção das massas à dinâmica da competição política an-tes que se obtivesse estabilidade das regras dessa com-petição”. Essa seria a origem da instabilidade na região.Se esta tese é verdadeira, ela sinaliza claramente a prio-ridade que adquire a configuração da ordem institucio-nal para um adequado processo de desenvolvimentoeconômico e de integração social e política dos estra-tos sociais emergentes no sentido de viabilizar o Esta-do do bem-estar.

A partir de 1930, ainda segundo Wanderley Guilher-me dos Santos, desenvolve-se um cenário em que os gru-pos sociais não firmam suas identidades através dos par-tidos políticos. Os trabalhadores e o empresariado sãointegrados à participação via “sindicalismo tutelado”. Apolítica social trabalhista é a âncora desse tipo de inte-gração que filtra a participação pelo viés da burocracia enão dos partidos. A dinâmica do conflito social desloca-se do terreno social e partidário para o interior do aparatodo Estado, potencializando a instabilidade política e as

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políticas governamentais de tipo populista. O desencon-tro entre processo político formal e processo participati-vo tem um de seus vértices na estatização da política so-cial que, desta forma, torna-se um obstáculo ao efetivodesenvolvimento de uma sociedade democrática e com-petitiva.

Partindo do conceito de poliarquia de Robert Dahl,Guilherme dos Santos mostra, com base em vários dadosestatísticos, que muitas condições da poliarquia estãodadas sem que esta efetivamente se cumpra. Por poliar-quia entende o “elevado grau de institucionalização dacompetição pelo poder (existência de regras claras, pú-blicas e obedecidas) associado a extensa participaçãopolítica, só limitada pela idade”. As poliarquias supõema presença de direitos fundamentais que surgem no con-texto material da urbanização, sociedades complexas,grupos de interesses sociais e partidários que se limitammutuamente, controlam o governo e produzem políticaspúblicas. Tomando um período que, grosso modo, come-ça em 1945, o autor constata que as condições da poliar-quia se realizam na ordem material, com o crescimentodo PIB (65-80), com a acumulação, diferenciação produ-tiva e social. As condições da poliarquia também são sa-tisfeitas no crescimento do eleitorado, na expansão daparticipação eleitoral, no crescimento da organizaçãoextrapartidária da sociedade (sindicatos, associações,movimentos) e nos requisitos da educação, renda, diver-sificação, mobilidade social, pluralismo e interdependên-cia social. Apesar de tudo isso, o autor constata que a po-liarquia brasileira se restringe “à pequena manchainstitucional circunscrita por gigantesca cultura de dissi-mulação, de violência difusa e do enclausuramento indi-vidual e familiar”. Ou seja, há uma pequena participaçãodos indivíduos nos espaços de influência, de mobilizaçãoe de decisão. O engajamento em sindicatos, associaçõese partidos é baixo e reforça-se a tendência para o não reco-nhecimento institucional dos conflitos. Como conse-qüência, viceja o hobbesianismo social, o contato clien-telista-paternalista na relação indivíduo-partido-Estado,o particularismo e a cultura predatória em todos os có-digos morais de conduta ou um comportamento, “nãosegundo normas”, para usar as palavras de Guilhermedos Santos. Diante disso, pergunta-se por que as con-dições não são capazes de gerar uma sociedade poliár-quica real.

A conclusão a que chega Wanderley Guilherme dosSantos é que falta credibilidade à ordem institucional paraque funcione a poliarquia. O Estado estaria sofrendo umaalta taxa de descrédito quanto à sua eficácia regulatória.Isto gera um enfraquecimento das expectativas e da ade-são da sociedade. A causa principal desse descrédito es-taria na combinação de um excessivo instrumental regu-

latório por parte do Estado aliado a uma incapacidadecrônica de fazer com que a regulação funcione e seja efi-caz. A conclusão está correta e o autor prega o funciona-mento do Estado mínimo – não no sentido neoliberal, masno sentido do funcionamento do papel básico do Estado– como remédio ou meio para enfrentar o cenário de de-sagregação e segregação social que descreve. Isto, con-tudo, parece insuficiente. É preciso investigar as inade-quações institucionais que geram a “desordem” e proporreformas no aparato institucional para superar a inefici-ência, a insuficiência e o descrédito das instituições de-mocráticas.

Este trabalho limita-se a apontar a necessidade de criarinstituições políticas mais adequadas e sumarizar osprincipais pontos de uma possível reforma política quecomeça a ser discutida no governo, nos partidos e nasociedade. Reputamos importante discutir o quadro ins-titucional pelo seguinte pressuposto: no século XX, o fun-cionamento da economia sempre esteve ligado às condi-ções políticas de governabilidade e ao regime e sistemapolítico vigentes. Uma economia de mercado era incom-patível com o regime comunista do Leste da Europa e daURSS. A economia de mercado não poderia ter os mes-mos contornos em países como os da América Latina eda Europa. Mesmo se comparássemos os países europeuscom os Estados Unidos veríamos matizes diferentes nofuncionamento da economia de mercado em conseqüên-cia de quadros institucionais diferentes. Assim, um efi-caz funcionamento de uma economia de mercado e de umasociedade democrática, equilibrada e justa, dependem deum adequado quadro institucional.

É óbvio que o tema da reforma política deveria incluiro debate do sistema de governo em torno das opções en-tre presidencialismo e parlamentarismo. Mas, pela abran-gência do tema, e levando-se em conta que do ponto devista conjuntural esse debate não está posto, o assunto serádeixado de lado. Serão abordadas aqui apenas as ques-tões mais relevantes que estão postas ou tenderão a serpostas em discussão no presente momento da vida políti-ca do país.

A REELEIÇÃO

A reeleição para prefeitos, governadores e presidenteda República é, sem dúvida, o tema mais candente, nãonecessariamente o mais importante, da presente discus-são sobre reforma política. De acordo com o parágrafo 5o

do artigo 14 da Constituição, “são inelegíveis para osmesmos cargos, no período subseqüente, o Presidente daRepública, os Governadores de Estado e do Distrito Fe-deral, os prefeitos e quem os houver sucedido, ou substi-tuído nos seis meses anteriores ao pleito”. A proposta que

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visa introduzir a reeleição trata de mudar este dispositi-vo, permitindo que os ocupantes dos cargos menciona-dos possam dispor do direito de se reelegerem no perío-do subseqüente. De modo geral, os defensores da tese dareeleição entendem que o ocupante do cargo não precisase licenciar para concorrer.

A questão da reeleição, a rigor, não está referida a ne-nhum princípio da democracia. É verdade que em Ate-nas, na Grécia antiga, a reeleição no período subseqüenteera proibida para várias magistraturas, pois se entendiaque a rotatividade na ocupação de cargos obedecia aoprincípio democrático de dar oportunidade a que maiscidadãos ocupassem cargos de governo. Hoje em dia, areeleição é prática adotada na maioria dos países demo-cráticos. Tanto nos Estados Unidos como na França estaé permitida para o cargo de presidente. A reeleição, a ri-gor, visa dar oportunidade de continuidade a uma admi-nistração bem-sucedida. Alguns analistas consideram quea ausência da reeleição no sistema presidencialista podeser um fator de perturbação da ordem política: na medidaem que uma administração está impedida de ter continui-dade na aplicação do programa de governo, muitas vezesos parlamentares, por interesse político-eleitoral, retiramo apoio a ela, pondo em risco a eficácia governamental.A reeleição conferiria mais estabilidade ao jogo políticodemocrático e ao próprio corpo administrativo. Emborao argumento possa ser considerado, não parece tão rele-vante. Deve-se levar em conta também que o Estado mo-derno é constituído por um aparato gigantesco e com-plexo e, por isso, a eficácia governamental requer algumtempo de aprendizado e experiência para que seja exer-citada. Mesmo com a reeleição, o princípio democráti-co da alternância no poder continua presente, já que oeleitorado pode decidir não reconduzir o governante aoposto que ocupava. De qualquer forma, as Constitui-ções ou as leis eleitorais tendem a limitar a reeleição auma única vez.

Nestes últimos tempos, vários países da América Lati-na vêm passando por processos de mudanças constituci-onais, introduzindo o princípio da reeleição. Os casos maisnotórios são o do Peru e o da Argentina, que aprovaram amudança abrindo caminho para a reeleição de Fujimori eMenem. Isto permite concluir que a reeleição tende a fa-vorecer o ocupante do cargo. No Brasil, uma pesquisa doInstituto Datafolha, divulgada pela Folha de S.Paulo de1o setembro de 1996, mostra que a opinião pública estádividida em relação ao tema: o princípio da reeleição éapoiado por 47% do eleitorado e rejeitado por 46%. Nomeio político, parece ter um respaldo maior. A discussãodo momento está mais polarizada antes na questão de seo presidente Fernando Henrique Cardoso e os atuais go-vernadores devem ou não gozar do direito à reeleição. Há

uma tendência favorável no Congresso de se aprovar oprincípio, ao menos, para os futuros governantes.

Os que são contra a concessão do direito à reeleiçãodo presidente Fernando Henrique e dos atuais governa-dores sustentam que se trata de um casuísmo. De fato,uma das regras básicas da democracia refere-se à neces-sidade de definição das normas do jogo político com an-terioridade ao desenvolvimento do próprio jogo. Esta pre-missa visa conferir estabilidade aos processos decisóriosou de escolhas e pretende atender ao princípio da igual-dade de condições entre os diversos atores e partidos po-líticos que disputam o poder. O casuísmo se localizariano fato de que os atuais governadores e presidente se ele-geram sob a regra que não permite a reeleição. Na teoriapolítica é possível encontrar referências, até mesmo emLocke, sobre a necessidade de que as regras do jogo elei-toral sejam definidas de forma clara e com antecedência.A democracia, de fato, procura estabelecer condições deigualdade aos atores que disputam o poder. Já que as re-gras eleitorais designam os procedimentos que devem serobservados para se alcançar o poder, merecem ser trata-das com todo o cuidado. Os que são a favor à reeleiçãodos atuais governantes sustentam que um pronunciamen-to favorável do Congresso é suficiente para conferir-lhelegitimidade. Por tratar-se de emenda constitucional, areeleição, para ser aprovada, precisa do apoio de três quin-tos dos membros da Câmara e do Senado em duas vota-ções em cada uma das Casas separadamente.

O SISTEMA ELEITORAL

O sistema eleitoral brasileiro é disciplinado pelo arti-go 45 da Constituição, que determina que a Câmara Fe-deral seja composta por representantes eleitos pelo povo,pelo sistema proporcional – que foi introduzido no Brasilpelo Código Eleitoral de 1932. O sistema proporcionalem vigor combina o quociente eleitoral com o quocientepartidário para definir o número de lugares de cada parti-do. As listas partidárias de candidatos são abertas. A maiorparte daqueles que defendem mudança do sistema eleito-ral propõe o voto distrital misto ou proporcional misto, oque vem a ser a mesma coisa. Paralelamente, defende-sea correção das regras de representação dos estados naCâmara, já que esta apresenta significativas distorções.A relevância da discussão do sistema eleitoral não estáem questão. Afinal de contas, são as regras eleitorais quedisciplinam a competição que produzem os atores do pro-cesso de tomada de decisões políticas.

Contra o voto proporcional, em síntese, são dirigidasas seguintes críticas: a) o número de cadeiras de cadapartido depende do número de votos que cada candidato,individualmente, seja capaz de buscar; b) há um favore-

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cimento aos candidatos das corporações, das regiões, dosgrupos religiosos, etc.; c) o partido perde importância fren-te às lideranças individuais. Estes três fatores tendem aagregar a fidelidade dos eleitos aos grupos que os elegemem detrimento do partido e do seu programa. Outro pro-blema da eleição proporcional é que ela acarreta uma lutaintestina entre candidatos do mesmo partido na disputapor votos para conseguir a melhor colocação nas listasabertas. Isto gera partidos difusos, frágeis, indisciplina-dos e desorganizados. Outro malefício do sistema propor-cional é que ele obriga o candidato a buscar votos em todoo estado, numa vasta área territorial. Além de encareceras campanhas, isto dificulta o controle dos eleitores so-bre os eleitos, agravando a dicotomia representante/repre-sentado inerente ao sistema representativo.

A proposta do voto distrital misto foi apresentada naConstituinte mas não teve acolhida. A Frente Parlamen-tarista, que se formou à época do plebiscito sobre sistemade governo, também defendeu a adoção do voto distritalmisto. Agora, com a reforma constitucional, a tese voltaa ser proposta no caso de uma eventual reforma política.Em todos esses momentos, a proposição do voto distritalmisto se inspirou no modelo eleitoral alemão. Algunsanalistas dizem que, na verdade, o sistema alemão é pro-porcional, na medida em que leva em conta os votos da-dos aos candidatos distritais na distribuição das cadeiraspor partido. Assim, ele seria proporcional quanto à dis-tribuição das cadeiras por partido e misto quanto ao cri-tério do preenchimento das cadeiras. Um dos argumen-tos sustentados pelos que defendem esse sistema diz queele tem a vantagem de aproximar o eleitor de seu repre-sentante, favorecendo o controle e a fiscalização do elei-torado sobre o sistema político.

Embora os sistemas eleitorais apresentem uma com-plexidade de fórmulas, hoje em dia, do ponto de vistaconceitual, eles são basicamente dois: o proporcional e omajoritário. O princípio proporcional determina que, nadistribuição de cadeiras, se leve em conta a força socialde cada partido, considerando-se a equivalência entrenúmero de votos e número de assentos. O princípio ma-joritário diz que se deve levar em conta apenas a vontadeda maioria e que o restante dos votos deve ser desconsi-derado na composição da representação. O principal ar-gumento na defesa do sistema majoritário sustenta queele favorece a formação de maiorias conferindo estabili-dade ao governo. Com isso, ele também aumentaria a efi-cácia e a governabilidade. Em contrapartida, provoca umadistorção dos votos, deixando de fora do Parlamento for-ças políticas que podem ter um peso eleitoral significati-vo. A adoção do voto distrital misto procura aliar as van-tagens do sistema proporcional, garantindo a representaçãode todas as forças sociais e políticas, às vantagens do sis-

tema majoritário, aproximando o eleito dos eleitores, for-talecendo o partido político e tornando a campanha elei-toral menos dispendiosa. Enquanto na Alemanha se ado-ta o sistema distrital misto, na França pratica-se o sistemamajoritário em dois turnos. Na Itália, até recentemente,utilizava-se o sistema proporcional, mas, por se julgar quese tratava de um fator de instabilidade, adotou-se o siste-ma distrital misto.

SISTEMA PARTIDÁRIO

O sistema eleitoral tem íntima conexão com o sistemapartidário. Um dos aspectos em que o sistema eleitoralincide mais decisivamente sobre o sistema partidário dizrespeito à adoção da cláusula de barreira para o acesso deum partido ao Parlamento. As cláusulas de barreira nor-malmente fixam a exigência de um percentual mínimo devotos nacionais, 3% ou 5%, para que um partido passe ater direito a ocupar cadeiras. A introdução destas cláusu-las produziria como efeito a supressão de vários partidos,as chamadas “legendas de aluguel”, restringindo o espectropartidário. Com efeito, o atual sistema partidário brasi-leiro caracteriza-se pela proliferação de legendas, a maiorparte das quais carece de representação social e de iden-tidade política, ideológica e programática. BolívarLamounier tem chamado a atenção insistentemente, e comrazão, sobre o fato de que a dispersão político-partidáriaé um dos principais fatores de atraso e de instabilidadedas relações políticas. A pulverização político-partidárianão favorece a formação de maiorias e minorias defini-das, dificultando a articulação de interesses na esfera po-lítica e favorecendo o enfraquecimento dos projetos eprogramas que visam configurar estratégias de desenvol-vimento do país.

A cláusula de barreira produziria a tendência à agluti-nação partidária em torno de interesses e programas maisdefinidos, de modo que as legendas a serviço do opor-tunismo eleitoral tenderiam a se inviabilizar. Mas ela nãorepresentaria a supressão do pluripartidarismo, e sim a li-mitação de sua amplitude desordenada. Os partidos ideo-lógicos poderiam continuar a existir, mesmo não atingin-do o quociente necessário para ingressar no Parlamento.Seriam obrigados, sim, a adotar estratégias de alargamentode sua base eleitoral. Na medida em que a cláusula debarreira favorece a aglutinação de maiorias, enfrenta tam-bém o problema da governabilidade. A eficácia governa-mental pode aumentar com a formação de uma maioriaque apóie o governo, reduzindo os riscos de quebra daordem institucional e inibindo o fisiologismo a que mui-tos governos são obrigados a recorrer para obter apoio noCongresso. Assim, a cláusula de barreira introduziria umamaior racionalização da representação, favorecendo o

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processo de tomadas de decisões e fortalecendo as insti-tuições democráticas através de partidos políticos real-mente representativos da sociedade.

Fernando Henrique Cardoso no artigo “Desenvolvi-mento associado-dependente e teoria democrática” notabem que o atual sistema partidário deve sua origem, emparte, à legislação autoritária do regime militar (Cardo-so, 1988). Pode-se acrescentar que os atuais partidos guar-dam também resquícios de herança da polarização ideo-lógica do período da Guerra-Fria. Hoje, com o fim daGuerra Fria, a emergência do neoliberalismo, o fenôme-no da globalização e a introdução de novos paradigmasligados às noções de competitividade, interdependência,despolarização, multipolarização, etc., parece necessáriauma redefinição dos partidos políticos em termos progra-máticos. Um simples olhar empírico sobre os atuais par-tidos constata que muitos estão em dessintonia completacom nosso tempo. Outros abrigam pessoas que estão forade lugar. Até mesmo a aliança partidária que governa opaís parece um arranjo mal explicado e esquisito. Parti-dos como o PMDB, o PPB e até mesmo o PT vivem ci-sões internas que tornam difícil manter-se algum tipo deconvivência por muito tempo. O PSDB parece desca-racterizar-se rapidamente como partido de vocação social-democrata. Tudo isto indica a necessidade de uma refor-ma partidária que, a nosso ver, seria favorecida eimpulsionada se se adotasse a cláusula de barreira.

FIDELIDADE PARTIDÁRIA

O tema da fidelidade partidária remete sempre ao pro-blema do comportamento dos detentores de mandato emrelação ao partido político pelo qual se elegeram. A nor-mativização da fidelidade partidária visa instituir penali-dades para comportamentos considerados ilícitos dos de-tentores de mandatos. Esses comportamentos se resumemem três tipos de práticas: mudança de filiação partidária;oposição às diretrizes e às definições partidárias; desfi-liação de partidos por abandono ou expulsão. O proble-ma crucial da disciplina de voto é o principal aspecto dosegundo ponto. Constata-se, de modo geral, que nos sis-temas parlamentaristas impera a disciplina de voto entreas bancadas partidárias enquanto no presidencialismo adisciplina de voto quase nunca é adotada ou é adotadaem casos excepcionais. No Brasil, a disciplina de voto sóvale no momento em que as direções partidárias “fechamquestão” em torno de uma proposta qualquer.

O tratamento constitucional ou infraconstitucional daquestão da fidelidade partidária apresenta um certo graude complexidade, decorrente da dupla inserção dos parti-dos políticos no direito privado e no direito público. En-quanto agregação de interesses situados na sociedade ci-

vil, enquanto agremiação ou associação de indivíduos, opartido se situa na esfera do direito privado. A Lei no 9.096,que dispõe sobre partidos políticos, em seu artigo primeiro,define o partido político como “pessoa física de direitoprivado”. Nessa esfera, como nota Nélson Jobim, no re-latório da Revisão Constitucional, predomina a autono-mia da vontade pessoal, seja pessoa jurídica ou física. Emcaso de conflito entre indivíduo (mesmo o detentor demandato) e partido, predomina a vontade individual. Ne-nhuma lei pode obrigar o indivíduo a se submeter às de-terminações do partido. Mas cabe a cada uma das partesarcar com as conseqüências políticas de seus atos. O in-divíduo pode desligar-se ou ser desligado do partido, con-forme possam dispor os estatutos. Não cabe ao Estado,portanto, legislar na esfera específica da relação de vonta-des e concepções políticas entre o indivíduo e o partido.

Por outro lado, ainda como explica Jobim, consideran-do-se que os partidos pertencem também à esfera públicaestatal, são organismos paraestatais em cujo sistema estáimplicado o modo de operação do Estado em relação àsociedade civil. Neste sentido o Estado adquire o direitode legislar sobre o sistema organizativo do partido e so-bre a relação do detentor do mandato para com a agre-miação que representa. Em suma, o Estado tem interesseem preservar e promover o sistema partidário. Caso istonão ocorra, e levando-se em conta que os partidos expli-citam a forma de proceder em relação ao poder nas de-mocracias modernas, o sistema poderá ver-se ameaçadopela instabilidade partidária, por sua inconsistência e pe-las perturbações anárquicas que possam atingir os parti-dos. Deve-se levar em conta ainda que quando um eleitorsufraga um candidato, ele pretende expressar neste ato umcontrato público entre cidadão e Estado. Esta relação,ademais, é sempre mediada pelo partido. Desta forma,existe uma situação de fato que situa o partido na esferapública, tornando-o passível de sofrer o impacto norma-tivo do Estado. A decisão de mediar com normas públi-cas os conflitos potenciais entre partidos e seus filiadostem um caráter eminentemente político, dada a naturezaessencialmente política do problema e das relações dosatores em questão.

A maior parte das propostas que visam instituir a fide-lidade partidária indicam a necessidade de punir com aperda de mandato os parlamentares que se desfiliaremvoluntariamente do partido pelo qual se elegeram. Poroutro lado, visando resguardar o direito de dissenso in-terno, indica-se que não há necessidade de punir com amesma pena os que não seguem as diretrizes partidárias.Isto não significa que não precisa haver algum tipo depenalidade para os que não seguem a disciplina de ban-cada. Também, tende-se a não facultar ao partido o direi-to de determinar a perda do mandato de um parlamentar

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que for expulso dos quadros partidários. Existem propos-tas que resguardam o parlamentar da perda de mandatoem caso de desfiliação voluntária somente nas situaçõesde fusão de partidos ou de fundação de novo partido. Estaressalva parece razoável, pois, nesses casos, surgem op-ções que não estavam postas antes do processo eleitoral.Fusões e fundações de partidos, além disso, são proces-sos políticos mais amplos que o mero conflito de um par-lamentar com a sua agremiação.

A troca de legenda é uma constante na tradição políti-ca brasileira. Troca-se de legenda ao sabor dos interessesparticulares dos parlamentares, através das negociatas elei-toreiras e do fisiologismo. A regulamentação da fidelida-de partidária seria um elemento de maior estabilidade dosistema partidário e do processo decisório democrático epermitindo uma maior visualização dos interesses políticos.

VOTO FACULTATIVO

Na teoria democrática, considera-se o sufrágio comoum direito do cidadão. Esta concepção está ligada à teo-ria da soberania popular. A rigor, em se tratando de umdireito, o voto não pode ser adotado como obrigatório.De qualquer forma, a questão é controversa. RobertMichels (1982), por exemplo, via na falta de correspon-dência entre direitos e deveres políticos um dos princi-pais problemas no funcionamento da democracia. A de-sobrigação de participar na vida política do partido ou doEstado seria um fator de fortalecimento das tendênciasoligárquicas. Há uma corrente jurídica que propugna quea cada direito corresponda um dever. No pensamento ena tradição liberais, prevalece a noção de que o voto éum direito que não corresponde a um dever. Por outrolado, quando se fala em direitos, é preciso distinguir asvárias ordens de direitos. Os chamados direitos de liber-dade, os direitos políticos não podem corresponder a ne-nhum sistema de dever. O contrário acontece com os di-reitos sociais: para que sejam garantidos, instituídos econcedidos dependem de deveres. Não há direito à apo-sentadoria, por exemplo, se esta não estiver vinculada aodever de contribuição, seja do trabalhador ou do empre-gador. A maior parte das democracias ocidentais usa oexpediente do voto facultativo. Este foi adotado recente-mente, inclusive, na Argentina.

Outro tema conexo ao da obrigatoriedade ou não dovoto diz respeito ao alistamento eleitoral. A teoria demo-crática considera o direito ao voto condição da cidada-nia. Neste sentido, o alistamento eleitoral deve ter caráterobrigatório para que o indivíduo realize a condição preli-minar de acesso à cidadania. Ao se alistar, o indivíduoadquire um direito. O exercício desse direito deve ser li-vre, dependendo da vontade e da consciência de cada um.

A MEDIDA PROVISÓRIA

O instituto da medida provisória visa responder à se-guinte questão: determinadas condições emergenciais exi-gem soluções eficazes e prontas, cuja urgência entra emchoque com a lentidão inerente ao processo legislativoordinário na formação de leis. Para enfrentar essa neces-sidade, algumas Constituições conferem ao Poder Exe-cutivo instrumentos normativos ágeis que possam ser uti-lizados em caráter extraordinário pelo chefe de governo.

Não foi a Constituição de 1988 que inaugurou essaprerrogativa presidencial. A Constituição de 1937 já con-feria ao Presidente da República a possibilidade de legis-lar extraordinariamente, dentro de determinados limitese mediante autorização do Parlamento, durante os perío-dos de recesso do Congresso ou de dissolução da Câma-ra. A Constituição de 1946 restringiu essa possibilidade.No entanto, esta voltou a aparecer no texto da Constitui-ção de 1967 e foi abrigada na Emenda Constitucional 01/69. Tornou-se, assim, com o nome de decreto-lei, peçaestruturante do processo de formação de normas do regi-me militar.

Com a volta da ordem constitucional democrática, em1988, os constituintes autorizaram o Executivo a utilizaro expediente normativo extraordinário em situações de“relevância e urgência”, como determina o artigo 62 daConstituição. A rigor, a medida provisória é outra deno-minação do decreto-lei. Segundo o professor Raul Ma-chado Horta (1990), sua origem é a Constituição italianade 1948. É importante registrar que nossa Constituiçãonão define o que sejam casos de “relevância e urgência”,permitindo um uso alargado e excessivo das medidas pro-visórias, como mostram levantamentos relativos à suaaplicação. Para se ter uma idéia, a Casa Civil da Presi-dência da República apurou que, desde sua entrada emvigor, com a promulgação da Constituição em 1988, até13 de outubro de 1995, haviam sido editadas 1.146 me-didas provisórias: em 18 meses de governo, José Sarneyeditou 328 medidas provisórias; em 30 meses, FernandoCollor editou 464; em 26 meses, Itamar Franco editou504; e em 10 meses, Fernando Henrique Cardoso edi-tou 140.

No Congresso, a discussão e as propostas que visamestabelecer um limite às medidas provisórias partem dedois ângulos de abordagem: definição e/ou exclusão dasmatérias que poderiam ser disciplinadas pelas medidasprovisórias; e limitação das reedições. Quanto ao primei-ro ponto, a lógica indica que o procedimento mais conve-niente é definir na Constituição as matérias que devemser excluídas do campo possível de ser abrangido pelasmedidas provisórias. Desta forma, salvaguarda-se o po-der de ação do Executivo, o seu arbítrio, em caso de si-

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tuações “urgentes e relevantes” que, de fato, não podemser previstas pelas normas. O relatório da Revisão Cons-titucional sugeria que as matérias constantes no parágra-fo 1o do artigo 60 da Constituição fossem vedadas ao do-mínio normativo das medidas provisórias. Segundo o textoda Constituição: “Não serão objeto de delegação os atosde competência exclusiva do Congresso Nacional, os decompetência privativa da Câmara dos Deputados ou doSenado Federal, a matéria reservada à lei complementar,nem a legislação sobre: I – organização do Poder Judici-ário e do Ministério Público, a carreira e a garantia deseus membros; II – nacionalidade, cidadania, direitos in-dividuais, políticos e eleitorais; III – planos plurianuais,diretrizes orçamentárias e orçamentos.”

O relatório da Revisão Constitucional sugere que sejaexcluída do domínio das medidas provisórias toda a ma-téria penal, tendo em vista que o Estado de Direito requero princípio da anterioridade e da legalidade da legislaçãonessa esfera normativa do poder público. A medida pro-visória não pode atender a este princípio.

Ainda em relação à medida provisória, há o problemarelativo ao prazo de sua conversão em lei. Atualmente, oCongresso tem prazo de 30 dias para a apreciação dasmedidas provisórias, conforme reza o parágrafo único doartigo 62 da Constituição. Caso não sejam examinadasnesse prazo, as MPs perdem eficácia. Mas, normalmente,o Executivo as têm reeditado sucessivamente, tornando oprovisório permanente. Uma das propostas que encontramais trânsito entre os parlamentares sugere um prazo de60 dias para a conversão das medidas provisórias em leiou para a sua rejeição. Agrega-se a esta proposta a veda-ção explícita da reedição de medidas provisórias, sejamelas rejeitadas ou não pelo Congresso. A reedição suces-siva das medidas provisórias tem provocado transtornosna agenda do Congresso, com a perturbação do seu pla-nejamento. Outra conseqüência negativa é a distorção queproduz na prática corrente do processo legislativo: o arti-go 67 da Constituição vai no sentido contrário à reapre-ciação de matérias e propostas numa mesma legislatura.Impõe-se o critério de que um projeto rejeitado seja subs-crito pela maioria absoluta dos membros de uma das Ca-sas para que volte a ser apreciado. A regulamentação douso das medidas provisórias, como foi visto, é um impor-tante passo para a limitação de seu uso abusivo por partedo Executivo e de maior racionalização no processo deformação de normas ordinárias.

A REPRESENTAÇÃO DOSESTADOS NA CÂMARA

O artigo 45 da Constituição define os critérios para opreenchimento das cadeiras, por estado, da Câmara Fe-

deral. Define-se que cada estado deve ter no mínimo oitoe no máximo 70 deputados e que uma lei complementarestabeleça o número total de deputados, bem como a re-presentação por estado e pelo Distrito Federal. Partindodo patamar de oito deputados, a lei, sempre aprovada noano anterior às eleições, deve estabelecer a representaçãodos estados proporcional à população. Com isso, o nú-mero total de deputados e o número de deputados porestado tendem a sofrer variações em cada legislatura.Cálculos simples permitem perceber que o patamar míni-mo de oito deputados por estado provoca graves distor-ções na representação proporcional.

Assim, por exemplo, São Paulo, com cerca de20.800.000 eleitores, precisa de 19,80 eleitores para equi-valer a um eleitor de Roraima, que tem cerca de 119.888eleitores. São necessários 9,02 e 12,04 eleitores de SãoPaulo para equivaler um eleitor, respectivamente, do Acree do Amapá. Com a atual conformação, os estados doNorte e do Centro, junto com os estados do Nordeste, ele-gem a maioria dos representantes na Câmara Federal, sen-do minoria da população. As conseqüências políticas desteestado de coisas são óbvias.

Emenda constitucional de José Genoino propõe que“o número total de Deputados será de quinhentos e que arepresentação por estado e pelo Distrito Federal será es-tabelecida por lei complementar, proporcionalmente aoseleitores, procedendo-se os ajustes necessários no ano an-terior às eleições, para que nenhuma daquelas unidadesda Federação tenha menos que quatro Deputados”. Essaproposta, além de estabelecer um número fixo de quinhen-tos deputados, não define um teto máximo por estado. Aofixar um patamar de quatro deputados por estado, resguar-da uma representação mínima por unidade federativa, masreduz sensivelmente a anomalia existente no sistema pro-porcional que, a nosso ver, descaracteriza o princípio darepresentação proporcional e macula o Estado Democrá-tico de Direito, na medida em que os entes integrantes doEstado Federado não têm seus eleitores representados deforma equânime na Câmara do Deputados.

Consideramos ainda que fazem parte da reforma polí-tica do aparato do Estado as reformas do Congresso e doJudiciário. Mas estes temas, por si só, são bastante abran-gentes e merecem uma abordagem exclusiva, que foge aoslimites deste trabalho. O objetivo fundamental deste tra-balho consistiu em tentar mostrar que a racionalização dasinstituições políticas é condição preliminar para a efetivaafirmação do processo democrático de representação e detomada de decisões. Sem isto, os demais problemas, prin-cipalmente econômicos e sociais, não terão soluções ade-quadas. Ou terão soluções emanadas do poder burocráti-co, sempre pronto a fazer concessões e promover acordoscom os interesses particularistas e corporativos.

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O JUDICIÁRIO EM QUESTÃO

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O JUDICIÁRIO EM QUESTÃO

descontentamento com o Judiciário não é um pro-blema novo, nem peculiar ao Brasil, ou mesmoaos países latino-americanos. Críticas ao desem-

penho da Justiça atravessam o continente, recheando tam-bém os noticiários em países mais desenvolvidos, comopor exemplo a França, a Espanha, a Itália e Portugal. Oque pode ser visto como uma novidade é a posição cen-tral que o tema vem ocupando nos debates. A situaçãodos últimos anos difere de todo o período anterior em pelomenos dois aspectos: a Justiça transformou-se em ques-tão prioritária – constando da agenda de reformas – e ograu de tolerância com a baixa eficiência do sistema ju-dicial tem diminuído.

Por outro lado, é possível sustentar que a peculiarida-de do caso brasileiro, como da maior parte dos países la-tino-americanos, está na magnitude dos sintomas indican-do a necessidade de reformas. Um trabalho feito em 1994pelo BID concluiu que o setor Judiciário da região apre-senta enorme atraso em relação a outras áreas da ativida-de pública. As várias dificuldades concentram-se na per-da de confiança da opinião pública, no reconhecimentoda obsolescência dos procedimentos legais, na escassezde recursos, na crescente litigiosidade nas relações sociaise na progressiva congestão dos serviços. Avalia ainda esteestudo que, para que fossem colocados totalmente em diaos processos, teria que ser suspenso, por vários anos, oprocessamento de novas ações.

Não por outra razão, especificamente no caso brasilei-ro, este foi o capítulo da Constituição que recebeu o maiornúmero de propostas de revisão por ocasião da reformaconstitucional de 1993 – 3.917 emendas. A insatisfaçãocom a prestação jurisdicional tem sido expressa em inú-meras pesquisas de opinião. Institutos especializados

mostram que, em média, 70% da população não confiamna Justiça (Vox Populi, DataFolha, Ibope). Recente le-vantamento feito pelo Idesp (1996a) indica que, entre osempresários, o Judiciário é também muito mal avaliado,chegando a 89% os que o consideram “ruim” ou “péssi-mo”, em termos de agilidade. Essa insatisfação vem sen-do cada vez mais compartilhada pelos próprios operado-res do sistema de Justiça. Magistrados e integrantes doMinistério Público, outrora refratários a críticas, têm con-cordado com a existência de uma situação problemáticae, mais ainda, buscado interferir de forma mais ativa nosdebates.1

A ampla reprovação da situação presente não signifi-ca, entretanto, que exista um consenso sobre o diagnósti-co e as soluções. Este artigo objetiva mapear o problema,levantando hipóteses que busquem caracterizar a crise nosistema de Justiça e discutir algumas das principais pro-postas de reforma.

A CRISE DO SISTEMA DE JUSTIÇA

Se não restam dúvidas de que a falta de credibilidadena Justiça coloca em risco o Estado de Direito e a conso-lidação da democracia, além de interpor sérios obstácu-los a projetos de crescimento e de abertura da economia,há menos acordo, contudo, quanto aos diagnósticos e àspossíveis reformas com vistas a aperfeiçoar o sistema deJustiça. Trata-se, certamente, de um problema que não secircunscreve à instituição, produzindo efeitos abrangen-tes, interferindo na ordem legal, passando pela garantiados direitos individuais e coletivos e até mesmo dificul-tando a implementação de projetos de desenvolvimento ede inserção das economias nacionais na nova ordem in-

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MARIA TEREZA SADEK

Professora do Departamento de Ciência Política da USP, Pesquisadora do Idesp

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ternacional. Apesar da indiscutível importância do tema,é reduzido o conhecimento sobre as causas e as conse-qüências do mal funcionamento da Justiça.

Os sinais da existência de uma crise são visíveis: pro-cessos que se avolumam; excessiva lentidão; imprevisi-bilidade de decisões; e custos que tornam a Justiça ina-cessível para todos. Esses sinais – que como já mencionadonão são recentes – têm se tornado mais fortes nos últimosanos, impulsionados pelo expressivo aumento de deman-da por Justiça. O crescimento da procura está relaciona-do às altas taxas de urbanização, ao processo de demo-cratização e à instabilidade legal. Paradoxalmente, pode-seafirmar que os sinais da crise seriam ainda mais expressi-vos caso houvesse maior credibilidade na Justiça e, con-seqüentemente, fosse maior a demanda por seus serviços.No quadro presente, a rigor, só se procura o Judiciárioquando não há outra alternativa ou quando se pode ex-trair vantagens de tal procedimento.

Qualquer diagnóstico e posteriores soluções devemlevar em conta três critérios que respondem por um maiorou menor grau de eficiência na prestação jurisdicional:imparcialidade, agilidade e custos. O desempenho dessasvariáveis tanto afeta a percepção por parte da populaçãodo sistema de Justiça como permite avaliar a qualidadedesse sistema.

De forma geral, é possível afirmar que no caso brasi-leiro os problemas mais graves dizem respeito à agilida-de e aos custos. Isso não implica dizer que não haja ques-tionamentos quanto à imparcialidade, mas sim reconhecerque o sistema de Justiça atingiu um importante grau deinstitucionalização, ultrapassando etapas de conquista econstrução de uma identidade própria, distante das par-tes, sejam elas forças privadas ou o poder político.

Os problemas que afetam o Judiciário podem ser agru-pados em três grandes áreas: a institucional, a estrutural ea relativa aos procedimentos. Essas três áreas, embora porvezes se sobreponham, compreendem problemas de na-tureza distinta, provocados por causas diversas e compossibilidade de produzir diferentes conseqüências. É,pois, conveniente distingui-las.2

O conjunto de problemas interpretado como sinal deuma crise institucional diz respeito à posição do Judiciá-rio na organização tripartite de poderes, isto é, a seu for-mato constitucional como poder independente e a sua re-lação com os dois outros – o Executivo e o Legislativo.

A Constituição de 1988 representou um passo impor-tante no sentido de garantir a independência e a autono-mia do poder Judiciário – qualidades indispensáveis paraa salvaguarda do Estado de Direito. Foi assegurada a au-tonomia administrativa e financeira ao Judiciário, caben-do a este poder a competência de elaborar o seu próprioorçamento, que deve ser submetido ao Congresso Nacio-

nal conjuntamente com o do Executivo. A nova regra temvalidade tanto para a União como para os estados federa-dos, abrangendo também a questão dos vencimentos dosmembros do Judiciário.

A formalização da autonomia do Judiciário em ques-tões orçamentárias não foi acompanhada de soluçõesigualmente claras no tocante ao seu formato institu-cional. O presidencialismo e o modelo de separação depoderes consagrados pela nova carta constitucionalacabaram por estimular a politização do Judiciário. Cabea este arbitrar os conflitos entre o Executivo e o Legisla-tivo e exercer o controle constitucional dos atos legis-lativos do Executivo e do Legislativo. Como foi faculta-do ao Executivo legislar por meio de medidas provisóriase foi fortalecido o poder do Congresso, cresceram asáreas de possíveis conflitos entre os dois poderes. Alémdisso, como o texto constitucional é muito extenso e de-talhista, dificilmente uma questão escapa de apreciaçãojudicial.3

Acrescente-se a estes aspectos mais dois outros: o fatode o Judiciário acumular funções judiciais propriamenteditas e de uma Corte Constitucional, e ainda sua estruturadescentralizada e monocrática, que permite a ocorrênciade decisões sem uniformidade com potencialidade deparalisar, ainda que temporariamente, medidas aprovadaspelo Legislativo e/ou pelo Executivo. Este modelo levouo Judiciário para o centro da vida política, tornando-o maisvulnerável a pressões e a toda sorte de críticas. Comoexemplos, bastaria citar as decisões que interferiram di-retamente na política econômica, como o Finsocial e oIPMF,4 ou nas questões institucionais, como a autonomiado Ministério Público e a votação aberta no caso doimpeachment do ex-presidente Collor.

Os problemas que podem ser agrupados como sinaisde uma crise estrutural do Judiciário dizem respeito à suapesada estrutura e à falta de agilidade. Estes são os sinaismais visíveis da incapacidade da instituição de processaras demandas que chegam até ela.

Também quanto a este aspecto, a Constituição de 1988deu respostas, ao que tudo indica, insatisfatórias. Houve,de fato, uma reorganização e uma redefinição das atri-buições dos vários organismos que compõem o PoderJudiciário. O Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpulado Poder Judiciário, foi modificado, passando a ter atri-buições predominantemente constitucionais. Porém, alémde funções típicas de uma Corte Constitucional, cabe-lhetambém julgar, em recurso extraordinário, as causas de-cididas em única ou última instância por outros tribunais,quando a decisão recorrida contrariar dispositivos daConstituição, declarar a inconstitucionalidade de tratadoou lei federal e/ou julgar válida lei ou ato de governo lo-cal contestado em face da Constituição.

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Por outro lado, o acesso ao STF foi consideravel-mente democratizado, uma vez que se ampliou a lista deagentes legitimados a propor ação direta de inconstitu-cionalidade, antes integrada apenas pelo procurador-ge-ral da República.

Em virtude da nova posição constitucional do STF, foicriado um órgão da máxima importância, o Superior Tri-bunal de Justiça, para o qual foi transferida parte das com-petências anteriores da Corte Suprema. Integram ainda opoder Judiciário as justiças especiais: os tribunais e juízesdo trabalho; os tribunais e juízes eleitorais; os tribunais ejuízes militares.

A nova Constituição preocupou-se também em descen-tralizar a Justiça Federal, criando os tribunais regionaisfederais e os tribunais e juízes dos estados e do DistritoFederal e dos territórios. Foi conferida aos estados a or-ganização de sua Justiça, cabendo às constituições esta-duais a definição das competências dos seus respectivostribunais, mediante lei de organização judiciária de ini-ciativa do Tribunal de Justiça.

Apesar de todas essas modificações na estrutura doPoder Judiciário, permanece crítica a relação entre o nú-mero de processos que entram e os que são julgados emtodas as instâncias e em todas as regiões e estados do país.5

O Supremo Tribunal Federal tem recebido um númerocrescente de processos a cada ano. As possibilidades derecursos e o crescimento das demandas pela democrati-zação do país fizeram com que esta Corte recebesse só noano de 1993, por exemplo, 27 mil processos, o que dácerca 2,5 mil processos para cada ministro relatar. Paraque não se pense que se tratava de um ano excepcional,em 1995 o total foi ainda maior, atingindo a casa dos 36mil; e, de acordo com levantamentos do ministro Sepúl-veda Pertence, nos seis primeiros meses de 1996, tive-ram decisão mais de 15 mil.

Na Justiça Comum, que atende à maior parte da de-manda por Justiça no país, a situação é igualmente grave.A diferença entre o número de processos que entram e osque são julgados, tanto na primeira como na segunda ins-tância, é muito grande, indicando que o Judiciário nãotem sido capaz de responder, com um mínimo de eficá-cia, à demanda por seus serviços.6

Comumente, aponta-se o insuficiente número de juí-zes como um dos fatores mais importantes para explicara falta de agilidade do Judiciário. De fato, o Brasil apre-senta uma relação bastante desfavorável entre o númerode magistrados e o tamanho da população – há cerca deum juiz para cada 29.000 habitantes, segundo dados de1993. Essa proporção é muito mais favorável nos paísesdesenvolvidos, chegando a um juiz para cada 3.448 habi-tantes na Alemanha, um para cada 7.692 na Itália e umpara cada 7.142 na França.

O reduzido número de magistrados é um problema quevem sendo reconhecido pela própria instituição que, in-clusive, tem aberto novos postos. Esses cargos, entretan-to, não têm sido preenchidos. Repetidos exames de in-gresso têm deixado evidente que a maior parte doscandidatos está aquém das exigências da carreira. Isto podeser explicado tanto pela baixa qualidade dos cursos deDireito quanto por questões alheias ao próprio concursopúblico, como, por exemplo, uma deliberada política ins-titucional no sentido de não se ampliar em demasia o nú-mero de membros da corporação.

Este último aspecto chama a atenção para uma ques-tão extremamente relevante: a mentalidade dos integran-tes do sistema de Justiça, em geral, e do Judiciário, emparticular. A socialização interna tem sido eficiente emcriar um corpo de magistrados razoavelmente homo-gêneo quanto aos valores e, sobretudo, fundado em umaauto-imagem bastante positiva, infensa a críticas e amudanças.

A terceira área de problemas compreende um conjun-to de questões relacionadas à esfera legislativa propria-mente dita e aos ritos processuais. Engloba uma gama dequestões que vão da estabilidade da ordem jurídica até asformalidades procedimentais.

As dificuldades enfrentadas pelo Judiciário, desta pers-pectiva, foram agravadas pela abundante legislação, soba forma de medidas provisórias (uma média de 6,3 pormês no governo Sarney e de 2,3 no de Fernando HenriqueCardoso, num total de mais de 1.500 desde 1988), deses-tabilizando ainda mais o sistema normativo e dificultan-do a atuação da Justiça a partir da entrada em vigor donovo texto constitucional. Afora isso, é comum sustentarque grande parte de nossa legislação está ultrapassada,tendo sido criada para um país que pouco tem a ver como atual.

Ao lado da instabilidade do quadro jurídico e de umalegislação envelhecida e muitas vezes contraditória, oexcesso de formalidades também contribui para retardaro trabalho e encarecer a Justiça.

Este conjunto de problemas – de natureza institucio-nal, estrutural e procedimental –, normalmente caracteri-zado como “crise do Judiciário”, tem servido de justifi-cativa para a necessidade de reformas que busquemmelhorar a prestação jurisdicional, tornando-a mais ágile acessível.

REFORMAS

Do ponto de vista mais genérico, são dois os objetivosde todas as propostas de reforma: dinamizar e tornar maisacessível a proteção jurisdicional prestada por juízes etribunais. As soluções, para efeito de discussão, poderiam

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ser reunidas em dois grupos: as judiciais propriamenteditas e as extrajudiciais, englobando desde sistemas al-ternativos para a solução de disputas até modificações le-gislativas.

Soluções Judiciais

As propostas de reformas denominadas de judiciaisprocuram dar maior eficiência ao Poder Judiciário a par-tir de intervenções internas no próprio Poder Judiciário.Abrangem, assim, soluções diversas, desde alterações nascompetências de seus organismos até modificações naestrutura da instituição. Entre elas, destacam-se: a súmulade efeito vinculante; o incidente de constitucionalidade;eliminação dos juízes classistas na Justiça do Trabalho;fim do poder normativo da Justiça do Trabalho; e criaçãode um órgão de controle externo do Poder Judiciário. Aseguir, é feito um breve sumário de cada uma dessas pro-postas.

A súmula de efeito vinculante é uma das propostas quemais chama a atenção, sendo vista por seus defensorescomo indispensável para garantir a segurança jurídica eevitar a multiplicação desnecessária de processos nas vá-rias instâncias. Tal providência evitaria que grande partedos processos tenha continuidade, desafogando o Judiciá-rio de processos desnecessários. Impediria a enxurradade processos idênticos e daria condições para a Justiçaacompanhar a evolução das leis conjunturais. Seus defen-sores lembram que mais de 80% dos casos levados ao STF,por exemplo, referem-se a matéria já julgada. O caso maiscitado é o fato de o Supremo ter decidido em 1990 comosendo inconstitucional a cobrança de empréstimo com-pulsório, criada no governo Sarney, sobre compra de car-ros novos e aquisição de combustível, e até hoje os mi-nistros terem julgado mais de 10 mil vezes essa mesmacausa.

Outra modificação de grande amplitude seria a cria-ção de incidente de constitucionalidade, que permite aoSupremo Tribunal Federal, provocado pelo procurador-geral da República, advogado da União, ou procurador-geral ou advogado-geral do Estado, determinar a suspen-são de processo em curso perante qualquer juízo outribunal, para proferir decisão exclusivamente sobre aquestão constitucional suscitada.

Estas propostas, que constam de projeto de emendaconstitucional em andamento no Congresso, encontramresistências por parte da magistratura7 – sobretudo de pri-meira instância –, de setores do Ministério Público8 e deum grupo de juristas. Tais expedientes, segundo seus opo-nentes, afrontariam duas garantias institucionais: a sepa-ração de poderes, uma vez que daria poder normativo aostribunais – uma prerrogativa do Legislativo; e o princí-

pio do duplo grau de jurisdição, já que retiraria dos ma-gistrados o poder de decidir livremente, segundo a lei e oseu convencimento pessoal. Alegam ainda estes críticosque tais soluções visam fortalecer o órgão de cúpula doPoder Judiciário e dar agilidade aos tribunais, implantan-do uma ditadura e, desta forma, impedindo a autonomiado juiz e, conseqüentemente, a oxigenação do Judiciário.

É importante salientar que abusos de recursos acabampor obstruir a pauta dos tribunais, servindo, na maior partedos casos, de instrumento para estratégias protelatóriase, em decorrência, retardando a prestação jurisdicional.Afora isso, de acordo com a proposta em discussão, nãose trata de impor efeito vinculante a toda e qualquer deci-são dos tribunais, nem mesmo de impedir a manifestaçãodos juízes singulares. Há uma regulamentação segundo aqual as “súmulas vinculantes terão por objeto a validade,a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acercadas quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciáriosou entre esses e a administração pública que acarrete gra-ve insegurança jurídica e relevante multiplicação de pro-cessos sobre questão idêntica, e só poderão ser editadasmediante decisão tomada pelo voto de três quintos dosmembros do Supremo Tribunal Federal ou dos TribunaisSuperiores, após reiteradas decisões no mesmo sentidosobre determinada questão de direito. Demais disso, po-derão provocar a aprovação, a revisão e o cancelamentode súmula vinculante os órgãos responsáveis por sua edi-ção ou qualquer tribunal competente na matéria; o Mi-nistério Público da União ou dos Estados; a União, osEstados ou o Distrito Federal; o Conselho Federal da Or-dem dos Advogados do Brasil e a entidade máxima re-presentativa da magistratura nacional, reconhecida peloSTF”.9 Pesquisa realizada pelo Idesp (1996c), em novem-bro de 1996, junto a deputados federais e senadores, mos-tra substancial receptividade no Congresso à proposta detornar vinculantes as súmulas, chegando a 72% o índicede apoio.

No que se refere ao conjunto de problemas denomina-dos estruturais, também é amplo o leque de propostas. Elasabrangem desde alterações na estrutura do Poder Judici-ário até modificações nas competências de certos órgãos.

Assim, um projeto de emenda constitucional, apresen-tado pelo senador Pedro Simon, tem por objetivo trans-formar o Supremo Tribunal Federal em Tribunal Consti-tucional, nos moldes dos modelos europeus, composto porjuízes com mandato fixo. Esta transformação faria comque o Superior Tribunal de Justiça fosse ampliado, ca-bendo a ele a uniformização da jurisprudência relativa àlegislação federal e à proteção das liberdades fundamen-tais. Esta proposta é bastante polêmica e encontra ferre-nhos adversários no interior da magistratura, como o mi-nistro Célio Borja e o jurista Saulo Ramos.

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Quanto às justiças especiais, a solução que vem ob-tendo um maior número de adeptos é a que prevê a extin-ção do cargo de juiz classista na Justiça do Trabalho. Umaemenda do deputado Nedson Micheleti, apresentada emagosto de 1995, visa alterar os artigos 111, 112, 113 e114 da Carta Federal para extinguir o Tribunal Superiordo Trabalho, a representação classista em todos os grausde jurisdição e o poder normativo da Justiça do Trabalho.Segundo Piquet Carneiro, um dos membros do Conselhoda Reforma do Estado, órgão criado pelo presidenteFernando Henrique, “o cargo de juiz classista custa ao paísR$ 500 milhões por ano e só contribui para agravar ocongestionamento da Justiça do Trabalho” (O Estado deS.Paulo, 19/10/96). No Brasil, são 3.500 juízes titularese 3.500 suplentes, que ganham salários de R$ 4 mil, po-dendo se aposentar com apenas cinco anos de serviço.Ainda no bojo deste tema está a extinção das juntas deconciliação e julgamento da Justiça do Trabalho.10

No que se refere à Justiça Militar, as propostas em dis-cussão pretendem reduzir a competência de seus juízes,redefinindo os tipos de crimes sujeitos a seu julgamento,quando cometidos por militares ou policiais militares.

A criação de um órgão externo de controle do Judiciá-rio é, sem dúvida, a proposta que mais tem provocado dis-cussões. Desde que foi apresentada pela primeira vez,recebeu uma avalanche de protestos. Seus defensores sus-tentam o argumento que, dos três poderes, o Judiciário éo mais estável e o que menos tem mecanismos de controle efiscalização, seja por parte da sociedade, seja de outrospoderes.11 Esta era a justificativa básica da emenda ela-borada pelo deputado Genoino: “A justiça não pode ser en-tendida dentro de uma perspectiva exclusivamente técni-co-formal. O princípio da separação dos poderes não podeser utilizado para consolidar a fragmentação do próprioEstado e justificar a impossibilidade de controle socialsobre uma atividade que é pública e da mais alta relevân-cia”; asseverando ainda que “não há Estado Democráticode Direito sem que a sociedade civil não possa controlaras suas instituições políticas, legislativas e judiciais”.

A Emenda no 4, apresentada pelo deputado AloysioNunes Ferreira (PMDB-SP), modifica a emenda do deputa-do Genoino para instituir o Sistema de Controle do PoderJudiciário, criando o Conselho Nacional da Magistratu-ra, junto ao STF. A composição desse órgão abrange re-presentantes do STF, dos Tribunais Superiores (STJ, TSE,STM, e TST), dos tribunais dos diversos ramos do PoderJudiciário federal e estadual, bem como um advogado.

A comissão de Constituição e Justiça e de Redaçãoopinou pela admissibilidade da proposta – Emenda Cons-tituição Federal no 112/95 – apenas tendo sido suprimidaa expressão “externo” que qualificava o controle sobre opoder Judiciário, bem como a menção à participação de

cidadãos nos Conselhos de Justiça. Esse sistema, de acordocom essa versão, seria constituído por Conselhos de Jus-tiça em nível federal, estadual e distrital, devendo reali-zar a fiscalização do Poder Judiciário, sendo vedada ainterferência na atividade jurisdicional, com competên-cias para se pronunciar sobre matéria orçamentária,vitaliciamento, promoção e perda de cargo dos magistra-dos, estrutura do Poder Judiciário e de seus serviços au-xiliares, bem como fiscalizar o serviço judicial e receberdenúncias e reclamações contra membros da magistratu-ra e funcionários dos serviços auxiliares.

Quanto aos componentes, a emenda prevê represen-tantes de cada um dos Tribunais Superiores, do Ministé-rio Público Federal, da classe dos advogados e três cida-dãos brasileiros eleitos pelo Congresso Nacional. Deixaà Lei Complementar dispor sobre a competência, organi-zação e funcionamento do sistema de controle do poderJudiciário.

Hoje, esta proposta tem sido vista com menos receiopelos integrantes da magistratura, quer por limitar-se aquestões administrativas, orçamentárias e disciplinares,sem interferir no mérito das decisões, quer por sua com-posição – um órgão majoritariamente integrado por mem-bros do próprio Poder Judiciário. O Conselho da Refor-ma do Estado aprovou uma recomendação neste sentido,propondo a criação de um Conselho Nacional de Justiça,com a participação obrigatória de representantes da so-ciedade civil.

Saliente-se, contudo, que apesar de atualmente sermenor a resistência a esta proposta,12 são inúmeras as vozesque se pronunciam no sentido de que ela fere o princípioconstitucional da separação dos poderes, além de enfati-zar a já existência de mecanismos “controladores” damagistratura, tais como a corregedoria e a constante eobrigatória presença nas atividades jurisdicionais de in-tegrantes do Ministério Público, de advogados.

Todas estas propostas não significam desconsiderar opeso que teria em uma melhor prestação jurisdicional a“vontade política”. Victor Nunes Leal chamava a aten-ção para o fato de que apesar da importância das refor-mas materiais para agilizar o trabalho da Justiça, elas, iso-ladas, não surtiriam efeitos. Salientava que, sem vontadepolítica, nada seria resolvido. Há exemplos de tais tiposde iniciativa em vários tribunais, que têm conseguidoagilizar os processos e cobrar de seus membros maiorpresteza na execução de suas atribuições.13

Soluções Extrajudiciais

Estas soluções contemplam uma série de iniciativas quevão da esfera legislativa propriamente dita até a criaçãode novos espaços para a solução de disputas.

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No que se refere à esfera legislativa, trata-se de ajustara lei aos imperativos da Justiça, sem que isto impliquediminuir o respeito ao devido processo legal e ao direitode defesa. A lei processual brasileira permite, de fato, umapletora de recursos. Pode-se, como lembram seus críti-cos, até fazer embargo de declaração de despacho a em-bargo de declaração, isto é, o advogado diz não ter enten-dido os termos de uma sentença e depois alega nãocompreender o esclarecimento feito pelo juiz. Esta estra-tégia tem claramente como objetivo ganhar tempo, retar-dando a sentença final. Uma maior rigidez quanto ao nú-mero e a oportunidade dos recursos não afetaria aequanimidade da Justiça. Ainda em relação à legislaçãoprocessual, há propostas que buscam limitar as possibili-dades de medida liminar ou cautelar. Muitos juristas, comopor exemplo Celso Bastos, julgam que todas as situaçõesjurídicas hoje são passíveis de serem postas em suspensopor medida liminar ou cautelar, sendo mesmo até execu-tadas em favor do autor antes que o réu tenha sido ouvido(O Estado de S.Paulo, 11/10/96).

A desburocratização das exigências legais é uma de-manda que vem ganhando adeptos. Um exemplo do ex-cesso de formalidades encontra-se nas exigências carto-riais, como para a compra e venda de imóveis. Um projetode lei, apresentado em 1996 pelo deputado Hélio Bicudo,tem por objetivo reduzir as formalidades e tornar menosonerosa a negociação de imóvel popular. Segundo tal pro-posta, estariam dispensados de escritura pública os imó-veis de valor igual ou inferior a R$ 30 mil. Segundo JoséOsório, desembargador do Tribunal de Justiça de SãoPaulo, “a maior parte das escrituras de imóveis passadasem cartório são inócuas. São meras formalidades dispen-sáveis” (Folha de S.Paulo, 6/7/96). O juiz Urbano Ruiz,presidente da Associação Juízes para a Democracia, vaimais longe: “A maioria das escrituras passadas em cartó-rio, assim como quase todos os serviços notariais e regis-tro, são inúteis.” Para ele, de acordo com reportagem pu-blicada no jornal Folha de S.Paulo, (6/7/96), poderiamser abolidas não só a escritura de compra e venda de imó-vel, como também as escrituras de divisão de imóveis(entre condôminos), de doação de imóvel, de dação empagamento (quando o imóvel é dado em pagamento), depermuta de imóveis e de desapropriação amigável. Tam-bém poderiam ser abolidas as procurações (seriam feitaspor instrumento particular), os pactos antenupciais (cons-tariam do próprio termo de casamento), o reconhecimen-to de firma e autenticação de cópias.

Quanto aos mecanismos alternativos de solução de dis-putas, duas medidas já vêm sendo implementadas: de umlado, os juizados especiais que desformalizam as contro-vérsias; e, de outro, foi regulamentado o juízo arbitral, achamada “Lei Maciel”.

Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais têm repre-sentado uma substancial melhora na prestação jurisdicio-nal, tanto em termos de custos como de agilidade e deacesso à Justiça. Dados sobre o Estado de São Paulo con-firmam esses ganhos em qualidade: de 1988 a 1995 pas-saram a funcionar 138 Juizados Especiais de PequenasCausas no interior, 12 na capital e 20 itinerantes; nesteperíodo foram ajuizadas 228.195 demandas e concluídas,entre acordos e sentenças, 220.518, isto é, 96,6%.

Com a Lei Maciel foram ampliadas as possibilidadesinstitucionais de que a sociedade resolva eventuais con-flitos comerciais e patrimoniais de modo mais simples eágil, reduzindo o recurso à Justiça e aliviando, assim, oJudiciário de um grande número de processos. Calcula-se que cerca de 80% dos conflitos mercantis internacio-nais sejam solucionados através da arbitragem, sobretu-do em países da Europa e na América do Norte. NosEstados Unidos, no início da década de 90, achavam-seem funcionamento 1.200 programas de Resolução Alter-nativa de Disputas (ADR), com participação dos gover-nos estaduais e federal, profissionais de várias áreas, ad-vogados e universidades. Só em 1995, foram resolvidosdessa maneira 1,2 milhão de pendências.

No Brasil, embora o Código de Processo Civil de 1929já prevesse o juízo arbitral, esta prática sempre foi muitoreduzida, quer por questões culturais, quer porque haviaa obrigatoriedade de intervenção judicial. A entrada emvigor da nova lei, sancionada pelo Presidente da Repú-blica em setembro último, certamente contribuirá paradesafogar o Judiciário e, mais ainda, para impulsionar acriação de mecanismos de solução de conflitos extrajudi-ciais, coetâneos com uma sociedade civil organizada edesenvolvida.

Essas propostas, classificadas em judiciais e extraju-diciais, não esgotam o amplo leque de emendas que têmpor objetivo modificar o Poder Judiciário e o Sistema deJustiça, em geral. Há outras emendas, como por exem-plo, alteração dos dispositivos relativos à promoção dosmagistrados, introdução de participação do Ministério Pú-blico no concurso de provas e títulos para ingresso nacarreira da magistratura, modificação de dispositivo re-ferente ao vitaliciamento do magistrado, estabelecimen-to de investidura temporária para os ministros dos STF edo STJ, proibição à realização de sessões secretas, pelostribunais, para tratar de assuntos administrativos, exten-são aos Ministérios Públicos dos estados e do DistritoFederal o mecanismo de confirmação pelo poder Legis-lativo da escolha do procurador-geral, hoje existente parao Ministério Público Federal.

É forçoso reconhecer que, a despeito dos obstáculos,não há mais como adiar reformas que tenham por objeti-vo aperfeiçoar o Sistema de Justiça brasileiro. Destas ini-

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10. Segundo dados do Idesp (1996c), 55% dos congressistas opinaram favora-velmente à eliminação da competência da Justiça do Trabalho para julgar reajus-tes salariais e outros conflitos econômicos entre empregados e empregadores;59% a favor da eliminação do poder normativo da Justiça do Trabalho; e 72% daextinção da figura do juiz classista na Justiça do Trabalho. Por outra parte, juí-zes, empresários e sindicalistas têm expressado sua concordância em relação àextinção das vagas de juiz classista. É esta a posição oficial da Associação dosMagistrados Brasileiros, de 72% dos empresários ouvidos na pesquisa “O Judi-ciário e a Economia” e também do presidente nacional da Central Única dosTrabalhadores, Vicente Paulo da Silva.

11. Embora por ocasião da Revisão Constitucional tenham sido apresentadas 15emendas estabelecendo algum tipo de controle externo sobre o poder Judiciário,a mais completa e, por isso mesmo a que mais tem sido discutida é da autoria dodeputado Federal José Genoino (PT-ST). Impedido pela direção de seu partidode apresentar a emenda, ela foi levada à discussão pelo deputado Federal RobertoFreire (PPS-PE), então líder do governo.

12. Entre os congressistas é bastante amplo o apoio a esta proposta, chegan-do a 80% os que se manifestaram a favor da criação de um órgão de controleexterno do Judiciário, com maioria de membros externos à magistratura (Idesp,1996c).

13. Pode-se citar como um exemplo de iniciativa guiada por “vontade política”de melhorar a prestação jurisdicional o “plano de gestão para a qualidade”, im-plantado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em março de 1995. Antesde sua adoção, o tempo médio de permanência de um processo na diretoria pro-cessual até ser distribuído aos desembargadores destinatários chegava a 60 dias.Hoje, esse período foi reduzido para 5 dias; um processo de falência, que demo-rava 36 dias para ser concluído, tem sido feito em 48 horas. Outro caso que po-deria ser destacado é o do Tribunal de Justiça da Paraíba: houve uma considerá-vel redução na morosidade, além de medidas que diminuíram a impunidade, res-tando, atualmente, apenas 12% dos 63 mil processos que obstruíam sua pautaaté o ano passado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARANTES, R. “A crise do Judiciário”. Revista Trevisan, ano 9, n.l04, outubro1996.

IDESP. A crise do Judiciário vista pelos juízes. São Paulo, 1994.

__________ . “O Judiciário e a economia no Brasil”. Gazeta Mercantil. Relató-rio. São Paulo, 1996a.

__________ . O Ministério Público e a Justiça no Brasil. São Paulo, 1996b.

__________ . O Congresso Nacional frente aos grandes temas do momento bra-sileiro. Pesquisa coordenada por Bolivar Lamounier e Amaury de Souza.São Paulo, novembro 1996c.

SADEK, M.T. e ARANTES, R. “A crise do Judiciário e a visão dos juízes”.Revista USP. Dossiê Judiciário, mar./abr./maio 1994.

ciativas dependerá não apenas uma maior credibilidadeno Poder Judiciário, mas também a consolidação do Es-tado de Direito e as chances de sucesso de inserção daeconomia do país nos novos parâmetros internacionais.

NOTAS

1. O Idesp realizou pesquisas junto à magistratura, em 1993, e aos integrantesdo Ministério Público, em 1996. Estes levantamentos demonstram que 77% dosjuízes e 85% dos procuradores e promotores concordam totalmente ou em ter-mos com a existência de uma crise na Justiça (Idesp, 1994 e 1996b).

2. Esta discussão é apresentada em Sadek e Arantes (1994).

3. Um dos mais significativos exemplos de como este modelo propicia crisesinstitucionais ocorreu em março de 1994, quando o STF fixou a data de conver-são dos salários do Judiciário, do Ministério Público, do Congresso e das esta-tais em URV, contrariando a Medida Provisória no 434, que estabelecia que ossalários deveriam ser convertidos com base na média dos quatro meses anterio-res. Naquela ocasião, devido ao impasse entre o governo, de um lado, o Judiciárioe o Congresso, de outro, chegou-se a temer uma intervenção militar e o fecha-mento do Congresso e do Judiciário.

4. Tem sido freqüente a diversidade de decisões não só entre juízes singulares,como também entre os tribunais. Repetidas vezes, enquanto os tribunais fede-rais, com exceções de algumas turmas, julgavam pela inconstitucionalidade dasalterações dos decretos-leis que majoraram a alíquota de recolhimento do PIS(Programa de Integração Social), ou pela exigência do INSS de recolhimento de20% sobre o pró-labore retirado da empresa e Recibos de Pagamentos de Autô-nomo, o Tribunal Regional Federal da 4a região manifestava-se em direção oposta.Tais decisões foram posteriormente contrariadas pelo Supremo Tribunal Fede-ral, ratificando as decisões dos demais tribunais.

5. Calcula-se que, se parassem de ingressar novos casos na Justiça, seriam ne-cessários de cinco a dez anos, dependendo da região e do estado do país, paraque fossem colocados em dia todos os processos existentes.

6. Embora exista uma deficiência nas informações, o déficit de prestação juris-dicional é extremamente acentuado em todos os estados. Mesmo na região sul,onde é melhor o desempenho do Judiciário, há, em média, de 1990 a 1994, umresíduo de 24 mil processos frente a uma média de 183.700 iniciados por trimes-tre. Para uma análise pormenorizada destes dados, ver Arantes (1996).

7. Pesquisa realizada pelo Idesp junto a 570 juízes em cinco estados, em 1993, mos-trava que apenas 33,9% eram a favor do efeito vinculante e 14,6% da avocatória.

8. Apenas 22% dos integrantes do Ministério Público manifestaram-se totalmentea favor da atribuição de efeito vinculante às súmulas dos Tribunais Superiores eà avocatória para assuntos constitucionais (Idesp, 1996b).

9. Proposta de Emenda à Constituição no 96, de 1992 apensa: PEC no 112/95,autor: deputado Hélio Bicudo; relator: deputado Jairo Carneiro.

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REFLEXÕES SOBREA REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO

URBANO RUIZ

Juiz do 1o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia

REINALDO MILUZZI

Juiz de Direito em São Paulo, Membro do Conselho de Administração da Associação Juízes para a Democracia

Brasil reservou ao Judiciário, desde sua pri-meira Constituição, a categoria de Poder doEstado, que deve atuar com independência e

imparcialidade na solução dos conflitos, mediante o ins-trumento do processo. Sua atuação, além de independentee imparcial, deve ser harmônica com os demais Poderesdo Estado.

O prof. Manuel Gonçalves Ferreira Filho, eminenteconstitucionalista pátrio, assinala que “a independênciado Judiciário é uma necessidade da liberdade individual.Que existam no Estado órgãos independentes que possamaplicar a lei, inclusive contra o Governo e contra a admi-nistração, é condição indispensável para a liberdade e aproteção dos direitos humanos. E não foi outra a razãoque levou a doutrina clássica a erigir o Judiciário em po-der do Estado, com função própria” (Ferreira Filho,1990:213). Todavia, embora seja um poder independen-te, o Judiciário não se modernizou, contando com umaestrutura arcaica, sem que esteja apta a vencer os desa-fios que enfrenta.

A CRISE DO PODER JUDICIÁRIO

O prof. de Direito da Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo, José Eduardo Faria, explica que em40 anos, de 1940 a 1980, o Brasil mudou seu perfil, deagrário passou a urbano.

Com Getúlio Vargas, ingressamos na modernidade,iniciando-se a industrialização, quer porque os dois con-flitos mundiais impediam o suprimento dos bens indus-trializados até então consumidos, quer porque se enten-deu que era o momento de ocupar os espaços perdidospelos países do primeiro mundo, envolvidos nos confli-

tos mundiais. Juscelino Kubitscheck, nos anos 50, incre-mentou ainda mais a industrialização e Geisel a ampliou,na década de 70.

Em 1940, a população urbana era de apenas 20%, es-tando o restante no campo, ao passo que em 1980 os nú-meros se inverteram (80% nas cidades e 20% no campo).

A crescente migração deteriorou enormemente a qua-lidade de vida e, como conseqüência, a dos serviços pú-blicos. Pessoas até então moradoras em pequenos vilarejosou mesmo no campo vieram para as grandes cidades, comrepentina troca de valores, conseqüente marginalização ecrescimento incontrolável dos conflitos.

A industrialização brasileira, no entanto, foi freada apartir de 1980, em decorrência da crise do petróleo, dre-nando recursos para o mundo árabe, passando os grandesinvestidores internacionais a direcionar seus interessespara os Tigres Asiáticos, emergindo no Brasil crescenteestagnação, com recessão e desemprego, embora conti-nuasse a migração interna. Como decorrência, avolumam-se os conflitos, sobretudo de ordem coletiva. Clama-sepelo direito de moradia, de educação, de saúde, de acessoaos serviços públicos, à terra, ao trabalho, à segurança,ao transporte.

E o Poder Judiciário estaria preparado e apto à resolu-ção dos conflitos, especialmente aqueles que envolvemcoletividades inteiras? A justiça no Brasil é lenta, alémde complexa e pouco acessível ao destinatário. E a maiorparte dos juízes brasileiros concorda que o Judiciário nãofunciona bem e que alguma reforma deve ser feita. Esta éa conclusão a que chegou recente pesquisa realizada peloInstituto de Estudos Econômicos e Sociais de São Paulo,tendo os magistrados brasileiros apontado como causasprincipais as deficiências de ordem estrutural (número

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insuficiente de juízes e falta de recursos materiais) e deordem processual (excesso de formalidades processuaise legislação ultrapassada).

Todavia, não obstante seja verdadeiro que muito pe-queno é o número de juízes no Brasil e que os códigosprocessuais devem ser rapidamente atualizados com vis-tas a acelerar os julgamentos, o certo é que há igualmenteuma crise de identidade.

De nada adianta canalizar recursos a uma estrutura quedesconhece a dimensão verdadeira de seus problemas; denada adianta a alteração dos códigos e das leis se, entreos que têm o poder de dizer o Direito, ainda há a arraiga-da idéia de que a sociedade é una, que se vive numa co-munidade, embora, na realidade, a sociedade seja frag-mentada, heterogênea e em franca transição.

Mais recentemente, alguns textos legais foram edita-dos (Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.078/90,Lei das Execuções Penais – Lei 7.210/84, Estatuto daCriança e do Adolescente – Lei 8.069/90 e a própria Cons-tituição Federal), aptos a lidar com os conflitos coletivos,bem como envolvendo questões distributivas ou de natu-reza social. Mas, esbarram eles numa cultura profissionalda magistratura, voltada para o individualismo e o for-malismo, sobressaindo-se a mentalidade tecnicista dosjuízes, formados para lidar com o conflito intersubjetivo,despolitizado, que prejudica a abordagem do conflito co-letivo. Vale dizer, as decisões têm sido meramente for-mais e restritas à letra da lei.

O difícil acesso ao pobre, a inibição em situações demais acentuado interesse coletivo, a lentidão e burocrati-zação dos processos, com progressiva perda de efetivida-de das decisões, tudo isto gera isolamento e perda de le-gitimidade do Judiciário perante o meio social.

Para as classes mais desfavorecidas, conforme acen-tuou Antonio Carlos Villen, atualmente um dos conselhei-ros do Conselho de Administração da Associação Juízespara a Democracia, “o juiz é considerado como mais umfuncionário intocável, beneficiado pelas vantagens dopoder”; para os de nível econômico e/ou cultural mais alto,“o desmoralizado protótipo do funcionário público: bu-rocrata, desatualizado, sem criatividade inclusive paramanter uma relação interativa razoável com seu meiosocial” (Villen, 1991).

AS CONSEQÜÊNCIAS DA INEFICIÊNCIADO ORDENAMENTO, DO JUDICIÁRIO E DESEU CONGESTIONAMENTO

Esse quadro, além de provocar uma crescente demorano julgamento dos processos, pois é enorme o descom-passo entre a oferta e a procura de tais serviços, causaeloqüente impacto negativo na economia do país.

Como observa o prof. José Eduardo Faria, em artigopublicado na Revista Justiça e Democracia, da Associa-ção Juízes para a Democracia, o Poder Judiciário estáchegando ao limite ou esgotamento de seu processo, pro-duzindo gradativo esvaziamento dos padrões oficiais dalegalidade (Faria, 1996).

Um crescente número de pessoas passa a duvidar queo comportamento alheio se pautará pelas regras conheci-das. Os laços de solidariedade diluem-se. As pessoas vol-tam-se para si próprias, recusando-se ao convívio. O pri-vado passa a sobrepor-se ao público.

O Judiciário então tem utilidade como reserva de mer-cado para os que nele atuam, ganhando a vida, como ad-vogados, promotores de justiça, juízes e funcionários. Sãocrescentes, por evidente, os interesses corporativos des-sas categorias profissionais.

Serve, ainda, para rolar a dívida, adiando pagamentose o cumprimento de obrigações, permitindo também ocrescente endividamento da administração pública que nãoestá, pelo ordenamento, obrigada a depositar monetaria-mente o valor dos precatórios, dos débitos judiciais, tor-nando assim interminável a execução para descrédito doJudiciário (CF, art. 100, § 1o). A atualização do valor re-quisitado faz-se até julho de cada ano, quando é consig-nado em orçamento, sobrevindo o depósito singelo, noexercício seguinte, mais de um ano depois, quando cor-roído pela inflação, restando o saldo a ser apurado, paradepósito no ano subseqüente e assim sucessivamente.

O juiz deveria assumir outros papéis, como o de me-diador político, porque a ação, processualmente conside-rada, passa a ser encarada como instrumento de partici-pação, de atuação política, até porque os cidadãospercebem que agindo individualmente são fracos mas,aglutinados e organizados, conseguem espaços na mídiade modo a, pelo menos, chamar a atenção para os gritan-tes problemas que enfrentam no dia-a-dia, sem que pos-sam ser acudidos.

A política, na verdade, migra dos foros até então co-nhecidos, dos partidos e do Parlamento, para os movimen-tos organizados (sem teto, sem terra, comunidade de base,mutuários do SFH, de mensalidades escolares, de defesado consumidor, etc.). É crescente, portanto, a politizaçãodos conflitos, mesmo porque deixam de ser intersubjeti-vos, individuais, para assumirem feição coletiva.

SUGESTÕES EQUIVOCADASPARA A REFORMA

Além dessas mazelas, outros fatores conclamam a quese façam sugestões para a reforma do Poder Judiciário.Quando, no exercício da jurisdição, juízes tomam esta ouaquela posição, como ocorreu, por exemplo, nos casos

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Collor e Lucena e nos julgamentos sobre o Finsocial e oIPMF, causam grande reação.

Por outro lado, é sabido que juízes das instâncias infe-riores têm adotado entendimentos que, de certa forma,buscam a oxigenação da jurisprudência. Com isso, houveevolução em decisões sobre o concubinato, bloqueio depoupança, depósitos prévios em desapropriações, limina-res para continuidade do tratamento de aidéticos por em-presas de convênios médicos.

Nessas ocasiões, há manifestações de políticos, jorna-listas, advogados, sindicalistas, etc. inconformados, sejacom decisões jurisprudenciais equivocadas ou injustas –ou tidas como tal por determinados seguimentos –, sejacom a disparidade de decisões sobre uma mesma ques-tão.

Como conseqüência, surgem as sugestões – muitasdelas de pessoas que nem sequer estão ligadas à Justiça –preconizando o saneamento dos problemas. E dentre assugestões são citados o controle externo da magistratura(do Poder Judiciário) e as súmulas vinculantes.

Todavia, é errôneo o argumento de que é imperiosa acriação de um controle externo para combater as decisõesjurisdicionais equivocadas ou injustas, assim como emequívoco incorrem aqueles que defendem a proposta doefeito vinculante das súmulas, buscando uniformizaçãode decisões sobre a mesma questão.

No tocante ao primeiro caso – controle externo –jamais poderá ser ele de cunho jurisdicional. Tem de serde cunho administrativo, como se verá adiante.

Na verdade, naqueles casos – decisões injustas ou equi-vocadas – “o ataque ao problema tem a ver com a refor-ma da própria legislação, sobretudo a processual tão bu-rocratizada, ou com a formação de cultura jurídica do juizmoderno. Não se fala de cultura jurídica em termos deconhecimento das instituições jurídicas, mas, sim, de apli-cação do saber jurídico de uma forma interdisciplinar demaneira a corresponder ao que a sociedade contemporâ-nea quer do Judiciário. As Escolas de Magistratura deve-riam se preocupar menos com a formação técnica, parareparar as falhas deixadas pelo lamentável ensino jurídi-co que temos no país, que em dar ao juiz uma formaçãointerdisciplinar que os faça entender o novo perfil dosconflitos contemporâneos, muito diferentes daqueles idea-lizados nos instrumentos legislativos dos quais dispomosno dia-a-dia da prestação jurisdicional. Mas moldar essenovo juiz é um trabalho que demanda tempo, pois não sevá imaginar que se formem juízes novos da noite para odia. E a questão nada tem a ver com o tema central de quese trata” (Cintra Júnior, 1995a).

E referentemente ao segundo – disparidade de enten-dimentos – preferível seria a adoção de sistemas mais ade-quados de uniformização de jurisprudência, preservando-

se a liberdade de decidir de cada juiz, garantia básica doexercício da jurisdição (item Alternativas Sugeridas).

DO EFEITO VINCULANTE DAS SÚMULAS

Muitos têm defendido a proposta do efeito vinculantedas súmulas, como forma de minorar o problema do Po-der Judiciário.

Os argumentos são variados e alguns ministros do Su-premo Tribunal Federal (STF) têm insistido que, para tor-nar a Justiça mais ágil e rápida, dentre outras inovações,será preciso que se simplifiquem os procedimentos, en-cerrando-se as demoras e infindáveis discussões confli-tantes entre juízes e tribunais, pelo que a decisão entãoproferida no STF, naquele incidente, teria eficácia contratodos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Judi-ciário e em relação ao Poder Executivo. Também se pre-tende convalidar efeitos de atos ou leis inconstitucionais,até o momento em que foi declarada a inconstitucionali-dade, de modo a respeitar situações anteriores, já conso-lidadas.

A idéia, como se vê, é simpática e atrativa a todos quan-tos efetivamente querem um Judiciário rápido, ágil e efi-ciente, cumprindo sua função de resolver os conflitos,produzindo a certeza jurídica.

A desejável estabilidade da Constituição não pode con-fundir-se com imutabilidade, porquanto a realidade polí-tico-social está em constante evolução e a pressão dasforças sociais deve determinar as bases da ordem estatal.Não se desconhece, entretanto, que a reforma propostafoi inspirada nas idéias que informam a globalização daeconomia.

Assim, o ministro Jobim, coordenador da reforma, empalestra aos juízes de São Paulo, enfatizou que tinha porobjetivo três pontos: garantir o acesso de todos ao Judiciá-rio, previsibilidade das decisões e tempo socialmente to-lerável para essas decisões. Justificou acrescentando que,dentro do projeto neoliberal de globalização da econo-mia, o Judiciário deveria tornar-se apto a acompanhar odesenvolvimento do Brasil, pois ninguém fará investimen-tos de longo prazo se não tiver segurança nas relaçõesjurídicas.

Essa inovação (das súmulas vinculantes), contudo,inclui o risco de prestigiar o autoritarismo do Judiciário,vulnerando a competência do Legislativo, agredindo a li-berdade e a independência do juiz de primeiro grau, alémde suprimir, em verdade, um grau de jurisdição. O juiz,nos casos sumulados, não mais terá a obrigação de deci-dir. As Cortes Superiores farão isso por ele.

Também faz parte do pacote da reforma a criação deum Conselho Nacional de Justiça, composto majoritaria-mente por juízes integrantes daquelas Cortes Superiores,

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editoras das súmulas com efeito vinculante, o que signi-fica que se estará criando, em verdade, um controle inter-no, suprimindo a independência dos juízes, em prejuízoda democracia, da defesa dos direitos de cada um, direi-tos que passam a ser avaliados segundo os critérios queorientarão a edição das súmulas, ou seja, os da globaliza-ção da economia.

Mas, como já observado, foi das discussões iniciadaspelos juízes singulares que nasceram o reconhecimentodos efeitos do concubinato, a exigência de prévia indeni-zação nas desapropriações, a liberação dos valores blo-queados no Plano Collor, a exigência de atendimentomédico-hospitalar pelos convênios médicos de conveniadocom doenças excluídas dos contratos.

Como enfatizou o prof. Fábio Konder Comparato, nojornal de nossa associação de número 7, de março/96, opretendido efeito vinculante dos precedentes judiciaisafrontaria duas garantias constitucionais: a da separaçãodos Poderes, inscrita no artigo 2o da Constituição e a daindependência de cada juiz ou da magistratura. Comoexplicou, a independência recíproca dos Poderes pressu-põe, como é óbvio, que cada um deles exerça uma funçãoexclusiva. Caso contrário, haveria superposição funcio-nal. A função precípua e exclusiva do Poder Legislativo,como estabelecido desde os primórdios do regime demo-crático moderno, é a de ditar as leis, entendidas comoexpressão da vontade do povo. Ora, a súmula com efeitovinculante absoluto para os juízes de primeira instânciasignifica a introdução de um sucedâneo da lei em nossosistema jurídico, produzindo a superposição ou conflitode atribuições entre os Poderes Legislativo e Judiciário.No nosso sistema, a fonte primária do direito é sempre alei (art. 5o, II da CF), norma geral e abstrata que a todossubmete, emanada da vontade popular, através de seusrepresentantes, sem que o juiz tenha poderes para criarpreceitos com a mesma força.

Não há democracia sem liberdade no ato de julgar.O artigo 10 da Declaração Universal dos Direitos Huma-nos da ONU exige, primeiro, que o juiz seja independen-te do Poder (ou dos Poderes do Estado, inclusive o Judi-ciário, em sua estrutura e hierarquia).

ALTERNATIVAS SUGERIDAS

Quanto às Súmulas

Não se pode, ainda, pensar na edição das súmulas paracontornar problemas que poderiam ser resolvidos commais facilidade de outra forma.

É sabido, por exemplo, que fazendo o controle difusoou incidental o Supremo Tribunal Federal tem julgadoinconstitucionais leis, solicitando depois ao Senado que

lhe suspenda a execução ( artigo 52, X, da CF). O Senadose omite ou decide não suspender a vigência daquela nor-ma ou lei, persistindo o problema, com repetição de dis-cussões absolutamente idênticas em outros processos.Bastaria, entretanto, nesse caso, revogar-se aquela nor-ma do artigo 52, X, atribuindo-se, por conseqüência, efeitoerga omnes à decisão definitiva do Supremo.

Não se desconhece que a efetiva estabilização da ju-risprudência e do próprio Judiciário apenas ocorrerá coma da economia, quando resolvidas as questões decorren-tes dos sucessivos planos econômicos, deixando o Judi-ciário de ser utilizado como instrumento de rolagem dadívida, de modo a se adiar o pagamento para aqueles queganham com aplicações financeiras.

Demonstrando o inconveniente das súmulas, há de seoferecer sugestões efetivas para o descongestionamentodo Judiciário, para a eficiência dos serviços que deveriaprestar.

Assim, seria conveniente, em primeiro lugar, utilizarcom mais seriedade a uniformização de jurisprudênciacomo mecanismo de produção da certeza jurídica. Namedida em que fossem eliminadas as dissidências entreas Câmaras dos Tribunais, os julgamentos fluiriam commais rapidez.

É necessário prestigiar as ações civis públicas para asolução de conflitos coletivos, dentre os quais se incluemos difusos e os individuais homogêneos. Numa só ação,por exemplo, com economia de gastos e de tempo, pode-riam ser resolvidas as questões atinentes aos aumentosabusivos das mensalidades escolares, dos planos de saú-de, dos mutuários do BNH, dos depositantes em poupan-ça, RDBs e CDBs. Para tanto, seria preciso que se defi-nisse com clareza a legitimidade ativa para essas ações eque, sem corporativismo, os operadores do direito pen-sassem na democratização do Judiciário.

Seria de muita utilidade, ainda, a estadualização dasleis processuais. Se essas leis fossem estadualizadas, osrecursos não chegariam às Cortes Federais, terminandonos Tribunais Estaduais, com ganho de tempo e de di-nheiro. É preciso prestigiar-se o regime federativo, a in-dependência de cada unidade federada.

Pretendendo agilizar ainda mais as decisões e diminuirgastos supérfluos, propomos ainda a extinção da Procu-radoria de Justiça, com a incorporação dos promotoresde segundo grau à Magistratura que, assim, deixariam deoferecer pareceres repetitivos, com ganho de tempo noandamento dos recursos.

Buscando a moralização, é necessária a extinção dosTribunais de Contas que, embora não pertençam ao Judi-ciário, têm esse nome, induzindo a equívocos. Haveriaeconomia de gastos e os estados poderiam fazer o efetivocontrole de suas despesas, de seus desembolsos, anteci-

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padamente, por meio de auditorias independentes, commaior utilidade, pois hoje o controle é sempre posterior,depois de ocorrida a despesa, sem possibilidade, na maio-ria das vezes, de se recuperar os prejuízos causados. Comisso, eliminar-se-ia esse grande cabide de empregos eações judiciais discutindo questões que deveriam ter sidoresolvidas administrativamente.

Não é possível, nessa linha, raciocinar como o deputa-do Roberto Campos, em matéria publicada na Folha deS.Paulo de 26/05/96, entendendo que os juízes, quandose insurgem contra as súmulas vinculantes, apenas atuamcorporativamente.

Na verdade, a reforma pretendida, naquele ponto, éinconstitucional e há outros mecanismos que, com maioragilidade e presteza, podem descongestionar o Judiciá-rio, restaurando-lhe a credibilidade, transformando-o numautêntico serviço público.

Quanto ao Controle Externo

A Associação Juízes para a Democracia, porque hádivergência de seus membros, ficou impossibilitada detomar uma posição a respeito do assunto. Todavia, háposições pessoais de membros da Associação, defenden-do o controle e, dentre eles, do Ilustre Juiz Dyrceu AguiarDias Cintra Junior, que já expôs seu ponto de vista eminúmeras oportunidades e sobretudo no artigo acima re-ferido, do qual extraímos alguns pontos (Cintra Júnior,1995b):

Controle administrativo – O único controle externo pos-sível é o administrativo das cúpulas, jamais tendo poderdireto sobre juízes, para não influir, ainda que indireta-mente, na jurisdição. Este preconizado controle não cons-titui posição exclusiva de um dos poderes do Estado, nemofende o princípio da separação dos Poderes. Esses de-vem ser independentes mas harmônicos e a harmonia sedá exatamente pela influência mútua entre eles como pre-visto nas diversas instituições.

O que não pode haver, porque aí sim estaria violado oprincípio da separação, é a possibilidade de um Poder sesobrepor ao outro, anulando-o completamente enquantomanifestação do Estado.

Aliás, a este propósito, Eugênio Raúl Zaffaroni notaque há no O Espírito das Leis, de Montesquieu “qualquerexpressão que exclua a possibilidade dos controles recí-procos, nem que afirme uma absurda compartimentaliza-ção que acabe em algo parecido com ‘três governos’ e,menos ainda, que não reconheça que no exercício de suasfunções próprias esses órgãos não devam assumir funçõesde outra natureza (...). As deformações compartimentali-zadas não são da pena de Montesquieu, o qual nem se-

quer parece haver falado de ‘divisão’ dos Poderes, masde simples ‘separação’”. E concluiu que “a independên-cia judicial não decorre da separação dos poderes, massurge como exigência mesma da essência da jurisdição”(Zaffaroni, 1995).

Assim é que, nada obstante legitimados pelas urnas,os outros dois Poderes do Estado têm a legalidade de seusatos conferida pelo Judiciário. Ademais, um controla ooutro, reciprocamente por vários meios. Como exemplo,temos que um presidente da República, acusado de crimede responsabilidade e crimes comuns, foi provisoriamenteafastado em processo de impeachment em que atuaramtanto o Legislativo, que votou o afastamento, quanto oJudiciário, que se pronunciou sobre a legalidade de atosno processo. Sem contar que foi a sociedade civil que,indignada, exigiu nas ruas providências, desencadeandoo processo.

Outro exemplo: o processo de elaboração da lei peloPoder Legislativo culmina com a aprovação do texto; maseste pode ser vetado, parcial ou totalmente pelo Executi-vo; e retornando ao Legislativo, o veto pode ser rejeitadopor maioria absoluta dos deputados e senadores.

Tudo isto está na Constituição da República (artigo 59e seguintes) e significa nada mais que influência do Exe-cutivo sobre a atividade do Legislativo e, inversa e su-cessivamente, do Legislativo sobre o Executivo, sem quese fale em ofensa ao livre exercício de quaisquer dos Po-deres.

É o sistema de freios e contrapesos.Para o Judiciário, o que sugerem os que seriamente

examinam a questão é uma fiscalização administrativa dostribunais para moldar adequadamente a presença políti-co-institucional daquele no Estado.

Objetivos e extensão – Não se poderia cogitar da cria-ção de um organismo de controle externo sobre atos dosjuízes, como já foi dito, principalmente de primeiro grau,para aplicação de penas disciplinares. Muito menos po-deria haver qualquer fiscalização da atividade jurisdicio-nal, sob pena de estar solapando os princípios nos quaisas decisões judiciais estão baseadas, de acordo com a fun-damentada convicção do juiz.

A fiscalização que se quer é justamente sobre os ór-gãos internos de governo da magistratura – para provo-car inclusive sua eficaz fiscalização da atividade funcio-nal dos juízes, denunciando casos de irregularidade peranteeles, clara e transparentemente, de maneira a evitar pro-tecionismo corporativista – e sobre os órgãos superioresque ditam a política orientadora das atividades do PoderJudiciário, quer quanto à legalidade de seus atos, querquanto à conveniência e oportunidade deles em termosde aprimoramento da distribuição de justiça.

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Em seu âmbito de atuação estaria a fiscalização sobre:as prioridades com que se gastam verbas; implantação desistemas de modernização da estrutura funcional; nomea-ção de funcionários, quanto à legalidade e necessidadenesta ou naquela área; distribuição de processos aos juí-zes; a transparência com que são promovidos e removi-dos juízes; a observância estrita à alternância de critériosnos concursos de acesso (antigüidade/merecimento).

Para sua atuação, tal órgão – ou órgãos se criados umpara cada unidade federativa – poderá contar com o apoiotécnico adequado.

Enfim, tudo que não se refira à função jurisdicionalpropriamente, mas com a democracia com que é gerido opoder – e quem foi na qualidade e eficiência da jurisdi-ção – poderia estar sujeito à atividade fiscalizadora de umconselho externo.

Formas de atuação – Seria desejável que um conselhode fiscalização tivesse dois sentidos de atuação: em al-guns casos poderia exercer função decisória, vinculativade administração da estrutura do Judiciário pelas cúpulasdos tribunais; em outros teria mera função opinativa, pelainfluência indireta na jurisdição que poderia resultar depoderes mais amplos em certos casos.

Assim:- no referente a faltas funcionais, vitaliciamento, promo-ções e remoções de juízes, poderia ter o conselho fun-ções investigativas (como um ombudsman, sem atribui-ções decisórias) e propositivas (requerendo providênciasaos órgãos internos de verificação do desempenho fun-cional, acompanhando e divulgando todo o procedimen-to interno, que deve ter sempre total publicidade) para,tornando os procedimentos administrativos internos tam-bém transparentes, evitar a proteção corporativista ou odesvirtuamento do interesse público;

- na administração do acesso à justiça – acesso à ordemjurídica justa – funcionaria como instância decisória ten-dente a planejar a modernização da estrutura, implemen-tar políticas judiciárias (gasto de verbas nas prioridades,legalidade e necessidade de nomeação de funcionários,etc.), fiscalizar a distribuição de processos aos juízes ecobrar respeito ao princípio do juiz natural.

No primeiro caso, os tribunais não se vinculariam aoparecer do conselho externo. Teriam apenas de ouvi-lo –obrigatoriamente em todos os casos ou apenas quandopresente algum pressuposto legal como por exemplo aimpugnação de vitaliciedade ou de promoção por anti-güidade – e tomar as providências de processamento quan-to às irregularidades denunciadas.

No último caso, seria de se pensar numa atuação a partirdo estabelecimento de plano a ser cumprido pelo Poder

Judiciário, no âmbito de cada tribunal do país, ou daaprovação de diretrizes traçadas pelos próprios tribunaispara administrar a estrutura de acordo com suas atribui-ções constitucionais.

Assim colocada a questão, é evidente que o órgão ex-terno em nada alteraria o quadro atual de independênciae harmonia entre os poderes, nem interferiria na indepen-dência de cada juiz. Conferiria, ao contrário, transparên-cia e maior credibilidade ao Judiciário, tornando inteligí-veis seus objetivos e planejamento administrativo.

Composição do conselho – Questão de extrema impor-tância é a composição do órgão externo de controle.É necessário que se dê espaço a representantes dos TrêsPoderes, mas, também a instituições importantes, que re-flitam a sociedade civil em sua diversidade, tendo todo ointeresse numa justiça independente e eficiente.

Não se pode excluir a representação de instituiçõescorporativas ligadas tradicionalmente à justiça (OAB eMP), mas, igualmente, é de se cogitar da participação defuncionários do Poder Judiciário, das universidades, deprofessores de direito, de sindicalistas, da imprensa (ABI).Um perfil diversificado do órgão, renovável temporaria-mente, evitaria a sua dominação por grupos com interes-ses cristalizados ou profissionalmente dependentes daprestação jurisdicional.

É preciso evitar a criação de um órgão marcado pelaelitização, sem efeito de resgatar a transparência e a no-ção de serviço público que devem orientar a atividadeglobal do Judiciário.

SUGESTÕES PARA A REFORMA FEITAS PELAASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA1

1. Posiciona-se firmemente contra a adoção de súmu-las com efeitos vinculantes, que não reduziriam a moro-sidade do Judiciário, manietariam as decisões dos juízesaos entendimentos das cúpulas, reduzindo o trabalho e comele a oxigenação da jurisprudência de modo a dificultarou impedir evoluções como as que ocorreram nas deci-sões sobre concubinato, bloqueio de poupança, depósitosprévios em desapropriações e tratamento de aidéticos porempresas de convênios médicos, desvinculando o juiz darealidade social, da qual são naturalmente mais distantesaos tribunais.

2. Defende a extinção da representação classista naJustiça do Trabalho, fonte de tráfego de influências, tro-ca de favores, de “cabides” de emprego e aposentadoriasprecoces, com grandes despesas para os cofres públicos enenhum benefício para a prestação do serviço judiciário.

3. Defende a extinção da Justiça Militar Estadual, cor-porativa por definição, sobrecarregada e incapaz de aten-

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der aos princípios democráticos de distribuição da justi-ça, constituindo-se em mais uma forma de afastar milita-res de suas funções institucionais para um trabalho que aJustiça Comum realiza com maior eficiência.

4. Defende a fusão de carreiras do Poder Judiciário edo Ministério Público na segunda instância, com trans-formação dos cargos destes em cargos de juízes, de modoa aumentar o número de juízes e reduzir as despesas pelaracionalização do serviço de apoio administrativo, ex-tinguindo-se os cargos de procuradores de justiça, exis-tentes para funções de pareceristas dispensáveis e lu-xuosos.

5. Propõe a extinção dos cartórios de protestos de títu-los porque sabidamente desnecessários e a municipaliza-ção dos serviços e cartórios de registro civil e imóveis,aumentando as receitas municipais sem prejuízo para aprestação do serviço e acabando com o monopólio exis-tente, fonte de fortunas à custa de clientela compulsória eem benefício de pequeno grupo privilegiado.

6. Defende a extinção dos Tribunais de Contas, servi-ços formalmente de apoio ao Poder Legislativo, mas naprática historicamente destinados a legitimar atos do chefedo Executivo responsável pelo preenchimento dos cargosdos conselheiros, de alto custo para o erário público.A atividade poderia ser desempenhada por empresas deauditoria selecionadas com idoneidade, sob fiscalizaçãodo Ministério Público, reduzindo-se as despesas.

7. Defende a retificação de regra constitucional demodo a garantir a posição da jurisprudência quanto à in-denização prévia e justa nas desapropriações, para que aimissão de posse não se faça sem depósito de valor pró-ximo do real de mercado do bem.

8. Propõe regra que possibilite aos Estados legislarsobre matéria processual para atendimento das realida-des regionais.

9. Defende nova redação para os dispositivos relati-vos à correção monetária e pagamento de precatórios ju-diciais, para que o Estado cumpra efetivamente o princí-pio da legalidade e da moralidade administrativa, deixandode lesar os cidadãos com a protelação dos pagamentosdeterminados pela Justiça.

10. Defende regra de efetiva e substancial democrati-zação interna do Poder Judiciário, com relação à compe-tência do órgão especial, à eleição das cúpulas pelos de-mais juízes e a julgamentos públicos pelos órgãosespeciais.

11. Em sendo mantida a Justiça Agrária, defende orespeito ao princípio do juiz natural com a criação de car-gos e não a designação de juízes para tais funções.

12. Propõe adoção de regra que impeça limitações ouproibições de concessões de medidas liminares por legis-lação ordinária.

13. Cobra transparência do Judiciário, propondo quetodas suas decisões, inclusive as de caráter administrati-vo e referentes a processos de promoção, remoção e pu-nição de juízes, sejam públicas, só podendo haver exce-ção a esta regra quando o direito à intimidade dointeressado no sigilo não prejudique o interesse público àinformação. Vale dizer em casos que tratam de assuntosmarcados e exclusivamente particulares (ações de famí-lia e outras a respeito de condutas sociais íntimas), emque a res publica não está em jogo.

14. Propõe a inclusão, no ordenamento constitucional,de regra clara impedindo práticas de nepotismo em todosos Poderes Públicos.

15. Propõe uma nova visão do poder normativo dosTribunais do Trabalho, ensejando que possam atuar nosconflitos como árbitros eleitos pelas partes, casos em quesuas decisões teriam força de irrecorribilidade.

Por fim, coerentes com a posição de nossa Associa-ção, que preconiza a necessidade de fazer do Judiciárioum autêntico serviço público, propomos a adoção da cha-mada “carreira plana” no Brasil.

Em diversos países, a estruturação do Judiciário é fei-ta de forma diversa. Adota-se a “carreira plana” – contra-posta à “carreira verticalizada” – que tem a virtude dedesconcentrar poder e não perpetuar na jurisdição dos tri-bunais nenhum magistrado.

Onde adotada tal sistemática, há uma rotatividade dosjuízes, permitindo constante reciclagem. Os juízes oraestão em segundo grau, revendo decisões de seus cole-gas, ora retornam ao primeiro grau, retomando contatomais direto com as partes, os cartórios, a colheita dasprovas.

Não há acomodação de ninguém em atividades repeti-tivas e desestimulantes. Os salários variam apenas emfunção da antigüidade e os mais velhos na carreira emnada submetem os mais novos. A jurisprudência valemuito mais pela autoridade moral de seu enunciado. Nãose instala estado de tensão algum. As vocações autoritá-rias ficam desestimuladas (Ruiz, 1996).

ASPECTOS POSITIVOS DO PROJETODO DEPUTADO JAIRO CARNEIRO

Em discussão no Congresso Nacional, o projeto dodeputado Jairo Carneiro e, tal como formulado, tem al-guns pontos altamente positivos.

Tal ocorre por exemplo:- quando proíbe o nepotismo no Poder Judiciário (art. 93,XVII);

- quando eleva à categoria de crime de responsabilidadeà retenção, pelo Executivo, dos recursos que deveriam serliberados, por duodécimos, ao Judiciário (art. 102);

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REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO

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- no ponto em que disciplina com clareza a execução contraa Fazenda Pública, exigindo que os precatórios sejampagos atualizadamente no exercício seguinte e os crédi-tos de natureza alimentar trinta dias depois da intimação(art. 103 e § 1o);

- quando propõe salutarmente a extinção dos juízes clas-sistas;

- quando possibilita o julgamento pela Justiça Federal dascausas cíveis e criminais contra os direitos humanos, in-clusive aqueles definidos em cláusulas de tratados quevinculem o Brasil (art. 114, XII e XIII);

- quando proíbe, de forma clara, o repasse de verbas pú-blicas, oriundas das custas e emolumentos, às entidadesde classe, como ocorre em São Paulo com a Apamagis(art. 96, § 2o);

- quando exige o tempo mínimo de 15 anos para a apo-sentadoria na magistratura (art. 93, VI, b);

- quando impõe a eleição de metade dos componentes dosórgãos especiais nos tribunais (art. 93, XIV);

- quando faculta aos tribunais a iniciativa de leis em ma-téria processual, impedindo, assim, que se atribua ao le-gislador a responsabilidade por decisões iníquas ou pelaineficiência do próprio Judiciário (art. 96, § 1o).

Obs.: A remissão foi feita tendo em vista a alteraçãodo substitutivo do Relator de 29.5.96.

CONCLUSÃO

Postas essas questões, feito o diagnóstico da crise queassola o Judiciário e das respostas que são dadas paraminorá-la, fácil se torna, por fim, definir sua função so-cial, bem como a dos juízes.

A primeira preocupação, por evidente, é com a defesada independência do próprio Judiciário, não só peranteos demais Poderes, como também perante grupos de pres-são de qualquer natureza, internos ou externos à magis-tratura.

O Judiciário tem apenas se mostrado independente dopovo, da sociedade, que não o conhece e costuma vê-locomo instrumento de opressão, ao passo que é bem co-nhecido do Executivo, a cujo serviço se coloca, em detri-mento dos jurisdicionados.

É necessário que se lute pela democratização do Judi-ciário. Não se concebe mais a manutenção de privilégioscomo aqueles instituídos pela Constituição Federal noCapítulo que trata do Poder Judiciário, que traz exceçãoao princípio “todos são iguais perante a lei”, ao criar fo-ros privilegiados a alguns brasileiros.

Assim, se o réu é militar, tem assegurado foro pró-prio, sendo julgado pela própria corporação, com evi-

dente estimulo à impunidade, à violência e à crimina-lidade; se é político, Governador de Estado ou mesmoDesembargador, será julgado perante as Cortes Supe-riores; se Prefeito, será julgado na Capital e pelo Tri-bunal de Justiça.

Isso representa, em resumo, a impossibilidade de sub-meter essas pessoas a julgamento perante os juízes co-muns, togados, e depois pelos tribunais, sem a supressãodo duplo grau de jurisdição.

Seria preciso, pois, que o nosso ordenamento permi-tisse, como na Europa Ocidental, episódio como o “dasmãos limpas”, o que aqui não ocorre, porque a elite diri-gente sempre é julgada pelos tribunais, sem nunca sub-meter-se ao juiz togado como qualquer cidadão comum.É por isso que as prisões estão cheias de cidadãos comunse nunca de dirigentes políticos.

É fundamental, portanto, que no combate à corrupçãose busque com urgência a eliminação de privilégios, deforos especiais, de justiças corporativas.

É preciso, em segundo lugar, que o juiz se conscienti-ze de que a função judicante deve ser utilizada comomecanismo de proteção efetiva dos direitos do homem,individual e coletivamente considerado, buscando a rea-lização substancial e não apenas formal dos valores, di-reitos e liberdades do estado democrático de direito.

O juiz deve ser considerado guardião dos direitos fun-damentais, na busca da preservação do estado democráti-co, de modo a evitar retrocessos, deixando de revelar cum-plicidade com atos ilegais e inconstitucionais, bem comoalheiamento dos problemas sociais.

Deve lutar pela democratização da magistratura, tantono plano de ingresso como no das condições do exercícioprofissional, com o fortalecimento do direito dos juízes àliberdade de expressão, reunião e associação.

É imperioso fortalecer e difundir a recente lei paulistaque introduziu no exame de ingresso à magistratura esta-dual questões sobre literatura, história, psicologia, lógicae filosofia, porquanto, para que se possa exercer a funçãojudicante, não basta apenas conhecer o ordenamento ju-rídico e as técnicas para sua aplicação. Se o juiz assumecrescentes funções que vão além do conhecimento dasciências jurídicas, tem de se preparar para as de media-dor, de agente político.

Não se pode mais sustentar que o juiz seja neutro, des-politizado, proibido de envolver-se em discussões que nãoas técnicas, porque é cidadão como outro qualquer e temdireito a opiniões. Não há juiz neutro porque não podehaver nenhum homem neutro.

A Constituição Federal consagra o princípio da isono-mia e garante a todos a liberdade de expressão, sem ex-cluir os juízes que, quando e porque falam, não podemser alvo das Corregedorias do Judiciário, até porque fora

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NOTAS

Há mais de cinco anos alguns juízes de São Paulo se reuniam com freqüênciapara discutir assuntos “políticos”, no sentido mais amplo que se possa dar à pa-lavra. Era um grupo muito preocupado com a questão do resgate da cidadania dojuiz, cujo mais evidente atributo é a participação transformadora da sociedade,num sentido promocional dos direitos declarados na Constituição da República.O ideal de reunir institucionalmente magistrados comprometidos com a luta paramudar tal realidade se concretizou em 13/05/91, com a fundação, na Faculdadede Direito da USP, da Associação Juízes para a Democracia, entidade civil semfins lucrativos ou interesses corporativistas, cujos objetivos estatutários são, emsuma: defesa abrangente da dignidade da pessoa humana; democratização inter-na do Judiciário (na organização e na atuação jurisdicional); resgate do serviçopúblico (serviço ao público) inerente do poder, que deve se pautar pela total trans-parência, permitindo o controle do cidadão. A entidade se expandiu e, de âmbitonacional, encontrou companheiros em todos os quadrantes do país. Vem estabe-lecendo contatos até mesmo antes da sua fundação com a associação espanhola“Juices para la Democracia” e, por meio dela, com outras entidades européiascom os mesmos objetivos; organiza e promove cursos e seminários, dentre eleso mais recente, com intensa repercussão na mídia e no mundo jurídico, o semi-nário internacional sobre a Independência Judicial na América Latina, que reu-niu magistrados de todos os países latino-americanos, da Espanha e Portugal;edita há dois anos o jornal Juízes para a Democracia, cuja tiragem atual é de6.000 exemplares distribuídos em todos os cantos do país; publica semestral-mente em conjunto com a Revista dos Tribunais a revista Justiça e Democracia,lançada no 2o semestre de 1995, com tiragem de 2.000 exemplares, abrindo uminédito canal de comunicação entre os juízes e a sociedade e procurando contri-buir, com o debate democrático, para o aperfeiçoamento das instituições. Seusmembros se manifestam sobre questões políticas palpitantes, opinam sobre tudo oque diga respeito à organização e distribuição da justiça, participam de debates,identificando-se como juízes democráticos. O reconhecimento da sociedade civilorganizada, das ONGs nacionais e estrangeiras é evidente. Obteve a Medalha ChicoMendes de Resistência conferida pelo Grupo Tortura Nunca Mais. Seu entendi-mento é o de que não basta que o juiz bem conheça a lei. Tem de dar ao Direito osentido de uma prática social rumo à utopia de uma sociedade justa que, comoadvertiu Cornelius Castoriadis, não é aquela que adotou leis justas para sempre esim aquela em que a questão da justiça permaneça constantemente aberta.

1. Publicadas no no 0 da revista Justiça e Democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CINTRA JUNIOR, D.A. “A fiscalização do Poder Judiciário por órgão exter-no”. Revista dos Tribunais. São Paulo, n.719, set. 1995, p.329-342.

FARIA, J.E. Justiça e Conflito. São Paulo, RT, 1991.

__________ . “A crise no Poder Judiciário do Brasil”. Revista Justiça e Demo-cracia, n.1, 1o semestre 1996, p.18-64.

FERREIRA FILHO, M.G. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Saraiva, 1990.

RUIZ, U. “A Magistratura na Reforma do Judiciário”. Jornal O Estado de S.Paulo.25/10/96. Seção Espaço Aberto.

VILLEN, A.C. “O juiz e a sociedade no Brasil”. Seminário Internacional sobre laIndependência Judicial em Latinoamérica. Anais... Buenos Aires, 1991.

ZAFFARONI, E.R. Poder Judiciário – crises, acertos e desacertos. Traduçãode Juarez Tavares. São Paulo, RT, 1995.

de suas atividades atinentes ao exercício funcional (masno desempenho da cidadania).

É necessário insistir que a justiça deve ser considera-da como autêntico serviço público, que ajude na constru-ção de uma sociedade mais justa, solidária, diminuindoas desigualdades regionais, miséria, pobreza, como pre-tendido pelo art. 3o da nossa Constituição Federal.

Na atuação jurisdicional, deve o juiz colocar-se nadefesa dos direitos dos menores, dos pobres e das mino-rias, na perspectiva de emancipação social dos desfavo-recidos, entendendo que o Direito deve ser encarado comomeio de transformação, buscando a realização daquelesprincípios enunciados pelo art. 3o da Lei Maior.

Mas, para atuar, depende o juiz de provocação, o queocorre por meio dos advogados e dos promotores de jus-tiça, os operadores do direito.

Se tiverem idêntica perspectiva na defesa desses mes-mos valores, utilizarão, por certo, as ações adequadas àdefesa dos direitos coletivos, dentre os quais se incluemos difusos e os individuais homogêneos, tendentes a re-solver num só processo, com economia de tempo e dedinheiro, questões de relevante interesse público.

Por fim, devem os operadores do direito, dentre elesos juízes, promover a defesa dos princípios da democra-cia pluralista, bem como difundir a cultura jurídica de-mocrática, sem cerceamentos, pois apenas por meio dodebate livre e sem censura é que se começará a pensar asolução para os graves conflitos sociais que assolam o país,que não pode mais continuar alheio ao seu destino.

Com essas ponderações, esperamos ter trazido algumacolaboração aos debates que precedem as discussões noCongresso a respeito da propalada reforma do Poder Ju-diciário.

Por fim, é importante salientar que todas as sugestõesfeitas anteriormente devem ser analisadas e criticadas portoda a sociedade civil, a cujos interesses estão vincula-dos os legisladores.

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REFORMANDO A REFORMA: INTERESSES, ATORES E INSTITUIÇÕES DA ...

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REFORMANDO A REFORMAinteresses, atores e instituições da Seguridade

Social no Brasil

reforma constitucional em curso representa adesconstrução da agenda formada em torno daquestão na década de 80, e que adquiriu um for-

mato institucional acabado com a Constituição de 1988 eas leis orgânicas da seguridade social e da saúde. Este tra-balho reconstitui a genealogia da formação da nova agendapara o setor, e explora a especificidade da seguridadesocial enquanto issue político. Inicialmente, apresenta-seesquematicamente o projeto de corte compreensivo e uni-versalista que informou o processo constituinte de 1988nessa área. Em seguida, discute-se o processo de trans-formação da agenda pública em torno da seguridade so-cial no período pós-Constituinte, mais especificamentedurante a primeira metade dos anos 90. A seção final ex-plora analiticamente a especificidade da seguridade so-cial como arena política, e mapeia a geometria dos inte-resses em jogo. Ressalta-se a centralidade do papel dasidéias e construções intelectuais na formação da agendanessa área, e discute-se o padrão de interação estratégicaentre atores.

A GENEALOGIA DA AGENDA PÚBLICADOS ANOS 90

O processo de revisão constitucional na área da segu-ridade social representa em larga medida a desconstruçãoda agenda estruturada durante a Constituinte de 1988. Osissues centrais dessa agenda,1 na área da previdência so-cial, referiam-se ao conceito de seguridade social quedeveria informar a Carta; à equalização de benefícios e(aumento do) grau de “inclusividade” do sistema; à dis-cussão em torno do resgate da “dívida social da nação”;às formas de defesa do valor real das transferências (fi-

xação de um piso mínimo de benefícios, irredutibilidadedo valor real dos benefícios previdenciários no tempo); ea mecanismos que poderiam assegurar diversidade e eqüi-dade na forma de financiamento.

A discussão do conceito de seguridade social ocupouespaço importante na agenda constitucional, prevalecen-do a noção de seguridade como um conjunto integradode ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saú-de, à previdência e à assistência social, e associado à idéiade universalidade de cobertura e atendimento. A defesado valor real das transferências foi um ponto importantena medida em que a variável de ajuste do sistema da pre-vidência entre 1979 e 1986 havia sido o valor real de be-nefícios, que sofreu forte compressão. Num contexto deinflação alta e sustentada, a manipulação tecnocrática devalores constituía um mecanismo privilegiado de nega-ção de direitos. A diversidade das fontes de financiamen-to foi essencial na medida em que definia operacional-mente a integralidade das ações da seguridade.

A reconstrução política da agenda pública pós-Cons-tituinte é balizada por três desenvolvimentos. Em primeirolugar, pelo protelado processo de regulamentação dosnovos dispositivos constitucionais relativos à seguridadesocial. Pelo lado do financiamento, este processo foi obs-taculizado pela contestação judicial do Cofins, que per-durou até fins de 1993. Por outro lado, as leis orgânicasdisciplinadoras desses dispositivos só foram implemen-tadas tardiamente em 1990 (Lei Orgânica da Saúde), em1991 (Lei Orgânica da Seguridade Social – Lei 8.212 e Pla-no de Benefícios da Previdência Social – Lei 8.213); eem 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – Lei 8.742).

Em segundo lugar, pelo acirramento do comportamentodefensivo do Tesouro Nacional, tendo em vista a forte

A

MARCUS ANDRÉ DE MELO

Professor de Ciência Política da UFPe

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reduzido paulatinamente pela chamada “operação desem-barque” até o teto de 10% estabelecido pela lei. As trans-ferências do Tesouro para a seguridade – que têm comofontes o Cofins (ex-Finsocial) e a contribuição sobre olucro, além de recursos fiscais – vêm sendo erráticas, esignificam de fato um veto à efetivação do orçamento daseguridade social. Boicotes e não-decisões pautaram opadrão de atuação do Tesouro em relação ao orçamentointegrado da seguridade social. O virtual aniquilamentodesse orçamento se deu com a criação do Fundo Socialde Emergência e com a interrupção de repasses do Te-souro para a saúde em 1993.

Em terceiro lugar, pela ampla mobilização a favor dacontra-reforma da previdência social iniciada na gestãoCollor. É nesse contexto que se pode falar da construçãosocial da idéia de crise da previdência social. Após a pro-mulgação da Carta Constitucional de 1988, setores quenão lograram beneficiar-se com as mudanças, mobiliza-ram-se para obstaculizar sua implementação. Alguns se-tores burocráticos promoveram uma resistência passivaàs mudanças, enquanto outros setores das elites políticase burocráticas se mobilizaram em torno de duas idéias-força relacionadas, mas não logicamente interdependen-tes: a da ingovernabilidade e a de reformas pró-mercado.A discussão sobre a questão da ingovernabilidade assu-miu grande centralidade no debate público em torno dasreformas recentes. Mais que isso, tornou-se um princípioordenador do campo político.4 A ingovernabilidade fis-cal passou a ser invocada com base num duplo diagnósti-co de rigidez fiscal e orçamentária, e de expansão de di-reitos sociais e dos gastos sociais crescentes sem previsãode novas fontes de financiamento.

As reformas pró-mercado se difundiram no Brasil se-gundo um timing específico, sobredeterminado pelo pro-cesso de democratização. Este pautou-se por ter sido pro-duto de um pacto inter-elites, que se estendeu por um longoperíodo de tempo, e sobretudo por ter precedido o pro-cesso de ajuste e estabilização econômica. Os custos doprocesso de barganha política e da disputa distributiva(entre empresários e trabalhadores organizados, setores efirmas, corporações e entes federativos) foram socializa-dos, o que implicou expansão fiscal e aceleração inflaci-onária. A agenda das iniciativas reformistas na Nova Re-pública reflete o impacto das novas demandas engendradaspela democratização e pela existência de muitos vetoplayers devido à fragmentação do sistema de representa-ção e intermediação de interesses. As iniciativas de re-forma pró-mercado voltadas para o ajuste fiscal, desre-gulamentação e liberalização foram, dessa forma, diferidasno tempo. As iniciativas de reforma econômica assumi-ram um formato mais pragmático e menos programáticodo que nos outros países (Almeida, 1995). A débâcle do

deterioração das contas públicas e a diminuição dos grausde liberdade fiscal do governo. Neste contexto, os esta-dos e municípios, e sobretudo a previdência social, tor-naram-se atores institucionais privilegiados do conflitofiscal intragovernamental (Almeida e Cavalcanti, 1995).O aumento da participação das contribuições sociais – quenão são partilhadas com municípios e estados – na recei-ta fiscal da União expressou o comportamento defensivoda União em relação às perdas que sofreu com o novofederalismo fiscal pós-1988 (Tabela 1).

TABELA 1

Evolução da Participação dos Fundos de Participação Estadual e Municipalna Arrecadação do IPI e IR

Anos Participação

1969/75 10,0

1976 12,0

1977 14,0

1978 16,0

1979/80 18,0

1981 20,0

1982/83 21,0

1984 26,0

Anos Participação

1985 30,0

1985/88 31,0

1988 38,0

1989 39,5

1990 40,5

1991 41,5

1992 42,5

1993 44,0

O crescimento das contribuições sociais vinculadassignificou “a ocupação crescente do espaço tributário egarantiu para a área social uma disponibilidade de recur-sos feita à revelia do orçamento fiscal ‘puro’” ( Franco,1995).2 A área fazendária e de planejamento do governocomeçou a se mobilizar em torno da questão da rigidezorçamentária e da necessidade de garantia de “receitaslivres”, num movimento que evoluiu para a criação doFundo Social de Emergência.3 A receita das contribui-ções sociais passou a representar mais de metade da re-ceita tributária da União, sendo disputada pelo Tesouro.Concretamente, a disputa envolveu as formas de finan-ciamento do Sistema Único de Saúde, do pagamento deencargos previdenciários da União, custeio e pessoal doMinistério da Previdência, e dos benefícios assistenciaise os não-contributivos (pensões rurais e renda mensalvitalícia). A lei orgânica da seguridade estabeleceu umcronograma de desoneração da previdência social em re-lação aos encargos previdenciários da União, o que re-presentou uma vitória pontual dos setores da previdênciavis-à-vis a área fazendária e de orçamento do governo.Até 1991, tais encargos eram financiados em sua quasetotalidade com recursos da seguridade (Finsocial), sendo

Fonte: Pinheiro, 1995.

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governo Collor em 1992-3 e recentemente as crises cam-biais do México (que substituiu o Chile como show caselatino-americano para as agências multilaterais) e Argen-tina deslegitimaram as abordagens mais ortodoxas daagenda neoliberal.5

A nova agenda pública foi balizada pela policy windowproporcionada pela própria Constituição através da emen-da constitucional no 2 que previa a realização da revisãoconstitucional a partir de cinco anos de sua promulgação.6

Nesse contexto, formularam-se as primeiras propostas derevisão. O conteúdo substantivo das primeiras propostasde reforma da previdência social é fortemente marcadopelo reformismo cesarista do governo Collor. As propos-tas radicalizantes do Instituto Liberal, Fipe/Proseg e doInstituto Atlântico que implicam a privatização do mer-cado de seguro social expressam o estado de coisas dogoverno Collor e só adquirem sentido no contexto de auto-ritarismo e confrontação que marcaram aquela conjuntu-ra, e que conferiam alguma factibilidade a propostas demudança de caráter amplo e não-incremental.7 No segun-do momento do processo de agenda-setting da reformada previdência social, estas propostas radicalizantes foramabandonadas. Foi um momento marcado pela agenda denegociação que presidiu a resolução da crise aberta em se-tembro de 1991 em torno da proposta de reajuste dos bene-fícios previdenciários – a chamada “crise dos 147%”.

Esta crise resultou de uma sentença judicial favorávelaos aposentados na contestação do sub-reajuste (54,6%)dos benefícios previdenciários em relação ao salário mí-nimo reajustado em 147,06%. Após prolongada disputajudicial em torno da interpretação de dispositivos das leisde custeio e do plano de benefícios da previdência, quefixavam o salário mínimo como indexador, o SupremoTribunal Federal suspendeu a sentença de pagamento numquadro em que o governo alegava que a decisão levaria aprevidência social à falência e o país ao caos econômico. Amobilização dos aposentados e a massiva cobertura do epi-sódio pela mídia levou o governo a rever sua postura iniciale iniciar o pagamento parcelado da dívida em agosto de 1992.

Duas iniciativas no Congresso balizaram o processode agenda-setting. Em primeiro lugar, a CPI da previdên-cia, criada no governo Collor para investigar graves dis-torções nos valores de aposentadorias e pensões que es-tariam dando origem aos “marajás” da previdência(Congresso Nacional, 1991). Pela grande visibilidade quealcançou, esta CPI permitiu a formação de uma clivagemimportante no debate público. Por um lado, a posição ad-vogada por alguns setores, sobretudo de esquerda, paraos quais a chamada crise da previdência era uma crisegerencial evidenciada pelas graves distorções administra-tivas do sistema. Por outro lado, os argumentos de seto-res capitaneados por liberais reformistas, para os quais as

distorções só seriam eliminadas pela privatização do sis-tema.

Em segundo lugar – e mais importante –, o Congressoinstituiu uma Comissão Especial do Sistema Previdenciá-rio com a atribuição, entre outras, de propor sugestões paraa crise dos 147%. A comissão foi formada no contexto daconstrução do consenso reformista, projetando a previ-dência social enquanto issue de grande centralidade naarena pública. Por sua visibilidade e amplitude e peladensidade dos debates, a Comissão Especial teve reper-cussões em vários níveis. Além de constituir um lugar deaprendizagem coletiva, contribuindo para a formação deparlamentares especialistas em seguridade social,8 permi-tiu uma aproximação entre elites burocráticas, especia-listas setoriais, sindicais, etc.

As propostas de reforma do modelo de previdênciasocial instituído pela Carta de 1988 apresentadas nos úl-timos anos assentam-se em um diagnóstico comum que,em linhas gerais, aponta para os seguintes aspectos daagenda da contra-reforma: o questionamento do conceitode seguridade social, pela suposta inconsistência entre oprincípio de seguridade social e o de seguro, que infor-mam simultaneamente o capítulo social da Constituição,e a proposta de separação dos orçamentos da previdênciasocial, da atenção à saúde e da assistência social; umaredefinição do mix público/privado na área da previdên-cia social a partir da unificação dos sistemas previden-ciários em um regime único básico, público (na maioriadas propostas) e compulsório, e um regime complemen-tar privado que deve cobrir os trabalhadores com rendi-mento superior a um ou três salários na maioria das pro-postas (a delimitação do espaço a ser ocupado pelomercado privado de fundos de pensão é definido opera-cionalmente na fixação do teto de benefício da previdên-cia social básica); propõe-se a extinção dos regimes se-parados para militares e servidores civis, e as chamadasaposentadorias especiais de algumas categorias profissio-nais (professores, magistrados, ocupantes de cargos ele-tivos, etc.); a forma de financiamento será baseada ex-clusivamente na contribuição individual dos trabalhadores,eliminando-se na maior parte das propostas a contribui-ção do empregador; propõe-se na maioria das propostasregime de capitalização para os regimes suplementares ede repartição simples para o público (quando este é man-tido e não privatizado); são propostas medidas para au-mentar o tempo de contribuição, reduzir a taxa de reposi-ção, aumentar a idade mínima de aposentadorias (pelaextinção da aposentadoria por tempo de serviço); no mes-mo espírito, alinham-se as propostas (heterogêneas) quevisam equalizar as idades de aposentadoria de homens emulheres, e trabalhadores rurais e urbanos; também sepropõe, como estratégia geral, uma redefinição de direi-

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tos sociais a partir da “desconstitucionalização” de maté-rias sociais na Constituição, que passariam a ser tratadaspor lei ordinária, de modo a se obter maior reversibilida-de nestas questões; propõe-se, como estratégia de seguri-dade social de forma ampla, restrições à “generosidadepública” na concessão de benefícios sociais – auxílio ma-ternidade de 120 dias, renda vitalícia de um salário míni-mo, elegibilidades com tempo de contribuição exíguo,entre outros (Costa, 1994).

IDÉIAS, INSTITUIÇÕES E INTERESSES

A previdência social como arena política apresentaum conjunto de especificidades que têm relevância ana-lítica diferencial quando a análise focaliza uma reformaconstitucional nesta área setorial, e não simplesmente aformulação e implementação de decisões mais ou menosrotineiras no âmbito intraburocrático (Melo, 1993 e Bar-ros e Silva, 1992). Do ponto de vista da análise compre-ensiva da revisão constitucional para as várias issue areas(quebra de monopólios públicos, etc.), a previdência so-cial é a que possui a mais alta taxa de conflitualidade.Na medida em que envolvem elegibilidades, os custosdas decisões de política apresentam grande visibilidadeporque são fortemente concentrados nos indivíduos(embora do ponto de vista do financiamento sejam difu-sos).9 Pelo caráter intertemporal da política previden-ciária(há um hiato temporal entre contribuição e elegibilida-de), as decisões envolvem não só elegibilidades presen-tes mas também direitos adquiridos e expectativas de di-reito. Ademais, cabe advertir que a proposta do governode revisão constitucional na área da seguridade compre-ende mudanças que não são tipicamente afetas ao setor(sigilo fiscal e bancário, regulação de fundos de pensãofechados).

As especifidades da previdência como arena políticaexigem uma análise desagregada, em que se identifiquetambém a “geometria política” dos interesses envolvidos.Em primeiro lugar, a política da previdência é fundamental-mente a política da transferência de riscos atuariais entregrupos (Baldwin, 1990 e Melo, 1995). Neste sentido, trata-se de uma política eminentemente redistributiva – dada aindivisibilidade dos benefícios previdenciários.10 Ela redis-tribui riscos horizontalmente (entre grupos com perfis atua-riais distintos) e verticalmente (entre gerações). Em siste-mas segmentados como o brasileiro, ela redistribui riscose renda de forma desproporcional, porque certas catego-rias têm elegibilidades distintas e privilegiadas. Ou seja,os riscos não são socializados a partir da definição de umrisco médio atuarial (o que seria neutro do ponto de vistaredistributivo), mas sim privilégios. Certos grupos logramconcentrar benefícios e transferir seus custos para toda a

população. No sentido consagrado por Wilson (1980), aprevidência é também uma arena clientelística em que oscustos são difusos e os benefícios concentrados.

A política da seguridade envolve interesses empre-sariais de duas formas. Pelo lado das contribuições parao financiamento do sistema, está no centro da disputadistributiva entre capital e trabalho. Nesse sentido, a se-guridade é um issue importante para os interesses organi-zados dos capitalistas. As entidades organizadas do em-presariado conseguiram construir uma agenda voltada paraa desoneração de contribuições sociais, argumento refor-çado pelas transformações correntes do mundo do traba-lho (pela informalização crescente) e pelos imperativosde competitividade num mundo globalizado. A incapaci-dade organizacional e a fragmentação de interesses doempresariado nacional têm no entanto impedido uma açãoconcertada na agenda pública – como é paradigmático ocaso da Constituinte. Iniciativas recentes como a AçãoEmpresarial não tiveram êxito (Schneider, 1995). A Fiesp,historicamente, tem liderado essas demandas, e apresen-tou uma agenda para a reforma da seguridade em 1993.A proposta preconiza o fim das contribuições patronaissobre a folha, uma previdência pública com teto de bene-fício de um salário mínimo, e regime de capitalização(Fiesp, 1993).

A previdência também constitui um setor empresarialper se. Os issues, nesse caso, transcendem a mera esferaredistributiva e envolvem questões regulatórias. No casobrasileiro, a previdência privada se expandiu amplamen-te na década de 80. Embora já bastante desenvolvido em1988, o segmento dos fundos de pensão fechados, repre-sentados pela Abrapp, não teve participação ativa na Cons-tituinte.11 Suas demandas se restringiram à garantia da pre-servação da previdência complementar e seu caráterprivado (com autonomia para definição de repasses daspatrocinadoras para os fundos), e sobretudo ao tratamen-to tributário dos fundos (imunidade enquanto entidade deassistência social e não entidade financeira12) e à autono-mia na gestão dos seus portfolios de investimentos – te-mas que têm pautado os conflitos com as autoridadesgovernamentais (Gazeta Mercantil, 2/08/93, 26/10/93,29/10/93, 15/12/95; O Globo, 9/02/95).

A Abrapp tem se manifestado publicamente contra aprivatização da previdência segundo o modelo chileno(Gazeta Mercantil, 30/09-2/10/95).13 Como entidades fe-chadas de previdência, elas não lucrariam diretamente coma instituição de um modelo que supõe entidades abertas atrabalhadores individuais. No entanto, o potencial demercado aberto com a expansão do mercado viabilizariaa expansão dos fundos fechados multipatrocinados – daía Abrapp defender um modelo tripartite baseado no Es-tado, na empresa, e no trabalhador.14 O rebaixamento do

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teto de benefício vigente afetaria de forma negativa oscompromissos futuros dos fundos que estão baseados emcálculos de suplementação de aposentadorias acima des-ses tetos.15 Os fundos fechados veriam abrir-se um mer-cado de grandes proporções – abrangendo cerca de 600mil servidores – com a criação de um regime de capitali-zação para os servidores civis. A Abrapp sustenta que osatuais fundos poderiam atuar como gestores.16

Os fundos de pensão abertos, ainda bastante incipien-tes em relação aos fechados, que tipicamente estão asso-ciados a seguradoras e conglomerados financeiros e queseriam os grandes beneficiários da privatização do siste-ma, não se mobilizaram abertamente em torno dessa pro-posta. A Anapp – entidade que congrega os fundos fe-chados – não montou nenhum lobby eficiente em tornodessa proposta. A Febraban e o IBMEC, por sua vez, apre-sentaram propostas de reforma que limitam o teto de be-nefício a um salário mínimo, atendendo aos interesses dosetor (Febraban, 1992; IBMEC, 1992). A expansão po-tencial do mercado atenderia a uma constelação de inte-resses que também incluem especialistas e gestores defundos fechados, bancos de investimento e analistas fi-nanceiros, além de incorporadores imobiliários. Pelo pa-pel que cumpre de principal investidor institucional nasBolsas de Valores – e pelo potencial de expansão das re-servas dos fundos – o espectro de interesses afetados comas decisões na esfera da previdência social é fortementediversificado. Esta multiplicidade produz fragmentaçãoe clivagens entre os fundos e bancos privados.17

A arena da seguridade apresenta dessa forma altas ta-xas de interdependência com outros issues. A reformaexige uma consideração de aspectos centrais do sistemafiscal e tributário. Para os gestores macroeconômicos, osfundos passaram a ocupar o papel privilegiado na monta-gem do novo padrão de financiamento da economia bra-sileira, superando o padrão baseado em fundos públicos(Pinheiro, 1994). Na arena da disputa política estão presen-tes um conjunto amplo de atores burocráticos. A arena dapolítica exibe intensas disputas interburocráticas entre oMinistério da Previdência e a área fiscal e fazendária.Desde Heclo, sabemos que as elites burocráticas cumpremum papel central na promoção de reforma de políticaspúblicas (Heclo, 1974). Na realidade, estas elites não cons-tituem um grupo de interesse entre outros na arena dapolítica, mas o núcleo que dá direção e unidade à inova-ção nas políticas. A dimensão fiscal da se-guridade e amagnitude do seu orçamento convertem a política previ-denciária num issue central da gestão macroeconômica –sobretudo em contextos de crise fiscal aguda.

Historicamente associadas ao modelo de previdênciaestatista existente, as elites burocráticas da previdên-cia, juntamente com setores da área econômica, susten-

tam que o rebaixamento do teto de contribuições invia-bilizaria financeiramente o sistema. Além destas elites,no contexto pós-Constituinte, a Anfip tem cumprido cadavez mais um papel de vanguarda técnica semelhante aodesempenhado na arena da atenção à saúde pelos sanita-ristas (Melo, 1993). Sua criação data de 1950, como as-sociação dos fiscais dos antigos institutos de aposentado-ria e pensões, mas foi a partir de 1988 que passou a cumprirum papel extremamente ativo no debate público em tor-no da seguridade social. Embora não se trate de uma en-tidade sindical (papel cumprido pela Fenafisp), a Anfip,através de laços estreitos com setores da esquerda e seto-res sindicais e da ampla articulação com o policy networkda área da previdência, representa um think tank alterna-tivo que produz análises em defesa do conceito de segu-ridade social vigente na Constituinte.18 A entidade tam-bém acompanha e participa ativamente das atividades daSubcomissão de Seguridade Social e Família da Câmarados Deputados e mantém relação estreita com parlamen-tares que a compõem.19 As propostas revisionais da Anfiptêm sido geralmente apresentadas por esses parlamenta-res.20 A Anfip também demonstra possuir ampla capilari-dade social nas suas articulações, como ficou evidencia-do pelo abaixo-assinado com 30 mil assinaturas queencaminhou contra a instalação da revisão constitucionalem 1993.

A Anfip defende as teses gerais do “partido da segu-ridade” e propõe, como forma de evitar a manipulaçãodos recursos pela área fazendária, a criação de órgão pró-prio de arrecadação da seguridade, que passe a recolhersimultaneamente a contribuição sobre folha de salários eas contribuições sobre faturamento e lucro – que dizemrespeito à Receita Federal. O Sindifisco – a partir de 1994transformado em Unafisco/Sindical –, com seis mil afili-ados, compõe junto com a Anfip (três mil afiliados) eoutras entidades de servidores públicos um conjunto arti-culado de defesa da seguridade social, em particular a dosservidores civis, e de defesa corporativa da vasta buro-cracia setorial de fiscalização e arrecadação. Por recolhe-rem, respectivamente, imposto sindical e contribuições emfolha de pagamento de um grande número de afiliados dealta remuneração média, a Unafisco/Sindical e a Anfipcomandam muitos recursos que são utilizados para darsuporte à mobilização de parceiros, a exemplo da Cobape do Mosap, e mesmo de parlamentares, como foi o casodas audiências públicas nas assembléias estaduais reali-zadas em 1995, financiadas pela Anfip.21 A questão dacriação do órgão próprio de arrecadação da seguridadedivide estas duas entidades, sendo a proposta fortementecombatida pela Unafisco/Sindical.22

O papel de elites técnicas e acadêmicas portadoras doconhecimento especialista em reformas de políticas pú-

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blicas tem sido enfatizado na literatura (Hall, 1989). Nocaso brasileiro é bastante expressivo, na última década, osurgimento de especialistas em análise econômica da pre-vidência social, e da seguridade social em geral, substi-tuindo a elite burocrática tradicional (os “cardeais da pre-vidência”), com formação em direito do trabalho.23 Emáreas emergentes – como a da economia da seguridadesocial – que apresentam grande complexidade, o confrontoentre análises, propostas e cenários representa um campode disputa simbólica importante (Korpi, 1993). Isto ex-plica o intenso debate público em torno da previdênciasocial entre especialistas e o fato de as propostas de enti-dades (ou mesmo de indivíduos!) com débil enraizamen-to social e político como o Instituto Liberal ou InstitutoAtlântico terem adquirido maior visibilidade que propos-tas de federações empresariais. É significativo que na re-visão constitucional de 1994 não se tenha obtido consen-so entre especialistas da policy community da áreaeconômica e da previdência quanto à operacionalizaçãodo modelo de capitalização (devido à incerteza quanto aoscustos de transição e seu financiamento, tendo em vista aexperiência do Chile, onde tais custos foram proibitivos).24

Ao contrário da arena da atenção à saúde, a arena daprevidência social convive com atores organizados, afe-tados diretamente pela política. Especificidades tecnoló-gicas dessa política – tipicamente transferências de renda– que, ao contrário de serviços médicos típicos, apresen-tam uma natureza continuada, produzem a ação coletivade clientelas organizadas, como demonstra a experiênciade vários países. A experiência na América Latina de as-sociação de pensionistas mostra que elas são tipicamen-te organizações tipo single issue, voltadas para a defesado valor real de pensões em ambientes inflacionários.Criada em 1985, a Confederação Brasileira de Aposen-tados e Pensionistas – Cobap se fortaleceu imensamentecomo ator político devido ao sucesso obtido na mobili-zação dos 147% em 1991-1992.25 Composta sobretudo porantigos sindicalistas, a Cobap logrou conferir visibilida-de política às suas manifestações e conquistou assento emarenas decisórias importantes, como o Conselho Nacio-nal de Seguridade Social, mas a habilidade de garantir vi-sibilidade na mídia contrabalança sua debilidade organi-zacional. Não dispondo de contribuições em folha depagamento, a Cobap é fortemente dependente dos sindi-catos e associações (em particular a Anfip). Embora seurelacionamento com as centrais tenha sido conflituoso,no período recente mantém articulação mais estreita coma CUT (Araújo, 1992). A Cobap é uma entidade de perfil“inclusivo” e representa os interesses dos aposentados peloregime geral da previdência (sobretudo o segmento mi-noritário de pensionistas que recebem mais que um salá-rio mínimo). Sua plataforma contempla a criação de regi-

me geral para todas as categorias, a aposentadoria portempo de contribuição, e a gestão quadripartite da previ-dência, em que os pensionistas tenham assento.26

O Movimento de Servidores e Aposentados e Pensio-nistas – Mosap, por sua vez, é um produto não antecipa-do da instituição do regime jurídico único e da constitui-ção de 1988, e constitui tipicamente uma associação detipo single issue. A ameaça de revogação da extensão aosservidores inativos dos benefícios e vantagens assegura-das aos ativos pela Constituição vigente, e de perda deprivilégios, levou em um movimento defensivo à consti-tuição da associação. Fundado em 1992, o Mosap é umafrente de 39 entidades de servidores voltadas para a si-tuação de seus inativos. Na revisão de 1995 defendia amanutenção da vinculação dos inativos a ativos, em tro-ca da aceitação de contribuição dos primeiros ao siste-ma.27 Atitude igualmente defensiva adotaram as inúme-ras entidades vinculadas ao Judiciário, que concentragrande parte das aposentadorias especiais.28

Historicamente, o mundo sindical sempre esteve en-raizado na estrutura institucional do setor. As centraissindicais – sobretudo a CUT que tem assento no Conse-lho Nacional de Previdência Social – constituem um atorimportante na arena decisória da seguridade social. Ascentrais aglutinam de forma fragmentária os interessesdo mundo do trabalho organizado. Com a filiação daContag à CUT esta aumentou o grau de inclusividade desuas demandas, superando clivagens importantes na áreada seguridade social quanto aos direitos sociais de tra-balhadores rurais e urbanos. As demandas da CUT apre-sentam o pressuposto comum da viabilidade da previ-dência social e negação de crise estrutural do sistema.São apontados nesse sentido o alto grau de evasão dascontribuições sociais, as distorções crônicas no geren-ciamento do sistema, assim como o boicote da segurida-de pelo Tesouro Nacional como causas dos problemasda seguridade social.29 A CUT também defendeu especi-ficamente a aposentadoria por tempo de serviço (sob oargumento de que os trabalhadores mais pobres ingres-sam no mercado de trabalho precocemente) e a manuten-ção do salário mínimo como piso; e criticou o boicoteburocrático à efetivação de direitos (sobretudo de traba-lhadores rurais) consagrados em 1988. Na revisão cons-titucional de 1993, a CUT mudou de posição, manifes-tando-se a favor de reformas na aposentadoria por tempode serviço e do fim da integralidade da aposentadoria deservidores públicos (assegurados os direitos adquiridos).Mesmo com ampla e majoritária filiação de sindicatos deservidores, a CUT tem patrocinado de forma ambígua osinteresses dos servidores públicos – fato que produziuclivagens importantes na central. O PT tem demonstradouma posição mais universalista e inclusiva em suas de-

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mandas por não restringir suas demandas ao mundo dotrabalho organizado. A questão da aposentadoria por tem-po de serviço é defendida pelo PT como forma de com-pensação para aqueles que ingressam no mercado de tra-balho mais cedo.

No processo de revisão constitucional, os trabalhado-res rurais ficaram na defensiva quando seus direitos cons-titucionais “privilegiados” sofreram fortes críticas,30 di-rigidas ao grande número de fraudes verificadas nasaposentadorias rurais a partir de 1991 e, sobretudo, à in-suficiente contribuição dos trabalhadores rurais ao siste-ma – objeto de críticas de sindicatos urbanos.31 A Contag,que cumpriu papel decisivo no processo constituinte paraassegurar direitos de cidadania a um dos grupos mais des-tituídos da sociedade, manteve uma estratégia defensiva,focalizada na delimitação da idade de aposentadorias ru-rais e na definição constitucional de produtor em regimede economia familiar e da forma de contribuição sobre aprodução comercializada.

A arena da política previdenciária também apresentaoutras especificidades institucionais que devem ser regis-tradas. Ela é fundamentalmente centralizada no âmbitofederal, em que inexistem problemas típicos de implemen-tação da política. Sua baixa complexidade organizacio-nal é um facilitador potencial de reformas. A questãointerorganizacional e federativa só se manifestou na re-forma com a proposta do governo de extinguir os cercade 1.000 institutos municipais criados após a Constitui-ção de 1988 e de estabelecer o monopólio da União sobrea iniciativa legislativa (Melo, 1996).

INSTITUIÇÕES E A “POLÍTICA DAIMPOSIÇÃO DE PERDAS”

A seção anterior mapeou os interesses da arena políti-ca da seguridade social e discutiu sumariamente a arqui-tetura de sua interação no plano social mais amplo. Apon-tou-se a capacidade diferencial de mobilização dosinteresses organizados (ou não) e se assinalou os stakesque estão em jogo, como também o papel das idéias econstruções intelectuais e a centralidade das elites bu-rocráticas e técnicas. A consideração dessas variáveis per-mite iluminar o processo de formação da agenda de re-formas no plano do Executivo. A reforma constitucionalem curso, no entanto, é um jogo de natureza fundamen-talmente congressual. Os mecanismos que traduzem acapacidade de mobilização em poder parlamentar são denatureza fundamentalmente institucional e irredutíveis àexplicação de natureza sociológica ou de qualquer outraque não considere as variáveis institucionais. Importa paraa análise da reforma constitucional, na área específica daprevidência social, o exame das relações entre Executivo

e Legislativo, em seus aspectos procedurais e formais,além da discussão das relações entre parlamentares, lide-ranças partidárias, e suas constituencies. Essas questõesserão tratadas em outro trabalho (Melo, 1996).

Vale assinalar, no entanto, em relação a essas ques-tões, um ponto fundamental. Por terem como leitmotif aresolução de desequilíbrios fiscais (causados por umaconjugação de fatores demográficos, gerenciais e atua-riais), as reformas previdenciárias em curso no Brasil,assim como em muitos países, implicam a imposição deperdas a constituencies específicas pelos promotores dasreformas (ou seja, o Executivo). No caso brasileiro, aocontrário do que ocorre em outros países capitalistas avan-çados, ou se trata apenas de custos distribuídos linearmen-te, como no caso da elevação da idade de aposentadoria,do alongamento do tempo de contribuição, ou da elimi-nação de categorias de benefícios e elevação dos requisi-tos para elegibilidade em programas. Trata-se também deequalização do tratamento entre beneficiários, com a eli-minação de vantagens desfrutadas por categorias especí-ficas de beneficiários, como é o caso da extinção de algu-mas aposentadorias especiais. A política das reformasprevidenciárias pode ser descrita aptamente, para utili-zar o termo de Pierson e Weaver (1993), como a políticada imposição de perdas.32 A capacidade de governos deimpor perdas depende de vários fatores, inclusive os deordem institucional. Em uma análise comparativa doscasos do Canadá, EUA e Inglaterrra, Pierson e Weaverenfatizam a maior capacidade de governos parlamenta-ristas de impor perdas e apontam para o papel de vetopoints em obstaculizar reformas. Os veto points podemresultar do federalismo, do Judiciário e da separação depoderes do presidencialismo. A conclusão dos autores quereformas da previdência social nesses países são particu-larmente difíceis de implementar em virtude não só exis-tência de veto points mas também da estrutura de interes-ses que as políticas existentes produz – o que denominampolicy inheritances – e do ciclo eleitoral é particularmen-te iluminadora para a análise do caso brasileiro.

NOTAS

Tomamos emprestado o título de Ferrera (1991). O caso italiano de contra-refor-ma da seguridade apresenta traços semelhantes ao brasileiro.

1.Para uma análise sistemática, ver Melo (1993:119-164).

2. Este texto acompanhava o Plano de Ação Imediata elaborado em 1993 sob acoordenação do autor, que era o titular da Secretaria de Política Econômica.

3. A questão da “crise das receitas livres” foi formulada de forma consistente emvários trabalhos por Raul Velloso (1993a e 1993b).

4. Reformas institucionais e constitucionais são invocadas com base no diag-nóstico de ingovernabilidade do sistema político brasileiro. Como argumentou oex-presidente e senador José Sarney, defendendo a necessidade da revisão cons-titucional, se as reformas não forem feitas “o país ficará cada vez maisingovernável”. Para o presidente do Partido da Frente Liberal, “a Carta de 1988é totalmente inflacionária”. “PMDB reúne bancadas hoje” (Sarney, 1993a e1993b). Para uma discussão aprofundada, ver Melo (1995).

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5. No caso específico das reformas previdenciárias, o padrão incrementalistabrasileiro contrasta com os modelos de reforma estrutural (Chile) e mistos (Uru-guai e Argentina). Ver Mesa-Lago (1996).

6. Uma policy window representa uma conjuntura que permite o entrelaçamentode processos independentes relativos ao reconhecimento de um fato enquantoproblema, a produção de propostas de políticas e eventos políticos. Kingdon(1984). Como discutido a seguir, eventos políticos subseqüentes minaram, noentanto, o desenvolvimento das reformas.

7. Para uma análise comparativa das propostas, ver Rodrigues Filho (1993),Azeredo et alii (1993); Macedo (1993); Lino e Câmara (1994). Estes textos apre-sentam quadros sinóticos das propostas, não considerando sua enorme heteroge-neidade quanto à densidade social e política das propostas.

8. É o caso de Eduardo Jorge, Geraldo Alkmin, Maurílio Ferreira Lima, RobertoJefferson e, sobretudo, Antônio Brito.

9. As decisões que implicam diminuição (ou aumento) de benefícios para umgrupo de n indivíduos é sentida de forma individualizada por estes. Do ponto devista do financiamento, cada indivíduo só arcará com 1/nc dos custos para au-mentar (ou diminuir) os benefícios concedidos a outros indivíduos (onde c é ocusto adicional para cobrir esse aumento, ou a economia resultante, em caso deredução). A diminuição de benefícios portanto é proporcionalmente muito maisdifícil, do ponto de vista político, encontrando forte resistência (ou lobby ativono caso de expansão de benefícios) por parte dos beneficiários, do que o aumen-to de benefícios, onde os indivíduos enfrentam problemas de ação coletiva porarcarem com parcela insignificante do custo global. Em síntese, esse fato se devea que, no sistema de seguridade social, enquanto os custos são socializados osbenefícios tendem tipicamente a ser segmentados.

10. Essa indivisibilidade resulta da forma individualizada de apropriação de be-nefícios referida na nota 10.

11. Por isso afirmamos em trabalho anterior que não existia corporativismo se-torial nessa arena. A situação mudou entre 1988 e 1993. A própria factibilidadede uma reforma pró-mercado em 1993 – inexistente em 1988 – foi um incentivopara uma atuação mais agressiva da Abrapp nas revisões recentes (Câmara dosDeputados, 1996).

12. A Abrapp impetrou uma ação direta de inconstitucionalidade no SupremoTribunal Federal sustando até o presente a Lei no 8177 que enquadrava os fun-dos de pensão como entidades do sistema financeiro nacional – e não de assis-tência social – visando-se ampliar o poder fiscalizatório da Comissão de ValoresMobiliários.

13. Em seus documentos, a Abrapp reitera que direitos adquiridos e expectativas dedireitos têm de ser respeitados, e que a previdência não está tão longe do equilíbriofinanceiro quando se alega. Para as posições da Abrapp, ver Jornal dos Fundos dePensão, Jornal Abrapp, e Revista dos Fundos de Pensão, vários números.

14. Estes são fundos aos quais outras empresas podem se associar. Gigantes dosetor como a Valia e a Petrus são fundos multipatrocinados (Gazeta Mercantil,05/10/95).

15. Conforme assinalou o presidente da Abrapp em “Idéias Novas e Polêmicasna Abrapp”, Gazeta Mercantil, 08/01/96, p.A-1.

16. “As atuais entidades fechadas de previdência privada possuem a estrutura,know how , e cultura adequadas, uma natureza de entes privados sem fins lucra-tivos.... para funcionarem como administradoras” (Abrapp, s.d.). É significativoque o documento tenha sido produzido a convite de uma comissão interministerialsobre o assunto.

17. É significativo que o presidente do maior fundo privado do país tenha acusa-do publicamente os bancos privados interessados em gerir os recursos dos fun-dos de promover campanha negativa sobre eles (Folha de S.Paulo).

18. A Anfip promoveu vários seminários sobre a seguridade social, além de terapresentado uma proposta específica.Ver Anfip (1995). Consultar também a Re-vista de Seguridade Social da entidade.

19. A Comissão é o locus de um issue network em torno da seguridade social. AAnfip promoveu conjuntamente com a Subcomissão um seminário sobre o tema.Ver Devescovi (1994) e Anfip/CSSF-Câmara dos Deputados (1995).

20. Na revisão de 1993, a Anfip apresentou seis propostas revisionais na área daseguridade social através dos deputados Euler Ribeiro (PMDB-AM), Waldir Pires(PSDB- BA), Amaury Müller (PDT-RS) e Jofran Frejat (PP-DF).Ver Anfip (1993 e1994).

21. Entrevista com presidente da Anfip, Álvaro Solon de França, janeiro/1996;entrevista com deputado Jair Soares, fevereiro/1996.

22. Entrevista com presidente da Unafisco/Sindical, Nelson Pessuto, janeiro emarço de 1996. Tributação em Debate, publicada pela entidade, consolidou-secomo a mais importante revista na área no país.

23. Estes especialistas – Anníbal Fernandes, Celso Barroso, entre outros – estãoreunidos em torno da Associação Brasileira de Estudos de Seguridade Socialque edita a Revista de Previdência Social. Desde 1992, a equipe dos assessoresdo Ministério da Previdência Social tem sido recrutada de técnicos de carreirado Ministério do Planejamento.

24. O Ministério da Previdência e a Comissão de Valores Mobiliários reuniramum grupo de trabalho em novembro de 1994, composto pelo Instituto Atlântico,a Fipe-USP e o IBMEC, para analisar os custos de transição com o argumento deque “as tentativas anteriores de revisão não prosperaram ou porque não estives-se amadurecida a constatação de sua inviabilidade [previdência] ou porque seesbarrava na dificuldade de financiamento dos custos de transição e do estoquedo sistema atual”. Comissão de Valores Mobiliários (1994).

25. A entidade chegou a receber porcentagens sobre causas ganhas na Justiça.Para uma tipologia sugestiva dos tipos de associação locais de pensionistas, verSimões (1994).

26. Para sua plataforma na revisão constitucional, ver Cobap (1996). Consultartambém o Jornal do Aposentado, editado quinzenalmente desde 1993.

27. Entrevista com o presidente do Mosap, Domingos Travesso, janeiro 1996.

28. É significativo que tenham recorrido a opinião de um notável da seguridadesocial para defender seus direitos. Ver Fernandes (1995).

29. Estes três aspectos abarcam a maior parte dos pontos enumerados pela CUT(1992, 1993a, 1993b, 1993c, 1994).

30. Para uma análise das aposentadorias rurais, na qual se estima o diminutoaporte de recursos do setor rural ao sistema e se enfatiza o papel redistributivodas pensões rurais, ver Delgado (1996).

31. Que parece ter mudado: “A parceria com outros segmentos é fator de sumaimportância. Com essa parceria estabelecida, hoje, algumas entidades que antesfaziam com juízo de valor negativo dos trabalhadores rurais enquanto integrantesdo Regime Geral..., com a concepção de que somos nós quem estamos quebran-do a previdência social, amadureceram durante o processo e já nos vêem combons olhos transformando-se em nossos aliados”. Contag (1996).

32. Também para uma análise neoinstitucionalista detalhada dos casos america-no e inglês, ver Pierson (1994) e Immergut (1992).

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RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASILhora de mudar?

os últimos três anos, a reforma do Estado temsido muito discutida, com uma característica sur-preendente: nestes debates, geralmente não se

inclui a mudança das relações de trabalho. E, quando istose dá, é como se o processo geral de reformas políticasfosse movido por uma energia própria, de todo indepen-dente do que ocorre ou deixa de ocorrer no plano das re-lações industriais; e estas só pudessem, eventualmente,abandonar o estado de repouso em que se encontram ba-fejadas por eventuais lufadas de renovação oriundas da-quele processo. Em tais condições, pode-se considerar que,para todos os efeitos, o sistema de relações de trabalhonão está em pauta.

Observe-se que um aglomerado de fatores conjuntu-rais concorre para a colocação em segundo plano do fronttrabalhista. Depois de vários anos de ascensão no pano-rama social e político nacional, os sindicatos vêm enfren-tando inéditas dificuldades, nos últimos anos, e amargandoalguns duros reveses (Gonçalves, 1994:279-285). Elemen-tos díspares ou correlatos – como o relativo sucesso doPlano Real, o resultado das eleições presidenciais, a aber-tura da economia, as mudanças na organização e na ges-tão dos processos produtivos, a queda da inflação, o au-mento do desemprego, principalmente no setor industrial,a tendência à redução do assalariamento com carteira detrabalho assinada, para citar os mais significativos – têmcontribuído para debilitar os sindicatos, diminuir a suaaudiência na sociedade e colocá-los ante desafios para osquais não estavam preparados ideológica, técnica, finan-ceira e politicamente. Esta aparente “solução natural” daquestão sindical deve sugerir a determinados setores que“não se provoca time que está perdendo” e que não vale apena, por enquanto, retomar os debates travados, ao lon-

go de 1994, sobre o contrato coletivo de trabalho, nem,muito menos, reativar experiências como a Câmara Seto-rial do Setor Automotivo, de 1991-92.

Se esta é a disposição de elementos externos e até aves-sos ao sindicalismo, qual é a avaliação no interior domovimento? Embora não seja possível generalizar, regis-tre-se a observação de Sérgio Mendonça,1 no sentido deque, diante de todas as dificuldades e dos ataques que vêmsofrendo os sindicatos, surge uma tendência a buscar re-fúgio e garantia justamente no sistema atual de institui-ções laborais, como o corporativismo, as contribuiçõesfinanceiras obrigatórias e a Justiça do Trabalho.

O presente artigo, incorporando os elementos explica-tivos contidos nos dois últimos parágrafos, propõe umainversão na relação estabelecida anteriormente entre asreformas políticas do Estado e da sociedade brasileira(tema, diga-se de passagem, dia-a-dia mais etéreo) e a re-estruturação do sistema brasileiro de relações de traba-lho. Não apenas será mais difícil promover verdadeirasreformas no Estado brasileiro sem mexer na estrutura dasrelações laborais, como também a permanência das mes-mas em seu formato atual dificultará e limitará as possi-bilidades e a profundidade das reformas políticas e, àmedida que estas vierem a se concretizar, o seu significa-do político e social será afetado de forma negativa, vindoa tornar-se prejudiciais aos trabalhadores.

Qual é a relevância das Relações de Trabalho para agestação – ou não – de um ambiente social e político fa-vorável à Reforma do Estado no Brasil? As Relações deTrabalho constituem uma das características fundamen-tais de qualquer sociedade industrializada, produtora debens e serviços em massa. Por envolverem diretamente amaioria da população, e mais especificamente sua parte

N

FRANCISCO LUÍZ SALLES GONÇALVES

Economista, Analista da Fundação Seade

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mais produtiva, organizada e atuante em todos os setoresda vida, moldam a realidade nacional em todos os aspec-tos, inclusive no que se refere à participação política e àprática democrática. Indiretamente, ao afetarem os mem-bros de núcleos familiares daqueles nelas incluídos, seualcance é ainda mais ponderável.

Esta idéia assume, no Brasil, características de ousa-dia ou de impertinência, tal a dificuldade que se encontrapara questionar-se o sistema de relações de trabalho e paraperceber-se a amplitude e a importância do seu impactosobre o cotidiano político e social do país. No entanto,boa parte da flagrante dificuldade de combinar o cresci-mento econômico com a distribuição de seus frutos e cominstituições democráticas, que se tem manifestado de for-ma tão recorrente em todo o período moderno da históriabrasileira, está ligada à imobilidade da estrutura e dasinstituições que regem as relações trabalhistas em nossopaís.

Barbash (1984:ix) define a função das relações in-dustriais como um modo de interação ou de tensão quemantém a organização empresarial em suficiente equilí-brio para produzir bens e serviços a custos competitivose para criar empregos adequados. O papel do Estado nacriação de um meio ambiente favorável é fundamental, eBarbash admite que sua participação se dê “seja para re-forçar os interesses de uma ou outra das partes, seja, nostempos modernos, para resguardar um interesse geral”(1984:7).

Os interesses sociais divergentes e até antagônicos quemanifestam-se, inevitavelmente e de forma privilegiada,na área das relações laborais, não deixarão de surgir, embusca de satisfação, e mesmo de hegemonia, quando seprocura aprofundar a democracia e estabelecer reformaspolíticas do Estado.

O arco de alianças em torno do programa e da candi-datura vitoriosos do PSDB e de Fernando Henrique Car-doso caracteriza-se por sua amplitude, tendo como com-ponentes, em partes impossíveis de medir com precisão,o apoio consciente às reformas previstas e a adesão semprincípios ao governo de turno. Por isso, na política ins-titucional, tradicional, restrita aos aparatos do Estado eaos partidos da situação (e mesmo aos da oposição), sur-gem com mais presença e capacidade de pressão os seto-res mais articulados politicamente das classes sociais maisabastadas e suas bancadas e representações políticas.Atuam principalmente através dos partidos conservado-res recém-convertidos à causa da democratização e da re-forma de um Estado que sempre trataram como sua pro-priedade privada e sempre colocaram primordialmente aserviço de seus interesses particulares, mesmo quando as-sumia características populistas para obter o consenso dasmassas às suas diretrizes.

Nessas condições, para garantir o equilíbrio indispen-sável ao verdadeiro debate e à real negociação, bem comoa participação e o respaldo do que ainda perdura de orga-nização nas classes populares a reformas políticas que nãosejam meros pretextos para favorecer aos poderosos e paraenfraquecer, esvaziar ou confundir os trabalhadores e opovo, será necessário estabelecer canais permanentes dediálogo e de elaboração política com os sindicatos, queconstituem a representação que ainda resta aos trabalha-dores, no quadro vigente de nossas relações industriais.

O novo sindicalismo brasileiro veio à cena inseridonuma luta política pela democratização do país, processono qual passou rapidamente a ocupar um lugar de desta-que e, por certo, não será agora que incorrerá na ingenui-dade de abster-se de participar do debate sobre as refor-mas políticas, por menos espaço que esteja encontrando,por menos favorável que se apresente a famosa “correla-ção de forças” e por mais dificuldades que esteja enfren-tando para sair de atitudes defensivas e corporativas epassar a um comportamento pró-ativo e propositivo.

DE QUE REFORMAS POLÍTICAS SE TRATA?

Uma reforma do Estado digna desse nome deveria terpor objetivo acelerar o desenvolvimento do país, liber-tando-o de toda sorte de empecilhos e obstáculos que, háséculos, o vêm tolhendo, muitos dos quais originados dopróprio aparato estatal, para transformá-lo em instrumentode elevação das condições de vida, de trabalho e de lazerde imensas maiorias da população brasileira, submetidasdesde sempre a variadas formas de exploração, de discri-minação e de exclusão. Neste quadro, as reformas políti-cas têm o sentido de dar maior consistência (logo, estabi-lidade) à nossa incipiente democracia, favorecer oencaminhamento das graves questões sociais que afligema sociedade brasileira – sem a solução destas, quaisquerveleidades de aproximação ao “Primeiro Mundo” nãopassam de fantasias consumistas –, basear o desenvolvi-mento na incorporação de setores majoritários da popu-lação ao mercado interno moderno, erigir um sistema edu-cacional que possa sustentar o desenvolvimento a curto,médio e longo prazos, perceber que a nação não pode – aexemplo da totalidade do gênero humano – ter outros finsestratégicos a alcançar que não os que incluem a qualida-de de vida da sua população e que nela se escorem.

Talvez a reforma política mais necessária deva ser feitana maneira como se concebe a relação entre governo esociedade numa democracia, para que se passe a confiarmais no debate e no diálogo, mesmo conflituoso, entre aspartes, imersas na sociedade civil real, do que em esque-mas tecnocráticos elaborados em longínquos gabinetes dacapital federal.

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No Brasil, os esforços pela democratização da socie-dade devem continuar até a mais completa remoção pos-sível das características autoritárias, patrimonialistas emanipuladoras das massas populares que caracterizaramo Estado populista e autoritário entre nós. Como empre-ender esta tarefa sem reformar o Estado? Assim coloca-da, tal reforma não poderia deixar de desfrutar de amploconsenso.

Ao mesmo tempo, é fundamental reconhecer que umdos fatores mais significativos de atraso da vida social,econômica, legal e política no país é a estrutura sindicalpaternalista e corporativista. “Nos últimos 53 anos, o Brasilpassou por três Constituições, alternou ditadura e demo-cracia, optou num plebiscito entre presidencialismo eparlamentarismo, mudou várias vezes de moeda, de sis-tema previdenciário e de assistência médica; criaram-see desfizeram-se partidos políticos, presidentes suicidaram-se, renunciaram, foram impedidos; o país foi tetracampeãomundial de futebol; desenvolveu-se uma complexa indús-tria cultural. Todas as instituições políticas, econômicase culturais sofreram profundas transformações, crises ereformulações.

Todas menos uma: a estrutura institucional das rela-ções de trabalho – a moldura das atividades cotidianasdas pessoas ocupadas em criar as riquezas, os bens, osserviços, os valores, a satisfação de necessidades e o con-forto material (e espiritual) do conjunto dos habitantes dopaís.

Esta estrutura ainda permanece praticamente igual acomo era em 1943, quando foi criada, baseando-se emsindicatos únicos por categoria profissional e âmbitomunicipal, sustentados por contribuições obrigatórias eafastados dos locais de trabalho (onde ocorrem os pro-blemas trabalhistas que constituem sua razão de ser) e emuma Justiça do Trabalho encarregada de julgar tanto osconflitos individuais como os coletivos entre capital etrabalho.

Por suas características, espírito e concepção, o siste-ma não só desestimula a negociação direta entre empre-sas e trabalhadores ou suas organizações como a obsta-culiza de mil maneiras” (Gonçalves, 1996:1).

Desta forma, a necessidade de reformar o Estado com-preende a de reformular o modelo de relações industriaisno país e confunde-se com ela.

O Brasil está vivendo um esforço para definir e apro-var reformas em aspectos importantes e críticos da socie-dade e do Estado: a tributária; a previdenciária; a do or-çamento e das contas do Estado; a do Poder Judiciário; ada separação entre o próprio Estado e as chamadas elites,concomitantemente à participação mais freqüente, com-petente e respeitada da sociedade civil em organismosestatais; e a do sistema de relações industriais. Este es-

forço é ditado, fundamentalmente, por necessidades e exi-gências cujas raízes se encontram nos longos anos de lutapela democratização, durante o período ditatorial e que,pelas contingências políticas de que se cercaram os pri-meiros governos civis, de 1984 em diante, ainda não sehavia podido levar devidamente em conta. Não pode seratribuído, portanto, de forma unilateral ou absoluta, a um“ajuste neoliberal”, seja o que for que isso signifique. Noentanto, as injunções que, para o Brasil, bem como paraos demais países em desenvolvimento, são apresentadaspelo processo de globalização da economia só podem serenfrentadas acelerando e aprofundando as mencionadasreformulações do aparelho estatal brasileiro, há tanto tem-po adiadas.

Note-se, a respeito disto, que a realidade internacionaltem sido interpretada e analisada, muitas vezes, por meiodo expediente que consiste em assinalar (nem sempre deforma rigorosa) a ocorrência de um fenômeno, supor quetenda a perdurar indefinidamente e, em seguida, a partirdo cenário assim obtido, discorrer sobre as catástrofes jáquase presentes e outras, ainda por vir. As possibilida-des, as contradições, os efeitos de ação e reação que po-dem ser desencadeados, as alternativas dos setores sociaise políticos atingidos, os cenários alternativos, e o estabe-lecimento de limites teóricos ou práticos para a progres-são das tendências não fazem parte deste tipo de análise.Esta maneira superficial de tratar o tema deixa um enor-me e interessante campo de pesquisa em aberto, à esperade que os avanços na internacionalização da economia eda política recebam a devida – e científica – atenção.O entendimento e o debate das questões relacionadas àsreformas do Estado seriam enormemente beneficiados.

PAPEL DAS ATUAIS RELAÇÕES DE TRABALHONO ESTADO BRASILEIRO

O panorama das relações industriais é o resultado dainércia e do conformismo generalizado que, em relação aelas, têm demonstrado sucessivos governos, líderes em-presariais e sindicais, legisladores e público em geral. Istotem beneficiado soluções improvisadas, medidas limita-das, quando não prejudiciais, e desconfiança, intransigên-cia e malogro nas negociações, com seus efeitos inevitá-veis sobre as condições de trabalho e o nível de emprego,sem falar do clima político resultante, desfavorável parao florescimento dos valores democráticos.

As duas maiores dificuldades para a reforma do Esta-do no Brasil são o apego de políticos dos três poderesa seus cargos, privilégios e possibilidades de tirar dosmesmos vantagens de toda sorte – legais ou não, éticasou não – e o apego de setores dos movimentos popularesa uma concepção paternalista de Estado e de política.

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Dela decorrem a idéia de que reformar o Estado será umaperda e não um ganho, a cultura de que tudo depende doEstado e de que o cidadão e a sociedade civil são impo-tentes, ou quase, sem a tutela do mesmo. A mudança ne-cessária para a realização da reforma do Estado deveráser também uma transformação dessa cultura.

A estruturação de uma sociedade civil mais articula-da, processo desenvolvido ao longo dos anos de lutas pelasliberdades democráticas e pela cidadania, parece ter-seinterrompido, senão mesmo regredido, nos últimos anos.Os sindicatos e a Igreja, antes sempre citados nos primei-ros lugares nas pesquisas sobre as instituições mais me-recedoras da confiança da população, hoje ocupam posi-ções menos invejáveis. Não há dúvida de que uma partedeste desgaste se deve a ataques e críticas desferidos apartir de posições políticas conservadoras. Mas há tam-bém uma parte que é resultado de uma certa acomodaçãocom os espaços conquistados, de atitudes inconseqüentese superficiais muitas vezes assumidas pelos movimentospopulares e sindicais.

Especialmente no caso destes últimos, qualquer con-templação com a estrutura sindical e de relações indus-triais ainda vigente, qualquer hesitação ou recuo na dis-posição de contribuir, com habilidade e persistência, paraa conquista da liberdade e da autonomia das organizaçõesdos trabalhadores, tende a tornar-se fator de desgaste ede perda de audiência e de credibilidade. E isto não poralguma razão metafísica ou esotérica, mas porque a es-trutura amolece e corrompe lentamente os sindicalistasmais bem intencionados e mais dispostos à luta, atravésdo leque de vantagens e facilidades que oferece de mãobeijada: fluxo financeiro constante das contribuições obri-gatórias; garantia de prédios com instalações confortáveis;carros do sindicato; diárias; viagens; acesso aos meios decomunicação; possibilidades de acesso a outras carreiras(política, funcionalismo público); garantia quase totalcontra a concorrência de novos quadros, propiciada pelaproibição de organização nos locais de trabalho.

É de grande pertinência a observação de Keller(1995:78): “As experiências da Nova República com apromoção de políticas negociadas fracassaram e, com elas,as expectativas de uma relação nova entre Estado, sindi-cato e empresariado. Isso contribuiu para o fracasso dosprogramas de estabilização econômica e da estratégiagovernamental de reforma do sistema de proteção socialencaminhada no início da Nova República.”

Democracia e anticorporativismo deveriam andar demãos dadas, embora isto seja praticamente inédito noBrasil – et pour cause. A questão não é apenas se as re-formas políticas, realizadas por um governo que dispo-nha de maioria no Congresso, podem determinar a quali-dade e as possibilidades de avanços nas relações de

trabalho. A questão é que a mudança nas relações de tra-balho talvez seja a condição e a garantia para que as re-formas políticas em pauta possam ser aprovadas, reves-tir-se realmente de características modernizantes edemocráticas e gerar um processo auto-sustentável dereforço da participação organizada da sociedade civil napolítica que, a longo prazo, é a única garantia de preser-vação da democracia.

MUDANÇAS EM PAUTANAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Um inventário das possibilidades de mudanças nas re-lações industriais brasileiras, cuja discussão tem sentido,inclui algumas perspectivas que se encontram abandona-das, mas continuam importantes, ao menos para lançarluz sobre a nossa realidade atual e as atuações dos princi-pais interessados.

O caso mais notável é o da Câmara Setorial do SetorAutomotivo, que culminou no Acordo de Brasília, fatorde estabelecimento de novidades importantes nas nego-ciações – tanto no âmbito das categorias metalúrgicasenvolvidas, em São Paulo, como no das principais em-presas do setor – de recuperação da indústria auto-mobilística nacional, então imersa em uma das maiorescrises de sua história, e de recuperação da própria econo-mia nacional, através da “locomotiva” automobilística.O ano de 1992 foi ponto de inflexão na conjunturaeconômica.

Apesar disso, a experiência foi atacada por tecnocra-tas do governo incomodados com a ocorrência de algoexterno aos seus conceitos neoclássicos e a seu controle,por sindicalistas temerosos de uma fuga da rotina, queexigia flexibilidade, estudo e competência, e por empre-sários inquietos com a perspectiva de negociações trans-parentes. Nessas condições, novas tentativas só poderãoocorrer quando o governo assumir a responsabilidade quelhe cabe, de coordenador e incentivador de experiênciasanálogas. Mas isto só teria sentido se estivesse interessa-do em elaborar uma política industrial séria, o que impli-caria contar com a colaboração ativa de empresários esindicatos, e que, infelizmente, não é o caso.

Zylberstajn (1992) mostrou que, cumpridos os pressu-postos da estabilização econômica e do estabelecimentode mercados competitivos, a construção de um modeloavançado de relações de trabalho ficaria dependendo dese estabelecer a preponderância da negociação coletivapara a determinação de salários e condições de trabalho.

Este novo modelo brasileiro de relações de trabalho,para que houvesse mudanças na estrutura sindical e, maisainda, para que estas mudanças favorecessem o desen-volvimento de uma cultura democrática, participativa,

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responsável e realista entre os envolvidos, compreende-ria os seguintes aspectos:- estrutura sindical: envolve a opção entre a atual unici-dade imposta por lei e a liberdade sindical;

- garantias sindicais: do dirigente sindical, das coletas paraos fundos dos sindicatos (supõe-se o fim das contribui-ções obrigatórias), do eventual pluralismo sindical;

- representação dos trabalhadores nos locais de trabalho:conditio sine qua non, segundo a Organização Interna-cional do Trabalho, para que exista liberdade sindical.Contatos costumeiros entre as partes nas empresas, sur-gimento da confiança e do respeito assim construídos emodificação da visão sindical e de suas relações com abase. Certamente, a definição de seu papel e de suas atri-buições exigirá complexas negociações com as empresas,bem como com os atuais sindicatos de categoria profis-sional, muitos dos quais não vêem com bons olhos a con-corrência que teriam que enfrentar e a necessidade de de-senvolver novas competências;

- estrutura da negociação coletiva: grau de centralização,calendário (datas-base ou não). Democracia (e/ou demo-cratização) das instâncias. As realidades setoriais e em-presariais. A maior transparência das empresas e a maiorresponsabilidade dos trabalhadores. Maior legitimidadedas representações e dos representantes;

- garantias da negociação e mecanismos de resolução deimpasses: regras do jogo, transparência, mediação e arbi-tragem, greve;

- contrato coletivo, controle do emprego e demissão:como compartilhar decisões sobre a alocação da mão-de-obra;

- negociação e flexibilização: desenvolvimento da capa-cidade de negociação e da confiança dos e entre os nego-ciadores; pautas mais abertas e mais ágeis;

- negociação coletiva no setor público: direito de organi-zação e de negociação, estabelecimento de regras apro-priadas à especificidade do setor;

- transição: autonomia das partes e regras temporárias.

EPPUR SI MUOVE(MUDANÇAS INESPERADAS JÁ ACONTECIDAS)

Apesar de tudo o que foi dito, a inércia do sistema nãoé perfeita. Algumas novidades importantes estão afetan-do a sua pétrea estabilidade, provindas de diferentes e, àsvezes, inesperadas latitudes.

A mais significativa foi a Medida Provisória que regu-lou a participação dos trabalhadores nos resultados dasempresas e que irá, aos poucos, revelando o seu enormepotencial transformador. A discussão por ela propiciada

exige que, pela primeira vez, as empresas apresentem seusresultados com lisura e objetividade. Exigirá, também, queos trabalhadores – e os sindicatos, se quiserem participardo debate – preparem-se e adquiram competência técni-ca. Remete a negociação – e, indiretamente, a organiza-ção dos trabalhadores – para o nível das empresas. Tendea criar novos hábitos e posturas de negociação, fundadosem dados objetivos, bem como a reforçar os aspectoscomuns dos interesses da empresa e dos trabalhadores.

Outra inovação importante foi a possibilidade de arbi-tragem entre as partes. Embora a redação tenha sido equi-vocada – caberia, na verdade, falar da possibilidade demediação –, o caminho está aberto para a busca de meca-nismos de superação de impasses escolhidos livrementee de comum acordo entre as partes.

Uma terceira mudança, provavelmente de efeito retar-dado, mas profundo, decorre da decisão do Supremo Tri-bunal Federal, acolhendo representação do Sindicato dosUsineiros de Pernambuco, de anular a concessão de umacláusula de elevação das porcentagens pagas por horas-extras de trabalho, concedida por instância inferior, sobo argumento de que não compete à Justiça criar direitos,função precípua do Legislativo.

Como práticas deste tipo eram relativamente comuns,a decisão tende a eliminar um dos principais estímulosque tinham os sindicatos para recorrer à Justiça trabalhis-ta e, conseqüentemente, a conduzi-los, com maior com-petência e seriedade, à mesa de negociações. Eis o direito(e o Direito) escrito por linhas tortas.

Mais recentemente, em dezembro de 1996, o TribunalSuperior do Trabalho proibiu que a “contribuição confe-derativa”, agregada pela Constituição de 1988 às previa-mente existentes, com as quais se procurava acabar, sejacobrada de trabalhadores não-filiados aos sindicatos, semque uma assembléia vote e aprove essa cobrança. Istosignifica que o cerco aos sindicatos sem representativi-dade está chegando ao ponto crítico e estratégico: o cai-xa. Esta situação está levando as Centrais Sindicais a es-tudar propostas para estabelecer o fim das contribuiçõesobrigatórias num período a ser determinado (Azevedo,1997:48-49).

Por positivas e importantes que sejam, as mudançasassinaladas refletem, ao mesmo tempo, a resistência danossa sociedade em promovê-las ampla, clara e sistema-ticamente. Testemunham, igualmente, de sua inevitabili-dade, ou da impossibilidade de bloqueá-las completamen-te. Os problemas e fenômenos estão imersos na história,as ações e omissões dos setores sociais têm conseqüên-cias, e não é possível agir como se todas as possibilida-des permanecessem para sempre abertas, num eterno re-começo. As questões colocadas pela realidade provocamrespostas e reações dos atores sociais, e estas modificam

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RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL: HORA DE MUDAR?

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a situação. Aqueles que se abstêm de reagir, perdem ainiciativa e têm de adaptar-se a fatos novos.

O enfraquecimento da capacidade de negociação dossindicatos, na estrutura vigente e na conjuntura desfavo-rável aos trabalhadores pela qual se está atravessando,revela as dificuldades da negociação por categoria pro-fissional numa situação em que a diferenciação por em-presa acentua-se. A imprensa noticiou a disposição donegociador do grupo de empresas de máquinas e eletro-eletrônicos de iniciar, no Brasil, a chamada concessionbargaining, na qual não se discute que novas reivindica-ções sindicais serão atendidas pelas empresas, mas sim,de que cláusulas anteriormente conquistadas os trabalha-dores abrirão mão (O Estado de S.Paulo, 25/10/1996).

RESPONSABILIDADES, PROPOSTASE PERSPECTIVAS

A própria enumeração das possíveis – necessárias eprofundas – transformações colocadas sugere que a criseque vivemos atualmente é, antes de tudo, crise de partici-pação popular na política. Os fatores deste deslocamen-to, depois dos anos de ascensão do movimento popularque vivemos de 1978 a 1988, são, de um lado, o própriosucesso: as conquistas satisfazem determinadas necessi-dades e, em certa medida, desmobilizam aqueles que porelas lutaram; e, de outro, os fracassos: o que não se pôdeconseguir pode parecer irrealizável ou utópico, surgemas divisões entre as explicações sobre as causas do fra-casso, e os movimentos enfraquecem-se ou esvaziam-se,desaparecendo ou deixando espaço ainda maior para asmanipulações e as instrumentalizações de grupos, tendên-cias e partidos.

A conjuntura tem sido tão desfavorável aos sindicatosque já se coloca em dúvida a sua validade como repre-sentantes dos trabalhadores, a sua capacidade de mobili-zação e de manutenção ou obtenção de conquistas, e asua função na sociedade.

A resposta a esta questão pode estar relacionada à com-preensão de que novos níveis de desenvolvimento do ca-pital requerem novos níveis de participação dos trabalha-dores. O Japão antecipou esta realidade, forçado pelascondições em que se encontrava ao fim da guerra. O ca-pitalismo sempre foi um regime de colaboração antagô-nica entre trabalho e capital; as formas da mesma é quevariam. Todo sindicato é, por definição, um colaboradorantagônico das empresas e do capital. A revolução socia-lista visaria acabar com a subordinação formal e com areal do trabalho ao capital e, nesse contexto, não haveriasentido em discutir as condições de compra e venda daforça de trabalho. Tratar-se-ia de eliminar a situação demercadoria em que foi colocada a força de trabalho, de

fazer dela um puro – e socializado – valor de uso, e nãomais um valor de troca. Os sindicatos só se desenvolve-ram, animados ou não por teorias e ideologias socialis-tas, nos países capitalistas e democráticos. Nos países dosocialismo real, seriam “correias de transmissão” do par-tido leninista e, estando os trabalhadores oficialmente nopoder, a greve seria um ataque ao poder operário, portan-to, ato reacionário, a serviço do imperialismo ou coisa pior.Passados tantos anos da Queda do Muro, ainda não foipossível tomar conhecimento das contribuições destespaíses e doutrinas para as Relações Industriais. Houve asubordinação real – ainda que nem sempre haja existidoa coragem de torná-la formal – do trabalho ao Estado ouao Partido Único.

No “socialismo real”, o “apoio” do Estado aos sindi-catos tinha seu preço, em autonomia, ideologia e âmbitosdas campanhas, das lutas e da solidariedade. “Numa socie-dade industrial submetida à escassez de recursos alguémtem que desempenhar a função gerencial, e, quando issoacontece, alguém ou algum grupo irá desempenhar a fun-ção sindical. Mais ainda, mesmo que gerência e sindicatodiscordem sobre suas respectivas partes, há, apesar detudo, uma interdependência essencial sobre a qual ambosos lados têm que chegar a um acordo” (Barbash, ix).

As questões contraditórias é que precisam, podem edevem ser negociadas, embora nunca resolvidas de umavez por todas. É o aprendizado de uma convivência per-manente, num ambiente mutável, que gera a consciênciados interesses, a capacidade de negociar e a cultura de-mocrática: já não há sonhos de aniquilar o outro de umavez por todas, mas a consciência da necessidade de con-viver, colaborando com ele no horizonte temporal visí-vel. Como um dos pólos, ou como a forma de representa-ção organizada de um dos pólos desta dualidade daprodução industrial, os sindicatos não correm o risco dedesaparecer, mas suas formas, âmbitos, objetivos e mé-todos devem, naturalmente, transformarem-se para con-tinuarem desempenhando seu papel, em novas condições.

Na fase atual do processo de internacionalização, amaior amplitude do panorama realça a diversidade deestágios e níveis de desenvolvimento da produção capi-talista, do assalariamento do trabalho e da conquista dedireitos pelos trabalhadores. Discussões de dumping so-cial só adquirem sentido neste contexto: qual é a solida-riedade internacional da classe trabalhadora? Quais sãoos pontos estratégicos da negociação, ou antes: qual é(deve ser) a estratégia internacional, ou ao menos nacio-nal, dos sindicatos e da classe trabalhadora?

Como observa Leôncio Martins Rodrigues (Azevedo,1997:50), “a globalização obriga os sindicatos a levar emconta os efeitos de suas demandas sobre os níveis deemprego, a se preocupar com a saúde das empresas: fase

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do sindicalismo de cooperação conflitiva. A ação patro-nal em direção ao esmagamento dos sindicatos tem cus-tos muito altos. Os requisitos da produção com qualidadetotal requerem participação dos empregados”.

No Brasil, tem-se uma estrutura sindical de inspiraçãofascistóide vigorando há mais de meio século, e ainda hádúvidas e hesitações sobre a necessidade ou a conveniên-cia de sua mudança, confundida, freqüentemente, com oseu fim – ou o dos sindicatos. Quando surgiram das lutasdos trabalhadores, os sindicatos nunca o fizeram de for-ma indolor, incruenta, sem sangue, suor e lágrimas. Quan-do foram criados por decreto de um Estado paternalista eautoritário que se pretendia o cérebro de um corpo desajei-tado, e “agraciados” com renda garantida e tutela perma-nente, gerando a estranha tese da “hiposuficiência” dos tra-balhadores e de suas organizações, tornaram-se timoratose dependentes do Estado, provedor de chuva e de sol.

Por outro lado, parece haver um açodamento em en-curralar os trabalhadores de maneira oportunista, em apro-veitar a sua fraqueza conjuntural para impor-lhes condi-ções mais desfavoráveis, mas o resultado disto, nomáximo, será um lucro provisório para alguns empresá-rios “espertos”. De atitudes assim, não resulta nada defavorável ou de progressivo para a economia, as relaçõesde trabalho, nem muito menos para as condições de vidae de trabalho da população, objetivo primeiro e último dequalquer política democrática.

Volta-se, assim, ao tema da solidariedade, da fraterni-dade, e da responsabilidade como valores sociais que de-vem ser claramente e expressamente assumidos ou rejei-tados, com fundamentação.

O problema de algumas, ou de várias, das políticas dogoverno é que constituem uma mescla irregular de legíti-ma e real preocupação com as reformas necessárias doEstado e de preconceitos e oportunismos anti-sindicais,antitrabalhador e favoráveis ao lucro fácil e despreocu-pado, na velha tradição brasileira. Ora, isto é justamenteo oposto do que devem ser os objetivos da Reforma doEstado.

Na verdade, a situação das relações de trabalho, comomuitos outros pontos de fundamental importância para aevolução democrática da sociedade já foi prejudicada pelasérie de erros e derrotas que, por ingenuidade, oportunis-mo e imediatismo, foram-se acumulando neste ainda bre-ve período democrático que tanta luta custou.

Com a globalização, o caminho que consiste em livrarum combate de retaguarda, procurando, em cada caso,resistir às pressões para reduzir certas conquistas e direi-tos, parece condenado (embora não seja inútil), a longoprazo. Parece necessário pensar-se numa espécie de “fugapara a frente”, projetando os efeitos dessas reduções parao futuro e procurando garantia internacional de direitossindicais e democráticos, colaboração internacional en-tre os sindicatos, combate à fome e à miséria. O perigo dese cair numa visão interessada e imediatista das reformasvem da composição e do isolamento sociais de quem estádirigindo o processo, em termos de origem e pertinênciasocial e ideológica.

Os trabalhadores e as organizações democráticas de-vem assumir a liderança das reformas, em vez de a elasse oporem. Assim, estarão em condições de moldá-lassegundo os interesses sociais mais gerais – de que devemser portadores, se querem aspirar a alguma possibilidadede liderança e atuação efetivas. A conjuntura mundial enacional são desfavoráveis, mas é nesse tipo de situaçãoque se forjam os espíritos para os grandes desafios e asgrandes atuações.

NOTA

1. Diretor técnico do Dieese, em palestra no Seminário “Reestruturação Produti-va e Reconversão Profissional”, promovido pela Sert e pelo Seade, em 17 dedezembro de 1996.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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QUESTÃO SOCIAL: AFINAL, DO QUE SE TRATA?

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QUESTÃO SOCIALafinal, do que se trata?

pergunta do título não é retórica. Tampouco, tri-vial. Pois a questão social não se reduz ao reco-nhecimento da realidade bruta da pobreza e da

miséria. Para colocar nos termos de Castel (1995), a ques-tão social é a aporia das sociedades modernas que põeem foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica domercado e a dinâmica societária, entre a exigência éticados direitos e os imperativos de eficácia da economia, entrea ordem legal que promete igualdade e a realidade dasdesigualdades e exclusões tramada na dinâmica das rela-ções de poder e dominação. Aporia que, nos tempos quecorrem, diz respeito também à disjunção entre as espe-ranças de um mundo que valha a pena ser vivido inscritasnas reivindicações por direitos e o bloqueio de perspecti-vas de futuro para maiorias atingidas por uma moderni-zação selvagem que desestrutura formas de vida e faz davulnerabilidade e da precariedade formas de existênciaque tendem a se cristalizar como único destino possível.

Vista dessa perspectiva, a questão social é o ângulo peloqual as sociedades podem ser descritas, lidas, problemati-zadas em sua história, seus dilemas e suas perspectivas defuturo. Discutir a questão social significa um modo de seproblematizar alguns dos dilemas cruciais do cenário con-temporâneo: a crise dos modelos conhecidos de welfarestate (que nunca se realizou, é bom lembrar), que reabre oproblema da justiça social, redefine o papel do Estado e osentido mesmo da responsabilidade pública; as novas cli-vagens e diferenciações produzidas pela reestruturaçãoprodutiva e que desafiam a agenda clássica de universali-zação de direitos; o esgotamento do chamado modo for-dista de regulação do mercado de trabalho e que, nas figu-ras atuais do desemprego e trabalho precário, indica umaredefinição do lugar do trabalho (não a perda de sua cen-

tralidade, como se diz correntemente) na dinâmica socie-tária, afetando sociabilidades, identidades, modos de exis-tência e também formas de representação.

Seria possível dizer que, nessa encruzilhada de alter-nativas incertas em que estamos colocados, as mudançasem curso (no Brasil e no mundo) fazem vir à tona a di-mensão dilemática envolvida na questão social. Com oesgotamento dos modelos conhecidos de proteção sociale regulação do trabalho, é como se estivessem sendoreativados os sentidos das aporias, contradições, tensõese conflitos que estiveram nas origens dessa história. Essaé uma primeira questão que gostaríamos de enfatizar. Nes-ses tempos em que um determinismo econômico e tecno-lógico está mais do que nunca revigorado, ganhando es-paço até mesmo entre os analistas mais críticos, seriapreciso se desvencilhar do fetiche dos modelos e reativaro sentido político corporificado em armaduras institucio-nais nas quais se estabeleceram as mediações entre omundo do trabalho e a cidadania. Sentido político anco-rado na temporalidade própria dos conflitos através dosquais os trabalhadores se destacaram e, ao mesmo tempo,dissolveram o mundo indiferenciado da pobreza na qualestavam mergulhados, constituíram-se como atores cole-tivos, ganharam a cena pública e disputaram, negociaram,arbitraram os termos de sua participação na vida social.

Sabemos que os tempos agora são outros, que as con-quistas sociais alcançadas estão sendo devastadas pelaavalanche neoliberal no mundo inteiro, que a destituiçãodos direitos também significa a erosão das mediaçõespolíticas entre o mundo do trabalho e as esferas públicase que estas, por isso mesmo, se descaracterizam comoesferas de explicitação de conflitos e dissensos, de repre-sentação e negociação (coisa, aliás, que não acontece

A

VERA DA SILVA TELLES

Professora do Departamento de Sociologia da USP, Pesquisadora do Núcleo de Estudos dos Direitos da Cidadania

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assim de repente, mas que carrega as complicações histó-ricas dos últimos tempos); e que é por via dessa destitui-ção e dessa erosão dos direitos e das esferas de represen-tação que se constrói esse consenso – que nos dias quecorrem, ganha corações e mentes – de que o mercado é oúnico e exclusivo princípio estruturador da sociedade eda política, que diante de seus imperativos nada há a fa-zer a não ser administrar tecnicamente suas exigências,que a sociedade deve a ele se ajustar e que os indivíduos,agora desvencilhados das proteções tutelares dos direi-tos, podem finalmente provar suas energias e capacida-des empreendedoras.

Sabemos também que, no caso brasileiro, os caminhoshistoricamente percorridos estão a mil anos luz de dis-tância disso que se convencionou chamar, nos países eu-ropeus, de “Trinta Gloriosos Anos”; que a reestruturaçãoprodutiva em curso e os arranjos neoliberais hoje propostosincidem sobre uma base histórica muito distinta da societésalariale de que fala Castel ao descrever as dimensõessocietárias e políticas do chamado modo de regulaçãofordista ou, em outras formulações teóricas, modo de re-gulação social-democrata. Mas se a história passada im-porta, não é tanto para comparar modelos e lamentar (maisuma vez) a nossa tragédia social. Se essa história podenos ensinar algo é porque nos permite ver que, em tornoda questão social, essa aporia das sociedades modernasarma (ou melhor, armou historicamente) uma cena polí-tica na qual atores coletivos em conflito negociaram ostermos do contrato social.

Como diz Ewald (1985), mais do que uma ficção jurí-dica e um constructo teórico, o contrato é a metáfora pelaqual, na nossa tradição política (ocidental), se pensa anatureza e o conteúdo das obrigações sociais. E se o di-reito é a linguagem pela qual a metáfora do contrato seexpressa, o que está em jogo na sua formulação é um cer-to modo de problematizar e julgar os dramas da existên-cia nas suas exigências de eqüidade e justiça, de tipificara ordem de suas causalidades e definir as responsabilida-des envolvidas. E é isso propriamente que arma uma cenapolítica na qual os critérios universais da cidadania se sin-gularizam, no registro do conflito e do dissenso, em tor-no de uma negociação sempre difícil e sempre renovadaquanto à medida de igualdade e à regra de justiça quedevem prevalecer nas relações sociais. É nessa chave que,talvez, possamos, para além da denúncia indignada dabarbárie atual, avaliar o sentido devastador da desmonta-gem das esferas públicas de ação e representação, pelaobstrução que isso significa da elaboração das desigual-dades e diferenças nas formas de alteridades políticas, de“sujeitos falantes”, como define Rancière (1995), que sepronunciam sobre o justo e o injusto, e negociam as re-gras da vida em sociedade.

É por referência a essas questões que a pergunta ini-cial pode ser recolocada na indagação sobre qual seria olugar da questão social no cenário político brasileiro. Sea pobreza brasileira é (e sempre foi) espantosa e continuaaumentando sob o efeito conjugado de recessão econô-mica, reestruturação produtiva e desmantelamento dosserviços públicos, o que impressiona é o modo como éfigurada – como problema que não diz respeito aos parâ-metros que regem a vida em sociedade e que não colocaem questão as regras de eqüidade e justiça nas relaçõessociais. Hoje, no Brasil, nossa velha e persistente pobre-za ganha contemporaneidade e ares de modernidade porconta dos novos excluídos pela reestruturação produtiva.Mas não só por isso: lançando mão dessa ficção regressi-va do mercado auto-regulável que Polanyi (1980) tão bemcriticou, nossas elites podem ficar satisfeitas com sua “mo-dernidade” e dizer, candidamente, que a pobreza é lamen-tável, porém inevitável dados os imperativos da moder-nização tecnológica em uma economia globalizada. Entreos “resíduos” do atraso de tempos passados e as determi-nações da moderna economia integrada nos circuitos glo-balizados da economia, a pobreza é projetada para forade uma esfera propriamente política de deliberação, já quepertinente às supostas leis inescapáveis da economia.

Se a questão social é a aporia das sociedades moder-nas, é ela que nos dá uma chave para compreender essaespécie de esquizofrenia de que padece a sociedade bra-sileira, nas imagens fraturadas de si própria, entre uma“sociedade organizada” que promete modernidade e seuretrato em negativo feito de anomia, violência e atraso;entre a celebração das virtudes modernizadoras do mer-cado e dessa espécie de ethos empreendedor que prometenos tirar para sempre da tacanhice própria dos países pe-riféricos e o “social” projetado em uma esfera que escapaà ação responsável porque inteiramente dependente des-sa versão moderna das leis da natureza hoje associadas àeconomia e seus imperativos de crescimento. Essa fratu-ra traduz na verdade os aspectos mais dilemáticos da ex-clusão na sociedade brasileira. E é o que vem se expres-sando, sem ambivalências, nas propostas em pauta dereforma da Previdência Social. Além de fragilizar a si-tuação social (já precária) dos trabalhadores do mercadoformal de trabalho, não promete mais do que sacramen-tar a exclusão de uma maioria que, desde sempre, estevefora de qualquer sistema de proteção social – em 1990,estimava-se que entre o desemprego e o trabalho precá-rio no mercado informal, cerca de 52% da população ati-va estavam desprovidas de qualquer garantia e proteçãosocial (PNAD, 1990), formidável contingente de traba-lhadores que vem sido acrescido, nos últimos anos, dosnovos excluídos do mercado de trabalho por conta do efei-to conjugado de crise econômica e reestruturação produ-

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tiva. Fora dessa espécie de direito contratual que articulatrabalho e proteção social, é uma população excluída nãoapenas dos benefícios sociais, mas também da cena polí-tica. A controvérsia sobre a questão que tanto agitou oinício de 1996 é emblemática nesse sentido. As contur-badas negociações entre centrais sindicais e governo emtorno da reforma da Previdência tiveram ao menos o mé-rito de encenar o (não)lugar da questão social no cenáriopúblico brasileiro. Entre os argumentos cruzados a pro-pósito dos critérios de acesso aos benefícios sociais (tempode serviço versus tempo de contribuição) armou-se umacena política na qual os termos da negociação explicitavamexatamente essa fratura entre o que conta e é levado emconta como questão que diz respeito à deliberação e à ação,e o que está fora de um campo possível de intervenção.Fora das arenas organizadas da economia e da vida so-cial, o destino dessa gente parece, de uma vez por todas,estar na dependência das promessas redentoras de ummercado capaz de absorver os que para tanto tiverem com-petência e habilidade. Ou então das práticas (renovadas)da filantropia pública e privada para atender aqueles que,deserdados da sorte e incompetentes para exercer suas vir-tudes empreendedoras no mercado, estão fora do contra-to social.

Tudo isso respira os ares desses tempos de neolibera-lismo vitorioso, traduz a “ambiência social conservado-ra” (Oliveira, 1995) na qual as mudanças em curso estãosendo conduzidas e reatualiza uma pesada tradição dedesigualdades e exclusões. Mas ainda precisamos enten-der melhor a dinâmica societária a partir da qual se esta-belecem os parâmetros em torno dos quais a cena políticase arma. É uma cena política que expressa e ao mesmotempo duplica uma gramática social muito excludente quejoga muitos fora do poder de interpelação de sindicatos,partidos e associações de classe. E esse é, poderíamosdizer, o ponto cego da recente democracia brasileira: umasociedade civil restrita ou truncada, na qual as práticasde representação e negociação se generalizam com difi-culdades para além dos grupos mais organizados, jogan-do muitos, definitiva ou intermitentemente, numa situa-ção em que não há medidas através das quais necessidadese interesses possam ser formulados em termos de direi-tos, tornando factível a representação, a negociação e ainterlocução em espaços legitimados de conflito.

Essa é uma situação que parece corresponder ao queWanderley Guilherme dos Santos (1993) define como“confinamento regulatório da cidadania”. Mas, ao con-trário da suposição corrente de uma sociedade dualizadaentre “organizados” e “não-organizados”, essa fratura nãocorresponde a dois mundos dicotômicos, um avesso dooutro. É algo que se instaura no interior mesmo da socie-dade organizada, por conta do modo como esse universo

legal e institucional se organiza. Instituição que articulao mundo do trabalho com o universo público da cidada-nia. Os termos pelos quais essa articulação se faz é quepodem nos fornecer uma chave para elucidar algo da ló-gica das exclusões.

De um lado, às avessas dos critérios universalistas dacidadania, trata-se de direitos que, indexados ao trabalhoregular, contêm em sua própria definição o princípio queexclui um formidável e hoje crescente contingente de tra-balhadores que transitam entre o desemprego e as váriasformas de trabalho precário no assim chamado mercadoinformal, que não têm acesso às garantias sociais e queestão fora das arenas de representação sindical. De outrolado, e no que diz respeito ao mercado formal, os direitostrabalhistas se institucionalizaram como peça de um or-denamento jurídico, mas não se instituíram como valor,prática e referência normativa nas relações sociais, de talmodo que puderam conviver tão bem, ao longo da histó-ria, com um padrão autoritário e despótico de organiza-ção do processo produtivo e o uso espoliativo da força detrabalho. Nesse caso, o que se especifica é um modo deregulação das relações de trabalho subtraídas das formasde representação (fabril e sindical), obstruindo o proces-so que Le Goff (1985) descreve – “do silêncio à palavra”– de constituição dos grupos operários como atores cole-tivos portadores de uma palavra que desprivatiza a reali-dade fabril e titulares de direitos reconhecidos (e conquis-tados) como parâmetros de uma regulação democráticadas relações de trabalho, mediada pelas categorias uni-versais da cidadania. Se isso significa muito concretamentecondições espoliativas de trabalho e a burla rotineira dasnormas contratuais, é nas práticas recorrentes de demis-são que essa esfera organizada do trabalho se encontracom a outra ponta pela qual se faz presente, ainda viva,uma tradição regulatória, autoritária e excludente, maisde 50 anos após sua implementação.

Talvez aqui se aloje o aparente paradoxo de uma tra-dição de organização do trabalho, burocrática e monoló-gica, regida por uma espécie de fúria regulatória sobre arealidade fabril (Paoli, 1994), mas que desorganiza o tem-po todo o mundo do trabalho, por via de reiterada obstru-ção das mediações pelas quais o vínculo do trabalho podese estabelecer – mediações que não estão na ordem deuma suposta compulsão cega das leis do mercado, masque são construções e artifícios civis, jurídicos, políticosque definem os limites sem os quais o mercado segueimplacável na sua lógica predatória e espoliativa. Pararetomar os termos da discussão do início desse artigo, éaqui que se abrem as aporias das sociedades modernas.E para colocar de modo menos metafórico e mais coladona dura realidade da lógica do mercado capitalista, é aquique se definem as dimensões societárias e políticas do

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mercado de trabalho – questão discutida por Polanyi quan-do desmonta a ficção de mercado auto-regulável e que éretomada em outra chave teórica por Claus Offe (1989)ao mostrar que sem a mediação dos direitos (e das políti-cas sociais), o mercado de trabalho no limite não se cons-titui já que devorado pelas contradições da dinâmica ca-pitalista. O trabalhador, diz Offe, só se transforma em forçade trabalho quando se constitui como cidadão. A situa-ção brasileira é o retrato em negativo do “mercado orga-nizado”. E as figuras da exclusão que aí se processa sãoas “classes inacabadas”.

É certo que esse padrão de regulação estatal do merca-do de trabalho está perdendo vigência. É certo também –se bem que muitas vezes esquecido – que esse esgota-mento se iniciou muito antes da atual avalanche neolibe-ral, por conta da presença de um sindicalismo atuante que,desde os anos 80, vem acenando com a possibilidade deuma regulação democrática das relações de trabalho, porvia de práticas de negociação que retiram do Estado o atéentão exclusivo poder de arbitragem e definição das nor-mas trabalhistas (Paoli, 1994). Mas também é verdade quea tradição excludente na qual se ancora essa regulaçãoestatal é hoje reatualizada e revigorada nas propostas empauta de desregulamentação do trabalho. E é uma tradi-ção que se mantém operante e que cobra seus tributos emum mercado que ao mesmo tempo em que gera desigual-dades e pobreza crescentes, obstrui as possibilidades degeneralização de direitos – problema antigo e persistentee que hoje ganha configurações inéditas por conta dasnovas clivagens, diferenciações e segmentações produzi-das pela reestruturação produtiva em curso.

MERCADO DE TRABALHO: EROSÃO DEDIREITOS E FRAGMENTAÇÃO SOCIAL

É sob esse ângulo das difíceis, e hoje em dia mais doque nunca dilemáticas, relações entre o mundo do traba-lho e a cidadania, que gostaríamos de discutir algumasquestões pertinentes a um mercado que é e sempre foi,para colocar nos termos correntes da discussão, ummercado flexível. O que se segue toma como referênciaalgumas evidências do que vem ocorrendo no mercadode trabalho na Região Metropolitana de São Paulo, combase em dados da Pesquisa Emprego e Desemprego doSeade.

O que parece praticamente definidor da dinâmica deum mercado no qual estão ausentes os direitos como pa-râmetros reguladores das relações de trabalho – esse mer-cado flexível transparece na espantosa instabilidade ocu-pacional que atinge parcelas majoritárias da populaçãoativa. O tempo de permanência no emprego pode ser to-mado como indicador disso. Em 1994, na Região Metro-

politana de São Paulo, considerando-se apenas o merca-do privado, praticamente a metade da população ocupa-da estava em seus empregos há menos de dois anos(48,5%), dos quais expressivos 35% estavam há menosde um ano (Tabela 1). É preciso desde logo lembrar queesses dados ocultam enormes diferenciações e clivagensinternas ao mercado de trabalho: a precariedade intrínse-ca à própria atividade dos trabalhadores autônomos, muitofreqüentemente montada em uma extraordinária impro-visação para mobilizar recursos e aproveitar oportunida-des (sempre incertas, sempre descontínuas) no mercado;a trama das várias ilegalidades em meio a qual se estrutu-ram os segmentos do mercado no qual transitam os traba-lhadores sem carteira de trabalho; as práticas recorrentesde demissão no núcleo organizado da economia atingin-do sobretudo o pessoal mais desqualificado, que perma-nece, mesmo nas empresas mais modernas e hoje em pro-cesso de reestruturação, sujeito às formas antigas ourenovadas do velho e conhecido fordismo. É certo tam-bém que esses dados não dão conta da precarização quehoje se instala no núcleo duro da economia por conta dacrescente utilização de formas variadas de contrato tem-porário e subcontratação. Mas esses dados indicam a or-dem de grandeza dessa instabilidade que atravessa todo omercado de trabalho e é nisso, precisamente, que dizemalguma coisa quanto ao padrão de funcionamento de ummercado que opera e sempre operou com base nessa ex-traordinária fragilidade dos vínculos de trabalho.

Pode parecer uma tautologia dizer que esses trabalha-dores instáveis, com pouco tempo de permanência em seusempregos, são especialmente sujeitos ao desemprego.Afinal, o desemprego periódico é constitutivo da trajetó-ria errática desses trabalhadores no mercado de trabalho.

TABELA 1

Distribuição dos Ocupados, segundo Tempo dePermanência no Emprego Atual

Região Metropolitana de São Paulo – 1990-94Em porcentagem

Tempo de Ocupados (1)Permanência noEmprego Atual 1990 1991 1992 1993 1994

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Até Menos de 2 Anos 48,9 50,1 49,7 48,9 48,5

Até 1 Ano 34,8 36,1 35,0 34,9 35,1

1 a Menos de 2 Anos 14,1 14,0 14,7 14,0 13,4

2 a 4 Anos 22,8 21,3 21,3 22,4 21,9

5 a 9 Anos 13,1 13,8 14,4 14,6 15,4

10 Anos e Mais 14,6 14,2 14,1 13,8 13,8

Sem Declaração 0,6 0,5 0,5 0,3 0,3

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabula-ções especiais da autora.(1) Excluem os funcionários públicos.

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QUESTÃO SOCIAL: AFINAL, DO QUE SE TRATA?

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Mas isso deixa de ser uma trivialidade quando a referên-cia é a ordem de grandeza que os dados indicam. Emboraseja verdade que o desemprego dos últimos anos vem atin-gindo trabalhadores antes mais preservados em seus em-pregos, mais experientes e qualificados, e por mais que operfil da população desempregada tenha também se alte-rado ultimamente, o fato é que esses trabalhadores instá-veis compõem as parcelas majoritárias da população de-sempregada: em 1994, a taxa de desemprego entre opessoal com menos de dois anos de emprego chegava aconsideráveis 18,2% contra a média de 12,2% no con-junto dos desempregados com experiência anterior de tra-balho. Representavam, em 1994, 71% dos desemprega-dos, sendo que 57% não chegaram a ficar um ano em seusempregos anteriores (Tabela 2).

É essa transitividade entre o trabalho instável e o de-semprego que dá a medida da tragédia social engendradano mercado de trabalho: entre o desemprego e o trabalhoinstável, a vulnerabilidade no mercado de trabalho atin-gia, em 1994, cerca da metade da população economica-mente ativa. Como era de se esperar, essa é a situaçãoque praticamente tipifica os trabalhadores com menos de18 anos. E chega a atingir 70% dos trabalhadores jovens,entre 18 e 24 anos, e expressivos 45% dos trabalhadoresna faixa de 25 a 39 anos (Tabela 3). Essa vulnerabilidadeatravessa todo o mercado de trabalho, inclusive o núcleodinâmico da economia: na indústria, em 1994, entre odesemprego e o trabalho instável, essa vulnerabilidadeatingia metade da população ativa (49,9%), variando en-tre 43,4% nas indústrias químicas a 61,5% nas indústriastêxteis (Tabela 4).

É essa vulnerabilidade que gostaríamos de enfatizar.Mais do que a oposição entre mercado formal e informal,parece que é essa vulnerabilidade que pode nos dar umachave para elucidar como esse mercado opera, por via deum permanente e contínuo curto-circuito no vínculo queos trabalhadores chegam a estabelecer no mercado. Seriapossível dizer que nessa vulnerabilidade se aloja o “bura-co negro” que absorve, sorve e subtrai as energias políti-cas mobilizadas pela reivindicação de direitos e pelaspráticas de representação. Traduz trajetórias de trabalhoque escapam o tempo todo da trama de relações armadaentre a sociabilidade do cotidiano do trabalho, as práticasda representação sindical e a armadura institucional etambém jurídica por onde circulam demandas de direi-tos, se expressam litígios e conflitos e se definem os ter-mos de sua possível arbitragem. É como se houvesse, nosubsolo dessa institucionalidade que articula o mundo dotrabalho com o universo formal da cidadania, um movi-mento que subtrai permanentemente sua efetividade –efetividade que sempre foi muito restrita e limitada porconta do legado ainda vivo da tradição corporativa que

TABELA 2

Distribuição dos Desempregados com Experiência Anteriorde Trabalho e Taxas de Desemprego, segundo o Tempo de Permanência

no Emprego AnteriorRegião Metropolitana de São Paulo – 1990-1994

Em porcentagem

Desempregados

1990 1994

Distribuição Taxas Distribuição Taxas

Total 100,0 9,1 100,0 12,4Até Menos de 2 Anos 73,9 13,9 71,0 18,2

Até 1 Ano 57,5 15,1 53,5 18,91 a Menos de 2 Anos 16,4 10,8 17,4 16,2

2 a 4 Anos 16,4 6,7 17,9 10,65 a 9 Anos 5,5 3,8 6,8 5,610 Anos e Mais 3,0 1,8 3,8 3,1Sem Declaração 1,3 18,7 0,5 17,5

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabula-ções especiais da autora.

TABELA 3

Distribuição dos Desempregados e do Total de Ocupados, por FaixaEtária, segundo Tempo de Permanência no Emprego Atual

Região Metropolitana de São Paulo – 1994Em porcentagem

Faixa Etária

10 a 14 15 a 17 18 a 24 25 a 39 40 ou TotalAnos Anos Anos Anos Mais

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Desempregados 42,9 38,0 20,1 11,0 6,9 14,2Ocupados

Menos de 2 Anos 48,7 52 52,3 37,1 27,8 38,92 a 4 Anos 7,9 8,9 19,3 21,5 16,3 18,55 a 9 Anos 0,2 0,9 7,8 18,8 15,8 14,010 Anos ou Mais - - 0,4 11,4 32,7 14,1

Sem Declaração 0,2 0,2 0,1 0,3 0,5 0,3

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabula-ções especiais da autora.

TABELA 4

Distribuição da PEA Industrial, por Ramos Industriais,segundo Tempo de Permanência no Emprego Atual

Região Metropolitana de São Paulo – 1994

Em porcentagem

Ramos Industriais

Metal- Químicas, Farm. Têxteis, Outras TotalMecânica e Plásticos Vestuário Indústrias

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Desempregados 13,6 13,7 16,4 15,7 14,8Ocupados

Menos de 2 Anos 30,1 29,7 45,1 37,1 35,12 a 4 Anos 18,1 22,2 18,5 19,6 19,15 a 9 Anos 19,9 18,1 11,9 14,6 16,510 Anos ou Mais 18,3 16,2 7,9 12,9 14,4

Sem Declaração 0,1 0,1 0,2 0,2 0,1

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabula-ções especiais da autora.

Tempo de Permanênciano Emprego Anterior

PEA e Tempo dePermanência noEmprego Atual

PEA Industriale Tempo dePermanência noEmprego Atual

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historicamente regeu a organização do trabalho. Mas se-ria o caso de se perguntar até que ponto essa permanentee contínua erosão por baixo da sociabilidade do traba-lho não termina por repor uma ordem institucional regidapor uma lógica que obstrui a universalização dos direitose a generalização das práticas de representação. Essa nãoé, bem o sabemos, uma questão nova. É um dilema quesempre desafiou o sindicalismo mais atuante, mesmo emsuas fases mais gloriosas nos anos 80, mas que ganhanovas configurações no cenário atual de reestruturaçãoprodutiva.

Precarização das relações de trabalho, heterogeneida-de ocupacional redefinida através de uma variedade iné-dita de formas de contrato e situações de trabalho (incluí-da a “volta” do trabalho familiar) e desemprego de longaduração, tudo isso vem sendo debatido, medido, analisa-do e não seria o caso aqui de discutir a ordem de suascausalidades ancoradas nas mudanças em curso, conju-gando uma história de longa duração e os rumos de umamodernização selvagem que nos projeta no século XXIsem que se tenha ainda resolvido as tarefas clássicas deuma “modernidade incompleta” (igualdade e justiça so-cial). No entanto, gostaríamos de enfatizar algumas ques-tões que nos parecem importantes e que dizem respeito aum novo diagrama de desigualdades que desafia a agen-da clássica de universalização de direitos.

Os novos requerimentos tecnológicos e os novos pa-drões de organização do processo produtivo sobrepõemàs antigas e persistentes desigualdades uma segmentaçãocada vez maior entre setores crescentemente restritos detrabalhadores mais qualificados, mais valorizados e pre-servados em seus empregos, e uma maioria que não apre-senta as habilitações exigidas pelo novo padrão produti-vo, transitando entre o desemprego, o mercado informale as velhas e novas formas de trabalho precário. O queestá em jogo nesse processo é a quebra de uma estruturaocupacional que, mal ou bem, permitiu, durante décadas,a integração de amplos contingentes de uma força de tra-balho pouco ou nada qualificada, interrompendo um ci-clo histórico e de longa duração de mobilidade ocupacio-nal e social (Medeiros e Salm, 1994). Ainda será precisoconhecer melhor as conseqüências societárias de mudan-ças que estão retirando a eficácia de estratégias ocupa-cionais (e de vida) ancoradas na experiência de trabalhoacumulada no correr dos anos e em uma teia de sociabili-dade que sempre operou como mecanismo informal deentrada e circulação no mercado de trabalho, mobilizan-do informações, oportunidades e chances de emprego. Nãose está aqui querendo encontrar alguma virtude no padrãoanterior de funcionamento do mercado, mas chamar a aten-ção para o fato de que o bloqueio dessa espécie de circu-lação (circulação precária, por certo) no mercado de tra-

balho redefine por inteiro o sentido da instabilidade ocu-pacional de que se tratou anteriormente.

É certo que nos últimos anos tem crescido relativamentea presença de trabalhadores mais estáveis, com cinco anove anos em seus empregos (de 13%, em 1990, a 15,4%,em 1994). Mas também é certo que essa maior estabiliza-ção é muito seletiva e responde aos novos e excludentescritérios pelos quais vêm se dando a reestruturação pro-dutiva, a redefinição dos modos de organização do traba-lho e de suas hierarquias internas. No limite, essa maior(e relativa) estabilização, longe de poder ser tomada emsi como um indicador positivo, tende a cristalizar segmen-tações e desigualdades em meio a um mercado estrutura-do entre enclaves de “modernidade” e uma maioria comchances cada vez mais reduzidas no mercado de traba-lho, transitando entre o desemprego, o emprego instável,e as velhas e novas formas de trabalho precário. Parececlaro que essa segmentação significa um aumento cres-cente das desigualdades e disparidades salariais. Mas nãoapenas isso: como vários analistas têm enfatizado, essassegmentações se traduzem também em diferenças de pa-drões de consumo e estilos de vida, abrindo um fosso quaseintransponível entre o “universo da pobreza”, por ondecirculam e no qual estão fixados contingentes crescentesde trabalhadores, e os que se integram nos circuitos mo-dernizados do mercado e também da vida urbana, quemanipulam “essas coisas modernas, de computador” comodiz um jovem trabalhador ao relatar, desalentado, a difi-culdade, para ele quase intransponível, de entrar nessemoderno mercado de trabalho.

Essas diferenciações e segmentações não podem sertomadas como a tradução direta, sem mediações, das es-truturas produtivas, mas antes como a contraface de umadestituição de direitos que hoje avança por todo o merca-do de trabalho, atingindo o núcleo dinâmico da econo-mia. Trata-se de uma destituição – e isso talvez tenhamosque entender melhor – que, ao mesmo tempo em que gerafragmentação e exclusão, ocorre em um cenário de enco-lhimento do horizonte de legitimidade dos direitos sociais.1

Ainda será preciso conhecer melhor até que ponto e porque vias essa extraordinária mutação dos significados dosdireitos que vem nas trilhas da onda neoliberal (no Brasile no mundo), agora apresentados como ônus, custos eanacronismos que entravam a suposta vocação moderni-zadora do mercado e as virtudes empreendedoras dos in-divíduos, afetam ou vem afetando a sociabilidade do tra-balho. Trata-se de uma mutação que se inscreve, em estadoprático, no modo como a reestruturação produtiva vemse dando e como as segmentações se cristalizam no mer-cado de trabalho.

Como bem descrevem Medeiros e Salm (1994), as novassegmentações e dualizações vêm se processando em um

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Talvez o mais importante – e também o mais inquie-tante – é que essas segmentações se instalam no interiordos processos produtivos através de uma teia de diferen-ciações que minam os espaços operários tradicionais.Como as pesquisas vêm mostrando, há no interior de ummesmo espaço produtivo a combinação de formas mo-dernas de gestão do trabalho regidas pelos critérios da“participação”, “envolvimento” e comprometimento ati-vo com os imperativos de qualidade e produtividade, e apersistência, mesmo que renovada e redefinida no inte-rior das novas hierarquias ocupacionais, dos padrões for-distas de trabalho em que prevalecem as más condiçõesde trabalho, a insegurança dos empregos, os despotismosde sempre mesmo que temperados pelos novos ares “par-ticipacionistas” e – esse é o ponto a ser enfatizado – aexclusão dos benefícios e garantias que os trabalhadoresintegrados nos núcleos modernizados da produção nego-ciam como recompensa de seu próprio empenho na pro-dução. Se é possível dizer, com Le Goff, que os direitossignificam (ao menos em princípio, princípio nunca in-teiramente realizado e muito menos na experiência brasi-leira) uma regulação das relações de trabalho não sujeitaaos imperativos instrumentais da economia, mas regidapelo imperativo ético de justiça e igualdade, se é nessestermos que a reivindicação por direitos atualiza, ao me-nos virtualmente, a vocação universalista da cidadania,estas práticas significam – ou podem significar – uma des-figuração da noção e da prática dos direitos através desua instrumentalização pela racionalidade econômica domercado, submetendo-os aos seus imperativos de eficá-cia e produtividade. Isso afeta as concepções e represen-tações sobre o social e os direitos a ele indexados, e tam-bém a prática e as condições do exercício da cidadania.Para os que têm a sorte de se manter integrados e (relati-vamente) preservados em seus empregos, as garantiasnegociadas deixam de ser conjugadas na gramática dacidadania e passam a ser percebidas sob um modo deri-vado do crescimento das empresas e das competênciasindividuais para o “envolvimento” e “comprometimen-to” com as exigências de qualidade e eficácia. Comomostram pesquisas recentes, essa mutação de significa-dos dos direitos e essa erosão dos espaços operários tra-dicionais é algo que vem se processando nos modos comoas novas tecnologias vêm sendo introduzidas, redefinin-do o espaço e a sociabilidade operárias através da pro-moção de relações individualizadas em hierarquias rede-finidas na organização do trabalho, com ênfase noscritérios do desempenho individual. Para os demais, su-jeitos à insegurança nos seus empregos, a noção de direi-tos perde qualquer sentido pela impossibilidade práticade seu exercício e por conta dessa espécie de descreden-ciamento que a própria condição de trabalho implica para

quadro marcado por um “hibridismo ocupacional” que re-mete às formas de regulação do mercado de trabalho e sedesdobra na fragmentação dos espaços de representação,introduzindo clivagens profundas entre parcelas cada vezmais restritas e reduzidas de trabalhadores que conseguemnegociar garantias e prerrogativas nos espaços do traba-lho e trabalhadores submetidos a relações de trabalho semqualquer mediação representativa, sujeitos, por isso mes-mo, à gestão unilateral da força de trabalho. É um quadrosocial no qual a vida sindical e as relações formais deassalariamento convivem com um universo fragmentadoe desestruturado em situações de trabalho incomensurá-veis nas suas especificidades, sem uma medida comumque só poderia ser construída pela mediação dos direitose dos espaços de representação. É nesse universo que cres-ce a precarização. Para os trabalhadores nele inseridos,“os sindicatos não existem, a lei funciona mal, a rotativi-dade é alta e a modernização é sinônimo de desempre-go”. Se isso aumenta o fosso entre segmentos diferenciadosdo mercado de trabalho, o hibridismo institucional isolaos setores mais modernos e compromete o poder de inter-pelação dos sindicatos para além das categorias profis-sionais mais organizadas e com maior tradição sindical.

No interior desse hibridismo institucional, as segmen-tações e diferenciações no mercado de trabalho se desdo-bram e se duplicam nos dilemas atuais das políticas so-ciais. Parcelas ponderáveis da população trabalhadoraintegrada no mercado formal já estão vinculadas a siste-mas privados de saúde, educação e aposentadoria. No quediz respeito ao acesso aos serviços de saúde na RegiãoMetropolitana de São Paulo, cerca de 45% da populaçãoocupada possuíam convênios médicos, proporção que, noentanto, oculta uma brutal e perversa diferenciação inter-na conforme níveis salariais e formas de integração nomercado de trabalho, mostrando com isso a lógica regres-siva do mercado, às avessas dos critérios universalizan-tes e redistributivos que os serviços sociais, em princí-pio, deveriam conter (Braglia, 1996). Como bem notaWilnês Henrique (1993), esse é um mecanismo perversoque solapa a construção de princípios de solidariedadesocial efetiva por conta de diferenciações de interesse con-forme a qualidade dos serviços e benefícios. Nesse cená-rio, os arranjos neoliberais ganham terreno, acenando coma perspectiva de uma privatização dos serviços públicosque, se efetivada, haverá de institucionalizar e sacramen-tar a segmentação da cidadania pela clivagem entre os quetêm acesso aos serviços fornecidos pelo mercado e aque-les que são destinados aos precários serviços públicosestatais, vistos cada vez mais como “coisa de pobre”, sig-no da incompetência ou fracasso daqueles que golpeadospelos azares do destino não puderam ou não souberamprovar suas virtudes empreendedoras no mercado.

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a barganha de garantias transfiguradas no registro de re-compensas, e não como direitos que devem valer paratodos.

Essa erosão dos espaços operários tradicionais se des-dobra nas práticas hoje cada vez mais freqüentes de ter-ceirização, subcontratação e trabalho temporário. Nessecaso, a realidade operária se fragmenta e se pulveriza aolongo dos circuitos de cadeias produtivas que transbor-dam as definições formais de categorias e jurisdição sin-dical, subvertendo por inteiro as relações entre trabalho erepresentação e estendendo como nunca esse enorme emultifacetado universo das “classes inacabadas”, por meioda mobilização de diversas formas de trabalho precário,incluindo na sua ponta até mesmo o antigo e hoje cres-cente trabalho familiar. E isso coloca várias questões.

Por um lado, a chamada flexibilização das normas con-tratuais – é disso que se trata – está significando, além dadegradação das condições de trabalho e deterioração depadrões salariais, uma segmentação jurídica que jogamuitos no pior dos mundos – um mundo no qual não exis-tem garantias (por definição precárias) do contrato de tra-balho regular, que se estrutura às margens das normaspactuadas e dos benefícios conquistados em acordos tra-balhistas e que se fragmenta na ausência de mecanismosestáveis de representação. Se é essa situação que fragmentao espaço operário tradicional, solapa referências identi-tárias, quebra a trama de solidariedades construídas emespaços de conflitos e representação, essa flexibilizaçãoelide a própria questão da justiça, ao menos tal como foiformulada na concepção moderna de direitos, medianteuma regulamentação do trabalho inteiramente subsumi-da aos critérios da racionalidade instrumental do mercado.

Por outro lado, essas situações também colocam ques-tões inteiramente novas. De um ponto de vista formal,podemos dizer que os direitos não significam apenas ga-rantias. Estruturam um campo de relações pela definição– e tipificação – de responsabilidades e obrigações; e ar-ticulam (ou se articulam com) uma esfera institucional naqual e pela qual é sempre possível, nos casos de litígios,de burla de normas contratuais ou de problemas referen-tes às condições de trabalho (acidentes de trabalho, porexemplo) proceder à imputação de responsabilidades,apelar às instâncias da Justiça e definir os termos de umapossível arbitragem. Se é assim, então a questão que secoloca é a erosão prática dos direitos em circunstânciasnas quais não está claro quem são os protagonistas, emque as responsabilidades não são definidas claramente eem que as esferas de deliberação estão descentradas e frag-mentadas numa rede produtiva que tende, ademais, se-guindo os fluxos da globalização, a ser cada vez maisdesterritorializada. Se a questão comentada anteriormen-te coloca o problema das relações entre trabalho e repre-

sentação, aqui a questão está nas relações de direito nointerior mesmo do processo produtivo.

Essas questões estão longe de se reduzirem a uma es-peculação abstrata. É algo que vem se colocando muitoconcretamente nessa teia de fragmentações em que seg-mentos crescentes de trabalhadores, integrados na estru-tura multifacetada por onde as cadeias produtivas se or-ganizam, “desaparecem” das categorias profissionais e dosquadros da representação sindical (Rizek e Silva, 1996).E também dos dados que medem o perfil e a composiçãodas categorias profissionais, o que inclui a nós, pesquisa-dores, que lançam mão de definições e categorias e esta-tísticas que, assim parece, já não correspondem inteira-mente às novas realidades.

É por esse ângulo que talvez se possa avaliar o sentidoda precarização e da fragmentação em curso na indústria.Para voltar à objetividade (que nesses tempos perdeu muitode sua anterior certeza) dos dados, pode-se ter ao menosuma medida do que pode estar acontecendo:- ao mesmo tempo em que, de 1990 a 1994, há um enco-lhimento do número de postos de trabalho, crescem emtoda a indústria os indicadores de precarização: assala-riados sem carteira de trabalho e trabalhadores autôno-mos, e também os pequenos empreendimentos, de um a49 empregados, que chegavam a ocupar cerca de 26,3%dos trabalhadores industriais (versus 19,7% em 1994); seconsiderarmos os empreendimentos com 50 a 99 empre-gados, essa proporção sobe para 33,8% contra 25,7% em1990 (Tabela 5);

- embora a presença dos assalariados sem carteira e dosautônomos seja particularmente importante nas indústriastêxteis, foi no ramo metal-mecânico que se pôde verifi-car as mudanças mais significativas nos vínculos de tra-balho: proporcionalmente, foi nessas indústrias que hou-ve um maior aumento relativo tanto do assalariamento semcarteira (de 3,8% para 7,5% em 1994) quanto dos autôno-mos (de 2,1% para 3,1%). É certo que esses trabalhadoresrepresentam uma proporção relativamente pequena nes-sas indústrias e que o vínculo formal de trabalho (ainda?)predomina amplamente. Mas não é irrelevante notar queesse aumento da precariedade dos vínculos de trabalho éacompanhada por um igualmente expressivo aumento dosempreendimentos com até 99 empregados (de 18,1% em1990 para 27,5% em 1994) também mais acentuado, emtermos relativos, do que nos outros ramos industriais;

- mas é no comportamento claramente diferenciado dasindústrias químicas que se pode ter, paradoxalmente, umamedida do que anda acontecendo com o mercado de tra-balho: em relação às indústrias metal-mecânicas, o cres-cimento relativo da precarização é nitidamente menor –no caso dos trabalhadores autônomos, apesar de terem uma

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QUESTÃO SOCIAL: AFINAL, DO QUE SE TRATA?

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TABELA 5

Ocupados na Indústria, por Ramos Industriais, segundo Posição na Ocupação, Tamanho da Empresa e Números de EmpregadosRegião Metropolitana de São Paulo – 1990-1994

Em porcentagem

Ocupados na IndústriaPosição na Ocupação, Tamanho daEmpresa e Números de Empregados Metal-Mecânica Químicas, Farm. Têxteis, Outras Total

e Plásticos Vestuário Indústrias

1990TOTAL 37,8 44,2 88,8 70,6 56,4Posição na Ocupação 5,9 10,3 26,2 18,9 13,6

Assalariados sem Carteira 3,8 4,5 11,4 9,5 6,8Autônomos para o Público 0,5 0,3 2,1 3,8 1,7Autônomos para Empresa 1,6 5,5 12,7 5,6 5,1

Tamanho da Empresa 0,8 0,8 4,0 5,1 2,5Trabalha Sozinho 0,5 0,4 1,9 2,6 1,3Com Família e Sócios 0,3 0,4 2,1 2,5 1,2

Número de Empregados 18,1 21,3 40,4 30,2 25,71 a 9 Empregados 3,5 4,2 15,2 11,3 7,810 a 49 Empregados 8,7 10,2 18,0 13,7 11,950 a 99 Empregados 5,9 6,9 7,2 5,2 6,0

1994TOTAL 28,8 20,4 57,4 41,9 37,4Posição na Ocupação 10,6 12,7 32,3 23,0 18,8

Assalariados sem Carteira 7,5 5,8 14,8 12,3 10,2Autônomos para o Público 0,8 0,6 4,2 4,5 2,6Autônomos para Empresa 2,3 6,3 13,3 6,2 6,0

Tamanho da Empresa 1,3 0,7 6,4 5,9 3,6Trabalha Sozinho 0,6 0,2 2,3 3,2 1,7Com Família e Sócios 0,7 0,5 4,1 2,7 1,9

Número de Empregados 27,5 19,7 51,0 36,0 33,81 a 9 Empregados 6,0 4,5 20,6 12,6 10,710 a 49 Empregados 13,4 9,2 21,9 16,7 15,650 a 99 Empregados 8,1 6,0 8,5 6,7 7,5

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabulações especiais da autora.

maior participação nas indústrias químicas, esse cresci-mento relativo foi menor do que nas metalúrgicas; quan-to aos trabalhadores sem carteira, o crescimento tambémfoi menor e, em 1994, sua presença nas indústrias quími-cas chegava a ser menor do que nas metalúrgicas (5,8%versus 7,5%), invertendo-se a situação que existia em 1990– 3,8% nas metalúrgicas e 4,5% nas indústrias químicas(Tabela 5);

- quando se toma como referência apenas os trabalhado-res com carteira de trabalho, as diferenças são ainda maisacentuadas: se há, no conjunto da indústria, uma tendên-cia nítida à maior estabilização dos trabalhadores comcarteira, essa tendência é ainda mais acentuada nas indús-trias químicas – a presença de trabalhadores com cinco anove anos no mesmo emprego salta de 14,7% em 1990para 23% em 1994 – diferença de mais de 50%, bem maiordo que a acorrida entre as metalúrgicas – de 18,1% em1990 para 24,9% em 1994, um diferença de um poucomais de 1/3 (Tabela 6); ao contrário do que ocorre no con-junto do mercado industrial formal e de forma ainda maisacentuada entre as metalúrgicas, há uma espantosa dimi-nuição das empresas de um a 49 empregados, de 12,3%

para 9% em 1994, e também dos empreendimentos de 50a 99 empregados, de 7,1% para 5,9% em 1994 (Tabela7). E mais notável de tudo: ao contrário do que se verifi-ca no conjunto do mercado, os trabalhadores emprega-dos nesse setor foram os únicos que tiveram, entre 1990 e1993, um ganho relativo em termos de salários, inverten-do-se com isso o padrão que existia em 1990, quando entãoos salários médios dos trabalhadores químicos eram li-geiramente inferiores aos dos metalúrgicos – em 1993, amédia salarial dos químicos chegava a ser 10% mais altaque a dos metalúrgicos (Tabela 8).

Como interpretar esses dados? Quanto aos ganhos sala-riais relativos dos químicos em relação ao conjunto do mer-cado, não é tão evidente, na verdade é pouco provávelque isso decorra de uma maior organização e combativida-de sindical.2 A explicação parece estar em outro lugar, emum processo de reestruturação que, ao mesmo tempo emque leva a uma diminuição do número de postos de tra-balho, mantém em seu núcleo duro os trabalhadores maisestáveis, mais qualificados e mais protegidos, enquantocontingentes crescentes são “externalizados” para outrossetores e outros ramos de atividade que, assim, “somem”

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TABELA 6

Distribuição dos Assalariados com Carteira Assinada na Indústria, por Ramos Industriais,segundo Tempo de Permanência no Emprego Atual

Região Metropolitana de São Paulo – 1990-1994Em porcentagem

Assalariados com Carteira Assinada na IndústriaTempo de Permanênciano Emprego Atual Metal-Mecânica Químicas, Farm. Têxteis, Outras Total

e Plásticos Vestuário Indústrias

1990Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Até 2 Anos 35,8 40,1 50,5 44,0 40,42 a 4 Anos 25,8 27,8 24,4 24,8 25,65 a 9 Anos 18,1 14,7 13,9 15,2 16,310 Anos e Mais 20,1 17,3 11,2 15,8 17,4Sem Declaração 0,2 0,1 - 0,2 0,2

1994Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Até 2 Anos 31,0 30,0 46,4 37,0 34,92 a 4 Anos 21,9 27,9 25 26,3 24,35 a 9 Anos 24,9 23,0 18,3 20,2 22,310 Anos e Mais 22,1 19,0 10,1 16,3 18,3Sem Declaração 0,1 0,1 0,2 0,2 0,2

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabulações especiais da autora.

TABELA 7

Distribuição dos Assalariados com Carteira Assinada na Indústria,por Ramos Industriais, segundo Tamanho do Empreendimento

Região Metropolitana de São Paulo – 1990-1994Em porcentagem

Assalariados com Carteira Assinada na Indústria

Metal-Mecânica Químicas, Farm. Têxteis, Outras Totale Plásticos Vestuário Indústrias

1990Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0Até 99 Empregados 15,3 19,4 32,7 23,7 20,4

1 a 9 Empregados 1,8 3,0 6,9 5,6 3,610 a 49 Empregados 7,8 9,3 17,0 12,2 10,450 a 99 Empregados 5,7 7,1 8,8 5,9 6,4

100 a 499 Empregados 18,9 21,8 19,4 15,3 18,4500 ou Mais 51,3 44,7 30,6 44,1 45,7Sem Declaração 14,4 14,1 17,3 16,9 15,4

1994Total 100,0 100,0 99,9 100,0 100,0Até 99 Empregados 21,8 14,9 42,4 28,3 25,9

1 a 9 Empregados 2,4 2,1 7,2 4,9 3,810 a 49 Empregados 11,2 6,9 23,3 15,3 13,750 a 99 Empregados 8,2 5,9 11,9 8,1 8,4

100 a 499 Empregados 24,1 23,6 23,3 21,7 23,2500 ou Mais 46,2 53,5 25,3 39,7 42,0Sem Declaração 8,1 8,0 8,9 10,3 8,9

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabulações especiais da autora.

Tamanho do Empreendimento

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QUESTÃO SOCIAL: AFINAL, DO QUE SE TRATA?

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TABELA 8

Rendimento Médio de Assalariados com Carteira Assinada na Indústria,segundo Ramos Industriais

Região Metropolitana de São Paulo – 1990-1993Em R$

Rendimento Médio do Trabalho (1)Ramos Industriais

1990 1993

Total 890,39 861,24Metal-Mecânica 1.009,73 1.003,79

Química, Farm. e Plásticos 993,34 1.105,14

Têxtil, Vestuário 538,22 503,86

Outras Indústrias 823,83 753,31

Fonte: SEP. Convênio Seade-Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED. Tabula-ções especiais da autora.(1) Rendimento atualizado para valores de abril de 1995.Nota: No momento de elaboração dessas tabelas, os dados referentes a 1994 não estavamainda disponíveis.

da categoria. Ao descrever, por exemplo, os serviços sub-contratados de embalagem em uma indústria química,Risek e Silva mostram uma terceirização suja e predató-ria na ponta da cadeia produtiva da empresa, que incor-pora trabalhadores, na maioria mulheres, com base emcontratos temporários, submetidos a péssimas condiçõesde trabalho, sem os benefícios dos trabalhadores contra-tados (convênio médico, cesta básica, transporte) e, piorde tudo, fora da área de atuação do sindicato, pois nãomantêm vínculo contratual estável, são computados comotrabalhadores autônomos em serviços e desaparecem dosdados relativos ao perfil da força de trabalho do comple-xo químico. É aqui que talvez mais se explicite o sentidomesmo da exclusão. Não se trata de uma gente que está“fora” do mercado e da vida social organizada, como sediz muito freqüentemente, mas nesse lugar que, sem amediação pública dos direitos e da representação, se per-de na invisibilidade social. Isso sempre aconteceu nomercado de trabalho. É o cenário das “classes inacaba-das”. O peculiar aos tempos que correm é algo como umadisjunção entre a palavra e as coisas (sem referência, aqui,ao livro famoso de Foucault), uma realidade que escapaàs referências identificatórias, às representações (no du-plo sentido, de representação sindical e representação sim-bólica) e se pulveriza na indiferenciação própria dos quenão têm nome – as trabalhadoras pesquisadas por Rizek eSilva não sabem ao certo como se identificar, não se re-conhecem como químicas e, quanto aos dirigentes sindi-cais, tampouco sabem ao certo seu lugar – se não sãoquímicas e tampouco são trabalhadoras “de verdade” (sãoautônomas ou então assalariadas com contrato temporá-rio), então onde estão, quem são? Somem dos dados emuito provavelmente reaparecem nesse universo tão gran-de quanto nebuloso que são os “serviços”. Ou então, comobem notam os autores, nessa caixa-preta que são as “ou-tras atividades” – lugar dos não-classificáveis.

Difícil propor alguma conclusão que não sejam ape-nas inquietações. Se diante da avalanche neoliberal, aquestão que se apresenta hoje é de refundar o horizontede legitimidade dos direitos, também é verdade que asmudanças em curso na economia (e na sociedade) estãonos colocando em uma fronteira de dilemas que escapama conceitos, categorias e fórmulas políticas conhecidas eque estão a exigir uma reinvenção dos termos para sepensar as relações entre trabalho, direitos e cidadania. Eisso não depende de fórmulas teóricas, por mais bem cons-truídas que possam ser. Está na ordem da “invenção de-mocrática” e da refundação da política como espaços decriação e generalização de direitos. Contra os rumos damodernização selvagem em curso no país, é disso quedepende a possibilidade de uma redefinição das relaçõesentre o econômico e social, e um controle democrático

do jogo do mercado. Nesses tempos incertos, em que oconsenso conservador que tomou conta da cena públicatenta fazer crer que estamos diante de processos inelutá-veis e inescapáveis, fazer essa aposta não é pouca coisa.

NOTAS

1. Devemos a Cibele Saliba Risek essa mais do que apropriada expressão – en-colhimento dos horizontes de legitimidade dos direitos sociais – para avaliar osentido político das mudanças em curso. Agradecemos a cuidadosa leitura e dis-cussão da primeira versão desse artigo.

2. Agradecemos a Leonardo Mello e Silva essa avaliação, e também a discussãodos dados e da primeira versão desse artigo.

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RUMOS DA ORDEM PÚBLICA NO BRASILa construção do público

m trabalhos anteriores (Wanderley, 1988), foramexpostas algumas idéias sobre o processo de pu-blicização, dos quais ressaltam-se alguns elemen-

tos centrais agora referidos ao Estado: a universalidade –possibilidade de acesso de todos aos bens e serviçospúblicos e, reciprocamente, a capacidade dos poderes pú-blicos de oferecê-los em condições satisfatórias a todos;a publicidade – eliminação do segredo burocrático e trans-parência na atuação, ou seja, dar informação verdadeiraa toda a sociedade a respeito das atividades estatais; o con-trole social – a ser exercido por todos os setores sociaissobre o Estado e institucionalizado por normas conheci-das e legitimadas; a democratização da sociedade civil –base para a democratização do Estado.

A proposição básica desta análise é a de que a so-ciedade brasileira vive de um modo singular a contradi-ção público-privado, integrando e dissolvendo aspectostradicionais e modernos, em que a concepção republi-cana de público vem sendo constantemente esboçada,mas não atingiu ainda patamares mínimos de concretiza-ção. A segunda parte do título, “A construção do públi-co”, trata exatamente disto – o desafio de construir umprocesso de publicização crescente, que se sabe será difí-cil, conflitivo, de duração indeterminada. Neste proces-so, constituem componentes essenciais: a edificação deuma cultura e de uma educação públicas democráticas queassegurem a universalização de direitos e deveres, umanova concepção da cidadania, um novo sentido de servi-ço público, o fortalecimento do pensamento crítico, a re-estruturação do Estado, a refundação da Federação, areforma do sistema político, o fortalecimento da socieda-de civil pela participação ativa das maiorias, pela criaçãode controles sociais efetivos e pela mobilização de um

público crítico. É um mundo! Serão abordados algunsdeles.

Da perspectiva de uma colocação de caráter concei-tual-terminológico, a expressão “ordem pública” podetrazer conotações indesejáveis, seja de pensá-la como algoautônomo em associação com as outras “ordens” da so-ciedade, seja de entendê-la como um subsistema social,seja de enfatizar o aspecto de manutenção da ordemsocietária. Utilizar-se-á aqui espaço público num sentidoabrangente que engloba as relações entre o econômico eo político, o público e o privado, o público não-estatal.Espaço público compreendido como consubstancial àdemocracia, cujo princípio organizativo está unido à li-berdade de expressão, contendo temas políticos e outros,espaço aberto no qual se exprimem todos aqueles que seautorizam a falar publicamente, logo, a assegurar certapublicidade e mediação de seu discurso.

O ESPAÇO PÚBLICO,DA GRÉCIA À MODERNIDADE

Antes também de se entrar na análise da realidade bra-sileira, caberia uma referência de natureza histórica, quepermita contrastar dois modelos canônicos: espaço pú-blico grego e espaço público moderno.

Na representação que se faz hoje do contexto gregoclássico, o espaço público estava ligado à praça pública,lugar concreto no qual os cidadãos se encontravam paradebater as ações que interessavam ao governo da cidade.Ele se explicitava como espaço político por excelência ese distinguia da esfera privada do domicílio e, por exten-são, do econômico. À política correspondia a ação comum,concertada, considerando os fins da cidade como resulta-

E

LUIZ EDUARDO W. WANDERLEY

Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Estudos Pós-Graduadosem Ciências Sociais da PUC-SP. Autor do livro O que é Universidade?

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RUMOS DA ORDEM PÚBLICA NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO

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do de um diálogo, correspondendo a uma racionalidade“comunicacional”. O mérito do modelo grego se fundano seu cunho heurístico, numa concepção original do es-paço público.

Originário das Luzes, cria-se o espaço público moder-no. À época, o “espaço público burguês” significava acontestação do absolutismo. Para Koselleck (1978), apartir do século XVI, na Europa, em face dos riscos deum rompimento que derivava das guerras religiosas eobjetivando-se manter a coesão social, pôde-se constituira esfera moderna privada da opinião e da crença. O do-mínio público seria regido pela razão de Estado e foi coma força exterior da crítica – marco dos primórdios da pu-blicidade – que se operou uma transformação do domí-nio público em espaço público. As pessoas privadas, reu-nidas nos cafés, clubes, salões, constituíram as primeiras“esferas públicas” burguesas, para intercambiar suas ex-periências. Ter-se-ia aberto, assim, a possibilidade de umespaço público orientado politicamente sob a forma deum “reino da crítica”. Ou seja, a institucionalização deuma crítica que utilizava os meios da moral para reduzirou racionalizar a dominação política.

Habermas (1984) enfatiza que foi o conceito kantianode publicidade, como princípio de mediação entre políti-ca e moral, que trouxe para a esfera pública burguesa asua “configuração teórica amadurecida”. Com o Estadoliberal de Direito dar-se-ia, na Constituição Republicana,a passagem de um público pensante de “homens” para umpúblico de “cidadãos”, os quais se entenderiam sobre ares publica. A legislação se fundaria na vontade do povotodo e decorreria da razão. Mas este público politicamentepensante seria formado apenas por proprietários privados,cuja autonomia estava assegurada pela livre-concorrên-cia. A sociedade burguesa seria aquela de ordre naturelcapaz de converter “vícios privados em virtudes públi-cas” (variante do slogan de Mandeville: private vices,public benefits). Na síntese habermasiana, “a esfera pú-blica burguesa desenvolvida baseia-se na identidade fic-tícia das pessoas privadas reunidas num público em seusduplos papéis de proprietários e de meros seres humanos”.Vale lembrar aqui a análise crítica marxista de que a au-tonomia não se baseia na propriedade privada, mas sefunda na esfera pública, quando se supera a identidadeburguês e homem pela identidade cidadão e homem. Emtermos futuros, após a socialização dos meios de produ-ção, em que o poder público perde o caráter político, ter-se-á a esfera pública democraticamente revolucionada.

Nas palavras de Ferry (1991), enquanto para os gre-gos a formação do espaço público se sustentaria numaestética da figuração, da apresentação de si, onde a “gló-ria” seria obtida pelas “belas palavras” pronunciadas napraça pública, para os modernos a formação do espaço

público obedeceria primeiramente ao motivo moral daemancipação, no sentido de que a sociedade civil se com-preende como saindo do estado de minoridade para ace-der à maioridade, ao estado adulto.

Com o advento da sociedade de massas dá-se umamutação do espaço público. A distinção grega entre pú-blico e privado se dilui na dimensão “social”. O “reinoda crítica” parece se alterar por um “reino da opinião”. A“opinião pública” não é mais a opinião esclarecida que adistinguia da massa inculta e preconceituosa, não é o con-ceito das Luzes de uma opinião constituída pela razão.Pois ela designa, sobretudo, a massa segmentada de inte-resses divididos e mesmo conflitivos. Os institutos desondagens irão retomar esta idéia de opinião pública.

A idéia burguesa de publicidade entra em crise. O di-vórcio entre opinião e razão quebra as bases do sufrágiouniversal e da representação parlamentar. Constata-se,também, que o caráter público da opinião, isto é, sua re-presentação institucionalizada na imprensa e no Parlamen-to, se afasta cada vez mais de uma “vontade geral”. Nestecontexto, torna-se pertinente questionar as democraciasparlamentares, perguntando-se sobre qual racionalidadepolítica poderia responder a um espaço público democra-ticamente ampliado para esta massa de opiniões indivi-duais e grupais.

A democracia representativa é questionada. Aqueleespaço público que postulava o interesse geral parece rom-pido. No período contemporâneo, os diagnósticosreferenciados à concepção moderna são avassaladores:“refeudalização do espaço público; vassalização da opi-nião pública pelos partidos, os sindicatos, as associaçõese todos os corpos intermediários; burocratização etecnização de uma política tornada opaca aos julgamen-tos e avaliações do senso comum; substituição final damanipulação pela concertação; derrelição da cidadania,na qual se estimula o processo anômico de uma perda daidentidade ligada ao eclipse do político, ao fim do indiví-duo, a sociedade administrada, o reino da Técnica e o triun-fo do espírito instrumental...” (Ferry, 1991:20).

A chegada da “sociedade mediática” transforma a con-ceituação do espaço público. O tema da comunicaçãopolítica ganha relevância. Para alguns, o campo da co-municação política se restringe ao jogo de interações en-tre os políticos, os jornalistas, os institutos de sondageme os intelectuais líderes de opinião. Para outros, as mani-festações de opinião pública mobilizadas pelos movimen-tos sociais, sindicatos, manifestos políticos, ações públi-cas são mais públicas do que o agregado estatístico deopiniões privadas, cunhado como “opinião pública” pe-los institutos de sondagem. E no plano internacional, háum impacto público considerável das organizações inter-nacionais, grupos multinacionais, associações mundiais,

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governos estrangeiros, etc. sobre o espaço político nacio-nal – e, neste caso, o jogo se dá na opinião pública inter-nacional. Ademais, há uma ampliação do conceito quan-do ele não se limita mais, espacialmente, ao Estado-Nação,já que a comunicação de cada sociedade se dá interna-mente à ela e entre as sociedades. E há uma limitação quan-do se trata da comunicação entre somente os participan-tes de um grupo social, mesmo que deliberem oumanifestem sobre temas de interesse coletivo, mas queapresenta um impacto considerável se sua manifestaçãoparcial de opinião repercute e difunde-se, pela mídia, paraum público mais vasto, virtualmente indefinido, na qualela entra no espaço público.

São vários os estudiosos que apontam um movimentocrescente de interpenetração do espaço público pelo pri-vado e vice-versa. Por um lado, tem havido a publiciza-ção do privado, quer pela intervenção dos poderes públi-cos na regulação da economia, quer pelo aumento daintervenção estatal em todos os domínios sociais, incluindoa regulação dos comportamentos dos indivíduos. E, poroutro, uma privatização do público, expressa pela apro-priação privada dos recursos públicos, pelos contratoscoletivos entre organizações sindicais, pelas coalizõespartidárias, etc. Segundo Habermas (1984), a inter-rela-ção dialética das duas tendências assinala a decadênciada dimensão pública: “(...) ela penetra esferas cada vezmais extensas da sociedade e, ao mesmo tempo, perde asua função política, ou seja, submeter os fatos tornadospúblicos ao controle de um público crítico.”

O PÚBLICO NA HISTÓRIA BRASILEIRA

Na história brasileira, pode-se vislumbrar um cruza-mento, no mínimo inusitado, dos elementos morais e crí-ticos, efeitos de fusão entre elementos estatais e públi-cos, teias entre elites e administração, indistinções entredinheiro público e dinheiro privado, corrupção e meca-nismos de sua institucionalização, clientelismo e prote-ção, para citar alguns convergentes com a temática emfoco. Uma análise do passado e dos episódios mais re-centes de denúncia de casos de corrupção, e sua puniçãoem casos emblemáticos, mas sobretudo parcimoniosos,descortina um pano de fundo que permite ilustrar a fragi-lidade das relações entre o público e o privado e apontarumas poucas alternativas favorecedoras de publicização.O papel influente e crescente exercido pela mídia, basi-camente pela imprensa escrita e pela televisão, mostra asambigüidades existentes na comunicação política.

Martins revisita a questão clássica do clientelismo,sobre a qual já refletiram por vários cientistas sociais ehistoriadores, na ótica de seu imbricamento com a cor-rupção no Brasil contemporâneo, empregando uma abor-

dagem que ele denomina de “sociedade de história lenta”e que possibilita uma leitura da força ativa de um passa-do recorrente que constrange as mudanças sociais. To-mando por base a tradição oligárquica do Brasil, o autordestaca, com razão, que “todo o sistema estava, por isso,baseado em mecanismos de intermediação política defundamento patrimonial” (Martins, 1994:20). A domina-ção oligárquica da troca como favor, que eliminou da vidapública as maiorias (índios, negros, mulheres, analfabe-tos) durante séculos, impedindo a conquista da cidada-nia, permanece rejuvenescida. Ele mostra como “as oli-garquias asseguram a estabilidade do poder” e como, maisproximamente, o voto dos analfabetos seguiu o critériode ampliação de seu poder, seu peso político persistiu ese expressou na aliança com os militares, nos acordospolíticos que culminaram nas eleições de Tancredo,Sarney, Collor, Cardoso e que permanecem na atualgestão.

Indo além da constatação da compra de votos dos po-bres pelos ricos e de uma suposta modernização do siste-ma político baseado no aliciamento eleitoral, Martins sus-tenta, e há indícios de sobra para isto, que o clientelismopolítico permanece e é até revigorado por formas maissutis. A política do favor, hoje difundida pelo mecanis-mo do “é dando que se recebe”, mostra que o “(...) clien-telismo político sempre foi e é, antes de tudo, preferen-cialmente uma relação de troca de favores políticos porbenefícios econômicos, não importa em que escala. Por-tanto, é essencialmente uma relação entre os poderosose os ricos e não principalmente uma relação entre os ri-cos e os pobres (...) na sociedade brasileira, a moderniza-ção se dá no marco da tradição, o progresso ocorre nomarco da ordem. Portanto, as transformações sociais epolíticas são lentas, não se baseiam em acentuadas e sú-bitas rupturas sociais, culturais, econômicas e institucio-nais. O novo surge sempre como desdobramento do ve-lho...” (Martins, 1994:29-30). Não bastassem os exemploshistóricos fulgurantes desta sociedade de história lenta emque se mesclam o velho e o novo – na proclamação daIndependência, na abolição da escravatura, nos fazendei-ros metamorfoseados em comerciantes e industriais, naaliança entre oligarquias e militares, etc. – , a trajetóriada burguesia é uma história de transações, de troca defavores com o Estado, e o atual pacto das elites com ogoverno é mais um indicador deste processo peculiar dasociedade brasileira.

Analisando os acontecimentos que desencadearam oimpeachment de Collor e a punição de uns poucos envol-vidos, Martins se pergunta se algo mudou na concepçãode corrupção, já que a mesma tem ocorrido secularmentena história de nosso país “sem causar estranheza, indig-nação ou repulsa política”. No plano moral, ele destaca

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que débitos e créditos morais, favores como obrigaçõesmorais, compreendidas numa ética católica (legados queos ricos deixavam para os pobres), sempre pesaram nahistória das famílias brasileiras, inclusive débitos de vin-gança e seu séquito de mortes. As práticas clientelistas epatrimoniais se expandem por todos os setores sociais,indo desde programas de rádio e televisão que distribuemsonhos e prêmios, passando pela troca de favores entretécnicos e funcionários dos órgãos de administração pú-blica e privada, entre funcionários e usuários de serviçospúblicos, entre chefes e colegas e subordinados nas uni-versidades e em outras instituições, na obtenção deinformações preciosas para oferecer e executar projetos,negócios, nas verbas consignadas nos orçamentos pelospolíticos municipais, estaduais e federais, e nos cofres dasfundações criadas pelos políticos e que se convertem emseu patrimônio, até a cooptação de lideranças popularespelas administrações governamentais. Sua afirmação ébastante instigante: “Certamente é essa disseminada pra-tica que associa patrimônio e poder a principal responsá-vel pela difusão e contínua renovação do que pode serchamado a cultura da apropriação do público pelo priva-do. Muito do que aparece aos olhos da classe média letra-da como arbítrio e roubo, não aparece com a mesmaconotação aos olhos da grande massa pobre, rural e urba-na. Até porque essa massa, de um modo ou de outro, estáinteiramente integrada na política do favor: praticamentetudo passa pela proteção e pelo favorecimento dos des-validos” (Martins, 1994:38).

CATEGORIAS CONSTITUINTES DO PÚBLICO

Uma categoria estratégica que vem sendo retomadapelos estudiosos com enfoques heurísticos é a da cidada-nia. Para fundamentar a análise em certos estudos queoferecem contribuições estimulantes, temos inicialmenteas colocações de Telles (1994) centradas nos direitos e,para usar uma expressão de Lefort, na “consciência dodireito a ter direitos”. Prudente nas afirmações, a autoraconsidera a imensa complexidade, heterogeneidade e di-ferenciação da nossa sociedade, das ambivalências da vidasocial, das ambigüidades e ao mesmo tempo ricas poten-cialidades das lutas e movimentos sociais, partindo danecessidade de uma cultura pública democrática, abertaà legitimidade dos conflitos e da diversidade de interes-ses e valores demandados como direitos. Numa socieda-de estruturalmente marcada pela desigualdade, por umaconflitividade crescente, pela pobreza geradora de discri-minações que estão na base do apartheid social, pelosriscos de uma dualização da sociedade, pela incompetên-cia do Estado em garantir a igualdade jurídica, é possíveluma prática de civilidade que leve à uma convivência ci-

dadã? É possível a “construção de uma noção de bempúblico e de responsabilidade pública que tenham comoparâmetro a garantia dos direitos básicos de toda umapopulação?” Telles pensa que sim, a partir “de uma novacontratualidade que construa uma medida de eqüidade eas regras da civilidade nas relações sociais”.

De sua argumentação, ressalta-se o que ela aponta comocaminhos que balizam esta direção, constituídos de ex-periências, práticas e acontecimentos, como o que umgrande grupo de brasileiros, nos quais nos incluímos, tendea concordar, na linha do que Donzelot (1994) denominade “invenção do social” e pelo desenvolvimento dos “pro-cedimentos de implicação” convergindo na “arte da ne-gociação”. Da perspectiva da instituição da democracia,“(...) em uma descoberta da lei e dos direitos que se firmae se renova na prática da representação, interlocução enegociação de interesses”. São sinais desta construção:- na área do trabalho, por um lado, as chamadas CâmarasSetoriais e, por outro lado, as lutas sindicais que incorpo-ram as questões da qualidade de vida e do ambiente, exi-gindo negociações entre governos, empresas, sindicatose entidades civis;

- na área dos movimentos populares e das lutas urbanas,por um lado, as conseqüências dos embates entre legali-dade e legitimidade, a nova contratualidade surgindo deforma negociada de conflitos e desembocando no surgi-mento de um “direito alternativo”, em que os critérios dejustiça substantiva superam os critérios da legalidade po-sitiva e, por outro lado, um novo relacionamento dos mo-vimentos organizados com os poderes públicos,“(...) deslocando práticas tradicionais de mandonismo,clientelismo e assistencialismo em formas de gestão quese abrem à participação popular e a formas de negocia-ção em que demandas e reivindicações estabelecem a pautade prioridades e relevância na distribuição de recursospúblicos, bem como a ordem das responsabilidades dosatores envolvidos”;

- em espaços públicos múltiplos e diferenciados, poden-do-se ilustrar com as propostas de “orçamento participa-tivo”;

- nos fóruns sobre os mais diversos temas – habitação,saúde, direitos humanos, meio ambiente, etc. – que de-vem ser considerados na gestão da coisa pública.

Respondendo àqueles que vêem nessas experiências enesses movimentos apenas algo passageiro, episódico,fragmentado, localizado, dado que são incapazes de ge-neralizar e universalizar novos termos de contrato social,nesta sociedade autoritária e excludente que parece sem-pre renovar seus mecanismos de incorporação do novo ese cristalizar no velho, Telles salienta que “(...) por maio-res que sejam suas ambivalências e contradições, limites

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e fraquezas, essas experiências permitem – e isso não épouco – o pensamento e a imaginação políticos, peloshorizontes que descortinam para a invenção histórica”. Econclui dizendo que elas registram uma sociedade civilemergente que supera a mera contratualidade organizadorade interesses privados, e que nessa sociedade civil se podeconstruir uma noção plural de bem público, tendo comoprincípio o reconhecimento recíproco de direitos. Em ter-mos amplos, na situação brasileira, trata-se de “(...) uma(re)criação da própria República, essa ficção que na nos-sa história nunca ganhou inteiramente o imaginário cole-tivo, nunca estruturou uma memória dos acontecimentose nunca se efetivou como prática e valor político, numaquase-ausência que repõe o padrão oligárquico e patri-monialista de gestão da coisa pública”.

Na mesma direção de uma nova cidadania, em seu ca-ráter de estratégia política por uma parte significativa dasociedade, com a retomada da luta por direitos e sua am-pliação para a construção da democracia e de uma estra-tégia transformadora que considere o nexo constitutivoentre as dimensões da cultura e da política, tem-se as ob-servações de Dagnino (1994). De seu texto, além da re-afirmação de aspectos já suscitados por Telles, enfatiza-se a concepção da nova cidadania como a “constituiçãode sujeitos sociais ativos”, já destacada por Chaui (1988)e tantos outros, em oposição à visão liberal de mera in-corporação política de setores excluídos. Que ela consti-tui também uma proposta de sociabilidade que requermaior igualdade nas relações sociais. Que ela supõe umtransbordamento da acepção liberal de participação no sis-tema político para o direito de participação da própria de-finição desse sistema, no sentido da invenção de uma novasociedade, citando exemplos de co-gestão dos serviçospúblicos (Conselhos, Fóruns, etc.). E inclui um quadrode referência para uma questão ampla e complexa que é arelação entre igualdade e diferença.

Mostrando um aspecto de profundas implicações doque ele designa como uma tendência estrutural do capita-lismo contemporâneo, qual seja, a função do fundo pú-blico na regulação econômica, Oliveira (1990) enfatizauma especificidade brasileira, de uma regulação sem es-fera pública. O que quer dizer isto?, pergunta ele. “Semesfera pública, quer dizer a utilização do fundo públicocasuisticamente, sem regras gerais, sem a constituição dealteridades que imporiam clivagens e vertedouros por ondepassariam as decisões sob controle dos grupos e classessociais não apenas diretamente interessados: sobretudo osnão diretamente interessados.” Trata-se do que o autorchama, com propriedade, de uma economia de regulação“truncada”, da qual registramos aqui uma característicaatualíssima, que se traduz na discussão sobre os apoiosdo governo federal aos bancos e no encaminhamento fa-

vorável às demandas da bancada ruralista, expressa, se-gundo ele, numa “(...) intervenção estatal que financia areprodução do capital mas não financia a reprodução daforça de trabalho”. O que caracteriza a regulação“truncada” “(...) é simultaneamente a ausência de regrasestáveis e a ausência de direitos, inclusive os dos traba-lhadores. É uma regulação permanentemente ad hoc: cadacaso é um caso (...) Ela vincula cada fonte de receita oudespesa do Estado com algum núcleo de interesses em-presariais”.

Esta situação engendra uma potencialização do poderdo empresariado e apresenta, entre outras conseqüências,a criação pelas burguesias de um sistema (ele chama deparapolítico, nós diríamos político com letras fortes) maisaglutinador que os partidos. Há outra conseqüência degrandes proporções, que é a importância econômico-po-lítica crescente das classes médias “(...) que articulam emediatizam as relações entre as classes ou entre os inte-resses particulares e o fundo público”.

Neste contexto, tem sido destacado um movimento-processo novo, datado de alguns anos a esta parte e comdimensões mundiais, que vem sendo denominado de “ter-ceiro setor global” e considerado como uma “revoluçãoassociativa” (Salamon apud Fernandes, 1994) ou apenas“terceiro setor”, sendo os outros dois o Estado e o merca-do, e na expressão questionadora de Fernandes de “pri-vado porém público”. Ele se distinguiria dos demais porser “não-governamental” e “não-lucrativo” e por ter umcaráter voluntário. “O conceito denota um conjunto deorganizações e iniciativas privadas que visam à produ-ção de bens e serviços públicos”, segundo Fernandes,implicando uma expansão da esfera pública pela ativida-de cidadã. Este autor levanta algumas questões sobre oseu significado, sobre a condição de serem ou não orga-nismos estruturados, sobre a classificação para uso inter-nacional dada por Salomon e Anheir (1992), e enumeracertas pistas para as interações futuras. Sem poder entraraqui na polêmica sobre o assunto, é de se destacar que aexpressão é criticada por alguns como um modismo, ar-gumentando que se trata apenas de uma faceta nova dasociedade civil. Quer se opte por uma ou outra expres-são, o certo é que elas englobam predominantemente osmovimentos sociais e as organizações não-governa-mentais.

Um rápido registro sobre esses sujeitos sociais. Se nosanos 70 e 80 os movimentos populares suscitaram pro-messas e trouxeram contribuições valiosas para o proces-so de redemocratização do Brasil, com todas as ambigüi-dades que a democracia representativa traduz, há umgrande consenso no sentido de mostrar que sua atuaçãocoletiva propiciou uma transformação de mão dupla noEstado e nos movimentos populares, conduzindo-os a

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mudar seus discursos e práticas em conseqüência dos con-flitos que envolveram ambos e da nova situação políticainstalada no país. Já nos anos 80, contudo, a incapaci-dade do conceito “popular” de dar conta da realidade exis-tente trouxe a emergência da expressão “movimentos so-ciais”, que abrange os populares e os ultrapassa, incorpo-rando os movimentos das mulheres, dos negros, dos índios,ecológico, etc. Quaisquer que sejam as interpretaçõessobre o sentido e os resultados dos movimentos sociaisnas últimas décadas, não se pode ignorar que as ações em-preendidas por eles forjaram a instituição de um novo es-paço público, obrigando a reconceituações de cunho teó-rico e prático. A diminuição da sua presença na cenapolítica, nos últimos anos, e um desencanto de certos se-tores quanto a seu impacto transformador mostram, a nossojuízo, exatamente que esta realidade não encontra ampa-ro na legislação, extrapola a representatividade liberal,demonstra que os condutos políticos e basicamente ospartidos não conseguem canalizar sua força para projetosmais globais, e está exigindo dos estudiosos um esforçoadicional de explicação do fenômeno.

Outra realidade marcante foi a emergência das Orga-nizações Não-Governamentais, dotadas de uma diver-sidade notável, que vêm ganhando importância não sópor articularem iniciativas múltiplas em vários planos dasociedade civil, como também por combinarem formasrelevantes de associação com o Estado nas gestões de go-vernos municipais, estaduais e federal, inclusive partici-pando de redes continentais e mundiais, e que constituemgrupos de pressão de grande alcance. Não isentas tam-bém de muitas ambigüidades, estão trazendo subsídiospreciosos para a esperada publicização ao prestarem ser-viços públicos relevantes e por gestarem formas inova-doras de parceria com os poderes públicos.

Encerrando esta parte, vale assinalar a proposição deRey Germán de conformação do público a partir de espa-ços, interesses e imagens. Alfaro M. (1995:70-71) reto-ma esta perspectiva para dizer que “quando hablamos delo público nos referimos, en primer lugar a Espacioscomunes que sentimos proprios porque los designamoscomo tales, los cuidamos y defendemos, los tratamos conconfiabilidad porque somos sus únicos creadores posibles,nos pertene-cen y vamos formándolos para uso de todos,levantando nuestras normas y exigencias (...) Son luga-res donde están nuestras huellas, pero sobre los cualesdeben también estar presentes nuestras decisiones y lascapacidades sociales y culturales que nos habitan (...)También, se trata de construir Temas e Intereses comunes.Mediante el ejercicio de consensos y disensos, nos quedapor elaborar assun-tos de agenda pública, demandascomunes, intereses colectivos(...) En el nivel de representa-ciones y lenguages expresivos, las imágenes colectivas

son también necesarias. Deberián existir bancos y flujosde creatividad para decir en metáforas, historias, sonidos,formas y colores, quiénes somos y para dónde nosencaminamos juntos (...) Las ausencias expresivas son lasmás terribles de una sociedad porque muestran su vacío,proclaman la hegemonía de un silencio que denigra pasadoy futuro. Pues ‘en lo público circulan sentidos, narracionesdiversas, ofertas interpretativas’ (Rey Germán:21), mo-dos de vernos a nosotros mismos, ideas del porvenir”.

OS RUMOS DO ESPAÇO PÚBLICO NO BRASIL

A construção do público constitui um árduo desafio.Propomos, a seguir, subsídios para uma reflexão teóricae para indicar rumos da ação individual e coletiva, perse-guindo os novos caminhos do espaço público.

Vale registrar que se não se pode dissociar os vínculosorgânicos que existem na inter-relação Estado e socieda-de civil, para efeitos analíticos convém distingui-los.Mesmo não sendo possível um maior aprofundamento noâmbito deste texto, cabe uma referência a duas coloca-ções. A primeira é que, muitas vezes, histórica e estrutu-ralmente, a Nação não se reconhece no Estado. Naçãoentendida como um povo constituído de cidadãos. Nessalinha, a constituição de uma comunidade nacional demo-crática é um repto sempre presente. Comentando o docu-mento Veinte tesis socíopolíticas y un corolarío, para umanova ordem estatal latino-americana, Touraine (1991:161)afirma que “o papel prioritário do Estado é o de criar ascondições para a formação de uma consciência nacional.A criação dessas condições passa pela diminuição dasdesigualdades”. Já Fleury (1994:235) declara que “a cons-tituição, na América Latina, de Estados sem cidadãosimplica que a existência de um poder político central nãocorrespondeu à criação de uma nação, entendida como aconstrução de uma sociabilidade minimamente necessá-ria para legitimar o exercício deste poder. Esta é a crisede governabilidade que temos enfrentado durante todo esteséculo, com diferentes feições”.

A outra colocação diz respeito ao imperativo de de-mocratizar o Estado, o que deverá ser empreendido si-multaneamente com a democratização da sociedade ci-vil. Desiderato que supõe um redirecionamento daeconomia considerando as transformações econômicasefetivas em curso no capitalismo mundial e nacional, po-rém objetivando consolidar uma formação social maishumanizadora que rompa a inserção subordinada à glo-balização. No plano estatal, convém reenfatizar a idéiada desestatização do pensamento e da prática de muitosintelectuais e cientistas sociais que em nosso país, desdeos primórdios até os dias atuais, continuamente viveram“à sombra do poder”, fenômeno que pode ser estendido a

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outras categorias sociais. Superar a crença de que tudo éresultado do poder estatal, desmitificando-o e fortalecen-do alternativas originárias de outras fontes civis, e crian-do mecanismos eficientes que eliminem a cooptação peloestablishment. Em contraposição, não demonizar o Esta-do, mas desmitificar a eficiência do mercado e perseguirreformas que o tornem enxuto e, ao mesmo tempo, umainstância estratégica de atuação. Refletindo sobre o quedenomina de negação maniquéia do Estado, postura querevela um profundo estatismo ao revés, Hinkelammert(1992:191) aponta que “assim apareceu o antiestatismomatafísico das duas últimas décadas, que é a outra carade uma afirmação total do mercado. Esse antiestatismodomina a discussão atual sobre o Estado e se transformouno leitmotiv da visão de mundo no presente. Apareceudesde as teorias neoliberais sobre a economia e a socie-dade, para transformar-se hoje numa espécie de sentidocomum da opinião pública do mundo inteiro. Aparece aténos países socialistas e domina a maioria das instituiçõesinternacionais que tomam decisões políticas”.

É no horizonte desses marcos que o processo de publi-cização vai adquirindo densidade. Para delimitar um cam-po de abordagem, é na esfera da questão social que sesobressaem os enormes limites de dar substantividade aopúblico, e onde se situam hoje, com urgência escandalo-sa, os desafios das reformas políticas e do Estado. Salvomelhor juízo, a questão social deve ser compreendida eexplicada, na América Latina, de modo diferente de comofoi entendida no contexto europeu. Ela se cinge essen-cialmente às desigualdades, injustiças e antagonismos quefundam a sociedade latino-americana, causados pelosmodos de produção, reprodução e desenvolvimento im-plementados nesses 500 anos no continente. Nesse senti-do, a natureza da questão social se expressa em cada con-juntura sob distintas modalidades, tais como, nas questõesindígena, nacional, negra, rural, urbana, gênero, atraves-sando aspectos econômicos, políticos, culturais, religio-sos, étnicos, geracionais, etc. A pobreza, absoluta e rela-tiva, característica recorrente desde a colonização aténossos dias, vem adquirindo outros conteúdos e formascom a mundialização acelerada em curso, derivada dasprofundas transformações no trabalho (precarização, de-semprego, flexibilização) e que tipifica de modo questio-nador o chamado “princípio da exclusão social”.

Nesta questão radica o imperativo primordial de res-gatar a imensa dívida social, buscando-se por todos osmeios a eliminação da pobreza, prioridade máxima à qualse devem se subordinar as reformas político-institucio-nais, sem o que a democracia se torna uma palavra vazia,destituída de conteúdo. Os governos brasileiros da “NovaRepública” não apresentaram uma estratégia coerente eeficaz de desenvolvimento social, em que pesem os diag-

nósticos contundentes que, no entanto, ignoram as cau-sas estruturais (Jaguaribe,1986). A orientação seguida con-tinua subordinando a questão social à questão econômicae as propostas se circunscrevem predominante- mente aprogramas compensatórios (do tipo Comunidade Solidá-ria) de escopo limitado. A participação de representantesgovernamentais nos vários Conselhos existentes, compoucas exceções, não tem contribuído para fortalecer ver-dadeiramente o âmbito público. A sociedade civil tem semobilizado, quer pela presença nos Conselhos (Assistên-cia Social, Criança e Adolescente, Saúde etc.), enfrentandodificuldades de representatividade e legitimidade entre sie de convivência com os membros governamentais, querpor meio de campanhas localizadas e nacionais (a Açãoda Cidadania contra a Fome e pela Vida é um exemplofértil pelo impacto gerado). Talvez a saída esteja na cola-boração: “as chances de sucesso de uma política socialcoerente com um projeto estratégico nacional dependemda amplitude dos consensos que forem se formando, emdiversos setores do Estado e da sociedade, em torno dasprioridades, das medidas, dos procedimentos e dos ins-trumentos dessa política” (Franco, 1996).

Para indicar uma proposta que envolve diretamente oEstado, mas que dependerá de pressões sistemáticas desetores civis interessados, é preciso formular uma estra-tégia de médio e longo prazos, por meio de reforma cons-titucional e de outros âmbitos, que tenha por finalidade aquebra do padrão da economia “truncada” e da regulaçãoad hoc, com o estabelecimento de regras universais acei-tas e controladas que permitam o uso dos fundos públi-cos para todos os interessados. Para ilustrar com fatosrecentes. Implementar uma reforma bancária que envol-va todo o setor, modificando a natureza e a organizaçãodos Bancos Central e do Brasil, atribuindo-lhes funçõesde normatização e fiscalização capazes de impedir a cria-ção indiscriminada de bancos e, nos existentes, capazesde impedir que a má administração leve a rombos e estra-tagemas de corrupção, sem apelação para discursos mis-tificadores de quebra do sistema financeiro e defesa dosinteresses de funcionários e correntistas, e com puniçãoexemplar dos responsáveis. Precisar melhor e expandirexperiências do tipo “Banco do Povo”.

Na mesma linha, conduzir uma reforma administrati-va que assegure descentralização, participação democrá-tica, avaliação institucional, qualidade e competência, emtodas as instâncias do Estado. E com o estabelecimentode meios adequados para evitar ao máximo a corrupçãodo uso de recursos públicos para fins privados, utilizan-do controles internos e externos. A reforma não pode serdeterminada apenas por razões de eficácia e eficiência,com objetivos de equilibrar custos e benefícios e de “en-xugar a máquina administrativa”, ainda que em alguns

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casos medidas com este escopo sejam reconhecidamentenecessárias, e levando a demissões em massa, fato em sipreocupante e com a agravante de que medidas desse tipotêm levado à perda de pessoas com conhecimentos espe-cíficos acumulados de difícil recuperação.

Dar concretude aos dispositivos constitucionais quemodificaram o cartorialismo secular da coisa pública nopaís, assegurando a descentralização e o reordenamentoinstitucional pela participação ativa dos Conselhos, emtodos os níveis de atuação, sob formas de organização,representação e funcionamento que assegurem a sua de-mocratização e uma sólida repartição do poder. Sobretu-do vencer a “privatização compulsiva e indiscriminada”da onda neoliberal, que se tem orientado por redes deparceria entre Estado e sociedade civil articuladas maior-mente “(...) com políticas utilitaristas de privatização, dedesmantelamento de direitos sociais sacramentados, dereorientação dos gastos públicos em favor de setores pro-dutivos, de seletividade na cobertura da proteção sociale, conseqüentemente, de descompromisso com as neces-sidades sociais” (Pereira, 1996:82). Neste campo, sobre-tudo estudar formas para que os Conselhos ampliem suarepresentatividade para os setores excluídos e as massasdesorganizadas.

No âmbito da sociedade civil organizada, estimular aatuação dos movimentos sociais de resistência, de denún-cia e de proposição alternativa, a fim de que, para alémdas ambigüidades em sua constituição e funcionamentoe dos problemas de consolidação, sejam instrumentos efe-tivos de democratização nos planos interno e externo,saibam conviver com o pluralismo e a diferença, densifi-quem sua autonomia e dinamizem os fóruns e redes, unamos interesses parciais e localizados com projetos maisamplos.

Potencializar iniciativas organizadas na esfera do tra-balho. Se certos ramos empresariais têm conseguido umainserção mundial e adquirir competitividade, e outros sãoeliminados com a globalização, e se as técnicas de gestãoda qualidade total invadem a organização produtiva comalguns ganhos, mas fragilizados a médio prazo pelo de-semprego estrutural e pela despreocupação com a quali-dade de vida real dos trabalhadores, é preciso rever osmodelos e o planejamento da política econômica nacio-nal. Setores expressivos dos trabalhadores têm buscadofortalecer um novo sindicalismo participativo e menosideologizado, que vença os vícios estruturais do passado,incluindo nas pautas reivindicativas temas centrais comoa redução da jornada de trabalho, os acordos coletivos detrabalho, meio ambiente, gênero, entre outros, que am-pliam a consciência de cidadania. Experiências clássicas,tais como as comissões de fábrica, e mais atuais, como asdas câmaras setoriais, mesmo considerando que tendem

a favorecer interesses corporativos, podem estimular ga-nhos publicizadores na direção da democratização da so-ciedade brasileira.

Precisar os marcos analíticos tendo em vista experiên-cias inovadoras de poder local, tais como as do orçamen-to participativo e da renda mínima, em execução por di-versas gestões de municípios dispersos pelo territórionacional, assegurando, ademais, formas institucionais desua continuidade, e estando alertas para captar novas pro-postas que avancem nessa direção.

Pressionar o Congresso Nacional para normatizar ocontrole público sobre os meios de comunicação de mas-sa, superando a tendência conservadora da privatizaçãopura e simples. A sociedade civil deve agir no campo dacomunicação política, o que requer, por um lado, a dis-cussão sobre o significado de opinião pública, o uso dapublicidade principalmente governamental, os mecanis-mos de influência eleitoral e de manipulação das infor-mações, o escopo e os limites da comunicação políticaem geral e, por outro lado, a discussão sobre o estabeleci-mento de mecanismos efetivos de controle social, por to-dos os interessados, sobre os meios massivos quando setrata de coisas que digam respeito ao público.

Instituir uma cultura cívica. Tarefa ingente e de longaduração. Um passo tentado em alguns estados da Federa-ção, às vezes ligado a reformas administrativas, tem sidoo da reciclagem dos funcionários públicos que, sem umavontade política consistente, sem conteúdos programáti-cos densos nas atividades de formação, sem o convenci-mento dos responsáveis pela burocracia, sem a participa-ção dos próprios funcionários, tem alcançado resultadosmuito aquém do esperado. Outro passo se centra na en-trada nos circuitos administrativos estatais de uma novageração de servidores, de perfil moderno weberiano, vá-rios com passagem pelas universidades, que estão dandoum novo sentido à sua presença com a compreensão deque devem ser servidores da sociedade e não dos gover-nantes, servidores do Estado como prestador de serviçospúblicos, e cuja mediação inovadora deve ser potenciali-zada.

Encaminhamos a seguir, para finalizar, algumas pon-derações selecionando três áreas nas quais o debate sobreo público tem sido estimulante: a saúde, a educação e aopinião pública.

1. Comentando as bases da reforma universal/publi-cista, característica do processo de transição democráticano Brasil, cujas conquistas na Constituição de 1988 elaconsidera tributárias das propostas formuladas pelo Mo-vimento Sanitarista, e as dificuldades subseqüentes, Fleury(1996:83) comenta que no capítulo da Ordem Social dotexto constitucional foram inscritos “os princípios da uni-versalidade, eqüidade, uniformidade e equivalência e ir-

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redutibilidade do valor dos benefícios, gestão democráti-ca descentralizada e participativa”. Acrescentamos, comperfil próprio para assegurar o caráter público. Esses prin-cípios deveriam orientar a organização da SeguridadeSocial mas, por motivos da manutenção da separação fun-cional entre previdência, saúde e assistência, acabou-sepor estabelecer um sistema de seguridade híbrido. Paraesta autora, as alterações em andamento na esfera daspolíticas sociais apresentam duas tendências: “No eixoque vai do central para o local encontramos a estratégiade construção democrática de sistemas de proteção so-cial universais e controlados socialmente, enquanto noeixo que vai do público para o privado encontramos aestratégia da racionalização da política pública voltadapara o aumento da produtividade e da eficiência com re-dução do gasto público. No cruzamento destes dois eixosencontramos possibilidades alternativas de combinaçõespolares em substituição aos modelos central/público, pre-valecente nos governos populistas, e central/privado, ca-racterístico dos regimes autoritário/burocrático, tais comolocal/público, local/privado, além de novos mix público/privado, no interior de cada uma das combinações biná-rias. Evidentemente que a combinatória a prevalecer vaidepender da articulação das forças sociais em torno desuas demandas e sua presença no cenário político nacio-nal” (Fleury, 1996:89).

Neste campo de embate, em que vem dominando aorientação baseada nos princípios da focalização, descen-tralização e privatização (que têm condicionado as polí-ticas sociais governamentais na saúde e em geral), as for-ças que propugnam o modelo universal/publicistapretendem mudanças nas políticas sociais enfatizando aampliação do controle social, da distribuição e da partici-pação.

2. Analistas defendem a necessidade de uma redefini-ção sociológica do espaço público, do espaço públicopolítico, do espaço público social. Com a passagem dachamada “sociedade de massas” para a “sociedade me-diática”, o espaço público adquire uma acepção mais vasta.Já salientamos o surgimento de um campo de interaçãoentre a comunicação política, os institutos de sondagem,a mídia e os políticos. Dessa intersecção sobressai, nofundo, o questionamento da noção clássica de represen-tação.

Na análise desta temática, constatam-se alguns dadosque sugerem indagações. O crescimento da importânciada mídia e o desenvolvimento das sondagens, as novascondições de comunicação e informação políticas quealguns chegam a sugerir como a configuração de um modocomunicacional nas democracias modernas, tudo isto es-taria restringindo ou alargando o campo da política? Oavanço das sondagens mediáticas instantâneas, das

“qualis”, que permitem ao público exprimir-se no calordo acontecimento, poderiam adensar a manipulação, odeclínio da cidadania, ou resgatar a concepção de opiniãopública?

O acesso à mídia é seletivo, podendo mesmo se falarnuma comunicação política de massas e numa comunica-ção política de elites. Há uma “gramática imposta” namídia, não raro pobre e estereotipada, refratária à com-plexidade de uma reflexão amadurecida. Não negando estarealidade, não estaria ela suscitando um novo tipo de pen-samento no contato com o público?

Os avanços tecnológicos nas comunicações são cons-tantes e multiplicadores e, certamente, trazem desafioscotidianos com enormes implicações. As ligações com omundo estimuladas pelos meios tecnológicos em expan-são, por exemplo no campo das ciências, estão gerandoum espaço público científico de outra ordem. No domí-nio privado das relações entre as pessoas em busca deparceiros, que navegam pela Internet, está surgindo umespaço público social com notável sucesso. Surge o “ce-lular global”, através do qual as pessoas falam entre sipor meio de uma rede de satélites e que foi batizado pelaUnião Internacional de Telecomunicações com o nomede “Terminal de Comunicações Pessoais Móveis Mundi-ais por Satélite”. Poder-se-ia pensar que estes processosvão atingir o espaço público político por uma comunica-ção política mediatizada passando ao largo da represen-tação tradicional? Estaríamos fortalecendo uma democra-cia mais “aclamativa” do que “participativa”?

3. Fortalecer a educação pública. Sim, porque uma novacultura de cidadania nos termos aqui enunciados deveimpregnar toda a sociedade, e um instrumento fundamentalse vincula à ação educativa. É no sistema público de en-sino que reside um dos caminhos essenciais de resgate dosentido do público. Por um lado, dar destaque aos diag-nósticos que denunciam a precariedade do ensino públi-co brasileiro e suas conhecidas mazelas, tais como carên-cias materiais, destruição do patrimônio público, políticaseducacionais errôneas e infrutíferas, arrocho salarial dosprofessores, entre tantas perversidades que imperam nes-te campo. Por outro lado, em contraste, valorizar e difun-dir o que existe de positivo, principalmente a existênciade grupos com larga tradição de luta e experiência, dis-persos pelas diversas regiões do país, de projetos inova-dores já testados e em andamento, de propostas criativas,em todos os níveis de ensino, tanto da parte das adminis-trações públicas quanto da sociedade organizada, queconstituem fatos promissores e estimulantes de que algosubstantivo se faz na direção almejada.

Para fixar a análise em dois pontos concretos, o pri-meiro deles se refere ao Fórum Nacional em Defesa daEscola Pública – FNDEP, surgido em 1986 e lançado em

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RUMOS DA ORDEM PÚBLICA NO BRASIL: A CONSTRUÇÃO DO PÚBLICO

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1987 em campanha nacional, acompanhado de um mani-festo. Para o que interessa neste trabalho, na opinião deGohn (1992:215), o Fórum apresenta uma singularidade:“é um movimento que busca preservar a atuação estatal(...) preservar em função dos direitos da maioria dos ci-dadãos, preservar o Estado do disvirtuamento que ocorreem seu interior, em que as verbas públicas são apropria-das por lobbies particulares, em função de interesses pri-vados e não públicos”. A autora pergunta qual a concep-ção de público para o FNDEP, para responder que ele ésinônimo de estatal e o estatal governamental, e a escolapública é o equipamento coletivo estatal a serviço de to-dos os brasileiros; se as verbas são estatais, arrecadadasde impostos cobrados da população, e portanto públicas,sua destinação deve ser exclusiva para as escolas públi-cas; a gestão da política educacional deve ser feita pelosFóruns Educacionais, articulados com os respectivosConselhos (nacional, estaduais e municipais). Gohn pro-blematiza a heterogeneidade dos fóruns e um fator com-plicador na defesa da participação da sociedade civil, qualseja, sua pluralidade de interesses, inclusive privados,destacando a questão das chamadas escolas comunitárias:“(...) o que estamos querendo caracterizar são as dificul-dades e as ambigüidades de se trabalhar com a categoriado público, quando o tomamos como sinônimo de esta-tal, quer seja de forma restrita (em oposição ao privado),quer de forma ampliada (como somatória da sociedadecivil e sociedade política)” (Gohn, 1992:224).

Outro ponto se baseia no processo da Lei de Diretrizese Bases da Educação – LDB. Como é sabido, ele tramitoude 1988 a 1993 na Câmara, de 1994 a 1995 no Senado, edurante 1995-96, com a nova forma dada pelo projetoDarcy Ribeiro. Convém lembrar que, desde o início, elecontou com intensa participação da sociedade e o acom-panhamento atento do FNDEP. Os defensores do projetooriginal, reconhecendo suas imperfeições e amplitude,registram, contudo, a participação democrática de sua con-dução e o resultado obtido como fruto de um ingente pro-cesso de negociação e discussão. Rejeitam o modo comose atropelou o processo e, apesar de ressaltarem algunspontos positivos no presente projeto em andamento, des-tacam a perda de conquistas obtidas anteriormente, sen-do de se salientar a diluição da obrigação do Estado coma educação, as limitações à gestão democrática, o sentidorestritivo dado à autonomia universitária, a redução daparticipação da sociedade civil, a redução da educaçãobásica ao ensino fundamental, a dissociação entre o ensi-no, pesquisa e extensão, a falta de fiscalização das verbaspúblicas, o retrocesso na educação infantil, para citar al-guns pontos (Ação Educativa, 1996).

É válido reforçar a proposição estabelecida por Rattner(1994:185), ao pensar uma “sociedade sustentável”, acerca

da exigência de qualquer transformação no sistema edu-cacional. “Nas condições estruturais e conjunturais dassociedades de desenvolvimento tardio, a democratizaçãodo ensino e sua extensão sob a forma de educação per-manente são inconcebíveis sem mudanças profundas nadistribuição social da riqueza e do poder.” As propostasdos grupos publicistas defendem a efetiva universaliza-ção da educação, a qualidade do ensino, a gestão demo-crática, a eqüidade na política e a autonomia da escola,com destaque para a eficiência e a eficácia nos gastospúblicos. Ultimamente tem sido enfatizada a possibilida-de de parcerias com setores não-estatais, tais como enti-dades privadas, ONGs e instituições comunitárias, asse-gurando-se a natureza pública da educação.

A aprovação da LDB pelo Congresso Nacional, cujotexto manteve os pontos citados anteriormente, somenteterá provada sua eficácia após alguns anos. Não obstante,é preciso deixar claro que mesmo a consecução de finslegítimos não pode obscurecer a existência de riscos paraa democracia-método. Isto é, o uso continuado de meiosque referendam a nossa longa história patrimonialista eclientelista, que reforça a manutenção da falta de culturacívica, marca da sociedade brasileira em geral, e que, porconseqüência, retarda enormemente a construção do pú-blico em nosso país.

Encerramos inspirando-nos em Weber: “Toda expe-riência histórica confirma esta verdade: o homem não te-ria alcançado o possível se, repetida vezes, não tivessetentado o impossível.”

NOTA

Este texto foi apresentado originalmente como parte da programação da Socie-dade Brasileira de Sociologia na Reunião Anual da SBPC (PUC/SP, julho de1996) e, ainda que mantendo a estrutura básica, passou por modificações de for-ma e conteúdo para publicação nesta revista.

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ressurgimento contemporâneo do conceito desociedade civil tem sido interpretado como aexpressão teórica da luta dos movimentos sociais

contra o autoritarismo dos regimes comunistas e das di-taduras militares em várias partes do mundo, especialmen-te na Europa Oriental e na América Latina.

Nas democracias liberais do Ocidente, esse conceitotem sido considerado como desprovido de potencial crí-tico para examinar as disfunções e injustiças da socieda-de, ou como pertencente às formas modernas iniciais dafilosofia política que se tornaram irrelevantes para as so-ciedades complexas de hoje. Entretanto, o conceito desociedade civil vem sendo cada vez mais usado para in-dicar o território social ameaçado pelos mecanismos po-lítico-administrativos e econômicos, bem como para apon-tar o lugar fundamental para a expansão potencial dademocracia nos regimes democrático-liberais do Ocidente.

O RENASCIMENTO DO CONCEITODE SOCIEDADE CIVIL

A história da modernidade ocidental mostrou como asforças espontâneas da economia de mercado capitalista,tanto quanto o poder administrativo do Estado moderno,ameaçaram a solidariedade social, a justiça social e a au-tonomia dos cidadãos. Segundo Cohen e Arato (1992),somente um conceito de sociedade civil devidamente di-ferenciado da economia – e portanto da “sociedade bur-guesa”– pode tornar-se o centro de uma teoria social epolítica crítica nas sociedades em que a economia demercado já desenvolveu ou está em processo de desen-volver sua própria lógica autônoma. Assim, apenas umareconstrução com base num modelo tripartite, que distin-

gue a sociedade civil tanto do Estado quanto da econo-mia, tem possibilidade de servir ao papel de oposição de-mocrática desempenhado por este conceito nos regimesautoritários, bem como de renovar seu potencial críticonas democracias liberais.

A sociedade civil, segundo essa concepção, é a esferada interação social entre a economia e o Estado, compos-ta principalmente de esfera íntima (família), esfera asso-ciativa (especialmente associações voluntárias), movi-mentos sociais e formas de comunicação pública. Asociedade civil moderna, criada por intermédio de for-mas de autoconstituição e automobilização, se institucio-naliza através de leis e direitos subjetivos que estabili-zam a diferenciação social. As dimensões de autonomiae institucionalização podem existir separadamente, masambas seriam necessárias a longo prazo para a reprodu-ção da sociedade civil.

A sociedade civil não engloba toda a vida social forado Estado e da economia. É necessário distinguir a socie-dade civil tanto de uma sociedade política de partidos,organizações políticas e parlamentos, quanto de uma so-ciedade econômica composta de organizações de produ-ção e distribuição, em geral empresas, cooperativas, fir-mas, etc. As sociedades política e econômica surgem dasociedade civil, partilham com ela algumas formas deorganização e comunicação e se institucionalizam atra-vés de direitos (especialmente direitos políticos e de pro-priedade), conjuntamente com o tecido de direitos queasseguram a sociedade civil moderna.

Mas os atores da sociedade política e econômica estãodiretamente envolvidos com o poder do Estado e com aprodução econômica visando lucro, que eles buscam con-trolar e gerir. Não podem permitir-se subordinar seus

O

LISZT VIEIRA

Professor de Sociologia da PUC-Rio. Autor do livro Cidadania e Globalização.Foi coordenador do Fórum Internacional de ONGs de 1991 a 1995.

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critérios estratégico-instrumentais aos padrões de inte-gração normativa e comunicação aberta característicosda sociedade civil. O papel político da sociedade civilnão está diretamente relacionado à conquista e ao contro-le do poder, mas à geração de influência na esfera pú-blica cultural. O papel mediador da sociedade políticaentre a sociedade civil e o Estado é indispensável, assimcomo o enraizamento da sociedade política na sociedadecivil.

O mesmo pode ser dito quanto à relação entre socie-dade civil e sociedade econômica, embora, historicamente,sob o regime capitalista, a sociedade econômica tenha sidomais hermética à influência da sociedade civil que a so-ciedade política. Apesar disso, a legalização dos sindica-tos e o papel das negociações coletivas testemunham ainfluência da sociedade civil sobre a econômica, que de-sempenha, assim, um papel mediador entre a sociedadecivil e o sistema de mercado.

A sociedade civil representa apenas uma dimensão domundo sociológico de normas, práticas, papéis, relações,competências ou um ângulo particular de olhar este mun-do do ponto de vista da construção de associações cons-cientes, vida associativa, auto-organização e comunica-ção organizada. A sociedade civil tem, assim, um âmbitolimitado, é parte da categoria mais ampla do “social” oudo “mundo da vida”. Ela se refere às estruturas de socia-lização, associação e formas organizadas de comunica-ção do mundo da vida na medida em que elas estão sendoinstitucionalizadas.

Nas democracias liberais, a sociedade civil, por defi-nição, não se opõe à economia e ao Estado. As concep-ções de sociedade econômica e política expostas anterior-mente referem-se a esferas de mediação perante as quaisa sociedade civil poderá exercer influência sobre os pro-cessos político-administrativos e econômicos. Uma rela-ção antagonista da sociedade civil, ou de seus atores, coma economia ou o Estado surge apenas quando fracassamessas mediações, ou quando as instituições da sociedadeeconômica e política servem para isolar a tomada de de-cisões da influência de iniciativas e organizações sociais,participação e formas diversas de discussão pública(Cohen e Arato, 1992).

A categoria de sociedade civil foi resgatada da tradi-ção da teoria política clássica e reelaborada mediante umaconcepção que apresenta os valores e interesses da auto-nomia social contrapostos tanto ao Estado moderno quantoà economia capitalista. Além das antinomias de Estado emercado, público e privado, gesellschaft e gemeinschaft,reforma e revolução, a noção de defesa e democratizaçãoda sociedade civil parece ser o melhor caminho para ca-racterizar as novas formas contemporâneas de auto-orga-nização e autoconstituição.

Em meio a inúmeras ambigüidades de sentido relacio-nadas ao emprego da expressão sociedade civil, a con-cepção que adotamos assume uma defesa da sociedadecivil moderna capaz de preservar sua autonomia e for-mas de solidariedade em face do Estado e da economia.Esse “terceiro caminho” busca, em outras palavras, ga-rantir a autonomia da economia e do Estado moderno aomesmo tempo em que protege a sociedade civil da pene-tração destrutiva daquelas duas esferas. Não só protegecomo garante a diferenciação da sociedade civil do queHabermas (1984) chamou de “sistema” – o Estado e omercado – bem como sua influência reflexiva sobre es-sas duas esferas através das instituições da sociedade po-lítica e econômica. 1

É importante ressaltar que as normas da sociedade ci-vil – direitos individuais, privacidade, associações volun-tárias, legalidade formal, pluralidade, publicidade, livreiniciativa – foram institucionalizadas de forma heterogê-nea e contraditória nas sociedades ocidentais, entrandoem conflito com a lógica econômica do lucro e a lógicapolítica do poder. Daí a importância dos movimentos so-ciais que surgiram para defender os espaços de liberdadeameaçados pela lógica do “sistema” .

É verdade que a política da sociedade civil não se re-sume à contestação realizada, entre outras coisas, pelosmovimentos sociais. Fazem também parte de sua políticaas formas institucionais normais de participação – votar,militar em partidos políticos, formar grupos de interesseou lobbies.

Mas a dimensão utópica de uma política radical pare-ce preferir o nível da ação coletiva. A relação entre açãocoletiva e sociedade civil é muito importante para a cons-tituição desse novo paradigma. Além de todos os mode-los funcionalistas e pluralistas, a sociedade civil deixa deser vista apenas de forma passiva, como um conjunto deinstituições, para ser percebida também ativamente, comoo contexto e o produto de atores coletivos que se auto-constituem.

RAÍZES TEÓRICAS

A noção de sociedade civil ressurgiu no cenário teóri-co e político nos anos 80, graças sobretudo à influênciade autores como Keane (1988), Wolfe (1992) e Cohen eArato (1992). Tal renascimento deve-se principalmente atrês fatores: o esgotamento das formas de organizaçãopolítica baseadas na tradição marxista, com a conseqüen-te reavaliação da proposta marxista de fusão entre socie-dade civil, Estado e mercado; o fortalecimento no Oci-dente da crítica ao estado de bem-estar social peloreconhecimento de que as formas estatais de implemen-tação de políticas de bem-estar não são neutras, e o surgi-

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mento dos chamados “novos movimentos sociais”, quecentram sua estratégia não na demanda de ação estatal,mas na proposição de que o Estado respeite a autonomiade determinados setores sociais; os processos de demo-cratização da América Latina e Europa Oriental, onde osatores sociais e políticos identificaram sua ação como parteda reação da sociedade civil ao Estado (Avritzer, 1993).

O conceito de sociedade civil se encontra no cerne dosprocessos que levaram à constituição da modernidadeocidental, que se revelou incapaz de produzir formas desolidariedade a partir de estruturas de coordenação im-pessoal de ação. Boa parte da filosofia política e da so-ciologia no século XIX esteve voltada para a questão decomo produzir formas não particularistas de ação em so-ciedades em que as formas comunitárias de solidariedadenão mais operam e em que o mercado não é solução sa-tisfatória para a geração de formas de igualdade e solida-riedade. Daí a ligação entre a necessidade de se produzirformas modernas de solidariedade e o conceito de socie-dade civil, que aparece associado a três constatações:- a sociedade civil aparece associada a processos de dife-renciação entre Estado e mercado, direito privado e di-reito público. Ela identifica a vida ética e a construção deestruturas de solidariedade com a limitação da influênciado mercado e do Estado sobre as formas interativas deorganização social. Trata-se de limitação e regulamenta-ção, e não de abolição;

- o conceito aparece associado ao sistema legal moderno,que cumpre o papel de relacionar indivíduos sem a inter-mediação do Estado, cujo poder passa a ser controladopor regras de publicidade operando como limites legaisao exercício da autoridade. Assim, o sistema legal esta-belece, através dos direitos positivos, a institucionaliza-ção não só da sociedade civil mas também de suas for-mas de controle sobre o aparelho administrativo do Estadomoderno;

- o conceito de sociedade civil implica o reconhecimentode instituições intermediárias entre o indivíduo, por umlado, e o mercado e o Estado, por outro. Essas institui-ções mediadoras cumprem o papel de institucionalizarprincípios éticos que não podem ser produzidos nem pelaação estratégica do mercado nem pelo exercício do poderde Estado. Nesse sentido, a reconstrução da solidarieda-de social na modernidade estaria associada à idéia de au-tonomia social (Avritzer, 1993).

Segundo Arato e Cohen (1994), os movimentos sociaiscontemporâneos têm se apoiado em tipos ecléticos de sín-tese, ligados à história do conceito de sociedade civil. Elespressupõem, em diferentes combinações, a divisãogramsciana tripartite entre sociedade civil, Estado e mer-cado, ao mesmo tempo em que preservam aspectos-cha-

ve da crítica marxista à sociedade burguesa. Eles reivin-dicam ainda a defesa liberal dos direitos civis, a plurali-dade societária enfatizada por Hegel, Tocqueville e ou-tros, a solidariedade social tão cara a Durkheim, e a defesada esfera pública e da participação política acentuada porHabermas e Hanna Arendt. Desta perspectiva, o fim últi-mo das revoluções não é mais a reestruturação do Estadoa partir de um novo princípio, mas a redefinição das rela-ções entre Estado e sociedade, do ponto de vista destaúltima.

Michael Waltzer (1992) concebe a “idéia de socieda-de civil” como moldura político-teórica que incorpora di-versas propostas históricas de sociedade, como a marxis-ta, associada à cooperação dos produtores diretos, a“comunitarista”, fundada no ideal rousseauniano de vir-tude cívica, a capitalista, baseada nas possibilidades ofe-recidas pelo mercado, e a nacionalista, que enfatiza a he-rança comum e as tradições históricas de uma nação.

A sociedade civil, para Waltzer, se apóia em seres so-ciais que são ao mesmo tempo cidadãos, produtores, con-sumidores e membros de uma nação. Ele aponta ainda osperigos de uma concepção despolitizada de sociedade ci-vil que prescinda do Estado, tal como foi propagada poralguns dissidentes do regime socialista do leste europeu.A sociedade é um campo de tensões onde ambas as esfe-ras – Estado e sociedade civil – devem se controlar mu-tuamente.

Já Charles Taylor (1990) distingue três diferentes ti-pos de sociedade civil. No sentido mínimo, ela existequando há associações livres fora da tutela do poder esta-tal. Num sentido mais forte, quando a sociedade podeestruturar-se e coordenar suas ações mediante associaçõeslivres da tutela estatal. E, como alternativa ao segundosentido, existe sociedade civil quando o conjunto das as-sociações pode determinar ou influenciar de forma signi-ficativa o curso das políticas do Estado.

Poder-se-ia falar de duas grandes correntes teóricas nahistória do conceito de sociedade civil. A primeira, tribu-tária da visão anti-absolutista de Locke, foi seguida porAdam Ferguson e Adam Smith, que enfatizam o carátereconômico da sociedade civil e sustentam que as pessoaspodem se auto-regular no mercado sem a intervenção dogoverno. A segunda, na tradição de Montesquieu,Rousseau e Tocqueville, ressalta as relações sociais esta-belecidas por agentes autônomos (Taylor, 1990).

HABERMAS E O MUNDO DA VIDA

O processo de modernização, segundo Weber, se ca-racterizou pela dominância da razão instrumental da ciên-cia e tecnologia sobre as outras esferas sociais. A razão,sinônimo de liberdade para os pensadores do Iluminis-

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direitos surgem como reivindicações de grupos ou indi-víduos nos espaços públicos de uma sociedade civil emer-gente. Eles podem ser garantidos por uma legalidade po-sitiva, mas não se reduzem a ela.

Segundo Arato, o direito possui uma dupla naturezaou um caráter ambíguo nas sociedades contemporâneas:como meio de controle, funciona como veículo para apenetração do mundo da vida pelo poder e pelo dinheiro;como instituição, contribui para a modernização da so-ciedade civil, assegurando sua proteção contra a penetra-ção das agências sistêmicas, tornando-se, assim, um com-ponente social do próprio mundo da vida. Neste últimosentido, o direito desempenha um papel mais regulativodo que constitutivo, servindo para expandir as esferas deação reguladas comunicativamente. Esta dimensão poten-cializadora entra em conflito com a dimensão autoritáriada intervenção burocrática implementada pela legislação.Foucault enfatizou exclusivamente o papel da legislaçãoe dos direitos como meio de controle. Mas o papel regu-lativo do direito, no segundo sentido, pode assegurar umasociedade civil autônoma, auto-regulada e universalista.Os direitos universais devem, assim, ser vistos “enquan-to princípio organizativo de uma sociedade civil moder-na, cuja instituição dinâmica é a esfera pública” (Arato eCohen, 1994).

A análise habermasiana visualisa a sociedade comoesfera simultaneamente pública e política, na qual a ex-plicação da ação social se articularia com o movimentopolítico de defesa da sociedade contra a penetração dossubsistemas nas formas comunicativas de ação. Na mo-dernidade ocidental, segundo Habermas, ocorreu um pro-cesso de diferenciação das estruturas de racionalidade quedissociou as estruturas sistêmicas das estruturas comuni-cativas do mundo da vida. Não se trata de teoria dualistade diferenciação entre Estado e sociedade, mas de umaforma múltipla de diferenciação, pois as estruturas sistê-micas econômicas e administrativas não só se diferenciamdo mundo da vida, mas também entre si.

É importante assinalar que tanto o sistema quanto omundo da vida são atravessados pelas dimensões do pú-blico e do privado. No sistema, o público é o Estado, oprivado é a economia. No mundo da vida, o público é aparticipação política dos cidadãos, e o privado é a famí-lia. A figura abaixo ilustra essas relações:

Sistema Mundo da Vida

Público Estado ParticipaçãoOpinião Pública

Privado Economia Família

mo, acabou colaborando com as guerras mundiais, o bom-bardeio nuclear de Hiroshima e Nagasaki, os campos deconcentração, a miséria e opressão das massas, tornando-se, para os filósofos da Escola de Frankfurt, sinônimo dedominação. Para buscar uma saída para este pessimismo,Habermas constrói um gigantesco e complexo sistemafilosófico baseado em sua teoria da ação comunicativa.

Além da razão instrumental, haveria uma razão comu-nicativa, fundada na linguagem, que se expressaria nabusca do consenso entre os indivíduos, por intermédio dodiálogo. Essa razão comunicativa se encontra na esferacotidiana do “mundo da vida” constituída pelos elemen-tos da cultura, da sociedade e da personalidade. Já a ra-zão instrumental predominaria no “sistema”, isto é, nasesferas da economia e da política (Estado) que, no pro-cesso de modernização capitalista, acabou dominando e“colonizando” o mundo da vida. A disputa do espaço so-cial, nos pontos de encontro entre sistema e mundo davida, constituiria a disputa política fundamental das soci-edades contemporâneas.

A razão instrumental acabou invadindo as esferas damoral e da estética. Habermas tenta resgatar o potencialemancipatório da razão ao afirmar que a modernidade éum projeto inacabado. Recusa a redução da idéia de ra-cionalidade à racionalidade instrumental-cognitiva daciência, que dominaria as esferas da racionalidade práti-co-moral (direito), e da racionalidade estético-expressi-va (arte). Para ele, é necessário fazer cessar a “reifica-ção” e a “colonização” exercidas pelo “sistema” sobre o“mundo da vida”, mediante a lógica dialogal da ação co-municativa ( Habermas, 1984).

Combinando de forma original a tradição hegeliano-marxista com o pensamento neo-kantiano da razão e comas contribuições de diversas ciências sociais, Habermasconfere centralidade ao papel do direito, cuja pretensãode validade passa agora a ancorar-se na moral e não maisna ciência. Caberia ao direito, elemento essencial à estru-turação da vida democrática, a elaboração e a regulaçãodas normas que vão orientar a busca do consenso, pelodiálogo, na ação comunicativa.

O discurso dos direitos já foi acusado de ser ideológi-co e opressor. Para Marx, os direitos formais não passamde reflexos ideológicos da propriedade e da relação detroca capitalistas. Mas nem todos os direitos podem serreduzidos ao direito de propriedade. Outra objeção clás-sica é a de Foucault, para quem os direitos constituem aprodução de vontade do Estado soberano articulada pelosistema legal positivo para assegurar a vigilância em to-das as dimensões societárias; o direito e o poder não sãovistos aqui como reflexos, mas como constitutivos dasociedade, tanto quanto as relações de produção. Mas oEstado não pode ser a fonte de sua própria validade. Os

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SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO GLOBAL

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O modelo tripartite gera, assim, dois conjuntos de di-cotomias entre público e privado. Uma no âmbito dossubsistemas (Estado/economia) e outra no âmbito da so-ciedade civil (formação da opinião pública/família). Es-tas quatro dimensões se relacionam por uma série de tro-cas tornadas possíveis pelos meios de controle do dinheiroe do poder. Podemos assim distinguir entre as instituiçõesda esfera privada coordenadas comunicativamente (famíliaou relações de amizade) e aquelas que são coordenadaspelos mecanismos sistêmicos (economia). O mesmo ocorreem relação às duas esferas públicas analiticamente dis-tintas. Em decorrência, pode-se imaginar processos dedesprivatização que não envolvem estatização, bem comomostrar que a intervenção do Estado na economia nãoacarreta necessariamente a absorção ou supressão de umasociedade civil autônoma.

O conflito entre Estado e mercado, de um lado, e asestruturas interativas do mundo da vida, de outro, levaeste último a se organizar em movimentos sociaisfundantes da democracia que, para Habermas, é a institu-cionalização no sistema político das sociedades moder-nas dos princípios normativos da racionalidade comuni-cativa. A esfera pública é o local de disputa entre osprincípios divergentes de organização da sociabilidade.Os movimentos sociais constituem os atores que reagemà reificação e à burocratização, propondo a defesa dasformas de solidariedade ameaçadas pela racionalizaçãosistêmica. Eles disputam com o Estado e com o mercadoa preservação de um espaço autônomo e democrático deorganização, de reprodução da cultura e de formação deidentidade e solidariedade.

Habermas não chega a oferecer uma teoria da socieda-de civil, mas sua distinção analítica entre lógica do siste-ma e lógica do mundo da vida proporciona um marcoanalítico onde se pode situar o conceito de sociedade ci-vil. O conceito de integração sistêmica constitui uma pri-meira aproximação dos mecanismos pelos quais a econo-mia capitalista e a administração burocrática modernacoordenam a ação. Além disso, o conceito de integraçãosocial do mundo da vida, enquanto consenso normativa-mente assegurado e comunicativamente reproduzido,aponta o espaço no qual o conceito hermenêutico de so-ciedade civil pode localizar-se.2

MOVIMENTOS SOCIAISE GRUPOS DE INTERESSE

A partir dos anos 80, a militância partidária começoua entrar em declínio em função da perda de prestígio dospartidos políticos. Estes deixaram de atrair o interessepolítico de muitos cidadãos que passaram a se envolvercom outros grupos e atividades. Aumentou o fosso entre

o sistema institucional de representação no plano do Es-tado e a chamada sociedade civil organizada.

As associações da sociedade civil têm o papel de for-madoras da opinião pública e de constituidoras da opi-nião coletiva nos espaços situados fora do Estado e domercado. Distinguem-se dos “grupos de interesse”, ca-racterizados pela lógica dos interesses econômicos parti-cularistas e pela defesa dos interesses privados específi-cos, como, por exemplo, as organizações sindicais eempresariais.

Os atores da sociedade civil organizados em movimen-tos sociais cumprem função pública, absorvendo a açãocomunicativa existente no mundo da vida e transpondo-apara a esfera pública. Defendem o interesse público e seconstituem como instância de crítica e controle do poder.Os grupos de interesse, por outro lado, possuem uma vi-são corporativa, organizam-se em lobbies e buscam seapropriar dos espaços públicos em função dos seus inte-resses particularistas.

Os movimentos sociais levantam a bandeira da auto-nomia e da democratização da sociedade, mas seria umerro imaginar que eles podem prescindir das instituiçõesdo Estado como sociedade politicamente organizada. Daía necessidade de uma estratégia política dual (Cohen eArato, 1992): os movimentos sociais devem atuar no pla-no institucional e extra-institucional, apoiando-se ao mes-mo tempo nas organizações da sociedade civil e em ou-tros atores, como partidos e sindicatos.

O professor Sergio Costa (1994), em aguda observa-ção, mostra que Habermas fez uma revisão de sua classi-ficação de movimentos sociais. Na Teoria da Ação Co-municativa, estes eram considerados defensivos, comexceção do movimento feminista, que seria o único pro-priamente ofensivo. A partir da noção de “política dual”desenvolvida por Cohen e Arato, Habermas, em seu livroFacticidade e Validade, passa a considerar os movimen-tos sociais como atores “duais”, com orientação políticadupla, simultaneamente defensiva e ofensiva.

A distinção entre movimentos sociais e grupos de pres-são, na prática, nem sempre é muito clara. Em princípio,os primeiros exercem uma função pública, ao defenderinteresses públicos de forma aberta e transparente, forta-lecendo com sua ação a esfera pública. Já os segundos,como vimos anteriormente, se caracterizam pela defesade seus interesses particularistas.

Às vezes, organizações da sociedade civil lutam porseus interesses particulares realizando acordos de cúpu-la, sem discussão pública. Foi o que ocorreu, por exem-plo, com certas associações de moradores que acertaramacordos com o Estado no mesmo estilo dos grupos de in-teresse. Nesses casos, como observa Sérgio Costa, não émais possível distinguir as organizações da sociedade

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civil dos grupos de interesse que se utilizam do Estadopara a consecução de seus objetivos particulares (Costa,1994).

Contudo, não é possível, de modo algum, eliminar adistinção analítica entre movimentos sociais e organiza-ções da sociedade civil voltados para a defesa da cidada-nia e do interesse público, por um lado, e associações decaráter econômico e político-administrativo, por outro. Éo que se tenta fazer com a idéia de “setores intermediári-os” que cai na vala comum ao colocar no mesmo planotodas as organizações entre o Estado e a sociedade civil,desde associações filantrópicas a partidos e sindicatos.

É também o que tentam fazer aqueles que em vão pro-curam desqualificar as organizações da sociedade civil,equiparando-as a grupos de interesse. Mas os inúmerosexemplos de movimentos sociais que lutam por interes-ses públicos, como bem ilustra, entre outros, a Ação daCidadania contra a Fome e a Miséria, mostram que as as-sociações civis desempenham cada vez mais um papel defortalecimento da esfera pública.

A ESFERA PÚBLICA NÃO-ESTATAL

A partir da década de 70, a noção de sociedade civilsofreu uma verdadeira ruptura conceitual. Expressõescomo autonomia, autogestão, independência, participação,empowerment, direitos humanos, cidadania passaram a serassociadas ao conceito de sociedade civil.

Não se trata mais de um sinônimo de sociedade, masde uma maneira de pensá-la, de uma perspectiva ligada ànoção de igualdade de direitos, autonomia, participação,enfim, direitos civis, políticos e sociais da cidadania. Emvirtude disso, a sociedade civil tem de ser “organizada”.O que era um estado natural nos filósofos contratualistas,ou uma condição da política moderna em Hegel e Marx,torna-se agora um objetivo para os ativistas sociais doSegundo e Terceiro Mundos: a sociedade civil tem de serconstruída, reforçada, consolidada. Trata-se de meio e fimda democracia política (Fernandes, 1995).

Resgatada dos livros de História pelos ativistas sociaisdas últimas décadas, a noção de sociedade civil se trans-forma e passa a ser compreendida em oposição não ape-nas ao Estado, mas também ao mercado. Trata-se agorade uma terceira dimensão da vida pública, diferente dogoverno e do mercado. Em vez de sugerir a idéia de umaarena para a competição econômica e a luta pelo poderpolítico, passa a significar exatamente o oposto: um cam-po onde prevalecem os valores da solidariedade.

É com esta perspectiva que trabalham alguns pensa-dores contemporâneos que forneceram importantes sub-sídios teóricos para a atuação das chamadas organizaçõesnão-governamentais, tais como Alan Wolfe. O próprio

Habermas, como vimos, rompera com a correlação ideo-lógica unívoca entre sociedade civil e esfera privada,esta última entendida como economia, e o Estado, enten-dido como esfera pública. Há uma esfera privada no “sis-tema” (economia) e uma esfera pública não-estatal, cons-tituída pelos movimentos sociais, ONGs, associações decidadania.

Assim, os conceitos de público e privado já não seaplicam automaticamente ao Estado e à sociedade civil,respectivamente. É possível dizer hoje que existem tam-bém as esferas do estatal-privado e do incipiente social-público.

Na esfera estatal-privada estão as empresas e as cor-porações estatais que, embora formalmente públicas, en-contram sua lógica na defesa de interesses particulares,econômicos ou setoriais, comportando-se, na prática,como organizações de mercado. Já na esfera social-pú-blica, ainda emergente, encontram-se os movimentos einstituições que, embora formalmente privados, perse-guem objetivos sociais, articulando a construção de umespaço público não-estatal. É o caso das organizações não-governamentais que, como sugere Alan Wolfe (1992), sãotambém organizações de não-mercado (ONMs) e, ainda,organizações não-corporativas.

Dessa esfera pública não-estatal estariam excluídos ospartidos políticos que, embora formalmente possam serconsiderados instituições da sociedade civil, comportam-se como organizações pró-estatais. Voltados à luta pelopoder, os partidos acabam assumindo as “razões de Esta-do”, pois seu centro estratégico não se situa no interiorda sociedade civil que buscam representar, mas no mo-delo de Estado que pretendem conservar ou mudar (Fran-co, 1994).

Para Alberto Melucci (1988), a existência de espaçospúblicos independentes das instituições do governo, dosistema partidário e das estruturas do Estado é condiçãonecessária da democracia contemporânea. Como interme-diações entre o nível do poder político e as redes da vidacotidiana, esses espaços públicos requerem simultanea-mente os mecanismos da representação e da participação.Ambos são fundamentais para a existência da democra-cia nas sociedades complexas. Os espaços públicos sãopontos de conexão entre as instituições políticas e as de-mandas coletivas, entre as funções de governo e a repre-sentação de conflitos.

A construção dessa esfera social-pública como parti-cipação social e política dos cidadãos passa pela existên-cia de entidades e movimentos não-governamentais, não-mercantis, não-corporativos e não-partidários. Taisentidades e movimentos são privados por sua origem, maspúblicos por sua finalidade. Eles promovem a articula-ção entre esfera pública e âmbito privado como nova for-

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ma de representação, buscando alternativas de desenvol-vimento democrático para a sociedade.3

As ONGs que cumprem funções públicas percebem suaprática como inovadora na articulação de uma nova esfe-ra pública social e se consideram precursoras de uma novainstitucionalidade. O Estado, o mercado, as corporaçõese os partidos não seriam suficientes para a articulação eampliação da esfera pública, nem seriam adequados paraa construção de uma nova institucionalidade social-pú-blica. Ao contrário, a pressão de uma esfera social-públi-ca emergente que poderia efetivamente reformar e demo-cratizar o Estado, o mercado, as corporações e os partidos.

Em suma, essas entidades e movimentos da sociedadecivil, de caráter não-governamental, não-mercantil, não-corporativo e não-partidário podem assumir um papelestratégico quando se transformam em sujeitos políticosautônomos e levantam a bandeira da ética, da cidadania,da democracia e da busca de um novo padrão de desen-volvimento que não produza a exclusão social e a degra-dação ambiental.

RUMO À SOCIEDADE CIVIL GLOBAL

Expressão de uma crescente necessidade internacionalde regulação, que o sistema vigente não podia satisfazer,as organizações governamentais e não-governamentaisproliferaram rapidamente. De 1939 a 1980, as organiza-ções governamentais aumentaram de 80 para mais de 600,enquanto as ONGs cresceram de 730 para 6.000. A partirdos anos 80, esse crescimento tem sido ainda mais im-pactante. Este é um dos fatores que, ao lado de algunsoutros (degradação ambiental global, erosão da hegemo-nia norte-americana, dificuldades de integração da Euro-pa Oriental na “nova ordem mundial”), aponta para a re-visão do sistema internacional.

Apesar das tendências à constituição de uma funçãopública transnacional, o Estado nacional/territorial con-tinua sendo a instância central de legitimação do poder eo destinatário de demandas da população. Conseqüente-mente, a socialização global origina problemas sociais,econômicos e ecológicos – cuja solução os cidadãos exi-gem do Estado –, ao mesmo tempo que reduz cada vezmais a capacidade dos Estados nacionais para resolverproblemas. A solução desses problemas parece exigir uma“nova ordem mundial”, formas adequadas de coordena-ção política inter e transnacional, sem as quais são inevi-táveis catástrofes de dimensões globais (catástrofes eco-lógicas, novas formas de terrorismo, etc.).

A necessidade de regulação política global não signi-fica perda de significado do Estado nacional: no TerceiroMundo, cabe aos Estados nacionais promover o desen-volvimento econômico e político; as iniciativas de socia-

lização global, além de acarretarem maiores exigênciasao Estado, também geram incertezas e inseguranças quevêm reforçar a necessidade de identidade nacional, en-quanto não surgem novas identidades em outros âmbitos.

Mas o Estado já não detém o monopólio do espaçopúblico. A expansão das ONGs internacionais pode servista como ponto de partida para orientações políticasglobais (ou, ao menos, que excedam o nacional) e, por-tanto, também como núcleo originário de uma sociedadecivil mundial. Este fenômeno, porém, ainda é limitado.

Novos problemas acabam por exigir novas instânciasde decisão: enquanto o perigo de uma catástrofe globalparecia provir apenas de uma possível guerra atômica, acoordenação política internacional vigente poderia sersuficiente, já que implicava, sobretudo, as relações mili-tares leste-oeste. Os novos cenários que surgem hoje pa-recem de difícil superação nos limites institucionais vi-gentes. Exemplo são as ameaças ao ecossistema global eos perigos de uma desestabilização político-social de di-mensão universal em decorrência das crescentes desigual-dades sociais. Neste contexto, uma transferência pelo me-nos parcial da soberania a instâncias de decisão efetivas,democraticamente legitimadas em nível global, pareceinevitável a médio ou longo prazo (Hein, 1994).

A Esfera Pública Transnacional

Ainda não surgiu nenhuma instituição com legitimi-dade suficiente para desempenhar em escala mundial opapel regulador que os Estados exercem nacionalmente.Desde o final da Guerra Fria, a ONU vem assumindo po-sições mais ativas, com intervenções militares ou confe-rências para discussão de problemas globais. Após a Eco-92 no Rio, tivemos as conferências de Direitos Humanosem Viena, de População no Cairo, de DesenvolvimentoSocial em Copenhague, das Mulheres em Pequim e daHabitação em Istambul. Embora de eficácia questionável,as conferências têm contribuído para a criação de um es-paço público mundial para o equacionamento de questõesplanetárias.

A constituição dessa esfera pública global tem permi-tido a emergência de um ator imprescindível ao processode globalização: a sociedade civil. Referimo-nos aqui àmultiplicidade de organizações que, seja em nome dosdireitos de determinados grupos sociais, seja da noção debem-comum, não se submetem nem às razões de Estado,nem aos mecanismo de mercado, como é o caso, sobretu-do, das ONGs e dos movimentos sociais que vêm se arti-culando mundialmente. A articulação transnacional dasociedade civil consiste hoje numa das poucas formas deresistência aos desequilíbrios gerados pela globalização,pois seus princípios éticos apontam para a instituição de

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direitos a serem universalmente reconhecidos. “Talvez istoseja a invenção de uma espécie de cidadania planetária,que pode ser a base de uma democracia em escala mun-dial” (Muçouçah, 1995).

O Estado e o mercado, sozinhos, não parecem ter con-dições de enfrentar a crise econômica, social e ambientalem que estamos mergulhados e de resolver os desafioscontemporâneos. A sociedade está sendo chamada cadavez mais a formular alternativas. A mesma crise que en-fraquece o Estado nacional tende a fortalecer as organi-zações da sociedade civil.

O que significa uma sociedade civil global? A globa-lização implica a importância crescente do nível supra-territorial, ou aterritorial, das instâncias globais e, por-tanto, a possibilidade e a necessidade de desenvolvimentode uma sociedade civil global, o que significa uma esferaque seja não-capitalista/não-Estado ou anticompetitiva/anti-hierárquica para os esforços democráticos. Daí asdiscussões sobre a reforma da ONU e de instâncias inte-restatais sobre novos padrões, como o direito de comuni-car-se, o funcionamento dos movimentos sociais globaise a inter-relação entre organizações interestatais, ONGse movimentos sociais globais, que vão além dos distritoseleitorais/territoriais.

A sociedade civil global não é um paraíso de liberda-de desterritorializada, de solidariedade, de preocupaçãoecológica ou de tolerância pluralista. Mas pode ser o es-paço para civilizar e superar as estruturas/processos/ideologias capitalistas, estatistas, tecnocráticas, etc. É antesum habitat que deve ser construído contínua e coletiva-mente que uma estrutura já existente e representada, ain-da imperfeitamente, pelos movimentos sociais internacio-nais.

O desenvolvimento de uma sociedade civil global de-pende da democratização, da desconcentração e da des-centralização das organizações interestatais e instituiçõescapitalistas globais, ao mesmo tempo que estimula essesprocessos. Uma sociedade civil global requer a noção decidadania planetária, que já não pode ser simplesmente ouniversalista religioso, o cosmopolita liberal ou o inter-nacionalista socialista. A transição gradual do capitalis-mo industrial ao capitalismo de informação, as múltiplascrises de crescimento e uma propagação da consciênciaecológica impõem a necessidade de alternativas que con-duzam a uma política eticamente informada e consciente.

Last but not least, a construção de uma esfera públicatransnacional estará balizada por dois princípios: o inte-resse público internacional e o patrimônio comum dahumanidade. Os direitos humanos e o interesse públicointernacional erguem limites à afirmação das soberaniase, segundo Celso Lafer, se expressam “através da instau-ração do ponto de vista da humanidade, como princípio

englobante da comunidade mundial” (Monserrat Filho,1995).

A noção de patrimônio comum da humanidade tam-bém reconhece interesses superiores da comunidade in-ternacional face ao impasse entre interesses públicos eprivados internacionais. Os dois princípios acarretam umarevolução no direito internacional público, tradicional-mente baseado no conceito de soberania, ao transformá-lo em direito geral da humanidade ou, retomando a ex-pressão romana, direito das gentes.

Os Movimentos Sociais

Segundo Anthony Giddens, a etapa contemporânea éde modernidade alta ou radical, caracterizada como o pe-ríodo do capitalismo de informação, complexo, globali-zado e de alto risco. A globalização provocou um des-centramento do poder em nível internacional: ele residecada vez menos em um cenário territorial unificado, ouem um sujeito privilegiado único (como a burguesia in-ternacional), ou em um determinante primário (militar/estratégico), ou em um nível primário (o Estado nacio-nal).

Não se pode mais continuar entendendo a ordem mun-dial como assunto de relações entre Estados ou blocoshegemônicos. É necessário uma visão que considere ascomplexidades das relações entre tempo e lugar e as am-bigüidades do espaço como lugar. A teoria da globaliza-ção requer uma teoria multidimensional do espaço, umprocesso simultâneo de âmbito e intensidade espaço-tempo(Giddens, 1990 e Harvey, 1994).

As relações sociais em cada localidade sofrem cres-centemente, mesmo que de modo diverso, o impacto deeventos e processos distantes; e esta relação de entre-meamento também pode ser observada entre classes, gru-pos étnicos e sexos. O reconhecimento do alcance e daintensidade cada vez maiores das relações de espaço etempo, de uma socialização global cada vez mais inter-dependente, tornam arcaicas as noções tradicionais e sim-plistas do mundo social e de sua transformação. Os de-terminismos de classe, econômico e tecnológico, oinsurrecionalismo político e o apocalipticismo global pa-recem hoje superados pelos novos movimentos sociais quecomeçam a apresentar respostas mais complexas às preo-cupações globais.

A globalização produz, por um lado, movimentos de-mocráticos, pluralistas e progressistas que assinalam apossibilidade de alternativas pós-modernas (pós-milita-ristas, pós-industriais, pós-capitalistas) e a descoberta deexpressão política coletiva. Por outro lado, origina movi-mentos autoritários, militaristas e apocalípticos, religio-sos e seculares, de direita e de esquerda (como o Sendero

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Luminoso no Peru e os movimentos fundamentalistas,fascistas e racistas em muitos países).

Um capitalismo de informação global parece oferecerterreno mais favorável aos movimentos sociais que o ca-pitalismo industrial internacionalizado. O poder dos no-vos movimentos em nível local, nacional e internacionalradica antes em suas novas idéias, valores e princípiosorganizacionais, que no entendimento implícito e no usodas tecnologias de informação. Isto tem sido de grandeutilidade no combate aos efeitos perversos da globaliza-ção econômica, que analisamos em outro trabalho.4

AS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAISNO ESPAÇO GLOBAL

As três dimensões da atual discussão sobre a ordemmundial – a internacionalização da função pública, a reor-ganização das relações internacionais após o fim do con-flito leste-oeste e uma ordem econômica mundial para odesenvolvimento sustentável – representam aspectos deum processo de transformação, mundial e a longo prazo,da função pública nacional em global. Este processo detransformação corresponde à tendência de globalizaçãoinerente ao capitalismo, e transcorre de modo assincrôni-co e contraditório.

Uma das principais características do mundo contem-porâneo é a globalização econômica e o desenvolvimen-to de novas formas de solidariedade entre os cidadãos,configurando uma tendência para a constituição de umasociedade civil global como contraponto à tendência aorelativo enfraquecimento do Estado nacional. Para RolandRobertson (1994), entre os elementos que caracterizam afase atual da globalização – que ele denomina “fase daincerteza”, iniciada nos anos 60 – encontram-se a socie-dade civil mundial e a cidadania mundial.

Por outro lado, Boaventura de Sousa Santos (1995)assinala que nos últimos 20 anos novas formas de açãosocial transformadora emergiram no mundo, como osmovimentos populares ou novos movimentos sociais comnovas agendas políticas – ecologia, paz, anti-racismo, anti-sexismo – ao lado das agendas tradicionais de melhoriada qualidade de vida – sobrevivência econômica, habita-ção, terra, bem-estar social, educação.

Esses movimentos, centrados nos temas de democrati-zação, cidadania, liberdades, identidade cultural, alémdaqueles que constituem a “herança comum da humani-dade” (sustentabilidade da vida humana na terra, meioambiente global, desarmamento nuclear) assumiram aforma de organizações não-governamentais e, particular-mente, de ONGs transnacionais. Os Tratados Alternati-vos das ONGs, aprovados no Fórum Global durante a Con-ferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, realizada no Rio em 1992, constituem,segundo esse autor, “uma eloqüente demonstração do di-namismo das ONGs transnacionais”.

Para o prof. Richard Falk (1995), da Universidade dePrinceton, além da “globalização por cima”, conduzidapelos Estados dos países dominantes e pelas forças domercado mundial, haveria uma “globalização por baixo”,conduzida pelas forças democráticas transnacionais, en-quanto veículos do “direito da humanidade”, visando acriação de uma sociedade civil global, como alternativa àeconomia global desenhada pelas forças de mercado trans-nacionais. As esperanças da humanidade dependeriam dacapacidade de a “globalização por baixo” enfrentar comeficácia a dominação da “globalização por cima” numasérie de arenas-chave que poderiam ser identificadas, emtermos gerais, como a ONU (e outras instituições inter-nacionais), a mídia e a orientação dos Estados.

Segundo diversos estudiosos da globalização, o siste-ma político mundial necessita da sociedade mundial. Asociedade civil é condição para o desenvolvimento de umafunção pública internacional democrática: só serão cria-das as bases para superar as contradições entre a sociali-zação global e a organização política em Estados nacio-nais quando as instituições globais começarem a serdestinatárias das demandas de uma maioria pobre que seauto-organiza nos atuais países em desenvolvimento.

Isto pressupõe que ao desenvolvimento da função pú-blica a partir de cima (instituições e regimes internacio-nais controlados pelos países industrializados dominan-tes) se oponha, a partir de baixo, uma sociedade civilmundial cada vez mais forte (entre outras coisas, mediantea maior expansão e coordenação do trabalho das ONGsinternacionais), que se converta na base para o desenvol-vimento da função pública democrática em escala mun-dial. Para Hein (1994), “a tentativa de conjurar a ameaçaao meio ambiente mediante uma política de desenvolvi-mento sustentável pode converter-se no veículo centralde um espaço público global democrático, pois essa ten-tativa, quando séria, implica uma nova ordem econômicae social em nível mundial”.

A crise global e a constatação de que o Estado e omercado por si sós não vão resolvê-la tendem a fortale-cer o papel das ONGs como organizações da sociedadecivil na construção de alternativas e de mecanismos decooperação internacional.

As ONGs estão vivendo um processo de construçãode sua identidade política como ator nesse processo deglobalização, no qual sua participação é ainda irregular.Elas atuam fazendo lobby nas grandes organizações in-ternacionais, na ONU, nas organizações multilaterais eajudam na formulação de políticas ou de decisões quantoa projetos, mas não estão ainda articuladas e coordena-

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das de modo a assegurar a eficácia política dessa atuaçãono plano internacional. Por isso, pode-se dizer que asONGs ainda não são, mas tendem a se constituir comoatores no processo de globalização, principalmente no quediz respeito à construção de uma nova institucionalidadepolítica global.

A explosão de atividades não-governamentais em ge-ral, e das ONGs em particular, reflete a maior permeabi-lidade das fronteiras nacionais, bem como os avanços nascomunicações modernas. ONGs dispersas geograficamen-te e organizações comunitárias de base local podem hojedesenvolver agendas e objetivos comuns no plano inter-nacional.

Papel das ONGs

Segundo estimativa do PNUD – Programa das NaçõesUnidas para o Desenvolvimento, a atuação das ONGsbeneficia cerca de 250 milhões de pessoas nos países emdesenvolvimento. As organizações não-governamentaise voluntárias tornaram-se importantes peças de apoio aosprogramas de desenvolvimento nas últimas décadas. Em1992, a assistência oficial para desenvolvimento dos paí-ses subdesenvolvidos alcançava 58,7 bilhões de dólares.Nesse ano, as ONGs distribuíram 5,5 bilhões em doações,representando 10% da assistência governamental e cons-tituindo o quinto maior grupo doador (OCDE, 1994).5

Existem ONGs atuando nos planos local, nacional,regional e internacional. A vinculação local e a conexão in-ternacional possibilitam que as ações locais possam se inter-ligar globalmente. É comum a associação de ONGs emredes, que aumentam sua eficácia e seu campo de atuação.

Em muitos países, as ONGs ajudam a formular as po-líticas públicas. Em outros, seu papel é importante parafiscalizar projetos bem como para denunciar arbitrarie-dades do governo, desde violações de direitos humanosaté omissão no cumprimento de compromissos públicos,nacionais ou internacionais. Em alguns países, as ONGssão criadas espontaneamente como associações civis debase. Em outros, são criadas, de cima para baixo, peloEstado ou empresas do mercado. Neste caso, existe umvício de origem que compromete a autonomia da organi-zação, salvo se ela tiver capacidade de absorver as rei-vindicações da cidadania e de captar lideranças locais quetransmitam os verdadeiros anseios das comunidades.

As ONGs, em muitos países, têm desenvolvido umapolítica de alianças de caráter duplo. De um lado, aliam-se ao Estado para exigir do mercado o equacionamentodos custos sociais e ambientais da produção exigido pelodesenvolvimento sustentável; de outro, aliam-se ao mer-cado para exigir do Estado a realização de reformas de-mocráticas que aumentem sua eficiência administrativa.

Mas vai além a responsabilidade atual dessas organi-zações. Em face dos impasses criados pelo modelo eco-nômico predominante no mundo, predatório ecologica-mente e injusto socialmente, essas entidades estão sendochamadas a desempenhar um papel de crucial importân-cia: o de buscar alternativas, da perspectiva da sociedadecivil, para a crise ecológica e social que, pela degradaçãoambiental, ameaça o planeta e, pela globalização da po-breza, flagela a humanidade.

Participação Internacional

Nas reuniões internacionais não existem procedimen-tos uniformes para a participação das ONGs, que conse-guiram se integrar em contextos decisórios de variadasformas. Em muitos países, especialmente no Ocidente(Canadá, Holanda, Suécia, França, etc.), já é rotina a inclu-são de representantes de ONGs nas delegações nacionaisàs conferências internacionais. Eles participam diretamen-te das negociações como representantes da delegação na-cional e são designados como “membros públicos”. Me-tade das delegações do Canadá e dos EUA na Conferênciasobre População no Cairo (setembro de 94) era compostade representantes de ONGs. Existe, entretanto, segundoalgumas organizações, o perigo de cooptação, o que ex-plica a recusa dos grupos de direitos humanos de partici-par das delegações governamentais.

Os países de tradição autoritária são mais herméticosà influência das organizações da sociedade civil. Porém,o processo das conferências das Nações Unidas, inaugu-rado com a Rio-92, forçou muitos governos, inclusive odo Brasil, a se abrirem ao diálogo com as ONGs. Posteri-ormente, o governo brasileiro, a exemplo daqueles dospaíses mais democráticos do Norte, convidou represen-tantes da sociedade civil a integrarem a delegação doItamaraty em conferências sobre População no Cairo (94),Cúpula Social em Copenhague (95), Mulheres em Pequim(95) – o que jamais ocorrera antes dos anos 90.

Wally N’Dow, secretário geral da Conferência Habi-tat II, realizada na cidade de Istambul, em junho de 1996,afirma que houve uma revolução na forma de trabalho daONU, pois pela primeira vez as autoridades locais e asONGs tiveram assento e voz no plenário de uma Confe-rência das Nações Unidas, embora sem direito a voto. Paraele, o principal avanço foi a presença de novos parceirosna mesa de negociações.

Além das conferências, as ONGs participaram de di-versos grupos de trabalho que definiram normas, diretri-zes e regimes de proteção. A Convenção dos Direitos daCriança, por exemplo, teve participação direta da entida-de internacional Salvem as Crianças, além de outrasONGs. Desde 1968, uma série de ONGs tem status con-

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sultivo junto à Comissão Econômica e Social da ONU. ADeclaração de Estocolmo de 1972 e a Convenção deBiodiversidade da Rio-92 partiram de documentos ela-borados pela União Internacional pela Conservação daNatureza. Os povos indígenas têm representação diretana Comissão de Direitos Humanos, as organizações demulheres alcançaram vitórias expressivas na Conferên-cia sobre População do Cairo, as organizações ambienta-listas participam das reuniões da Comissão de Desenvol-vimento Sustentável.

Como assinalou o Fórum de ONGs Internacionais es-tabelecidas no Canadá, os dirigentes de ONGs têm maisforça do que a maioria dos governos de pequenos países.O secretário-geral da Anistia Internacional ou doGreenpeace, por exemplo, tem mais poder de influênciano cenário internacional do que muitos países do Tercei-ro Mundo (Foy e Régallet, 1995).

A inclusão das ONGs no processo de decisão não estáformalizada. Isto depende, não raro, da compreensão dapresidência dos trabalhos e da tolerância das delegaçõesnacionais. Ainda assim, documentos elaborados por ONGssão por vezes oficialmente apresentados em plenário atra-vés de um membro de um governo qualquer. As regrasda ONU dificultam a participação direta das ONGs, so-bretudo as do sul. A ONU ainda não incorporou integral-mente o espírito da Agenda 21, aprovada na Conferênciada Rio-92, que dedica dez de seus 40 capítulos a discutiro envolvimento dos chamados “grupos sociais principais”no acompanhamento, desenvolvimento e implementaçãodas medidas de desenvolvimento sustentável aprovadaspelos governos.

Há uma série de propostas de reformas voltadas a as-segurar a participação formal das ONGs nos organismosinternacionais. Lembrando os precedentes da Organiza-ção Internacional do Trabalho – OIT e da Organizaçãopara a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico –OCDE, essas propostas propugnam a extensão desse re-conhecimento formal para outros contextos, como órgãosda ONU, entidades internacionais de acompanhamento emonitoramento das decisões da ONU e instituições deBretton Woods, nas quais as ONGs teriam assento junta-mente com os governos e empresas.

As reformas propostas, incluindo o Direito de Petiçãopara atores não-estatais, assegurariam, mediante proce-dimentos equitativos, a participação da sociedade civil nasreuniões intergovernamentais, no sistema das NaçõesUnidas e nas instituições financeiras internacionais. Osbenefícios institucionais resultantes seriam evidentes, pois,segundo assinalou a Comissão sobre GovernabilidadeGlobal – iniciativa do ex-chanceler alemão Willy Brandtpara analisar o sistema internacional – um fator crucialna eficácia das organizações é a percepção de sua legiti-

midade, vinculada à participação e à transparência em seuprocesso decisório e à natureza representativa de seusórgãos executivos.

Reivindicar a primazia da sociedade civil exige a arti-culação de valores humanos universais que vão além dadominação do Estado e das forças do mercado. Tudo in-dica que as ONGs têm um papel importante a desempe-nhar nesse processo. Temas globais como direitos dasmulheres, população, emprego, economia, meio ambien-te, migração requerem fóruns globais para examinar asescolhas e decisões. As ações das ONGs tendem a forta-lecer a autonomia e a capacidade das organizações dasociedade civil em todo o mundo. Elas estão enfrentandoo enorme desafio de levar os problemas do âmbito localao global e vice-versa.

É muito difícil criar políticas e mecanismos de coor-denação entre organizações de culturas diversificadas.Apesar de todas as limitações, a emergente sociedade ci-vil global pretende desempenhar um papel histórico im-portante de consciência moral do planeta, e também deexpressar as necessidades e aspirações que se tornaramuma demanda social em todas as partes e de propor asrespectivas soluções.

Em síntese, existem fortes indicações de que as ONGstendem a desempenhar um papel crescente nas negocia-ções internacionais, como catalisadores de mudanças des-tinadas a incorporar a sociedade civil ao processo de to-mada de decisões, e como instrumento de uma emergentecidadania planetária enraizada em valores humanos uni-versais. As organizações não-governamentais que atuamno plano internacional poderão, assim, contribuir para aconstituição de uma nova institucionalidade política con-substanciada numa esfera pública transnacional.

GOVERNABILIDADE GLOBALE CIDADANIA PLANETÁRIA

A idéia de governabilidade global tem encontradomuitas resistências, principalmente nos países do sul, ondea interdependência crescente, de dinâmica essencialmen-te econômica, tem se traduzido em maior dependência emenor governabilidade. A noção de global governance,como já vimos, não se confunde com a idéia de governoglobal de caráter centralizado. Trata-se antes de um sis-tema global de governo e de tomada de decisões envol-vendo os atores que atuam no cenário internacional.

Vivemos uma situação inédita, pois o problema já nãoé apenas a articulação nacional/internacional, mas tam-bém a amplitude e a intensidade dos problemas globais eo acesso aos níveis de decisão pertinentes. Como o Esta-do soberano já não é a melhor instância para tomar deci-sões em escala planetária, torna-se imperiosa a necessi-

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dade de regulação em termos mundiais – uma governabi-lidade global – para enfrentar os desafios impostos à hu-manidade e ao planeta.

Apesar disso, a “Nova Ordem Mundial” – prometidaapós a Guerra do Golfo e a queda dos regimes comunis-tas do leste europeu – não passa hoje de um mundo frag-mentado, conflituado, sem ordem coerente e marcado pelageneralização dos conflitos intra-estatais. A proposta degovernabilidade global, encaminhada nos anos 80 a par-tir de questões de segurança e meio ambiente, não foiacompanhada de um esclarecimento sobre a natureza dasinstituições que assumiriam a tarefa, nem sobre a articu-lação dos Estados nacionais com elas.

Para o economista francês Michel Rogalsky (1994), agovernabilidade global parece esbarrar em três grandesparadoxos: ela supõe a existência de uma racionalidadeidentificável e controlável, num mundo fragmentado, comacentuadas divisões e interesses divergentes; dado que agovernabilidade nacional perde terreno dia-a-dia, comosubscrever compromissos sem autoridade suficiente paracumpri-los?; diante da impotência crescente do sistemadas Nações Unidas, como imaginar e construir uma insti-tuição suplementar democrática, não submetida à influên-cia dos Estados mais poderosos, das forças econômicas efinanceiras ou da comunidade científica?

Apesar do esvaziamento do perigo nuclear e do fim doconflito leste-oeste, a maioria dos problemas globais so-breviveu à Guerra Fria, trazendo à tona o que estavaem segundo plano: a fratura norte-sul e os conflitos entrepaíses desenvolvidos. Os desafios mundiais que persis-tem (proliferação nuclear, química e bacteriológica, ata-ques aos ecossistemas planetários, migrações massivas,fome, drogas, máfias, desemprego e exclusão social mas-siva) exigem uma cooperação internacional de fato, poisa mundialização dos problemas e dos comportamentosavançou mais rápido que sua regulação.

Enquanto setores democráticos resistem à idéia degovernabilidade global, temendo um governo de especi-alistas que elimine o debate democrático e se transformenuma instância global totalitária – globalitária –, certascorrentes ecologistas se deixam seduzir por argumentosde cunho ecofascista (Cousteau e a eliminação diária de350 mil homens para estabilizar a população da terra).

Por outro lado, a maioria dos Estados nacionais nãocostuma perceber a urgência de determinadas situações,como o risco ecológico. As controvérsias científicas re-tardam ainda mais as decisões que custam ou nem che-gam a ser tomadas porque os diversos países não se sen-tem imediatamente ameaçados. Os governos democráticos,habituados a curtos períodos eleitorais, a exigências damídia e a resultados imediatos, se adaptam mal à necessi-dade de enfrentar problemas de longo prazo.

Mas o essencial é que somente através da cooperaçãointernacional de todos os atores que atuam no processode globalização podemos esperar soluções. Isto apontapara a limitação das soberanias nacionais e para um com-promisso soberano por parte dos Estados. A governabili-dade global não se implementará contra as nações mas,ao contrário, com as nações que sejam capazes de com-prometer-se de modo confiável. O desenvolvimento sus-tentável é uma dimensão planetária que requer a coope-ração de nações, diversas e desiguais, com organizações,desiguais e diversas, da sociedade civil global.

Segundo Hein (1994), é preciso, sobretudo, que o ins-titucional acompanhe o socioeconômico e a política depoder, pois a transformação da função pública deve estarunida a uma transformação do modelo de acumulação,de modo a possibilitar um desenvolvimento ecologicamen-te sustentável do potencial de produção e a satisfação dasnecessidades, especialmente nas regiões pobres. Esta é abase para que o processo de socialização global, aindaparcial, possa conduzir a uma sociedade global que, porsua parte, deve constituir o embasamento para a funçãopública global.

Um dos fatores que impedem o desenvolvimento deum sistema global de governabilidade é o chamado siste-ma das Nações Unidas, pois seu caráter internacional blo-queia a emergência de um novo sistema transnacional degovernabilidade, no qual teriam participação ativa orga-nizações vivas da sociedade civil (associações científicas,religiosas, entidades de classe, ONGs, etc.).

Mas um dos grandes obstáculos à globalização da fun-ção pública é que a maioria dos habitantes do TerceiroMundo não existe como sujeito político. Os chamados“riscos do sul” podem levar a mecanismos globais decontrole e repressão, o que demonstra o caráter contradi-tório do processo político de globalização.

Por outro lado, o conceito de desenvolvimento susten-tável oferece significativa contribuição ao debate sobreuma nova ordem mundial e a globalização da organiza-ção política. Esse conceito, se quer favorecer o objetivode sustentabilidade fixado pelo Relatório Brundtland(“Nosso Futuro Comum”), isto é, satisfação das necessi-dades do presente sem comprometer as gerações futuras,deve conter, segundo Hein, entre outros elementos, a ne-cessidade de um novo modelo mundial de acumulação/desenvolvimento, que reintegre grupos sociais ou regiõesaté agora marginalizados, e que possua um caráter ecolo-gicamente durável.

O processo de aprofundamento da socialização globalparece irreversível, e a longo prazo tudo indica que a so-cialização global exigirá seu equivalente em termos dafunção pública global. Mas não se trata de um desenvol-vimento social abstrato, e sim de conflitos sociais e polí-

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SOCIEDADE CIVIL E ESPAÇO GLOBAL

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ticos intensos. Até que surja uma sociedade mundial comfundamento suficiente para a ampla transferência de so-berania a um Estado global –compreendido não comogoverno central, mas como sistema global de governo –continuarão tendo importância as questões de uma ordemmundial regulada pelas diferentes sociedades nacionais.

Em suma, é importante repisar que não há motivos parasupor que a transferência da soberania política a instân-cias globais transcorrerá de forma menos contraditória oumais planificada que a formação dos Estados nacionaisburgueses. Por outro lado, a discussão sobre a estruturainstitucional da política global deve levar em conta a cons-tituição tendencial de novos atores do processo de globa-lização – as organizações da sociedade civil global – bemcomo as tendências econômicas mundiais. As tentativasde influir eficazmente nessas últimas só terão perspecti-vas de êxito se ocorrerem mudanças nas estruturas insti-tucionais da esfera pública transnacional, redefinindo-se,no plano global, as relações entre Estado, mercado e so-ciedade civil.

NOTAS

Este artigo faz parte do livro Cidadania e Globalização (Vieira, 1997).

1. O projeto implícito nesta concepção de sociedade civil critica tanto o paterna-lismo estatal quanto esta outra forma de colonização da sociedade baseada naeconomia de mercado sem regulação. Busca realizar o trabalho de uma políticasocial mediante programas autônomos e descentralizados, baseados na socieda-de civil, em vez dos programas tradicionais do welfare state, assim como o tra-balho de uma política econômica de regulação mediante formas não-burocráti-cas e menos intrusivas de legislação. Trata-se de combinar a “continuação refle-xiva do welfare state” (Habermas) na democracia liberal com a “continuaçãoreflexiva da revolução democrática” (Arato) nos regimes autoritários.

2. Para uma análise das mediações entre o conceito de mundo da vida e o con-ceito de sociedade civil, consultar Cohen e Arato (1992). Para uma exposiçãomais resumida, ver Vieira (1997).

3. Não se trata de apresentar uma visão idílica das ONGs ou de negar o papel doEstado, do mercado e dos partidos. Existem ONGs que defendem interesses par-ticularistas e ninguém ignora a necessidade de fortalecer, ampliar e aperfeiçoaras esferas estatal-pública e social-privada. Existem agentes privados para finsprivados (mercado), agentes públicos para fins públicos (Estado), agentes priva-dos para fins públicos (terceiro setor) e também agentes públicos para fins pri-vados (corrupção) (Fernandes, 1995).

4. Analisamos as principais dimensões da globalização – econômica, social,política, cultural e ambiental – em nosso livro Cidadania e Globalização (Vieira,1997).

5. O Serviço de Ligação Não-Governamental das Nações Unidas publicou, emagosto de 1996, o dossier As Nações Unidas, as ONGs e a governabilidade glo-bal, no qual se afirma que “as ONGs deixaram de ser marginais e chegaram àmaturidade. Seus recursos financeiros para desenvolvimento provavelmente ul-trapassam os da ONU. As ONGs contribuem para fixar agendas das Nações Uni-

das, influenciar suas decisões e mobilizar a opinião pública. A agenda de desen-volvimento humano elaborada durante as conferências da ONU representa, emgrande medida, a agenda das ONGs”.

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A CRISE DAS CIDADES CONTEMPORÂNEASdesafios do futuro

m dos principais desafios do pensamento con-temporâneo é, sem dúvida, compreender as gran-des cidades no limiar do século XXI. A decadên-

cia das metrópoles é insistentemente evidenciada pelaliteratura, pelo cinema, pelas análises urbanísticas e so-ciológicas especializadas, que configuram imagens nasquais o passado e o futuro das cidades parecem estar di-luídos no seu presente, em suas múltiplas identidades efragmentações. Algumas manifestações – como o cine-ma e a literatura – conseguem captar, em grande parte, oespaço urbano como o lugar do habitar, do representar edo encenar, através de signos que traduzem os significa-dos e o caráter das grandes cidades. Boa parte dos diag-nósticos e interpretações de caráter científico, no entan-to, embora orientados por princípios globalizantes outotalizantes, reduzem a problemática urbana a seus aspec-tos estruturais ou funcionais, ou, ainda, a efeitos decor-rentes de latências peculiares aos processos urbanos.

A crise das megacidades, como Nova Iorque, México,Tóquio e São Paulo – em seu internacionalismo e cosmo-politismo – evidencia uma visão de cidade que, ao mes-mo tempo em que são trazidos à luz os problemas especi-ficamente urbanos – como crescimento desordenado,ausência de infra-estrutura para absorver o aumento dapopulação, distintas formas de exclusão –, aponta no sen-tido de recuperar a historicidade do fenômeno urbano eda própria modernidade como maneira de responder àsdemandas e expectativas das cidades do futuro.

As grandes metrópoles, especialmente, confundem-secom a própria modernidade, em seus aspectos contradi-tórios e ambíguos, continuidades e descontinuidades.Isto implica, para a compreensão, a necessidade de situarnão apenas os sentidos da modernidade mas do próprio

urbano, como forma de lastrear as perspectivas de su-peração das imagens produzidas nas grandes cidades.Estas evidenciam a fragmentação e a desordem – tantodo ponto de vista espacial como social –, a multiplicaçãodos objetos, práticas e referências (cada vez mais globa-lizadas), mas também a exclusão e a incapacidade de res-ponder à complexidade crescente nos grandes centrosurbanos.

A distinção entre modernidade e modernismo, já ca-racterizada no século XIX, aparece recorrentemente nopensamento de vários autores, que procuram avaliar osdiversos processos relacionados aos fenômenos da cons-ciência, às imagens e às projeções ligadas às cidades, ex-pressadas nas artes, na literatura e em concepções urba-nísticas que, ao lado do desenvolvimento econômico etecnológico, explicitam uma consciência nova, as crisesdo capitalismo, as ambigüidades de viver o presente comum pé no passado e outro no futuro e uma nova raciona-lidade. A despeito dos contrastes da cidade real, dos im-pactos da pobreza, da falta de habitação e serviços, dapresença de uma grande massa de excluídos, o modernis-mo nas cidades explorou, sob uma infinita variedade deformas, a dialética de espaço versus lugar, do presenteversus passado. No entanto, as imagens da produção doespaço urbano (no discurso do poder), sob a forma depropostas racionalizadoras, ocultam o real caráter da ci-dade, revelando-se como elemento determinante das de-sagregações que se estabelecem em diversos níveis e queresultam no enfraquecimento dos processos sociais queimpliquem efetivas formas de apropriação do ambienteconstruído.

Tecendo críticas àquilo que denomina ilusão urbanís-tica – uma forma de urbanismo de boas intenções, imbuí-

U

MARIA MARGARIDA CAVALCANTI LIMENA

Professora do Departamento de Sociologia da PUC-SP

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A CRISE DAS CIDADES CONTEMPORÂNEAS: DESAFIOS DO FUTURO

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do dos valores da filosofia moderna das cidades e jus-tificada pelo humanismo (liberal) e por uma utopia (tec-nocrática) –, Henri Léfèbvre, ao traçar os contornos daproblemática urbana, fornece pistas importantes para a dis-cussão das cidades. Ele utiliza categorias que avaliam ofenômeno urbano em sua complexidade e historicidade,partindo de uma definição de sociedade urbana “que re-sulta da urbanização completa, hoje virtual, amanhã, real”,em suas continuidades e descontinuidades (Léfèbvre,1970). Este conceito implica uma definição dos proces-sos subjacentes ao desenvolvimento das cidades, resul-tantes do conjunto de transformações decorrentes da in-dustrialização e da modernidade.

Para analisar a complexidade deste fenômeno que, se-gundo Léfèbvre, aparece mais como caos e desordem quecomo objeto de estudo, é necessário considerá-lo em seusdiferentes níveis e dimensões, ao mesmo tempo distintose justapostos no eixo espaço-tempo. Léfèbvre distingueum nível global, um intermediário (ou misto) e um priva-do. O nível global corresponde ao exercício do poder edo Estado (como vontade e representação), da institucio-nalização das ações e da divisão social do trabalho, emsíntese, à lógica da organização mais geral das relaçõessociais. O nível intermediário é aquele especificamenteurbano: é o domínio das ruas, praças, avenidas, edifica-ções públicas, igrejas, escolas etc. que, longe de derivardiretamente do global, mantém uma relação dupla com olugar (entorno imediato) e com a situação (condições glo-bais), oferecendo a unidade característica do real social(formas, funções e estruturas). A problemática do habi-tar, em seus aspectos sociais, antropológicos e psíquicos,corresponde ao nível privado, não menos complexo queos demais, na medida em que é fundante, tanto como fun-cionalidade, quanto como transfuncionalidade (Léfèbvre,1970:114-115).

Ao lado das distinções por níveis, Léfèbvre introduzas dimensões do espaço e do fenômeno urbano, a partirde propriedades essenciais, destacando a projeção no ter-reno das relações sociais. Este compreende abstraçõesconcretas (como o mercado e as mercadorias, produtos,capital, trabalho), o lugar e arena das estratégias, além davitalidade e práticas urbanas que não se reduzem às ideo-logias e instituições globais. A partir dessas dimensões, ofenômeno urbano pode ser inscrito num sistema de signi-ficações e sentidos, no qual se entrecruzam a dimensãosimbólica – em que os monumentos, a arquitetura, as cons-truções e os vazios simbolizam o mundo, a sociedade, acidade, o Estado; a dimensão paradigmática, que implicae mostra as oposições – centro e periferia, alto e baixo,aberto e fechado, simétrico e não-simétrico; e a dimen-são sintagmática, que promove a articulação entre os ele-mentos contrários.

Através dessas dimensões e níveis, que se relacionamdialeticamente, Léfèbvre desenvolve a compreensão doprocesso de transformação da cidade, nas sutilezas e com-plexidades das concepções e práticas temporais, não se-parando o espaço urbano de suas representações e possi-bilitando, portanto, a apreensão das diversas formas deviver, perceber e imaginar a cidade.

As cidades constituem, nesse sentido, objeto comple-xo, cuja análise deve ser inserida num processo que pos-sa situar a relação entre sua formação e a formação deuma consciência urbana – moderna –, inscrevendo essarelação na perspectiva da modernidade, do processo deindustrialização e urbanização, da cultura. Desse modo,o desenvolvimento das grandes cidades não se vinculaapenas ao processo de expansão do capital, mas, também,aos diferentes discursos que as apontam como marco ebalizamento dos projetos urbanos. As dimensões e níveisque se entrecruzam, na análise de Léfèbvre, recobrem asdiversas formas de apreensão da conexão existente entreo significado e a configuração espacial da cidade.

Conforme assinala Michel de Certeau, a cidade instau-rada pelo discurso utópico e urbanístico, em sua trajetó-ria, define-se por uma tripla relação: a produção de umespaço próprio – racional –, que procura elidir os proble-mas que a comprometem; o estabelecimento de um não-tempo ou de um tempo sincrônico, capaz de fazer frenteàs resistências das tradições; a criação de um sujeito uni-versal anônimo, oferecendo a capacidade de conceber econstruir relações espaciais mediante uma aliança com oconceito que joga com sua progressiva simbiose: plane-jar a cidade é ao mesmo tempo pensar a própria plurali-dade do real e dar efetividade a este pensamento do plu-ral; é saber e poder articular (Certeau, 1994). A cidade,como nome próprio, fornece o modelo para concepções econstruções do espaço, que tem por base propriedadesestáveis, isoláveis e interligadas.

Como ambiente construído, a cidade resulta da imagi-nação e do trabalho coletivo do homem que desafia a na-tureza. Mas é também registro, escrita. Através da lingua-gem urbana pode-se ler seu imaginário social e político,seu padrão cultural, sua morfologia e estrutura. Ao mes-mo tempo em que a cidade é o lugar privilegiado de umaexperiência urbana caótica, constitui o espaço do não-lu-gar1, como local de circulação de mercadorias, pessoas ebens simbólicos, como espaço de anonimato que acolhe,cada vez mais, indivíduos em busca de novas relaçõessimbólicas.

Nesse sentido, as imagens da cidade que emergem dopensamento urbanístico e utópico expressam as dicoto-mias entre modernidade e modernização, em sua ordemvisível, mas também naquela ordem invisível que go-verna a cidade, com regras, prescrições e restrições que

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respondem ao seu surgimento, formação, prosperidadee decadência, atravessando distintas fases em busca deuma modernidade, ou pós-modernidade, como queremalguns.

As dicotomias entre o projeto de modernidade e o pro-cesso de modernização expressam-se com clareza nasdiscussões acerca das cidades. Especialmente nas gran-des metrópoles, o mesmo dinamismo cultural e econômi-co que abre múltiplas possibilidades a seus habitantes, des-trói tudo aquilo que cria – ambientes físicos, instituiçõessociais, valores morais –, num perpétuo e incessante pro-cesso de criação do sempre novo. Em cidades como Pa-ris, Nova York, Chicago, São Paulo, tudo é concebido eexecutado não apenas para atender às necessidades eco-nômicas e políticas imediatas, mas também como expres-sões emblemáticas da modernidade: os megaedifícios,shopping centers, parques, monumentos demonstram aprofusão de significados implícitos naquilo que MarshallBerman denomina a floresta de símbolos que permeia avida de seus habitantes. Ao mesmo tempo, vive-se, nasgrandes metrópoles, sob o signo da apatia e da indiferen-ça: a falta de vínculos com o lugar, a falta de identidadecom o bairro, com a rua levam a uma atitude generaliza-da que se expressa na falta de participação na vida públi-ca e na perda da consciência de cidadania.

A problemática urbana enfrenta, hoje, ainda, um outrodesafio: aquele relacionado ao futuro das cidades, nãoapenas em termos de um planejamento com característi-cas normativas mas que seja, também, capaz de conduzira outras formas de sociabilidade, retomando a idéia decidade e vida urbana baseadas em necessidades de seuscidadãos e remetendo, de fato, àquilo que Léfèbvre defi-ne como “o direito à cidade”, em sua utopia urbana.

A reflexão sobre as cidades nos anos 90 situa no cen-tro das interrogações sobre o futuro das sociedades urba-no-industriais os impactos globalizantes, como a intensi-ficação das relações sociais em escala mundial, a supressãode distâncias, a possibilidade de comunicação em temporeal, mas também as possibilidades de solucionar confli-tos, alimentar desejos e promover a emergência de novassociabilidades.

No mundo do tempo real, das tecnologias operando emescala planetária, inaugura-se um novo universo simbó-lico, que rompe com a idéia de cultura localizada no tem-po e no espaço. Como pensar o lugar – do acontecimen-to, do discurso ou da própria crise –, num contexto emque se multiplicam eventos, muitas vezes não previstos,assim como novas referências (individuais e coletivas),induzindo não apenas a uma mudança de escala, mas tam-bém de parâmetros? Hoje, os não-lugares constituem amedida da época: referem-se a um espaço que não podemais ser definido como identitário, relacional e histórico,

como o lugar antropológico; emergem da superabundân-cia de referências (impessoais) características da sobre-modernidade, tal como a define Augé (1992).

A aceleração do ritmo das transformações em diferen-tes planos afeta não apenas as estruturas políticas e cien-tíficas, mas noções fundamentais, como tempo e espaço.Deslocamentos, trajetos e fluxos de comunicação, que têmcomo conseqüência uma crescente supressão de distân-cias, transformam-se, continuamente, num processo emque, cada vez mais, a noção de tempo parece suplantar anoção de espaço, criando novos significados. A idéia detempo enquanto relação pessoal e social – como duração– é sobrepujada pelas diversas formas da instantaneida-de, organizando, programando e otimizando a vida daspessoas e da sociedade. Vivemos num mundo em que otempo é seccionado, sincronizado (out of joint, porém,just in time), ultrapassando a si próprio e confirmando seudomínio sobre o espaço, o que leva à redefinição das re-lações de poder – social e político –, conforme assinalaPaul Virilio: “...de fato, o valor estratégico do não-lugarsuplanta definitivamente o do lugar e a questão da possedo tempo renovou o da posse territorial” (Virilio, 1996).

As grandes cidades, constituídas a partir de redes or-ganizacionais e comunicacionais complexas, constituemo exemplo cabal de uma nova tendência. Uma vez desa-parecidos os lugares da memória – inscritos no tempo his-tórico –, surgem novos significados, produzindo imagensemblemáticas da sociedade-espetáculo, das quais emergea figura do vencedor (ainda que efêmero, artificial, con-tingente) e uma realidade em que homens são substituí-dos por tecnologias elevadas à qualidade de sujeito.

Megalópoles, hipercidades, metápolis, ecumenópolis,tecnópolis são termos que definem as cidades do presen-te,2 levando, em grande parte, a diagnósticos realistas eprognósticos sombrios. As visões de Orwell, em 1984, eHuxley, em Admirável Mundo Novo, ao lado das imagenscinematográficas de Blade Runner e Robocop, apresen-tam diversas versões dessas tecnotopias, convergindo paraas distopias no lugar das utopias. Em outros contextos,no entanto, especialmente no planejamento urbano, oquadro é diverso. O Japão fornece um exemplo extremo,ao adotar, como padrão dominante de desenvolvimentourbano para as cidades do século XXI, utopias tecnológi-cas que se expressam em projetos como Tokio TeleportCity, Minato Mirai 21, High Tech City (Yokohama),Futuristic Information City (Chiba), que encarnam as as-sim chamadas K-cities,3 nos moldes da ficção científica.

No entanto, sem se deixarem levar pelas visões ficcio-nais ou apocalípticas, alguns pensadores reconhecem,diante da complexidade crescente dos grandes centrosurbanos, algumas possibilidades para a construção de diag-nósticos capazes de balizar as perspectivas de futuro das

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cidades. Seriam cidades “condenadas” ou pode-se falarem utopias urbanas? Quais seriam os cenários possíveispara as cidades no século XXI? De que modo estes cená-rios podem vir a afetar as políticas e práticas urbanas?

Conforme observa-se nas estatísticas mundiais, a pro-liferação em escala mundial das grandes cidades é umarealidade inconteste e preocupante: existem, hoje, quatromil cidades com mais de cem mil habitantes, duzentas ecinqüenta com mais de um milhão, mais de quarenta comcinco milhões e cerca de uma quinzena com mais de dezmilhões de habitantes, ponto de partida da discussão so-bre as cidades contemporâneas realizada por FrançoisAscher, em seu livro Metápolis ou l’avenir des villes.

Alguns argumentos interessantes são apresentados porAscher para responder às imagens, diagnósticos e prog-nósticos baseados na “condenação” das cidades contem-porâneas. Para isso, parte do conceito de metápolis oumetametrópole, que pode ser definida como “um conjun-to de espaços nos quais pessoas, atividades econômicase territórios são integrados no funcionamento cotidianode uma metrópole. Uma metápolis constitui, geralmente,um depósito de empregos, de habitats e de atividades.Os espaços que a compõem são profundamente hetero-gêneos e não necessariamente contíguos. Uma metápoliscompreende pelo menos algumas centenas de milhares dehabitantes” (Ascher, 1995:34). A definição, portanto, ul-trapassa e engloba os limites da metrópole, aparecendocomo uma nova forma urbana, em termos de suas possi-bilidades de diagnóstico e projetos de transformação.

Mas a metápolis é também espaço de mobilidades va-riadas e irregulares; espaço de travessias e do face a face;espaços especializados pelas lógicas econômicas múlti-plas; espaço de conflitos, de fragmentações dos interes-ses coletivos e de deslegitimação das instituições urba-nas. Ela é complexa, no entanto, funciona. Com talcomplexidade, como pensar as cidades do futuro?

Ascher avalia algumas interpretações, situando as prin-cipais correntes de pensamento. De um lado, os liberaisque, segundo ele, acreditam haver uma prova manifestados mecanismos de mercado que engendram desenvolvi-mento máximo e optimum global: a mão invisível do mer-cado agiria, deste modo, também na cidade; seus estra-gos específicos e suas disfunções não seriam senãoepifenômenos que, portanto, não colocariam em questãoa lógica do mercado, ainda que, por vezes, a intervençãodas autoridades públicas pudesse ser necessária para cor-rigir os excessos do mercado. Desse modo, o planejamentoe a gestão da cidade estariam articulados a um princípiode base, segundo o qual a intervenção dos poderes públi-cos deveria reduzir-se a um mínimo.

Os marxistas, por outro lado, consideram as disfunçõesurbanas como uma das manifestações mais evidentes das

contradições entre o caráter cada vez mais interdependenteda relação entre produção e consumo – que necessita deuma organização coletiva – e a propriedade privada dosmeios de produção e do solo – que depende de decisõesindividuais –, engendrando, assim, uma anarquia crescen-te. Em oposição aos liberais, para os marxistas a questãonão é de insuficiências ou excessos a serem corrigidos,mas reporta-se a uma crise essencial das cidades capita-listas, conforme observa Castells.4

Ambas as posições têm animado os debates sobre ocontrole e o planejamento das cidades, mas de maneirageral as discussões não se encontram polarizadas: se, deum lado, o urbanismo parte da premissa de que é neces-sário agir conjuntamente sobre a cidade e sobre a socie-dade, por outro, têm sido desenvolvidos pensamentos, ati-tudes e ações reformistas, distintos do liberalismo radicalpelas formas de intervenção, em que se admite a impos-sibilidade de construção/transformação espontânea dacidade.

Ascher aponta, ainda, outro lado da questão, ligado aosaspectos ideológicos e sociais que traduzem certas dife-renças no pensamento urbanístico desde o século XIX.Retomando as análises realizadas por Françoise Choay,faz referência às concepções urbanísticas que, de certomodo, ainda continuam vigentes: o modelo culturalista –que privilegia os valores culturais tradicionais – e aqueleprogressista – que coloca em destaque a eficácia, a técni-ca, o progresso, a racionalidade –, mas que têm, em co-mum, uma mesma ambição: “aquela de dominar o desen-volvimento urbano pela mobilização do conhecimentocientífico e pela adoção de técnicas de ordenamento doespaço urbano” (Ascher, 1995:205).

À dificuldade de atender a tais imperativos, em faceda complexidade crescente das metápolis – quanto à di-versidade de funções sociais e econômicas que as cida-des assumem, à flexibilidade dos espaços que devem aco-lher as atividades em transformação cada vez maisacelerada e à não correspondência entre territórios e ins-tituições –, Ascher acrescenta uma dupla crise intelectual:“...aquela geral, das grandes referências ideológicas quepossam constituir objetivos claros para alguns urbanistase aquela específica, ligada ao projeto de fundação do ur-banismo como uma disciplina científica autônoma”(Ascher, 1995:206-7).

Nesse contexto, abrem-se três frentes de contestaçãodo urbanismo moderno: “...as problemáticas que valori-zam o caos urbano, que se apóiam nas imagens califor-nianas e japonesas; a tese da planificação conduzida pelomercado, trazida pela onda econômica e ideológica libe-ral; e a abordagem empresarial urbana, fundada pelas re-ferências aos princípios de gestão dos sistemas comple-xos” (Ascher, 1995:208-9).

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A primeira vincula-se às concepções pós-modernistasna arquitetura, tematizando aspectos ligados à idéia de caosurbano como sendo criador e produtivo. Esta é exemplifi-cada pelos projetos de Robert Venturi que, ao funciona-lismo na arquitetura com sua estética simplificadora, opu-nha a estética e a funcionalidade dos restaurantes fast food,das stations-service, dos néons e das publicidades nas es-tradas californianas, especialmente a partir dos anos 60.Desde os anos 80, às imagens de uma arquitetura voltadapara as cidades desordenadas – configurado nas bricolagesà maneira dos subúrbios californianos – acrescentaram-se novas imagens, vindas das cidades japonesas contem-porâneas, eficientes do ponto de vista econômico, mas apa-rentemente desordenadas, caóticas e, portanto, opostas aoscânones urbanísticos da modernidade.

Esta valorização estética do caos desdobra-se, de umlado, numa valorização funcional e, de outro, nas possi-bilidades da desordem que, enquanto complexidade, con-teria uma ordem espontânea, mais eficaz que a ordemplanificadora e urbanística. Nesse sentido, referênciasoriundas da Teoria do Caos, como as noções de flutua-ção, fractais, auto-organização, entropia, etc. (relaciona-das às teses de Prigogine, Lorenz e Mandelbrot) foramabundantemente usadas, ainda que como referências me-tafóricas, conforme assinala Ascher.

Y. Ashihara, arquiteto japonês que desenvolveu umateoria do caos urbano, mostra que, de fato, este caos éuma “ordem oculta”, particularmente aos olhos dos ar-quitetos e urbanistas ocidentais. O sentimento de desor-dem suscitado pela cidade japonesa provém de uma dife-rença radical na concepção de espaço: no ocidente, aconcepção de espaço – tanto das casas como das cidades– faz-se por subtração em um movimento centrípeto: pri-meiro concebe-se o exterior de um conjunto, depois aspartes que o compõem; no Japão, o sentido é inverso, emmovimento centrífugo. Tóquio, por exemplo, é “um cor-po orgânico disponível, aberto às metamorfoses e aos de-senvolvimentos, que caminha por meio da eliminação deseus elementos inúteis” (Ascher, 1995:208-9).

Por outro lado, de acordo com as concepções pós-modernistas – que se apóiam na total aceitação do efême-ro, do fragmentário, do descontínuo e do caótico (umadas metades da modernidade baudelairiana) – não há in-tenção de transcender ou opor-se a essa (des) ordem. Senão podemos, segundo o pós-modernismo, aspirar a umarepresentação unificada do mundo, nem conduzir um pro-jeto global (Lyotard já afirmava, no início dos anos 80, adeslegitimação das grandes narrativas), como encontraros elementos para comandar a metrópole? O resultado éo ecletismo e a própria fragmentação, muitas vezes cons-cientemente adotada, não apenas nas fachadas e edifícios,mas em bairros inteiros (as novas Disneyworlds?), con-

forme observa David Harvey (1992:45 a 96) referindo-seà arquitetura nos anos 80. Ele assinala ainda que os pro-jetos urbanos pós-modernos contam com os avanços tec-nológicos, particularmente no âmbito das comunicações– que derrubam as fronteiras entre o tempo e o espaço –,para a legitimação de formas urbanas dispersas, descen-tralizadas e desconcentradas, levando tanto a um interna-cionalismo como a fortes diferenciações internas em ci-dades e sociedades baseadas no lugar, na função e nointeresse social.

Quanto à planificação conduzida pelo mercado, aInglaterra fornece um exemplo significativo, com as re-formas e a política desenvolvida pelo governo da primei-ra-ministra Margaret Tatcher a partir dos anos 80. Colo-cando em causa uma forte tradição de town-planning, asreformas do governo conservador promoveram uma con-cepção de market lead planning, pela qual é o mercadoque escolhe e decide o crescimento e as mutações urba-nas, cabendo aos poderes públicos desenvolver ações deacompanhamento, auxílio e, eventualmente, corrigir ex-cessos ou insuficiências. Mais que resultados práticos(diante de dificuldades de projeto e financiamento pelainiciativa privada de obras de infra-estrutura e transpor-tes coletivos), a aplicação, em alguns casos, dessa con-cepção colocou em evidência a impossibilidade de umaabordagem liberal das cidades em outras cidades euro-péias. Para Ascher, do ponto de vista político, tal formade planificação se pretendia emblemática (baseada nosmesmos pressupostos que as modernas democracias),possuindo, portanto, uma dimensão simbólica. Ao finaldos anos 80, as disfunções ligadas à expansão imobiliá-ria e a acentuação dos fenômenos de exclusão – que evi-denciavam a necessidade de intervenção – remeteram-seprogressivamente a um retorno à planificação urbana maisvoluntária.

Finalmente, a terceira frente de contestação do urba-nismo moderno é representada, segundo Ascher, pelasabordagens da metrópole como sistema complexo, a par-tir de duas perspectivas: a primeira, apontando na dire-ção de um reforço dos instrumentos clássicos de controlee de intervenção dos poderes públicos; e a outra partindoda necessidade de mudança na própria concepção de in-tervenção pública.

No primeiro caso, a possibilidade de controle do pla-nejamento reside em instrumentos mais efetivos – zonea-mento mais preciso, controles mais rigorosos do direitode construção, sistemas de recuperação da mais-valia fun-diária e imobiliária, expropriação, financiamentos públi-cos, etc. – cuja eficácia é limitada; na medida em que nãosão adaptados ao contexto metapolitano, acabam por en-gendrar efeitos perversos, ao reforçar ações que ultrapas-sam seus princípios e modalidades.

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No segundo, inserem-se as abordagens que conside-ram a cidade como complexa, colocando em discussão aprópria noção de dominação da cidade. Partindo da mes-ma noção de complexidade empregada por Edgar Morin,5

“consideram a cidade como complexa, postulando umfuncionamento baseado em lógicas e racionalidades múl-tiplas, eventualmente contraditórias; que elas formam umsistema aberto; que seus equilíbrios são instáveis; quepequenas variações podem acarretar mudanças conside-ráveis e que a evolução é, geralmente, reversível. As me-tápolis, como o contexto no qual se desenvolvem, carac-terizam-se, portanto, por uma grande incerteza. Face a estaincerteza, o planejamento urbano não pode ser linear, se-qüencial e mecanicista; em outros termos, não pode maispretender ser antecipatório, programático, sistemático,imperativo (...). Para orientar, enquadrar, gerir o planeja-mento e, em sentido mais amplo, o urbanismo, devem seradotados instrumentos que admitam as flutuações, a cria-tividade, a incerteza, a contradição, a ambigüidade, a flui-dez, que têm, por base, uma racionalidade limitada numuniverso incerto” (Ascher, 1995:213). 6

Isto não significa, no entanto, que o planejamento devatransformar-se em empirismo completo, pautando-se porescolhas individuais, mas conduzir a formas de proble-matização e esquemas de ação capazes de abarcar os ato-res, as racionalidades e interesses que possam levar à rea-lização do projeto. Uma nova abordagem para enfrentaras questões referentes ao planejamento das cidades deve,portanto, considerar não apenas o projeto, mas se pautarpela importância das interações e retroações que devempresidir a tomada de decisões baseadas no consenso e nocompromisso (e não apenas na eficácia), aproximando-se das formas de gestão empresariais mais recentes. Istonão significa, meramente, uma transferência direta dosmodelos de gestão das empresas para o planejamento egestão das cidades, na medida em que a racionalidadepública é diversa da racionalidade privada; embora passea depender, cada vez mais, de fatores econômicos, nin-guém é proprietário de uma cidade, assim como uma ci-dade não se constrói tendo por objetivo o lucro comer-cial. Nesse sentido, a gestão pública à maneira empresarialsupõe uma lógica dos atores mais que uma lógica de ad-ministração, a elaboração e a adesão a um “projeto decidade”, uma abordagem “incremental” e “heurística”(isto é, que progride e avança passo a passo), um urbanis-mo flexível e integrado, regras e regulamentações liga-das à sua performance (que possam fixar resultados, semprejulgar os meios) e uma atividade permanente de nego-ciação e comunicação (Ascher, 1995:233 e ss.).

Tais formulações encontram-se na base de algumaspropostas para as grandes cidades no próximo milênio.Para Ascher, um urbanismo “metapolitano” deve respon-

der às exigências de qualidade de vida, de categorias qua-lificadas e não precárias. Isto supõe a oferta de habitaçãoabundante e diversificada, de equipamentos educativos,culturais, esportivos, comerciais e simbólicos, adaptadosaos cânones funcionais e simbólicos dos grupos sociais.De um ponto de vista global, as metápolis deveriam pro-duzir e gerenciar uma imagem de contornos qualitativos,aliando aos valores do patrimônio aqueles da modernida-de. Devem produzir propostas e ações capazes de enfren-tar as dificuldades ligadas à baixa qualidade de vida degrandes parcelas da população, baseando-se em redes desolidariedade que, por sua vez, implicam políticas contí-nuas de revalorização e desenclave dos bairros e setoresda cidade em crise. Em outros termos, “as metápolis de-vem manter seus territórios, reafetar e requalificar os es-paços vazios ou obsoletos em função das transformaçõestécnico-econômicas, dispor de reservas fundiárias paraaproveitar as oportunidades, dominar a urbanização etorná-la compatível com os princípios de um desenvolvi-mento durável” (Ascher, 1995:233 e ss.).

Em síntese, as metápolis são o lugar das trocas sociaispor excelência. Apesar dos diagnósticos apocalípticos,estão longe de desaparecer. Ao contrário, as grandes ci-dades compõem-se e recompõem-se continuamente, de-las emergindo novas centralidades, mobilidades, espaçospúblicos e privados, concentrando empregos e trabalha-dores que, por sua vez, ligam-se a um modo de vida vin-culado tanto à crescente autonomia dos indivíduos comoà complexidade, cada vez maior, das relações sociais. Istoimplica o reconhecimento dos problemas metapolitanosem sua dimensão urbana, libertos dos dogmatismos. Nãobasta colocar-se ao lado daqueles que acreditam no de-senvolvimento das telecomunicações e dos transportescomo forma de pôr fim à desordem urbana ou de urbanis-tas e planejadores que ainda empreendem esforços na ten-tativa de recriar uma forma de urbanidade ultrapassada,fazendo e refazendo as cidades, como no passado. É ne-cessário saber reconhecer suas dificuldades, ligadas, prin-cipalmente, a aspectos sociais e políticos e não apenastécnicos e econômicos. É necessário reconhecer, ainda,que a crise mais grave nas grandes cidades, hoje, é a dacidadania, que faz com que se percam, pouco a pouco, osentimento dos interesses coletivos e a capacidade demobilização em torno de projetos comuns, o que implicaformas de gestão capazes de articular os níveis locais aosglobais, como parte de um mesmo sistema.

Várias são as possibilidades abertas pelo pensamentopara as cidades do futuro. Embora lastreadas em referên-cias empíricas (as das cidades reais), algumas lembramprojeções ficcionais: megalópoles, metápolis, tecnópoles,ecumenópolis e outros termos utilizados para sua defini-ção, conforme apontado anteriormente. No entanto, para

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poderosas, como as multinacionais – desterritorializadas– serão dominantes do futuro. Retomando exemplos sig-nificativos, pode-se citar a transformação ocorrida pormeio da instalação do setor eletrônico de ponta nos últi-mos 20 anos em algumas regiões, criando novas cidadesou transformando radicalmente outras (tradicionalmentebaseadas em economias agrícolas), como Silicon Valleye Orange County, na Califórnia, Silicon Glen, na Escó-cia, as aglomerações eletrônicas na Irlanda, além dos paí-ses da Ásia, como Cingapura, Taiwan, Malásia, HongKong, etc.

Algumas questões, no entanto, impõem-se à reflexão:a revolução da informação levará a uma grande desigual-dade entre cidades ricas e pobres? Poderemos evitar osurgimento de cidades duais, onde poderosos empresá-rios manipulam massas empobrecidas, blocos e continen-tes? Terão os movimentos sociais de massa condiçõespara reafirmar o poder popular frente a um futuroorwelliano? E poderão eles obter êxito contra o tão pode-roso e, ao mesmo tempo, sutil, sistema global?

A despeito dos aspectos alarmantes desta nova ordemmundial, para Castells o futuro das cidades informacio-nais não é predeterminado. É possível às sociedades defi-nidas territorialmente preservar suas identidades atravésde organizações enraizadas que, crescentemente, reafir-mam seu poder. As cidades do futuro podem ser pensa-das como maneira de responder às tendências presentesnas abordagens que se apóiam nos novos paradigmastecno-econômicos que vêm se impondo, por meio de es-tratégias políticas, econômicas e tecnológicas, como con-tribuição para a reconstrução do significado social destanova realidade histórica. Trata-se, no entanto, de uma ta-refa complexa, que requer a articulação simultânea dasalternativas sociais e dos projetos espaciais em três ní-veis: cultural, econômico e político.

No nível cultural, as sociedades locais, territorialmen-te definidas, precisam preservar suas identidades, suasreferências espaciais e enraizamentos sócio-históricos, pormeio da preservação de símbolos de reconhecimento –os lugares da memória coletiva –, como significado fun-damental para a permanência e funcionamento das gran-des cidades. Reabilitar a vida do bairro, favorecer modosde vida associativos e responsabilidades locais são con-dições para isso. Nos níveis econômico e político, a ado-ção de políticas capazes de articular os níveis local eglobal de decisão, aproveitando a flexibilidade das tec-nologias e instrumentos de informação – os bancos dedados de cidadãos, os sistemas de comunicação interati-vos, os centros de multimídia comunitários – como for-ma de reverter a lógica de dominação do espaço de flu-xos, apontando a reconstrução socioeconômica dosespaços das grandes cidades.

além das possibilidades de solução das crises enfrentadaspelas grandes cidades na atualidade, está em jogo um novosignificado social do espaço, baseado em fluxos e intera-ções, conforme mostra Manuel Castells ao avaliar os im-pactos da revolução informacional sobre o futuro dascidades (Castells, 1996). De fato, a proliferação de com-putadores, redes, fac-símiles, secretárias eletrônicas, fi-bras-óticas, cabos, comunicação via satélite, os correioseletrônicos, a Internet, as infovias e meios multimídiaimplica novas formas de abordagem. Nesse sentido,Castells conduz a uma avaliação sobre a tecnologia dainformação e de como esta poderá vir a reestruturar asrelações sociais entre regiões pobres e ricas, capital e tra-balho, centralização e descentralização de serviços, go-vernos e instituições não-governamentais e, finalmente,entre indivíduo e sociedade.

Castells discute aquilo que ele denomina espaço de flu-xos que irá comandar as ações das organizações do po-der, bem como as instituições territorializadas, contrapon-do-se à operação nos espaços dos lugares e sinalizando aemergência das tecnópolis. Este termo é usado por Castellse Hall (1996) para designar os cenários de cidades quesurgem da associação entre tecnologia, ciência, desenvol-vimento planejado e formas diversificadas de investimen-tos e cooperação entre o setor público e o setor privado.Os autores constroem uma tipologia de tecnópolis enquan-to forma de concentração territorial específica e inova-ções tecnológicas, com potencial para gerar sinergia cien-tífica e produtividade. O primeiro tipo consiste emcomplexos industriais de alta tecnologia construídos so-lidamente com base em inovações, cujo exemplo maissignificativo é Silicon Valley; o segundo tipo é represen-tado, de modo geral, pelas chamadas “cidades da ciên-cia”, relacionando-se a complexos centros de pesquisa deexcelência não ligados diretamente à manufatura, comoa experiência japonesa em Tsukuba e Kansai, esta últimaimportante centro multinuclear. Finalmente, o terceiro tipodesigna as áreas em que vem se configurando um novotipo de crescimento industrial, em termos da organizaçãodo trabalho e da produção, capaz de atrair sólidas indús-trias de alta tecnologia. Neste caso, embora os aspectos efunções das inovações tecnológicas não sejam excluídos,essas áreas são definidas pelo desenvolvimento econômi-co. Os autores citam, como exemplo, as regiões de Sophia-Antipolis, na França, Cambridge, na Inglaterra, e Hsinchu,em Taiwan.

No cenário desenhado para as cidades do terceiro mi-lênio, que resulta da transformação dinâmica e estruturalde regiões no mundo, as formas de organização da indús-tria e dos serviços deverão ser organizadas por todos, emtorno da operação de suas unidades geradoras de infor-mação. Além disso, Castells considera que instituições

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Isso implica, portanto, novos rumos capazes de trans-cender a economia e a política tradicionais, desdobran-do-se numa crescente mobilização coletiva, que só podese efetivar pela articulação, através de reconstrução entreo significado dos espaços da cidade – hoje globalizados– e a autonomia dos atores, numa situação que possa con-duzir ao equilíbrio entre os valores da civilização e dacultura. Caso contrário, as tecnópolis do futuro poderãoreforçar o individualismo, as desigualdades e as formasde dominação atualmente existentes, conduzindo aos ce-nários hoje apresentados pela ficção e pelo cinema.

A atenção necessária ao desenvolvimento do potencialhumano, por meio de novos valores e atitudes – ligadosa, efetivamente, querer o futuro –, poderá conduzir a ou-tras realidades para as cidades, como nos flashes “verda-deiros-falsos” (porque imaginários, mas, ao mesmo tem-po, calcados nas realidades contemporâneas) desenhadospor Joel De Rosnay, em L’Homme Symbiotique, como este:

“Paris, 26 de outubro, 2032. 11:23 AMParis liberada dos automóveisUma semana inteira de festas e manifestações irão ce-

lebrar a renovação completa do centro de Paris e a elimi-nação dos últimos veículos particulares das ruas da capi-tal. É o que vem anunciando François Darouin, presidenteda Câmara Municipal. Um ambicioso programa de rear-ranjo, lançado em 2017 como resultado de um referen-dum organizado pela administração municipal, chega hojeao final. Os transportes coletivos compreendem linhas deônibus equipados com motores híbridos (elétricos e a tur-bina) silenciosos e não poluentes. A estrutura interna des-ses veículos serve à recepção de informação e educaçãopermanente dos usuários durante o trajeto. Mini ônibus/táxis transportando inúmeros passageiros são dirigidos porcomputadores em função das demandas por corridas par-ticulares, transmitidas por terminais de comunicaçãomóveis ou fixos. Metrôs rápidos atravessam a capital, bemcomo veículos expressos subterrâneos a transmissão tér-mica. Para circular no centro, todos os tipos de veículosparticulares – elétricos ou não – devem pagar uma taxaelevada, correspondendo à área ocupada. A maior partedas ruas de Paris intramuros é reservada aos pedestres, àsbicicletas e aos veículos elétricos. Os parques, calçadas,praças, áreas de jogos e festas multiplicaram-se nos últi-mos quinze anos” (De Rosnay, 1995).

NOTAS

1. Conforme o conceito desenvolvido por Marc Augé (1992). Os não-lugares,em oposição ao lugar, rompem com a noção de cultura localizada no tempo, ca-racterizando os espaços da sobremodernidade, que fazem do antigo uma citação,como espetáculo específico a ser contemplado.

2. Esses termos são utilizados em diversas abordagens por vários autores comoManuel Castells, Constantin Doxiadis, Paolo Soleri e outros, para definir as ci-dades do futuro a partir de diagnósticos das crises das grandes cidades. Ver arespeito LeGates e Stout (1996).

3. Conforme Mitchell (1996). As k-cities (termo criado pelos dinamarquesesIke E. Anderson e Christian Wichman Mathiassen) definem-se pelos seguinteselementos: conhecimento (knowledge), comunicação (kommunication), compe-tência (kompetence), criatividade (kreativitet), conurbações (konurbationer),energia (kraft), transporte (karriere), consumo cultural (kulturkonsum) e comer-cialismo (kommercialisme).

4. Também citado por Ascher.

5. Para Edgar Morin, o reconhecimento da complexidade – ultrapassando o sentidoda totalidade – exige uma outra atitude do pensamento, que deve constituir as basespara o enfrentamento da multidimensionalidade da realidade, baseando-se em trêsprincípios: o princípio da dialógica, que consiste na associação de instâncias simul-taneamente complementares e antagônicas; o princípio da recursão organizacional,que indica a articulação entre os produtos e a produção (“os produtos são necessá-rios à produção daquilo que os produz”); e o princípio hologramático, segundo oqual a parte está no todo e o todo está a parte. A partir destes princípios, Morincombina os elementos do tetragrama ordem/desordem/interações/organizações – cujostermos são complementares, concorrentes e antagonistas – como base para o conhe-cimento, apontando uma forma de superação dos limites da lógica identitária/dedu-tiva. Isto leva à exclusão da contradição numa perspectiva mais ampla, cujo afronta-mento torna-se possível por meio do exame empírico-lógico dos problemas. Essasidéias encontram-se presentes em várias obras de Morin, como Introdução ao Pen-samento Complexo (1991); Ciência com Consciência; Terra Pátria (1994), MeusDemônios (1995) e outras.

6. Os grifos são do autor.

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TENDÊNCIAS RECENTESNO SETOR COMERCIAL

os últimos anos, as transformações vividas pelosetor industrial vêm merecendo uma grande aten-ção por parte da comunidade científica, da im-

prensa e das entidades governamentais. O processo dereestruturação tecnológica e organizacional das empre-sas industriais, aliado ao fenômeno da globalização dasrelações econômicas, vem acirrando a concorrência inte-rempresas, a “competição locacional” entre países e re-giões e, por fim, o problema do desemprego estrutural.

Em virtude da dimensão desses problemas e da impor-tância que o setor industrial apresenta dentro da econo-mia contemporânea, pouca atenção tem sido dada aos pro-cessos de reestruturação que vêm ocorrendo no âmbitoda atividade comercial.1 Contudo, é importante iniciar umareflexão sobre o impacto das transformações tecnológi-cas e organizacionais vividas recentemente pelo comér-cio, a fim de compreender os papéis que esse setor pode-rá desempenhar no novo contexto social e econômico quevem emergindo nos últimos anos. Em primeiro lugar, anecessidade dessa reflexão deriva da própria importânciado setor no conjunto da economia, uma vez que participacom cerca de 7% a 12% da população ativa em muitospaíses desenvolvidos e com percentuais dentro dessa mes-ma faixa no que diz respeito ao valor adicionado total. Omesmo pode ser constatado para o caso do Brasil, onde osetor abrangia 13% de todo o pessoal ocupado em 1990.2

Em segundo lugar, e mais importante, porque o comércioestá efetivamente passando por um movimento bastanteamplo de modernização tecnológica e organizacional, cu-jos desdobramentos se fazem sentir tanto no âmbito estri-to do setor quanto no das relações intersetoriais.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é sintetizar astendências internacionais de reestruturação verificadas no

atacado e no varejo durante os últimos 15 anos, a fim deindicar alguns eixos temáticos para a elaboração de pes-quisas econômicas sintonizadas com os novos rumos docomércio contemporâneo.

O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃONO SEGMENTO VAREJISTA

Tradicionalmente, as empresas de varejo são bastantesensíveis às mudanças que ocorrem no perfil dos consu-midores, conseqüência óbvia da função que desempenhamna cadeia de valor adicionado, que é a de distribuir bensde consumo para a população. Em virtude disso, as pres-sões do ambiente concorrencial acabam sendo condicio-nadas por algumas transformações socioculturais que vêmimpelindo as empresas varejistas (sobretudo aquelas quecomercializam bens não-duráveis) a investir no aumentoda qualidade e na diversificação de produtos e serviçosoferecidos.

Um dos fatores que estimularam a adoção dessa estra-tégia foi o crescimento da importância social e legal con-ferida à noção de “direitos do consumidor”, que engen-drou a tendência (já antiga em países como os EUA, masque ainda está se expandindo em escala internacional) deaumento do número de organizações públicas e privadasde defesa dos consumidores. A isto vieram se somar ou-tras transformações, como a inserção das mulheres no mer-cado de trabalho (reduzindo o tempo disponível para com-pras e afazeres domésticos) e a crescente preocupação dasclasses médias urbanas com questões ambientais e quali-dade de vida. Como resultado, a preocupação primordialde produtores e distribuidores passou a ser a busca desoluções capazes de conciliar as expectativas do merca-

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LUIS LOPES DINIZ FILHO

Geógrafo, Analista da Fundação Seade

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do quanto à maior comodidade e rapidez com as preocu-pações relativas à qualidade dos produtos e de suas for-mas de conservação e acondicionamento.

Algumas das respostas mais visíveis a tais demandasforam indicadas por estudo realizado em 1990, pelaNielsen/Europa, cujo objetivo era identificar as tendên-cias do comércio varejista de alimentos no contexto daunificação européia.3 Em primeiro lugar, verificou-se amelhoria das chamadas “marcas próprias”, que adquiri-ram melhor qualidade e passaram a abarcar um sortimen-to maior de produtos – tendência verificada também novarejo norte-americano (O’Connor, 1992:156). Em segun-do lugar, declinou a oferta dos produtos enlatados ou empacotes relativamente à de comida preparada e produtosfrescos, tais como peixes, verduras e pães (uma inversãoda tendência em vigor até não muito tempo atrás, quandoa prioridade das empresas era aperfeiçoar a tecnologia decongelamento de produtos). Finalmente, foram identifi-cadas duas outras tendências não diretamente ligadas àoferta de produtos nos pontos de vendas, que eram a di-versificação das grandes empresas varejistas e a concen-tração do capital e das vendas (SuperHiper, 1992a).

No que diz respeito ao processo de concentração, oestudo da Nielsen verificou que as pequenas lojas haviampassado para segundo plano no abastecimento de produ-tos alimentares, já que a participação dos hipermercadosnas vendas desses produtos tornou-se predominante. Oestudo também previa que, em 1993, a participação dasredes de super e hipermercados na comercialização de bensde consumo em geral seria da ordem de 58%, indicandoassim a dimensão do processo de concentração no vare-jo. Embora essa tendência tenha se verificado de fato nosprimeiros anos da década, alguns autores afirmam que aconcentração do comércio varejista europeu atingiu oponto de inflexão. Com efeito, países como Inglaterra, Ale-manha e França já apresentam elevada participação dosestabelecimentos de maior porte no mercado do varejo,havendo em média um grande supermercado para cada70.000 habitantes. Na Inglaterra, onde a concentração éparticularmente alta, a concorrência tende a se intensifi-car na prestação de serviços e na diversificação da ofertade produtos, não na expansão física da rede de pontos devenda. Mesmo o crescimento dos grandes discounters, naFrança, parece não ser suficiente para indicar um novociclo de concentração, já que essas lojas participam, atéagora, com apenas 2% do mercado. Finalmente, destacamesses autores o declínio dos grandes magazines, que es-tão perdendo espaço para as lojas especializadas (Almeidae Crossetti, 1995:83).

Ainda sobre o tema da concentração, vale a pena dizerque a recente expansão do sistema de franquias tambémcontribui para preservar espaços para a operação de em-

presas comerciais de pequeno porte, ao mesmo tempo emque amplia o poder econômico das empresas maiores.Através desse sistema, as empresas do setor industrialpodem constituir seus próprios canais de distribuição demercadorias sem arcar com o ônus de montar estruturascompletas de comercialização, limitando-se ao forneci-mento de mercadorias e à coordenação das atividades daslojas franqueadas. Já para as empresas varejistas (sobre-tudo as que operam com estabelecimentos de pequenoporte, como lojas de conveniência e alguns segmentos decomércio especializado), o sistema de franquias constituiuma fórmula eficaz para implementar a expansão descen-tralizada de suas redes de pontos de venda, na medida emque cada unidade franqueada constitui uma empresa comadministração independente, mas que opera de acordo comparâmetros estabelecidos pela franqueadora. Do lado dospequenos empresários, a inserção em redes de franquiaspermite auferir vantagens que de outro modo só seriamacessíveis às grandes empresas, entre as quais podem sercitadas: ganhos de escala, já que as compras de mercado-rias são centralizadas pela franqueadora que possui maiorpoder de negociação; possibilidade de comercializar mar-cas bem conhecidas pelo público; trabalhar com linhasde produtos planejadas a partir de pesquisas de mercadosistemáticas; acesso barato aos veículos de comunicaçãode massa, etc. Por tais motivos, alguns consultores da áreaafirmam que, enquanto 95% dos pequenos negócios in-dependentes não duram além do segundo ano de opera-ção, 97% das empresas franqueadas atingem até dez anos(Folha de S.Paulo, 1996).

Quanto ao processo de diversificação das empresasvarejistas, o estudo da Nielsen destaca que tal estratégiadesdobra-se na busca de novos mercados e na ampliaçãodos mix de produtos oferecidos em cada loja. Com efeito,praticamente todas as grandes redes de varejo alimentarda Europa optaram por ampliar suas operações no exte-rior ou diversificar suas atividades, investindo em áreasnão alimentícias. A expansão internacional das grandescadeias de varejo pode ser vista como a manifestação doatual processo de internacionalização da economia noâmbito do comércio varejista, impulsionado, nesse caso,pela necessidade das empresas de conquistarem posiçõesde mercado para fazer frente ao crescimento da concor-rência. Isso é particularmente importante se for conside-rado que as limitadas expectativas de crescimento dosmercados de bens de consumo dos países centrais contri-buem para o acirramento da competição, constituindo as-sim um poderoso estímulo à expansão dos grandes super-mercadistas também em países periféricos possuidores demercados atrativos, tais como Brasil, México e Argenti-na.4 Já no que tange à diversificação das atividades co-merciais, deve-se notar a preocupação das grandes redes

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em investir na expansão de lojas com áreas de vendasreservadas para produtos não alimentícios, como artigosde moda, livros e discos.

A estas estratégias podem ainda ser acrescentadas for-mas mais sofisticadas de diversificação da atividade co-mercial, tais como a expansão das vendas a distância edas atividades de prestação de serviços. As vendas a dis-tância representam uma das respostas mais eficazes às de-mandas dos consumidores por maior comodidade, cons-tituindo assim uma forma de comércio especializado quetende a crescer muito nos próximos anos. Baseado nastécnicas de telemarketing, esse tipo de comércio vem sedesenvolvendo pela incorporação de novas mídias, prin-cipalmente a telemática.5 A prestação de serviços aos clien-tes, por sua vez, constitui uma das estratégias mais im-portantes para diversificar as atividades da empresa epreservar posições de mercado. Graças à sua intensa re-lação com os consumidores, necessariamente rotineira, ovarejo vem atuando cada vez mais como intermediadorna prestação de serviços pessoais, tais como fornecimen-to de crédito, agenciamento de viagens, venda de segurose produtos financeiros, etc. O primeiro passo da empresaé, quase sempre, começar operando como intermediáriano fornecimento de crédito, freqüentemente em nome deempresas do setor financeiro pertencentes ao mesmo grupoeconômico do próprio varejista (holdings e outras formasde associação). Posteriormente, o fornecimento de crédi-to deixa de ser o principal atrativo oferecido pelo varejis-ta, figurando em primeiro plano a intermediação na ven-da de outros serviços (Almeida e Crossetti, 1995:176).Portanto, o desenvolvimento das atividades de interme-diação constitui uma importante estratégia de diferencia-ção do produto para as empresas de varejo, além de for-talecer a posição econômica desse segmento no contextodo processo de reestruturação da economia. Como desta-cam Almeida e Crossetti (1995:178), “Pode-se observaro estabelecimento de um efetivo ‘mercado de transações’,um mercado de controle de outros mercados, em que osprincipais operadores podem ser chamados operadores deintermediação, que obtém um amplo poder de mercado”.

Porém, a face mais visível das ações movidas pelas em-presas varejistas para aumentar a qualidade e a eficiênciados serviços que prestam é, sem dúvida, o processo deautomação do varejo. A expansão da capacidade de arma-zenamento, transmissão e processamento de dados, pro-piciada pelas novas tecnologias de informática e tele-comunicações, vem permitindo a implantação de métodosinovadores de operação e gerenciamento das atividadesde distribuição de mercadorias. O processo de automa-ção comercial consiste basicamente na implantação de umsistema integrado de controle das operações de venda edo gerenciamento dos estoques, mediante uma associa-

ção das tecnologias de entrada e processamento de dados(principalmente pontos de venda equipados com leitoresóticos) com os novos serviços de comunicação, tais comoo Eletronic Data Interchange – EDI (Diniz Filho, 1995).

No caso específico do varejo, essa associação detecnologias torna possível a implantação do sistema deavaliação do lucro por item vendido (Direct Profit Product– DPP) e não por segmentos ou linhas de alimentação.Ao mesmo tempo, faculta às empresas comerciaisampliarem enormemente a velocidade de comunicaçãocom seus clientes e fornecedores, de modo a agilizar oprocesso de ressuprimento das lojas e reduzir o tempo deestocagem das mercadorias. O aumento da velocidade degiro dos estoques, com base num fluxo de informaçõesrápidas e precisas, permite ainda otimizar o processo dedefinição do mix de produtos comercializados e o controlede promoções e preços, além de oferecer condições parao desenvolvimento de estratégias de marketing maissofisticadas – mesmo porque, as próprias atividades depropaganda e marketing das empresas são informatizadas.Com efeito, as informações oferecidas pelo sistema DPPsobre a lucratividade obtida em cada item de produtosaumenta a eficácia das técnicas de Space Imagine, isto é,o planejamento do layout das lojas (distribuição dos pontosde maior visibilidade) de acordo com a atratividade decada mercadoria. Igualmente importante é a montagemde bancos de dados dos consumidores e suas preferências,que, permitindo detectar rapidamente as mudanças noshábitos de consumo da população, confere maior fle-xibilidade às estratégias de lançamentos e de promoções(Frúgoli Júnior, 1991).

Devido a todas essas potencialidades oferecidas pelaautomação comercial, verificou-se nos últimos anos umadifusão acelerada de novas tecnologias entre as empresasdo varejo, o que torna claro o caráter irreversível do pro-cesso de automação. Apesar disso, é preciso ressalvar queainda não é possível prever qual será a configuração finaldo setor comercial após a consolidação plena das tecno-logias de automação, e nem se pode dizer que o empregodessas tecnologias já tenha atingido a amplitude que mui-tas vezes se depreende das matérias veiculadas pela mí-dia – sobretudo no que diz respeito a países que se inseri-ram mais tarde no processo, como é o caso do Brasil.6

Em um estudo sobre modernização comercial, realizadopelo Centro Internacional das Empresas de Comércio eIndústria do Ramo Alimentar – Cies,7 ficou claro que jáem 1990 as redes varejistas européias utilizavam larga-mente a automação, mas não haviam ainda logrado ex-trair dessas tecnologias todos os benefícios potencialmenteoferecidos, já que a média das empresas ainda utilizava ainformática preponderantemente como fator de reduçãode custos e elevação dos níveis de eficiência.8 Somente

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as empresas de maior porte mostravam-se capazes de apli-car mais efetivamente a tecnologia de automação, de modoa não apenas melhorar seu desempenho nas operações tra-dicionais, mas principalmente como instrumento de apoioaos negócios. Mas mesmo essas grandes redes encontra-vam-se restritas à integração de sistemas, não tendo ain-da implementado a descentralização operacional e admi-nistrativa de seus recursos tecnológicos e de banco dedados, que constitui a forma mais eficiente de gestão dossistemas de informática (SuperHiper, 1992b). Vale acres-centar que o caráter ainda incompleto do processo de di-fusão e maximização dos benefícios oferecidos pelas tec-nologias de automação tem sido reiterado em estudos maisrecentes sobre o tema (Furtado, 1995:93-95).

Adicionalmente, deve-se ressalvar que o potencialde integração das transações interempresas oferecidopela automação comercial ainda não se traduziu na cons-tituição de padrões tecnológicos e normativos de âmbitouniversal. A importância estratégica dos sistemas de auto-mação para o planejamento das atividades e formas decooperação entre empresas, aliada aos altos investimen-tos necessários para readequar sistemas já constituídos,cria conflitos de interesse que dificultam a formação deconvenções mais amplas, de modo que diversos padrõestecnológicos e normativos continuam coexistindo, sem quenenhum deles consiga se converter em padrão universal.

Apesar dessas ressalvas, pode-se dizer que o conjuntode estratégias implementadas pelas empresas de varejo paraampliar sua competitividade, tal como foram descritas atéo momento, engendraram pelo menos duas grandes ten-dências de transformação no âmbito do comércio varejis-ta. Em primeiro lugar, verifica-se que as atividades vare-jistas deixaram de se caracterizar pelo baixo conteúdotecnológico, passando agora a desempenhar função im-portante no desenvolvimento e difusão de novas tecnolo-gias, bem como no próprio processo de informatizaçãoda sociedade. Não por acaso, as empresas desse segmentoconstituem hoje os principais clientes das empresas do tipoValue Added Network (VAN), que são responsáveis pelaoperação dos serviços de EDI. Em segundo lugar, constata-se que como reflexo do uso intensivo da informática nessesegmento, ampliaram-se as exigências de qualificação pro-fissional, seja no que diz respeito à gerência intermediáriaou às atividades operacionais. Em virtude disso, alguns au-tores afirmam que têm crescido os investimentos das em-presas de varejo em treinamento de pessoal, já que os requi-sitos de qualificação, na esteira da própria informatizaçãodas empresas, passam a ganhar importância como fator devantagem competitiva (Almeida e Crossetti, 1995:177).

Por fim, é significativo destacar que as estratégias im-plementadas recentemente pelo varejo vêm contribuindopara alterar o próprio padrão de concorrência vigente, o

que diz respeito tanto às formas de relacionamento entreas empresas do comércio como às relações intersetoriais.Tradicionalmente, o comércio varejista constituía um seg-mento relativamente frágil em relação aos outros, já queas empresas industriais e atacadistas operavam com vo-lumes de vendas muito maiores. Hoje, as grandes cadeiassupermercadistas da Europa e dos EUA realizam vendasem escalas bastante superiores às de qualquer fornece-dor, fato este que, somado à grande concentração do ca-pital varejista, assegurou-lhes um significativo poder oli-gopsônico (sobretudo em relação à indústria de alimentose de produtos de uso doméstico).9 Como resultado, as em-presas de supermercados ampliaram seu poder econômi-co dentro da cadeia de produção e distribuição de bens deconsumo corrente, o que lhes permite determinar, até certoponto, o perfil dos processos de reestruturação e moder-nização que vêm ocorrendo nas empresas que operamdentro dessa cadeia.10

O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃONO SEGMENTO ATACADISTA

Pelo fato de o atacado atuar principalmente como inter-mediário entre empresas, as transformações pelas quais essesegmento vem passando terminam por receber menor aten-ção por parte da mídia, tornando-se assim menos perceptí-veis para o público em geral. Apesar disso, é importantedestacar a forma como esse segmento vem se engajando nocorrente processo de reestruturação da economia dos paísescapitalistas avançados, o que tem atraído o interesse de al-guns importantes centros de pesquisas econômicas.

De acordo com estudo da Oficina Estadistica de LasComunidades Europeas (1991), podem ser identificadasvárias tendências econômicas que, direta ou indiretamente,incidem sobre a estrutura de comercialização atacadista. Aconcentração de capital, com eliminação de pequenas em-presas, é uma das tendências verificadas no atacado euro-peu ainda em princípios da década de 90, o que parece seruma conseqüência do aumento do nível de competição nes-se segmento. Outra tendência é a elevação do volume denegócios e do pessoal ocupado no segmento atacadista, re-velando sua capacidade de se inserir dinamicamente nosmovimentos de transformação da economia. Entre os vá-rios fatores que podem estar contribuindo para esse cres-cimento, o processo de unificação do mercado europeuparece ser um dos mais significativos, especialmente quan-do se considera que o aumento da participação do ataca-do no comércio de importação e exportação é outra ten-dência verificada no início desta década.

Porém, existem outros aspectos do atual processo de re-estruturação da economia que influenciam o segmento ata-cadista de formas nem sempre convergentes. Segundo a

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Oficina Estadistica (1991:17), podia-se identificar, no iní-cio dos anos 90, a tendência de externalização das ativida-des de distribuição de mercadorias por parte das empresasdo setor produtivo, em correspondência com o movimentogeral de terceirização que, segundo a bibliografia especializa-da, constitui uma das características mais marcantes da ondade reestruturação em curso. Todavia, se esse movimento abrepotencialmente novos espaços para a atuação do atacado,por outro lado já se notava uma tendência (ainda que nãotão forte) de estreitamento dos vínculos entre empresas in-dustriais e varejistas, com a transferência para estas últimas,da distribuição e do armazenamento de mercadorias.

Em uma visão geral, porém, pode-se dizer que não háperspectivas de retraimento da atividade de distribuiçãoem virtude dos recentes movimentos de transformação daeconomia, já que a funcionalidade desse segmento nacadeia de valor agregado não chega a ser questionada pelodesenvolvimento de parcerias entre produtores e varejis-tas. De fato, uma das funções primordiais do atacado écobrir as lacunas existentes na capacidade de abasteci-mento do varejo por parte das empresas industriais, vistoque, enquanto estas últimas atuam como produtoras es-pecializadas de bens em larga escala, os varejistas traba-lham quase sempre na comercialização de uma gama muitovariada de mercadorias. Somente um setor especializadona logística de distribuição poderia livrar as indústrias doônus de suprir diretamente as lojas do varejo não espe-cializado, fazendo o armazenamento e a posterior distri-buição fracionada de produtos. É graças a essa especiali-zação que o atacado tem logrado inserir-se de formadinâmica nas mudanças mais recentes da economia, ti-rando proveito do próprio movimento de modernizaçãodo varejo. É o caso do estímulo que a expansão das lojasde conveniência oferece para o crescimento do atacado:por trabalharem com volumes de mercadorias relativamen-te pequenos, mix diversificado e giro muito rápido, taislojas representam um importante nicho de mercado paraesse segmento. Exemplo menos comum, mas que mereceser citado, é o dos atacadistas que passaram a realizarvendas a varejo para mercados exclusivistas, tais comocondomínios residenciais de alto padrão, através da apli-cação da telemática ao sistema de vendas a distância.11

Entretanto, a capacidade do atacado de incorporar di-namicamente os estímulos do modelo econômico emer-gente (e de perfil ainda em definição) já não depende so-mente do desempenho alcançado na execução das funçõesde distribuição. Isto reflete na forma como as empresasatacadistas vêm investindo no desenvolvimento de estra-tégias de competitividade mais sofisticadas, que não serestringem à busca do menor preço e enfatizam a concor-rência via diversificação e melhoria da qualidade dos ser-viços prestados aos clientes.

Entre os grandes atacadistas norte-americanos, bastanteavançados na implementação dessas estratégias, o objeti-vo primordial da prestação de serviços é ampliar o graude “fidelidade” dos clientes, ou seja, estabelecer víncu-los mais constantes de relacionamento com as empresasde varejo, principalmente através de contratos de forne-cimento exclusivo. O atacadista Richfood, por exemplo,possui um departamento de projetos somente para orien-tar seus clientes em atividades tais como planejamentode instalação e reforma de lojas, desenvolvimento delayouts e projeto arquitetônico, entre outros serviços queoferece.12 Já o atacadista Super Valu, maior empresa dosetor nos EUA, criou a divisão Sweet Life, especializadaem assessorar clientes no planejamento de elementos-chave do varejo, tais como a composição do mix de pro-dutos (diferenciado por loja), planos de promoções emerchandising. Como resultado, essa divisão conseguiuformar um corpo de 327 clientes cativos, responsáveis porum volume de entregas da ordem de 430 mil caixas porsemana, que são assistidos por um grupo de 12 consulto-res de negócios. A ênfase na prestação de serviços atuatambém no sentido de estreitar as relações do atacado comas empresas do setor de serviços pessoais e sociais, comodemonstram as recentes experiências do Virginia FoodService. Essa empresa criou uma divisão institucional, a“Pocahontas”, especializada no atendimento a restauran-tes, hospitais e rotisserias, entre outros tipos de estabele-cimento. Bem treinados e munidos de lap tops commodems, os vendedores dessa divisão oferecem aos clien-tes, no momento mesmo de fechar negócios, um verda-deiro serviço de consultoria para a montagem de cardápi-os, fornecendo informações que incluem até o cálculo dopreço por tipo de refeição servida e dos valores nutritivosde cada tipo (Yazbek, 1995).

Com o crescimento da importância estratégica da pres-tação de serviços, ampliou-se também a necessidade deinvestir nas atividades de pesquisa e planejamento demédio e longo prazos. Isto significa que, para desempe-nhar eficientemente sua função de prestar assessoria àsatividades de varejo (importantes sobretudo para as pe-quenas empresas), os atacadistas precisam ser capazes deantecipar as demandas do seu cliente imediato13 e, aomesmo tempo, detectar as tendências do próprio merca-do consumidor. Não por acaso, os grandes atacadistasnorte-americanos possuem equipes de pesquisa e desen-volvimento especializadas no acompanhamento das mu-danças nos hábitos de consumo da população, levan-tando assim as informações necessárias para planejar otipo de atendimento mais adequado ao perfil dos consu-midores.14 Pode-se dizer que a orientação geral das ativi-dades do atacado americano é estabelecida a partir dasdemandas do mercado de consumo final, com efeitos im-

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portantes sobre o próprio planejamento das empresasvarejistas.

Talvez o ápice desse sistema de cooperação e plane-jamento integrado das grandes redes de atacado e varejopossa ser identificado nas chamadas “cadeias de associa-ção voluntária”, modalidade de associação entre empre-sas em que os grandes atacadistas atuam como responsá-veis pelo abastecimento e coordenação das atividades deum grande número de lojas de varejo. Tomando-se nova-mente o exemplo da Richfood, verifica-se que essa em-presa opera atualmente com um conjunto de 128 lojas in-dependentes que, identificadas publicamente pelo seloIGA, recebem catálogos de produtos e revendem as mer-cadorias sob o compromisso de utilizar displays padroni-zados, o que assegura a unidade do conjunto. A coorde-nação das atividades da rede é ainda reforçada porworkshops trimestrais em que os lojistas são informadossobre as estratégias de promoção a serem adotadas.

Estas novas formas de associação entre atacado e va-rejo suscitam a questão de saber até que ponto a partici-pação de pequenos varejistas nessas cadeias não seria, paramuitos deles, mais uma questão de sobrevivência frenteao avanço das grandes redes super e hipermercadistas doque uma adesão entusiástica às novas formas de parceria.Ainda que o nível de exigência dos atacadistas para aparticipação de pequenas empresas nessas cadeias possaser elevado, o suporte logístico oferecido e o apoio mer-cadológico prestado pelas empresas atacadistas podem serum fator de segurança para muitos varejistas independen-tes, que de outra forma teriam dificuldades para competircom o poderio de mercado das grandes redes. Além domais, se o vínculo estabelecido com grandes atacadistasconstitui uma forma de parceria muito assimétrica, poroutro lado evita que as lojas independentes tenham denegociar diretamente com grandes fornecedores indus-triais, o que também iria colocá-las em situação de des-vantagem, dado que teriam que negociar pequenos volu-mes de mercadorias. Se a incorporação do varejoindependente às cadeias voluntárias continuar se genera-lizando, pode-se levantar a hipótese de que esse meca-nismo poderá vir a ser mais um elemento limitador da con-centração de capital no segmento varejista, mantendoassim uma margem considerável para a participação depequenas empresas independentes no mercado, ainda que,para isso, tais empresas tenham que se organizar virtual-mente da mesma forma que nas redes de franquias.

Outro ponto que merece ser realçado é a possibilidadede que a diversificação das atividades exercidas pelasempresas de atacado atinja um nível tal que acabe poralterar a própria natureza desse segmento. Com efeito, aênfase dada ao “marketing de serviços” pelos empresá-rios atacadistas é de tal ordem que já tem levado alguns

representantes desse segmento a defini-lo como a ativi-dade principal do atacado, superior à própria compra evenda de mercadorias.15 Esta última passaria a ser apenaso resultado obtido com o trabalho de marketing direcio-nado para a conquista e preservação de clientes.

Apesar da contundência dessa assertiva, não se devepensar que a ênfase atual na prestação de serviços tenhatransformado a competição baseada em preços numa preo-cupação irrelevante para as empresas desse segmento. Pelocontrário, é preciso frisar que a eficiência dos atacadistasno fornecimento de produtos, segundo critérios de rapi-dez e preços baixos, constitui um fator essencial nas ne-gociações que envolvem a formação dos vários tiposde parcerias, desde contratos de fornecimento exclusivoaté cadeias voluntárias. Em função disso, as empresasatacadistas vêm produzindo sucessivos aprimoramentosnos métodos de planejamento e execução integrada dasatividades de armazenamento e distribuição, designadosmais precisamente pelo termo “logística”.

Segundo consultores especializados, os últimos anostrouxeram uma mudança significativa no conceito de lo-gística, que deixou de ser definida apenas como o estudoe planejamento das atividades imediatamente ligadas àdistribuição física, passando a enfocar o conjunto de ati-vidades que compõem o “fluxo total da mercadoria”, ouseja, todo o ciclo de produção, distribuição e consumo.16

Nesse contexto, as mais recentes inovações organizacio-nais do atacado podem ser definidas da seguinte manei-ra: “A palavra de ordem dos anos 90 é o ECR – EfficientConsumer Response (...). A sua base de sustentação estána logística, a única forma de se conseguir eficiência eagilidade nas operações. A aplicação do ECR aumenta ovalor agregado dos produtos – por exemplo, preços maisbaixos, produtos mais frescos ou adequados – analisandoos processos de cadeias de negócios do setor, desde ofornecedor de embalagens até o varejo e, finalmente, oconsumidor” (Tanabe, 1996:30).

Do ponto de vista estratégico, o eixo básico do con-ceito de ECR é o enfoque orientado para o consumidorfinal, o que constitui uma importante inovação trazida peloatacado norte-americano. Para implementar esse novomodelo logístico, porém, é necessário percorrer um lon-go caminho, que envolve pelo menos quatro movimentosbastante amplos de reestruturação das empresas: realiza-ção de um trabalho de reengenharia voltado para a rede-finição da estrutura organizacional da empresa, cargos,funções, recursos humanos, atividades principais, etc.;pesquisa de métodos desenvolvidos pelas empresas maisavançadas no intuito de incorporar suas experiências(benchmarking); utilização intensa dos recursos de EDI,tecnologia indispensável para a integração e coordena-ção de atividades; e implementação do Activity Based

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Costing (ABC), conjunto de técnicas que permitem iden-tificar e calcular os custos de distribuição em todos oscanais, contabilizando assim todos os custos envolvidosem cada uma das atividades necessárias à comercializa-ção de mercadorias. O resultado a ser perseguido com essesmovimentos é a eliminação da burocracia que permeia astransações internas e externas das grandes empresas ata-cadistas, de modo a remover os obstáculos que possamprejudicar o fluxo de informações entre diferentes depar-tamentos de uma mesma empresa e/ou entre os atacadis-tas e seus vários parceiros. Nesse sentido, o ECR consti-tui um sistema de parcerias voltado para a integração doscanais de distribuição de mercadorias, a qual só se reali-za plenamente quando as decisões passam a ser tomadasa partir da sondagem do consumidor final e do comparti-lhamento de informações entre parceiros atacadistas, dis-tribuidores, varejistas e industriais (Tanabe, 1996).

Um ponto que merece ser destacado refere-se ao fatode que esse conjunto de inovações organizacionais nãopoderia ter acontecido sem o suporte tecnológico desen-volvido nos últimos anos. À semelhança do que vem ocor-rendo no varejo, o atacado deixou de se caracterizar comoum segmento de baixo conteúdo tecnológico, uma vez quefoi capaz de adaptar os recentes avanços nas áreas de co-municações e informática às suas próprias necessidades.Para aumentar a eficiência da administração dos estoques,as convencionais empilhadeiras passaram a ser equipa-das com um conjunto integrado de coletor de dados,scanner e transmissor de radiofreqüência, permitindo as-sim um melhor monitoramento das tarefas executadaspelos operadores dos veículos e, sobretudo, o acompa-nhamento do fluxo de mercadorias em tempo real, de modoa calcular a velocidade de giro de cada item. Além deaumentar a eficiência dessas operações rotineiras, tal sis-tema cria novas possibilidades de controle e mensuraçãodos níveis de produtividade da empresa, tais como os in-dicadores de produtividade por funcionário, por máqui-na, ou por seção. De modo análogo ao que ocorre com asempilhadeiras, os caminhões passaram a contar com com-putadores de bordo e transmissores, produzindo ganhosde eficiência em todos os aspectos que envolvem as ope-rações de transporte de mercadorias, a saber: fiscalizaçãodo trabalho dos motoristas, coibindo práticas nocivas àconservação dos veículos ou que impliquem desperdíciode tempo; roteirização mais eficiente das entregas, quepassam a ser planejadas com base em informações rápi-das e precisas sobre os níveis de estoque dos clientes e osprazos de entrega dos fornecedores; maior economia decombustível, peças e acessórios, derivada da racionaliza-ção dos roteiros e dos serviços internos de manutenção(propiciada pela informatização integrada também dasoficinas),17 etc. Por fim, a aplicação de tecnologia às ati-

vidades de armazenamento e distribuição torna possívelreduzir a burocracia nas transações internas e externas dasempresas, já que a troca de informações entre centros dedistribuição, matriz, fornecedores e clientes torna-se muitomais ágil e tende a eliminar o preenchimento de requisi-ções, notas fiscais e outros documentos em forma impressa(Revista Distribuição, 1995).

Em suma, pode-se perceber que as recentes transfor-mações vividas pelo atacado vêm conduzindo esse seg-mento a níveis elevados de sofisticação tecnológica e or-ganizacional, resultante da diversificação das atividadesdas empresas e do maior estreitamento das relações comsetores comerciais e não-comerciais. Refletindo a tendên-cia de diversificação, as empresas atacadistas passaram ainvestir na formação de grupos de funcionários mais qua-lificados, responsáveis pelas atividades de pesquisa demercado, marketing, consultoria de negócios, planejamen-to logístico e outras. Os efeitos disso são bastante inte-ressantes, como demonstra o caso da divisão Sweet Life,que substituiu a figura do vendedor pela do consultor denegócios, responsável por prestar serviços aos parceirosvarejistas. Mesmo quando os vendedores não são propria-mente substituídos, verifica-se o crescimento da autono-mia e a ampliação das funções que exercem, já que elespassam a ser negociadores, capazes de formular propos-tas, tomar decisões e fornecer informações aos clientes.Com esse novo perfil de vendedores, equipamentos comolap tops e modems passaram a ser ferramentas de traba-lho indispensáveis para agilizar o fornecimento de infor-mações aos clientes, reforçando ainda mais a necessida-de de investimentos em qualificação e treinamento porparte das empresas atacadistas.

SÍNTESE DAS TENDÊNCIAS DEREESTRUTURAÇÃO E SUGESTÕESPARA O ESTUDO DO SETOR COMERCIAL

A comparação das trajetórias do varejo e atacado, nosúltimos anos, permite identificar algumas tendências ge-rais de reestruturação do setor comercial, que podem seresquematizadas da seguinte maneira:- internacionalização das empresas comerciais, manifes-ta na expansão das cadeias varejistas em mercados na-cionais atrativos e no aumento da participação dos ataca-distas nas operações de importação e exportação;

- desenvolvimento de estratégias de competição basea-das na melhoria e diversificação de produtos e serviços,não apenas na redução de preços;

- aumento da importância conferida ao planejamento es-tratégico, realizado com base na sondagem sistemática domercado consumidor e na análise integrada do “fluxo to-tal da mercadoria” (produção, distribuição e consumo);

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TENDÊNCIAS RECENTES NO SETOR COMERCIAL

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- desenvolvimento e generalização de tecnologias de au-tomação comercial, com vistas a ampliar a eficiência dasoperações logísticas e sofisticar as técnicas de marketinge de gerenciamento;- aumento das exigências relativas à qualificação profis-sional, refletindo-se na maior preocupação das empresascom treinamento;- crescimento da participação das empresas comerciaiscomo intermediárias nas transações entre os agentes dacadeia de valor agregado, através da venda de serviçosaos consumidores e da orientação prestada aos fornece-dores em relação às tendências do mercado consumidor;- aprofundamento e diversificação das formas de parceriaentre empresas comerciais e também entre comércio e in-dústria (franquias, cadeias de associação voluntária, etc.);- alteração das formas de relacionamento entre indústriae comércio, com aumento do poder econômico das em-presas comerciais;

À luz das discussões realizadas até o momento, pode-se concluir que as tendências de reestruturação ensaiadaspelo comércio vêm sendo impulsionadas e definidas pelaexacerbação da concorrência, característica própria dosgrandes ciclos de reestruturação econômica que se mos-tra particularmente acentuada no período atual (Furta-do, 1995:83), mas que muitas vezes é deixada de lado pelosanalistas mais diretamente ligados às empresas do setor.A rápida difusão dos equipamentos de automação, porexemplo, indica claramente a existência de uma corridade atualização tecnológica dentro do comércio. Por outrolado, a universalização de convenções tecnológicas e nor-mativas, que poderia maximizar o potencial de integra-ção dessas tecnologias (seja no âmbito da logística, sejano das transações entre empresas), vem sendo obstaculi-zada pelos conflitos entre as grandes empresas, cada qualinteressada em transformar seus próprios sistemas empadrão hegemônico. Assim também ocorre com a expan-são e o aprofundamento das formas de parceria (comofranquias e cadeias voluntárias), que, embora contribuin-do para preservar espaços de atuação para as pequenasempresas, reduzem as chances de sobrevivência daque-las que não forem capazes de se associar aos grandes ca-pitais. Na outra ponta do processo, o estreitamento dasrelações entre as grandes empresas dos setores produti-vos e comerciais sugere que há um esforço mais ou me-nos generalizado para consolidar posições de mercado edeslocar a competição do âmbito das relações entre em-presas para o das relações entre grupos de empresas asso-ciadas. Tudo isso serve para demonstrar o modo como oacirramento da concorrência, intrínseco ao atual proces-so de reestruturação da economia, vem exigindo estraté-gias ativas de adaptação por parte das empresas do setorcomercial.

Todavia, existem grandes dificuldades para avançar naanálise das causas e conseqüências do processo de reestru-turação do comércio, ou mesmo para traçar um cenário so-bre o futuro desse setor, em virtude da falta de pesquisassistemáticas que permitam analisar e quantificar o processode reestruturação em curso, principalmente no que diz res-peito ao caso brasileiro. Somente através da aplicação depesquisas especificamente planejadas para esse fim serápossível avaliar até que ponto as tendências de reestrutura-ção delineadas anteriormente estariam transformando efeti-vamente o perfil da atividade comercial, bem como os im-pactos sociais e econômicos que estariam produzindo.

Do ponto de vista do mercado de trabalho, por exem-plo, é preciso constituir indicadores que possibilitem aferiraté que ponto o aumento da importância atribuída ao trei-namento de pessoal poderia estar alterando o nível médiode qualificação do pessoal ocupado no comércio (tradi-cionalmente, um dos setores que utiliza mais intensamentemão-de-obra de baixa qualificação profissional e regimesde trabalho flexíveis). Igualmente importante seria pes-quisar os efeitos do aumento de produtividade e das no-vas formas de comercialização (tais como as vendas adistância) sobre o nível de emprego no comércio, prin-cipalmente considerando-se a grande participação dessesetor na PEA total. Faltam também pesquisas que captemas formas de aplicação e gestão dos recursos de informá-tica e telecomunicações, bem como o grau de “cobertu-ra” das novas tecnologias segundo as áreas de operaçãodas empresas ou as funções administrativas e operacio-nais que já são executadas através dessas tecnologias.Como último exemplo, seria importante construir pesqui-sas capazes de indicar quais estratégias de competitivi-dade estão sendo adotadas pelas empresas comerciais. Istopermitiria averiguar, entre outras hipóteses, se o desen-volvimento das técnicas de pesquisa de mercado (propi-ciado pela formação de bancos de dados sobre os consu-midores) não poderia repercutir positivamente nacompetitividade das próprias indústrias de bens de con-sumo, na esteira de parcerias bem articuladas entre asempresas de comércio e seus fornecedores.

Evidentemente, a abordagem desses temas através de in-dicadores econômicos é bastante complexa, fato que talvezexplique por que as pesquisas de comércio realizadas pelosmais conhecidos órgãos oficiais de estatística do mundo nãoestão instrumentalizadas para a produção desse tipo de indi-cadores. Além disso, o estudo aprofundado do processo deautomação comercial e das novas estratégias das empresasexigiria provavelmente a montagem de questionários exten-sos e complexos, contrariando assim a tendência de simpli-ficação das pesquisas econômicas verificada atualmente. Nocaso específico do Brasil, é preciso considerar também quea produção de indicadores voltados para o estudo das inova-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 10(4) 1996

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ções ocorridas no comércio terá que se dar em paralelo comum movimento mais amplo de reestruturação do SistemaEstatístico Nacional, que abrange o remodelamento daspróprias pesquisas econômicas estruturais. Isto significaque, inicialmente, as pesquisas de comércio terão de se con-centrar na construção de indicadores voltados para a carac-terização econômica das empresas comerciais e de suasestruturas de comercialização, avançando apenas alguns in-dicadores básicos para o acompanhamento dos processos dedifusão de novas tecnologias e de diversificação das ativi-dades econômicas dessas empresas.

Seja como for, é possível concluir que o amplo processode reestruturação econômica em curso não poderá ser com-preendido por completo através de pesquisas focadas exclu-sivamente na dinâmica industrial, já que as inovações tec-nológicas e organizacionais ocorridas no comércio tendema transformar as estratégias de competitividade das empre-sas desse setor num elemento importante para a definiçãodo novo modelo econômico emergente. Espera-se que esteartigo tenha servido para demonstrar a relevância dos fenô-menos que vêm ocorrendo no comércio, além de apontaralguns eixos temáticos para a montagem de pesquisas eco-nômicas sintonizadas com a dinâmica recente desse setor.

NOTAS

Agradecemos os comentários e sugestões de Paula Montagner e Armando Bar-ros de Castro.

1. A menor atenção dispensada ao comércio pode ser atribuída também à peque-na produção teórica acumulada sobre esse setor, tanto na literatura econômicanacional como na internacional (Zimmermann, 1992 e Oi, s.d.).

2. Os dados relativos aos países desenvolvidos foram citados por Almeida e Crossetti(1995:171). Já os dados referentes ao comércio brasileiro foram produzidos pela PNADe citados na Pesquisa Anual de Comércio – PAC, para o ano de 1990.

3. Trata-se da pesquisa “Passaporte Europeu Nielsen”, primeiro diagnóstico dovarejo alimentar a abranger de forma padronizada os 16 principais mercados daEuropa (SuperHiper, 1992a).

4. O mercado norte-americano, por exemplo, apresenta crescimento de apenas 2%ao ano, o que explica em grande parte a expansão de importantes redes supermerca-distas, como a Wal-Mart, em mercados estrangeiros (Almeida e Crossetti, 1995:180).

5. Vale dizer que esse tipo de atividade tem estimulado a disseminação dos car-tões de crédito, que tendem a se tornar a forma predominante de pagamento nasoperações de venda a distância (Almeida e Crossetti, 1995:178).

6. A difusão desses equipamentos vem se acelerando Brasil e, principalmente,no Estado de São Paulo, conforme indicado em estudo recente (Diniz Filho, 1995).Apesar disso, não se dispõe de informações mais refinadas sobre o processo deautomação do comércio brasileiro, que permitam identificar quais funções dasempresas já estariam automatizadas ou a forma de gestão dos recursos de infor-mática e telecomunicações.

7. O Cies é uma associação que reúne as 250 maiores redes varejistas de alimentosdo mundo (movimentando vendas da ordem de 600 bilhões de dólares anuais) eseus fornecedores (SuperHiper, 1992b).

8. Segundo o diagnóstico do Cies, as tecnologias de informática eram utilizadas demaneira mais intensa nas atividades de retaguarda, apoiando cerca de 70% das áreasde administração e finanças. Nas áreas de compras e logística o grau de coberturadessas tecnologias girava em torno de 48% e 38%, respectivamente. A informáticaera menos empregada nas áreas de propaganda e marketing, com 30%, e de “loja/escritório frente”, com apenas 20% de cobertura (SuperHiper, 1992b).

9. Segundo Almeida e Crossetti (1995:173), a própria ênfase das redes de supere hipermercados no desenvolvimento de marcas próprias constitui uma impor-tante “fonte de aumento de poder a expensas da indústria, possibilitando aindauma sensível ampliação das margens de lucro do varejo”.

10. Em outros setores, como no automobilístico, são as indústrias que ocupam a

posição central dentro da cadeia produtiva, ganhando assim maior capacidadede impor seus interesses dentro do processo de reestruturação das atividades(Furtado, 1995:84).

11. A entrada de empresas atacadistas no negócio de vendas a distância, com autilização de modernos recursos de telemática e multimídia, já vem sendo en-saiada inclusive no Brasil, como demonstra o projeto “Supermercado Eletrôni-co”, desenvolvido pelo Atacado Vila Nova (Revista Distribuição, 1995a).

12. A Richfood chega mesmo a utilizar a capacidade ociosa de seus computado-res para fazer a contabilidade de 150 das 1.200 lojas que atende (Yazbek, 1995:48).

13. Segundo o consultor de empresas Alberto Martins Callegaro, “o serviço (...)é um bem abstrato, que só é percebido pelo benefício que presta ao consumidor.Para isso, a empresa precisa estar à frente do cliente, para se antecipar a ele nassuas demandas” (Revista Distribuição, 1995c).

14. Altamiro Carlos Borges Júnior (1995:48), diretor da empresa de consultoriaABPL, fornece um bom exemplo de como isso funciona: “(...) quando se detectauma tendência para o consumo de produtos frescos, eles [os atacadistas norte-ameri-canos] preparam armazéns para trabalhar com 5, 10 temperaturas diferentes”.

15. O presidente da Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores, LuizAntonio Tonin, tem divulgado essa idéia entre os empresários brasileiros, relati-vamente atrasados em relação aos modernos métodos e conceitos do atacado norte-americano (Tanabe, 1996:28).

16. Alguns especialistas emprestam um significado ainda mais abrangente a esseconceito, incluindo também a produção da matéria-prima e a destinação do lixocomo etapas que interessam ao enfoque da logística (Tanabe, 1996).

17. Vale notar que a incorporação dos equipamentos de informática aos veículoslevou à criação de softwares modulares específicos para as atividades de roteiri-zação de entregas e, de forma mais ampla, para a administração integrada deoficinas, depósitos, escritório central e demais divisões das empresas atacadis-tas (Revista Distribuição, 1995b).

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