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Diagramação, capa e projeto gráfico Helder Macedo Impressão Bookess Editora Capa Tapuya. Crayon de Albert Eckhout, pintor holandês do século XVII Staatsbibliothek Preussischer Kulturbesitz, Berlim CATALOGAÇÃO NA FONTE Faculdade CatcSlica Santa Teresinha Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. Sertões do Seridd: estudos de História Colonial. / Helder Alexandre Medeiros de Macedo. - Florianópolis: Bookess Editora; Carnaúba dos Dantas QRN]: Edição do autor, ao li. Bibliografia. ISBN JC78-8J-PHI7 0 "}" 1 t. Seridó. 3. História colonial. 3. História indígena. I. Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. II. Título. RN/BU/FCST CDU 581(813.2SERIDÓ) ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO: I. Histdria Colonial do Seridó p8i(8i 3 .aSERIDÓ) TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei nfh 5.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184. do Código Penal. Impresso no Brasil/ Trintcdin Brazjl UFRN SJStEMADEBWUOTECAS&AUPBN 2014073569

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Diagramação, capa e projeto gráfico Helder Macedo

Impressão Bookess Editora

Capa Tapuya. Crayon de Albert Eckhout, pintor holandês do século X V I I

Staatsbibliothek Preussischer Kulturbesitz, Berlim

C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E Faculdade CatcSlica Santa Teresinha

Macedo, Helder Alexandre Medeiros de.

Sertões do Seridd: estudos de História Colonial. / Helder Alexandre Medeiros de Macedo. - Florianópolis: Bookess Editora; Carnaúba dos Dantas QRN]: Edição do autor, ao l i .

Bibliografia. ISBN JC78-8J-PHI70"}"1

t. Seridó. 3. História colonial. 3. História indígena. I. Macedo, Helder Alexandre Medeiros de. II. Tí tulo.

RN/BU/FCST C D U 581(813.2SERIDÓ)

Í N D I C E P A R A C A T Á L O G O S I S T E M Á T I C O :

I. Histdria Colonial do Seridó p 8 i ( 8 i 3 . a S E R I D Ó )

T O D O S OS D I R E I T O S R E S E R V A D O S - É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei nfh 5.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184. do Código Penal.

Impresso no Brasil/ Trintcdin Brazjl

UFRN SJStEMADEBWUOTECAS&AUPBN

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SUMARIO

Apresentação 4-Prefácio <> Fontes judiciais do Seridó sobre a escravidão e suas possibilidades de pesquisa . 9 Os Documentos do Cartório de Pombal-PB e a história colonial do sertão do Rio Grande do Norte 38 Em busca da memória perdida: algumas reflexões sobre a história indígena do Seridó si Considerações sobre a história indígena do Seridó: percalços, indagações e questionamentos . 64. Existem índios no Rio Grande do Norte? A propósito da presença de populações indígenas no sertão do Seridó entre os séculos XVIII e XIX 81 Haveria no sertão do Seridó reminiscências da cultura indígena? 86 Vivências indígenas em tempos cristãos na Freguesia do Seridó entre o fim do século XVIII e início do século XIX 91 Desvendando o passado índio do sertão: memórias de mulheres do Seridó sobre as caboclas-brabas { í r o Fontes Orais 178 Arquivos 179 Referências 180 Sobre o Autor ip(>

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Cartório de Pombal contribuam para o entendimento da história do Seridò potiguar.

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E M BUSCA DA m e m ó r i a PERBIDA; A C U R A S

REFXÍ^XORS SQBRB A -WISTORÍA INBÍGENA PO

S B M B Ó "

Os povos indígenas foram alvo, no aproximar-se e no decorrer do ano 1000, de divulgação intensa nas principais malhas de divulgação, como a internet, os livros, a televisão, o rádio... O orgulho de ser uma nação com 5-00 anos parece ter despertado no brasileiro um interesse — mínimo, ainda — sobre seus habitantes pretéritos. Embora, ao tratar o índio como primeiro habitante do Brasil, tenhamos que dar a mão à palmatória e calar a boca, já que as informações passadas pela televisão, com especial destaque para a Rede Globo, falam de uma terra que foi descoberta em I J O O . Sendo assim, perguntamos: Antes dessa data não existia o espaço que hoje é o Brasil? Os índios surgiram de um passe de mágica, como num püm-plim? A televisão não respondeu — e fatalmente não responderia — a essas perguntas.

" Texto de divulgação publicado, originalmente, na REVISTA DO SERIDÓ,

Natal, n. 1, 2001. Nessa época, iniciávamos as nossas reflexões para a produção de projeto de pesquisa como exigência para obtenção do grau de Bacharel em História pela UFRN, sob orientação do Prof. Muirakytan Kennedy de Macedo.

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Debaces calorosos e estudos sobre a relevância do nativo na história do Brasil foram desenvolvidos em nível acadêmico, envolvendo alguns setores da sociedade e demonstrando o quanto herdamos dos elementos indígenas na cultura brasileira. O Estado, se não fez vista grossa a essa nova compreensão da historia brasileira, procurou obscurecê-la ao passo que supervalorizava o descobrimento do Brasil por Cabral — numa atitude de engrandecimento da cultura branca e ocidental em detrimento da nativa, tida, ainda, por alguns, como inferior.

Nas unidades federativas onde não mais existem povos indígenas do ponto de vista oficial as comemorações alusivas aos 5-00 anos não tiveram tanto impacto. É o caso do Rio Grande do Norte, particularmente do Sertão do Seridó. Constituída de 2ÍJ municípios pela divisão feita a propósito da elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Seridó (2000), essa região não mais possui populações nativas. Ao passo em que não existem mais indícios, a historiografia regional traz escassas informações sobre os indígenas e suas práticas culturais. Façamos uma exceção: índios do slçu e Seridó (15184.), de Olavo de Medeiros Filho, é a obra que mais explorou a temática indígena referente ao sertão da Capitania do Rio Grande. Através da compilação de crônicas holandesas, portuguesas e luso-brasílicas o autor reconstituiu os costumes dos tapuias que habitavam o interior da

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|capxtania na época do contato com as populações "européias, além de historicizar a resistência desses mesmos índios ao domínio ocidental — utilizando documentação proveniente, sobretudo, do antigo Senado da Câmara do Natal, hoje armazenada no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Não havendo maiores informações sobre os índios do sertão, as representações que os seridoenses fazem deles são ligadas, em sua grande maioria, a imagens de nativos norte-americanos ou da Amazônia: um índio que mora em ocas, que fala tupi-guarani, que cobre o corpo com penas, que tem Tupã e Jaci como deuses...

Em conversas informais com a população idosa da região nos dias hodiernos, notamos a constante recorrência à figura de uma cabocla-braba para a explicação do seu passado indígena: idosos e idosas afirmam, perguntados sobre os índios do Seridó, que são descendentes de uma cabocla-braba pegada a dente de cachorro e casco de cavalo. Essa informação residual pode ser uma evidência da aculturação imposta pelos conquistadores luso-brasílicos aos índios, que, arredios, deveriam ser amansados para tornarem-se cristãos submissos ao Rei de Portugal e ao Papa.

Onde estão os índios do Seridó? A essa indagação a historiografia regional respondeu com as Guerras dos Bárbaros. Preferimos a utilização do termo no plural, seguindo o raciocínio do historiador Pedro Puntoni, por

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se tratarem de muitos conflitos que ocorreram entre a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII no espaço que hoje corresponde ao Nordeste. Trata-se de um dos resultados do movimento expansionista luso-brasílico na porção norte da América portuguesa, cujas guerras foram responsáveis, em grande medida, pela dizimação dos tapuias ou, quando muito, pela sua escravização por meio das brechas na legislação da época — sobretudo a guerra justa — e, ainda, de forma camuflada, nas missões religiosas. Poderíamos pensar que os índios foram erradicados por completo, mas, a própria alusão, na historiografia regional, ao aldeamento de índios remanescentes das guerras já é um indicativo mínimo da sobrevivência.

Atentemos para a documentação escrita e observemos, como já o fizeram dom José Adelino Dantas e Sinval Costa, a existência de registros de óbitos e de casamentos de índios nos livros de assento da antiga Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó -hoje, Paróquia de Sant'Ana de Caicó - entre o final | do século XVIII e o início do século XIX. Â época essa freguesia detinha, além do atual território seridoense, parte da Capitania da Paraíba. Sessenta anos, em números redondos, separam o fim das guerras (década de 17uo) e os primeiros registros de índios nos livros paroquiais, que aparecem a partir da década de 1780 — embora a freguesia tenha sido instalada em 1748, somente chegaram até nós os livros que datam das duas

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últimas décadas do século XVIII. Os índios que aparecem nesses registros paroquiais teriam vindo de outras freguesias da Capitania do Rio Grande? Seriam sobreviventes das guerras, que, enfurnados nos altos das serras, teriam descido, posteriormente, para as fazendas, povoações e vilas? Essas são perguntas que os historiadores ainda não conseguiram responder cora precisão.

Porém, as evidências nos mostram que, oriundos ou não do próprio Sertão do Seridó, os tapuias não foram totalmente expurgados com as Guerras dos Bárbaros, permanecendo, ainda, nesse mesmo espaço. Um dos requerimentos de concessão de terra da Capitania da Paraíba datado de 1818, anotado por João de Lyra Tavares, por exemplo, cita a presença de tapuias selvagens no Poço do Cedro, lugar situado ao sul do rio Piranhas.

Mais tarde, em 1872,, o Recenseamento Geral do Império do Brasil apontaria para a Cidade do Príncipe (hoje, Caicó) uma população de 11.2.83 pessoas, das quais

era de cor branca. O segundo grupo mais populoso era o dos pardos (16,?%), seguido dos pretos (1 <f,C>%) e dos caboclos - mestiços de brancos e índios, que somavam

da população total, ou seja, cerca de 1.636 indivíduos. Esses números nos mostram, como bem afirmou Maria Regina Mendonça Furtado Mattos — historiadora que estudou a pobreza no Príncipe de 185-0 a i8po — que o extermínio indígena no Seridó não foi tão violento, existindo uma mínima convivência entre

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diversos grupos sociais como brancos, caboclos, pardos e pretos.

Afora as evidências documentais da presença indígena até o século XIX, não devemos nos esquecer que parte do patrimônio cultural do Seridó tem suas raízes nos costumes dos tapuias. O hábito do banho diário; a prática das queimadas na agricultura, a recorrência a chás de ervas e cascas de árvores, o gosto pela água armazenada em potes de barro, o uso de urupembas, cabaças, cuias e outros utensílios cotidianos feitos a partir de matéria-prima vegetal. Esses são apenas alguns elementos do legado nativo que, segundo o historiador Olavo de Medeiros Filho, foram incorporados à cultura do sertanejo do Seridó.

Outra herança que, por vezes, nos passa desapercebida, é a da toponímia. Rios, riachos, sítios e lugares foram nomeados da forma pela qual eram chamados pelos nativos e assim aparecem nas documentações primeiras a respeito do sertão: Seridó (com suas diversas variantes, como Sirido, Siridó, Siridô, Seridó), Quimporó, Sabugi, Caicó e Jucurutu são alguns exemplos.

Embora parte das populações seridoenses tenha procedência luso-brasílica, também carregam herança genética indígena, mesmo em pequena quantidade. Além da figura da cabocla-braba, citada pela maioria dos idosos, Olavo de Medeiros Filho enumera pelo menos duas

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,'ndias das quais descendem grandes famílias seridoenses da atualidade: uma tapuia cujo nome a memória não preservou, que teve uma filha com Manuel Vaz Varejão, de nome Izabel da Rocha Meireles, de onde descendem os Dantas; e Custódia de Amorim Yalcácer, que casou com Pedro Ferreira das Neves e de onde descendem os Medeiros.

Com tantas heranças indígenas amalgamadas no caldo étnico-cultural do seridoense por que não valorizarmos esse lado da nossa história? Por que não encontramos a história indígena nas nossas escolas, contadas a partir de uma perspectiva diferente daquela que aprendemos? Talvez o primeiro passo para que possamos (re)escrever o Seridó seja ir a fundo no passado índio da região e (re)conhecer que a história, até então, tinha sido contada pelo olhar do colonizador, branco, civilizado, ocidental. Recuperar a memória indígena perdida significa (re)conectar o cabo que nos une ao passado. Recuperar o passado tapuia é problematizar, também, a identidade do seridoense. Uma missão que cabe a todos nós.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE, A, HISTORIA INBIGENA

PO SERIBÓ; PERÇAKÇAS, INBASAÇQES E

OjpBSTIQNAMENTQâ^^

INTRODUZINDO A Q U E S T Ã O INDÍGENA

Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos...Dizem que o Brasil foi descoberto, o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história...

(Marçal Tupã'y, jan. ip8o)

A afirmação desse índio guarani, proferida ao Papa João Paulo II quando da sua primeira visita ao Brasil, em ip8o, nos abre o olhar para uma nova faceta da História. Faceta esta um tanto incomum no nosso cotidiano escolar, afinal, aprendemos quando crianças que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil e que cedo sua tripulação fez amizade com os indígenas. E mais, que estes últimos são um dos três grupos étnicos responsáveis pela formação do brasileiro. Uma história um tanto estática e perfeita, para um país que, dizem os geógrafos,

** Artigo originalmente publicado na REVISTA DE ANTROPOLOGIA

EXPERIMENTAI., Jaén [Espanha], v. i , n. i, 2002.. Trata-se de um texto que condensa as nossas preocupações elencadas no projeto de pesquisa apresentado para obtenção do grau de Bacharel em História pela U F R N , sob orientação do Prof. Muirakytan Kennedy de Macêdo.

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é recheado de disparidades. O índio guarani, que nesse texto tem a liberdade de expressar o que sente, vem nos falar de outra História do Brasil. A história das minorias.

Comentários à parte, recentemente - no ano de 1000 - os povos indígenas foram alvo de divulgação intensa nas principais malhas de informação, como a internet, os livros, a televisão e o rádio, por ocasião das comemorações dos yoo anos do Brasil. O orgulho de ser uma nação com yoo anos parece ter despertado no brasileiro um interesse, por mínimo que seja, sobre seus habitantes pretéritos. Embora, aqui, tenhamos de nos reservar a falar de foo anos e de descobrimento do Brasil^ termos um tanto polêmicos e recheados de mistérios e visões eurocêntricas da história1*7.

Ao passo em que emissoras como a Rede Globo de Televisão faziam divulgação em massa enaltecendo os nossos quinhentos anos de história, debates calorosos e estudos sobre a relevância do nativo na História do Brasil foram desenvolvidos em nível acadêmico e envolvendo setores da sociedade, demonstrando quanto herdamos das sociedades indígenas e o quanto há de uma outra História a ser contado. História essa que não fala somente da chegada de Cabral ao solo do Brasil (talvez fosse melhor usarmos o termo invasão\ já que tentamos estudar o indígena na perspectiva de dono legítimo da terra) e da

" Sobre as críticas recentes das Ciências Humanas e Sociais aos yoo anos e ao Descobrimento do Brasil veja-sc R A M P I N E L L J , Waldir José; OURIQUES, Nildo Domingos (orgs.). Os j o o ANOS/a conquista interminável.

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presença de brancos, índios e negros na formação étnica do brasileiro. História essa que não é tão estática e nem tão perfeita, se considerarmos o Brasil como um país recheado de disparidades e desigualdades. Mas, uma História contada de baixo, de quem tombou ante a superioridade do europeu e ainda hoje busca o seu espaço. Trata-se do outro lado da moeda, de uma História marcada por sangue, luta, resistência e determinação, e, ainda, pelo choque cultural entre povos nativos e povos invasores, resultando na preponderância dos últimos sobre os primeiros.

O Estado, se não fez vista grossa a essa nova visão da história brasileira - que Marçal Tupã'y já bradava nos idos dos anos 8o procurou encobri-la, ao passo em que supervalorizava o descobrimento do Brasil por Cabral, numa atitude de engrandeci mento do branco em detrimento do indígena. Nos estados brasileiros onde não mais existem povos indígenas oficialmente, Piauí e Rio Grande do Norte, as comemorações alusivas aos foo anos não tiveram tanto impacto - embora o famoso Relógio dos ?oo anos, que contava, segundo a segundo, o tempo restante para o aniversário do Brasil, tivesse sido instalado em todas as unidades da federação. É o paso do Rio Grande do Norte, particularmente, do sertão desse estado, região que é conhecida como Seridó.

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CARTOGRAFANDO A Q U E S T Ã O I N D Í G E N A NO S E R I D Ò :

DESFRALDANDO ESTEREÓTIPOS

A hoje região do Seridó, situada no interior do estado potiguar, é constituída de 18 municípios pela divisão proposta quando da elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Seridó: Acari, Carnaúba dos Dantas, Currais Novos, Equador, Parelhas, São Tomé, Caicó, Cruzeta, Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Santana do Seridó, São Fernando, São João do Sabugi, São José do Seridó, Serra Negra do Norte, Timbaúba dos Batistas, Bodó, Cerro Cora, Florânia, Lagoa Nova, Santana do Matos, São Vicente, Tenente Laurentino Cruz, Campo Grande, Jucurutu e Triunfo Potiguar*8.

Há, no entanto, uma divisão tradicional, proposta pelo IBGE, que classifica o Seridó como uma microrregião homogênea, historicamente constituída dos municípios de Jardim de Piranhas, São Fernando, Timbaúba dos Batistas, Serra Negra do Norte, São João do Sabugi, Ipueira, Caicó (Seridó Ocidental), Cruzeta, Acari, Currais Novos, São José do Seridó, Carnaúba dos Dantas, Jardim do Seridó, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Seridó e Equador (Seridó Oriental).*9

^ C O N S E L H O D E D E S E N V O L V I M E N T O S U S T E N T Á V E L D O

S E R I D Ó . PLANO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DA REGIÃO DO SERIDÓ DO

R I O GRANDE DO N O R T E - volume I : Diagnóstico.

» I B G E . Resolução PR n. ?i, de 31 set ip8p. B O L E T I M DE SERVIÇO, n. 1736, p. 2.

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Classificações à parte, sabemos que, do ponto de vista oficial, não existem mais índios no Seridó. Ao passo em que inexistem populações nativas nesse território, os relatos da historiografia regional trazem escassas informações sobre tais indígenas. O maior contributo, talvez - e a exceção do que acabamos de falar - seja a obra índios do Slçtt e Seridópublicada em 1984. e de autoria do historiador Olavo de Medeiros Filho. Compilando os relatos de cronistas portugueses, luso-brasílicos e holandeses como Joannes de Laet, Jorge Marcgrave, Pierre Moreau, Guilherme Piso, Johan Nieuhof, Hessel Gerritz, Elias Herckman, Zacharias Wagner, Pedro Carrilho de Andrade, Ambrósio Fernandes Brandão e Gabriel Soares de Souza o autor escreveu um trabalho denso e rico acerca do modo de vida dos tapuias. Poderíamos dividir o livro em duas grandes partes. A primeira, onde se faz uma descrição dos hábitos dos tapuias, explicitados em tópicos como aparência física; saúde, doenças e morte; vida amorosa; gravidez, parto e crianças; ferocidade, armas e lutas; habitações; caça, pesca e agricultura; linguagem e religião. A segunda, historicizando o processo de ocupação do interior da Capitania do Rio Grande, especificamente das Ribeiras do Açu e Seridó e centrando a atenção nos levantes de grupos nativos ocorridos entre a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII, característicos da resistência indígena ao domínio dos povos invasores e

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que a historiografia costuma chamar de Guerra dos Bárbaros.

Não havendo maiores informações sobre os índios que habitavam os sertões, as representações que as populações contemporâneas do Seridó fazem deles são ligadas a estereótipos que se tornam lugar-comum no seu cotidiano. São índios com características físicas e culturais imanentes às sociedades indígenas norte-americanas ou da região amazônica que os educandos em fase de crescimento estudam nos livros didáticos e vêem em outras mídias, como a televisão. É um índio de pele vermelha, que mora em ocas, que fala tupi-guarani, que cobre o corpo com penas, que tem Tupã e Jaci como deuses que aprendemos a conhecer quando crianças.

Uma pesquisa de campo efetuada em algumas cidades do Seridó constatou que, quando da comemoração do Dia do índio e do dia 7 de Setembro, e, ainda, quando de desfiles socioculturais, as representações dos indígenas tendem a obedecer, rigorosamente, padrões estéticos que privilegiem os estereótipos a que nos referimos (índios norte-americanos ou amazônicos). Além da falta de criatividade na confecção dos trajes, utiliza-se, em alguns casos, material

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reciclado e sucateado na sua composição, acabando por estilizar, cada vez mais, a imagem que se tem do nativo*0.

Í N D I O S K A R I R I , OUTRO ESTEREÓTIPO; Í N D I O S T A R A I R I Ú ,

OUTRAS IMAGENS

Outro estereótipo com o qual convivemos diz respeito aos nomes dos grupos indígenas que habitavam o Seridó. Desde pequenos, seja nas escolas, seja em nossas casas, aprendemos que os Kariri foram os primeiros habitantes do nosso município. Essa afirmação se repete nas falas das professoras, nos testes avaliativos, nas anotações em caderno ou mesmo nos livros didáticos e históricos dos municípios (documentos geralmente mimeografados, elaborados pelas secretarias de educação locais contendo informações de cunho histórico-geográfico sobre as municipalidades). Num histórico do município de Currais Novos encontramos a seguinte afirmação: j

O Seridó foi inicialmente habitado pelos índios cariris que, por mais de ura século, resistiram através da guerra contra a invasão de suas terras, motivada pela expansão da pecuária5'.

6a Pesquisa de campo efetuada no ano de ippp, dentro da disciplina História da América I, sob a orientação do Prof. João Quintino de Medeiros Filho, quando estudávamos as representações dos ameríndios na sociedade contemporânea. Sl Citado por T E E N S M A , Benjamin Nicolau. O diário de Rodolfo Baro (164.7) como monumento aos índios Tarairiú do Rio Grande do Norte. In:

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Em outro histórico, dessa vez inerente ao município de Carnaúba dos Dantas, a assertiva é mais resumida ainda:

Os primeiros habitantes do município de CARNAÚBA 'DOS DANTAS foram os índios cariris, que denominaram todo o Sertão do Acauã, na região compreendida entre Jardim do Seridó e Currais Movo/'.

As informações sobre os Kariri, veiculadas nos estabelecimentos de ensino através de compêndios como estes, são mínimas. Não sabemos quem foram, como eram e onde viviam. No entanto, a obra de Olavo de Medeiros Filho a que já nos referimos - índios do e Seridó — parece ter desmistificado um pouco essa informação. Valendo-se das informações etnográficas contidas nos relatos dos cronistas coloniais e em estudos contemporâneos das áreas da antropologia e da lingüística cultural, Olavo de Medeiros Filho propôs a classificação dos tapuias dos sertões da Paraíba e Rio Grande em duas nações, Tarairiú e Kariri.

ALMEIDA, Luiz Sávio de; GALINDO, Marcos; ELIAS, Juliana Lopes. ÍNDIOS DO N O R D E S T E : temas e problemas, v. a, p. 8i-pp. 51 CARNAÚBA DOS DANTAS. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. DIAGNÓSTICO DO M U N I C Í P I O , Abril/ipptf, não pag.

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Os Tarairiú habitariam nos sertões do Rio Grande e estariam subdivididos nas tribos dos Janduí, Kanindé, Pega (também chamados de Ariá, Ariú ou Uriú), Javó, Paiaku (também chamados de Pakaju ou Baiacu), Jenipapo, Sukuru (também chamados de Xukuru ou Zukuru), Panati, Kamaçu, Tukuriju, Arariú e Corema. Os Kariri, por sua vez, habitariam nos sertões da Paraíba, tendo-se notícia das tribos dos Kariri (também chamados de Bultrin), Ikó-Pequeno (ou Quinku-Pequeno) e Kaicó*3.

Seria perigoso, no entanto, adotarmos uma classificação tão perfeita e absoluta para os povos indígenas que habitavam nos sertões do Rio Grande e da Paraíba, considerando dois pontos. Primeiro, a diversidade étnica e cultural dos povos nativos, comprovada pelos estudos coevos, mas, não estudada em profondidade quando falamos do Rio Grande do Nortetf+. Segundo, o perigo de se generalizar todos os grupos que viviam nos sertões como sendo tapuias apenas pelo fato de

M E D E I R O S F I L H O , Olavo de. Í N D I O S . . . , p. 2.1-30; M E D E I R O S F I L H O , O l a v o de. O s HOLANDESES NA CAPITANIA DO RIO GRANDE, p . 49-62» tf* Ver, a esse respeito, D A N T A S , Beatriz Góis; SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras; C A R V A L H O , Maria do Rosário Gonçalves de. Os povos indígenas no Nordeste brasileiro: um esboço histórico. In: C U N H A , Manuela Carneiro da (oig.). H I S T Ó R I A DOS ÍNDIOS NO BRASIL, p. 431-.J-6.

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perambularem pelas zonas interioranas e falarem línguas distintas dos Tupi6*.

Partindo desses pressupostos, podemos dizer que não temos certeza se todas as tribos anotadas por Olavo de Medeiros Filho como sendo Tarairiú partilhavam de um mesmo elo lingüístico e cultural. Poderiam ser aparentadas ou não, e, quando dos momentos difíceis de luta contra a pólvora do invasor, terem se aproximado em busca de um ideal comum, a sobrevivência. São questões que a historiografia ou as Ciências Humanas e Sociais, de um modo geral, ainda precisam explicar.

Outra contribuição de índios do ylçu e Seridó foi a divulgação de imagens visuais dos grupos de tapuias que habitavam os sertões. Trata-se das telas do pintor Albert Eckhout (Dança dos Tarairiú, índia Tarairiú e índio Tarairiú) e de desenhos incluídos nas obras de Jorge Marcgrave e Johan Nieuhof, ambos holandeses e que acompanharam, direta ou indiretamente, a corte do príncipe Maurício de Nassau pelo interior do que hoje chamamos de Nordeste à época da dominação flamenga.

Dentre estes a crítica estética e historiográfica costuma apontar as telas de Albert Eckhout como sendo as mais próximas em relação à aparência física dos Tarairiú. Embora tenhamos consciência de que se trata

S s A esse respeito conferir P U N T O N I , Pedro. Tupi ou não tupi? Uma contribuição para a etnohistória dos povos indígenas no Brasil colonial. ETHNOS, p . 5--RP.

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de uma visão eurocêntrica sobre os habitantes do Novo Mundo, Albert Eckhout nos mostra os indígenas com características que condizem com as descrições etnográficas dos cronistas da época, como, por exemplo, a robustez de corpo,o uso de um anel de palha (para os homens) e de raminhos de plantas (no caso das mulheres) para esconder o baixo ventre, o uso do acanbuaçaba e'da pintura corporal quando da realização de combates66.

CABOCLAS-BRABAS, DENTES DE CACHORRO, CASCOS DE CAVALO

Além das imagens distorcidas dos nativos que os seridoenses reelaboram a partir da mídia, a que aludimos anteriormente, outras nuanças dos índios fazem parte do seu imaginário social, e, porque não dizer, familiar. Trata-se da figura emblemática do caboclo-brabo. Nas falas dos seridoenses, quando indagados sobre sua família, sempre repousa uma referência genealògica a uma cabocla-braba, que teria sido pega a dente de cachorro e a casco de cavalo. Trata-se, aqui, de uma metáfora da colonização, se racionarmos junto com Julie Cavignac. É ela própria quem nos diz que

(...) no Rio Grande do Norte, muitos são que tiveram uma tararavd índia (pegada a casco de

e<s MEDEIROS F I L H O , Olavo de. íuoios..., p. 33-6.

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cavalo), quer dizer que foi raptada pelos primeiros colonizadores europeus47.

O caboclo-brabo que pulsa dos enunciados orais do sertanejo corresponde aos sobejos das sociedades tribais do Seridó. Refugos das Guerras dos Bárbaros que foram amansados, no dizer popular, e disciplinados pelos ditames da burocracia colonial. Restava a esses caboclos\ para serem considerados parte da sociedade colonial, a sujeição aos dogmas da Igreja Católica, embora estivessem imbricadas, nessa situação, resistências e alianças as mais diversas.

José de Azevêdo Dantas (i8po-ip2,p), historiador erudito e falecido prematuramente, que viveu entre as atuais cidades de Carnaúba dos Dantas e Acari, nos deixou um relato deveras precioso a respeito de uma dessas caboclas-brabas, que também se encontra nas falas dos mais velhos. Trata-se da história da índia Micaela, que teria sido pega a dente de cachorro e casco de cavalo pelos vaqueiros do coronel Caetano Dantas Corrêa, um fazendeiro que viveu na Ribeira do Acauã na segunda metade do século XVIII. O relato original convida-nos a uma volta ao passado:

CAVTGNAC, Julie Antoinette. Vozes da tradição: reflexões preliminares sobre o tratamento do texto narrativo em Antropologia. M N E M E - REVISTA DE

HUMANIDADES, v. I , N. O, 2000.

7S

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Quanto a aludida índia £ Micaela citam os antigos historiadores que de fato foi encontrada nas proximidades da Serra da Rajada, pelos vaqueiros de Caetano Dantas, tendo este domesticado-a e educado-a, casando-a depois com um seu descendente. Narram que essa índia desgarrada de sua tribo que fugira precipitadamente para as matas do Apodí, cora a aproximação dos brancos - resistiu heroicamente a ação dos seus perseguidores que montados em fogosos cavalos, conseguiram capturá-la com auxilio de seus valentes cães de caça. Ela era de uma brabeza indomável e só em virtude do espírito superior e dominador do velho Caetano Dantas, tornou-se, ela mais tarde, a meiga e leal cria de casa. Caetano Dantas Correia, criou-a não como escrava, e sim, como filha68.

Há uma discrepância entre o relato escrito de José de Azevêdo Dantas, já que a tradição oral nos diz que a índia Micaela teve filhos do coronel Caetano Dantas. Alguns inclusive dizem ter sido ela a sua esposa. São questões ainda por se esclarecer. Destarte, o deixar de ser índio nos parece ser mais complexo do que se pensa. Caboclos ou não, a memória familiar regional advoga para si a presença dos nativos em sua árvore genealógica, mesmo que a tradição oral não tenha guardado os nomes desses seus ascendentes5*.

69 DANTAS, José de Azevêdo. Noticia sobre a suposta índia Micaela. O M O M E N T O , I P A ^ . 69 A respeito da presença de caboclas-brabas na memória familiar consultar os seguintes trabalhos: T A V A R E S , Rosicleide Lopes; MORAIS, Valcácia de

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O s T A R A I R I Ú REALMENTE, DESAPARECERAM?

Expurgo, extermínio, desaparecimento, extinção. A polifonia de nomes repete-se, seja nos relatos orais, seja nos escritos da historiografia regional. Tudo leva a crer que os Tarairiú realmente desapareceram do mapa do Seridó. Contudo, vozes dissonantes deram o pontapé inicial para que se pensasse o contrário. Dom José Adelino Dantas, estudioso dos temas seridoenses, empreendeu uma pesquisa no acervo eclesiástico da antiga Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó, hoje correspondente à Paróquia de Sant'Ana, de Caicó, nos anos 70 do século XX. Interessado em perscrutar aspectos sobre a morte no Seridó de antanho, com especial atenção nas causas mortisy examinou os dois primeiros livros de óbito da freguesia. Para um período que vai de 1788 a 1838 localizou óbitos de dezoito índios. No entanto, sua análise sobre os elementos contidos nos livros de óbito não se aprofundou com relação aos indígenas, embora os números tenham aberto novas sendas sobre o assunto"70.

Brito. CABOCLOS B RABOS.1 memória e orgulho de famílias sabugienses; SOARES, Gilberd Araújo; PEREIRA, Veranilson Santos. Os CABOCLOS BRABOS: memória de família e imaginário seridoense; GOMES, Enelli Fabiane; MEDEIROS, José Lucena de. CABOCLOS B RABOS.'O imaginário indígena no Vale do Sabugí. 70 DANTAS, José Adelino. De que morriam os sertanejos do Seridó antigo? T E M P O UNIVERSITÁRIO.

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Olavo de Medeiros Filho, consultando posteriormente o mesmo acervo, detectou, também, a presença de índios nos livros de óbitos, casamentos e batismos até mais ou menos o ano de 182.071, embora não tenha publicado tais dados na sua obra maior sobre a genealogia dos seridoenses. felhas Famílias do Seridó.\ que trata das principais famílias que deram origem ao caldo étnico da região, trata-se de um livro onde estão descritas as origens "brancas" dos seridoenses, se é que assim podemos chamar. São feitas poucas alusões a indígenas e a negros que tiveram participação nas árvores genealógicas dos sertanejos, que passam quase desapercebidas aos olhos dos leitores.

O mesmo não aconteceu em outra publicação de caráter genealógico. Falamos do livro Os alvares do Seridó e suas ramificações, de autoria de Sinval Costa. Este, empreendendo pesquisa de campo nos principais acervos judiciais, eclesiásticos e civis da região seridoense, compôs uma verdadeira obra de história mestiça, se é que assim podemos chamá-la. Estudando a família Alvares (posteriormente, Alves) Sinval Costa incluiu histórias de índios, de caboclos e de negros nas suas referências aos titulares da família. Além disso, num anexo do livro publicou a lista de alguns assentamentos de casamentos de índios que ocorreram no Seridó antigo, bem como de negros. Na obra de Sinval Costa podemos

t MEDEIROS F I L H O , Olavo de. CORRESPONDÊNCIA PESSOAL, ztfjan ippj-.

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perceber com mais acuidade a valorização dos três grupos étnicos tradicionais — brancos, negros e índios - como formadores do povo do Seridó, mesmo o autor tendo tratado de uma realidade específica, qual seja a da família Álvares71.

E M BUSCA DOS Í N P I O S

Podemos afirmar que houve presença de índios no Seridó no período que se seguiu às Guerras dos Bárbaros*73, que tiveram o seu fim oficial na década de 1710. Não houve um extermínio total, como se pensara. Houve, sim, resistência, por mínima que fosse. Como viviam esses indígenas? Em que condições participavam do cotidiano das manchas urbanas que paulatinamente desabrochavam no Setecentos e no início do Oitocentos no Seridó? Como conseguiram resistir às agruras do processo de despovoamento iniciado desde as guerrasf De que forma experienciaram o contato com outros grupos sociais? Como eram as suas condições de vida numa época tão diferente da de seus ascendentes, quando da existência de comunidades tribais no Seridó? Quem

> C O S T A , Sinval. Os ALVARES DO SERIDÓ...

Preferimos a utilização do termo no plural em vez de Guerra dos Bárbaros por tratar-se de variados conflitos que ocorreram entre a segunda metade do século XVII e o início do século XVIII no espaço que hoje corresponde ao Nordeste. Esse raciocínio é tomado de empréstimo de P U N T O N I , Pedro. A GUERRA DOS BÁRBAROS: povos indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 165-0-1720.

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foram os remanescentes dos povos nativos do Seridó que sobreviveram no pós-guerras? De que fôrma constituíram suas famílias?

A essas indagações cabe à historiografia norte-rio-grandense contemporânea responder e problematizar. Mas, agora, com um novo olhar, que pressupõe os remanescentes dos nativos como partícula importante na constituição de uma história mestiça do Seridó. Resta-nos, ao estudar os índios que conseguiram resistir ao pós-Guerras dos Bárbaros, compreender como se dava o seu relacionamento com os demais grupos sociais dos sertões e, assim, contribuir para a construção dessa história.

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EXISTEM ÍNDIOS NO R I O GRANDE ©O NORTE?

A PROPÓSITO PA PRESENÇA BE POPISULAÇOES

INPÍGENAS NO SERTÃO DO SERIDÓ ENTRE OS

SÉCUJLQS X V I I I E X 3 X *

A constante veiculação de noticias na T V e em outros meios de comunicação envolvendo grupos indígenas de diversas partes do país em busca da posse de terras cuja presença ancestral lhes outorga o direito de legítimos donos ou mesmo de seus rituais e danças deve chamar a atenção dos potiguares, atuais habitantes do estado do Rio Grande do Norte. Por outro lado, pode ser que tais notícias nem façam parte do rol de interesses dos norte-rio-grandenses. Afinal de contas o Piauí e o Rio Grande do Norte, segundo a Fundação Nacional do índio (FUNAI), não possuem, oficialmente, populações indígenas. Ironicamente, os naturais ou habitantes do Rio Grande do Norte são chamados de potiguares, numa alusão aos índios Potiguar ou Potiguara, que habitavam a costa desse território quando os europeus aportaram, no século XVT.

Artigo originalmente publicado na REVISTA ELETRÔNICA ESPAÇO ACADÊMICO,

Universidade Estadual dc Maringá, v. 16, 1003. Disponível em: <www.espacoacademico.com.br/.../2.6cmacedo.htm>. Acesso em: 23 mar 2011.

Universidade Fccoral do Rio Grande do Norte BIBLIOTECA CENTRAL

' a w MAMED6" ""

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Obras consagradas de historiadores que trataram do Rio Grande do Norte, como as de Luís da Câmara Cascudo7*" e Augusto Tavares de Lira7<s, inscrevem a existência dos nativos até mais ou menos o século XVII, no máximo até as duas primeiras décadas do século XVIII. Depois das Guerras dos Bárbaros (1683-172,.?) -movimento de resistência indígena contra a expansão da pecuária no sertão e que é considerado um dos maiores conflitos interétnicos do período colonial - os índios teriam sido dizimados do interior. Os lugares por onde andavam deram lugar a fazendas destinadas à criação de gado e, em alguns casos, a pequenas manchas urbanas, as povoações e vilas, origens das atuais cidades sertanejas.

Em lugar das divindades nativas um deus que é uno e trino ao mesmo tempo instalou-se nas capelas erguidas nas plagas sertanejas, onde Nossa Senhora (com seus vários títulos), Sant'Ana, São Sebastião e outros santos da tradição cristã repousam como protetores da população que crescia paulatinamente. Â exceção de alguns contingentes que foram poupados do extermínio físico, mas aldeados em missões religiosas, o restante dos índios teria, de fato, sido expurgado da então Capitania do Rio Grande.

O peso desse possível desaparecimento dos índios no Rio Grande do Norte é tão forte que mesmo na

v CASCUDO, Luís da Câmara. HISTÓRIA DO R I O G R A N D E DO N O R T E .

LIRA, Augusto Tavares de. HISTÓRIA DO R I O G R A N D E DO N O R T E .

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contemporaneidade seus efeitos ainda se fazem sentir. Os moradores das cidades do Sertão do Seridó, porção centro-sul do estado, por exemplo, costumam falar dos indígenas como elementos vestigiais de um passado que somente é lembrado quando alguém fala das caboclas-brabas amansadas a dente de cachorro e casco de cavalo ou dos índios Kariri. Até mesmo os livros didáticos tendem a mencionar o índio como se estivesse localizado cronologicamente apenas no período colonial. Durante o Império e a República eles passam desapercebidos, inexistindo nas aulas de história, a não ser quando falam de sua participação na constituição mestiça do brasileiro, defendida por Gilberto Freyre77.

Contrariando as hipóteses que falam da ausência de índios da história norte-rio-grandense após o efetivo povoamento do interior, pesquisadores levantaram a poeira dos arquivos eclesiásticos da Paróquia de Caicó (antiga Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó) e apontaram as pistas de que precisávamos para questionar e refutar a suposição de um extermínio total dos nativos. Dom José Adelino Dantas78 e Sinval Costa7p, em suas pesquisas feitas nos anos 70 e 8o/po do século XX, respectivamente, detectaram a presença de índios nos registros de batizados, casamentos e óbitos da

•N F R E Y R E , Gilberto. CASA-GRANDE & SENZALA: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. "" DANTAS, José Adelino. De que morriam..., p. 12x3-36. v C O S T A , Sinval. Os ÁLVARES DO SERID6...

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Freguesia de Santa Ana entre os finais do século XVTII e primeiras décadas do século XIX, junto aos demais grupos sociais da região (brancos, homens de cor e mestiços).

Partindo das luzes que os dois historiadores aludidos nos deram pudemos empreender uma devassa nos arquivos da Freguesia de Santa Ana, em Caicó e em outros arquivos da região do Seridó. O resultado já era esperado e a nossa hipótese a respeito da sobrevivência de índios no Sertão do Seridó estava confirmada. O extermínio não fora total, como a historiografia consagrada pensara. De maneira alguma queremos negar a ferocidade que foi usada na empreitada da colonização e povoamento das áreas do sertão da Capitania do Rio Grande. Os conflitos travados contra os índios dessas plagas decerto que lhe tolheram suas chances de sobreviver de forma igualitária em meio à sociedade colonial. Mais que isso: grande parte dos grupos indígenas que se deslocavam no sertão quando dos primeiros contatos com os colonizadores não sobreviveria às matanças levadas a termo pelos agentes da Coroa.

Os números que conseguimos na pesquisa empreendida são diminutos em relação aos contingentes populacionais dos outros grupos sociais, o que demonstra que a sobrevivência dos índios se deu em prejuízo j da perda de uma grande parcela de suas populações quando das Guerras dos Bárbaros. O perfil demográfico com

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relação aos indígenas é o seguinte: de <5% crianças batizadas na Freguesia de Santa Ana entre 1803 e 1806 1,16% eram índias; 2̂ 42,% dos 5-37 casamentos celebrados envolviam indígenas entre 1788 e i8o_p, bem como 2,,66% das p76 defunçoes registradas entre 1788 e 1811 eram de índios.

Poderíamos perguntar de onde eram originários esses indígenas. Nem todos os registros trazem essa peculiaridade, porém, dos assentos matrimoniais que trazem a origem dos nubentes constatamos que sete índios/índias eram naturais da Freguesia de Santa Ana, nove de outros lugares da Capitania do Rio Grande (incluídas vilas criadas a partir de antigas missões religiosas) e cinco de outras capitanias nortenhas.

No correr do século XIX os índios apareceriam nos censos oficiais e na documentação judicial da Comarca do Caicó sob a denominação de caboclos, demonstrando que, mesmo sob a marca da discriminação e do preconceito, teimavam em resistir. Os epílogos desta pesquisa nos mostram que muito do que se publicou sobre a História do Rio Grande do Norte precisa ser revisto, especialmente os escritos que tocam na presença indígena no estado e com mais particularidade no interior. No caso do Sertão do Seridó é preciso que se reveja, também, o papel que os diferentes grupos sociais (índios, negros, brancos e mestiços) tiveram na constituição das famílias e da cultura dá região.

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HAVEKIA TO SERTÃO DO SRRIBO

RBMI&ISClhtCIAS BA CULTURA I K

A história que costumamos aprender nos bancos escolares e nos livros didáticos é, quase sempre, a de que os primeiros habitantes do Sertão do Rio Grande do Norte foram os índios Kariri, que teriam desaparecido com a chegada dos portugueses. Contemporaneamente, a historiografia potiguar constatou, a partir de documentação de época, que foram os Tarairiú e suas várias tribos que habitavam o território que hoje chamamos de Seridó à época do contato com os luso-brasílicos. Com vida nômade, práticas ritualísticas ; de culto aos mortos e hábitos antropofágicos, os Tarairiús foram representados na primeira metade do século XVTI em pinturas de artistas holandeses que acompanhavam a corte do príncipe Maurício de Nassau pelo interior do que hoje chamamos de Nordeste, à época da dominação flamenga. Dentre estes a crítica estética e historiográfica costuma apontar as telas do pintor Albert Eckhout como as mais próximas em relação à aparência física dos Tarairiú. Embora tenhamos consciência de que se trata de uma visão eurocêntrica sobre os habitantes do Novo Mundo, as telas de Albert Eckhout nos mostram esses

80 Artigo originalmente publicado na REVISTA PREÁ, Fundação. José Augusto, Natal, v. 4, p. 24-.J-, 1003.

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indígenas com fenòtipo que condiz com as descrições de cronistas (também holandeses) da época - Georges Marcgrav, Roulox Baro e Johan Nieuhof, apenas para citar exemplos -, compiladas pelo historiador Olavo de Medeiros Filho em sua obra índios do slçu e Seridó (198 4.).

Outra visão recorrente, seja na historiografia, seja nos livros didáticos, é a de que os índios do Sertão do Seridó foram totalmente exterminados quando dos episódios das Guerras dos Bárbaros (1583-172J"), conflito que opôs povos nativos e adventícios pela posse das terras do interior da Capitania do Rio Grande, e que hoje é encarado por antropólogos, historiadores e cientistas sociais como um grande movimento de resistência indígena contra o alargamento da fronteira pecuarística no sertão. Até onde a historiografia recente pôde precisar não houve uma dizimação total dos grupos indígenas do interior da Capitania do Rio Grande durante as Guerras dos Bárbaros, embora o percentual de mortes tenha sido alto. Algumas tribos fugiram para outras capitanias em busca de refúgio contra a pólvora do invasor. Outras foram realmente exterminadas em combates sangrentos, como os que ocorreram no final do século XVII nas Serras da Rajada, Acauã e Sabugi. Outras, ainda, caíram por terra graças a moléstias trazidas pelo colonizador. Alguns grupos indígenas foram aldeados em missões religiosas, passando a (con)viver com hábitos cristãos, numa tentativa de sobrevivência em detrimento do abandono dos seus costumes. Buscando abrigo nós altos

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das serras, furnas e grotas, alguns nativos remanescentes das Guerras isolaram-se das povoações e vilas cujo tecido urbano paulatinamente germinava; ficaram conhecidos como caboclos-brabos, que teriam sido pegos a dentes de cachorro e cascos de cavalo, no dizer popular. Caboclas e caboclos-brabos povoam, até hoje, o imaginálrio genealógico dos seridoenses quando a estes são feitas indagações a respeito da sua família.

Gradativamente os indígenas remanescentes das Guerras foram se diluindo na sociedade colonial que ia se desenhando no sertão. Assomam-se nos registiros eclesiásticos da Paróquia de Sant'Ana, de Caicó -freguesia-mater do Seridó, com o título e invocação de a Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó num espaço temporal que vai do fim do século XVIII ao início do século XIX, algumas referências a índios, sem, no entanto, indicarem a que tribo ou grupo pertenciam. Esses índios ora morriam, ora casavam, ora testemunhavam atos de batismo de brancos e dos próprios índios, seja na Matriz do Seridó (hoje,Catedral de Sant'Ana, em Caicó), seja nas capelas do Acari ou dos Currais Novos. No que diz respeito aos casamentos de indígenas, tais registros paroquiais aludem a uniões religiosas entre índios, pardos e negros.

Aparecerá, no decorrer do século XIX, uma razoável quantidade de caboclos em documentação judicial da Comarca de Caicó, denotando o processo de mestiçagem que ocorria. Anote-se, ainda, que o

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Recenseamento Geral do Império do Brasil de 1872, apontou para a Cidade do Príncipe (hoje, Caicó) uma população de 11.2,83 habitantes, dos quais eram brancos. O segundo grupo mais populoso era o dos pardos (16,5-%), seguidos dos pretos (14.,6%) e dos caboclos. Estes últimos somavam 1 ,̂5-% da população total (cerca de 1.636 indivíduos). Parece-nos, assim, que o extermínio indígena no Seridó não foi tão violento, existindo uma mínima convivência entre os diversos grupos sociais que o habitavam.

Os Tarairiú, dessa maneira, conseguiram resistir às agruras do seu processo de despovoamento de maneiras um tanto sutis. Primeiramente através da toponímia regional: nomes de riachos, rios, serras, sítios e outros acidentes geográficos são sobejos da linguagem usada pelos índios. Seridó, Caicó e Jucurutu são exemplos fortes. Alguns dos costumes do sertanejo são, também, herança dos nativos. Incluamos aqui o hábito de ficar de cócoras, do banho diário e do deitar-se em redes. E, ainda, os chás de ervas que preparamos quando estamos doentes, bem como as meizinhas e orações com galhos de árvores que nossas rezadeiras, benzedeiras e curandeiras nos receitam. As panelas, potes, alguidares, gamelas e quartinhas de barro que nossas louceiras faziam e que alguns poucos ainda usam são, também, resquícios da tradição nativa do uso da cerâmica. Lembremos, aqui, o gosto dos antigos seridoenses em tomar água fria, armazenada em potes e quartinhas de barro. Bem como a

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utilização de utensílios domésticos feitos artesanalmente de palha, fibras e árvores, legados da cultura material de origem indígena: cestos, pilões de madeira, trempes, jiraus, cuias, cuités, cabaças, urupemas, cabaças, abanadores. Sem falar da nossa dieta alimentar, que não dispensa o cuscuz, a carne assada, a fava, a farofa, a farinha de mandioca, a tapioca, o jerimum, a batata-doce, o aluá. E, ainda, das práticas agrícolas que ainda teimam em persistir no sertão, que preparam e aproveitam o solo através da coivara. É nos pequenos gestos, nos hábitos sutis, no infinitamente pequeno e irrisório, que os Tarairiií se fazem presentes no cotidiano dos seridoenses. São traços ínfimos, que, no entanto, podem nos levar a compreender melhor a herança indígena no Seridó.

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