burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação

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Burocracia de Médio Escalão: perfil, trajetória e atuação Organizadores: Pedro Cavalcante e Gabriela Lotta

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Burocracia de Médio Escalão:perfil, trajetória e atuação

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  • Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    Organizadores:Pedro Cavalcante e Gabriela Lotta

  • Burocracia de Mdio Escalo:perfil, trajetria e atuao

  • Enap Escola Nacional de Administrao Pblica

    PresidenteGleisson Cardoso Rubin

    Diretora de Formao ProfissionalMaria Stela Reis

    Diretor de Desenvolvimento GerencialPaulo Marques

    Diretor de Comunicao e PesquisaPedro Luiz Costa Cavalcante

    Diretora de Gesto InternaCassiano de Souza Alves

    Comisso Editorial: Pedro Luiz Costa Cavalcante, Cassiano de Souza Alves,Marizaura Reis de Souza Cames, Luis Fernando de Lara Resende, Claudia CristinaMuller, Ciro Campos Christo Fernandes, Carmen Isabel Gatto, Mrcia Seroa daMotta Brando e Emanuella Faria de Santana.

    Editor: Pedro Luiz Costa Cavalcante (Enap). Reviso: Renata Fernandes Mouro,Roberto Carlos R. Arajo e Simonne Maria de Amorim Fernandes. Projeto grficoe editorao eletrnica: Vinicius Arago Loureiro. Reviso grfica: Ana CarlaGualberto Cardoso. Imagem da capa: Ana Carla Gualberto Cardoso.

    Catalogao na fonte: Biblioteca Graciliano Ramos/Enap.

  • Burocracia de Mdio Escalo:perfil, trajetria e atuao

    Organizadores:Pedro CavalcanteGabriela Lotta

    BrasliaEnap2015

  • 2015 Enap

    Enap Fundao Escola Nacional de Administrao PblicaSAIS rea 2-A70610-900 Braslia, DFTelefones: (61) 2020 3096 / 2020 3102 Fax: (61) 2020 3178Stio: www.enap.gov.br

    Tiragem: 1000 exemplares

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteiraresponsabilidade do(s) autor(es), no exprimindo, necessariamente, o ponto devista da Escola Nacional de Administrao Pblica (Enap). permitida areproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    L916b

    Burocracia de mdio escalo: perfil, trajetria e atuao /organizadores Pedro Luiz Costa Cavalcante e Gabriela SpangueroLotta. Braslia: ENAP, 2015.

    308 p. : il.

    ISBN: 978-85-256-0075-2

    1. Administrao Pblica Brasil. 2. Burocracia. 3. AltaAdministrao Pblica. I. Ttulo.

    CDU 35:005.731

    Catalogado na fonte pela Biblioteca Graciliano Ramos da Enap

  • 5SOBRE OS AUTORES

    Alessandro de Oliveira Gouveia FreireAssessor Tcnico da EnapMestre em Cincia Poltica pela Universidade de Braslia

    Gabriela Spanghero LottaProfessora Adjunta do bacharelado de polticas pblicas e da ps-gradu-ao em Polticas Pblicas da UFABCDoutora em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo

    Larissa Peixoto GomesPesquisadora associada da Fundao Joo PinheiroDoutoranda em Cincia Poltica pela Universidade Federal de Minas Gerais

    Letcia Godinho de SouzaPesquisadora da Fundao Joo Pinheiro; Diretora-Geral da Escola deGoverno da Fundao Joo Pinheiro.Doutora em Cincia Poltica pela Universidade Federal de Minas Gerais

    Lucas Ambrzio Lopes da SilvaPesquisador e monitor da ps-graduao Escola de Administrao deEmpresas de So Paulo da Fundao Getlio Vargas (EAESP-FGV)Doutorando em Administrao Pblica e Governo pela EAESP-FGV

    Mrcia Nascimento Henriques KnopTcnica em Assuntos Educacionais da EnapMestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Marizaura Reis de Souza CamesEspecialista em Polticas Pblicas e Gesto GovernamentalCoordenadora-Geral de Pesquisa da EnapMestre em Administrao pela Universidade de Braslia

    Pedro Lucas de Moura PalottiEspecialista em Polticas Pblicas e Gesto GovernamentalDoutorando em Cincia Poltica pela Universidade de Braslia

  • 6Pedro Luiz Costa CavalcanteEspecialista em Polticas Pblicas e Gesto GovernamentalDiretor de Comunicao e Pesquisa da EnapDoutor em Cincia Poltica pela Universidade de Braslia

    Rafael Rocha VianaTcnico em Assuntos Educacionais da EnapMestrando em Cincia Poltica pela Universidade de Braslia

    Rebecca Naerea AbbersProfessora Adjunta do Instituto de Cincia Poltica da Universidade deBrasliaDoutora em Planejamento Urbano pela University of California

    Roberto Rocha Coelho PiresTcnico de Pesquisa e Planejamento do Instituto de Pesquisa EconmicaAplicada Doutor em Politicas Publicas e Desenvolvimento Internacional peloMassachusetts Institute of Technology

    Vanessa Elias de OliveiraProfessora Adjunta do Bacharelado em Polticas Pblicas e dos programasde ps-graduao em Polticas Pblicas e em Planejamento e Gesto doTerritrio da UFABC.Doutora em Cincia Poltica pela Universidade de So Paulo.

  • 7SUMRIO

    Apresentao 11

    Introduo 13

    Captulo 1: Burocratas de mdio escalo: novos olharessobre velhos atores da produo de polticas pblicas 23

    Metodologia 27Os burocratas de mdio escalo na literatura sobregesto e polticas pblicas 29

    O burocrata de mdio escalo: papis, funese lugares 29Perspectivas analticas sobre a atuao dos burocratas demdio escalo 38Os burocratas de mdio escalo em ao: anlises setoriais 45

    Consideraes finais 50Referncias bibliogrficas 51

    Captulo 2: Burocracia de mdio escalo nos setoresgovernamentais: semelhanas e diferenas 57

    Perfis, trajetrias e atuao dos burocratas naliteratura corrente 60

    A composio da burocracia entre os setores do governo 61A discricionariedade dos atores de diferentes reas depolticas pblicas 64O contexto e as relaes dos burocratas nas diferentesreas de polticas pblicas 67

    Estratgia metodolgica 69Semelhanas e divergncias entre os burocratas dediferentes setores de governo 71

  • Perfil e trajetria 71Atuao e critrios de nomeao 77

    Consideraes finais 85Referncias bibliogrficas 86Anexo 89

    Captulo 3: Influncia sobre o processo decisrio: o que explicao protagonismo da burocracia federal de mdio escalo? 91

    Processo decisrio e a burocracia de mdio escalo 92Hipteses e modelo emprico 97Resultados 104Concluses 110Referncias bibliogrficas 112

    Captulo 4: Implementando uma inovao: a burocracia demdio escalo do Programa Bolsa Famlia 115

    O Programa Bolsa Famlia e sua burocracia 117Burocracia pblica e a implementao de uma inovao 127

    Perfil da burocracia e atuao num contexto de inovao 127Autonomia e insulamento burocrtico 130Inovaes 134Rede de relaes profissionais e pessoais 136

    Consideraes finais 138Referncias bibliogrficas 140

    Captulo 5: Ativismo na burocracia? O mdio escalo doPrograma Bolsa Verde 143

    Ativismo na burocracia? 147Precursores 149O funcionamento do programa 153Os burocratas de mdio escalo do Bolsa Verde 156A criatividade no cumprimento das metas 160Para alm da meta quantitativa: preocupaes dosburocratas 163Intervenes ambientalistas 165

  • Um outro tipo de interveno 169Consideraes e reflexes 170Referncias bibliogrficas 173

    Captulo 6: Por dentro do PAC: dos arranjos formais sinteraes e prticas dos seus operadores 177

    Contexto poltico-institucional e desafios para aimplementao de polticas de infraestrutura no Brasil 181O Programa de Acelerao do Crescimento (PAC): objetivose arranjos formais 187O PAC em ao I: suas finalidades e funes na perspectivade seus operadores 194O PAC em ao II: interaes cotidianas em uma redede informaes para monitoramento econstruo de capacidades 200Consideraes finais 218Referncias bibliogrficas 221

    Captulo 7: A burocracia de mdio escalo da Secretaria daReceita Federal do Brasil: insulamento seletivo e construode capacidades burocrticas 223

    A organizao da Secretaria da Receita Federal do Brasil 226Breve histrico 226Estrutura organizacional 227Carreiras burocrticas e perfil da fora de trabalho 228

    A burocracia de mdio escalo da SRFB 230Ocupao dos cargos de mdio escalo 230Estrutura de poder e rotinas de trabalho 232Coordenao intraorganizacional 234Coordenao intragovernamental 236Insulamento seletivo: pontes a partir da ilha 237Ferramentas de gesto e desenvolvimento de capacidades 243Inovaes em meio a uma estrutura estvel 245

  • Consideraes finais 246Referncias bibliogrficas 249

    Captulo 8: Dilemas da burocracia de mdio escalo nocontexto de uma poltica frouxamente articulada:o caso da Secretaria Nacional de Segurana Pblica 253

    A constituio histrica de uma polticafrouxamente articulada 257

    O que fazem e pensam os burocratas de mdioescalo da Senasp 263O que ocupa o cotidiano dos BMEs da Senasp 270A percepo sobre o seu trabalho: o BME ativista 274Negociao e articulao: o espao para aagncia situada 276

    Discusso e algumas concluses 286Referncias bibliogrficas 291

    Concluso: Perfis, trajetrias e relaes: em buscade uma anlise abrangente dos burocratas de mdioescalo do Governo Federal 293

    Perfil e trajetria 294BME como um ser relacional 298Burocrata multifacetrio 302Autonomia 304Agenda futura da burocracia de mdio escalo 305Referncias bibliogrficas 308

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    APRESENTAO

    A burocracia, entendida como corpo permanente no eleito doEstado, um dos pilares institucionais para o eficiente funcionamentodo sistema democrtico e para a aplicao do Estado de Direito. Seufuncionamento efetivo garante sustento e relevncia em todas as eta-pas do ciclo de gesto governamental. O Brasil, seguindo uma tendnciamundial, tem buscado fortalecer seu corpo funcional de forma que essepossa, cada vez mais, protagonizar a elaborao e implementao depolticas pblicas em reas estratgicas para o Pas.

    Como produtora e disseminadora de conhecimento sobre gestopblica, a Escola Nacional de Administrao Pblica (Enap) busca auxili-ar nesse fortalecimento por meio de estudos e pesquisas que possamsubsidiar o processo decisrio e ampliar o conhecimento terico e pr-tico nos temas afetos. A pesquisa que norteou a elaborao deste livro,sobre a burocracia de mdio escalo do Governo Federal, atua justa-mente nessa direo. Os diferentes captulos buscam caracterizar comoos agentes pblicos situados em posies hierrquicas intermediriasdos rgos da administrao pblica atuam, alm de analisar seu papelno desenho de polticas pblicas. A coletnea de artigos de granderelevncia, uma vez que supre parte da demanda por estudos sobre ocomplexo funcionamento do Estado brasileiro. Soma-se a isso a amplia-o do conhecimento sobre esse importante segmento da burocraciapblica pouco explorado no Brasil.

    Os resultados apresentados so frutos de uma exitosa parceriaentre a Enap e a Universidade Federal do ABC (UFABC), que contou como valioso empenho de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econmica

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    Aplicada (Ipea), da Universidade de Braslia (UnB), da Fundao JooPinheiro (FJP) e Fundao Getlio Vargas (FGV). Essa parceria propiciouo trabalho conjunto de especialistas nos temas de polticas pblicas e deburocracia, cujos artigos compem os nove captulos do livro.

    O conhecimento contido nas pginas a seguir voltado a acad-micos, estudantes de administrao pblica e gestores pblicos inte-ressados em aprimorar as aes governamentais. Trata-se de importanteretrato do corpo burocrtico intermediador das relaes entre a altacpula dos rgos do Poder Executivo, responsvel por planejar e esta-belecer diretrizes, e os agentes pblicos que esto em contato diretocom os cidados, provendo servios pblicos.

    A consolidao deste livro faz parte de um trabalho contnuo daEnap e das instituies parceiras de sistematizar conhecimento cientficosobre a gesto de polticas pblicas. , sobretudo, um importante passopara o desenvolvimento de novas pesquisas no mbito da administraopblica, essenciais para os debates sobre o Estado brasileiro.

    Boa leitura!

    Gleisson Cardoso RubinPresidente da Enap

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    Introduo

    INTRODUO

    Pedro Luiz Costa CavalcanteGabriela Spanghero Lotta

    Ao longo dos ltimos anos, a literatura brasileira tem buscado sedebruar sobre diferentes temas e enfoques que permitem compreen-der melhor o funcionamento do Estado. Embora essa literatura tenhaavanado na investigao de como ocorrem os processos decisrios naspolticas pblicas, apenas mais recentemente os estudiosos do campopassaram a olhar para a fase da implementao, buscando compreendercomo diferentes atores interferem na concretizao das polticas.

    Um conjunto de atores relevantes na conduo do processo deimplementao de polticas pblicas a burocracia pblica, entendidacomo o corpo permanente do Estado, isto , atores no eleitos por votopopular, mas que desempenham papel central na conduo dos assun-tos pblicos, sejam eles membros de carreiras ou no. O papel da buro-cracia nos processos de tomada de deciso e de execuo das polticastem sido cada vez mais estudado por diferentes acadmicos nacionais einternacionais. Entretanto, a maior parte dos estudos que busca com-preender a atuao da burocracia se centra naqueles que ocupam altoscargos (burocracia de alto escalo) ou naqueles que interagem direta-mente com o pblico beneficirio das polticas pblicas (burocracia denvel de rua). A burocracia de mdio escalo, doravante BME, tem sidomenos estudada na literatura, especialmente a nacional e, portanto,ainda pouco claro como ela atua e interfere nas polticas pblicas(HOWLETT, 2011; PIRES, 2011; OLIVEIRA; ABRUCIO, 2011).

    A importncia dessa burocracia est justamente em ser o elo entreo alto escalo e os executores das polticas pblicas. Ela , portanto, um

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    dos principais responsveis por conectar as fases de formulao eimplementao. O BME age como um ator relevante e imprescindvel,embora muitas vezes invisvel. Para fazer com que as polticas elabora-das sejam colocadas em prtica, ele tem a funo primordial de traduzirdecises em aes. A despeito da sua relevncia, o fato de estar nomeio das estruturas organizacionais coloca a burocracia de mdio esca-lo num limbo terico, com poucos estudos que consigam, de fato,conceitu-la ou compreender seu perfil, atuao e importncia naspolticas pblicas.

    Essa falta de clareza da literatura e do prprio Estado a respeitodesses atores acaba, muitas vezes, alimentando um senso comum ne-gativo em relao ao funcionamento do setor pblico. Essa percepo,contudo, como ser abordado ao longo deste livro, no corresponde atual realidade da burocracia. Caracterizar quem so e o que fazem es-ses ocupantes de cargos intermedirios se torna central tanto para des-vendarmos alguns dos mitos a respeito do Estado, como para desenharmelhores polticas de seleo e gesto de pessoas para a administraopblica. Essas foram as principais motivaes que levaram a Universida-de Federal do ABC (UFABC), a Escola Nacional de Administrao pblica(Enap) e o Istituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) a se unirempara a realizao desta pesquisa: desvendar quem so e o que fazem osburocratas de mdio escalo do Governo Federal.

    Nesse contexto, almeja-se que os resultados da pesquisa Burocra-cia de mdio escalo no Governo Federal, apresentados neste livro, con-tribuam para o avano no debate sobre Estado e polticas pblicas no Brasil.Para tanto, esse esforo iniciado dentro de uma perspectiva exploratria.Optou-se por estratgias analticas distintas de modo a ampliar o escopodas abordagens, isto , as escolhas metodolgicas desta pesquisa se fun-damentam na viso de complementaridade das escolas qualitativa e quan-titativa nas Cincias Sociais (COLLIER; BRADY; SEAWRIGHT, 2004).

    A pesquisa, desenvolvida durante o ano de 2014, contou com pes-quisadores de diferentes instituies que, ao longo de suas trajetrias,tm buscado estudar os burocratas em campos ou perspectivas distin-tas. Essa associao de diferentes pesquisadores e instituies

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    Introduo

    possibilitou que a pesquisa pudesse avanar tanto em termos de uso demetodologias alternativas, como de abordagem de diferentes camposou temas de polticas pblicas. Dessa forma, reunidos ao longo de umintenso processo de levantamentos, anlises e debates, os pesquisado-res puderam, coletivamente, desenhar uma pesquisa que contemplas-se trs etapas distintas: um mapeamento da literatura; a elaborao,aplicao e anlise de um survey; e cinco estudos de caso em diferentespolticas. Os resultados desse conjunto de estratgias de pesquisa soapresentados aqui, nesta coletnea de artigos sobre a burocracia demdio escalo do governo federal brasileiro.

    Primeiramente, a fim de dar um suporte terico para a elaboraoda pesquisa, foi realizado um extenso mapeamento da literatura nacio-nal e internacional que trata dos burocratas de mdio escalo. Esse le-vantamento, elaborado por Gabriela Lotta, Roberto Pires e VanessaOliveira, resultou no primeiro captulo deste livro, intitulado Burocra-tas de mdio escalo: novos olhares sobre velhos atores da produo depolticas pblicas. A partir da leitura e sntese de mais de 70 artigos,foram apontados os principais achados da literatura e suas lacunas e,especialmente, foram estruturados alguns caminhos tericos emetodolgicos para o desenvolvimento da pesquisa. Esse captulo, por-tanto, propiciou subsdios relevantes para o desenho e o desenvolvi-mento das outras duas estratgias analticas.

    A segunda etapa, quantitativa, se fundamentou em informaescoletadas de survey1, com questes sobre perfil, trajetria profissionale atuao dos BMEs, aplicado aos ocupantes de cargos comissionados delivre nomeao e exonerao, denominados de direo e asses-

    1 Agradecemos o trabalho atencioso e eficaz de assistncia pesquisa, realiza-do por Antonio Capelo e Eveline Santos, na confeco do survey que subsidioua elaborao dos captulos iniciais reunidos nessa publicao.

    2 Quanto equivalncia, incluem-se as agncias reguladoras, o Banco Central, oDepartamento Nacional de Produo Mineral (DNPM) e o Instituto Nacional dePropriedade Intelectual (Inpi), que possuem cargos especficos que se equipa-ram hierarquicamente aos de DAS, de acordo com a Portaria n 186 (MPOG), de 17de agosto de 2000; a Instruo Normativa n 3 (MPOG), de 12 de janeiro de 2010; aLei n 9.986, de 18 de julho de 2000; e o Decreto n 6.944, de 21 de agosto de 2009.

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    soramento superior (DAS) ou nomenclatura equivalente2 do GovernoFederal. O Quadro 1, a seguir, detalha os nveis hierrquicos desses car-gos, bem como suas funes predominantes. Acima do DAS 6 (101.6 e102.6), encontram-se os cargos de natureza especial, normalmente pre-

    enchidos pelos secretrios-executivos dos ministrios, e o cargo de mi-nistro de Estado.

    Como o foco da pesquisa no mdio escalo da burocracia fede-ral, o survey foi direcionado aos DAS de nvel 1 a 5. Essa a parcelaintermediria que se encontra entre a cpula do Poder Executivo (se-cretrios e ministros) e a maioria dos servidores que no possuem car-gos de DAS, aproximadamente 96% dos servidores do Executivo Federal.Os resultados especficos do survey foram publicados pela Escola Nacio-nal de Administrao Pblica (Enap, 2014).

    A partir desses dados, o segundo captulo do livro Burocracia demdio escalo nos setores governamentais: semelhanas e diferenas ,

    Quadro 1: Nveis hierrquicos dos cargos de DAS do Governo Federal

    Fonte: Art. 4 do Decreto n 4.567, de 1 de janeiro de 2003.

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    Introduo

    de autoria de Pedro Cavalcante, Marizaura Cames e Mrcia Knopp, traaanlises comparativas, com uso de estatsticas paramtricas e noparamtricas, sobre as trs dimenses estudadas perfil, trajetria eatuao entre quatro grandes setores do governo (social, infraestrutura,econmico e rgos centrais). Os resultados dessa abordagem inovado-ra confirmam a premissa de heterogeneidade tanto na composio quan-to no comportamento dos burocratas de mdio escalo dentro dogoverno. A ttulo de exemplo, notam-se diferenas no perfil e trajetriaprofissional, bem como uniformidade no que tange ao padro deinterao e atuao direcionada s atividades internas da organizao.

    O terceiro captulo Influncia sobre o processo decisrio: o queexplica o protagonismo da burocracia federal de mdio escalo? tam-bm utiliza informaes provenientes do survey para mensurar osdeterminantes da influncia dos burocratas de mdio escalo sobre oprocesso decisrio. Utilizando modelo de regresso multivariada,Alessandro Freire, Pedro Palloti e Rafael Viana apresentam resultadosque corroboram sua hiptese central de que o nvel do cargo umavarivel crucial para a compreenso dos nveis de influncia da burocra-cia de mdio escalo no Brasil. Os resultados sugerem, entretanto, queo grau de influncia condicionado localidade de atuao do BME.

    Se, por um lado, as abordagens quantitativas cumprem a funode analisar, de forma abrangente e generalista, importantes dimensesdos BMEs, fez-se necessrio adicionar uma etapa qualitativa de pesqui-sa com vistas a investigar outras dimenses complementares de atua-o dessa burocracia a fim de esclarecer e destrinchar questessuscitadas pelo survey.

    Com enfoque em cinco diferentes setores e polticas do Gover-no Federal, os estudos qualitativos (captulos 4 a 8) procuraram captarautodescries e/ou narrativas desses atores, de forma a produzir des-cries mais detalhadas sobre suas atuaes. Embora no represen-tem todas as possveis situaes existentes no Governo Federal, oscasos em questo podem trazer diferentes e relevantes contribuies,na medida em que cobrem uma gama considervel de situaes dis-tintas e, assim, atendem premissa da complexidade das reas de

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    polticas pblicas e seus consequentes efeitos sobre os perfis, trajet-rias e atuao dos burocratas.

    Em primeiro lugar, os diferentes casos buscaram contemplar osprincipais setores governamentais: setor social (Bolsa Famlia), infra-estrutura (PAC), ambiental (Bolsa Verde), econmico (Receita Federal)e rgo de governo (Senasp). Foram selecionados tambm casos maisvoltados a arranjos articuladores de polticas (Bolsa Verde, Senasp e PAC),um mais voltado gesto organizacional e setorial (Receita Federal) eum hbrido (Bolsa Famlia). Alm disso, foram contemplados diferentesgraus de maturidade das organizaes e polticas estudadas: desdeorganizao mais madura e antiga (Receita Federal), at programas maisnovos em que o processo de institucionalizao ainda est em construo(Bolsa Verde).

    O quarto captulo Implementando uma inovao: a burocracia demdio escalo do Programa Bolsa Famlia voltado a analisar os buro-cratas de mdio escalo inseridos na Secretaria Nacional de Renda daCidadania (Senarc) do Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome, rgo gestor do Programa Bolsa Famlia. Vanessa Oliveira e GabrielaLotta argumentam que um dos principais elementos para compreender aatuao da BME o processo de seleo de agentes altamente qualifica-dos. Essa seleo acabou por determinar o grau de autonomia desses bu-rocratas, na medida em que se tornam interlocutores qualificados elegitimados a implementarem inovaes e realizarem as interaes ne-cessrias para a construo e efetivao do programa. Essa autonomia, noentanto, ao longo do tempo, acaba restringindo a prpria capacidade deinovao dos burocratas, medida que o programa passa a funcionar bem,estar institucionalizado e ter alta visibilidade.

    O quinto captulo Ativismo na burocracia? O mdio escalo doPrograma Bolsa Verde , de autoria de Rebecca Abers, analisa a atuaodos burocratas de mdio escalo envolvidos no Programa Bolsa Verde.A autora argumenta que, por ter um desenho interministerial adaptan-do a tecnologia do Bolsa Famlia, o Bolsa Verde depende de uma equipecom capacidade de atuao entre rgos para garantir um complexofluxo de informaes e recursos entre Braslia e as unidades do campo,

  • 19

    Introduo

    alm da capacidade de adaptar a poltica a lgicas distintas. O captuloargumenta ainda que a atuao desses burocratas orientada por umcomprometimento com projetos coletivos que tornam suas motivaesparecidas com as de ativistas na sociedade civil. Esse ativismo, no en-tanto, tem uma dupla face: ao mesmo tempo em que os burocratas de-vem realizar aes criativas, buscam institucionalizar e garantir acontinuidade do programa. A autora mostra, ento, as formas como es-ses burocratas do conta desse duplo movimento.

    O sexto captulo Por dentro do PAC: dos arranjos formais sinteraes e prticas dos seus operadores analisa os burocratas inseri-dos na Secretaria do Programa de Acelerao do Crescimento (Sepac). Apartir de entrevistas e observao das reunies nas salas de situao,Roberto Pires analisa como esses burocratas realizam uma atuaoarticuladora para viabilizarem projetos que envolvem diferentes minis-trios, entes federativos e at mesmo organizaes privadas. Como apon-ta o autor, a importncia dos burocratas de mdio escalo do PAC se dpor estarem no centro de fluxos verticais (com superiores) e horizontais(com atores de outros ministrios). Os BMEs so responsveis porpotencializar essas interaes, que, por sua vez, resultam na produode acordos e encaminhamentos com maior agilidade, gerando resulta-dos positivos a todos os envolvidos nos programas inseridos no PAC.

    O stimo captulo A burocracia de mdio escalo da Secretariada Receita Federal do Brasil: insulamento seletivo e construo de capa-cidades burocrticas , de autoria de Lucas Ambrzio, aborda os buro-cratas de mdio escalo que atuam na Receita Federal do Brasil. A partirde entrevistas com BMEs dessa instituio de Braslia, bem como deuma agncia estadual (SP), e da anlise dos dados do survey correspon-dentes ao rgo, o autor argumenta que, por ser um dos rgos maisantigos do Governo Federal, e dada a natureza da poltica que coordena,a Receita tende a ter uma burocracia mais estvel e insulada. Defende,no entanto, a tese de que h na instituio um processo de insulamentoseletivo, composto por: i) blindagem poltica, marcada pela baixainterao com instituies polticas; ii) organizao tpica weberiana,com racionalidade e hierarquia, alm de uma burocracia estvel e capa-

  • 20

    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    citada; e iii) insero funcional devido forte interao com atores ex-ternos vinculados a recursos estratgicos para o rgo.

    O oitavo captulo Dilemas de uma burocracia de mdio escalono contexto de uma poltica frouxamente articulada: o caso da Secreta-ria Nacional de Segurana Pblica analisa os burocratas responsveispela Secretaria Nacional de Segurana Pblica (Senasp), vinculada aoMinistrio da Justia. No artigo, as autoras Letcia Godinho e Larissa Pei-xoto argumentam que a atuao desses burocratas ocorre por meio devariados e cotidianos processos de negociao e articulao, fundamen-tais para a produo da poltica nacional de segurana pblica, conside-rada uma poltica frouxamente articulada. Analisando a atuao dessesBMEs, as autoras mostram que ao longo do processo de negociaoentre diferentes atores que se efetiva a agncia situada, ou seja, osespaos onde prevalece a deciso e a inovao e que marcam a atuaodesses burocratas na construo da poltica.

    O captulo de concluso do livro Perfis, trajetrias e relaes: embusca de uma anlise abrangente dos burocratas de mdio escalo doGoverno Federal , de Gabriela Lotta e Pedro Cavalcante, busca realizaruma anlise cruzada entre os achados tericos, quantitativos e qualita-tivos, com objetivo de compreender, de forma transversal, algumas con-cluses a respeito da trajetria e perfil desses burocratas, bem comoquestes que permanecem no respondidas e que remontam a umanova agenda de pesquisas.

    Esperamos que esta coletnea possa contribuir para que co-nheamos mais a respeito do Estado brasileiro, especialmente noque diz respeito sua burocracia, tendo em vista que o conhecimen-to sobre a BME ainda muito limitado e sua invisibilidade acabaalimentando mitos, como os de que o Estado inchado, os funcio-nrios, desqualificados ou tem pouca produtividade ou mesmode que esses cargos so ocupados sem critrios tcnicos, apenaspoltico-partidrios.

    Esperamos, enfim, que este livro contribua tanto para os acad-micos interessados no funcionamento do governo e de sua burocracia,quanto para a sociedade e, especialmente, para os gestores pblicos

  • 21

    Introduo

    responsveis por formular e implementar polticas pblicas, sobretudode gesto de pessoas.

    Referncias bibliogrficas

    COLLIER, D.; BRADY, H.; SEAWRIGHT, J. Sources of leverage in causal inference: toward analternative view of methodology. In: BRADY, H.; COLLIER, D. (Eds.) Rethinking social inquiry:diverse tools, shared standards. Lanham, Md.: Rowman and Littlefield, cap. 13,2004.ESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAO PBLICA Enap. Perfil da burocracia de mdio escalo do PoderExecutivo federal. Braslia: Enap, 2014.HOWLETT, M. Public managers as the missing variable in policy studies: an empiricalinvestigation using canadian data. Review of Policy Research, v. 28, n 3, p. 247 63,May 2011.OLIVEIRA, V. E.; ABRUCIO, F. L. Entre a poltica e a burocracia: a importncia dos burocratasde nvel mdio para a produo de polticas pblicas em sade e educao.Artigo apresentado no 35 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, Caxambu, MG, 2011.PIRES, R. (Org.) Efetividade das instituies participativas no Brasil: estratgias deavaliao. Braslia: Ipea. 2011.

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    CAPTULO 1 BUROCRATAS DE MDIO ESCALO:NOVOS OLHARES SOBRE VELHOS ATORES DA

    PRODUO DE POLTICAS PBLICAS1

    Gabriela Spanghero LottaRoberto Rocha Coelho Pires

    Vanessa Elias de Oliveira

    O presente captulo tem como objetivo apresentar os resultadosde uma reviso da literatura nacional e internacional sobre burocratasde mdio escalo (BMEs). Trata-se dos atores que desempenham fun-o de gesto e direo intermediria (como gerentes, diretores, coor-denadores ou supervisores) em burocracias pblicas e privadas.A sistematizao da literatura se orientou a partir de uma perspectivade polticas pblicas isto , voltada para a compreenso da existnciae atuao desses atores e das suas influncias sobre os processos deproduo de polticas pblicas e aes governamentais.

    Os estudos de polticas pblicas tm ganhado espao apenas re-centemente e, apesar do crescimento das pesquisas nas ltimas dca-das no Brasil, o campo das polticas pblicas ainda sofre, em certamedida, da grande fragmentao organizacional e temtica (FARIA, 2003).Alm disso, h tambm lacunas quando observamos o recente espaoque a literatura de polticas pblicas tem dado para ampliar as formas deanlise das aes do Estado, incluindo novos atores e novos modelosanalticos. Algumas pesquisas tm demonstrado a incapacidade que osmodelos tradicionais de interpretao dos mecanismos de

    * Agradecemos ao CNPQ o apoio para o desenvolvimento desta pesquisa.1 Texto originalmente publicado na Revista do Servio Pblico, v. 65, n. 4, p. 407-437,

    out/dez 2014.A realizao deste trabalho contou com a valiosa assistncia de estagirios ebolsistas de iniciao cientfica. Registramos nossos agradecimentos a EvelineRibeiro dos Santos, Cleiton Duarte e Luiz Fernando Biscardi.

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    intermediao de interesses como pluralismo, marxismo e teoria daselites tm de dar conta da diversificao e complexificao dos pro-cessos, marcados por interaes no hierrquicas, por um baixo graude formalizao no intercmbio de recursos e informaes, bem comopela participao de novos atores. (FARIA, 2003).

    Na tentativa de elucidar caractersticas do processo de produodas polticas, entraram na agenda de pesquisas expresses como issuenetworks, policy communities, alm de questes como diversificaodos atores envolvidos, padro de relacionamento entre reas etc. Noentanto, essa nova agenda de pesquisa parece ainda estar centrada nasanlises, sobretudo empricas, acerca dos processos de tomada de deci-so, com restrita ateno dada aos processos de implementao.

    Quando analisamos a literatura sobre as polticas pblicas, perce-bemos a menor relevncia dada fase da implementao, vista a quan-tidade ainda relativamente limitada de trabalhos sobre o assunto, desdeo memorvel trabalho de Lipsky sobre a Street-Level Bureaucracy (1980),especialmente quando analisada a produo nacional sobre o tema. H,portanto, uma lacuna nos estudos empricos brasileiros a respeito dosdiversos elementos e fatores que influenciam a fase da implementao,muito embora alguns trabalhos pioneiros busquem trazer o olhar paraas policy networks (MARQUES, 2003; CARPIM, 2003), para a importncia daaprendizagem e conhecimento (FARIA, 2003) ou para incorporao de va-lores dos burocratas (MEIER; OTOOLE, 2007; LOTTA, 2010).

    Essa limitao da literatura se d tambm em relao ao olhar quetem sido dado ao papel das diferentes burocracias no processo entreformulao e implementao das polticas.

    Conforme exps Oliveira (2009), a maioria das pesquisas desenvol-vidas sobre burocracia pblica no Brasil centra-se na burocracia dealto escalo, e mais especificamente a burocracia federal e comoessa atua no processo de produo de polticas pblicas (GOUVA,1994; SCHNEIDER, 1994; LOUREIRO; ABRUCIO; Rosa, 1998; LOUREIRO; ABRUCIO,1999; BRESSER PEREIRA, 2007; OLIVIERI, 2007). Outros trabalhos voltam-se,ainda, para a chamada burocracia de nvel de rua (LIPSKY, 1980), queimplementa as polticas desenhadas centralmente pelo alto esca-lo (LOTTA, 2010) (OLIVEIRA; ABRUCIO, 2011, p.2).

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    No entanto, poucos so os estudos voltados a compreender a bu-rocracia intermediria, que gerencia os burocratas de nvel de rua e quefaz o elo entre esses implementadores e os formuladores (HOWLETT, 2011;MEIER, 2009; PIRES, 2011; OLIVEIRA; ABRUCIO, 2011). Dessa burocracia de mdioescalo, fazem parte os gerentes, dirigentes, supervisores e agentesencarregados de operacionalizar as estratgias que o alto escalo daburocracia formula (PIRES, 2010).

    Trata-se de um conjunto central de atores nos processos deimplementao de polticas pblicas, porm pouco considerado nosmodelos de anlise. Os estudos pioneiros dos anos 1970 tendiam a focarnos processos de tomada de deciso e a assumir a implementao comoum processo hierrquico, que vinha de cima para baixo (abordagem top-down). Nessa perspectiva, os burocratas eram claramente subordina-dos aos tomadores de deciso, pressupondo uma separao entreadministradores e polticos e uma traduo automtica entre deciso eao (HILL; HAM, 1993).

    Nas dcadas seguintes, passou-se a valorizar o olhar para aefetividade e avaliao das polticas, percebendo-se que alguns fatoreslevavam o processo de implementao a falhas (PRESSMAN; WILDAVSKY, 1984;GUNN, 1978; SABATIER; MAZMANIAN,1979). A partir de anlise de baixo paracima, os atores responsveis pela implementao passaram a ser com-preendidos como elementos-chave. Lipsky (1980) demonstrou que osagentes de rua (street-level bureaucrats) so funcionrios que traba-lham diretamente no contato com os usurios dos servios pblicos(policiais, professores, profissionais de sade etc.), e afetam direta-mente o desempenho, a qualidade e o acesso aos bens e servios provi-dos pelo governo. Assim, a abordagem bottom-up desafiou a visotradicional centrada em processos hierrquicos e sugeriu que aimplementao deveria ser vista como parte contnua e integrante doprocesso poltico, envolvendo barganha e negociao entre os que que-rem colocar a poltica em ao e os de quem as aes dependem.

    Tendo em vista essas posies extremas, pouco se preocupou emcompreender um conjunto de atores que, por ocupar uma posiointermediria, se situa em um limbo conceitual entre as abordagens

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    top-down e bottom-up, os burocratas de mdio escalo (...) que desig-nam uma posio intermediria entre o topo e a base (PIRES, 2011, p.4).Oliveira (2009), Pires (2011) e Oliveira e Abrucio (2011) tambm desta-cam que h uma variedade e heterogeneidade de atores que ocupamessa posio intermediria denominada burocracia de mdio escalo.Essa heterogeneidade se d tanto pelos contextos setoriais einstitucionais quanto pelos prprios cargos exercidos por cada um de-les. Esse reconhecimento, no entanto, implica a necessidade de esfor-os comparativos e consistentes para caracterizao emprica dessesperfis, de forma a construirmos conceitos mais precisos compreenden-do suas generalidades e especificidades.

    Para alm da relevncia terica do objeto, observa-se atualmen-te, no plano emprico, um processo de expanso dessa burocracia inter-mediria no Brasil. De 1997 a 2012, ocorreu, no Governo Federalbrasileiro, uma forte expanso do nmero de cargos associados a essaposio intermediria nas hierarquias burocrticas 107% de aumentono nmero de cargos de direo e assessoramento superior (DAS) nvel4, e 91% para o nvel 5. Essa expanso observada nos nveis intermedi-rios supera o aumento ocorrido no nmero de cargos em outros nveisde DAS (1, 2, 3 e 6) e se situa em patamar muito superior mdia geral(27%) de crescimento de DAS. A expanso destacada no segmento degerncia intermediria sugere que a burocracia de mdio escalo temsido alvo de transformaes importantes e ganha relevncia para a ati-vidade governamental no perodo recente.2

    Assim, esse conjunto de inquietaes tericas e movimentaesdo fenmeno emprico indicam a necessidade de ampliarmos a nossacompreenso sobre quem so esses atores, o que fazem, como atuam,

    2 Na estrutura de cargos comissionados do Governo Federal, h sete posies,associadas aos denominados cargos de direo e assessoramento superior(DAS) e cargos de natureza especial (NE). H seis nveis de DAS, sendo que oDAS 1 o menor cargo na estrutura hierrquica e o DAS 6, o maior. Os cargos denatureza especial so superiores ao DAS 6. Num olhar a partir da estrutura, oscargos podem ser vistos como: DAS 1 a 3 correspondem a cargos de baixo escalo;DAS 4 e 5, de mdio escalo; DAS 6 e NE, alto escalo.

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    com quem se relacionam e de que forma influenciam a gesto de polti-cas pblicas. Esse o sentido da investigao proposta por este traba-lho, o qual se baseia em extensa e sistemtica reviso da literatura sobreo tema em distintas reas de conhecimento aplicadas gesto de polti-cas pblicas.

    Na seo seguinte, descrevemos a metodologia utilizada para olevantamento bibliogrfico e os procedimentos empregados para a sis-tematizao e anlise do material. Em seguida, os resultados de tal revi-so e a sistematizao da literatura so apresentados. Em um primeiromomento, focamos nas definies encontradas para o conceito de bu-rocratas de mdio escalo e sua operacionalizao, assim como nacaracterizao do contexto, evoluo e descrio dos papis desempe-nhados por esses atores, alm dos dilemas de construo de suas iden-tidades e suas formas de atuao. Em um segundo momento, buscamossistematizar as trs principais abordagens ou perspectivas (estrutural,individual e relacional) para a anlise da atuao e influncia dos buro-cratas de mdio escalo sobre os processos de produo de polticaspblicas, com o foco em alguns estudos setoriais. Por fim, conclumoscom uma sntese dos principais elementos levantados a partir da revi-so bibliogrfica, os quais, simultaneamente, sustentam a importnciado foco nesse ator especfico e contribuem para o preenchimento delacunas no debate sobre polticas pblicas, apontando uma agenda depesquisa futura sobre burocratas de mdio escalo.

    Metodologia

    Para analisar o que j foi publicado em peridicos sobre o tema,buscamos em bases digitais acadmicas todas as publicaes nacionaise internacionais conceituadas como Qualis A ou B dos campos de CinciaPoltica, Cincias Sociais, Administrao Pblica, Cincias Sociais Aplica-das e interdisciplinar. Selecionamos as publicaes com mais afinidade anlise de polticas pblicas e definimos um conjunto de 64 peridicosa serem consultados. Em cada um deles, foi realizada uma busca, utili-zando como palavras-chave burocracia, gerente, burocrata, gestor

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    ou dirigente, sempre combinadas com organizaes pblicas, ad-ministrao pblica, Estado ou polticas pblicas e suas respectivastradues para a busca internacional.

    De todos os peridicos analisados, foram extrados 85 artigos,novamente filtrados, em funo dos resumos, pela aderncia ao tema o que resultou numa seleo de 6 artigos nacionais e 28 artigos interna-cionais.

    Alm disso, realizou-se uma busca no portal Capes por meio detrs palavras- chave: mid-level bureaucrats, middle level bureaucracye bureaucratic behavior. Para cada um dos termos, foram analisadas as100 primeiras ocorrncias classificadas automaticamente por ordem derelevncia, resultando em mais 44 artigos internacionais.

    A esse conjunto, foram somados artigos internacionais da litera-tura da Administrao e da Cincia Poltica previamente selecionadospor especialistas do tema, chegando-se a um total de 83 artigos3. Todosos artigos foram lidos e sistematizados, tendo como base a identificaodos seguintes elementos em cada artigo: objetivo, objeto central,metodologia, varivel dependente e varivel explicativa, principais con-cluses sobre os BMEs.

    A partir desses procedimentos, buscou-se identificar como a lite-ratura trata os BMEs. Por um lado, percebeu-se que abordagens discipli-nares distintas tendem a enfocar diferentes aspectos no estudo dessesburocratas. Enquanto estudos da Cincia Poltica tendem a atribuir mai-or relevncia participao dos BMEs nos processos decisrios internoss burocracias (conflitos, coalizes etc.), relao deles com atores ex-ternos (como polticos, partidos e cidados) e aos dilemas entre autono-mia e controle das burocracias; estudos na rea de Administrao ePsicologia tendem a ressaltar temas como motivao, liderana, apren-dizado, sentimentos em relao ao trabalho, modelos de recrutamentoe outros temas associados gesto de recursos humanos, alm de

    3 No possvel analisar a separao dos artigos entre as reas de conhecimen-to (Cincia Poltica, Administrao etc.), j que a mesma revista pode estarpresente em mais de uma rea de conhecimento ao mesmo tempo.

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    enfoques voltados s estruturas e processos administrativos. Temasassociados s estruturas organizacionais, identidades, papel das profis-ses, cultura organizacional ou ocupacional so tambm frequentemen-te abordados por socilogos.

    Todavia, apesar dessa variedade de abordagens, a sistematizaoda literatura se pautou por preocupaes tpicas das reflexes sobre aproduo e anlise de polticas pblicas, dado que, como previamenteapontado, trata-se de um campo de conhecimento no qual o foco nosBMEs tem sido pouco explorado. Assim, a interpretao dos contedosextrados da bibliografia levantada foi orientada no sentido da extraode conceitos, categorias e abordagens que permitam ampliar a compre-enso sobre quem so os BMEs, o que fazem, como atuam e como influ-enciam o desenho e a implementao de polticas pblicas.

    Os burocratas de mdio escalo na literatura sobre gesto epolticas pblicas

    Esta seo apresenta resultados da sistematizao da literaturapesquisada. Primeiramente, focamos contexto, evoluo e descriodos papis desempenhados por burocratas de mdio escalo, alm dosdilemas de construo de suas identidades e suas formas de atuao. Nasegunda subseo, apresentamos trs perspectivas analticas para a com-preenso da atuao dos BMEs na produo de polticas pblicas. Porfim, apresentamos algumas anlises setoriais.

    O burocrata de mdio escalo: papis, funes e lugares

    Nesta primeira subseo, ser apresentado um retrato mais geraldo que a literatura j tem concludo a respeito dos BMEs. Ela est organi-zada em trs partes que apresentam, cada uma, elementos especficosque essa literatura busca sistematizar: a) definies e indefinies daliteratura sobre os BMEs; b) papis que a literatura identifica para osBMEs; c) valores e comportamento dos BMEs.

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    a) Os BMEs em contexto: definies e indefinies

    Uma primeira concluso que se pode extrair da literatura diz res-peito ambiguidade e dificuldade de definir com exatido o que ca-racteriza um burocrata de nvel mdio. Para efeitos de simplificao eoperacionalizao, a forma mais frequente de se definir um BME ocorrepela identificao daqueles funcionrios situados no meio da estruturahierrquica da organizao. Isto , pela eliminao dos cargos e funesassociados aos extratos superiores e inferiores, ou pelo foco nos cargosde gerncia intermediria na estrutura administrativa (como diretores,coordenadores, gerentes, supervisores etc.).

    Nos estudos da administrao de organizaes privadas, os funcio-nrios de mdio escalo tm sido definidos como ocupantes de cargos degerncia situados entre o grupo de dirigentes estratgicos do topo (porexemplo, os CEOs) e a primeira linha de superviso (chefes de diviso,coordenadores de projetos etc.), acima dos empregados encarregadosdiretamente com a produo (VIE, 2010). Em estudos voltados para buro-cracias do setor pblico, a definio e operacionalizao do conceito deBME mais usual tem focado nas categorias intermedirias das estruturasde cargos de gerncia. Por exemplo, Lewis (1992), ao estudar os middlemanagers no governo federal norte-americano, delimitou sua anlise aoscargos de gerncia identificados como GS-13 a 15, sendo que GS-16 a 18correspondem ao Senior Executive Service e os graus menores que 13 sereferem a funes de primeira linha de gerncia. No caso do GovernoFederal brasileiro, esse extrato intermedirio corresponderia aos cargosde DAS de nvel 4 e 5 (na escala que vai de 1 a 6).

    No entanto, a literatura reconhece que, apesar de necessrias,essas simplificaes, a partir de posies na estrutura administrativa,no refletem a complexidade associada aos nveis intermedirios. Naprtica e no cotidiano das organizaes pblicas e privadas, percebe-seque h confusos limites em torno do termo mdio ou intermedirioe ambiguidades na definio de quem so ou no so esses burocratasde mdio escalo.

    Isso se deve ao fato de que as camadas intermedirias de organi-zaes pblicas e privadas tm passado por diversas transformaes,acarretando instabilidade nos papis, funes e identidades dos atores

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    que ocupam esses espaos organizacionais (THOMAS; LINSTEAD, 2002). Taisprocessos tm sido mais intensos no setor privado, mas tambm se fa-zem presentes nas burocracias pblicas, sobretudo a partir do paradigmada Nova Gesto Pblica. Nas ltimas dcadas, movimentos como dereengenharia, downsizing, desburocratizao, gerencialismo tm pro-movido o enxugamento de camadas hierrquicas que se concretiza, prin-cipalmente, em um achatamento das estruturas organizacionais. Novastecnologias tm permitido o monitoramento e a conduo das ativida-des operacionais na ponta por parte de dirigentes superiores. Alm dis-so, metodologias de trabalho em equipe, estruturas matriciais oubaseadas em projetos e muitas outras reformas que reduziram estrutu-ras hierrquicas tm como consequncia a prpria reduo dos cargosde nvel intermedirio o que significaria a potencial extino dos BMEs(SOFER, 1974; VIE, 2010).

    Por outro lado, a intensidade dessas transformaes tem criadotambm oportunidades para o reposicionamento desses atores, a partirdos discursos do empreendedorismo, da liderana e do engajamento es-tratgico, no setor privado (THOMAS; LINSTEAD, 2002); ou da expectativa deemergncia de new public managers, no setor pblico (THIEL; STEIJN; ALLIX,2005). Assim, embora os autores considerem que os processos de refor-ma do Estado tm trazido mudanas que impactam a atuao, perfil epapel dos BMEs, na literatura voltada ao setor pblico, no h necessaria-mente um entendimento de que essas funes esto se reduzindo, mas,sim, se transformando e adquirindo outra importncia. Assim, percebe-se a complexidade do debate sobre a burocracia intermediria e as difi-culdades de definio e operacionalizao do conceito.

    b) Os papis e funes dos BMEs

    Com relao aos papis e funes desempenhados pelos BMEs,encontramos distines importantes entre os estudos que focaram bu-rocracias pblicas e organizaes privadas.

    O estudo de Mintzberg (1973) sobre os papis desempenhados porgerentes provavelmente um dos mais influentes no debate sobre opapel dos BMEs no setor privado. Diferentemente dos estudos clssicos

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    na Administrao, que prescreviam como funes essenciais de gern-cia o planejamento, coordenao e monitoramento, Mintzberg, a partirde uma metodologia observacional, descreveu essa atividade comoaltamente fragmentada, variada e baseada em tentativas de curto prazode lidar com problemas emergentes. Em vez de desempenhar funestpicas de administrao, como pensamento analtico e ao, o papeldos gerentes poderia ser definido a partir de trs categorias gerais defuno: interpessoais, informacionais e decisrias. A dimensointerpessoal sugere que a atividade de gerncia envolve capacidade deinterao com superiores, subordinados e pares. A dimensoinformacional chama ateno para o papel dos gerentes na recepo,sistematizao e disseminao de informaes relevantes para a orga-nizao. Finalmente, a dimenso decisria evoca o carter empreende-dor e negociador dos gerentes, alm de suas habilidades de lidar comconflitos e alocar recursos estrategicamente (CHAREANPUNSIRIKUL; WOOD,2002). Um amplo conjunto de estudos mais recentes tem argumentadoque, nas ltimas dcadas, o papel dos gerentes vem migrando gradual-mente para maior nfase em atividades de contato interpessoal, dilo-go e liderana do que em atividade de gesto de processos rotineiros econtroles burocrticos (VIE, 2010).

    De fato, os estudos pioneiros na Administrao voltados para ocomportamento dos BMEs j haviam identificado que gerentes dedica-vam uma maior proporo de seu tempo de trabalho a conversaes,em sua maioria envolvendo seus pares em comunicaes laterais e umamenor parte com seus subordinados imediatos (BURNS, 1954 apud VIE,2010); ou, ainda, que gerentes passam a maior parte do seu tempoconversando, na maioria das vezes em interaes face a face. Eles pare-cem no estar sobrecarregados com papeladas ou reunies formais(HORNE; LUPTON, 1965, p. 32 apud VIE, 2010). Estudos mais contemporneos,segundo Vie (2010), confirmam a manuteno desses mesmos padresde comportamento no setor privado.

    Nos estudos com foco nas burocracias governamentais, ganhamrelevncia reflexes a partir da dicotomia tcnico-poltica. Nesses ca-sos, por ocuparem posies intermedirias, esses BMEs desempenham

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    um papel tcnico-gerencial e outro tcnico-poltico (PIRES, 2011). No pri-meiro caso, as aes dizem respeito a como esses burocratas traduzemas determinaes estratgicas em aes cotidianas nas organizaes,construindo padres de procedimentos e gerenciando os servios e,portanto, os burocratas implementadores (WILSON, 1968; KAUFMAN, 1960;DALTON, 1959; CHETKOVITCH; KIRP, 2001; OLIVEIRA, 2009). No segundo caso, opapel tcnico-poltico diz respeito a como esses atores constroem ne-gociaes e barganhas relacionadas aos processos em que esto envol-vidos e sua relao com o alto escalo. Nessa perspectiva, vale ressaltarque o papel tcnico-poltico e sua relevncia dependem diretamenteda posio desses burocratas no desenho institucional das polticas e,portanto, na cadeia de atores entre a formulao e a implementao(ROCHA, 2003; BIANCCHI, 2002; SCHNEIDER, 1994).

    Numa perspectiva um pouco diferente, parte da literatura con-sidera que h mudanas recentes no Estado que fragilizam a ideia deuma dicotomia tcnico- poltica (HOWLETT, 2011; DEMIR; REDDICK, 2012). Es-sas mudanas tambm apontam a necessidade de compreender osgestores no processo de produo de polticas pblicas (HOWLETT, 2011).O autor assinala trs movimentos em curso que reforam a importnciadesses atores:

    1) O processo de descentralizao promovido nos ltimos anosem diversos pases transferiu papis importantes para os gestores situ-ados nos nveis baixos e mdios das agncias governamentais, que pas-sam a se responsabilizar por decises centrais das polticas pblicas.

    2) A emergncia de redes de governo colaborativo como novaforma de governana aumentou o escopo de influncia desses gestoresintermedirios no seu exerccio de autoridade que agora no apenastop-down, mas tambm bottom-up.

    3) A orientao voltada aos usurios dos servios, componenteimportante do movimento do New Public Management, tambm forta-leceu a voz e o nvel das agncias que entregam servios e os gestoresque as dirigem, de forma que os gestores agora tm grande potencial deexercer influncia no processo poltico em termos organizacionais, pol-ticos e tcnicos (HOWLETT, 2011; WU et al., 2010).

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    Analisando os estudos recentes sobre a burocracia, Howlett (2011)afirma que muitos tm levado a um questionamento da dicotomia tc-nico-poltica e seu entendimento das polticas pblicas. Para o autor,falta ainda literatura uma caracterizao mais profunda a respeito dospapis atuados por gestores intermedirios, o que Meier (2009) chamoude missing variable nos estudos de polticas pblicas.

    Alguns estudos tm se dedicado a compreender quando e sobque condies os BMEs conseguem influenciar as decises estratgicasdas organizaes. Kelly e Gennard (2007), em estudo qualitativo sobrediretores de empresas privadas, identificaram que aqueles que conse-guem combinar sua insero tcnico- especializada na organizao comhabilidades genricas de gesto apresentam maior capacidade de influ-ncia, pois asseguram liderana estratgica da organizao preocupa-es no apenas tcnicas como tambm orientadas para o negcio.

    Currie e Procter (2005), a partir de anlises focadas em hospitaispblicos, indicam que os BMEs com frequncia influenciam as estratgiasgerais de suas organizaes. Segundo os autores, os BMEs frequentemen-te vendem ideias aos executivos de suas organizaes e, muitas vezes,se tornam os responsveis pela elaborao (e modificao) do contedodetalhado das estratgias definidas acima. O grau de influncia dessesatores intermedirios pode depender do seu posicionamento na estruturaorganizacional, do nvel de conflito com os profissionais responsveis pelasoperaes cotidianas e da sua sensibilidade para compreender o contextoestratgico no qual se insere a organizao (KURATKO et al., 2005).

    c) Comportamento, valores e motivao

    Outro enfoque abordado na literatura atm-se ao comportamen-to dessa burocracia em contextos organizacionais, especialmente numcontexto de reforma e mudanas institucionais. A maioria dos textosanalisados busca compreender como os valores desses burocratas tm-se alterado (ou no), considerando os processos de reforma do Estadoem curso, norteados por novos valores do New Public Management.

    Um dos principais instrumentos aplicados e analisados o PSM(Public Service Motivation) e suas variaes, como PSV (Public ServiceValues), a partir do qual a literatura busca metrificar valores em curso

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    em determinadas organizaes e como eles se alteram (GAINS; JOHN, 2010;WITESMAN; WALTERS, 2013; MEYER et al., 2013; JACOBSON, 2011).

    Ainda na linha de compreenso dos valores e motivaes dos ser-vidores, h estudos que se voltam a comparar gestores intermediriosde organizaes pblicas com aqueles da iniciativa privada e do terceirosetor (LEE; WILKINS, 2011; CHEN; BOZEMAN, 2014; OLIVEIRA et al., 2010). Paraesses autores, os gestores que atuam no setor pblico tm prefernci-as, motivaes e valores bastante distintos, que podem levar a resulta-dos diferentes das demais organizaes. Essa diferena de valores estrelacionada tanto ao que os gestores pensam a respeito de salrio ebenefcios, como a seus compromissos com o interesse pblico e senti-mento de responsabilidade (LEE; WILKINS, 2011), ou, ainda, est relaciona-da a tipos de burocratas que se caracterizam por suas preferncias epela alocao de tempo de trabalho em diferentes funes (GAINS; JOHN,2010). Por outro lado, gestores pblicos tendem a ter uma percepo deque suas habilidades so menos aproveitadas e seu trabalho menosestimulante, o que pode afetar a qualidade do servio que desempe-nham (CHEN; BOZEMAN, 2014).

    Outra questo analisada pela literatura a respeito dos burocratasde mdio escalo das competncias relacionadas s suas atividades.Para a literatura, as distintas competncias se relacionam tanto scaractersticas pessoais quanto quelas envolvidas na capacidade deinteraes interpessoais, o que envolve a influncia exercida pelosmiddle managers para cima, na relao com o alto escalo (executivemanagers), e para baixo, com a burocracia de nvel de rua, como proposto

    Figura 1: Tipologia da influncia da burocracia de mdio escalo

    Fonte: Floyd e Wooldridge (1992) apud Currie e Procter (2003).

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    por Floyd e Wooldridge (1992). Dessa interao para cima e para baixo(dimenso direo da influncia), h ainda duas possibilidades derelao com esses estratos da burocracia, que so relacionadas com oposicionamento da BME diante das estratgias para a organizao e/oupolticas pblicas formuladas. Esquematicamente, a compreensodessas dimenses e atuao da BME fica mais clara (Figura 1).

    Para Floyd e Wooldridge (1992), a BME participa no apenas dofazer, mas tambm do pensar as estratgias de atuao da organi-zao e/ou desenho da poltica pblica. Assim, quando divergem doalto escalo, priorizam alternativas que individualmente consideramas mais apropriadas e/ou importantes, ao passo que, quando estoalinhados, atuando de maneira integradora, so capazes de sintetizartodas as diretrizes da poltica, transformando-as em ao institucional.No que diz respeito sua relao com a burocracia de nvel de rua,permitem adaptaes locais justamente quando discordam da posiodefendida pela poltica; ou implementam estratgias determinadaspor ela no que diz respeito atuao desejada da burocraciaimplementadora.

    Portanto, a atuao da BME influenciada tanto pelos objetivosestratgicos determinados para a sua organizao, traduzindo-os emplanos de ao, quanto pelos seus objetivos individuais (CURRIE; PROCTER,2003, p. 1327).

    Bacon et al. (1996) assinalam outras duas diferenas fundamen-tais entre as burocracias pblicas e privadas. Primeiro, a avaliao dosservios prestados no setor pblico mais complexa, uma vez que seusfins ltimos no so to facilmente mensurveis quanto o lucro final emuma empresa privada. Em segundo lugar, os BMEs no setor pblico tmque coordenar atividades que transpem mltiplas fronteiras de auto-ridade. No setor pblico, os desafios de accountability extrapolam osextratos superiores e acionistas das organizaes privadas e incluematores polticos, grupos de interesse e cidados, alm de rgos decontrole. Assim, os BMEs no setor pblico lidam com um conjunto maiscomplexo de autoridade e fontes de legitimao.

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    As diferentes motivaes dos servidores tambm so explicadaspor dimenses institucionais ou organizacionais, que influenciariam oucondicionariam as percepes dos gestores por meio do processo sele-tivo dos gestores, que privilegiaria determinados perfis (MONTEIRO, 2013),pelo processo de treinamento e desenvolvimento de competncias(OLIVEIRA et al., 2010), ou por incentivos e formas de gesto aplicadaspelas organizaes (WISE, 2004).

    Sistematizando os apontamentos da literatura levantados acima,podem ser identificadas como questes e concluses centrais que aliteratura tem abordado:

    a) valores e motivaes dos servidores so relevantes para com-preender sua forma de atuao e os resultados das polticas; b) isso ainda mais relevante considerando-se a posio dos intermedirios ougestores, que podem influenciar seus subordinados; c) valores emotivaes dos burocratas no servio pblico so distintos das demaisorganizaes e podem ser afetados por questes institucionais ou

    Quadro 1: Caractersticas dos gestores nas iniciativas pblica e privada

    Fonte: Elaborao prpria.

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    organizacionais; d) processos de reforma tm tentado alterar os valorese motivaes dos gestores, mas nem sempre com sucesso.

    Perspectivas analticas sobre a atuao dos burocratas de mdioescalo

    A reviso empreendida permitiu identificarmos trs principaisperspectivas para o exame da atuao dos BMEs nas polticas pblicas,abaixo descritas.

    a) Perspectiva estrutural

    A perspectiva estrutural concebe a atuao de burocratas como funodo lugar que ocupam nas estruturas organizacionais e dos papis definidosnos ordenamentos formais. Nesse sentido, os BMEs podem ser compreendi-dos como engrenagens de um mecanismo, tendo sua atuao predefinidapor uma estrutura organizacional e normativa mais ampla (WISE, 2004).

    Essa perspectiva tributria da obra de Max Weber, o qual compre-endia a burocracia como um sistema de dominao impessoal. Nesse sis-tema, os agentes de dominao no se confundem com (ou no tempropriedade sobre) os meios de administrao, e suas condutas so ori-entadas pela obedincia a regras formais (estatutos). Alm disso, taisagentes esto inseridos em cadeias de comando hierrquico bem defini-das, a partir das quais os superiores determinam o cumprimento de tare-fas pelos subordinados. Assim, em tese, o comportamento de burocratasno dependeria das caractersticas, inclinaes ou paixes dos agentesque habitam tais organizaes, mas, sim, seria produto das normas e es-truturas formais que definem as organizaes nas quais atuam, derivandodiretamente de uma lgica da adequao (MARCH; OLSEN, 1984), na qual osagentes identificam seu papel (a partir do lugar que ocupam na estrutura)e compreendem as obrigaes e tarefas a ele associadas.

    A perspectiva estrutural no oferece recursos analticos que pro-porcionem uma compreenso particularizada da atuao dos BMEs. Talcomo descrito, a atuao dos BMEs deveria ser compreendida como a deoutros tipos de burocratas, a partir de sua insero na estrutura

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    organizacional, do cargo que ocupa e das normas que orientam o funci-onamento de sua organizao. Ademais, essa perspectiva pouco auxiliana compreenso das relaes entre distintas burocracias e suasconsequncias para a produo de polticas pblicas, j que a atuaoburocrtica percebida de maneira estanque, predefinida pela posioocupada e sua respectiva funo na hierarquia organizacional.

    b) Perspectiva de ao individual

    Um segundo enquadramento analtico para compreenso da atua-o dos BMEs direciona o foco para suas decises e aes individuais, apartir de clculos racionais sobre as recompensas e expectativas de san-es. A abordagem da Escolha Pblica (Public Choice) ofereceu algumasdas primeiras formalizaes de modelos focados no potencial de agn-cia dos burocratas (BUCHANAN; TULLOCK, 1962). A premissa bsica, diferente-mente da perspectiva anterior, de que a atuao de burocratas motivadapela maximizao de seus prprios interesses e ganhos pessoais. Niskanen(1971), um dos pioneiros nessa linha, props concebermos burocratas comoagentes que buscam instrumentalmente a maximizao dos oramentose recursos (financeiros e humanos) de suas organizaes. Em seu modelo,esses atores se encontram em posio de assimetria de informao emrelao aos atores do Legislativo (assim como os dirigentes polticos doExecutivo), pois, alm de conhecerem as demandas externas, tm o mo-noplio das informaes sobre os custos dos servios que prestam. As-sim, burocratas tendero sempre a orientar seu comportamento para aampliao crescente de seus oramentos e recursos, ainda que extrapolemas necessidades efetivas da proviso de seus servios4.

    Essa perspectiva de interao racional-estratgica se tornou maissofisticada a partir do modelo principal-agent (MOE, 1984), que introduz a

    4 A abordagem da Escolha Pblica sobre o comportamento de burocratas foiamplamente criticada por restringir as motivaes de tais agentes maximizaode seus interesses. Diversos autores contra- argumentaram no sentido de umaviso mais complexa sobre motivaes dos servidores pblicos (ver WISE, 2004; oua literatura sobre public service motivation JACOBSON, 2011).

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    nfase sobre o papel dos incentivos e dos mecanismos de monitoramentonas relaes entre burocratas, polticos e cidados. A atuao dos burocra-tas passa a ser compreendida como produto de decises racionais que,por sua vez, decorrem de incentivos disponveis e das expectativas decontrole sobre o cumprimento de objetivos e metas propostas.

    Portanto, a forma de compreender a atuao de burocratas nessaperspectiva se assemelha ao funcionamento dos mercados, marcadospela competio entre agentes que buscam seus interesses e estabele-cem transaes a partir dos incentivos e constrangimentos oferecidos.

    O estudo de Breton e Wintrobe (1986) sobre o funcionamento daburocracia na Alemanha nazista oferece uma ilustrao convincentedesse tipo de argumento.

    Segundo os autores, a burocracia alem era marcada porordenamentos formais ambguos, organizaes com funes sobrepos-tas, linhas de autoridade pouco claras e ordens imprecisas, promoven-do confuses entre jurisdies e duplicao de responsabilidades. Ocomportamento dos burocratas de mdio escalo dificilmente poderiaser compreendido a partir das estruturas e normas formais do regime.No entanto, tal como argumentam os autores, a implementao efetivada soluo final para a questo judaica se deveu a uma dinmica decompetio interna entre dirigentes e burocratas de agncias diversas,que buscavam, isoladamente, avanar o projeto de Hitler, na expectati-va de reconhecimento e lealdade pessoal. Assim, os autores questio-nam a imagem tradicional de uma burocracia impessoal e hierrquica,na qual o comportamento dos burocratas ditado por regras e ordensde superiores, propondo um modelo baseado em competio e trocasinteressadas, envolvendo empreendedorismo e iniciativas voltadas parao avano dos objetivos de seus lderes ou superiores hierrquicos5.

    Diversos estudos sobre organizaes do setor privado tm se de-dicado a compreender justamente o empreendedorismo e a iniciativa

    5 Apesar da natureza totalitria do regime nazista alemo ser um fator impor-tante, especialmente a respeito da busca de lealdade pelos burocratas, argu-mentam que o padro competitivo identificado se aplica a muitos outros casosde burocracias nos setores pblico e privado.

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    criativa dos gerentes de nvel intermedirio, tal como demonstram Kellye Gennard (2007) e Kuratko et al. (2005). Esses ltimos afirmaram que ocomportamento empreendedor dos BMEs se manifesta em um conjun-to de atividades, como endosso, refinamento e cultivo de propostas deao oriundas de seus superiores, alm da identificao, aquisio ealocao dos recursos necessrios para a realizao dessas propostas.Em cada um desses momentos, os BMEs percebem oportunidades deinterferncia e redirecionamento dos processos em funo de seus in-teresses e objetivos na organizao.

    Em suma, a perspectiva da ao individual permite um olhar para osBMEs que destaca seu poder de iniciativa e potencial de empre-endedorismo, em contraponto ao papel passivo sugerido pela perspectivaestrutural. No entanto, ainda falha em compreender a insero dessesburocratas em redes sociais complexas.

    c) Perspectiva relacional

    Uma terceira perspectiva para compreender a atuao de buro-cratas enfatiza as relaes que esses atores estabelecem com os demaisatores do seu entorno.

    Essa perspectiva surgiu nos anos mais recentes, a partir de modelosque buscam compreender o Estado e as polticas pblicas numa tica maisabrangente, considerando que as polticas so marcadas por mltiplasredes de atores internos e externos ao Estado capazes de alterar o dese-nho e os resultados das polticas. Essas novas abordagens, ancoradas nasideias de governana e de redes sociais, buscam compreender o funcio-namento das organizaes estatais, considerando no a estrutura formalou a atuao individual dos agentes, mas, sim, como essas so condiciona-das e alteradas pelas mltiplas interaes com agentes estatais, privadosou sociais que, por meio das relaes sociais, influenciam o Estado.

    Essa abordagem tambm est presente na anlise que algunsautores fazem sobre a atuao dos BMEs. As questes que norteiam aspesquisas buscam compreender, por exemplo, como esses burocratasinteragem com uma rede de atores internos e externos ao Estado; comoinfluenciam e regulam as relaes dos prprios implementadores; como

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    mediam e mobilizam as relaes entre implementao e formulaoetc. Consideram, por fim, que esses burocratas so um elo fundamentalentre as regras e sua aplicao prtica, entre o mundo da poltica e oimplementador que se relaciona com o usurio, entre as mltiplas agn-cias e seus entendimentos para construo de consensos em torno daspolticas pblicas.

    Nessa perspectiva, os BMEs foram interpretados como atores queinterativamente sintetizam e disseminam informaes para os nveissuperiores e inferiores da organizao. Assim, ganham relevncia as res-ponsabilidades cognitivas e comunicacionais desses atores, que, dadasua posio estrutural, esto sempre em interao, agindo entre outrosatores a seu redor, reconciliando as distintas perspectivas do topo e dabase (alm do entorno). Para Kuratko et al. (2005), essas caractersticasdiferenciam os BMEs de outros atores burocrticos e os situam em posi-o privilegiada para a promoo de inovaes.

    Uma das formas de se exercitar uma perspectiva relacional sobreos BMEs envolve perceb-los como parte de grupos, coalizes ou fac-es que compartilham crenas, valores e propostas e que estabelecemdisputas com outros grupos no interior de ou entre organizaes. Assim,suas decises e comportamentos s podem ser compreendidos a partirde sua insero em dinmicas coletivas ou interativas, ou seja, de suarelao com outros atores envolvidos na poltica. Narayanan e Fahey(1982) propuseram analisar esses processos a partir de um modelo decoalizaes temticas, isto , por meio da insero de burocratas emcoalizes e das disputas entre elas. Segundo os autores, as influnciasdessas disputas se manifestam tanto no nvel substantivo quanto nosimblico.

    Analisando o trabalho em cinco diferentes clnicas, Heimer (2013)aponta que, em polticas que so implementadas por mltiplas agncias(o que o autor denomina de processos regulatrios), as organizaesprecisam ser capazes de representar todos os lados tanto demandantesdas polticas, como reguladores delas. Nesses contextos, os burocratastm um papel fundamental de transmitirem informaes para cima epara baixo na cadeia regulatria, alm de traduzirem entre o local e o

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    universal e facilitarem ajustes para o entendimento correto do papel decada uma das organizaes envolvidas no processo. Nesse processo,estabelecem-se constantes prticas de traduo, readaptao,recategorizao das normas para inseri-las no contexto local. Assim, es-sas organizaes funcionam como meio da cadeia e/ou ns regulatrios,ensinando aos subordinados a cooperarem com os reguladores e vice-versa, e quem desempenha esse papel de possibilitar a atuao dasorganizaes so os burocratas intermedirios.

    Nessa mesma lgica, Huising e Silbey (2011) consideram que osburocratas de mdio escalo so os atores responsveis por interagircom seus subordinados e garantir deles complacncia paraimplementao das regras desenhadas por nveis superiores. Para asautoras, o papel desses gestores de governar o gap existente entreas regras e a possibilidade real de aplicao, o que chamam de regularas relaes. Para tanto, gestores exercem diferentes tipos de prticasde governana de gap, que passam por narrao das expectativas exis-tentes, questionamento das regras e prticas, sntese do que apren-dem e elaborao de acomodaes pragmticas que permitam adaptaras regras gerais aos contextos locais. No entanto, consideram que,para uma atuao de sucesso dos BMEs, so necessrias condies,como a existncia de um ator externo que cobre resultados e transpa-rncia, e a garantia de flexibilidade e liberdade para adaptao dasregras portanto, discricionariedade.

    A partir de um survey aplicado a implementadores de um progra-ma social americano, Keiser (2010) chega a concluso semelhante, afir-mando que o papel central dos BMEs de interagirem com os burocratasimplementadores e com outras agncias para regular a interao entreesses vrios atores e direcionar a forma de implementao, construindoconsensos a respeito de valores compartilhados.

    H nessas perspectivas uma ideia central de que o posicionamentointermedirio dos burocratas de mdio escalo confere-lhes a capaci-dade de criar e regular as relaes entre as diversas agncias paralelasou entre as instncias superiores e inferiores da hierarquiaorganizacional. Esse papel faz com que esse burocrata assuma posies

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    estratgicas, no apenas por regular como as relaes se daro, mastambm por ser centralizador de informaes.

    Alexander et al. (2011) chegam a semelhante concluso analisan-do as redes sociais de conselhos e informaes estratgicas de 765 ato-res, entre eles burocratas de mdio e alto escalo, e de polticos em 11municpios australianos. Objetivando compreender com quem os diver-sos segmentos do Estado contatavam para conseguirem conselhos ouinformaes estratgicas, os autores concluem que os BMEs so a maiorfonte desse tipo de informaes, tanto para polticos, como para o altoescalo da burocracia. Alm disso, a pesquisa tambm demonstra queos prprios BMEs procuram outros burocratas de mdio escalo paraconseguirem informaes e conselhos gerando homofilia em suasinteraes6. Embora concluam afirmando que os resultados das pesqui-sas variam entre municpios (o que demonstra que h aspectoscontextuais nas configuraes relacionais), os autores demonstram aposio estratgica que os BMEs assumem e como, portanto, se tornamimportantes para o funcionamento das organizaes pblicas.

    Vale ressaltar que, para essa perspectiva, os BMEs no apenasintermedeiam as relaes, mas realizam prticas que permitem que elas

    6 Conceito utilizado pela anlise de redes sociais, que considera relaes entrepessoas com perfis e caractersticas individuais semelhantes.

    Quadro 2: Principais autores de cada perspectiva

    Fonte: Elaborao prpria.

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    sejam adaptadas e traduzidas aos diversos contextos da interao, talcomo apontado por Vakkuri (2010).

    Nesse sentido, Johansson (2012), analisando gestores deinfraestrutura, conclui que h certos tipos de agentes envolvidos com aimplementao que atuam como gestores de negociao, especialmen-te quando h polticas fragmentadas e que envolvem mltiplosstakeholders. Nesse caso, os gestores desenvolvem mtodos de nego-ciao que permitem s polticas alcanarem efetividade, e essas nego-ciaes dependem de discricionariedade. Certas posies, afirma oautor, requerem que os burocratas se tornem negociadores entrestakeholders, e sua capacidade de negociao com as diferentes agn-cias e interesses que permite poltica ter resultados.

    Com a descrio das trs perspectivas analticas sobre a atuao dosBMEs, torna-se inevitvel a percepo de suas correspondncias com ostrs princpios organizacionais hierarquia, mercado e redes que tmmarcado os debates sobre governana e teorias do Estado. Isso sugereque a anlise da atuao dos BMEs se insere em movimentos maiores deanlise da prpria atuao do Estado e de grandes organizaes. Quantomais a organizao e operao do Estado se complexifica, partindo de umpadro marcado pela predominncia de arranjos hierrquicos para pa-dres que mesclam os princpios do mercado e das redes, mais sofistica-das precisam ser as perspectivas analticas para interpretao da atuaode atores burocrticos. Conforme se percebe ao longo desta reviso daliteratura, as abordagens analticas mais recentes tm procurado introdu-zir um componente relacional-interativo s perspectivas anteriores, limi-tadas s reflexes a partir de estruturas ou da ao individual.

    Os burocratas de mdio escalo em ao: anlises setoriais

    A partir da definio de quem so, onde atuam e quais os olharestericos existentes acerca dos burocratas de mdio escalo, analisamosalguns trabalhos sobre a sua atuao em contextos especficos de polticaspblicas. A anlise a partir de enfoques setoriais bastante parca naliteratura sobre burocracia de mdio escalo encontrada. Assim, para almde compreender como as anlises setoriais se utilizam das discusses

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    tericas apresentadas, apropriando-se (ou no) das mesmas, intenta-mos observar como o BME percebido nos distintos contextosorganizacionais, a partir da premissa de que no apenas diferentes posi-es hierrquicas produzem distintas possibilidades de atuao, mastambm de que distintos campos produzem lgicas e culturasorganizacionais variadas, impactando a atuao desses burocratas, con-forme apontaram Oliveira e Abrucio (2011). Ou seja, o enfoque aqui no dar conta de todas as anlises setoriais, nem esgotar essa literatura,visto, inclusive, que ela bastante incipiente, mas trazer luz algumaspossibilidades de anlises baseadas em setores especficos e suas con-tribuies para a discusso.

    Quanto s reas de polticas pblicas, muitos dos trabalhossetoriais encontrados lidam com a poltica de educao e ambiente es-colar, analisando o papel dos diretores como BMEs que fazem ainterlocuo com os burocratas implementadores, que so aqueles queinteragem diretamente com a populao (chamados na literatura porburocratas de nvel de rua). A diferenciao fundamental entre essesdiretores e os burocratas de nvel de rua est na responsabilidade, dosprimeiros, de gerenciar equipes, definindo a forma como os burocratasque interagem com usurios vo agir. Esse papel dos diretores se reforaainda mais a partir dos processos de descentralizao das polticas soci-ais vivenciados por vrios pases nas ltimas dcadas, que tiveram comoconsequncia a autonomizao de uma srie de servios pblicos. Esseprocesso, observado no caso canadense, transformou as escolas pbli-cas em unidade de prestao de contas (CATTONAR, 2006), sendo respon-svel localmente pelo bom desempenho dos alunos.

    Mais do que zelar pelo bom desempenho dos alunos, Cattonar(2006) lembra- nos, citando Pelage (1998), que, na Frana, o diretor deescola, enquanto chefe do estabelecimento, deve combinar compe-tncias variadas: rigor administrativo e mobilizao dos recursos hu-manos, eficincia gerencial e compromisso com os resultados,responsabilidades e inovao pedaggica (CATTONAR, 2006, p. 188).

    Nesse contexto, um problema percebido como relevante para ocotidiano dos BMEs foi a competio entre as escolas, sobretudo a partir

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    dos ndices padronizados para todo o pas, com aplicao de examesnacionais. Da mesma maneira, tambm na Inglaterra, os diretores pas-saram a ser percebidos como agentes de mudana do ambiente esco-lar, o que difere sobremaneira da realidade dos anos 1980, quando erampercebidos como membros do pessoal docente cuja funo principalera dirigir os outros docentes (CATTONAR, 2006, p.188).

    Mas, salienta Cattonar, h grandes variaes quando observadosos diferentes governos regionais canadenses: enquanto algumas pro-vncias esto mais voltadas para a poltica de resultados, outras estomais atentas necessidade de ampliao da participao dos pais nagesto das escolas. Mais do que isso, a pesquisa mostra que a percepodos diretores, no que se refere ao (novo) papel da escola, difere, tam-bm, (...) de acordo com outras variveis contextuais, como o nvel deensino, o perfil da clientela escolar e a localizao urbana ou rural daescola que dirigem (CATTONAR, 2006, p. 194).

    Assim, a atuao dos BMEs influenciada no apenas pelo seuperfil, relacionado sua formao profissional e histria de vida, mastambm pelo contexto no qual atua e pelas interaes em que se en-contra envolvido, tal como proposto pela perspectiva relacional de an-lise da burocracia.

    No caso brasileiro, o mesmo foi percebido por Santana et al. (2012).Por meio de um questionrio aplicado a 327 diretores de 52 municpios deMinas Gerais, os autores analisaram o nvel de satisfao no trabalho e aqualidade de vida no trabalho, medidos por meio de variveis relaciona-das percepo quanto compensao, se justa e adequada; condiesde sade e segurana no trabalho; equilbrio entre trabalho e vida pessoal;entre outros aspectos. Eles demonstraram que as diferentes regionais deensino apresentam nveis distintos de satisfao dos diretores quanto sua atuao profissional, o que significa que o ambiente no qual osdiretores atuam importa no apenas para o resultado obtido pela escola,mas tambm para o nvel de satisfao da equipe com o trabalho.

    Outro aspecto apontado pelos estudos sobre diretores de escoladiz respeito percepo de que esses burocratas realizam tarefas ml-tiplas, envolvendo administrao pedaggica, prestao de contas,

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    superviso de professores, gesto da ordem interna, gesto de recursose gesto de relaes externas.

    O perfil multifuno dos burocratas de mdio escalo atuantesno ambiente escolar corrobora um dos aspectos salientados por Currie eProcter (2003) no que diz respeito a outra BME especfica, que aquelada rea da sade. Observando trs diferentes hospitais pblicos do Rei-no Unido, os autores demonstram que uma das caractersticas verificadasnos BMEs sua capacidade de lidar com distintas responsabilidades, porum lado, e liderar equipes multidisciplinares, por outro. Assim, direto-res hospitalares (no caso, diretores de especialidades clnicas), tal comodiretores de escolas, lidam com burocracias de nvel de rua de distintasreas e atuaes enfermeiros, tcnicos de laboratrio, nutricionistasetc., no caso dos hospitais; professores, tcnicos administrativos, cozi-nheiros etc., no caso das escolas.

    A capacidade de assumir distintas tarefas e responsabilidades,gerenciando profissionais de diferentes reas, s possvel em funode outra caracterstica da BME descrita por Currie e Procter (2003), que o domnio sobre a dinmica dos servios que gerenciam em funo deum conhecimento tcnico indispensvel para a liderana, somado a umacapacidade de dilogo com os nveis superiores da estrutura institucionalburocrtica, o que envolve, inclusive, uma habilidade poltica, tal comosalientado por Yesilkagit e Thiel (2008).

    Dessa maneira, Pereira e Silva (2011), observando os gestores de trsinstituies federais de educao superior (Ifes) brasileiras, mencionamque h quatro distintas competncias gerenciais requeridas: cognitivas, fun-cionais, comportamentais e polticas. No entanto, nem sempre as compe-tncias exigidas oficialmente para a seleo dos BMEs so aquelas de fatopercebidas pelos burocratas como essenciais para a execuo de suas tare-fas dirias. Esse distanciamento foi percebido por Silva (2011), ao analisar aconstruo da identidade dos diretores de escola sob dois enfoques: luzdo discurso oficial e por meio dos discursos dos diretores.

    Ao analisar os diretores clnicos dos hospitais, os autores apon-tam um fator importante para a compreenso do que pode influenciar aatuao dessa burocracia: algumas corporaes mais coesas, como a dos

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    mdicos, influenciam sobremaneira a BME ao impor seus prprios obje-tivos e percepes. Assim, no caso dos diretores hospitalares, no ape-nas gerenciam mdicos como so, eles prprios, parte da categoria.

    Portanto, apontam para um aspecto importante, sobretudo quan-do salientamos as diferenas entre reas de polticas pblicas, que ofato de que algumas categorias tm maior poder do que outras para seopor aos comandos da BME, quando no so de seu interesse. Almdisso, quando h convergncia entre a categoria da BME e aquela sobseu comando, sendo essa poderosamente autnoma, mais difcil sera implementao de polticas e diretrizes do alto escalo que sejam poreles vistas como contrrias aos seus interesses ou percepes acerca dequal deve ser a sua atuao.

    No entanto, tambm lembram que a prpria BME pode, indepen-dentemente da vontade da burocracia sob seu comando, no seguir oscomandos dos seus superiores hierrquicos, como salientado pelo mo-delo de Floyd e Wooldridge (1992).

    Nesse sentido, enfatizam que muita autonomia para a BME podeser deletria. No caso dos hospitais (assim como boa parte dos serviospblicos), algum grau de autonomia importante para possibilitaradaptaes locais, mas muita autonomia da BME pode gerar grandevariao nos resultados alcanados por servios pblicos similares,conforme demonstraram Oliveira e Abrucio (2011) ao analisarem oshospitais pblicos do Estado de So Paulo. Ademais, com a centralizaodecisria de uma srie de polticas pblicas, processo esse que vemocorrendo em vrias democracias que haviam promovido, nos anos1980 e 1990, intensa descentralizao, acaba-se gerando regulamen-taes governamentais e controles sobre as polticas pblicas paragarantir o alcance de metas e padres de eficincia que demandam adiminuio da autonomia da burocracia atuante no nvel local (CURRIE;PROCTER, 2003, p. 1340).

    Enfim, o que os trabalhos das diferentes reas de polticas pbli-cas demonstraram foi que as caractersticas definidoras dessa burocracia,embora presentes nos distintos setores de atuao, so tambm influ-enciadas pelo contexto no qual as organizaes agem, por um lado, e

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    Burocracia de Mdio Escalo: perfil, trajetria e atuao

    pelas lgicas internas de cada rea de poltica pblica e categorias pro-fissionais que nelas atuam, por outro.

    Consideraes finais

    Definidos como aqueles que interagem tanto com o alto escaloquanto com a burocracia implementadora, detentores de conhecimen-to tcnico para a liderana dessa, bem como de habilidade de dilogotcnico e poltico com a burocracia formuladora, os burocratas de mdioescalo so, portanto, peas-chave do complexo emaranhado deinteraes que envolvem a implementao de polticas pblicas. Dessaforma, o foco na atuao desses agentes e nas relaes que se estabele-cem a partir deles expande nossas capacidades de compreender os pro-cessos de produo de polticas pblicas.

    Apresentar essa perspectiva foi o principal objetivo do presenteartigo, o qual buscou sistematizar e destacar diferentes olhares promo-vidos pela literatura especializada para se refletir sobre os burocratasde mdio escalo. Trs dimenses da atuao desses atores foram ana-lisadas:

    (a) seus papis, funes e lugares;(b) as perspectivas analticas a partir das quais so observados; e(c) a sua atuao nas polticas pblicas setoriais. Em cada uma des-

    sas dimenses, buscou-se retratar a diversidade de abordagens e trata-mentos ao burocrata de mdio escalo e sua atuao e influncia sobreos processos de produo de polticas, como, por exemplo, em compa-raes entre os setores pblico e privado e entre distintas reas de atu-ao do Estado.

    Dois aspectos merecem destaque a partir da reviso bibliogrficaaqui empreendida. Em primeiro lugar, percebeu-se que, da mesma formaque a organizao e a operao do Estado tm se complexificado ao longodo tempo partindo de um padro marcado pela predominncia de arranjoshierrquicos para padres que mesclam os princpios do mercado e dasredes , mais sofisticadas precisam ser as perspectivas analticas parainterpretao da atuao de atores burocrticos. A reviso da literatura

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    Captulo 1 Burocratas de mdio escalo:novos olhares sobre velhos atores da produo de polticas pblicas

    demonstra que as abordagens analticas mais recentes tm procuradointroduzir um componente relacional-interativo s perspectivasanteriores (estrutural e individual-competitiva).

    Em segundo lugar, explicitam-se as ausncias existentes na lite-ratura nacional, no que tange relevncia e centralidade desse ator.Como indicado ao longo do texto, maior ateno aos BMEs nas anlisesdos processos de produo de polticas pblicas oferece ganhos analti-cos e interpretativos importantes. Compreender a atuao dessa buro-cracia especfica nos diferentes contextos e reas de polticas pblicas,sua relao para cima e para baixo e os efeitos dessa atuao para aimplementao (e reformulao) das polticas o desafio que a literaturabrasileira do campo de polticas pblicas ter que enfrentar, com vistasa compreender de maneira mais ampla a complexa rede de relaciona-mentos e interaes que envolvem esses processos.

    Referncias bibliogrficas

    ABERBACH, J. D.; ROCKMAN, B. A. Bureaucrats and politicians: a report on the administrativeelites project. Australian Journal