bulamah_um lugar para os espíritos

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  • 7/25/2019 Bulamah_um Lugar Para Os Espritos

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    cadernos pagu(45),julho-dezembro de2015:79-110.ISSN 1809-4449

    DOSSI: CORPOS, TRAJETRIAS E VALORES: PERSPECTIVAS DE GNERO, FAMLIAS EREPRODUO SOCIAL EM CONTEXTOS AFRICANOS

    http://dx.doi.org/10.1590/18094449201500450079

    Um lugar para os espritos: os sentidos domovimento desde um povoado haitiano*

    Rodrigo Charafeddine Bulamah**

    Resumo

    Este texto prope uma reflexo sobre o protagonismo de espritos

    e outros seres tanto no mbito da sociabilidade, como no papelque tais entidades exercem na construo de conceitos sobre omovimento, o espao e o tempo. Por meio de uma anlise deduas situaes sociais ocorridas em um povoado ao norte doHaiti, busco trazer tona uma sensibilidade poltica e umaprofundidade histrica que envolvem diferentes agncias econstituem uma moralidade e uma cultura poltica prpria aosmoradores da localidade e queles que se movimentam. Oobjetivo contribuir com os estudos sobre migrao e mobilidade,

    chamando a ateno para as formas como os agentes constroemhistoricamente suas prticas e enfrentam situaescontemporneas.

    Palavras-chave:Mobilidade, Espao e tempo, Espritos, Vodou,Haiti.

    * Recebido para publicao em 15 de maio de 2015, aceito em 20 de agosto de2015.

    **Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social,Unicamp, Campinas, SP, [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    A Place for the Spirits: The Meanings of Movement from a Haitian Village

    Abstract

    This article discusses the agency of spirits and other non-humans

    in forms of sociability and in concepts associate to movement,time, and space from a village in the north of Haiti. Drawing froman analysis of two social situations, I seek to through light to apolitical sensibility and a historical depth that are part of the moraland political culture of those living together in the village and thosewho travel. This is an attempt to contribute to migration andmobility studies calling the attention to how agents build theirpractices historically and face contemporary situations.

    Key Words: Mobility, Space and time, Spirits, Vodou, Haiti.

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    Prlogo1

    Histrias e situaes de encontro com espritos so comunsentre moradores do norte do Haiti. Parte importante de umcotidiano atravessado por trocas e pelo movimento de pessoas ecoisas, tais casos revelam o protagonismo de seres que vivemembaixo dgua, habitam rochedos e rvores e interagemdiretamente com humanos. Em uma vizinhana, encontram-sefacilmente oferendas dispostas nas proximidades de rvores ecursos dgua, sinal da manuteno regular de trocas embasadas

    na linguagem da reciprocidade e da afiliao. Em outros casos,adensam-se o carter ritual de tais relaes, criando um momentoprivilegiado de contato e troca entre humanos e espritos.

    Muito se escreveu sobre a histria desses seres e seu lugarna delimitao de uma religio popular nacional e de um conjuntode prticas mgicas (cf. Price-Mars, 2009 [1928]; Mtraux, 1958; J-BRomain, 1959). Para alm dessas observaes, esses espritoscompem uma reflexo poltica e moral sobre o mundo social e o

    movimento contemporneo de haitianos e haitianas queextrapolam as fronteiras nacionais. no trabalho de Jean Price-Mars (2009 [1928]:45) que encontramos uma primeira elaboraodessa proposta ao chamar a ateno para o modo como osespritos vivem em estreita intimidade com os humanos. Maisrecentemente, Karen McCarthy Brown (2001 [1991]) por meio deuma histria de vida de uma sacerdotisa haitiana em Nova Iorque,

    1 A grafia em crioulo haitiano aqui empregada segue a ortografia desenvolvidapelo Institut Pdagoque National (IPN), oficializada pelo governo haitiano em1979. Nos termos em crioulo haitiano utilizados durante o texto, decidi noempregar a partcula -spara marcar a multiplicidade, esperando que aquantidade se faa clara pelo contexto da sentena. Ademais, as tradues dostermos em crioulo e das citaes de artigos cientficos so minhas. Aproveito paraagradecer a Omar Ribeiro Thomaz, orientador desta pesquisa, Ndia Farage,Nashieli Loera, Federico Neiburg, Bela Feldman-Bianco, Marta Jardim, BernardoCurvelano Freire e John Comerford pelas leituras generosas e pelos comentriosvaliosos em diferentes momentos de discusso deste texto. Partilho os

    agradecimentos, mas assumo a responsabilidade sobre equvocos e insistncias.O financiamento desta pesquisa foi garantido pela FAPESP.

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    destacou a importncia dos espritos na vida cotidiana de pessoas

    e comunidades transnacionais. Como mostra a autora, tais seresconstituem-se enquanto caminhos e inspiraes morais para umcotidiano de dificuldades, rupturas e restabelecimentos de vnculose relaes sociais. Tal anlise foi ainda bastante discutida notrabalho de Karen Richman (2005), cuja marca foi a aproximaoinovadora entre os estudos sobre a dispora haitiana e ostrabalhos sobre campesinato. Por meio de uma etnografiarealizada em diferentes contextos e atravs do uso de diferentesmateriais, Richman revelou o modo como elementos e valorestradicionais se relacionam com exigncias e fatorescontemporneos, numa dinmica de reproduo social queatravessa fronteiras nacionais, sistemas polticos e filiaesreligiosas.2

    O que pretendo com este texto propor uma abordagemsobre como pensar os espritos tanto no mbito de sociabilidadesde grupos afro-americanos, quanto no papel que tais espritosexercem na construo de conceitos e reflexes sobre o

    movimento, o espao e o tempo, numa aproximao ao conceitode cronotopo bakhtiniano (Bakhtin, 1981). O esforo est emtrazer tona uma sensibilidade poltica e uma profundidadehistrica que envolvem diferentes agncias e seres e constituemuma moralidade e uma cultura poltica prpria aos moradores dopovoado e queles que se movimentam. Espero, com isso,fornecer novas possibilidades analticas aos estudos sobremigrao e mobilidade, chamando a ateno para as formas

    como os prprios agentes entendem essas prticas em uma chavehistrica e estrutural, cuja matriz contribui para o enfrentamentode situaes contemporneas.

    2 Alm desses textos, tomo como inspirao as elaboraes tericas de doisautores que trabalharam no Caribe, Sidney Mintz (1998) e Michel-Rolph Trouillot(1992), alm do artigo de Omar Ribeiro Thomaz (2013) sobre a noo deaventura entre migrantes moambicanos e o de John Comerford (2014) sobremoralidades e movimento entre deslocamentos entre o rural e o urbano.

    Destaco ainda o importante trabalho de Kate Ramsey (2011) sobre os episdioshistricos de perseguio a prticas rituais populares no Haiti.

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    Esta proposta se constri a partir de um trabalho de campo

    realizado entre janeiro e abril de 2012, no povoado rural deSamson, parte da comuna de Milot, norte do Haiti, cuja marca foium cotidiano de muita conversa, longas caminhadas e umaintensa circulao de objetos, pessoas, seres e assuntos. O que melevou ao norte do Haiti foi um interesse em etnografar relaesfamiliares e compreend-las em sua especificidade local,particularmente em um contexto campons. Por uma dinmicaque se estabeleceu entre mim, pesquisador, e as pessoas quegenerosamente me hospedaram em suas casas, acabei metornando parte de suas vidas, trocando conversas e histrias,recebendo comida, sendo cobrado por trabalho nas roas e porpresentes em ocasies especiais. A partir de um dado momento,minha investigao tornou-se algo compartilhado. Mais do queum desejo ou uma metodologia empregada propositadamente,fazer pesquisa (f rechech) passou a ser algo que meusinterlocutores concebiam como sua prpria atividade, interagindocom as questes que eu buscava e devolvendo-as enquanto um

    questionamento comparativo sobre o lugar de onde eu vinha.Essa participao ativa na pesquisa foi a base para uma

    etnografia que se realizou no s enquanto uma coleo deevidncias, mas por um intenso debate sobre prticas e noesnas quais os espritos demonstravam um protagonismo. Issoimplicou uma busca por trabalhos de tradio antropolgicacentrados nas relaes entre magia e espritos, mas tambm umaelaborao descritiva e analtica particularmente atenta ao modo

    como os atores constroem seu conhecimento e experienciamdinmicas e processos socias.3 Assim, por meio desse esforoconjunto, procurarei discutir aqui as relaes entre os espritos e omovimento de pessoas e coisas. A inteno clara propor formas

    3 A proposta de prestar ateno a agncias individuais pode trazer importantesproblematizaes s perspectivas estruturais, conferindo novos sentidos experincia da viagem, como a prpria noo de aventura pode atestar. Paraessa discusso, ver o trabalho de Thomaz (2013) sobre o papel da deciso

    individual e da aventura nas narrativas sobre o trabalho de moambicanos nasminas sul-africanas em pleno apartheid.

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    de anlise de processos sociais que levem em conta a agncia de

    outros seres, dando uma densidade histrica e analtica aprocessos sociais contemporneos a partir de uma troca deconhecimentos construda localmente, estabelecendo com issouma crtica etnogrfica e poltica s teorias sobre globalizao emigrao.

    Morar e mover-se

    Em Samson, povoado formado por treze grupos domsticos,

    notvel uma grande diversidade na forma como as pessoas semovimentam e uma multiplicidade de elementos em circulao.H gente indo de suas casas s roas, dos mercados ao centrourbano, das igrejas ao cemitrio, da casa de um vizinho casa deum parente. Muitas pessoas seguem acompanhadas de animais,levando o gado caprino ou bovino s pastagens ou cursos dgua,carregando frutas e alimentos em lombos de burros, em motos ouem picapes coloridas e enfeitadas. H tambm crianas circulando

    entre as casas, comida sendo levada de uma casa a outra alm deuma quantidade grande de estrias e causos, ou ti koze, como sediz localmente.

    Cruzar com essas pessoas em trnsito exige uma srie deformas de tratamento, de acordo com as etiquetas locais: Bomdia, parente! (Bonjou, fanmi!), exclama uma senhora, Estamosna luta, comadre! (Nap lite, konme!), responde a segunda, E afamlia [literalmente, suas pessoas]? (E moun yo?) pode aindareplicar a primeira. Essas expresses aproximam pessoas aomesmo tempo em que denotam uma polissemia do prprio termofanmi, que pode ser traduzido como famlia, mas tambmvizinho, compadre, amigo, chegando at mesmo a significaruma humanidade comum.4

    4 Para uma anlise detida da noo de fanmi e sua relao casas e outras

    dinmicas de parentalidade no Haiti, em um povoado ao sul do pas, ver otrabalho de Flvia Dalmaso (2014).

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    Para ser parente (fanmi) no sentido amplo, ou seja, no

    s consanguneo, mas tambm amigo ou vizinho, importante umesforo constante na manuteno de laos de troca eparentalidade, como visitar casas de outras pessoas. Uma visitaimplica sentar-se por um tempo, conversar, contar histrias, ouvire comentar notcias de rdio, levar presentes e comer junto. Anoo de comer junto (manje ansanm) tambm uma categoriasociolgica de classificao de pessoas e grupos: aqueles comquem se come junto so parentes, amigos e vizinhos; aquelescom quem no se come junto so pessoas a serem evitadas,inimigas e suspeitas do uso de feitiaria.

    Aos fluxos de pessoas somam-se os fluxos de comida entreas casas, num cultivo das trocas e numa manuteno de formasamplas de aliana, tais como definida por Webster (2006), quecomportam as relaes de vizinhana, de parentesco e deamizade. Tais dinmicas envolvem no s casamentos, mastambm relaes de compadrio, troca de trabalho e relaesadvindas de prticas de nominao (como os homnimos,

    localmente denominados tokay5), que influem diretamente naconstruo de um espao social conhecido como vwazinaj(vizinhana). Uma vizinhana a soma de grupos domsticos,conhecidos como lakou em crioulo haitiano, que podem serdefinidos como a unidade mnima da vida social.

    Similar aos stios (Candido, 2010), os lakou so pequenascasas organizadas ao redor de um terreiro central, conhecidotambm como lakou, que metonimicamente d nome ao conjunto

    de residncias que o circunda. Um lakou formado pela soma edelimitao de terrenos de cultivo, de pastoreio, espaos de mata(separadas por cercas vivas ou estacas), alm de pequenaspores do terreno destinadas ao servio (svis) a espritos deculto familiar. Os grupos domsticos que constituem umavizinhana so redes de parentes e amigos que esto o tempo

    5 O termo tokay provavelmente um emprstimo lingustico do espanhol tocayo,

    remetendo interessantemente a relaes sociais presentes em partes da fricaAustral. Ver, por exemplo, Webster, 2006.

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    todo sendo feitas e desfeitas, no seguindo um padro de aliana

    ou sucesso, mas respeitando dinmicas de herana e formas dehierarquia geracional. Tal morfologia social aproxima-se dasconfiguraes de casas definidas por Louis H. Marcelin (1999)como espaos morais e econmicos de reproduo social.

    Essa territorialidade no se restringe somente ao espao davizinhana. Todos os treze grupos domsticos (lakou) de Samsonpossuem ao menos uma pessoa vivendo em centros urbanos dopas ou alm das fronteiras nacionais. Essa mobilidade representano s uma possibilidade de ascenso social, mas tambm umaestratgia familiar, j que a sada do espao da famlia permite oestabelecimento de novos fluxos de bens e capital, garantindonovos recursos ao lakou e expandindo espaos relacionais. Ascasas que possuem familiares fora do pas costumam disporfotografias e bens que revelam esse trnsito. Alm disso, umtpico importante da vida social da regio so as conversas sobreos que esto fora e, em reencontros familiares, as experinciasvividas pelos que partiram.

    Migrar, contudo, no representa novidade alguma nocontexto haitiano em geral. Se durante o sculo XIX, o pas atraaimigrantes tanto em razo da constituio progressista quepromovia liberdade e cidadania a qualquer negro que alichegasse, como pelas oportunidades econmicas oferecidas amercadores e investidores capitalistas (cf. Trouillot, 1989), aps aocupao norte-americana (1915-1934) que a situao mudadrasticamente. O xodo rural e a migrao tornaram-se

    gradativamente opes considerveis, assumindo proporesmaiores com a autoproclamao de Franois Duvalier comopresidente vitalcio e a promoo de uma rotineira violncia deEstado, alm do aprofundamento de crises no setor produtivo e deservios, gerando desemprego e inflao. Como destaca FedericoNeiburg (2013: 8),

    [e]sses processos intensificaram-se nos anos 1970 etornaram-se dramticos a partir de 1986, acentuando-se a

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    cada novo golpe de estado, bloqueio econmicointernacional e interveno militar estrangeira.

    Atualmente, nota-se na fala de moradores de Samson refernciasa lugares como Porto-Prncipe, Santo Domingo, Miami, NovaIorque. Tais cidades tornam-se prximas, pois nelas vivemparentes que so parte do grupo domstico.

    Se esses espaos distantes se aproximam da comunidadelocal por meio de conversas e experincias partilhadas, o inversotambm observvel por meio de uma conexo entre pessoa e

    seu grupo. O conceito que marca o pertencimento e localiza umapessoa socialmente a classificao de moun lakou, pessoa dogrupo domstico. Um moun lakou algum ligado por laos deparentesco simbolizados por uma noo especfica de umcompartilhamento do sangue a um grupo domstico especficoque compartilha uma srie de responsabilidades e relaes comparentes, com espritos e com a terra e, mesmo no vivendo emco-residncia com seus familiares, pertence quele lugar (cf.

    Lowenthal, 1987: 152). Nesse sentido, o lakouacompanha a pessoapor onde ela vai e, com essa constante mobilidade, se transforma.O simbolismo dos lugares de origem realiza-se, assim, no

    s enquanto um lugar fixo e imutvel ou um substrato damemria, mas como um processo que age diretamente nasprticas sociais de atores em seu cotidiano de produo de novosespaos. Nesse ponto, novas e velhas localidades soconstantemente reterritorializadas nas aes cotidianas daqueles

    que ficam e daqueles que se movimentam, tanto por meio dacirculao de pessoas e coisas, como pelo entrelaamentobiogrfico de espaos e eventos (Velasco e Gianturco, 2012:117).Contudo, a agncia de outros seres nesses processos sociais tambm central nesses processos.

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    O lugar dos espritos

    Na cosmologia local, os espritos, denominadosjany e lwa,6so entidades prximas que vivem em intimidade com os vivos.Para alguns interlocutores, eles seriam os anjos rebeldes que foramexpulsos do paraso e, por isso, vivem em intimidade com oshumanos. Diferente de figuras como Deus (Bondye), Jesus (Jezi) eo Esprito Santo (Sentespri), marcadas por uma transcendnciaque os coloca distantes dos dramas cotidianos, apesar da noocorrente de que nada foge providncia divina, tal como revela a

    expresso se Deus quiser (si Bondye vle), frequentementeenunciada no vale de Samson.

    Sendo herdados de modo bilateral, mais ou menos como aterra e o sangue, esses seres so de responsabilidade coletiva dogrupo domstico. O termo que define a relao servio (svis)e os espritos que a famlia deve servir (svi) so, em suamaioria, os espritos que foram cultuados por ancestrais. Ou seja,cultuam-se no necessariamente os antepassados, mas os seres

    que os antepassados cultuaram.A lgica da reciprocidade o que orienta as relaes deculto e troca entre humanos e espritos. Isso nos leva ao clebreensaio de Marcel Mauss (1991 [1923-1924]) dedicado s trocasprimitivas. Entre as diversas formas de circulao de ddivas quecriam compromissos e dvidas, o autor nos chama ateno para astrocas entre pessoas e outros seres, tais como os espritos e deuses.

    De fato, [pondera Mauss (1991:167)] so eles osverdadeiros proprietrios das coisas e dos bens do mundo.

    6 O alfabeto crioulo haitiano composto por 14 vogais, entre nasais, no-nasaise semivogais. Entre elas o an ||, o y |j| ou |i| e o w |w|. A pronncia dejany prxima aj-i, em portugus, e, para lwa, o som aproximado o de loa.Janyo termo predominante no norte, podendo encontrar ainda variaes como zanj,sen ou ainda djab (traduzveis como anjo, santo e diabo, este ltimo sendomais empregado por evanglicos, mas no sem passar por uma apropriao dosque cultuam tais espritos). Quanto diferena entrejanye lwa, o primeiro termo

    predominante no norte do pas, enquanto lwa so tidos como, a rigor, espritosmais poderosos, mas que muito dificilmente do as caras em uma cerimnia.

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    com eles que se faz mais necessrio trocar e maisperigoso no trocar. Mas, inversamente, com eles que atroca mais fcil e mais segura.

    Essa observao, feita a partir da anlise de um amplo materialetnogrfico, revela o carter ambguo e poderoso das relaes queenvolvem pessoas, ancestrais e espritos. No contexto afro-americano aqui tratado, essa caracterstica se confirma por umaparticipao ativa desses seres na sociabilidade local e naproduo de espaos e territrios justamente por estarem atrelados

    a princpios hereditrios e por estabelecerem uma conexointersubjetiva com antepassados e vivos.Em geral, jany e lwa apresentam contradies morais que

    ultrapassam divises entre bem e mal, certo e errado. So serescaprichosos e exigentes, mas tambm solidrios e generosos. Seupoder criativo equipara-se ao seu poder destrutivo. Com efeito,tais entidades participam ativamente do mundo manifestandoagncia em relaes e ciclos de ddiva, na forma de aes frente a

    demandas por parte das pessoas e tambm por meio de cobranase pedidos. Nesse ponto est a importncia em haver algum quepossa mediar de modo privilegiado as atividades rituais e asrelaes entre espritos e parentes, prezando por um bom convvioentre as partes, mantendo aberta a possibilidade de demandaquando necessria e realizando a traduo daquilo que exigido.Assim, se as relaes esto em um bom termo, os espritosgarantem felicidade, boa sade e sucesso nas empreitadas doshumanos, tais como uma colheita farta, sorte em uma viagem elucro no comrcio.

    A diviso interna dos espritos faz-se em naes(nanchon), cada uma delas representando um lwa ou jany epossuindo ainda subdivises. A tentativa de catalog-los a marcade estudos clssicos sobre magia e religio popular no Haiti, a quealguns autores denominam vodou (cf. Mtraux, 1958).7Contudo, a

    7 O termo vodou controverso e tem sido alvo de debates sobre sua realextenso semntica e seus usos polticos e identitrios. Em Samson, como em

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    instabilidade desses seres revela uma multiplicidade compsita e

    dinmica que diferencia naes de modo varivel. Isso noimplica necessariamente que no seja possvel dar-lhes nomes ecaracteriz-los: h muitos Ti Jean, muitas Erzurlie,muitos Ogou,muitos Lebga, mas todos so classificveis a partir decaractersticas comuns. De fato, tais entidades apresentam traosantropomrficos e personalizados, possuem vontades,personalidades e gostos especficos.

    Nas cerimnias em homenagem a um jany, comum quedurante o decorrer do dia espritos diferentes tomem posse dofeiticeiro (oungan), ou da feiticeira (manbo), alterando aperformance cerimonial e abrindo novas formas de interao comesses espritos. Alm disso, no s o oungan ou a manbo aserem possudos, mas tambm outros presentes, compondo umamultiplicidade de jany manifestando-se em um mesmo evento.Durante o ritual, seja ele privado ou uma festa da vizinhana,pessoas podem ainda realizar consultas aos espritos, oferecer-lhespresentes e realizar demandas.8

    A variao sugere que haja sempre variabilidade, tanto deacordo com a nao, como na associao hereditria a grupos dedescendncia. Como pondera o antroplogo Gerald Murray,[c]ada famlia, por exemplo, herda suas prprias Erzulies, seusprprios Dambalas e seus prprios Ogouns (1980:301). Tal fato importante quando se observa, em uma cerimnia, o cuidado coma separao da comida para cada nao, as cores especficas a elaassociada a ser portada no leno (mouchwa tt) da pessoa

    possuda e a msica a ser tocada para invocar os espritosdaquele tipo.Jany e lwa podem habitar espaos do mundo dos vivos

    como rochedos, rvores ou mesmo casas expressamente

    outras partes do pas, vodourefere-se particularmente a um conjunto de danasacompanhadas por msicas e tambores. Sobre isso, ver Bulamah, 2013, cap. 3.8 Para uma descrio detalhada desses processos de possesso e rituais dehomenagem em uma localidade rural haitiana, ver o clssico texto de Lowenthal

    (1978). Para uma anlise brilhante j em um contexto diasprico, ver Brown(2001).

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    construdas para esse fim. Esses lugares so denominados reposwa

    e so tidos como espaos de passagem e transio. De fato, osespritos vivem em um lugar referido como Ginen ou embaixodgua (anba dlo).9Esse o local de origem do ancestral mticooriginrio, denominado prenmye mt abitasyon, o primeiromorador/dono do povoado (ou plantation), figura normalmenteassociada ao primeiro escravo que chegou regio. Ele ofundador do grupo de descendncia, um parente apical paramuitas pessoas do povoado que dele herdaram as terras, osangue (san) e tambm os espritos. Ademais, esse ancestral considerado uma pessoa da Ginen (moun Ginen), tal como osjany e lwa. Ginenaqui o termo utilizado para tratar do local deonde vieram os negros que, foradamente desterritorializadosdurante a expanso colonial europeia, povoaram a ilha de SoDomingos e se tornaram, durante todo o sculo XVIII,responsabilizveis pela produo de 60% dos produtos tropicaisque eram chegavam em solo europeu, sobretudo o acar.

    A conexo entre Ginen e frica ancestral pode ser

    explorada enquanto uma expresso espao-temporal cujoconceito de cronotopo de Mikhail Bakhtin (1981) tentou dar conta.Tais espritos, ao se manifestarem, trazem consigo a expresso deum tempo que se adensa e ganha corpo (numa referncia diretaao passado, nesse caso) e de um espao que se torna carregadoe sensvel aos movimentos do tempo, do enredo e da histria(especificamente no mbito performtico dos rituais) (:84). Nisso,um espao ancestral e o passado se atualizam e enchem o

    presente de sentido e possibilidade.A correspondncia entre Ginen e o mundo embaixodgua traz tona ainda uma metfora comum entre aspopulaes afro-americanas: a de um corte ou passagem a partirde uma experincia de trnsito marcada pela travessia de um rio

    9 Guine o termo utilizado durante o perodo colonial francs em refernciaa certas partes de frica. Sobre os diversos usos e a simbologia em torno da

    Ginen no Haiti e possveis eixos analticos, ver Beauvoir & Dominique, 2003 eRichman, 2005. A pronncia de Ginen aproxima-se de Guin, em portugus.

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    ou uma grande poro dgua, cujo grande smbolo a travessia

    atlntica da Passagem do Meio. O retorno a esse lugar de origem o fim da vida, sendo a Gineno destino dos mortos da famlia(lem), se seguidos os devidos preceitos rituais.

    A participao dos espritos na sociabilidade local revela-seento no plano de um movimento que se faz necessrio paramanuteno de um convvio prximo e constante entre pessoas eespritos (cujo pice um ritual funerrio que tem como objetivo aunio em um mesmo espao). Por isso, evita-se a todo custopossveis desagrados e infortnios na relao, dando a essaeconomia os contornos de uma economia moral (Scott, 1976).Nesse sentido, toda troca est atrelada diretamente a noes dedireito, justia e solidariedade que se formaram historicamente.10 nesse ponto que podemos entender tais movimentos eexperincias como assentados ainda em uma memria e em umapercepo do tempo que se estabelecem por uma oposio entreum tempo de movimento e um tempo do parado.Antigamente, havia muita festa, muito mutiro, muita circulao e

    muito movimento; hoje, as pessoas concebem sua vida como maisparada: no h mais mutires, as pessoas se ajudam menos e asfestas no so mais to animadas.

    Um outro ponto importante da sociabilidade local so asmsicas e cnticos entoados durante as cerimnias e rituais ou emmomentos de trabalho coletivo. O tema do movimento marcadamente presente, constituindo um tropo que se realiza emreferncia a caminhos, rotas e superao de barreiras. Numa

    msica gravada durante as celebraes das festas patronais,explicita-se um dilogo com Ogou Fray, tambm denominadoSo Tiago Maior, esprito guerreiro e protagonista daemancipao do pas, no qual se expressa o valor do movimento:

    10Sobre o debate entorno da economia moral e de noes scio-histricas de

    direito, pobreza e justia, ver Thompson, 1998; Scott, 1978; Sigaud, 1996 e,particularmente no Haiti, Thomaz, 2005.

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    Senjak oSe ou ki mennen m isitPran ka mwenAnmweSenjak Maj oM va f yon woutAnn ale av m, SenjakM va f yon wout oOu mt tande tirePiga ou vire gadeAnn ale av mDjab la oSenjak Maj oOgou Fray o

    , So TiagoFoi voc quem me trouxe aquiTome conta de mimHosana, So Tiago MaiorEu vou seguir um caminhoVenha comigo, So TiagoEu vou seguir um caminhoVoc pode escutar tirosMas no pode se virar pra trsVenha comigo,, diabo, So Tiago Maior, Ogou Fray

    interessante notar ainda a aluso Revoluo Haitiana quandose diz que foi Ogou quem me trouxe at aqui, numreconhecimento do papel desse esprito nas guerras deindependncia (1791-1804) e tambm na meno aos tiros ouvidos

    enquanto se segue uma estrada, denotando a emancipao e ocaminho liberdade. Tais temas esto presentes ainda emmsicas protestantes e em pregaes que tratam sobretudo dedisputas religiosas, veiculando imagens que definem outrasreligies como barreiras e impedimentos a um caminho particularde devoo.

    Ora, se os espritos revelam um mundo de intensas (enecessrias) trocas e movimentos, tais experincias no seausentam de uma interao com novas exigncias situacionais,como o caso da converso ao pentecostalismo. Essa conversoresulta na condenao a uma srie de danas e msicas queacompanham os momentos de trabalho coletivo, como o casodo mutiro (konbit), cujo carter festivo foi descrito em etnografiasclssicas como a de Melville J. Herskovits (2007), Rmy Bastien(1951)e Alfred Mtraux (1958). O movimento, como veremos, ocanal de conexo com os espritos. Evit-lo passa ento a ser umanecessidade quando se pretende fazer parte de uma nova religio.

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    Com isso em mente, o caminho que farei agora parte ento

    de duas situaes sociais, no sentido proposto por Max Gluckman(1987), pensando-as enquanto um momento privilegiado para aobservao de conflitos e dinmicas sociais que possam, porventura, estar encobertas em um cotidiano de normalidade. Sodois casos etnogrficos que trazem importantes observaes sobreo comportamento dos jany, sua relao com a famlia e seuprotagonismo em aes no mundo. Comearei pela narrativa deum evento ocorrido em 2004. Os relatos colhidos so demoradores de Samson, um sendo o de Daniel, 23 anos, e suame, Senhora Marie-Rose, mais conhecida como Senhora Andre(nome de casada), uma senhora de 42 anos, em cujo grupodomstico eu vivi; e o outro de Edys, um jovem amigo de 22 anos.Vamos narrativa.

    As vontades de um jany

    Em meados de 2004, uma das famlias da vizinhana de

    Samson tomou a deciso de cortar uma rvore que possuam emum de seus terrenos. Era um carvalho frondoso, com razesprofundas e galhos ultrapassando a copa de outras plantas. Ali,aos ps da rvore, a famlia depositava presentes e oferendas aosespritos, sendo um conhecido altar (badji) do grupo dedescendncia.

    Conta-se que aps a morte de um dos membros mais velhosde um dos grupos domsticos uma feiticeira (manbo) da famlia

    , houve a diminuio gradativa das oferendas e rituais alirealizados. Alm disso, j havia algum tempo que boa parte dosparentes se convertera ao pentecostalismo, passando a frequentara Igreja da F Apostlica de Milot. Esse movimento de conversoimplica sempre uma restrio aos servios realizados emhomenagem a qualquer tipo de ser, pois a igreja associa taisespritos ao demnio (Satan) e o contato com eles pode resultarem sanes aos que frequentam os cultos pentecostais.

    De fato, a maioria dos moradores de Samson frequenta aIgreja da F Apostlica de Milot, uma entre as vrias igrejas

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    pentecostais do centro urbano da regio. A memria local do

    momento de converso varia, alguns se dizem nascidos (ft) naIgreja Apostlica, outros falam de uma mudana recente. Quandoquestionei meus interlocutores sobre o motivo da converso, aresposta no variava muito. Como me confessou uma moradorade Samson, quando um feiticeiro no consegue te ajudar; vocgasta muito dinheiro e nada: nessa hora que voc seconverte.11

    Assim, em 2004, como os rituais em torno da rvore daquelafamlia haviam diminudo o passo e vislumbrando a possibilidadede obter algum dinheiro, a famlia decidiu cortar o carvalho evend-lo. Nesse ponto, as verses colhidas se desencontram: paraSenhora Marie-Rose e Daniel, a deciso foi tomada de modocoletivo, motivada unicamente por um interesse econmicoexplcito; j para Edys, a famlia foi involuntariamente tomada poruma vizyon, uma espcie de deslumbramento frente beleza darvore e possibilidade de lucrar com sua comercializao.

    De todo modo, seja qual for o motivo real, a rvore foi

    cortada mediante a deciso de uma parte dos parentes. Odinheiro dali tirado foi imenso, at as razes foram cerradas, togrande era a rvore!, afirmou Senhora Marie-Rose.12 Avalia-seque a soma total beirou os 2.500 dlares haitianos (cerca de12.500,00 gourdes, a moeda local, ou US$ 312,50), conseguidoscom a venda de placas de madeira para se fazer mveis econstrues, e dos galhos e razes para serem transformados emcarvo. O dinheiro obtido foi ento dividido entre os membros da

    famlia.Com o passar do tempo, infortnios foram acontecendocom uma regularidade tal que a suspeita de ser uma razo mgica

    11 A observao dessa camponesa ecoa algo descrito pelo antroplogo AlfredMtraux em seu trabalho sobre religio e magia no Haiti, para quem a conversoao protestantismo no ocorre em busca de uma religio mais pura ou maisacolhedora, mas motivada por um medo de espritos e a busca por um crculomgico de proteo (Mtraux, 1958:311-317).

    12As citaes que seguem so tambm de Senhora Marie-Rose. Edys apresentouuma verso menos detalhada, mas que compe a narrativa geral.

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    passou a ser um palpite certeiro. Os infortnios eram graves: dois

    parentes, entre os mais dedicados outrora a dar comida ao jany,faleceram e outro comeou a ter uma grave infeco urinria.Sempre que este ltimo ia ao mdico para realizar uma cirurgia,sua presso sangunea atingia nveis elevados, impossibilitandouma interveno. Deram-lhe um cateter e cada vez que elequeria fazer cirurgia, sua presso subia alto.

    Frente suspeita e ineficcia dos mdicos, a famliaresolveu ento consultar uma manbo. A escolhida foi Lina,parente da Senhora Marie-Rose. Durante a consulta oracular(limy), ojanySeverin Py subiu na cabea de Lina e disse quelhe haviam roubado sua casa. Agora, cabia a eles construir umanova casa para o esprito, caso contrrio, ojany faria as razes darvore crescerem por todos seus corpos. A rvore era, naverdade, a moradia do jany Severin Py, um dos espritos que afanmi venerava h geraes. Perdida sua casa, o jany agorabuscava vingana at que sua morada lhe fosse restituda. Almdisso, a rvore correspondia a uma casa de trs andares feita de

    tijolos. Ao final da consulta, Severin Py pediu para a famliarealizar uma cerimnia (seremoni), plena de comida, na qual o

    jany apontaria o local para a construo de sua nova casa.O descontentamento do jany correntemente entendido

    como uma fome do esprito, causada justamente por umanegligncia do grupo de descendncia. Quando cortaram arvore, parentes comearam a morrer ou sofrer enfermidades emepisdios seriados, consequncia da fome dojany. Sua ao se

    resume na frase: O jany comeou a comer as pessoas. Ascerimnias em homenagem a tais entidades so denominadasgenericamente de alimentao do esprito (manje jany) e todaao do esprito que cause aflio s pessoas descrita como umafome cujo efeito a destruio do corpo dos vivos. Comoresume Karen Richman, a alimentao a metfora englobante(2005:157). Nota-se aqui que o simbolismo e a materialidade daalimentao so centrais no s para as relaes entre pessoas,mas tambm para a sociabilidade local como um todo, inclusas asrelaes com os espritos.

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    Assim, durante a cerimnia, realizada nos arredores do local

    onde outrora repousava a rvore, havia comida, bebida e msica,dispostos e organizados de tal modo a tornar esses prazeresdisponveis aojany. A movimentao era tamanha que no houvepessoa em Samson, criana ou adulto, que tivesse ficado em casa.Com o avanar das horas e a manuteno de um nimo entre ospresentes, chegou-se a um estado de calor denominado chofe:uma alterao sensvel que possibilita a manifestao de espritospor meio de possesses e aparies.13

    Como contraponto, em uma cerimnia pentecostal o pastorfrequentemente marca a diferena entre os que esto com Deuse os que esto envolvidos com espritos ou, como se costumaqualificar, com coisas satnicas (bagay satanik). Essa diferena inclusive explicitada numa contraposio entre movimento eestagnao. Em um velrio, por exemplo, comum que o pastorpea conteno das emoes dos presentes, que, tristes, tremem,gritam e, muitas vezes, se jogam ao cho. Efetivamente, a falta deautocontrole e a exaltao so a porta de entrada possesso de

    espritos. Na igreja pentecostal, evita-se ao mximo a criaodesse clima caloroso de excitao e movimento.

    Voltando cerimnia que buscava a reparao pela ofensaaojany, no momento em que o calor foi suficiente, ojany entosurgiu sob a forma de uma cobra: um animal imenso (gwo koulv)e cheio de brincos (zanno). Sua apario foi rpida: agarrandouma garrafa de kola (lquido aromtico utilizado especialmente emtais cerimnias), dirigiu-se a um buraco, apontando assim o local

    onde gostaria de ver sua casa montada. Tal sequncia de atosrepresentou o estado emocional do jany, que, como contam, porter agarrado a garrafa de bebida, demonstrou com isso estarcontente. O suficiente para tranquilizar as pessoas daquelafanmietodos de Samson.

    Em poucos meses, atravs da organizao de mutires(konbit) peridicos, contando com a ajuda dos vizinhos, a casa detijolos estava pronta. A existncia de outros dois andares foi

    13Sobre o chofe, ver tambm Lowenthal, 1978 e Brown (2011:136).

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    negociada em troca de uma diviso da casa em cmodos e da

    manuteno da limpeza do lugar, algo feito at hoje. Em meio atantas casas de taipa em Samson, aquela a nica feita de tijolose o contraste facilmente notado. O terreno onde antes estava arvore tornou-se um espao familiar sagrado e inalienvel(demambre), com rvores crescendo sem a interveno da famliae dos vizinhos, pois ningum ousa trabalhar naquela rea nemfazer dali um local de lazer. Senhora Andre, Daniel e Edysafirmaram ainda que os gastos com a construo da casatotalizaram 2.500 dlares haitianos, a mesma soma adquirida coma venda do carvalho onde morava ojany.

    Compromissos e responsabilidades familiares so herdadossegundo os mesmos princpios que regem as transmisses deheranas como a terra e o sangue, compondo aquilo que sedenomina eritaj (herana). Se a converso religiosa poderepresentar uma tentativa de se retirar do plano de relaes comespritos, ela tambm implica uma ruptura com moralidades ecompromissos prprios ao universo familiar, cujos valores

    representam uma forma de proteo contra perigos humanos esobre-humanos. Assim, como mostra o caso aqui relatado,rupturas no ciclo de compromissos e qualquer atentado contrauma situao dada, no caso, a moradia dojany, pode resultar nodesencadeamento de aes fatais contra os parentes, exigindonovas solues e novos arranjos. A converso religiosa no resultaem uma ruptura ou uma passagem a uma nova condio socialexcluda das relaes prprias famlia. Continua-se ligado aos

    antepassados e aos espritos que eles serviram; continua-se assimenvolvido em uma srie de trocas e compromissos.Um outro caso, ocorrido no seio da famlia de Senhora

    Marie-Rose, pode trazer observaes importantes sobre as aesdos espritos, a intersubjetividade e os modos contemporneos dedar conta de responsabilidades frente a novos arranjos einteresses.

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    Uma parte em Deus, uma parte de servidores

    Na casa de Senhora Marie-Rose, tanto sua famlia quanto ade Senhor Andre, seu marido, so grupos que tradicionalmenteserviram jany. Eles eram grandes servidores, confiou-me certavez Marie-Rose. Ela lembra-se bem dos cultos e da importnciados espritos na histria de sua famlia. Seu pai era um servidor(svite) localmente conhecido, algum que dava grandes festas emhomenagem aos jany; alm dele, seu tio-av era um importanteoungan de Milot e sua irm mais nova desde pequenademonstrava as qualidades de uma manbo. Contudo, nem toda afamlia participava diretamente desses cultos. Senhora Marie-Rosepossua uma madrinha (marenn) que, diferente de outrosparentes, frequentava uma igreja protestante no burgo de Milot.Foi ela mesma quem levou Marie-Rose s suas primeiras incursesaos mercados da regio, ensinando-lhe as diferentes modalidadesde fazer comrcio (f konms), a lidar com o dinheiro, com aclientela (pratik) e com os modos de compra e venda a crdito.14

    Sua madrinha, alm de ajud-la a tornar-se mercadora, foiquem a levou aos primeiros cultos protestantes na IgrejaApostlica de Milot. Ali, Senhora Marie-Rose aprendeu sobre avida e seus percalos, sobre os destinos dos mortos, sobre comoestar prxima a Deus e, sobretudo, como afastar-se de certasresponsabilidades herdadas com relao aos espritos.15Contudo,abster-se das responsabilidades que se herda no algo simples.

    14

    O tema das associaes entre mulheres um dos pontos fortes das pesquisassobre o Caribe, em geral, e o Haiti, em particular. A discusso sobrematrifocalidade feita por Raymond T. Smith um clssico que questiona a fundonoes de desvio e norma no tratamento cientfico das famlias negras. Comopondera Trouillot (1992:25-26) em seu balano sobre os estudos caribenhos, aseu modo, estudos de parentesco no Caribe sempre foram estudos de gnero, esempre insistiram que gnero uma via de mo dupla. Sobre o tema dasconexes entre estudos de gnero e migraes e os novos olhares sobreinterseccionalidades, ver Herrera, 2013.15Ao questionar pessoas sobre se elas serviam jany, uma resposta comum era

    mwen pa ladan(no fao parte disso ou, literalmente, no estou dentro disso),seguida da frase se nan Bondye mwen ye ( em Deus que estou).

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    No incio de 2011, com 15 anos de idade, Milane, filha de

    Senhora Marie-Rose, foi morar com sua marenn na cidade deCabo Haitiano, capital do departamento do norte, a cerca de 18km de Samson. Em troca de pequenos servios domsticosprestados madrinha, ela passou a frequentar uma boa escola.Tudo corria bem at que Milane comeou a ter desmaiosrecorrentes sem uma razo manifesta. Mdicos foram consultadose nenhuma concluso precisa foi alcanada. Sem saber muito oque fazer, a madrinha retornou a afilhada aos cuidados dos pais.

    Senhor Andre e Marie-Rose, por sua vez, levaram Milane Igreja Apostlica de Milot. Ali, tentaram controlar seus desmaiospor meio de rezas e cultos, mas a filha no apresentava melhora ese mostrava resistente a frequentar a igreja. Com a continuidadedos desmaios, Marie-Rose resolveu consultar sua irm manbo.Algum tempo depois da consulta, a manbo veio casa de suairm com a novidade de que Milane havia sido reclamada(reklame). Era desejo dosjany da famlia que ela se tornasse umamanbo. Tal fato explicava os desmaios repentinos: eram

    manifestaes desses espritos. Doravante, a famlia precisariajuntar dinheiro para pagar a iniciao (demach) de Milane, casocontrrio, ela poderia ficar doente, louca ou at morrer.

    Osjany herdados bilateralmente dos ancestrais de Senhor eSenhora Andre eram agora de responsabilidade coletiva do lakou.A eles, o grupo domstico tinha de responder, participando deciclos de oferendas e demandas, ddivas e obrigaes, sendo quea no observncia do culto regular a eles dirigido poderia resultar

    em uma punio aos membros da famlia. A fora dos jany dafamlia supera a deciso individual, ou mesmo coletiva, derompimento com relao a tais laos. A questo passa a ser quemdo grupo de descendncia levar adiante tais responsabilidades.

    Na gerao de Marie-Rose, uma de suas irms havia sidoreclamada e tornou-se uma manbo. Como a continuidade nodeve ser interrompida, cabia tambm gerao seguinte dar contadesses espritos. Mais do que isso, desimplicar-se completamenteno algo totalmente desejado. Se no era a Senhora Marie-Rosea levar frente tais obrigaes, algum entre seus filhos seria

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    escolhido. Marie-Rose me contou essa histria com um tom de

    seriedade e preocupao, que, entretanto, no me parecia traduziradequadamente a complexidade da situao. Ao mesmo tempoem que reclamava do dinheiro a ser gasto com a iniciao da filhae de seu descontrole, ela se esforava para que essa iniciaoseguisse bom curso.

    Milane, mais conhecida como Lolit, seu apelido de infncia(ti non gate), a penltima filha do casal. Senhora Marie-Roseconta que desde pequena ela era a filha menos comportada. Elafaltava escola e pouco ajudava nos afazeres do grupo domstico.Alm disso, ao levar uma bronca, ela caa ao cho inconsciente,assustando a me. Esse comportamento, assim como umarebeldia prematura, conferiram-lhe a qualificao de moun fou,"pessoa louca", alcunha pela qual conhecida no s entreparentes, mas tambm por diversas pessoas da vizinhana e deMilot.

    Durante o tempo que vivi em Samson, a postura de Lolit erade notvel liberdade. Ela ajudava nas tarefas do lakou, mas o fazia

    quando lhe conviesse; ela frequentava a escola, mas se atrasavaou pagava para que um motoqueiro a levasse. Alm disso, seuacesso aos recursos da famlia era facilitado, pois ela tinha depagar os gastos de sua iniciao, a qual inclua o pagamento pelosservios de sua tia manboque a transmitia os segredos (sekr)daquelas prticas, alm de uma srie de oferendas e objetos rituaiscomo comida, bebidas, velas e lenos de cabea (mouchwa tt),cada cor representando um jany especfico, a comear por treze

    espritos. Em razo desses gastos, a relao entre me e filha eraconflituosa e Senhora Andre temia ainda que se no dessedinheiro filha, ela viesse a lhe fazer mal: "O que eu posso fazer?Ela pode me matar se eu no lhe der dinheiro".

    Contudo, essa relao se mostrou gradativamente ambgua.Senhora Andre fornecia o dinheiro e se interessava pelo estgio dainiciao de Lolit. Dado momento, ento, questionei Marie-Rosesobre a vantagem de ter um membro da famlia em contato comosjany. Ela pensou um pouco, e, com um tom de resignao, mas

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    admitindo a importncia do fato, disse: assim a famlia: uma

    parte em Deus, uma parte de servidores.Tal situao atraiu minha ateno para o modo como magiae religio se entrelaam com o parentesco. Acompanhar ainiciao de Lolit me parecia uma oportunidade e tanto. Contudo,meu tempo em campo acabaria antes da previso do fim de seuensinamento. Conversando com Lolit sobre sua iniciao, elasugeriu algumas vezes que o processo seria mais rpido caso elativesse acesso a mais recursos, sugerindo que eu lhe ajudasse naempreitada. Dispus-me ento a contribuir com US$ 40,00, oequivalente a 1600 gourdes. A quantia, contudo, foi insuficientepara antecipar a finalizao do processo.

    Recorrentemente, faz-se uso da magia (maji) comfinalidades diversas. H rituais e magias de proteo a recm-nascidos contra figuras malignas como vampiros e metamorfos (oslougawou). H tambm magias de cura, de proteo s roas eoutras com o objetivo de atrair sorte, prosperidade e amor. Magiascom o intuito claro de fazer o mal (mechanste) so tambm

    comuns e podem ser feitios enviados, como as ekspedisyon,oumagias por contgio, denominadas batri, deixadas no trajetodaquele a quem se objetiva fazer o mal.Nesse sentido, a magia seestrutura enquanto a manipulao de foras que podem serconsideradas benficas (no caso das magias de cura e proteo)ou malficas (mechanste ou maji nwa). Tais potencialidades estodisponveis aos especialistas, denominados manbo (feminino) eoungan ou bk (masculino) que trabalham com magia e

    possuem contato direto comjany e lwa.Autores clssicos como Rmy Bastien (1951), RhodaMtraux (1951)e J.-B. Romain (1959)falaram de uma conjunoentre o responsvel pelos cultos e conexes com os espritos dafamlia e a pessoa mais velha viva do grupo domstico,normalmente uma figura masculina de autoridade. Contudo, essaconjuno sofreu alteraes em razo do avano dopentecostalismo nas ltimas dcadas e de fatores econmicoscomo migraes e presso sobre a terra. Soma-se a isso ainda osmomentos especficos de perseguio a prticas religiosas e

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    culturais, as conhecidas campanhas anti-supersticiosas levadas a

    cabo pelo governo e por autoridades estrangeiras em finais dosculo XIX e durante a dcada de 1940 (cf. Ramsey, 2011).Gradativamente os saberes mgicos e tradicionaisautonomizaram-se do espao familiar, sofrendo umaespecializao notada em diferentes regies do Haiti por autorescomo Murray (1980:302), Richman (2005: cap. 6) e Beauvoir eDominique (2003:185-6).

    Em Samson, o conhecimento sobre magia bastante difusoe rituais mgicos so ainda levados a cabo no interior de umgrupo domstico. Mas isso no implica que no haja umaconcentrao do saber mgico nas mos de especialistas.Ao redorda regio de Samson, h sete templos religiosos e mgicos, as kaybk.16 So nesses lugares onde se realizavam consultasoraculares, denominadas limy, ou rituais e magias de cura, taiscomo chs e banhos de folhas (fy), alm de amarraesamorosas e o envio de feitios a um inimigo.

    Nas kay bkso realizadas tambm festas em homenagem

    a jany especficos, enquanto retribuies pessoais ou coletivas aum pedido realizado, ou ainda como parte de um calendrio defestas. Contudo, manbo e ougan no vivem somente de seutrabalho ritual e mgico. Apesar de receberem retribuies,dinheiro e prestgio pela realizao de curas e outras magias, aatividade mgica , muitas vezes, espordica. Feiticeiros efeiticeiras so camponeses comuns que trabalham nas roas e nosmercados e participam dos ciclos de reciprocidade locais. Apesar

    disso, corrente a noo de que ougane manbopossuem muitodinheiro.No contexto em questo, poderamos ser levados a pensar

    na noo de bem limitado, tal como trabalhada por GeorgeFoster (1965). Segundo o autor, sociedades camponeses possuem

    16Na literatura especializada, predomina o termo ounf para designar taisespaos (Mtraux, 1958; Beauvoir e Dominique, 2003). Em Milot, maiscorrente ouvir a designao kay bk, literalmente casa do feiticeiro, tanto para

    templos dirigidos por uma manbo quanto por um ougan. Sobre essadiferenciao, ver Price-Mars, 2009 [1928]:129.

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    uma ideia de escassez dos recursos que embasa uma viso de

    mundo no qual s se consegue prosperar custa do prejuzo deoutrem. Esse argumento, contudo, enfatiza uma caractersticaprpria noo econmica moderna (e particularmentecapitalista) de que a economia a gesto de recursos limitados.17Se fato que, como concebia um interlocutor, o dinheiro acabouno Haiti, os recursos no so percebidos como finitos e nem oseu acesso. Entre os grupos domsticos, h diferenassocioeconmicas relativas ao acesso terra, capacidadeprodutiva dos membros do grupo domstico e, podemosadicionar, ao fluxo de bens e capital de familiares morando noexterior. Assim, como pequenas unidades produtivas, os lakouesto sujeitos s variaes sazonais, ao mercado, s disputas ealianas locais e s presses do Estado. O que importa, de fato, o respeito a uma economia moral, ou seja, forma como osbens so produzidos, distribudos e trocados ao modo comodiferentes capitais so acumulados por pessoas e seus gruposdomsticos.

    Em Samson, todos sabem da vida de todos: o queproduzem, quantas cabeas de gado possuem, seus ganhos,quantos filhos tm, onde esto e quais lugares, igrejas e mercadosfrequentam. Toda atividade que possa gerar desconfiana evitada e toda forma de ascenso econmica no reconhecidasocialmente gera uma srie de rumores e acusaes. Nessesentido, a manuteno de uma austeridade econmica avertigem dos moradores de Samson e a inveja, fator socialmente

    relevante, um motor de conflitos e disputas. bastante atual aobservao de Rmy Bastien (1951: 44-45), para quem,

    [s]egundo as crenas do campesinato, to fcil esterilizarum terreno, mandar pragas, matar o gado ou as gentes, queresulta menos custoso cultivar a amizade do vizinho do queprovocar seu dio ou avareza.

    17Sobre essa crtica, ver Taussig, 2010: 40-41.

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    Quando se desconfia que a morte ou a doena de algum,

    sobretudo a de um jovem, no foi obra da interveno divina,consultar-se- feiticeiros da famlia e da vizinhana procura depistas para encontrar os culpados. Alis, a morte de um jovemdificilmente pode ser atribuda escolha de Deus (Bondye). Paraum morador de Samson, Bondye quem tira a vida da pessoasegundo um princpio de que nada escapa sua vontade. Porm,h a convico clara de que o ato s foi efetivado por obra damaldade dos homens com o intuito particular de tornar o morto,zumbi. Para os frequentadores da Igreja Apostlica de Milot, taljustificativa encontrada na Bblia, no Salmo 90, versculo 10:

    Os dias da nossa vida chegam a setenta anos, e se alguns,pela sua robustez, chegam a oitenta anos, o orgulho deles canseira e enfado, pois cedo se corta e vamos voando.18

    Encontrados os culpados, a busca por vingana iniciada,privilegiando-se sempre a morte de algum cuja posio estrutural

    na famlia similar quela ocupada pela pessoa assassinada: seera o filho mais velho, morrer o filho mais velho do outro; se eraa filha mais nova, morrer a filha mais nova do outro. As perdas eos sentimentos da advindos devem se equilibrar, sem que umafamlia tenha perdido ou sofrido mais que a outra. Mas, comotoda troca, o equilbrio tende a ser sempre dinmico.

    No foi Senhora Marie-Rose nem Senhor Andre os que sededicaram magia, mas na gerao seguinte ser um de seusfilhos, ou melhor, dois, j que segundo sua irm manboh aindaum outro filho ou filha a ser reclamado(a). A Lolit e esse outrofilho caber o papel de proteger o grupo domstico contrapossveis bruxarias prejudiciais, ekspedisyon ou batri, ou, caso sejapreciso, vingar a morte de algum, sem a necessidade de recorrera um ounganou manbo externos sua famlia (o que resultariaem uma srie de despesas econmicas e possveis sanes por

    18Traduo a partir da Bblia em crioulo haitiano financiada pela SocitBiblique Hatienne(parte da United Bible Societies), publicada em 1985.

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    parte da igreja). Como resumiu Daniel, irmo mais velho e

    assduo frequentador da Igreja Apostlica de Milot, Lolit podeproteger a casa, caso algum envie uma magia ou nos faa algummal.

    Diferente do caso da famlia que cortara a rvore de seuterreno, Lolit garantir a continuidade dos servios aos janyatravs da traduo de exigncias e demandas, mantendo asrelaes e compromissos com os espritos do eritaj, evitandopossveis desarmonias entre pessoas e espritos. Mas no s isso.Lolit , de fato, a pessoa que conecta mais explicitamente osparentes vivos aos seus antepassados, possuindo em si, comoobservou Bastide para o contexto africano, uma parte especficade sua linhagem (1973:38). Ao circularem entre as linhas dedescendncia, os jany influem na composio da pessoa, noimaginrio, na concepo do espao e da histria e trazemconsigo generosidades e exigncias ao mesmo tempo em quereforam a importncia de que as coisas no fiquem paradas, pois preciso que haja trocas (e movimento) entre parentes, vizinhos e

    espritos. Fazer circular e cultivar a troca um valor moral atreladoa tais entidades, e isso deve ser cultivado mesmo face a novoscmbios e novas exigncias. Nesse sentido, possvel entender acoerncia da frase de Senhora Marie-Rose citada acima ( assima famlia: uma parte em Deus, uma parte de servidores),resignada, mas ao mesmo tempo confiante.

    Consideraes finais: um lugar na histria

    As duas situaes aqui descritas revelam o modo como ocotidiano de camponeses e camponesas norte-haitianos constantemente interpelado por agncias de diversas ordens.Enquanto seres da Guin (Ginen), os espritos revelam umaamplitude espao-temporal que compe o imaginrio e oconhecimento dos moradores e moradoras de Samson. Dessemodo, a dimenso local comporta espaos e tempos que vo almde um limite fronteirio ou imediato. Tais agncias chamam nossa

    ateno para um mundo social permeado por relaes que

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    precisam ser levadas em conta quando pensamos os

    intercruzamentos e as diferentes escalas em jogo: o local, oregional, o global; o passado e o presente; mas sobretudo omovimento.

    Assim, os espritos e outros no-humanos, ao participaremde modo ativo da sociabilidade local e transnacional, no nosremetem a um mundo primitivo e autocentrado, mas falam devalores morais, de dimenses polticas e de formas epossibilidades de deslocamento. Valores construdos sob as basesde noes de liberdade e de autonomia formadas por processoshistricos especficos.

    Como em outros contextos ps-coloniais, o lugar daplantation aqui uma questo central. O medo de um retorno aocativeiro, a persistncia do tema da Revoluo em diversosmomentos da vida social (assim como o papel dos espritos nesseseventos) e uma percepo de certas formas de trabalhocontemporneo como anlogas a formas de explorao nopassado (construdas sobretudo pela mediao da figura do

    zumbi) revelam uma historicidade particular e nos convidam acomparaes e aproximaes com outros contextos do prprioCaribe a regies como a Zona da Mata pernambucana. Mas isso j matria para uma outra histria.

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