bruno viveiros - dissertação clube da esquina

Upload: igor-oliveira

Post on 14-Jul-2015

142 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA LINHA DE PESQUISA: HISTRIA E CULTURAS POLTICAS

DISSERTAO DE MESTRADO SOM IMAGINRIO: AMIZADE, VIAGENS E CIDADES NAS CANES DO CLUBE DA ESQUINA.

NOME: BRUNO VIVEIROS MARTINS ORIENTADORA: HELOISA STARLING

BELO HORIZONTE, 31 DE AGOSTO DE 2007.

2

Sumrio..........................................................................................................................Pgina

I. Introduo: F Cega, Faca Amolada..................................................................................03

II. Captulo 1: Journey to dawn: poeira, ventania e movimento nas estradas do tempo ......19

III. Captulo 2: Cano amiga: encontros e despedidas nas esquinas da cidade...................68

IV. Captulo 3: Um gosto de sol: as luzes e sombras da cidade ideal.................................109

V. Consideraes Finais: A chama no tem pavio..............................................................150

VI. Referncias Bibliogrficas............................................................................................154

VII. Referncias Discogrficas...........................................................................................159

3 I. Introduo: F cega, faca amolada.

O trabalho que ora apresentamos aborda a trajetria musical de um grupo de jovens compositores surgido em Belo Horizonte, entre os anos de 1967 e 1981, que passou a ser conhecido como Clube da esquina.1 Essa pesquisa situa-se na linha de histria e culturas polticas, combinando duas matrizes de interpretao e anlise da realidade histrica brasileira: a moderna cano popular e o pensamento republicano. Com esse intuito, foram utilizados os instrumentos metodolgicos da histria das idias para analisar a intertextualidade entre a narrativa musical produzida pelo Clube da esquina e o contexto poltico no qual essa forma de linguagem se fez presente, evidenciando o resgate de certos princpios, idias e valores prprios esfera do interesse pblico como liberdade e amizade. Entre as dcadas de 1960 e 1970, o Brasil viveu um perodo marcado pelo autoritarismo e pela restrio s liberdades democrticas que teve como conseqncia o esvaziamento do debate pblico e o isolamento dos cidados em relao Res pblica, ou seja, a fundao de uma comunidade poltica regida por leis constitucionais com vistas realizao do bem comum.2 Contrapondo-se a essa realidade permeada pela limitao do espao urbano enquanto locus da atuao poltica, o Clube da esquina, por meio de suas canes, interveio no debate pblico da poca tornando manifesta a necessidade de reinveno da cidade. Esta passava a ser pensada alm de sua materialidade, como um organismo vivo que privilegia o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Dessa maneira, os compositores do Clube da esquina foram capazes de formular e divulgarEntre os msicos e compositores que integraram o Clube da esquina participantes nomes como Milton Nascimento, Fernando Brant, Mrcio Borges, Wagner Tiso, Ronaldo Bastos, L Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Tavinho Moura, Murilo Antunes, Nelson ngelo, Novelli, Tavito, Nivaldo Ornelas, Flvio Venturini, Nan Vasconcelos, Paulo Braga, entre outros. 2 CARDOSO, S. Que repblica? Notas sobre a tradio do governo misto, 2000. CARDOSO, S. Por que repblica? (notas sobre o iderio democrtico e republicano), 2004.1

4 uma viso de mundo voltada para a defesa da cidade, entendida como um ambiente arquitetnico de natureza coletiva, fundado no apelo s virtudes cvicas e na afirmao de uma cidadania ativa e soberana.3 Em Belo Horizonte, ganhava destaque o Centro de Estudos Cinematogrficos, o teatro experimental e o teatro universitrio, o Binmio jornal que desenvolvia uma contundente oposio ao regime. Na cidade, tambm havia lugar para o bal de Klauss Vianna, o Grupo Giramundo, o CPC da UNE, com representantes como Affonso Romano de SantAnna entre outros e a livraria Itatiaia, um dos pontos de encontro de intelectuais e artistas. Em se tratando de contestao ditadura militar, a capital mineira contava o com trao rebelde do cartunista Henfil; a atuao do movimento estudantil junto s universidades e escolas secundrias; as aes de organizaes clandestinas, principalmente a AP e a Colina.4 A capital mineira durante as dcadas de 1960 e 1970 foi o cenrio ideal para o encontro entre os personagens que viriam a fazer parte do Clube da esquina e o palco propcio para a gestao da obra produzida por eles. Segundo Fernando Brant: Essa uma cidade de msica, como de poltica e poesia. H um som que vem da histria colonial de Minas, que se junta ao cntico das festas religiosas, que se une aos cantos de trabalho e aos rudos do mundo. Brotam aqui fontes cristalinas em forma de cano. H uma nascente sonora contnua que desponta a cada interiorano que surge no horizonte, a cada jovem que nasce aqui, a cada um que adota a capital como morada. Palavra, melodia e voz se harmonizam e so rios que se alimentam, criaes que convergem para alegrar e explicar a vida.5

3 4

BRANDO. C. A. L. A repblica da arquitetura, 2003. BRANDO. C. A. L. As cidades da cidade, 2006. STARLING, H. Os senhores das Gerais. Os novos inconfidentes e o golpe de 1964, 1986. PIMENTEL, T. V.C. Belo Horizonte ou o estigma da cidade moderna, 1997. CASTRO, M.C.P.S. Longe um lugar que no existe mais. Um estudo sobre as relaes entre comunicao, sociabilidade e poltica, em Belo Horizonte, nos anos 70, 1994. 5 BRANT, F. Lugar de encontro, p.14

5 Nesse perodo, cidade, mesmo com a predominncia de um clima conservador, era tomada por uma forte efervescncia cultural espalhada por teatros, cineclubes, tradicionais bares noturnos da regio central e demais locais de sociabilidade urbana onde a juventude travava contato com o mundo. Os compositores do Clube da esquina, movidos por um mpeto coletivo, no deixaram de acompanhar atentos os sobressaltos que mergulharam o pas democrtico dos primeiros anos da dcada de 1960 em um estado de exceo governado pela ditadura militar at 1984.6 importante ressaltar que o recorte a ser trabalhado nessa pesquisa privilegia a fase de maior atividade e riqueza artstica registrada pelo grupo. Coincidncia ou no, a temporalidade aqui proposta engloba o perodo mais rgido do processo de recrudescimento poltico vivido durante a ditadura militar. Perodo esse que se iniciou com o Ato Institucional N 5, decretado em 1968, e se estendeu at a reabertura do regime,

deflagrada pela campanha da anistia, por volta de 1979. Nesta pesquisa, foi utilizado um corpus documental que se constitui a partir da seleo e coleta de canes que fizeram parte do repertrio do Clube da esquina entre 1967 e 1981. O critrio estabelecido para essa seleo foi a capacidade de tematizar e interpretar o universo urbano correspondente ao contexto histrico em que tais canes foram compostas e veiculadas junto ao pblico, assim como o cotidiano dos indivduos que integraram a vida poltica e social do pas. Para tanto, investigamos termos-chave como, amizade, a narrativa viajante e as cidade ideais, contidos nos olhares desenvolvidos pelo Clube da esquina sobre a cidade e suas ruas, com o intuito de obtermos um maior

6

BORGES, M. Os Sonhos no envelhecem. Histrias do Clube da esquina, 1996.; BORGES, M. O Clube da esquina, 2003. BRANT, F. Lugar de encontro, 2005.

6 entendimento acerca das experincias e prticas polticas referentes ao perodo de estudo proposto. O marco inicial dessa pesquisa nos reporta a 1967, ano de lanamento do disco de estria de Milton Nascimento no mercado fonogrfico. Na gravao desse disco, impulsionada pela repercusso de Travessia, classificada em segundo lugar no II Festival Internacional da Cano daquele ano, esto reunidas as primeiras composies do grupo que tinha Milton Nascimento, Wagner Tiso, Mrcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos entre seus integrantes iniciais. Algumas dessas canes foram compostas ainda entre os anos de 1963 e 1964, momento limiar em que se prenunciavam as transformaes que alteraram os rumos polticos do pas, bem como o cotidiano vivido por esses jovens compositores. 7 Em seus discos seguintes, j com certa respeitabilidade alcanada no cenrio artstico brasileiro, Milton Nascimento, congregou em torno de sua figura, outros compositores e instrumentistas, como Toninho Horta, Nelson ngelo, L Borges, Beto Guedes, Tavinho Moura e Murilo Antunes, os quais, aos poucos, passaram a oferecer sua marca pessoal ao trabalho que vinha sendo realizado.8 Ao longo da dcada de 1970, o Clube da esquina se firmou na cena sonora do pas, criando uma linguagem prpria com o

BORGES, M. Os Sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, 1996. Em 1970, a gravadora EMI-Odeon lanou o disco Som Imaginrio, do grupo homnimo formado por Wagner Tiso, Z Rodriz, Tavito, Fredera e Robertinho Silva. Essa banda acompanhou Milton Nascimento em shows e participou das gravaes dos discos Milton (1970), Milagre dos peixes (1973) e Milagre dos peixes ao vivo (1974). O grupo Som Imaginrio lanou ainda mais dois discos: Som Imaginrio (1971) e A matana do porco (1972). Em 1972, aproveitando a repercusso do trabalho realizado em conjunto no disco Clube da esquina, L Borges lanou seu LP de estria pela mesma gravadora de Milton Nascimento. Nesse ano tambm foi lanado um disco assinado por Nelson ngelo e Joyce. Em 1973, foi lanado, ainda pela gravadora EMI-Odeon, um disco que levou a assinatura de Beto Guedes, Toninho Horta, Novelli e Danilo Caymmi. Em 1975, Beto Guedes dividiu o microfone com Milton Nascimento no compacto Caso voc queira saber / Norwegian Wood.8

7

7 alto grau de elaborao e originalidade, como o caso, por exemplo, do lbum Clube da esquina. Lanado ainda em 1972, esse disco, que primou pela ousadia musical, variedade rtmica e experimentao dentre outros diversos recursos presentes na cano popular, foi reconhecido pela crtica especializada como um marco divisor na produo fonogrfica brasileira do sculo XX. O disco Clube da esquina tambm causou discusses nos escritrios da Odeon. Ao contrrio da foto dos autores, Milton Nascimento e L Borges, a capa, elaborada por Cafi e Ronaldo Bastos, trazia dois meninos sentados beira de uma estrada. Alm disso, os nomes dos dois intrpretes, contra-gosto da gravadora, tambm estavam ausentes. Fato que dificultava ainda mais a identificao e a comercializao do produto.9 A sonoridade resultante da combinao dessas caractersticas foi possibilitada pela participao macia de todos os msicos que integravam o grupo, trao fundamental que acompanhou o Clube da esquina durante toda a sua trajetria. Mostrando-se antenado em relao s diferentes novidades e propenso ao dilogo constante com representantes de outras tendncias da cano popular, o Clube da esquina esteve aberto para novas parcerias que ampliaram ainda mais as fronteiras sonoras divisadas em seu percurso.10 Nos discos produzidos pelo grupo, entre 1967 e 1981, foram gravadas canes de Tom Jobim e Vincius de Moraes, Tito Madi, Dorival Caymmi, Maurcio Tapajs, Cacaso, Jonh Lennon e Paul McCartney, Pablo Milans, Violeta Parra. Nesse perodo, foram registradas tambm parcerias com Ruy Guerra, Caetano Veloso, Chico Buarque e Francis Hime. Alm das participaes de Elis Regina, Mercedes Sosa, Clementina de Jesus, Joyce,

Depoimento de Ronaldo Bastos. In: www.museuclubedaesquina.org.br; BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996. 10 VILELA, I. O disco Clube da esquina I. In: www.museuclubedaesquina.org.br.

9

8 Nana Caymmi, Danilo Caymmi, Gonzaguinha, Luis Ea, Eumir Deodato, Wayne Shorter, Herbie Hancock e Pat Metheny. A partir de 1981, a obra musical do Clube da esquina tornou-se mais homognea. A disposio criativa que guiava seus integrantes na busca por novas formas de experimentao cedeu lugar para a consolidao da carreira individual de cada um. Os discos produzidos por seus componentes j no contavam mais com a energia coletiva e o esprito gregrio, responsveis por grande parte do desenvolvimento artstico e pela originalidade que marcou a trajetria do Clube da esquina durante a dcada de 1970. Ocorre, nesse momento, uma disperso gradual que resultou na perda das caractersticas fundamentais da msica criada pelo grupo.11 Apesar de ocupar um lugar de grande relevncia no cenrio artstico brasileiro, verificamos que a obra deixada pelo Clube da esquina , ainda, um tema pouco explorado pelos pesquisadores que utilizam a cano popular como fonte de pesquisa no campo das cincias humanas. Mesmo atualmente, so poucos os estudos que tratam esse grupo como objeto especfico de anlise para a pesquisa histrica. 12 Ao abordarmos a trajetria do Clube da esquina, pretendemos analisar o sentido histrico alcanado por uma obra artstica construda em meio a um contexto poltico tencionado por conflitos e o esforo de forjar princpios que irmanavam os cidados em torno da criao de um modo de vida comum. O objetivo verificar de que maneira o Clube da esquina, por meio da linguagem musical, vislumbrou novas perspectivas capazes

11 12

BORGES, M. Os Sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, 1996. O nico trabalho acadmico publicado sobre o Clube da esquina o artigo Corao americano; panfletos e canes do Clube da esquina, escrito pela professora Heloisa Starling, em 2004. Na rea dos estudos histricos foram produzidas as seguintes dissertaes de mestrado: GARCIA, L.H. A. Coisas que ficaram muito tempo por dizer. O Clube da Esquina como formao cultural, 2000.; CORRA, L. O. Clube da esquina e Belo Horizonte: romantismo revolucionrio numa cidade de formao ambgua, 2002.

9 de ultrapassar os limites institudos por um governo pouco afeito ao bem pblico e que reduzia a sociabilidade urbana busca de satisfaes prticas e imediatas da vida particular. Em virtude das caractersticas particulares da cano popular brasileira, pensada enquanto uma forma peculiar de narrativa, optamos por estabelecer caminhos transdisciplinares, que tm como eixo metodolgico a integrao entre a cano e o seu contexto histrico. Nosso intuito foi desvendar, atravs da linguagem criada e veiculada pelo Clube da esquina, o vocabulrio poltico com o qual esses compositores visaram debater questes e assuntos prprios esfera pblica de sua poca, em especial, a inveno de novas formas de resistncia e o combate frente ao declnio do exerccio da liberdade.13 Em termos da imaginao republicana, existente principalmente em Minas Gerais, desde o final do sculo XVIII, essa dimenso simblica foi capaz de produzir efeitos, atravs dos quais alguns temas e interesses prprios ao seu cnone anglo-saxnico constituram um legado de idias, princpios e valores que, em momentos de real ameaa vida poltica do pas, retomado por certos personagens histricos com o intuito de preservar valores inaugurais e leis fundamentais.14 Idias essas que circulam em torno da fundao de uma comunidade poltica; do perigo em relao ao esvaziamento da esfera pblica; da constituio de formas de resistncia ao autoritarismo; da prtica de uma cultura cvica; do exerccio da liberdade enquanto um direito poltico. Um legado disposio dos compositores populares que revisitam a memria coletiva e resgatam no imaginrio popular esse imenso e dissimulado repositrio de valores esquecidos possibilidades de ao que ajudam a moldar e delimitar suas linhas de13

SKINNER, Q. Signicado y comprensin em la histria de las ideas, 2000; PALLARES-BURKE, M.L.G. Quentin Skinner, 2000. 14 Sobre a utopia americana das Minas do ferro e do ouro e a tradio do republicanismo em Minas Gerais ver: CARVALHO, J. M. Minas e as utopias ou as utopias de Minas, 1993; CARVALHO, J. M. Ouro, terra e ferro. Vozes de Minas, 2005; STARLING, H. Visionrios: a imaginao republicana nas Minas setecentistas, 2003.

10 pensamento. No entanto, os compositores, autnticos pensadores da poltica e da histria do pas, no adotam princpios alheios, petrificados pelo tempo ou prprios de um mundo perdido. Em suas canes, eles revelam uma leitura perdida de um valor comum quele mundo desaparecido que encontra lugar tambm no presente.15 De fato, prprio ao compositor popular essa mania atrevida de querer se intrometer nos assuntos da poltica para demonstrar aos brasileiros que seu conhecimento advindo do cotidiano onde as relaes privadas se sobrepe esfera pblica e a fora da oralidade predominante em relao palavra escrita tambm tem algo a dizer, ou melhor, a cantar. Um canto que conjuga verso e melodia direcionados criao de um saber til e relevante disposio daqueles que querem saber notcias do Brasil, ou mesmo ouvir histrias de tempos passados, quando figuram muitas vezes projetos inacabados, oportunidades perdidas, possibilidades desfeitas, aes espetaculares e sonhos inconclusos.16 Dessa maneira, os compositores populares, de gerao em gerao, vm construindo um modo peculiar de se pensar o Brasil, em funo de um saber poticomusical que expe o pas ao conhecimento do povo. Nos termos postulados por Jos Miguel Wisnik, atravs dessa agudeza intelectual, os compositores populares constituram, no pas, uma nova forma de gaia cincia, que durante o sculo XX, alcanou um lugar privilegiado na vida cultural brasileira.17 Equilibrando-se na linha tnue que divide a esfera privada do mundo pblico, o compositor possui, em suas mos, as condies necessrias para a integrao de pblicos

SKINNER, Q. A liberdade antes do liberalismo, 1999. STARLING, H. M. M, EISENBERG, J. CAVALCANTE, B. (org.) Decantando a Repblica: inventrio histrico e poltico da cano popular moderna brasileira, 2004. 17 WISNIK, J. M. A gaia cincia Literatura e msica popular no Brasil, 1995.16

15

11 diversos em torno da formao de consenso, no que diz respeito aos mais variados temas e assuntos da vida coletiva. Num pas historicamente marcado pelos particularismos, a ampliao do debate pblico seria um dos fatores fundamentais para a construo de referncias comuns vlidas para todos os integrantes de uma mesma comunidade. A moderna cano popular brasileira nasceu concomitantemente instituio do regime republicano no pas, em fins do sculo XIX. Durante mais de cem anos, os compositores brasileiros acostumaram-se a captar transformaes do cotidiano urbano em suas mais variadas feies atravs de instantes lricos e versos contumazes. 18 Nessa relao intrnseca que se desenvolve, desde longa data, os compositores vm fornecendo ao pas um extenso vocabulrio atravs do qual o crculo de intrpretes do Brasil vem sendo alargado. Em seus questionamentos, eles interpelam a sociedade acerca de temas como: a presena ou ausncia das virtudes cvicas associadas ao comportamento dos cidados; as diferentes leituras que integram as matrizes de interpretao da nao; o potencial utpico de projetos polticos que vinculam uma maior participao popular nos assuntos da poltica nacional; as estratgias de sobrevivncia praticadas por personagens sociais entre o exerccio da cidadania e a excluso social.19 A diversificao dos estudos relacionados ao objeto cano popular trouxe uma complexa recuperao dessa forma de linguagem e sua utilizao direcionada expresso e interpretao do passado. Desde a dcada de 1980, o emprego da cano popular como fonte primria de estudos historiogrficos vem interessando cada vez mais os pesquisadores preocupados em renovar e incorporar novas fontes para interpretaes e anlises da realidade brasileira. Esse interesse fomentou uma produo acadmica j consolidada, na18 19

CARVALHO, M. A. R. O samba, a opinio e outras bossas... na construo republicana do Brasil, 2004. STARLING, H. M. M, EISENBERG, J. CAVALCANTE, B. (org.) Decantando a Repblica: inventrio histrico e poltico da cano popular moderna brasileira, 2004.

12 qual a cano sistematicamente utilizada como um corpus documental, capaz de abranger reconstrues da imaginao social, histrica e poltica do pas em suas mais diversas temporalidades.20 Nesse cenrio, tem sido fundamental o tratamento dado pela Histria Social e Cultural em se tratando da abordagem da cano popular como material documental que amplia a diversificao de novos enfoques, tais como: o cotidiano urbano das grandes cidades; o modo de vida das pessoas comuns; os espaos simblicos pertencentes ao universo cultural das sociedades; a presena popular em ritos de celebrao e carnavalizao da sociedade; a imaginao coletiva em torno de conflitos e tenses sociais.21 Os estudos que tm por base a cano popular brasileira constituem tambm um outro recente conjunto bibliogrfico dedicado Histria do Tempo Presente, em que a anlise das canes deriva de conceitos relativos s culturas polticas e seus possveis dilogos com a sociologia e a antropologia. Esses estudos se desenvolvem a partir de uma perspectiva que relaciona produo musical, engajamento poltico e resistncia cultural em meio ao estado de exceo poltica institudo, no Brasil, pelo golpe militar de 1964.22 Contudo, diante de uma fonte documental to rica e diversificada, foi necessrio traar um conjunto de procedimentos metodolgicos que visou abordar, com a devida profundidade, a explorao e anlise desse material.Sobre esse assunto ver:; VELLOSO, M. Mrio Lago: boemia e poltica, 1997; BARROS, O. Custdio Mesquita: um compositor romntico no tempo de Vargas (1930-45), 2001; LENHARO, A. Cantores do rdio: a trajetria de Nora Ney e Jorge Goulart e o meio artstico de seu tempo, 1995. 21 Ver, por exemplo: MORAES, J. G. V. de. Metrpole em sinfonia: histria, cultura e msica popular na So Paulo dos anos 30, 2000; CALDAS, W. Luz e nen: cano e cultura na cidade, 1995.; AVANCINI, M. Marlene e Emilinha nas ondas do rdio: padres de vida e formas de sensibilidade no Brasil, 1990; MATOS, M. I. Melodia e sintonia em Lupiscnio Rodrigues, 1999. CUNHA, M. C. P. Ecos da folia, 2001; AUGRAS, M. O Brasil do samba enredo, 1998. TINHORO, J. R. Histria social da msica popular brasileira, 1998. 22 Ver, por exemplo: CONTIER, A. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na cano de protesto, 1998; SILVA, F. C. T. da. Da bossa-nova tropiclia: as canes utpicas, 2003; NAPOLITANO, M. Seguindo a cano: engajamento poltico e indstria cultural na MPB (1959-1969), 2001; RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro: artistas da revoluo, do CPC era da tv, 2000; ARAUJO, P. C. Eu no sou cachorro no: msica popular cafona e ditadura militar, 2002.20

13 Em primeiro lugar, estabelecemos uma abordagem especfica de interpretao histrica capaz de preservar uma estrutura artstica que se notabiliza pela integrao de um conjunto harmnico que agrega aspectos indissolveis, como melodia, letra, arranjo instrumental, performance cnica e interpretao musical. Nessa perspectiva, se faz necessrio analisar a cano em todo o seu conjunto, tendo-se em mente que cada um de seus elementos acima referidos contribuem para a compreenso do propsito do compositor, ao escolher entre um ou outro procedimento sonoro.23 Segundo Luiz Tatit, o cancionista brasileiro compositores, cantores e arranjadores , na busca por cativar a confiana do ouvinte, utiliza suas habilidades com o intuito de conquistar um equilbrio permanente entre texto e melodia, caracterstica prpria da estrutura dialgica presente na narrativa musical. Atravs da gestualidade oral, o cancionista atua como uma espcie de malabarista na tentativa de manobrar, simultaneamente, articulaes lingsticas e continuidades meldicas, traduzidas em forma de cano popular. Dessa maneira, a palavra cantada revestida por acordes, harmonias e o timbre do cantor se distancia da palavra falada, assim como da palavra escrita. A dico do cancionista seria um fator essencial para a compreenso da linguagem musical. A esse respeito, Luiz Tatit afirma que, em muitos casos, a maneira de dizer do cancionista se sobressai ao que foi dito, ou melhor, ao que cantado, uma vez que a sua maneira particular de transmitir idias e experincias pode ser fisgada pelo ouvinte por meio da melodia.24

23

Ver, por exemplo: WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra histria das msicas, 2001; NAVES, S. C. O violo azul: modernismo e msica popular, 1998; HOBSBAWM, E. J. Histria social do Jazz, 1990. 24 TATIT, Luiz. O cancionista. Composio de canes no Brasil, 2002.

14 Sobre a relao entre a cano popular e a poltica, Jos Miguel Wisnik lembra que a msica sempre suspeita.25 Em outras palavras, a cano exprime seus contedos atravs de uma linguagem cifrada, mantendo com a poltica um vnculo pouco perceptvel, porm, bastante operante. Na avaliao do autor, um ouvinte mais desavisado pode ser facilmente trado por uma cano, pois os versos presentes em sua letra podem ter seu sentido subvertido de forma sutil, por meio de tramas meldicas, a harmonia do som ou atravs de uma leve quebra em seu ritmo. Voltando tradio grega, Wisnik afirma que a cano brasileira possui um ethos, ou seja: O seu carter, um certo padro de sentido afinado segundo um uso, e que fazia com que algumas melodias fossem guerreiras, outras sensuais, outras relaxantes e assim por diante. Na teoria musical que nos chegou dos gregos, o ethos estaria ligado melodia musical, embora nada nos impea de pensar o ritmo como parmetro decisivo de definio de uma msica.26 Ainda sobre as estruturas internas da linguagem musical, Marcos Napolitano nos aponta a necessidade da anlise de seus cdigos de funcionamento tcnico-estticos, concomitantemente ao contedo narrativo que se insinua nas fontes musicais. Em se tratando dos procedimentos de pesquisa das fontes fonogrficas, o historiador deve cotejar os elementos constitutivos da cano com seu contexto extramusical, que inclui: dados da biografia dos compositores, cantores e msicos; ficha tcnica dos fonogramas; crticas musicais e textos explicativos dos prprios artistas envolvidos; dados de consumo da cano; o trabalho dos tcnicos e produtores.27 Sobre a coleta e anlise das fontes fonogrficas, Napolitano nos adverte que os sentidos histricos alcanados por uma pea musical construdo em um tempo e espao25

Essa afirmativa pertence a um dos personagens criados por Thomas Mann em A montanha mgica. Ver: WISNIK, J. M. Algumas questes de msica e poltica no Brasil, 1987. p.115. 26 WISNIK, J. M. Algumas questes de msica e poltica no Brasil, 1987. p.117. 27 NAPOLITANO, M. Fontes audiovisuais. A histria depois do papel, 2005.

15 determinados. Ou seja, as vrias regravaes de uma cano, por mais que coexistam em uma mesma poca, acarretam, cada uma delas, em implicaes culturais, ideolgicas e estticas diversas, as quais por sua vez, correspondem s especificidades criadas por suas diferentes interpretaes. Visando no incorrer em possveis erros de anlise histrica, a regra bsica proposta pelo autor obedecer rigorosamente os marcos cronolgicos delimitados pela pesquisa. Para o exame acurado de uma cano, preciso, portanto, ir diretamente gravao contempornea ao perodo histrico proposto, bem como interpretao do cantor ou grupo selecionado pela pesquisa. Nesse sentido, a performance ou o ato performtico do intrprete, no caso da cano popular, seria tambm um elemento responsvel pelo resultado geral da obra musical. 28 A linguagem musical se estabelece, portanto, atravs de nveis de comunicao difusa, devido multiplicidade de interpretaes e diversidade de significados atribudos transmisso de seu contedo. Para Arnaldo Contier, o acesso a esse discurso de natureza simblica, criado pelo compositor popular, pode ser alcanando ao estabelecermos uma relao de intertextualidade entre a cano e seu contexto scio-histrico, com o intuito de conhecermos o universo polissmico que favoreceu tanto a sua criao quanto sua insero em uma determinada poca e lugar. Na perspectiva do autor, a maneira com a qual o compositor se insere na cena artstica, como agente social e personagem histrico, a opinio da crtica especializada e a formao de um pblico especfico constituem a base de reflexo para a anlise da obra musical e o sentido histrico alcanado pela mesma.29

28

NAPOLITANO, M. Fontes audiovisuais. A histria depois do papel, 2005. NAPOLITANO, M. Histria & Msica, 2002. 29 CONTIER, A. D. Msica e Histria, 1985; CONTIER, A. D. Msica no Brasil: Histria e interdisciplinaridade. Algumas interpretaes (1926-80), 1993.

16 Nesse ponto, o livro de memrias Os sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, escrito por Mrcio Borges, integrante do Clube da esquina desde a primeira hora, se constitui como um valioso auxlio, na medida em que o autor reconstri a histria do grupo, contemplando a sua origem e formao at o seu pleno estabelecimento no cenrio artstico nacional. A partir dessa reconstruo, nos ser possvel reconstituir um conjunto de experincias sociais, referncias culturais e valores polticos que colaboraram com a constituio do esprito coletivo e o carter associativo que marcou a obra musical do Clube da esquina.30 Sobre as potencialidades mltiplas da memria e a capacidade de Mrcio Borges trazer tona as reminiscncias de um tempo passado, por meio de seu relato escrito, Luclia de Almeida Neves afirma que: As memrias individuais de Mrcio Borges, traduzidas em palavras (...) transmudam-se em elementos que contribuem para uma melhor compreenso da histria contempornea de Belo Horizonte e do Brasil. Isso porque suas lembranas particulares so, simultaneamente, revelaes de memrias coletivas. Dessa forma, o relato individual do autor tem como ponto de partida diferentes quadros sociais, ou seja, a vida cotidiana da comunidade belorizontina nos anos sessenta e a insero nesse cotidiano de jovens de classe mdia, tomados por um forte impulso gregrio e por um marcante desejo de mudar o mundo.31 Para uma melhor avaliao das informaes contidas no relato registrado por Mrcio Borges, realizamos um cotejamento das mesmas a partir do confronto com outros relatos deixados pelos demais componentes do grupo em forma de entrevistas, que se encontram disponveis no Museu do Clube da esquina. O segundo aspecto dessa abordagem metodolgica foi dotar a cano de historicidade. Ou seja, consideramos que cada cano um texto a ser analisado dentro de seu prprio mundo intelectual e poltico. Um texto que fornece ao historiador os30 31

BORGES, M. Os Sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, 1996. NEVES, L. A. Resenha. Os sonhos no envelhecem, 1997.

17 substratos para a compreenso da gramtica da linguagem poltica utilizada pelo compositor, assim como a maneira com a qual ele quis participar do debate pblico de sua poca. A partir da leitura interpretativa dessa cano-texto, possvel desvendar quais foram os princpios normativos que orientaram os compositores durante a trajetria artstica e histrica do Clube da esquina.32 Para Quentin Skinner, ao investigar certas convenes lingsticas, crenas e prticas prprias aos atores concretos que respondem s questes imediatas de um tempo especfico, o historiador deve procurar identificar os contextos que do sentido ao texto. Somente dessa maneira seria possvel descobrir o que o autor pretendeu fazer com o que disse.33 Nesse sentido, procuramos entender a obra do Clube da esquina como um conjunto de atos lingsticos, tipo de interveno no debate pblico que reagem s exigncias especficas do momento histrico e que, portanto, no podem ser entendidos ao serem isolados das circunstancias em que surgiram.34 Seguindo os pressupostos de Skinner, toda cano carregaria, em si, o contexto intelectual e poltico em que ela se fez presente e que confere mesma um significado particular. Os argumentos e estratgias que caracterizam o tipo de interveno arquitetada por seu autor para incidir em uma determinada realidade histrica so, contudo, determinantes para a compreenso do seu discurso. Atravs da anlise dos atos lingsticos empreendidos pelo Clube da esquina, foi possvel identificar qual a viso de

32 33

SKINNER, Q. Signicado y comprensin em la histria de las ideas, 2000. PALLARES-BURKE, M.L.G. Quentin Skinner, 2000. 34 SKINNER, Q. Signicado y comprensin em la histria de las ideas, 2000; PALLARES-BURKE, M.L.G. Quentin Skinner, 2000.

18 mundo que esse grupo construiu e compartilhou com o mundo pblico durante o regime militar.35 Contra os riscos e ameaas que amedrontaram o pas durante as dcadas de 1960 1970, os compositores se lanaram necessidade de projetar uma nova maneira de agir e pensar as relaes polticas, baseada na amizade enquanto dimenso da convivncia humana onde h boa educao, leis justas e cidados virtuosos36. A cidade, por sua vez, sob o ngulo de viso desses compositores, passou a ser no somente o ponto de partida para suas viagens imaginrias em busca de uma vida melhor, como tambm o lugar prprio de realizao de seus sonhos e fantasias.

SKINNER, Q. A liberdade antes do liberalismo, 1999. SKINNER, Q. Signicado y comprensin em la histria de las ideas, 2000. 36 MATOS, O. Ethos e amizade: a morada do homem, 2001.p.63.

35

19 II. Captulo 1: Journey to dawn: poeira, ventania e movimento nas estradas do tempo.

Em 1987, Milton Nascimento e Fernando Brant celebraram os vintes anos percorridos desde os primeiros passos de sua Travessia musical, utilizando um velho artifcio sempre recorrente nas canes do Clube da esquina: a narrativa viajante. Nesse ano, os compositores voltam ao passado e recolhem, no tempo, vestgios da cano que inaugurou a trajetria de uma das mais fecundas parcerias da histria da msica popular no Brasil. Em 1967, Milton Nascimento ofereceu a Fernando Brant uma melodia e um tema: a vida de um caixeiro-viajante em meio a estradas e cidades, sonhos e caminhos. Passada a recusa inicial, visto que, o ento estudante nem se quer se imaginava como o compositor que viria a ser a partir daquele momento, Fernando Brant escreveu os versos de O vendedor de sonhos, porm sem tratar diretamente do tema que lhe foi sugerido. Dessa forma, a alternativa foi trocar o ttulo da cano. Sua primeira parceria com Milton Nascimento passava a se chamar, ento, Travessia, ltima palavra escrita por Joo Guimares Rosa em Grande Serto: Veredas. A idia do caixeiro-viajante ficaria guardada por duas dcadas, at que, em 1987, ela foi visitada novamente pela dupla.37 Nessa nova cano, eles ensaiam, de maneira prpria e particular, uma autodefinio do ofcio do compositor popular que marcou no somente a carreira de ambos, mas tambm a trajetria do prprio Clube da esquina:Vendedor de sonhos Tenho a profisso viajante De caixeiro que traz na bagagem Repertrio de vida e canes E de esperana37

Depoimento de Fernando Brant. In: www.museuclubedaesquina.org.br; BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996; DOLORES, M. Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2006.

20Mais teimoso que uma criana38

Na narrativa, os compositores realizam uma aproximao entre a arte de compor canes e o caminhar de um viajante que, percorrendo as estradas, transmite aos lugares por onde passa, um conhecimento prtico que provm de sua experincia de vida. O vendedor de sonhos interpretada por Milton Nascimento em companhia de Paul Simon. A

participao do cantor ingls importante, pois ao cantar a letra em portugus, ele no esconde o sotaque prprio da sua lngua de origem, emprestando ao narrador da cano uma voz que chega de longe, de terras estrangeiras. O estrangeiro seria aquele que ao chegar a alguma regio onde nunca havia pisado capaz de enxergar o que a maioria das pessoas que pertencem a esse lugar no capaz de perceber. A visada lanada pelo narrador que vem de fora das fronteiras locais resgata, atravs do primeiro olhar, os significados originais de uma cidade, trazendo tona antigas memrias, alm de registrar a banalidade de seu cotidiano por meio de flashes instantneos da contemporaneidade. Esse olhar repleto de frescor, inocncia e encantamento seria uma caracterstica que a criana tambm guarda em seus olhos.39 O estilo de vida desse viajante est impresso em sua narrativa. Seu interesse transformar as experincias vividas ou presenciadas em um contedo transmissvel. Dessa maneira, ele poder conservar, para alm da memria de um fato narrado, os elos sociais existentes entre as geraes.40 Continuando sua narrativa, viajante oscila entre rememoraes e sua prpria imaginao.Frases eu invento Elas voam sem rumo no vento Procurando lugar e momento38 39

NASCIMENTO, M.; SIMON, P. O vendedor de sonhos. M. Nascimento; F. Brant. In: Yauaret, 1987. PEIXOTO, N. B. O olhar do estrangeiro, 1995. MATOS, O. Espao e tempo: a cidade e a narrativa viajante, 1997. 40 BENJAMIN, W. O narrador, 1985.

21Onde algum tambm queira cant-las41

Na cano, alm de seu repertrio de vida, o narrador revela um estar-no-mundo transpassado pela traduo do vivido e do sonhado em uma matria narrativa capaz de estruturar, atravs de idias e experincias, uma memria. Porm, essa memria construda a partir de desvios e digresses, com os quais o Clube da esquina amarra suas canes numa rede interligada por histrias em que se renem acidentes e aventuras sem uma ordem ou seqncia estabelecida.42Vendo os meus sonhos E em troca da f ambulante Quero ter no final da viagem Um caminho de pedra feliz43

O dirio de viagens desses compositores parece mesmo no conter rotas regulares, paisagens homogneas ou limites a serem respeitados. Ele feito, sobretudo, por sonhos de p, poeira, ventania e movimento. Percorrendo caminhos desiguais, essa viagem se torna perigosa, inacabada e, por vezes, contraditria. Enquanto viajantes, as dobras da distncia no inibem esses compositores. Seus olhos no se assustam com tamanho estranhamento, mas, pelo contrrio, retira dessa experincia um rico conhecimento, em permanente transformao.44 Nas canes do Clube da esquina, o que narrador viajante tem em seus ps p de nuvens nos sapatos45. Sua vida se confunde com os caminhos j percorridos. Segundo L e Mrcio Borges, somente a estrada capaz de dizer tudo o que esse viajante poderia ser.Com sol e chuva Voc sonhava que ia ser melhor depois Voc queria ser o grande heri das estradas41 42

NASCIMENTO, M.; SIMON, P. O vendedor de sonhos. M. Nascimento; F. Brant. In: Yauaret, 1987. CARDOSO. O olhar do viajante (do etngrafo), 1995. 43 NASCIMENTO, M.; SIMON, P. O vendedor de sonhos. M. Nascimento; F. Brant. In: Yauaret, 1987. 44 BENJAMIN, W. O narrador, 1985. 45 NASCIMENTO, M. Pablo. M. Nascimento; R. Bastos. In: Milagre dos peixes, 1973.

22Tudo que voc podia ser46

Perdidos no vai e vem de lugares e pessoas, o receio do narrador viajante, mesmo depois de tantos anos, parar de caminhar. Sempre com o p na estrada, ele descansa apenas quando encontram algum a fim de estar em sua companhia, para ouvir uma boa histria e aprender uma nova cano. Ao longo do caminho, o cansao adquirido com as andanas realizadas diariamente redimido, noite, pela grandiosidade de seus sonhos, mais particularmente daqueles que no se realizaram durante o dia. O olhar que esse narrador lana sobre seu tempo no ignora as experincias frgeis e imprecisas da memria, muito menos deixa de seguir o rastro da imaginao.47 Dessa forma,Toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, tanto as dissolvendo como recriando-as. Ao mesmo tempo em que demarca diferenas, singularidades ou alteridades, demarca semelhanas, continuidades, ressonncias. Tanto singulariza como universaliza... Sob vrios aspectos, a viagem desvenda alteridades, recria identidades e descortina pluralidades.48

Fio condutor da narrativa prpria aos viajantes: a nfase na imaginao que, aliada s faculdades do ver e do ouvir, transforma-os em contadores de histrias, em mercadores de signos.49 O narrador viajante seria um sujeito repleto de experincias, balizadas pelo conhecimento adquirido ao longo de seus deslocamentos. Sua sabedoria pautada pela multiplicidade e diversidade de informaes. Em sua narrativa esto presentes, inevitavelmente, a concepo de vida, as idias e valores prprios a esse observador do mundo que vive a procura de novas cidades a serem conhecidas e paisagens a serem

46 47

NASCIMENTO, M. Tudo o que voc podia ser. L. Borges; M. Borges. In: Clube da esquina, 1972. BENJAMIN, W. O narrador, 1985; MATOS, O. Espao e tempo: a cidade e a narrativa viajante, 1997. 48 IANNI, O. A metfora da viagem, 1996. Apud: PIMENTEL, T. V. C. Viajar e narrar: toda viagem destinase a ultrapassar fronteiras, 2001. 49 OLIVEIRA, S. De viagens e viajantes: a viagem imaginria e o texto literrio, p.203. Apud: PIMENTEL, T. V. C. Viajar e narrar: toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, 2001.

23 descobertas, experincias expressas por Milton Nascimento e Ronaldo Bastos na cano Amigo, amiga, composta em 1970.50Nas terras de beira-rio Eu sei me sinto seguro Em todo rio me lano De todo cais me afasto Molho cidades e campos Em busca de encontrar Caminho de outro rio Que me leve no rumo do mar51

A pluralidade de experincias e a multiplicidade de sons se tornaram signos presentes em toda a trajetria do Clube da esquina, sendo expressas desde 1967.52 Nesse ano, o Brasil presenciava o terceiro ano de governo da ditadura militar. Os Festivais da cano, disputados por uma grande maioria de novatos e outros nomes j consagrados, se transformavam em verdadeiras arenas no qual idias, valores e concepes polticas eram defendidos por meio de canes. A cano popular seria, portanto, um dos matizes com o qual as classes mdias brasileiras pintavam o pensamento acerca da poltica no pas.53 Basta dizer que naquele mesmo ano, o Festival da TV Record entrou para a histria como o festival da virada. Nesse concurso se notabilizaram tanto Edu Lobo com a desafiadora Ponteio e Chico Buarque com Roda viva, quanto Caetano Veloso e Gilberto Gil nos prenncios tropicalistas de Alegria, Alegria e Domingo no parque. Alm deles, outros nomes se destacaram como Srgio Ricardo que, impedido de cantar Beto, bom de bola, por uma vaia ensurdecedora, quebrou seu violo e o atirou platia; e o rei Roberto Carlos que, sem nenhum de seus sditos por perto, enfrentou os gritos de50 51

PIMENTEL, T. V. C. Viajar e narrar: toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, 2001. NASCIMENTO, M. Amigo, amiga. M. Nascimento; R. Bastos. In: Milton, 1970. 52 Apesar do LP contar com os arranjos de Luiz Ea e da participao dos msicos do Tamba Trio, o repertrio do disco Milton Nascimento, de 1967, foi composto integralmente pelo grupo que viria a se tornar a clula inicial do Clube da Esquina: Milton Nascimento, Mrcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos. 53 NAPOLITANO, M. Seguindo a cano: engajamento poltico e indstria cultural na MPB (1959-1969), 2001; MELLO, Z. H. A era dos festivais da cano: uma parbola, 2003.

24 fora!, cantando Maria, carnaval e cinzas com a maior tranqilidade. No ano seguinte, em meio instabilidade poltica do pas gerada pela insatisfao de alguns setores da sociedade que acabou por determinar a institucionalizao do AI-5 pelo governo militar, Geraldo Vandr radicalizava seu discurso com Pra no dizer que no falei das flores, decretando em um discurso clebre, que a vida no se resume em festivais.54 Longe dos holofotes da mdia que cercava sempre a disputa dos festivais maior garantia de altos ndices de ibope para as emissoras de TV que os transmitiam na poca , Milton Nascimento, um jovem negro e esguio de semblante triste e taciturno, mesmo sem querer, havia classificado trs canes entre as finalistas do II Festival Internacional da Cano, organizado pela TV Globo, em 1967. Alm dele, somente Vincius de Moraes, repetiu o feito que chamou a ateno da imprensa e do pblico para o compositor ainda desconhecido no cenrio nacional. Das trs canes de Milton Nascimento, a favorita era Travessia, parceria com Fernando Brant. As outras duas eram Maria, minha f, parceria com Mrcio Borges e Morro Velho.55 Aos primeiros acordes de Travessia, a platia se rendeu ao intrprete e transformou sua apresentao em um canto unssono. Os versos da cano, aliados a interpretao pungente do cantor causavam na platia a sensao indefinida do encontro com o novo, o que era, durante o breve instante preso naquele momento, a certeza de algo puramente desconhecido. Contudo, assim que anunciada a classificao final pelo corpo de jurados, Travessia perde o primeiro lugar para Margarida do tambm estreante Gutemberg Guarabyra, enquanto Carolina, do j consagrado Chico Buarque, ficaria com54

NAPOLITANO, M. Seguindo a cano: engajamento poltico e indstria cultural na MPB, 1991; MELLO, Z. H. A era dos festivais da cano: uma parbola, 2003; 55 As trs canes teriam sido inscritas na disputa pelo cantor e amigo, Agostinho do Santos revelia do prprio Milton Nascimento. BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996. MELLO, Z. H. A era dos festivais da cano: uma parbola, 2003; DOLORES, M. Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2006.

25 a terceira colocao. Milton Nascimento sairia ainda com o prmio de melhor intrprete do concurso. A premiao garantiu ao jovem compositor a gravao de seu primeiro disco solo naquele mesmo ano. O disco Travessia contou com orquestrao e regncia do experimentado arranjador Luiz Ea e da participao do excepcional Tamba Trio. Devido ao sucesso imediato no festival, Milton Nascimento, no ano seguinte, viaja para os Estados Unidos, onde grava o disco Courage, com os arranjos de Eumir Deodato.56 No plano geral de Travessia, a voz de Milton Nascimento, assim como o andamento da melodia, acompanha de perto as transformaes sofridas pelo narrador. Os pontos de repouso da melodia contribuem para com o clima de indefinio, presente em certos momentos vividos pelo sujeito da narrativa. Na mesma medida, o aumento da intensidade vocal do intrprete refora as decises tomadas pelo narrador.57 A letra da cano, escrita por Fernando Brant, nos remete a uma mudana de posicionamento empreendida pelo narrador que vai sendo fixada durante todo o transcorrer da narrativa. Essa mudana, porm, somente efetuada a partir do momento em que o sujeito toma para si a deciso de buscar outros rumos para a sua vida.58Minha casa no minha E nem meu esse lugar Estou s e no resisto Muito tenho pra falar59

Desde o primeiro verso, o narrador encontra-se desamparado. As perdas que lhe so infligidas, princpio, o deixam desnorteado at mesmo em relao ao prprio espao em que habita. A reflexo acerca dessas mesmas perdas o faz buscar uma ao que venha reparar seu equilbrio. Em certa medida, esse seria tambm o ponto de vista atravs do qual,56

MELLO, Z. H. A era dos festivais da cano: uma parbola, 2003; BORGES, M. Os Sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, 1996. 57 TATIT, L. Anlise semitica atravs das letras, 2001. 58 TATIT, L. Anlise semitica atravs das letras, 2001. 59 NASCIMENTO, M. Travessia. M. Nascimento; F. Brant. In: Milton Nascimento, 1967.

26 Riobaldo Tatarana, conta suas histrias em uma narrativa desencontrada, parcial, fragmentada e rota, por onde os fatos escapam e fogem a toda hora, incompletos, distorcidos e mutilados pelo tempo. Homem de m memria, o velho jaguno j cansado de guerra, atende o chamado de seu corao e recorda as faanhas que o tornaram clebre, nos Gerais mineiro, com o intuito de relatar a si mesmo e aos outros o que aconteceu, simplesmente para que sua narrativa consiga subsistir no mundo e sobreviver prpria vida mortal de seu autor.60 Essa ao teria como ponto de partida o poder de sua voz e a possibilidade de encontrar um outro que venha compartilhar das experincias narradas por ele. Desse momento em diante, o narrador passa a vislumbrar as condies de superao de suas aflies. Isso somente possvel a partir do momento em que ele rel suas experincias passadas em contraposio ao que vivido no presente. 61Quando voc foi embora Fez-se noite em meu viver Forte sou, mas no tem jeito Hoje tenho que chorar

Para, logo em seguida, aventurar-se sob novas perspectivasSolto a voz nas estradas J no quero parar Meu caminho de pedra Como posso sonhar?62

A nova predisposio para a ao guiada pela recusa dos limites que lhes foram impostos. Os impasses vividos e a busca de solues fazem com que o sujeito, aos poucos, redefina sua postura diante dos empecilhos. A travessia comea quando os sonhos feitos de brisa so deixados para trs. A mudana do quadro passional para um posicionamento

60 61

STARLING, H. Lembranas do Brasil; Teoria poltica, Histria e fico em Grande serto: Veredas, 1997. TATIT, L. Anlise semitica atravs das letras, 2001. 62 NASCIMENTO, M. Travessia. M. Nascimento; F. Brant. In: Milton Nascimento, 1967.

27 ativo frente a seus prprios conflitos seria uma espcie de rito de passagem a ser enfrentado para que o narrador pudesse, enfim, viver concretamente: 63Eu no quero mais a morte Muito tenho que viver Vou querer amar de novo E se no der no vou sofrer64

Em se tratando do sentido proposto pela cano, viajar seria ter liberdade para escolher o seu prprio destino. A viagem seria tambm fruto de uma opo voluntria, visto que o livre trnsito e a determinao de seus prprios rumos uma demonstrao de personalidade e autonomia que visa o autoconhecimento e a possibilidade de acesso a uma vida ainda no experimentada. Forma exemplar de inquietao, as viagens alteram a lei natural do envelhecimento, pois revigoram o esprito e restituem ao homem o gosto exagerado pelas coisas terrenas. 65 Em meio s disputas e rivalidades da poca dos festivais da cano, Milton Nascimento e seus parceiros surpreenderam o pas, trazendo cena artstica brasileira novos caminhos para a moderna cano popular. Porm, quase ningum sabia ao certo que novo caminho era esse. Para muitos, Travessia seria uma toada moderna. O sucesso da composio de Milton Nascimento e Fernando Brant foi comemorado, nos bares do Edifcio Malleta, com um salva de palmas e vrios brindes em homenagem valsa Travessia.66 Para o ouvido atento de Caetano Veloso, ao contrrio da opinio de Gilberto Gil, aquela cano, de imediato, no era mais que um dos desdobramentos da bossa nova em dilogo com certos ritmos regionais. Segundo o compositor baiano, primeira vista,

63 64

TATIT, L. Anlise semitica atravs das letras, 2001. NASCIMENTO, M. Travessia. M. Nascimento; F. Brant. In: Milton Nascimento, 1967. 65 PEIXOTO, A. Viagem sentimental: Kodaks e postais, 1942. Apud: PIMENTEL, T. V. C. Viajar e narrar: toda viagem destina-se a ultrapassar fronteiras, 2001. 66 BORGES, M. Os Sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, 1996.

28 no havia em Travessia nada que Edu Lobo j no teria realizado com extremo sucesso.67 Quem ficou a se perguntar que nova musicalidade era aquela foi o experiente arranjador Eumir Deodato. Em 1968, ele comentava queO contexto geral da msica dele [Milton Nascimento] baseado em msica clssica, adaptada a ritmos desconhecidos totalmente. At hoje no consegui descobrir o impulso rtmico que ele d s suas msicas. uma coisa totalmente nova, misteriosa, intrigante e desafiadora.68

O que Eumir Deodato parece desconhecer talvez seja explicado pelo historiador e crtico musical J. Jota de Moraes. Porm, para decifrar tal enigma o autor volta ao passado mineiro. Mais exatamente ao sculo XVIII, perodo ureo da minerao e da arte barroca, em que msicos mulatos, construram uma rica cultura musical que constituiu uma espcie de herana sonora da qual Milton Nascimento seria um dos grandes tradutores:Ali, compositores mulatos, muito bem apetrechados e com perfeita compreenso do que se fazia, naquele momento, na Europa, foram capazes de edificar um slido monumento sonoro que desapareceria com o final do ciclo da minerao. Contudo, mesmo sem influenciar a msica popular, essa msica altamente elaborada passou a integrar a memria coletiva, atravs de cerimnias e festas religiosas, das quais nunca deixou de fazer parte. Mesmo que um tanto subterrnea, esta sempre foi a grande herana dos msicos mineiros de todos os quilates. Em outra dimenso bem menos presa aos cnones da tradio da msica escrita sempre fizeram parte integrante do universo mineiro do canto dos escravos, os festejos, canes e danas sertanejas, bem como a atividade resultante das serestas e serenatas. Elementos provenientes de todas essas fontes foram finalmente filtrados por Milton Nascimento, em um gesto s possvel de ser concretizado por uma grande intuio como a sua. No a toa que em suas msicas aflorem, por vezes, intricadas ondulaes que lembram a antiga msica sacra, gingados rtmicos da msica negra e fios meldicos que se derramam romanticamente, algo maneira dos velhos exemplos seresteiros. (...) Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a sua uma sensibilidade de fundo barroco. Entretanto, se Milton Nascimento fosse apenas voltado para o passado, no teria contribudo tanto para dar msica popular brasileira uma outra fisionomia.6967

VELOSO, C. Prefcio. In: BORGES, M. do livro Os Sonhos no envelhecem: histrias do Clube da esquina, 1996. 68 MELLO, Z.H.; ZEVERIANO, J. A cano no tempo 85 anos de msicas brasileiras. Vol. 2, 1999. p.117. 69 MORAES, J. Jota de. Um novo filo da musicalidade brasileira, 1977. Outro exmio tradutor da herana barroca presente no crculo de compositores do Clube da esquina foi Nivaldo Ornelas, saxofonista, clarinetista, compositor e grande experimentador de sons que mesclam msica sacra, ritmos negros, congados, Folias de reis. Para Nivaldo Ornelas, a msica barroca em Minas Gerais seria entremeada pela cultura medieval ibrica, mas tambm cortada por influncias africanas e inglesas, fruto de um intenso intercambio

29

Essa outra fisionomia, criada por Milton Nascimento e que desafiava os mais sensveis ouvidos, teria se revelado mesmo antes do cantor arriscar suas composies iniciais. o que relata Mrcio Borges, um de seus parceiros de primeira hora:Os arranjos que criava para msicas alheias eram algo indito, profundamente original e estranho, no se pareciam com nada que algum pudesse ter ouvido antes. Tinha de tudo ali, Yma Sumac, carro de boi, vento no cafezal, Miles Davis, Tamba trio, Nelson Gonalves, hino catlico, trilha de faroeste, e ao mesmo tempo no tinha nada, s Bituca e sua voz retinida.70

O Clube da esquina, congregado pela voz de Milton Nascimento, transformou Belo Horizonte em uma esquina sonora, onde o grupo criou uma nova musicalidade que carrega em um andor a densidade barroca dos cantos entoados nas festividades religiosas; que paquera a melodia chorosa das noites de serestas; que flerta com a imprudncia acrobata do Jazz; que namora a batida harmoniosa do violo bossa-novista, que se envolve cadncia mestia da cano latino-americana; que acompanha o batuque ritmado do congado e se deixa levar pelo delrio, eletrizado pelas guitarras do Rock. Esquina que se configura, como um espao do dilogo, da descoberta de novas referncias, influncias e amizades. Esquina como a do cruzamento entre as ruas Divinpolis e Paraispolis, em Santa Tereza bairro ligado ao centro pelo viaduto de mesmo nome que desembocava na antiga praa existente entre as duas torres do Edifcio Sulacap para onde os Borges se mudaram, local que abrigou grande parte das reunies entre os membros e demais convidados do Clube da esquina.71 O convvio criado entre eles

trazido pelos escravos e por viajantes oriundos de vrios lugares, principalmente, vindos da Inglaterra: Minas Gerais muito misteriosa, parece com a Inglaterra, que um lugar com um mistrio muito grande, uma coisa estranha que d at medo e Minas Gerais na minha infncia era assim direto, aquela atmosfera velada de tristeza, de msica religiosa no ar. Depoimento de Nivaldo Ornelas. In: TEDESCO, C. A. R. De Minas, mundo: a imagem potico musical do Clube da esquina, p. 165. 70 BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, p.46. 71 Os bairros Santa Tereza e Floresta so conhecidos como um tradicional reduto de bomios e seresteiros de Belo Horizonte, desde que, na regio, no incio do sculo passado, foi inaugurado o Hotel Floresta, cujo proprietrio promovia festas com muita bebida, mulheres de reputao duvidosa e o som de instrumentos

30 nas vrias esquinas de Belo Horizonte faz com que o grupo volte suas atenes para as diversas formas de relao a serem estabelecidas na cidade e com a cidade, compreendida como lugar doador de sentido nossa existncia, o lugar que nos educa e nos permite construir a prpria identidade.72 Identidade que orientava, por exemplo, os habitantes a andar pelas ruas de Belo Horizonte dispensando a numerao dos imveis, pois quase todos eram capazes de se situar em meio aos edifcios que compe o cenrio urbano, atravs de seus prprios nomes: Parck Royal, Lavourinha, JK, Paraopeba, Mariana, Capixaba, Dants, Nazar, Araguaia, Niemeyer, Balana, mas no cai, Galeria do Ouvidor, etc. Sobre o assunto, Mrcio Borges chama a ateno para o seguinte fato:Comentava-se e hoje no se comenta mais que Belo Horizonte tinha em comum com Nova York o fato de seus habitantes conhecerem pelo nome prprio os edifcios da cidade. Beto Guedes e Toninho Horta moravam no Cesrio Alvim, poca do Festival da Cano, que revelou a imortal Travessia. Para o Edifcio Levy mudaram de uma s leva os Borges, os Tiso e o Bituca. Este trabalhava no Helena Passig, bem em frente a Praa Sete. Os encontros do Ponto dos msicos aconteciam todas as tardes, na calada do Edifcio Guimares. E ponto final. Todos sabiam onde eram esses endereos. 73

Segundo Walter Benjamin, em se tratando do referencial utilizado pelo cidado para se movimentar na cidade, a troca dos nomes prprios por uma numerao fria e oficial, seria uma forma de controle e normatizao imposta sobre a vida social. Nesse processo, o habitante seria levado a se direcionar em seu prprio lugar de origem atravs de meros

musicais que irrompiam durante toda madrugada. Nas imediaes do bairro, por volta de 1934, quando a capital ainda era a cidade jardim, Noel Rosa, ficou hospedado na casa de uma tia, devido a recomendaes mdicas, fato que aumentou ainda mais a fama do lugar. O viaduto, por sua vez, passou a habitar o imaginrio de geraes de poetas e escritores da cidade quando, na dcada de 1920, seus arcos que se elevam do cho a uma altura de 17 metros foram atravessados por Carlos Drummond de Andrade, dando origem a um gesto repetido por caminhantes noturnos procura de aventuras e bomios mais intrpidos. J a praa, hoje, cercada pelas grades e cadeados de um curso pr-vestibular instalado em uma estrutura anexa, construo que alterou sensivelmente a concepo original do edifcio. CD-ROM Visionrios, 2003; BRANDO, C. A. L. A cena contempornea, 1998. 72 BRANDO, C. A. L. O Estado e a cidade como lugar do dilogo, p. 11. 73 BORGES, M. Ruas da cidade, p. 17.

31 registros numricos, sem nenhum vestgio de identificao entre a cidade e seus residentes.74 Foi, justamente, essa comunho existente entre Belo Horizonte e seus habitantes, apontada pelo compositor, que contribuiu para que o Clube da esquina trilhasse caminhos que divisavam outros tipos de travessia. Em busca da ampliao dos horizontes que a cidade lhe proporcionava, os compositores se lanaram ao mundo atravs de viagens em que, muitas vezes, no era necessrio sair do lugar. Como atesta Mrcio Borges:Gosto sempre de nos colocar nessa poca da seguinte forma: tnhamos aquela perspectiva provinciana de Belo Horizonte nos anos 60, mas vamos exatamente os mesmo filmes que se via no IDEC em Paris ou no Centro Experimentale de Roma porque estvamos sintonizados no mundo, apesar de no existir esse negcio de network como hoje.75

A descoberta e o contato com outras realidades, atravs das telas do cinema, meio de transporte mgico, se configuraram como um modo especial de viajar com escalas na Paris de Truffaut e Godard, na Itlia de Fellini, na Amrica de Orson Welles e John Ford e mesmo no Brasil inaugurado pelo cinema novo experimentado incessantemente pelos participantes do Clube da esquina.76 Na dcada de 1960, toda uma gerao de cinfilos, foi formada a partir da leitura da revista francesa Cahiers du Cinma, em encontros e discusses promovidos pelo CEC Centro de estudos cinematogrficos, instalado na parte superior do Cine Art Palcio, na rua Curitiba.77 Na capital mineira, a partir de meados da dcada de 1940, o cinema passou a contribuir decisivamente para a transformao da subjetividade urbana. Interferindo diretamente nos hbitos e costumes dos belo-horizontinos, a arte cinematogrfica, popularizada pela abertura de sofisticadas salas de projeo, em vrios locais da cidade, foi

74 75

BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lrico no auge do capitalismo, 1995. BORGES. M. O Clube da esquina, p. 169. 76 NAZRIO, L. Viagens imaginrias, 2005. 77 VILARA, P. Palavras musicais: letras, processo de criao, viso de mundo de 4 compositores brasileiros: Fernando Brant, Mrcio Borges, Murilo Antunes, Chico Amaral, 2006

32 responsvel pela criao de universos imaginativos que desfazem barreiras territoriais e lanam o indivduo em busca de prazer e liberdade, utopia e reflexo.78 Ainda sobre as viagens cinematogrficas, Eneida de Souza afirma que, nas grandes salas de cinema de Belo Horizonte, como no Cine Brasil ou no Cine Tupi onde Mrcio Borges e Milton Nascimento assistiram Jules et Jim, filme de Franois Truffault, determinante em suas carreiras , era vivido um tipo de experincia coletiva:Onde so compartilhados o gosto esttico, o prazer e os valores de culturas locais em jogo com as metropolitanas. A sada para o imaginrio registra tambm, a sada para a quebra de fronteiras nacionais e polticas. Conviver, mesmo que virtualmente, com as imagens e os sons da mdia transpe o cidado para alm de seus limites regionais.79

Dessa formas, a constituio do Clube da esquina, em Belo Horizonte, se deu fundamentalmente a partir da vivncia de experincias coletivas atravs das quais jovens andarilhos descobriram motivos e valores comuns pelos quais era necessrio agir e, sobretudo, lutar. Nas narrativas do Clube da esquina, as cidades, seriam o local, por excelncia, do viver coletivo, da imaginao que os conduzia a uma infinidade de outros tempos e lugares e, sobretudo, da possibilidade de conhecer outras pessoas e fazer novas amizades. Experincias fundamentais que ganham expresso em Rio Doce, cano dos parceiros Beto Guedes, Tavinho Moura e Ronaldo Bastos, de 1981:Muito prazer de conhecer Muito prazer de nessa rua ser seu par Ao partilhar do seu calor Voc liberta a primeira centelha Que faz a vida iluminar80

Ao participarem desse encontro nas ruas, bares, esquinas, cinemas e palcos da cidade, eles no trouxeram consigo apenas as influncias musicais que seriam fundidas na

78 79

SOUZA, E. M. Olhares do cidado, p. 51. SOUZA, E. M. Olhares do cidado, p. 52. 80 GUEDES, B; JOYCE. Rio Doce. B. Guedes; T. Moura; R. Bastos. In: Contos da lua vaga, 1981.

33 sntese aberta e original realizada pelo Clube da esquina. Cada um de seus integrantes trouxe, atravs de referncias histricas e culturais particulares, tambm um pouco de sua cidade natal. O que fez da capital mineira um solo aglutinador, em torno do qual as cidades de onde partiram tais viajantes, como Trs Pontas, Montes Claros, Pedra Azul, Juiz de Fora, Ponte Nova, Caldas, Diamantina, Niteri entre outras, se avizinhavam pelos caminhos da cano:So vidas dos belos horizontes Gente das mais preciosas fontes Onde ser ternamente brotar81

Sobre essa maneira especial de habitar a capital mineira, Fernando Brant, que chegou cidade ainda garoto, esclarece:Habito a cidade e Belo Horizonte habita em mim. Conheo os sons, os cheiros, as manias, os segredos. Em suas ruas me aventurei e aprendi a ser primeiro menino e depois homem. Nossas histrias se confundem e continuaro a se confundir at que s ela permanea.82

Habitar significa conquistar-se, construir-se, compreender-se, tomar posse de si. Ou seja, somente possvel habitar um lugar com o qual nos identificamos.83 O respeito cidade enquanto esse espao comum a todos , ao outro e a sua diferena seria um dos traos fundamentais da amizade e tambm da nova musicalidade criada pelo Clube da esquina. Foi justamente o convvio entre as diversas influncias musicais prprias a cada um dos seus participantes, que determinou a guinada na trajetria do Clube da esquina. At 1969, as inovaes e experimentalismos presentes nas composies do grupo pouco repercutiram em termos de crtica e de vendagens de disco. Na verdade, o pblico de

81 82

GUEDES, B; JOYCE. Rio Doce. B. Guedes; T. Moura; R. Bastos. In: Contos da lua vaga, 1981. BRANT, F. Minha cidado. Estado de Minas. 07/06/2006. 83 BRANDO, C. A. L. O Estado e a cidade como lugar do dilogo, 2002, p.10.

34 Milton Nascimento ainda era pequeno. Muitos crticos da poca o consideravam como cantor de um nico sucesso.84 Em 1970, trs anos depois de Travessia, parte dos crticos que saudaram a chegada de Milton Nascimento e seu aparente alinhamento ao grupo nacionalista em que figuravam alguns compositores do perodo, desfecharam contra seu novo trabalho o disco Milton algumas das mais desfavorveis avaliaes. Essa mesma crtica se fez presente, inclusive, em relao ao disco Clube da esquina, de 1972. Sobre o intercambio cultural existente entre a cano brasileira e o rock nesse perodo, o jornalista e crtico musical Walter Silva, sob um ponto de vista bastante conservador, publicou o seguinte comentrio: s ler um pouquinho das tendncias obedecidas pela msica popular norteamericana e inglesa que d pra perceber que h um grande engano nisso tudo. E o pior que comeam a surgir aqui os arremedos do arremedo desses movimentos, que no passam de modismos para vender sempre mais, certos de que esto por dentro. Vejam o exemplo de Gil e Milton Nascimento, que jogaram fora toda a sua cultura popular verdadeira para assumir uma cultura postia, importada.85

A partir do disco Milton, de 1970, o intrprete mineiro comportado que vestiu terno preto para subir ao palco do II Festival Internacional da Cano, adotava um novo visual composto por elementos que reafirmavam a importncia da cultura negra em sua carreira. O novo figurino utilizado em seus shows incluia: ps descalos, cabelos eriados, calas amarelas justas, colares de contas, jaqueta de couro com colagens de estrelas prateadas.At 1975, quando lanou o LP Minas, os discos de Milton Nascimento no alcanaram um nmero muito expressivo de vendagens. Contudo, no meio artstico, Milton Nascimento j era tido por cantores e compositores como um dos nomes mais importantes daquela gerao. Antes mesmo do sucesso de Travessia, ele foi convidado para defender Cidade vazia, cano de Baden Powell e Lula Freire, no II Festival da TV Excelsior, de 1966. A cano acabou ficando com a quarta colocao enquanto Milton Nascimento conquistou o trofu Berimbau de Bronze como intrprete. Fato que chamou a ateno de Elis Regina. Nesse mesmo ano, a cantora, no s gravou uma de suas composies, Cano do sal, como o convidou para se apresentar no Fino da Bossa, um dos programas de maior audincia da TV brasileira do perodo. Com o tempo, Elis Regina se tornou uma grande amiga e uma de suas melhores intrpretes, incluindo em seu repertrio vrias canes do Clube da esquina: Conversando no bar, Ponta de areia, Caxang, Morro Velho, Vera Cruz, Maria, Maria, Trem Azul, Vento de Maio, entre outras. In: BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996. DOLORES, M. Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2006; ECHEVERRIA, R. Furaco Elis, 2006. 85 SILVA, W. Vamos com calma. Folha de So Paulo. 20/04/1972. In: Vou te contar; histrias de msica popular brasilera, 2002.84

35 Alm disso, a capa do disco, criada por Klio Rodrigues, trazia o cantor em um desenho de contornos bem definidos e cores fortes, que traduzia a nova guinada na trajetria do artista. Esta capa era to ousada quanto a nova sonoridade do artista, principalmente em comparao com a capa do primeiro disco, de 1967, uma foto em preto em branco que mostra Milton Nascimento sentado em um banquinho, tocando violo durante uma apresentao bem ao estilo bossa nova86. Para acompanh-lo em shows, Milton Nascimento convidou o Som Imaginrio (Wagner Tiso, Lus Alves, Robertinho Silva, Laudir de Oliveira, Tavito, Fredera e Z Rodrix), banda de rock progressivo, que, pelos casacos psicodlicos, cabelos e barbas longas, lembrava muito a capa do disco Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band. Esse grupo formou a base musical na produo do disco que fundia as guitarras distorcidas de L Borges com o uso determinante da percusso de Nan Vasconcelos. At ento, a percusso tinha apenas a funo de acompanhante rtmico. Nesse disco, os elementos percussivos, com um volume maior do que era utilizado at ento nas gravaes brasileiras, passam a atuar concomitantemente ao vocal e ao violo.87 Sobre a atuao do Som Imaginrio, Wagner Tiso esclarece que:O Som Imaginrio deu uma base brasileira-jazzstica e trouxe a qualidade roqueira que tinha o L e o Beto, por exemplo. O Toninho tambm est na parte mais jazzstica, mas o L e o Beto trouxeram pro Clube da esquina umas informaes roqueiras de grande qualidade harmnica. (...) Ento essa mistura que eu estou falando aqui, esse caldeiro de coisas, foi muito importante pra msica brasileira. No s chegar e botar guitarra eltrica no estilo, isso fcil.Sobre as criticas sofridas por Milton Nascimento nesse perodo Ronaldo Bastos afirma que: O Clube da esquina nunca foi perdoado por no ter feito mdia com a mdia. Coleciono dezenas de recortes de jornais que desancavam o Bituca quando ele deixou de ser o bom moo de Travessia para cair na vida e revolucionar, junto com seus amigos do Tropicalismo, o rano da MPB da poca e da produo fonogrfica no Brasil. BASTOS, R. Os Beatles eram Rolling Stones, p.12. TEDESCO, C. A. R. De Minas, mundo: a imagem potico musical do Clube da esquina, 2000. BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996. MELLO, Z.H. Da terra e da f brota o canto das gerais, 1977; DOLORES, M. Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2006. 87 BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996; VILELA, I. Um novo caminho para a MPB. In: www.museuclubedaesquina.org.br.86

36O difcil voc ter uma srie de informaes que pouca gente ouviu, misturar aquilo e levar pro grande pblico.88

Entre as canes que fizeram parte do repertrio, o destaque ficou por conta de Para Lennon e McCartney, composio com andamento acelerado e que contou em seu arranjo, com a predominncia do baixo eltrico e da guitarra, elementos caractersticos da linguagem mais usual do rock. A cano de L Borges, Mrcio Borges e Fernando Brant teve, como tema, um misto de saudao aos dolos ingleses; a celebrao de suas prprias parcerias todas elas fruto da amizade e a afirmao da identidade do grupo que se volta para o passado com vistas ao futuroEu sou da Amrica do Sul Eu sei, vocs no vo saber Mas agora eu sou cowboy Sou do ouro, eu sou vocs Sou do mundo, sou Minas Gerais89

A metfora do ouro no nos remete ao passado mineiro indistintamente, mas em especial ao sculo XVIII, conhecido como sculo do ouro, perodo especfico da histria de Minas Gerais, cuja principal caracterstica poltica e social, segundo Jos Murilo de Carvalho, seria a experincia da Utopia americana da Minas do ouro e do ferro. Para o historiador, em se tratando do contexto colonial, o cenrio das Minas seria um solo frtil para o debate e a propagao de novas idias que combinavam liberdade e autonomia poltica. A Minas inaugural a que se refere o autor seria predominantemente urbana, rebelde, aguerrida, propcia s possibilidades de mudanas, aventuras e, sobretudo, s utopias. Era a Minas mineradora, a Minas da desordem, a Minas do Caos, a Minas do sonho em franca oposio ao estereotipo construdo, durante o sculo XIX, em torno de

88 89

Depoimento de Wagner Tiso. In: www.museuclubedaesquina.org.br. NASCIMENTO, M. Para Lennon e McCartney. L. Borges; M. Borges; F. Brant. In: Milton, 1970.

37 um estado agrrio, conservador, familiar, propenso conciliao poltica e ao imobilismo social.90 Com efeito, a narrativa, escrita em primeira pessoa, constri uma percepo de identidade baseada em na relao dialtica entre o passado colonial mineiro simbolizado metaforicamente pelo ouro e o sentimento de pertencimento cultura latino-americana entendida como um todo coletivo. Na dcada que se iniciava, os compositores do Clube da esquina contriburam para o intercambio musical entre o Brasil e os pases de lngua espanhola, atravs de trocas culturais que construram um rico contato com nomes importantes como Violeta Parra e Mercedes Sosa, entre outros.91 Contudo, essa mesma relao garante a abertura necessria para o dilogo, com qualquer outra referncia de qualidade que viesse a manter o Clube da esquina em contato com o que havia de mais novo no mundo, em matria de correspondncias culturais, seja atravs da msica, do cinema e da literatura. Em se tratando da influncia dos Beatles na obra do Clube da esquina, a referncia ao quarteto de Liverpool se tornou uma constante principalmente nas carreiras de L Borges, Beto Guedes e Tavito. Esse ltimo, em 1979, juntamente com Ney Azambuja,

Para Jos Murilo de Carvalho, a busca por ouro e diamantes forjou em Minas Gerais, durante o perodo da minerao - atividade incerta e insegura um ambiente propcio para o nascimento de sonhos e utopias. A possibilidade de mudanas rpidas e curto prazo foi determinante para o fortalecimento de uma sociedade desejosa de viver segundo suas prprias aspiraes. Quando a crise da minerao se instalou nas Minas, a descoberta do ferro engendrou novas possibilidades de crescimento econmico e autonomia poltica. O ferro, no final do sculo XVIII, significava uma alternativa de desenvolvimento e futuro feito de liberdade e autodeterminao. Segundo o autor, essa utopia renasceu ao longo do tempo atravs da trajetria poltica de homens como Tefilo Ottoni, Joo Pinheiro e Juscelino Kubitschek. Ver: CARVALHO, J. M. Minas e as utopias ou as utopias de Minas, 1993; CARVALHO, J. M. Ouro, terra e ferro: vozes de minas, 2005. 91 Ao longo da dcada de 1970, Milton Nascimento, alm de incorporar certos procedimentos sonoros tpicos da msica latina, regravou, em seus discos, canes como Dos cruces (Carmelo Larrea); Caldera (Nelson Araya); Volver a los 17 (Violeta Parra); Casamiento de negros (Violeta Parra); Cancion por la unidad de Latino America (Pablo Milans, com adaptao de Chico Buarque); Sueo con serpientes (Silvio Rodriguez). Mais tarde, em 1986, o cantor se juntou a Mercedes Sosa e Len Gieco no lanamento do disco Corazn Americano, interpretando algumas dessas canes, alm de outras composies significativas do cancioneiro latino-americano.

90

38 relembra, uma Belo Horizonte em que o amor era anotado em bilhetes, no muro do Sacr-Coeur, em uma rua e seus ramalhetes. Para o compositor, nos bailes do Clube da esquina, Lennon, McCartney, Harisson e Ringo eram sempre bem vindos:Vamos deixar tudo rolar E o som dos Beatles na vitrola Ser que algum dia eles vem aqui Cantar as canes que a gente quer ouvir92

Beto Guedes, por sua vez, gravou tambm, em 1979, com Milton Nascimento, a cano Norwingian Wood (This Bird Has Flown) e produziu, em 1986, o seu prprio LP Alma de Borracha, referencia explicita a Rubber Soul, disco lanado pelos Beatles, vinte anos antes. Em 1981, o cantor e compositor dedicou o disco Contos da lua vaga a John Lennon, assassinado em Nova York, no ano anterior. A capa do disco, elaborada por Cafi e Ronaldo Bastos, traz o intrprete, entre luzes e sombras, portando uma rplica do baixo utilizado por Paul McCartney nas apresentaes do grupo ingls. Se por um lado, os Beatles foram uma influncia determinante na carreira de Beto Guedes, esse mineiro de Montes Claros que sonhava com os portos de Liverpool, por outro lado, no perdia de vista a terra que o viu nascer. O pequi, um dos smbolos da cultura do norte de Minas Gerais tal como a ma verde para os Beatles estampou a grande maioria das capas de seus discos. Alm disso, outra referncia sonora fundamental o reportava cidade natal: Godofredo Guedes, seu pai, compositor de choros e serestas, famoso na regio por sua habilidade com instrumentos musicais, pincis e aquarelas, responsvel por sua iniciao musical e tambm presente em seus discos.93

92 93

TAVITO. Rua Ramalhete. Tavito. W. Azambuja. In: Tavito, 1979. Godofredo Guedes autor de canes importantes com as quais Beto Guedes sempre encerrava a gravao de seus discos. So elas: Belo Horizonte (1977); Cantar (1978); Casinha de palha (1979); Noites sem luar (1981), Um sonho (1984). Alm disso, foi dedicada a Godofredo Guedes a cano Choro de pai, composta por Beto Guedes, em 1986, e que recebeu letra de Tadeu Franco, em 1991.

39 Entretanto, em 1967, em meio a discusso entre a massiva influncia estrangeira na msica popular e a defesa ou o resgate de uma pretensa cultura genuinamente nacional, muitos crticos viam Milton Nascimento como um jovem valor que concentrava em sua msica toda a autenticidade brasileira. Em suma, um bom exemplo a ser seguido pelos tropicalistas ou pela Jovem Guarda de Roberto Carlos, Wanderlia e Erasmo Carlos; dois dos principais alvos desse tipo de crtica. O que no contavam os crticos que desde Travessia, Milton Nascimento j vinha mantendo contato com uma gama variada de sons e estilos musicais. No apenas com o samba moderno, mas, por exemplo, com outros elementos sonoros pincelados nas novas correntes do jazz feito na poca como a vocalizao improvisada e o uso de harmonizaes mais livres.94 Liberdade que, desde que saiu de Trs Pontas, Milton Nascimento, msico itinerante, vai somando s diversas influncias que foi encontrando pelo caminho. Ao chegar em Belo Horizonte, em 1963, e ser recebido por Marilton e Mrcio Borges, no Edifcio Levy, que ligava a avenida Amazonas rua Curitiba, a um quarteiro da Praa Sete, no centro da cidade, Milton Nascimento se torna cantor da noite. O repertrio vasto j era conhecido desde da cidade natal, pois ainda l, o crooner, ficou famoso pelo grande conhecimento de sambas, boleros, tangos, Ch-ch-chs, bossa-nova, msica americana; estilos executados em bailes, clubes, rdios, boates, etc. Com a roupa encharcada e a alma repleta de cho, no interior ou na capital, Milton Nascimento atuando sozinho ou em grupos como Luar de Prata, Ws Boys, Conjunto Clio Balona, Grupo Evolussamba, Conjunto Holliday, Berimbau Trio e Conjunto Sambacana ps o p na profisso, como relembrou, em 1981, os versos da cano Bailes da vida, em parceria

94

ANHANGUERA, J. Coraes futuristas, 1978.

40 com Fernando Brant.95 Porm, Milton Nascimento nunca caminhou sozinho. Tambm vindo de Trs Pontas, Wagner Tiso, depois de uma rpida passagem pelo interior de So Paulo, atendeu prontamente o recado do amigo, passando a atuar a seu lado em praticamente todos os grupos em que trabalhou: 96Foi o Milton Nascimento que me escreveu, dizendo que em BH tinha msicos da pesadssima, que s vendo para crer. E era mesmo: era o Nivaldo, o Helius Villela, muita gente boa. Foi l, que pela primeira vez, que me interessei por msica clssica, passei a comprar partituras, ouvir, estudar. Foi l tambm que eu ouvi jazz pela primeira vez, jazz free mesmo, de improviso. Acho que essas coisas, mais os sons de Minas, mesmo, de igreja, de fazenda, so os principais elementos de meu som. Ah, e tem o rock, claro. Os Beatles. Jazz e Beatles, pra mim esto no mesmo plano.97

Nos anos 1960, enquanto em outras capitais as opinies fervilhavam em meio passeata contra as guitarras, festas de arromba e manifestos tropicalistas, a provinciana Belo Horizonte j tinha, desde o inicio da dcada, o seu prprio dolo em matria de guitarrista: Chiquito Braga.98 Mestre de Toninho Horta e de inmeros msicos que passaram pela cidade, ele ficou famoso pela habilidade com que dominava o

So dessa poca os primeiros registros da voz de Milton Nascimento em disco: Barulho de Trem, compacto duplo lanado pelo Conjunto Holliday. O disco continha as faixas: Barulho de trem, de sua autoria; Aconteceu, parceria com Wagner Tiso; Noite Triste, parceria com Mauro Oliveira e Frias, composio de Wagner Tiso. Em outra oportunidade, Milton Nascimento e Wagner Tiso foram convidados pelo compositor Pacfico Mascarenhas para participarem da gravao do disco Quarteto Sambacana, nos estdios da Odeon, no Rio de Janeiro. DOLORES, M. Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2006. 96 Filho de uma professora de piano de formao erudita, Wagner Tiso fazia parte de uma famlia tradicional de Trs Pontas em que todos tocavam algum tipo de instrumento. Ao longo de sua carreira, Wagner Tiso soube conjugar o estudo da msica clssica, os cantos de trabalho das fazendas de caf do sul de Minas e som das cerimnias religiosas do interior, ouvidos durante a infncia com a descoberta de novas influncias na juventude, como o jazz e o rock. Responsvel por grande parte das orquestraes e por dar coeso aos arranjos elaborados pelo grupo, Wagner Tiso considerado, por muitos, o grande maestro do Clube da esquina. BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, 1996. 97 Entrevista de Wagner Tiso ao jornal Trindade; msica instrumental brasileira, 1977. 98 Nessa poca, os membros do Clube da esquina permaneceram alheios discusso em torno do uso de guitarras eltricas na cano brasileira. Segundo Mrcio Borges, o instrumento no era nenhuma novidade para os seguidores de Chiquito Braga e fs declarados de Wes Montgomery, que por sua vez, tocava guitarra eltrica muito antes daquela gerao se quer ter nascido: num ou noutro caso, tnhamos clara conscincia de que aquele negcio de tocar guitarra e fazer escarcu s tinha algum valor porque vivamos num pas como o Brasil e numa ditadura chamada revoluo. BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, p. 207.

95

41 instrumento eltrico. A maestria dos sons que tirava da guitarra e tambm do violo o levou a trabalhar, mais tarde, com uma lista extensa de grandes nomes da cano popular.99 Chiquito Braga era um dos muitos profissionais do ramo musical que se encontravam no Ponto dos msicos, onde instrumentistas, crooners, tcnicos de som fechavam contratos para tocar em bailes, bares e festas, alm de montar novos grupos, trocar discos e partituras, comentar as novidades do mercado ou mesmo para uma simples confraternizao. Localizado em uma calada beira da Avenida Afonso Pena, quase esquina com rua Tupinambs, o lugar tinha esse nome por ser o ponto de parada dos nibus circulares que facilitavam o transporte para os mais diferentes endereos da cidade. Nessa poca, o Ponto dos msicos era freqentado tambm pelos jovens Milton Nascimento, Wagner Tiso, Marilton Borges, Nivaldo Ornelas, Paulo Horta entre tantos outros.100 Esse ltimo, irmo mais velho de Toninho Horta, na dcada de 1950, foi um dos fundadores do Jazz Fun Club, que reuniu os aficionados pelo estilo e contribuiu para o desenvolvimento criativo de uma gerao de grandes msicos atravs da audio e divulgao de nomes como Stan Kenton, Duke Ellington, Countie Basie, Sara Vaughan, Ella Fitzgerald, Wes Montgomery, Charlie Parker, Max Roach, Roy Hamilton. No incio dos anos 1960, em Belo Horizonte, os jazzitas tinham, inclusive, seu templo devidamente decorado com posters de John Coltrane, Modern Jazz Quartet e Miles Davis a boateAo longo de sua carreira Chiquito Braga acompanhou nomes como Tito Madi, Agostinho dos Santos, Elizeth Cardoso, Srgio Ricardo, Taiguara, Gilberto Gil, Jards Macal, Dorival Caymmi, Faf de Belm, Alade Costa, Tim Maia, Leila Pinheiro, Gal Costa, Som imaginrio, Maria Bethnia, Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso, Simone, Nara Leo, Zizi Possi, Faf de Belm, Gunga. Em 2000, j no final de sua carreira, Chiquito Braga lanou o disco Quadros modernos em parceria com Toninho Horta e Juarez Moreira. DICIONRIO CRAVO ALVIN DE MSICA POPULAR. 100 Para Mrcio Borges: O Ponto dos msicos era um mundo cheio de emoes baratas, um ponto de encontro de homens e mulheres talentosos e dedicados cujo destino de msicos num lugar como aquele os levava quase sempre a existncia rotineira de pobreza e sacrifcios, longe dos seus, rodando o estado em interminveis viagens, apinhados em nibus velhos por estradas poeirentas, quando muito numa Kombi, ao encontro de um baile. BORGES, M. Os sonhos no envelhecem; histrias do Clube da esquina, p. 68. DOLORES, M. Travessia: a vida de Milton Nascimento, 2006.99

42 Berimbau Club, no Edifcio Malleta.101 Sobre sua chegada ao universo musical da capital mineira, Milton Nascimento faz o seguinte comentrio:Uma coisa muito interessante que quando eu tive assim o meu primeiro contato com msicos profissionais de cidade grande, foi l em Belo Horizonte, ento a gente foi no Berimbau, que o lugar onde o pessoal se apresentava. Ento a gente foi assistir o show de um grupo l e eu quase ca pra trs, por que eles tocavam msicas que eu e Wagner tocvamos, mas de uma maneira completamente diferente da nossa. E eu peguei, fiquei desesperado. (...) E depois eu fui conhecendo o pessoal, mas desde que sa cabisbaixo, que eu falei pro Marilton: eu tenho que mudar tudo, tenho que aprender de novo, a Marilton falou: voc est louco! Tem que tocar desse jeito a.102

Msicos autodidatas, Milton Nascimento e Wagner Tiso trouxeram para o cenrio de Belo Horizonte a marca de uma musicalidade tirada de ouvido, como reza a expresso popular. Originalidade criada a partir da disposio de unir referncias completamente opostas em uma mistura surpreendente e inventiva, empreendida por meio da superao dos poucos recursos disponveis, caracterstica comum da grande maioria dos artistas populares em comeo de carreira, e da vontade de aprender coisas novas. Contudo, em 1964, iniciava-se um perodo obscuro para grande parte dos compositores brasileiros, que ficaram ainda mais perplexos com o drama histrico iniciado em dezembro de 1968, com o decreto do Ato Institucional N 5. No mesmo ano em que os jovens brasileiros travam contato com os sonhos libertrios que emanavam das barricadas de Paris, o pas passava a conhecer tambm seus anos de chumbo. Na conjuntura repressiva do perodo, a cano popular comportava uma fonte de poder que extrai de seus prprios recursos a capacidade, no apenas de resistncia, mas tambm de resgate.103 Porm, nesse perodo, experincias sociais como liberdade, amizade e solidariedade seDepoimento de Toninho Horta. In: TEDESCO, C. A. R. De Minas, mundo: a imagem potico musical do Clube da esquina, 2000. 102 Depoimento de Milton Nascimento. In: Guia Turismo de Belo Horizonte Roteiro Clube da esquina, p. 47. 103 WISNIK, J.M. O minuto e o milnio ou Por favor, professor, uma dcada de cada vez, 1980.101

43 tornavam cada vez mais escassas em um processo em que o medo e a solido eram impostos pela atrofia da vida coletiva intensificada pelo regime militar. Diante do pessimismo e da apatia que passou a vigorar at mesmo entre os pensamentos mais progressistas da poca, o narrador viajante presente nas canes do Clube da esquina se volta para a condio do sonhador. Viajar seria um ato de liberdade, que envolve o desejo, a fantasia e a esperana de experimentar algo novo. Em suma, corrigir uma realidade que no lhe satisfaz. Em Cais, cano de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, de 1972, mais que o deslocamento fsico, seria o sonho que dota a viagem de um sentido:Eu queria ser feliz Invento o mar Invento em mim o sonhador 104

O sonhador a que se refere a cano seria um sujeito pleno de vontade e consciente da necessidade de construo de uma vida melhor. Essa espcie de sonho diurno, dotado de livre escolha em que o sonhador no se rende censura ou repreenso seria fundamental para a mudana de rumos, para a busca de uma outra vida que no seja insatisfatria. Esse sonhar implica em enfrentamento de riscos imprevistos, implica em estar, a todo o momento, diante do inesperado, sabendo que os caminhos escolhidos podem no o levar a lugar algum. Essa atitude diante da realidade que o aguarda, a postura diante desse cenrio de indeciso, contudo passvel de ser decidido por meio do trabalho e da ao concretamente mediada, chama-se Otimismo militante. 105 Essa postura ativa faz do narrador de Cais, um sonhador desperto, na medida em que ele se transforma as lacunas vividas no presente em possibilidades de ao que

104 105

NASCIMENTO, M. Cais. M. Nascimento; R. Bastos. In: Clube da esquina, 1972. BLOCH, E. Princpio Esperana. Volume 1, 2005. p.197.(Grifo do autor)

44 fundam um novo horizonte de expectativas e realizaes. Em seus sonhos ele se desprende do irrealizvel para acolher um futuro ainda indito. Nesse movimento, o viajante se torna senhor de si, pois somente ele poderia estipular os rumos a serem traados, mesmo que os objetivos no estivessem definidos.106 Alis, era melhor que no estivessem. A verdadeira travessia era aquela em que os horizontes permaneciam abertos, sem limites ou determinaes como os que povoam o olhar de Manoel, o audaz, na cano de Toninho Horta e Fernando Brant, de 1973, em que o narrador viajante se torna um aprendiz da vida107:Se eu j nem sei o meu nome Se eu j no sei parar Viajar mais108

Em busca desse aprendizado, o viajante fica exposto ao mais diversos desafios, inconcebveis para quem prefere viver a vida de maneira sedentria. O viajante da cano, no entanto, decide viv-la de forma venturosa como Ulisses, que, em uma de suas peripcias, troca de nome, passando a se chamar Ningum, para salvar, com a astcia necessria, a sua prpria vida e de seus companheiros, na caverna do ciclope Polifemo. As experincias ao longo dos caminhos modificam tanto a fisionomia quanto a alma do viajante. Por essa razo, o mesmo Ulisses, quando volta, enfim, para taca, sua terra natal, BLOCH, E. Princpio Esperana. Volume 1, 2005. Coincidncia ou no, o personagem que acompanha o narrador da cano de Toninho Horta de Fernando Brant carrega um nome de origem portuguesa. Homens de alma atlntica, na concepo de Fernando Pessoa, os lusitanos alcanaram riqueza, glria e fama ao se tornaram donos do mar sem fim, navegando na direo de rotas ainda desconhecidas. No sem razo, Ulisses considerado pelo poeta como o fundador mtico da cidade de Lisboa. No sculo XV, as faanhas dos reinos ibricos circulavam atravs das notcias de grandes descobertas descritas tambm por Cames, na obra Os Lu