a esquina de um clube imaginário

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A Esquina de um Clube Imaginário Ada Dias Pinto Vitenti 1 Brasília, 02 de agosto de 2004. 1 Mestre em História Social pela Universidade de Brasília – UnB.

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A proposta deste ensaio é analisar algumas canções do Clube da Esquina, no sentido de tentar perceber como estes músicos experimentaram diversas realidades, como a ditadura militar e o movimento estudantil, a Belo Horizonte do progresso e a saudade da vida interiorana, as estradas, as paixões pela vida, pela música e por eles mesmos.

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A Esquina de um Clube ImaginrioAda Dias Pinto Vitenti[footnoteRef:2] [2: Mestre em Histria Social pela Universidade de Braslia UnB.]

Braslia, 02 de agosto de 2004.

Sumrio

Primeiro Passo03

Clube da Esquina06

Para Lennon e McCartney09

Paisagem da janela11

Tudo o que voc podia ser/ O que foi feito dever13

Clube da Esquina n 216

Bibliografia18

1. Primeiro passo

Embora em um primeiro momento possa parecer deveras aborrecido voltarmos ao sculo XIX, tal exerccio se faz aqui como escolha, pois pretendemos passear por algumas noes que nos so caras e que, negando-as ou no, as vozes da produo historiogrfica do dito sculo ainda ecoam entre ns. Primeiramente pensamos na idia de histria do sculo XIX como disciplina acadmica, presa aos rigores da anlise das fontes escritas, documentos cujo contedo deveria ser submetido obrigatoriamente verificao de sua veracidade e nos quais fato e fico deveriam estar explicitamente demarcados.Vrios pressupostos formulados por essa histria que se pretendia cientfica ainda fazem parte do trabalho do historiador contemporneo, ainda que muitos tenham servido como estmulo a verdadeiras reviravoltas tanto no campo metodolgico como temtico Da historiografia atual. Respeitando os limites de um breve ensaio, no pretendemos construir aqui um resumo da trajetria da historiografia no sculo XX. Contudo, acreditamos ser importante para o tema aqui trabalhado ressaltar alguns pressupostos tericos que utilizamos e dos quais o mais importante talvez seja a reabilitao narrativa.A cientificidade imposta pesquisa e escrita histrica do sculo XIX rechaou de seus limites a narrativa, ligada literatura e fico. Iluso daqueles historiadores que nunca deixaram de produzir grandes narrativas, ainda que estas no recebessem esse nome e viessem revestidas da autoridade de verdade factual.

Sim, a Histria teria como meta atingir a verdade do acontecido, mas no como mmesis. Entre aquilo que teve lugar um dia, em um tempo fsico j transcorrido e irreversvel, e o texto que conta o que aconteceu, h uma mediao. () O que o historiador pretende reconstruir o passado, para satisfazer o pacto de verdade que estabeleceu com o leitor, mas o que constri pela narrativa um terceiro tempo, situado nem no passado do acontecido nem no presente da escritura. Esse tempo histrico uma inveno/fico do historiador, que, por meio de uma intriga, refigura imaginariamente o passado. Mas sua narrativa almeja ocupar o lugar deste passado, substituindo-o. , pois, representao que organiza os traos deixados pelo passado e se prope como sendo a verdade do acontecido.[footnoteRef:3] [3: Pesavento, Sandra Jatahy. Mudanas epistemolgicas: a entrada em cena de um novo olhar. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003, p. 50.]

O imaginrio, parte constitutiva e constituinte da realidade social, no apenas forja todo fragmento passado com o qual o historiador possa a vir trabalhar como tambm est presente na prpria representao que o pesquisador far do objeto analisado. Posto isso percebemos que distines entre fato e fico no podem mais fazer parte das nossas preocupaes.

A dimenso fictcia e imaginria de todos os relatos de acontecimentos no significa que eles no tenham realmente acontecido, mas, sim, que qualquer tentativa de descrever os acontecimentos (mesmo enquanto esto ocorrendo) deve levar em conta diferentes formas de imaginao.[footnoteRef:4] [4: . Kramer, Lloyd. Literatura, Crtica e Imaginao Histrica: O desafio literrio de Hayden White e Dominick LaCapra. In: Hunt, Lynn (org.).A Nova Histria Cultural. So Paulo:Martins Fontes, 2001, p. 136.]

Nesse sentido gostaramos de iniciar este ensaio, cujo tema o Clube da Esquina trabalhando a msica como narrativa historiogrfica. A flexibilizao da noo que se tinha sobre o que poderia ser ou no uma fonte da anlise historiogrfica, no deixou de fora as manifestaes artsticas em sua plenitude. Aqui foi escolhida a msica, mais especificamente os discursos musicados[footnoteRef:5], entendidos no como reflexo das impresses de seus compositores sobre a realidade circundante, mas sim como produtores de sentidos, de prticas, pois lemos e ouvimos tais discursos como textos cujo alimento o imaginrio compartilhado, institudo e instituinte das representaes reatualizadas cotidianamente. [5: Mello, Maria T. Negro de. Qu qui tu tem, canrio? Cultura e Representao no repertrio de Xangai in Clria B. Costa e Maria Salete K. Machado (org.). Imaginrio e Histria. So Paulo/Braslia: Marco Zero e Paralelo 15, 1999, p. 153.]

O argumento norteador funda-se no entendimento de que o estoque do cancioneiro popular, ao recolher do cotidiano temas e situaes diversas para desenvolve-los e devolve-los em forma de arte, constri, ademais, um arquivo de potencial inestimvel, aberto investigao.[footnoteRef:6] [6: Idem, ibidem, p. 155.]

No se pode dizer quando o Clube da Esquina surgiu, mas pode-se dizer que surgiu em decorrncia do encontro de pessoas, em diferentes tempos, sob um mesmo teto, a casa dos Borges, onde quer ela estivesse: no Edifcio Levy, em Santa Tereza ou no Rio de Janeiro. Milton Nascimento, Mrcio Borges, L Borges, Beto Guedes, Fernando Brant, entre outros importantes msicos construram muitas de suas canes sob os olhares de Seu Salomo e, principalmente, dona Maricota, no quarto dos homens, rodeados pelos beliches que abrigavam onze irmos e Bituca, o dcimo-segundo.

O tal do Bituca era o Milton Nascimento e o Mrcio Borges vivia no Bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, e numa esquina ali perto esses dois sonhadores, junto com Beto Guedes e L Borges, ainda crianas, batucavam em seus violes desde o incio dos anos 60, em busca de sons e felicidade.[footnoteRef:7] [7: Emediato, Luiz Fernando. Editorial. In: Borges, Mrcio. Os sonhos no envelhecem. Histrias do Clube da Esquina. So Paulo: Gerao Editorial, 2002, s/p.]

Como j dissemos, a proposta deste ensaio analisar algumas canes do Clube da Esquina, no sentido de tentar perceber como estes msicos experimentaram diversas realidades, como a ditadura militar e o movimento estudantil, a Belo Horizonte do progresso e a saudade da vida interiorana, as estradas, as paixes pela vida, pela msica e por eles mesmos. Portanto, os discursos musicados nos servem como suporte desta investigao, tal como o livro Os sonhos no envelhecem Histrias do Clube da Esquina, pois na linha da anlise do discurso, acreditamos ser possvel indagar o passado por meio de diversos fragmentos discursivos, no qual a msica se configura como excelente fonte.

Na verdade, convida-nos a pensar como profundamente a Histria e os discursos imbricam-se, sejam estes escritos, orais ou visuais. Essa constatao obvia-se a partir do entendimento de que os discursos circulam na sociedade, seu lugar de constituio o interior dos processos histricos-sociais, no havendo, portanto, outra escolha seno a de situar na Histria as matrizes de suas condies de funcionamento e de significao.[footnoteRef:8] [8: Mello, Maria T. Negro de. Clio, a musa da Histria e sua presena entre ns. In: Costa, Clria Botelho da. Um passeio com Clio. Braslia: Paralelo 15, 2002, p. 38]

2. Clube da Esquina

Noite chegou outra vezde novo na esquina os homens estotodos se acham mortaisdividem a noite, a lua, at solidoneste clube a gente sozinha se vpela ltima vez espera do dia naquela caladafugindo de outro lugar...

A Esquina de um Clube Imaginrio, a esquina da rua Divinpolis, no bairro de Santa Tereza em Belo Horizonte foi, como os prprios membros contam, um dos pontos fundamentais de reunio do pessoal do Clube da Esquina. Na dita esquina no tinha nenhum clube, no pelo menos da maneira que usualmente poderia se pensar, o que havia era um pedao de calada na qual aqueles mineiros se encontravam para partilhar sonhos, desejos... Mas havia sim um clube, muito mais presente do que os com paredes de tijolos e portas de madeira, havia um clube dentro de cada uma dessas pessoas, um sentimento, uma vontade de partilhar naquele momento ambies mtuas, de criar, de falar das experincias que todos estavam vivendo mais ou menos da mesma forma naquela Belo Horizonte, naquele Brasil do final da dcada de 1960.Colocamos esse Clube como imaginrio porque o vemos como o fio condutor/produtor do trabalho e da vida desses msicos naquele momento. Foi esse Clube que serviu como amlgama de canes/sonhos que eles partilharam, construdos a partir das impresses colhidas cotidianamente, cuja complexidade do real forja e forjada no imaginrio, reunindo memrias individuais e coletivas sob um nico signo.

O imaginrio trabalha um horizonte psquico habitado por representaes e imagens canalizadoras de afetos, desejos, emoes, esperanas, emulaes; o prprio tecido social urdido pelo imaginrio suas cores, matizes, desenhos reproduzem a trama do fio que os engendrou. O imaginrio seria condio de possibilidade da realidade instituda, solo sobre o qual se instaura e instrumento de sua transformao.[footnoteRef:9] [9: Swain, Tnia Navarro. Voc disse imaginrio?. In: Histria no plural. Braslia: EdUnB, 1994, p. 5.]

Um clube sem scios, sem carteirinhas ou jias, sem sede fixa. Este clube, tem seu espao fsico na esquina, qualquer esquina, por toda a cidade de Belo Horizonte e tambm se espalha pelo interior de Minas Gerais. A associao ao clube marcada por um espao interior dos partcipes, pelo sentimento de impotncia to presente nas msicas.

Enquanto representao social, a identidade uma construo simblica de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da idia de pertencimento. A Identidade uma construo imaginria que produz coeso social, permitindo a identificao da parte com o todo, do indivduo frente a uma coletividade e estabelece a diferena. A identidade relacional., pois ela se constitui a partir da identificao de uma alteridade. Frente ao eu ou ao ns do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.[footnoteRef:10] [10: Pesavento, Op. Cit., p. 89-90.]

Em meio a uma ditadura, ainda que a militncia no seja oficial, partidria, conviver com o sumio dos amigos, fechamento dos antigos lugares de boemia, represso palavra, atitude, liberdade, motiva a tomada de uma posio que no necessariamente binria. Entre o pr e o contra existe o desnimo, o cansao, a impotncia, o cotidiano e por vezes a conscincia de ser pequeno e sozinho contra o avano de poderes pulverizados que chegavam a contagiar os mais diversos ramos/instituies da sociedade. No fundo da noite partiu minha voz / J hora do corpo vencer a manh / Outro dia j vem e a vida se cansa na esquina.Afora as diversas identificaes que eles pudessem compartilhar, talvez a mais movente fosse o desejo de se posicionar e de fazer valer suas vozes dentro de um quadro cuja opresso era crescente. Nos relatos de Mrcio Borges, a ditadura marcada pela contagem dos anos que se passaram desde 31 de maro de 1964, como se a angstia e as prprias aes do regime crescessem sobre eles. Simultaneamente, a contagem do tempo, como a do preso em sua cela, marca a esperana de aqueles dias iriam terminar. O lbum Clube da Esquina representou o momento de unio dos pensamentos, composies desses msicos, em torno de um mesmo objetivo. Como propusera Ronaldo Bastos, um lbum conceitual, com princpio, meio e fim.[footnoteRef:11] [11: Borges. Op. Cit, p. 256.]

3. Para Lennon e McCartney

What would you think if I sang out of tuneWould you stand up and walk out on meLend me your ears and Ill sing you a songAnd Ill try not to sing out of key.[footnoteRef:12] [12: John Lennon e Paul McCartney. Wwith a little help from my friends. ]

Em seu livro Histrias do Clube da Esquina Mrcio Borges conta de como Para Lennon e McCartney foi composta, ele lembra que no dia que ele e Tavinho Moura conseguiram um segundo lugar no primeiro e nico Festival Estudantil da Cano de Belo Horizonte. Houve uma grande comemorao na casa dos Borges; no meio do alvoroo, L Borges estava concentrado compondo algo no piano, quando pediu a Mrcio e Fernando Brant para colocarem uma letra na msica. Quando os letristas lhe perguntaram no que que ele estava pensando ao faze-la, L respondeu que estava pensando na parceria Lennon e McCartney: Na verdade, eu estava pensando na parceria do John e do Paul Nas parcerias, n? A gente aqui, tambm fazendo as nossas E eles nunca vo saber.[footnoteRef:13] Ento em meia hora (tempo que restava antes do almoo ficar pronto), Mrcio e Fernando compuseram uma letra que falava da distncia, muito mais de realidades do que fsica, que os separava dos dois compositores. [13: Borges. Op.cit, p. 239.]

Por que voc no ver meu lado ocidental ()/Eu sou da Amrica do Sul/ Eu sei vocs no vo saber / mas agora sou caubi /sou do ouro eu sou vocs / sou do mundo, sou Minas Gerais... A identidade latino-americana foi muito marcada por uma representao de marginalidade em relao ao Ocidente. Ainda que ocidentais, ns, latino-americanos, fomos e ainda somos vistos como diferentes e inferiores frente a uma idia de superioridade, que construiu a identidade hegemnica. Assim, possvel estabelecer o conflito entre as duas identidades: latino-americana e a anglo-sax. A primeira, estabelecida como a diferena e construda negativamente por meio da excluso ou da marginalizao, ento, suprimida pela segunda, dominante.

Na disputa pela identidade est envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos simblicos e materiais da sociedade. [] O poder de definir a identidade e de marcar a diferena no pode ser separado das relaes mais amplas de poder. [] Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distines entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade est sempre ligada a uma forte separao entre ns e eles. Essa demarcao de fronteiras, essa separao e distino, supem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relaes de poder. [] A identidade e a diferena esto estreitamente relacionadas s formas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificaes. As classificaes so sempre feitas a partir do ponto de vista da identidade. [] Dividir e classificar significa, neste caso, tambm hierarquizar. Deter o privilgio de classificar significa tambm deter o privilgio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados.[footnoteRef:14] [14: Silva, Tomaz Tadeu da. A produo social da identidade e da diferena. In: Silva, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000, p. 81-82.]

Realizavan la labor/ De desunir nossas mos/ E fazer com que os irmos/ Se mirassem com temor ()E enfim quem paga o pesar/ Do tempo que se gastou/ De las vidas que cost/ De las que puede costar.[footnoteRef:15] Contrariando uma proposio de que o Brasil cresceu com as costas voltadas para o restante da Amrica Latina, contrariando a proposio de que uma unio no seria possvel pela diferena de idiomas, a iniciativa de incluir a msica Cancin per la unidad de Latino America pode apontar a busca pela identidade latino-americana. Esta irmandade no estava presente apenas em compartilhar o mesmo espao territorial ou mesma espcie de regime governamental, mas principalmente no sentir e ser da Amrica do Sul. Para o Clube da Esquina, especialmente em ser do Mundo, ser Minas Gerais. [15: Pablo Milans e Chico Buarque. Cancin per la unidad de Latino America.]

4. Paisagem da janela

Marco entra numa cidade;v algum numa praa que vive uma vida ou um instante que poderiam ser seus; ele podia estar no lugar daquele homem se tivesse parado no tempo tanto tempo atrs, ou ento se a tanto tempo atrs numa encruzilhada tivesse tomado uma estrada em vez de outra e depois de uma longa viagem se encontrasse no lugar daquele homem e naquela praa.[footnoteRef:16] [16: Calvino. talo. Captulo 2. In: As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 28.]

A cidade de Belo Horizonte em meados da dcada de 1960 j poderia ser considerada uma metrpole, onde igrejas e cemitrios j no configuravam o centro da vida cotidiana. Na pressa do dia-a-dia, o tempo para contemplar muros brancos, passros voando era muito curto e o que restava era voltar para casa sem olhar em volta, pois o cansao era imperativo. Da janela lateral do quarto de dormir/ Vejo uma igreja, um sinal de glria/ Vejo um muro branco e um vo pssaro/ Vejo uma grade, um velho sinal/ Mensageiro natural de coisas naturais. Em Paisagem da Janela, o Clube da Esquina volta a uma cidade que no era aquela Belo Horizonte na qual viviam, a cidade descrita assemelha-se a uma cidade do interior de um passado colonial, como Diamantina, cidade onde a letra foi escrita. Esse imaginrio colonial no s permaneceu, como definiu o olhar que foi construdo sobre as Minas Gerais. Belo Horizonte, cidade de nome natural, potico, cuja construo atendeu s idias de planejamento urbano e organizao surgidas no sculo XIX, como aponta Sheila Schvarzman so traduzidas na msica na tentativa do autor em trazer a natureza de volta urbe:

A cidade tradicional, que cresceu desordenadamente com os avanos do liberalismo, afastara os homens de suas razes rurais, transtornara seus modos de vida, tornara-se um dos motivos mais aparentes da falncia social, da misria. () A cidade ordenada exerceria o controle sobre os indesejveis, o afastamento das agitaes dos trabalhadores com suas reivindicaes, a exposio de sua misria e de suas atividades, a partir de um discurso tcnico e higienista. Por outro lado, dava ao indivduo, no recanto do seu lar novidade burguesa do sculo XIX a possibilidade do reencontro com a natureza e o belo da paisagem construda, criando uma vida mais saudvel e portanto homens mais felizes.[footnoteRef:17] [17: Schvarzman, Sheila. Cidadania: um simulacro das cidades. In: Histria e Cidadania. XIX Simpsio Nacional da ANPUH. Belo Horizonte MG Julho de 1997. Volume II. So Paulo: ANPUH/Humanitas, 1998, p. 335-336.]

Neste contexto, a esquina no s o encontro de ruas, mas tambm de pessoas, de tempos, presente e passado construindo um mesmo olhar sobre a cidade, ainda que fosse apenas um desejo, uma fantasia de retomar o bucolismo de um tempo que se imaginava mais harmonioso, mais pacfico. O cavaleiro mensageiro da cano alerta seu interlocutor sobre o que ele sabe, sobre o que ele conhece, mas percebe sua voz no apenas no ouvida, como tambm desacreditada. Afinal, este mundo no pertence mais ao cavaleiro, que neste momento apenas observa a paisagem da janela.Quando eu falava dessas cores mrbidas/ Quando eu falava desses homens, srdidos/ Quando eu falava desse temporal/ Voc no me escutou (Voc no quer acreditar)/ Mas isso to normal (Voc no quer acreditar)/ E eu era apenas Cavaleiro marginal lavado em ribeiro/ Cavaleiro negro que viveu mistrios/ Cavaleiro e senhor de casa e rvores/ Sem querer descanso nem dominical/ Cavaleiro marginal, banhado em ribeiro/ Conheci as torres e os cemitrios/ Conheci os homens e os seus velrios/ Eu olhava da janela lateral/ Do quarto de dormir/ Voc no quer acreditar.Para Mrcio Borges, a esquina seria uma calada no meio de uma cidade encravada nas montanhas. () Da esquina se via a Serra do Curral cercando Belo Horizonte por aqueles lados, a pedreira da Pompia e a mata do Taquaril. [footnoteRef:18] O cavaleiro deslocado do bucolismo encontra seu lugar nesta esquina, de onde parte sua voz e onde pode faze-la valer. [18: Borges. Op. Cit.p. 67, 219.]

5. Tudo o que voc podia ser/ O que foi feito dever

Eu, 23, muito indeciso no meio; achava a letra, depois de tudo, muito luntica e triste; eu prprio me sentia assim.[footnoteRef:19] [19: Idem, ibidem, p. 221.]

Voc no quis deixar que eu falasse de tudo/ Tudo que voc podia ser na estrada Se em Clube da Esquina o tempo era contado na esperana de ver a situao ser resolvida, em uma perspectiva otimista; agora o tempo se arrasta, contado como um aumento de desespero que parece no findar. No entanto, o fato de ainda se pensar o consolo, pois pensar aquilo no pode ser retirado do indivduo. Sem querer dar uma intencionalidade msica, podemos pensar que, por ter sido escrita sob o impacto do Ato Institucional n 5, traz uma tnica de descrena.

Doze artigos desabam sobre ns e tornam todos os brasileiros refns indefesos da ditadura. Recesso parlamentar. Interveno nos estados sem limitaes de nenhum tipo. Cassao de mandatos parlamentares. Suspenso dos direitos polticos. Proibio de atividades e manifestaes de cunho poltico. O atingido pelo AI-5 pode ser proibido de exercer sua profisso e ter seus bens confiscados. Censura imprensa sem limitaes. Os atos decorrentes do AI-5 no so passveis de apreciao judicial. Lei de Segurana Nacional. A barra pesou. () Os Atos Institucionais da ditadura esto matando o que restava de belo no horizonte perdido de nossos ideais.[footnoteRef:20] [20: Idem, ibidem, p. 189-190.]

Em cada uma das estrofes principais da msica, que repetem o ttulo da cano, os compositores marcam a derrocada da construo do caminho na estrada, na vida. Aquilo que o indivduo desejava se perde a ponto de ser apenas o que ele consegue ser. Sei um segredo voc tem medo/ S pensa agora em voltar/ No fala mais na bota e do anel de Zapata/ Tudo que voc devia ser sem medo. Por mais que o ideal fosse forte, o medo da morte, da dor pe cheque at mesmo o prprio ideal, a prpria estrada. Estrada, em aluso ao movimento beatnik, cuja influncia ressaltada por Mrcio Borges, representa o caminho a ser seguido nos trilhos que cortam Minas Gerais. Embora Milton Nascimento j estivesse no Rio de Janeiro, poca do lanamento do lbum Clube da Esquina, Mrcio permaneceu em Belo Horizonte, tentando produzir seus filmes e ser um ativo membro do movimento estudantil na Faculdade de Cincias Sociais. Tempos depois, tranca a faculdade, muda-se para o Rio de Janeiro, na busca de outro caminho, dirigir shows, escrever letras, criar discos e, se os deuses do cinematgrafo o permitissem, fazer filmes.[footnoteRef:21] Longe do que a tica tradicionalista de Belo Horizonte impunha. No Rio, o azul do mar, as garotas bonitas, o clima de praia ajudavam a me relaxar. Mas em Beag o desbunde era muito mal visto. A juventude queria e exigia de si mesma mais seriedade e compromisso.[footnoteRef:22] [21: Idem, ibidem, p. 229.] [22: Idem, ibidem, p. 179.]

Alertem todos os alarmes que o homem que eu era voltou/ A tribo toda reunida, rao dividida ao sol. Em O que foi feito dever, do lbum Clube da Esquina II, o cavaleiro marginal sai da posio de mero espectador da janela lateral para viver a luta, a ventura e o ribeiro. E nossa Vera Cruz, quando o descanso era luta pelo po/ E aventura sem par/ Quando o cansao era rio e rio qualquer dava p. V-se o desejo dos compositores de retomar uma memria, que no tem tempo, no tem passado ou futuro, presentificada, em que cada subjetividade se auto-reconhece filiada em totalidades genealgicas que, vindas do passado, se projetam no futuro.[footnoteRef:23] [23: Catroga, Fernando. Memria e Histria. In: Pesavento, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras do milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001, p. 51.]

Histria e Memria so representaes narrativas que se propem uma reconstruo do passado e que se poderia chamar de registro de uma ausncia no tempo. Enquanto representao, a Memria permite que se possa lembrar sem a presena da coisa ou da pessoa evocada, simplesmente com a presena de uma imagem no esprito e com o registro de uma ausncia dada pela passagem do tempo.[footnoteRef:24] [24: Pesavento, Op. cit., p. 94.]

Tem-se a perspectiva de que as agruras do mundo no poderiam esfacelar os sonhos e o prprio fazer do indivduo. E at mesmo a f no era cega nem nada/ Era s nuvem no cu e raiz/ Hoje essa vida s cabe na palma da minha paixo/ Deveras nunca se acabe, abelha fazendo o seu me/l No pranto que criei, nem v dormir como pedra nem esquecer o que foi feito de ns.O apelo memria e identidade do cavaleiro mineiro ressaltam o desejo e a crena de que os sonhos no envelhecem.

6. Clube da Esquina n. 2

Ou ento a nuvem detinha-se logo depois de sair da boca, densa e vagarosa, e evocava uma outra viso: as exalaes estagnadas no alto das metrpoles, a fumaa opaca que no se dispersa, a camada de miasma que gravita sobre as ruas betuminosas. No as lbeis nvoas da memria nem a rida transparncia, mas o cheiro de queimado, de vidas queimadas que forma uma crosta sobre as cidades, a enxada esponja de matria vital que deixou de fluir, o entupimento de passado presente e futuro que bloqueia as existncias calcificadas pela iluso de movimento: eis o que encontrava ao trmino da viagem.[footnoteRef:25] [25: Calvino, Op.cit, p. 94]

E o rio de asfalto e gente/ Entorna pelas ladeiras/ Entope o meio-fio/ Esquina mais de um milho/ Quero ver ento a gente, gente Se em Paisagem da janela, a memria do passado colonial o mote da cano, aqui a Belo Horizonte do final da dcada de setenta cortada por um outro rio, que representa a urbanizao e com ela o observador v outra paisagem da janela e o prprio Clube da Esquina se torna outro. O que fazia toda a diferena, naquela poca, era a construo, pelo regime, de uma roda em que o planejamento do progresso se associava necessidade de desmobilizao da sociedade.[footnoteRef:26] A paisagem mudou: as ferrovias do lugar s rodovias, as casas do lugar aos altos edifcios, a forma de socializao muda e os vizinhos no se vem mais, a igreja no o centro da cidade. E todos os caminhos convergem para a Praa da Liberdade, o Palcio da Liberdade, inclusive uma avenida chamada Brasil.[footnoteRef:27] E o Brasil se torna o pas do futuro. [26: Gaspari, Elio. A roda de Aquarius. In: A ditadura envergonhada. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 212-213.] [27: Schvarzman, Op.cit. p. 337.]

Porque se chamava moo/ Tambm se chamava estrada/ Viagem de ventania/ Nem lembra se olhou pra trs/ Ao primeiro passo, ao, ao/ Porque se chamavam homens/ Tambm se chamavam sonhos/ E sonhos no envelhecem/ () E basta contar compasso/ E basta contar consigo/ Que a chama no tem pavio/ De tudo se faz cano/ E o corao na curva de um rio, rio O Clube da Esquina nunca deixou de existir porque no pertencia a uma esquina, a uma turma, a uma cidade, mas sim a quem, no pedao mais distante do mundo, ouvisse nossas vozes e se juntasse a ns. O Clube da Esquina continua vivo nas msicas, nas letras, no nosso amor, nos nossos filhos e quem mais chegar.[footnoteRef:28] Os moos se tornaram homens e os sonhos mudaram, mas a capacidade de sonhar ainda os une. Assim como a f no caminho, do primeiro passo ao compasso. A memria os faz retornar ao ponto de partida, curva do rio em que se banhavam os cavaleiros, esquina de sua prpria estrada. [28: Borges, Op.cit, p. 358.]

Da mesma forma, o nome Clube no designava seno uma pobre esquina, um pedao de calada e um simples meio-fio, onde os adolescentes da rua (e s raramente os rapazes da minha idade) costumavam vadiar, tocar violo, ficar de bobeira, no cruzamento das ruas Divinpolis e Paraispolis.[footnoteRef:29] [29: Idem, ibidem, p. 167.]

Bibliografia

BORGES, Mrcio. Os sonhos no envelhecem. Histrias do Clube da Esquina. So Paulo: Gerao Editorial, 2002.CALVINO. talo.As cidades invisveis. So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 28CATROGA, Fernando. Memria e Histria. In: Pesavento, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras do milnio. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.KRAMER, Lloyd. Literatura, Crtica e Imaginao Histrica: O desafio literrio de Hayden White e Dominick LaCapra. In: Hunt, Lynn (org.).A Nova Histria Cultural. So Paulo:Martins Fontes, 2001, p. 136.MELLO, Maria T. Negro de. Clio, a musa da Histria e sua presena entre ns. In: Costa, Clria Botelho da. Um passeio com Clio. Braslia: Paralelo 15, 2002.___________.Qu qui tu tem, canrio? Cultura e Representao no repertrio de Xangai. In: Clria B. Costa e Maria Salete K. Machado (org.). Imaginrio e Histria. So Paulo/Braslia: Marco Zero e Paralelo 15, 1999.PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003.SCHVARZMAN, Sheila. Cidadania: um simulacro das cidades. In: Histria e Cidadania. XIX Simpsio Nacional da ANPUH. Belo Horizonte MG Julho de 1997. Volume II. So Paulo: ANPUH/Humanitas, 1998.SILVA, Tomaz Tadeu da. A produo social da identidade e da diferena. In: Silva, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. Petrpolis: Vozes, 2000.SWAIN, Tnia Navarro. Voc disse imaginrio?. In: Histria no plural. Braslia: EdUnB, 1994.

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